UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE –
UERN
CAMPUS AVANÇADO “Prof.ª MARIA ELISA DE A. MAIA” – CAMEAM
DEPARTAMENTO DE LETRAS – DL
PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL
MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS DO DISCURSO E DO TEXTO
Linha de Pesquisa: Discurso, memória e identidade
Julio Neto dos Santos
Renovação do discurso sobre o Nordeste e sobre a
identidade nordestina através do sincretismo cultural em
letras de músicas do Tropicalismo
Pau dos Ferros 2012
Julio Neto dos Santos
Renovação do discurso sobre o Nordeste e sobre a
identidade nordestina através do sincretismo cultural em
letras de músicas do Tropicalismo
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras do CAMEAM - Campus Avançado “Profª. Maria Elisa de A. Maia” da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN como um dos requisitos para obtenção do título de mestre.
ORIENTADOR: Dr. Ivanaldo Oliveira dos Santos Filho
Pau dos Ferros 2012
Santos, Julio Neto dos.
Renovação do discurso sobre o Nordeste e sobre a identidade nordestina através do sincretismo cultural em letras de músicas do Tropicalismo / Julio Neto dos Santos. – Pau dos Ferros, RN, 2012.
197 f.
Orientador(a): Prof. Dr. Ivanaldo Oliveira dos Santos Filho.
Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte. Programa de Pós-Graduação em Letras.
1. Discurso - Dissertação. 2. Intertextualidade - Dissertação. 3. Nordeste - Identidade - Dissertação. I. Santos Filho, Ivanaldo Oliveira dos. II. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III.Título.
UERN/BC CDD 401.41
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
Bibliotecária: Elaine Paiva de Assunção CRB 15 / 492
A dissertação Renovação do discurso sobre o Nordeste e
sobre a identidade nordestina através do sincretismo
cultural em letras de músicas do Tropicalismo, de autoria
de Julio Neto dos Santos, foi submetida à Banca
Examinadora, constituída pelo PPGL/UERN, como requisito
parcial necessário à obtenção do grau de Mestre em Letras,
outorgado pela Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte – UERN
Dissertação defendida e aprovada em 30 de novembro de 2012.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________ Prof. Dr. Ivanaldo Oliveira dos Santos Filho (UERN)
(Presidente)
___________________________________________________________________ Prof. Dr. Elri Bandeira de Sousa (UFCG)
(1º Examinador)
___________________________________________________________________ Prof. Dra. Maria do Socorro Maia Fernandes Barbosa (UERN)
(2º Examinador)
___________________________________________________________________ Prof. Dr. Francisco Paulo da Silva (UERN)
(Suplente)
Pau dos Ferros 2012
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................09
1. O MÉTODO ARQUEOLÓGICO...........................................................................13
1.1 Por que enunciado e não frase ou proposição?..........................................20
1.2 Formação discursiva e a descrição arqueológica dos
enunciados...................................................................................................27
1.3 O arquivo.....................................................................................................30
1.4 A descrição arqueológica e as categorias de análise.................................33
2. ANÁLISE DO DISCURSO: um campo de múltiplas facetas...............................38
2.1 O sujeito e a história....................................................................................41
2.2 Discurso e formação discursiva...................................................................49
2.3 A ideologia...................................................................................................56
2.4 O enunciado................................................................................................61
2.5 Memória discursiva e interdiscurso.............................................................66
2.6 Os gêneros do discurso...............................................................................68
3. TROPICALISMO E A RETOMADA DA LINHA EVOLUTIVA DA MÚSICA
POPULAR BRASILEIRA.....................................................................................81
3.1 Sincretismo cultural e religioso...................................................................88
3.2 Tropicalismo e Ditadura Militar: carnavalização, paródia e a constituição de
novos efeitos de sentidos. ..........................................................................90
3.3 Antropofagia e Tropicalismo: intertextualidades.........................................94
3.4 Os manifestos: Antropofágico e Tropicalista..............................................99
4. A QUESTÃO DA IDENTIDADE: raça, meio e música popular..........................109
4.1 Identidade e pós-modernidade..................................................................112
4.2 Identidade nacional...................................................................................119
4.3 Identidade nordestina................................................................................123
5. RENOVAÇÃO DO DISCURSO SOBRE O NORDESTE E SOBRE A
IDENTIDADE NORDESTINA ATRAVÉS DO SINCRETISMO CULTURAL NAS
LETRAS DAS MÚSICAS DO
TROPICALISMO................................................................................................129 CONCLUSÃO....................................................................................................170
REFERÊNCIAS......................................................................................... .........176
ANEXOS........................................................................................... ..................181
SANTOS, Julio Neto. Renovação do discurso sobre o Nordeste e sobre a identidade
nordestina através do sincretismo cultural em letras de músicas do Tropicalismo. 197
f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Letras) - Programa de Pós-Graduação em
Letras. Campus Avançado Profª Maria Elisa de Albuquerque Maia, Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte, Pau dos Ferros, 2012.
RESUMO
O objetivo deste trabalho é mostrar um novo discurso sobre o Nordeste e os
nordestinos através da análise das músicas dos Tropicalistas. Sabe-se que o
Tropicalismo foi um movimento cosmopolita que abarcou muitas manifestações
culturais na época, mas foi na música que se teve maior êxito. Para empreender a
pesquisa recorremos a Análise do Discurso de vertente francesa (AD),
principalmente nos dispositivos da formação discursiva, da memória discursiva e do
interdiscurso. A formação discursiva para AD é um conjunto de enunciados e de
discursos que se referem a um dado objeto (FOUCAULT, 2008), dando a ele uma
configuração de objeto. A memória discursiva (BRANDÃO, 2004) e o interdiscurso
são as imagens que se resgatam no presente, de algo que já foi dito, mas que no
instante da produção do discurso é resgatado para novos efeitos de sentido. O
interdiscurso é o produto do intercruzamento da memória discursiva quando é
resgatada pelo sujeito em um contexto específico. O método utilizado foi o
arqueológico desenvolvido por Michel Foucault; nele a pesquisa é encarada sempre
como uma forma de pensar que segue um trajeto temático sobre determinado
objeto; também não é a verdade absoluta sobre um determinado fato ou objeto, mas
algo que sempre se pode dizer algo. Utilizamos também a intertextualidade e a
interdiscursividade na esteira de Julia Kristeva (KRISTEVA, 1969) para falar do
resgate e renovação do discurso e das identidades através da retomada de textos e
discursos. O discurso sobre o Nordeste sempre foi escrito, lido e cantado desde a
época de sua formação como um lugar de atraso, de fome, da saudade, de
messiânicos e cangaceiros. A identidade nordestina era vista a partir da região
geográfica em que habitava seu povo, constituídos a partir de um discurso que
configurou o nascimento dessa região (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999). Os
Tropicalistas não se limitaram a esse discurso saudoso e trágico e transportaram o
Nordeste nas letras de suas músicas para o mundo globalizado, cosmopolita e
moderno, fazendo com o discurso sobre o Nordeste e os nordestinos se renovassem
a partir do resgate de sua cultura para o sincretismo cultural dos Tropicalistas, no
qual sincretizava a maioria das manifestações artísticas do país, especialmente o
Nordeste. Podemos concluir que os Tropicalistas colocaram o Nordeste na
vanguarda da cultura, da literatura e da música para o Brasil e o mundo.
Palavras-chave: Discurso. Intertextualidade. Tropicalismo. Nordeste. Identidade.
SANTOS, Julio Neto. Renovation of the discourse about the Norwest and the
northeastern identify through of the cultural syncretism in letters of music of the
Tropicalism. 197 f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Letras) - Programa de Pós-
Graduação em Letras. Campus Avançado Profª Maria Elisa de Albuquerque Maia,
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Pau dos Ferros, 2012.
ABSTRACT
The objective of this work is to show a new discourse about the Northeast and the
Northeasterners through the analysis of the music of Tropicalists. It is known that
Tropicalism a cosmopolitan movement that embraced was many cultural
manifestations at that time, but it was in the music that larger success was had. To
undertake the research we went through the Discourse Analysis of French slope
(AD), mainly in the devices of the discursive formation, of the discursive memory and
of the interdiscourse. The discursive formation for AD is a group of statements and of
speeches that refer to a die object (FOUCAULT, 2008), giving to him an object
configuration. The discursive memory (BRANDÃO, 2004) and the interdiscourse are
the images that they are rescued in the present, of something that was said already,
but that is rescued for new sense effects in the instant of the production of the
speech. The interdiscourse is the product of the intersection of the discursive
memory when it is rescued by the subject in a specific context. The used method was
the archeological developed by Michel Foucault; in it researches is her faced always
as a form of thinking that it follows a thematic itinerary on certain object; it is not also
the absolute true on a certain fact or object, but something that always can one to
say something. We also used the intertextuality and the interdiscursivity in Julia
Kristeva's (KRISTEVA, 1969) mat to speak of the rescue and renewal of the speech
and of the identities through the retaking of texts and speeches. The speech on the
Northeast was always written, worked and sung from the time of its formation as a
place of delay, of hunger, of the longing, of messianic and bandits. The Northeastern
identity was seen starting from the geographical area in that it’s inhabited its people,
constituted starting from a speech that configured the birth of that area
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999). The Tropicalists were not limited to that nostalgic
and tragic speech and they transported the Northeast in the letters of their music for
the world globalized, cosmopolitan and modern, doing with the speech on the
Northeast and the Northeasterners rejuvenated starting from the rescue of the culture
to the cultural syncretism of the Tropicalists, in which syncretized most of the artistic
manifestations of the country, especially the Northeast. We can conclude that
Tropicalists put the Northeast in the vanguard of the culture, of the literature and of
the music for Brazil and the world.
Key-words: Discourse. Intertextuality. Tropicalism. Northeast. Identity.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por tudo que conquistei nessa jornada.
A minha família por me darem o fundamento material empírico para continuar
sempre sem pensar em desistir.
A minha mulher e aos meus filhos pelo amor incondicional que nos une. Isso me
motivou a continuar e ainda me motiva.
Ao meu orientador pelas prazerosas conversas sobre o trabalho de dissertação,
filosofia e música.
À UERN pelo acolhimento que me deu.
À professora Rosângela por sua excelente contribuição em Linguística Funcional e
em Semântica. Vou sentir saudades.
Ao professor Sebastião Cardoso pelas orientações sobre a antropofagia de Oswald
de Andrade.
Aos amigos de turma que muito nos proporcionaram alegria, entretenimento e
discussões calorosas sobre linguística.
Às professoras Edileuza e Socorro Maia pela ótima orientação que me deram na
qualificação.
E agradeço especialmente ao professor Elri Bandeira da UFCG pelas ideias que
motivaram a realização deste trabalho.
LISTA DE ABREVIATURAS
AAD – Análise Automática do Discurso
AD – Análise do Discurso
AI – Ato Institucional
AIE – Aparelhos Ideológicos do Estado
ARE – Aparelhos Repressores do Estado
CLG – Curso de Linguística Geral
DCE – Diretório Central dos Estudantes
DELOPS - Delegacia de Ordem Política e Social
DEOPS - Departamento Estadual de Ordem Política e Social
DOPS - Departamento de Ordem Política e Social
MPB – Música Popular Brasileira
UNE – União Nacional dos Estudantes
USP – Universidade de São Paulo
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INTRODUÇÃO
O objetivo central desse trabalho é mostrar a renovação do discurso sobre o
Nordeste e sobre a identidade nordestina que está presente em algumas das
músicas dos Tropicalistas (Tropicália, No dia em que vim-me embora, alegria,
alegria, De onde é que vem o baião? Baião atemporal, e Procissão). Nelas se
discorreu sobre a forma como esse resgate é feito pelo discurso tropicalista,
levando-se em conta os recursos textuais, linguísticos e extralinguísticos que
contribuíram em sua constituição.
Para empreender esse trabalho recorremos ao Método Arqueológico
desenvolvido pelo filósofo francês Michel Foucault (2008). Esse método se
apresenta como um modo de pensar determinados objetos a partir de sua
constituição no mundo das ciências humanas. Não é um método com procedimentos
rigorosos e sistematicamente organizados e com resultados matematicamente
fechados em si como alguns métodos clássicos como o de Renée Descartes, por
exemplo.
Antes de tudo, o Método Arqueológico trabalha com a noção de trajeto
temático, no qual se delimita o objeto e se começa a discorrer sobre, partindo de um
ponto X a um ponto Y. Com esse método também não se chega a uma verdade
universal dos estados de coisas do mundo, mas a um resultado provisório, ou uma
resposta provisória ao problema proposto. Nesse método se pensa assim, porque se
supõe que não se diz tudo sobre determinado objeto, e que cada pesquisa contribui
com certa relevância para aclarar nossa vivência sobre determinado fato. Não se
tem a noção de que a pesquisa não foi acabada, mas sim de que há sempre algo a
dizer sobre determinada pesquisa com o passar dos tempos.
Utilizamos como modelo teórico a Análise do Discurso (Doravante AD) de
vertente francesa, na qual muitos dispositivos de análise nos foram úteis para a
investigação. Em primeiro lugar o conceito de formação discursiva que é o conjunto
de enunciados que formam um determinado objeto no mundo das ciências humanas
e é também todo o arsenal de conhecimentos e as influências que o sujeito recebeu
em sua vivência e que forma sua estrutura mental e social, tornando-o capaz de
absorver os conhecimentos sociais em acordo ou desacordo com suas experiências
pessoais e produzir algo que não seja a mera repetência de fatos e dados, mas uma
forma de pensar o mundo através de seu ponto vista pessoal.
10
Ao lado da formação discursiva aparecem na AD a memória e o interdiscurso,
que é o que se produz quando se resgata algo já dito e o coloca em um ambiente
novo com a intenção de produzir novos efeitos de sentido. Nesse contexto, o sujeito
resgata uma memória de outra época para produzir seu trabalho ou literalmente ou
por meio de recursos linguísticos e discursivos. Ao ser resgatada, a memória não é
mais a mesma nem tem o mesmo sentido, pois ao se colocar numa enunciação
nova produz novos efeitos de sentido propostos pelo sujeito contemporâneo.
O Tropicalismo como movimento musical e literário do final da década de
1960, ao fazer o resgate de várias memórias e vários discursos inovaram a arte, a
cultura e a música brasileira ao sincretizar tudo isso em suas canções. O
Tropicalismo foi um movimento que colocou o Nordeste e os nordestinos na
vanguarda da música e da cultura do país e do mundo.
O Tropicalismo, que nasceu durante o período da ditadura militar e da pós-
modernidade, duas estruturas antitéticas, assim como o próprio Tropicalismo foi (se
ainda não é!), apesar de muitos acharem um movimento sem comprometimento
social, foi subversivo ao tipo de cultura e sociedade da década de 1960. Em suas
músicas renovaram a cultura e a música do Brasil, contestaram e lutaram contra a
ditadura militar e instaurou o carnaval tropicalista que misturou as várias
manifestações culturais do país em um sincretismo cultural que sincretizava a
antropofagia oswaldiana com poesia de vanguarda, cultura estrangeira com cultura
nacional, o moderno e o arcaico, mostrando que a diversidade cultural e musical do
Brasil é que era sua verdadeira identidade, fugindo aos conceitos de nacionalidade,
brasilidade e civilidade nos moldes da música de protesto.
Com relação à identidade nacional, mostraram através da antropofagia
cultural, da intertextualidade e da interdiscursividade novas formas de compor e
novos efeitos de sentido, ao resgatar o nosso passado antropológico e tropical e
renová-lo com tendências de vanguarda como o rock americano, o Cinema Novo de
Glauber Rocha, o teatro de Hélio Oiticica, a poética radical e o movimento
antropofágico de Oswald de Andrade e as tendências modernas da época.
Os Tropicalistas em suas canções resgataram o Nordeste brasileiro ao trazer
para a cena tropicalista os principais representantes da música e da cultura
nordestina. Caetano Veloso e Gilberto Gil viram no grande Luiz Gonzaga, seu baião
e sua forma de cantar traços de elementos modernos que poderiam dá continuidade
a linha evolutiva da música popular brasileira. Engajados em um projeto de
11
renovação da música e da cultura nacional viram que a renovação se daria por meio
do resgate das principais figuras da música como o próprio Luiz Gonzaga com seu
baião, o João Gilberto com a Bossa Nova; na literatura o resgate da poética e do
Movimento Antropofágico de Oswald de Andrade e a poesia concreta dos irmãos
Augusto de Campos e Haroldo de Campos, o rock dos Beatles, dos Rolling Stones,
etc, tudo isso em uma salada antropofágica para renovar a cultura e a música do
Brasil.
A identidade nordestina manifestada na literatura de 1930 e da música de
Luiz Gonzaga foi recriada com processo de retomadas textuais ipsis litteris e pela
temática como bem atesta Samoyault em A Intertextualidade, pela memória
discursiva de Achard (1999) e pela interdiscursividade nos moldes da Análise do
Discurso de vertente francesa e pelos Gêneros do Discurso e pela carnavalização
de Bakhtin.
De acordo com Albuquerque Júnior, a renovação do discurso sobre o
Nordeste e sobre a identidade nordestina só foi contestada e renovada pelos
Tropicalistas, que sendo nordestinos recriam a música resgatando o que o Nordeste
tinha de valor: sua cultura, seu povo, sua música genuína de caráter moderna e as
tradições orais presentes nas manifestações de cunho popular.
Os Tropicalistas foi um dos únicos, senão o único dos movimentos musicais
que buscaram a renovação da música e da cultura do Brasil através do sincretismo
cultural, na tentativa de renovar a identidade do Brasil e do Nordeste e do nordestino
mesmo em face de discursos já sedimentados pelos discursos oficiais, mostrando
que é possível fazer o carnaval alegórico do Brasil, dessacralizando a arte da corte e
ao mesmo tempo denunciado os males da sociedade e por fim, pregando a
liberdade de expressão, a liberdade sexual e a desmitificação dos discursos sobre o
Brasil, mostrando nossa grandeza cultural e musical para o mundo moderno, tanto é
que hoje a MPB é uma das músicas mais ouvidas no mundo, graças ao carnaval
dessacralizador e desmitificador da arte musical dos Tropicalistas.
No primeiro capítulo tratar-se-á da descrição do método arqueológico
desenvolvido pelo filósofo francês Michel Foucault. Esse método de pesquisa
apresenta-se como uma forma de pensar o objeto pesquisado, traçando um trajeto
temático que dê conta da pesquisa. Não é um método infalível, rigoroso, nem
mesmo matematicamente exato, mas flexível e temporal, podendo ser
12
empreendidas outras pesquisas ser sobre o mesmo objeto e nem por isso deixa de
ser um método científico.
No segundo capítulo há a apresentação da AD de vertente francesa que será
a teoria utilizada para analisar as letras de músicas do Tropicalismo. Diferentemente
de outras teorias linguísticas que tratavam o fato linguístico observando-se as
estruturas linguísticas para analisar suas partes constitutivas dentro de um sistema
abstrato, formal e imanente da língua como o Estruturalismo e o Gerativismo, a AD
investiga as práticas discursivas dentro da sociedade observando o uso da língua
em situações concretas de comunicação, traçando um perfil social, linguístico e
psicanalítico do sujeito, da sociedade e das instituições sociais.
No terceiro capítulo tem-se a história social do Tropicalismo e sua
contribuição musical para a formação cultural da identidade do Brasil. Nessa história
parecem os grandes festivais de música da década de 1960 pela TV Tupi, a
participação de Caetano Veloso e Gilberto Gil nesses festivais e o lançamento do
movimento tropicalista. São descritos também nesse capítulo as principais
influencias que motivaram o surgimento do movimento como a antropofagia cultural
de Oswald de Andrade, o rock americano, a bossa nova de João Gilberto, bem seus
embates com a ditadura militar.
No quarto capítulo se abordará a questão da identidade discorrendo sobre
como essa era vista no início Brasil do século XX. Iniciou-se a se falar em identidade
no Brasil ao se abordar a questão da raça e do meio, dizendo-se que isso
influenciava na formação cultural e social do Brasil. Depois a questão da identidade
passa a ser observada por meio da cultura. Ainda neste mesmo capítulo, se
discorrerá sobre a identidade e a modernidade, a formação da identidade nacional e
sobre a identidade nordestina.
No quinto capítulo será a análise das letras de música do Tropicalismo, com
vista à renovação do discurso sobre o Nordeste e sobre a identidade nordestina
através do sincretismo cultural observado em suas canções. Neste capítulo serão
aplicadas as teorias do método arqueológico, da AD de vertente francesa e a
questão da identidade.
13
1. O MÉTODO ARQUEOLÓGICO
O método adotado neste trabalho é o arqueológico, como passível de análise
do nosso objeto de pesquisa, as letras das músicas do Tropicalismo. Esse método
foi desenvolvido pelo filósofo francês Michel Foucault e não é um método de análise
no sentido clássico que se tem dado ao termo, assim como o de Platão ou Marx,
buscando um padrão científico a partir da análise de dados seguindo padrões
rigorosos de pesquisa, segundo métodos sistematicamente e matematicamente
organizados, sejam eles empíricos ou construídos pelo conhecimento humano.
Foucault tentou estabelecer uma “possibilidade de pensar” (SANTOS, 2010, p. 108)
o objeto a partir de sua constituição para o pesquisador. Nesse caso, sua formação
é feita por uma série de enunciados sobre determinado campo de atividade
discursiva que o constitui como algo possível de análise. Portanto, mais importante
que criar teorias é estabelecer uma maneira de pensar e designar o objeto de
estudo. Segundo Santos (2010, p.108) “o método arqueológico é importante para
captar o não dito, o não pronunciado, ‘a transformação do descontínuo’ da
sociedade contemporânea.”.
Segundo Santos (2010) “A partir de uma perspectiva arqueológica não se
pode falar em método no sentido clássico do termo, como uma técnica de pesquisa
acabada, mas de uma ‘trajetória’” (SANTOS, 2010, p. 108). Para Santos a pesquisa
arqueológica não trabalha com noção que toda pesquisa esteja acabada, ou que
seus métodos sejam infalíveis, mas com a noção de trajeto temático, ou seja, a
análise nunca está pronta e acabada, assume uma posição provisória e relativa da
análise dos fatos, não se configurando, a arqueologia, portanto, como insuficiente
metodologicamente, mas sim buscando uma análise mais próxima possível do
objeto pesquisado, sem esgotar a possibilidade se empreender novas pesquisas no
mesmo campo de investigação. Para Machado apud Santos (2010, p.109) “Com
Michel Foucault a própria ideia de um método histórico imutável, sistemático
universalmente aplicável que é desprestigiada”.
A arqueologia não trata de fatos contínuos, nem trabalha com a noção de
verdade e falsidade, pretende explicitar os mecanismos que constituem os discursos
como saberes e dizeres que são constituídos pelos homens em suas práticas de
linguagem. Não é um saber instituído pela relação de poderes mantidos pelos
aparelhos ideológicos do Estado tal qual a filosofia marxista (esta é uma segunda
14
fase da obra e da vida de Foucault) e posteriormente retomada por Althusser, mas
pelo saber/poder obtido pelas relações de micro poderes dentro da sociedade; não
é, portanto, interesse nesse caso, saber quem tem poder e sim saber como se
constrói poder e saber através da prática e manipulação de discursos.
A consistência de aplicabilidade do método se dá, inicialmente, pelo fato de
estarmos trabalhando com discursos produzidos em outra época, já que para
Foucault o objeto pode ser pensado no tempo, sem que isso traga prejuízos ao
pesquisador. Nossa referência será do final do ano de 1967 a dezembro de 1968,
que coincide com a publicação do famoso AI-51 da ditadura militar, que não cessa o
movimento musical tropicalista, porém degreda2 seus principais expoentes artísticos
Caetano Veloso e Gilberto Gil, no entanto, isso trará para a posteridade uma riqueza
infindável de ritmos e formas de compor e cantar que irão influenciar toda a música
nacional a partir de então. Para Araújo apud Santos (2010, p. 108) “Hoje a
arqueologia do saber tem a mais a dizer do que teve na década de 1960. Sua
capacidade heurística não se esgotou.”, ou seja, o método arqueológico é
1 O AI-5 foi o quinto decreto emitido pelo governo militar brasileiro (1964-1985). É considerado o mais
duro golpe na democracia e deu poderes quase absolutos ao regime militar. Redigido pelo ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva, o AI-5 entrou em vigor em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do então presidente Artur da Costa e Silva. O AI-5 foi uma represália ao discurso do deputado Marcio Moreira Alves, que pediu ao povo brasileiro que boicotasse as festividades de 07 de setembro de 1968, protestando assim contra o governo militar. A Câmara dos Deputados negou a licença para que o deputado fosse processado por este ato. Determinações mais importantes do AI-5: - Concedia poder ao Presidente da República para dar recesso a Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas, estaduais e Câmara de vereadores (Municipais). No período de recesso, o poder executivo federal assumiria as funções destes poderes legislativos. - Concedia poder ao Presidente da República para intervir nos estados e municípios, sem respeitar as limitações constitucionais. - Concedia poder ao Presidente da República para suspender os direitos políticos, pelo período de 10 anos, de qualquer cidadão brasileiro. - Concedia poder ao Presidente da República para cassar mandatos de deputados federais, estaduais e vereadores. - Proibia manifestações populares de caráter político. - Suspendia o direito de habeas corpus (em caos de crime político, crimes contra a ordem econômica, segurança nacional e economia popular). - Impunha a censura previa para jornais, revistas, livros, peças de teatro e músicas. Fim do AI-5 No ano de 1978, no governo de Ernesto Geisel, o AI-5 foi extinto e o habeas corpus restaurado. http://www.suapesquisa.com/ditadura/ai-5.htm - acessado em 11 de maio de 2012. 2 Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos, tiveram suas cabeças raspadas e sofreram agressões
pelos oficiais do DOPS. Logo após a prisão, os dois artistas foram obrigados a deixar o país e morar em Londres, onde permaneceram durante dois anos e meio. Tudo isso aconteceu logo após a publicação do AI-5.
15
importante para desnudar o não dito e o não pronunciado nas relações sociais da
sociedade em qualquer tempo.
Por se tratarem de discursos produzidos numa época distante da atual, não
se pode, portanto, imaginar que a análise seja histórica, ou mesmo diacrônica. O
objetivo desse trabalho é proceder a uma análise mostrando uma nova história do
Nordeste e do nordestino a partir das letras do Tropicalismo através da análise das
letras das músicas no contexto em que elas foram produzidas.
Então, segundo Foucault realizar essa tarefa é:
Empreender a história do que foi dito [...] refazer, em outro sentido, o trabalho da expressão: retomar enunciados conservados ao longo do tempo e dispersos no espaço, em direção ao segredo interior que os precedeu, neles se depositou e aí se encontra (em todos os sentidos do termo) traído. Assim se encontra libertado o núcleo central da subjetividade fundadora, que permanece sempre por trás da história manifesta e que encontra, sob os acontecimentos, uma outra história, mais séria, mais secreta, mais fundamental, mais próxima da origem, mais ligada a seu horizonte último (e, por isso, mais senhora de
todas as suas determinações). (FOUCAULT, 2008, p. 137).
Nesta perspectiva teórica pretende-se mostrar um mapa arqueológico do
Tropicalismo, que não foi de certa forma dito, já que o sentido pode ser traído e, que
através de inferências pode-se analisar as dispersões enunciativas que formaram o
movimento em sua vertente de identidade sincrética que faz uma renovação do
discurso sobre a identidade nordestina e sobre o Nordeste. Essas inferências serão
feitas a partir teoria da AD francesa, na qual o discurso é um tema que se constitui
no nível social e o linguístico, constituindo, assim, do homem e a sociedade, ou
seja, não há uma verdade absoluta sobre o que é dito, nem mesmo a de seu autor
fundador, já que para a AD o sujeito não é dono de seu dizer. Existirá um autor em
um local social determinado que enuncia seu discurso em busca de novos efeitos de
sentido. Nesse sentido buscar-se-á o que se escondeu por traz da história do
Tropicalismo que não ficou explicitado devido às tramas do discurso traído e que
nesse trabalho se pretende revelar através da análise da história dos não ditos, dos
apagamentos, dos esquecimentos, etc.
Nesse recorte temporal irar-se analisar a arquitetura social e discursiva do
Tropicalismo nas músicas-discurso produzidas pelo movimento e mostrar através de
uma análise indutiva e inferencial, os saberes que o constituíram enquanto
16
movimento musical que deu ao Brasil a configuração discursiva renovada sobre a
identidade nordestina e sobre o Nordeste, reagrupando as manifestações musicais
produzidas pelas camadas subalternas da sociedade da época, as influências da
bossa nova, do rock americano e das manifestações culturais oriundas do nordeste
brasileiro.
O método arqueológico não segue uma linearidade temporal, na verdade os
enunciados se justapõem uns aos outros para poder fazer sentido. Não significa que
haja uma linha temporal ou uma cronologia, mas sim um percurso temático
perseguido pelo pesquisador. Como o próprio Michel Foucault assinala, “a ordem
arqueológica não é nem a das sistematicidades, nem a das sucessões
cronológicas.” (FOUCAULT, 2008, p. 167). E afirma “A descrição arqueológica se
dirige às práticas a que os fatos de sucessão deve-se referir se não quisermos
estabelecê-los de maneira selvagem e ingênua, isto é, em termos de mérito”
(FOUCAULT, 2008, p. 167).
Para Foucault é preciso rever a história das ideias que:
Em sua forma mais geral, podemos dizer que ela descreve sem cessar - e em todas as direções em que se efetua - a passagem da não-filosofia à filosofia, da não-cientificidade à ciência, da não-literatura à própria obra. Ela é a análise dos nascimentos surdos, das correspondências longínquas, das permanências que se obstinam sob mudanças aparentes, das lentas formações que se beneficiam de um sem-número de cumplicidades cegas, dessas figuras globais que se ligam pouco a pouco e, de repente, se condensam na agudeza da obra. Gênese, continuidade, totalização: eis os grandes temas da história das ideias, através dos quais ela se liga a uma certa forma, hoje tradicional, de análise histórica. (FOUCAULT, 2008, p. 156).
Então, para Foucault, empreender uma nova visão dos estados de coisas é
necessário abandonar a “histórias das ideias” (FOUCAULT, 2008, p. 156) que é vítima
das continuidades ingênuas 3 do passado como sedimentação das ideias e como se
tudo se estabelecesse em um terreno firme. Para Foucault tudo que foi dito se
assenta em um terreno pantanoso e tudo pode afundar e emergir ao mesmo tempo
causando mudanças que antes não foram percebidas aos olhos e sentidos dos
3 Quando Foucault fala da ingenuidade não está dizendo que todas as ideias contínuas e
cronologicamente organizadas são, de fato ingênuas, mas que há algo a mais para ser lido dentro das descontinuidades históricas, ou seja, encarar os fatos históricos como meras representações de uma época como algo dito e posto dogmaticamente, isso sim é ingenuidade.
17
homens que viveram em determinadas épocas. A história das ideias é cega e surda,
nesse sentido, aos acontecimentos e nascimentos mais obscuros da história,
deixando de lado coisas essenciais no aprofundamento para o reconhecimento de
uma história ou várias histórias ao lado de uma história linear.
De um modo geral, a história das ideias se assenta na gênese, continuidade e
totalização dos fatos, obscurecendo outras formas de conhecimento, saber e poder
que estão por trás dessa forma de encarar a história. Empreender uma nova visão
da história é abandonar a história das ideias que toma tudo pela totalidade e
esquece as menores e significativas partes.
Nesse sentido a descrição arqueológica:
É precisamente abandono da história das ideias, recusa sistemática de seus postulados e de seus procedimentos, tentativa de fazer uma história inteiramente diferente daquilo que os homens disseram. O fato de que alguns não reconheçam nessa tentativa a história de sua infância, que a lamentem e que invoquem, numa época que não é mais feita para ela, a grande sombra de outrora, prova certamente o extremo de sua fidelidade. (FOUCAULT, 2008, p. 156).
Descrever arqueologicamente um acontecimento é abandonar a ideia de que
tudo já foi dito de forma absoluta, recusa-se esse postulado e buscam-se nos
enunciados obscuros da história novas formas de sentido que ainda não foram ditas
e, que necessitam ser explicitadas, para mostrar que os discursos são traídos em
sua constituição e sempre se mostram possíveis de novos efeitos de sentido. Não se
está, portanto, querendo desmentir a história das ideias, mas dizer que ao lado dos
discursos oficialmente ditos sobre o Tropicalismo há outros que não foram
explicitados ou não ditos e que, deles podem surgir outras formas de explicar os
fatos sem se basear numa história linear.
Para empreender a descrição arqueológica Foucault propõe que não se
interprete o discurso apenas como documento opaco e obscuro, signo ou
representação de ideias e de pensamentos, mas o discurso como monumento, ou
seja, a arqueologia não é disciplina meramente interpretativa que busca outros
discursos no discurso, mas procura os discursos que constituíram o próprio
monumento como acontecimento. Nesse sentido a arqueologia busca descobrir a
forma como determinados discursos vieram à tona na construção de um
18
acontecimento e como outros foram eclipsados e procura justamente descobrir
porque se tornaram discursos oficiais e outros não oficiais.
Para o autor francês, a arqueologia deve:
definir os discursos em sua especificidade; mostrar em que sentido o jogo das regras que utilizam é irredutível a qualquer outro; segui-los ao longo de suas arestas exteriores para melhor salientá-los. Ela não vai, em progressão lenta, do campo confuso da opinião à singularidade do sistema ou à estabilidade definitiva da ciência. (FOUCAULT, 2008, p. 157).
Os discursos não são caracterizados por sua identidade4 estável e
estabilizada pelas práticas do discurso, no sentido de acabamento, mas sim com a
ideia de analisá-los em sua própria especificidade constitutiva, observando como ele
funciona em seu exterior, configurando-se num campo delimitado de enunciados que
caracterizam uma teoria ou uma ciência que:
é aquilo que transforma documentos em monumentos, e que lá onde se decifraram esses traços deixados pelo homens [...], desdobra-se uma massa de elementos que se trata [...] de colocar em relação, e de constituir em conjuntos. Houve um tempo em que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos [...] dos objetos sem contexto [...], tendia a história e apenas fazia sentido pela restituição de um discurso histórico; poderíamos dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história, hoje em dia, tende à arqueologia – à descrição intrínseca do monumento. (DREYFUS & RABBINOW, 1995, p. 57).
A arqueologia parte de problemas metodológicos, no sentido de buscar nos
documentos pesquisados uma forma de analisá-los segundo suas especificidades
constitutivas, ou seja, cada documento como monumento possui características que
lhe são inerentes e que requerem uma pesquisa pertinente a ele. Foucault recusa a
ideia de que métodos rígidos com padrões pré-fixados sejam possíveis a
determinados objetos pesquisados. Cada objeto requer uma pesquisa específica
dependendo do seu grau de profundidade de análise. A arqueologia não trata o
4 A identidade no discurso caracteriza-se por um conjunto de enunciados que se referem a um
determinado objeto, tornando-o um campo semântico relativamente estável e visível aos olhos do pesquisador. Por exemplo: quando se observa que os Tropicalistas usavam a cultura musical nordestina explícita nas suas letras de músicas, dizemos que há aí a constituição de um novo discurso, da renovação, da contestação, da afirmação de uma identidade. A identidade neste sentido se apresenta como sendo a regularidade discursiva sobre determinado objeto.
19
monumento como um documento deixado pelos homens, mas estuda as próprias
especificidades constitutivas do objeto, suas relações com a história e suas
implicações na construção dos saberes da sociedade. A arqueologia trata de
conhecer como os objetos são constituídos pelo saber histórico, procurando as
relações que os caracterizam na constituição desses monumentos como discursos
possíveis de serem analisados.
Nessa perspectiva do método arqueológico procura saber por que certos
enunciados são mais evidenciados que outros na constituição dos monumentos e
que o caracterizam como objeto e porque outros enunciados foram rejeitados e
excluídos da relação com esse objeto. Nesse sentido procura-se saber por que esse
e não aquele enunciado foi selecionado na constituição de certos objetos e não
outros; é isso que a arqueologia busca: o não dito e o não pronunciado. A
arqueologia é a descrição dos objetos.
O objeto da arqueologia é o saber. Definir como se estruturam e se
constituem os sistemas de saber pelo discurso é uma tarefa árdua, já que requer a
rejeição a qualquer tipo de epistéme clássica que lida com objetos contínuos e
perenes. Na arqueologia o objeto é mutável e a análise é constante e sujeita a
modificações para acompanhar as transformações sofridas pelos objetos que são
constituídos a partir das manipulações dos saberes sociais e históricos, ou seja, a
análise não é fixa porque os objetos não são fixos nem a história é estanque, mas
sempre sujeita a modificações constantes. Não queremos dizer com isso que o
método arqueológico seja um método anarquista e que esteja acima de todos os
métodos. A ideia central é que nem tudo foi dito sobre determinado objeto e que
nenhuma análise por mais profunda que seja irá dizer tudo sobre determinado
objeto; portanto cada pesquisa arqueológica dá de conta de uma parte do objeto,
sob determinado ângulo de pesquisa.
Na constituição dos objetos e saberes sociais, Foucault enfatiza a questão da
relação e do efeito disciplinar dos discursos. Para ele os saberes e os objetos não se
constituem a seu bel-prazer, mas por um sistema de relações disciplinares que
comandam o que se pode dizer e o que não se pode dizer em determinados lugares
sociais e em determinados campos do saber. Cada ciência e teoria têm seus objetos
definidos a partir das relações estabelecidas por seus enunciados, ou seja, há
enunciados que são pertinentes a certas teorias e ciências e outros enunciados que
20
são excluídos. Essas exclusões são feitas pela própria seleção daquilo que pode ser
dito e não dito em um determinado campo do saber.
Nesta perspectiva os saberes são constituídos por campos de enunciados
específicos que configuram a identidade discursiva da teoria ou saber. Cada campo
do conhecimento tem suas particularidades que são delimitadas pelas categorias
enunciativas que formam seus objetos de pesquisa. Dessa forma, pode-se dizer que
a arqueologia para não ser tachada de sem método e objeto trabalha com a noção
de recorte e limite. O recorte e o limite são rupturas com os métodos classificatórios,
rígidos e universais, descartando um método eficaz a toda e qualquer análise. O
importante para a arqueologia é fazer um recorte do campo a ser trabalhado ou
analisado e estabelecer limites para análise ao especificar elementos e categorias
de análise que podem desnudar e fazer emergir os sentidos de um dado campo do
conhecimento.
Recortar e dar limites são imperativos na análise dos saberes na arqueologia.
Significa que toda pesquisa deve ter um recorte do tempo e dos elementos
analisados, assim como limites específicos que configuram sua identidade numa
formação discursiva, mostrando como os enunciados se relacionam uns com os
outros, ao mesmo tempo em que excluem outros enunciados que não fazem parte
ou não têm relação com o objeto analisado.
1.1 Por que enunciado e não a frase ou proposição?
Diferentemente de outras disciplinas como a gramática, que trabalha com a
noção de frase um tipo de manifestação escrita e oral que se relacionada ao sistema
linguístico e só fazendo sentido dentro desse mesmo sistema, ou mesmo da lógica
que tem a proposição como seu objeto de análise e obedece aos critérios de
verdade/falsidade, uma representação figurativa do mundo5, cujas particularidades
restritivas se situam no mundo formal, o enunciado se constrói em bases empíricas e
formais, ficando mais no campo da constituição dos objetos.
Assim, com relação a frase e a proposição, Foucault assinala que:
chamaremos frase ou proposição as unidades que a gramática ou a lógica podem reconhecer em um conjunto de signos: essas unidades
5 A esse propósito ver o Tratactus logico-philosophico do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein.
21
podem ser sempre caracterizadas pelos elementos que aí figuram e pelas regras de construção que as unem; em relação à frase e à proposição, as questões de origem, de tempo e de lugar, e de contexto, não passam de subsidiárias; a questão decisiva é a de sua correção (ainda que sob a forma de ‘aceitabilidade’)” (FOUCAULT, 2008, p. 121).
Para o método arqueológico adota-se a noção de enunciado que não é nem
frase e nem proposição, mas uma unidade linguística ou não que tem regras
próprias em sua constituição, relacionadas, não com ponto fundamental, a contexto
ao sujeito e a positividade de cada época na constituição das ciências humanas.
O enunciado, segundo Foucault (2008, p. 121):
Chamaremos enunciado a modalidade de existência própria desse conjunto de signos: modalidade que lhe permite ser algo diferente de uma série de traços, algo diferente de uma sucessão de marcas em uma substância, algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser humano; modalidade que lhe permite estar em relação com um domínio de objetos, prescrever uma posição definida a qualquer sujeito possível, estar situado entre outras performances verbais, estar dotado, enfim, de uma materialidade repetível.
O enunciado em si não descarta a possibilidade de ser constituído de signos,
que é próprio da linguagem, mas se apresenta como uma unidade concreta, não um
signo, mas um conjunto de signos que possui traços com as marcas da enunciação
e do sujeito falante. Ele se permite relacionar com os objetos os quais descreve em
sua visibilidade e dizibilidade, manifestando não apenas o que se é perceptível, mas
também mostrar as vicissitudes que permitem ao analista verificar sua consistência
discursiva. Sua materialidade é repetível, não idêntica a uma frase, mas repetível no
sentido de que cada ocorrência idêntica é diferente, e possui outros efeitos de
sentidos. “O enunciado é, ao mesmo tempo, não visível e não oculto” (FOUCAULT,
2008, p. 121). Nesse sentido, o enunciado pode se referir dentro linguagem6 ao dito
e ao não dito, isso porque para Foucault o que ainda não ganhou uma materialidade
está também no campo do dizível.
6 A linguagem no sentido aqui utilizada é toda e qualquer manifestação da língua pelo homem e em
qualquer situação comunicativa. A linguagem tanto se refere ao mundo da escrita e da fala como a imagens, quadros, pinturas etc.
22
Para Foucault:
O enunciado não é, pois, uma estrutura (isto é, um conjunto de relações entre elementos variáveis, autorizando assim um número talvez infinito de modelos concretos); é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles "fazem sentido" ou não, segundo que regras se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita). Não há razão para espanto por não se ter podido encontrar para o enunciado critérios estruturais de unidade; é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço. (FOUCAULT, 2008, p. 98).
Na perspectiva, o enunciado não se confunde com a combinação de
elementos linguísticos referentes aos signos, mas funções e domínios específicos
que se entrecruzam na constituição dos sentidos formando unidades e blocos
heterogêneos, nos quais se realizam sentidos.
Uma das características fundamentais do enunciado, segundo Foucault, é sua
materialidade. A materialidade se refere ao fato do enunciado ter um suporte no
sentido de poder aparecer e não aparecer, seja em um quadro, em um outdoor, em
uma pintura, em uma letra de música. Segundo Foucault “não é simplesmente
princípio de variação, modificação dos critérios de reconhecimento, ou determinação
de subconjuntos linguísticos. É constitutiva do próprio enunciado. É preciso que o
enunciado tenha uma substância, um suporte, um lugar e uma data” (SANTOS,
2010, p. 120). O enunciado tem sua manifestação na vida cotidiana em sua forma
mais peculiar e substancial, seja como ele acontece nas diversas instituições sociais
e nas disciplinas como a medicina, o direito, a psiquiatria e a história, que é pensada
a partir da manifestação do enunciado em sua materialidade.
Como Foucault diz:
A linguagem parece sempre povoada pelo outro, pelo ausente, pelo distante, pelo longínquo; ela é atormentada pela ausência. Não é ela o lugar de aparecimento de algo diferente de si e, nessa função, sua própria existência não parece se dissipar? Ora, se queremos descrever o nível enunciativo, é preciso levar em consideração justamente essa existência; interrogar a linguagem, não na direção a que ela remete, mas na dimensão que a produz; (FOUCAULT, 2008, p. 126).
23
Neste ponto Foucault defende que na linguagem há sempre a presença
perceptível (mesmo que não escrito e falado) do outro, da instância produtiva do
discurso e suas intenções quando o produziu. É uma função particular de o
enunciado estar sempre povoado de outros enunciados. A existência material de um
enunciado pode ser, neste sentido, a presença não dita, mas perceptível de outro
enunciado que foi ocultado, cujo aparecimento se detecta pela emergência de um
discurso sobre determinado objeto. Então, o enunciado não vai ao encontro de quem
produz, ou seja, seu autor, mas na direção de seu interlocutor em busca de novos
efeitos de sentido, não está para a fonte e sim para a relação locutor e interlocutor.
O enunciado é uma categoria do discurso. Ele se estrutura a partir de sua
interioridade e exterioridade, no qual ambos são passíveis de análise. O primeiro
refere-se ao fato de ser escrito ou falado em uma dada língua natural, com sua
ordem gramatical própria, seu léxico e sua estrutura sintática. O segundo por seu
sentido e sua relação com o mundo das ideias, podendo ser um produto ideológico
produzido por homens em uma dada época. Constitui um tesouro que se arquiva
nas conversas orais, em documentos oficiais, prontuários clínicos, livros, teses,
dissertações etc. Essa forma de encarar o enunciado explicita uma preocupação
com o sentido sem descartar, entretanto, a sua forma e sua escritura em uma dada
língua natural ou artificial. O que se pretende afirmar é que tem que se observar o
enunciado em sua forma geral e não apenas na sua imanência como faziam os
estruturalistas.
A exterioridade do enunciado revela o tratamento que o analista dá a ele. É a
apreensão daquilo que foi dito por um enunciado dito ou não na história. Todo o
trabalho exterior do enunciado se volta para descobrir a interioridade dos
enunciados para desvendar seus segredos. “Empreender a história do que foi dito é
refazer, em outro sentido, o trabalho da expressão: retomar enunciados conservados
ao longo do tempo e dispersos no espaço, em direção ao segredo interior que os
precedeu, neles se depositou e aí se encontra (em todos os sentidos do termo)
traído.” (FOUCAULT, 2008, p. 137).
Quanto a isso, Foucault (2008, p. 139) afirma:
o conjunto das coisas ditas, as relações, as regularidades e as transformações que podem aí ser observadas, o domínio do qual certas figuras e certos entrecruzamentos indicam o lugar singular de um sujeito falante e podem receber o nome de um autor. ‘Não
24
importa quem fala’, mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar. É considerado, necessariamente, no jogo de uma exterioridade.
A questão da exterioridade para o enunciado leva em conta a instância
produtora do saber, enquanto que uma análise linguística se preocupa com os
elementos internos do sistema. A exterioridade permite observar as transformações
ocorridas no tempo e no espaço e analisar sua formação discursiva e a partir disso,
interpretar a história em determinado ponto de dispersão.
Essa unidade à qual o filósofo francês chama de enunciado será um dos
dispositivos de análise, visto que, considera-se as letras de música do Tropicalismo
como enunciados. Nossa análise não é gramatical, e, portanto, não se interessa por
frases e sim enunciados organizados em uma determinada formação discursiva que
possuem efeitos de sentido. A análise em questão vai discorrer sobre a identidade
nordestina sincrética e a renovação do discurso sobre o Nordeste através de
músicas do Tropicalista.
O enunciado é uma unidade do discurso que deixa transparecer sua
identidade de sentido. Através dele se pode procurar sua atuação no campo da
linguagem e descobrir suas várias formas de produção de sentido.
Quanto à identidade do enunciado, Foucault (2008, p. 117) afirma: “A
constância do enunciado, a manutenção de sua identidade através dos
acontecimentos singulares das enunciações, seus desdobramentos através da
identidade das formas, tudo isso é função do campo de utilização no qual ele se
encontra inserido.” Segundo o autor o que forma uma identidade do enunciado são
as suas regularidades constantes, ou seja, cada enunciado está dentro de um
campo específico que o configura como pertinente àquele tipo de discurso. Um
discurso sobre política terá enunciados com seu conteúdo semântico voltado para o
núcleo desse discurso. No mesmo discurso, enunciados que se refiram
especificamente ao campo da psiquiatria não serão mais discurso político, e sim
discurso psiquiátrico. Dessa forma, a identidade está na dispersão desse enunciado
e não em sua sistematicidade cronológica, já que um mesmo enunciado pode viajar
de uma época a outra sem necessariamente pertencer àquela época. O que importa
é sua estabilidade no campo de sua utilização.
Dessa forma, pode-se dizer que os elementos da análise aqui proposta, no
caso as letras de música do Tropicalismo, serão nosso objeto de estudo. Esses
25
objetos são bastante heterogêneos não pelo simples fato da linguagem em si só já
ser heterogênea, mas porque a disposição desses objetos é heterogênea em sua
organização textual. A disposição dos enunciados que compõem as músicas é
bastante eclética, no sentido de sua organização interna não obedecer à sintaxe dita
normal. São palavras e enunciados superpostos uns aos outros com a sintaxe
quebrada, com o plano linguístico alterado e com a criação frequente de
neologismos. Embora os enunciados estejam dispostos de maneira aleatória7, eles
se permitem ser organizados em blocos compactos que formam redes de
significação que permitem formular conceitos sobre determinado objeto.
Entretanto, mesmo com essa disposição, esses objetos não são aleatórios,
pois essa suposta desorganização é justamente uma forma de procurar novos
efeitos de sentido através dos enunciados que compõem a música. Todos os
elementos possuem em sua configuração externa elos que os fazem constituir uma
formação discursiva. A disposição dos enunciados obedece à maneira subjetiva do
seu produtor com técnicas inovadoras em busca de novos efeitos de sentido. Essa
disposição remete sempre para o exterior, ou seja, havia nessas ideias Tropicalistas
uma preocupação com a realidade contemporânea relativa à própria história que
eles estavam vivendo, defendendo, interpretando e reconstruindo.
Sobre isso Foucault assinala:
Os enunciados podem estar ligados uns aos outros em um tipo de discurso; tentamos estabelecer, assim, como os elementos recorrentes dos enunciados podem reaparecer se dissociar, se recompor, ganhar em extensão ou em determinação, for retomado no interior de novas estruturas lógicas, adquirir, em compensação, novos conteúdos semânticos, constituir entre si organizações parciais. Esses esquemas permitem descrever não as leis de construção interna dos conceitos, não sua gênese progressiva e individual no espírito de um homem, mas sua dispersão anônima através de textos, livros e obras; dispersão que caracteriza um tipo de discurso e que define, entre os conceitos, formas de dedução, de derivação, de coerência, e também de incompatibilidade, de entrecruzamento, de substituição, de exclusão, de alteração recíproca, de deslocamento etc. Tal análise refere-se, pois, em um nível de certa forma pré-conceitual, ao campo em que os conceitos
7 Esse termo aqui usado não pressupõe uma desorganização da linguagem musical do Tropicalismo
no sentido ser algo caótico; Essa suposta desorganização é a forma que os Tropicalistas encontraram de renovar a música em termos estéticos. Assim, as palavras não estão dispostas em sintagmas e paradigmas, mas são palavras que remetem a outros textos e outras formas de conhecimento e da arte para produzir o efeito desejado.
26
podem coexistir e às regras às quais esse campo está submetido. (FOUCAULT, 2008, p. 66).
As letras das músicas do Tropicalismo são elementos heterogêneos pelo fato
de uma mesma música retomar por intertextualidade ou por uma relação
interdiscursiva elementos de outras formações discursivas. A canção - manifesto do
Tropicalismo8, Tropicália, sincretiza, sozinha, os vários “brasis” da época e suas
várias identidades, principalmente, figuras populares e ilustres no meio social,
musical e artístico. Quando se vê o enunciado:
“Viva a bossa Sa, sa Viva a palhoça Ca, ça, ça, ça... (2x)”. (VELOSO, Caetano, 1968, faixa 1).
Observa-se nesse pequeno trecho de Tropicália, é uma espécie de estrebilho
que acompanha a música até o final, além dos efeitos sonoros de repetição das
sílabas finais, dois substantivos: um que representa a Bossa Nova de um lado como
sendo um movimento eminentemente urbano dos centros culturais do Rio de
Janeiro, fortemente influenciada pelo cool e jazz norte-americano que representa a
modernidade do país. Do outro lado o substantivo “palhoça” que representa o Brasil
rural, do atraso, tipo de habitação do norte e do nordeste brasileiro. No entanto, os
dois nomes merecem sucessivamente “viva”, mostrando um sincretismo fortíssimo
da canção tropicalista.
O discurso tropicalista tem uma caracaterística marcante que é a retomada de
outros discursos para “os elementos recorrentes dos enunciados poderem
reaparecer, se dissociar, se recompor, ganhar em extensão ou em determinação,
ser retomados no interior de novas estruturas lógicas, adquirir, em compensação,
novos conteúdos semânticos” (FOUCAULT, 2008, p. 66). Isso era uma forma bem
8 Quando se fala em canção - manifesto está se remetendo por meio da memória discursiva à poética
de Oswald de Andrade, na qual sempre era introduzida por uma espécie de carta ou discurso introdutório de um movimento assim como foi o Manifesto Antropofágico, o Manifesto Pau- Brasil, etc, Então dessa forma a música Tropicália é o discurso introdutório do Movimento Tropicalista. Celso Favaretto (2007, p. 63) diz que “Tropicália é a música inaugural; constitui a matriz estética do movimento”. Pressupõe um projeto de intervenção cultural e um modo de construção que são de ruptura. Em linguagem transparente, configura um painel histórico que resulta em metaforização do Brasil. Desenha uma situação contraditória, um contexto de desarticulação, presentificando as indefinições do país, em que indiferenciadamente convivem os traços mais arcaicos e os mais modernos.
27
peculiar do Tropicalismo juntar elementos, às vezes até opositivos, mas que na
formação discursiva por fatores diversos ganhavam novos contornos semânticos. A
ideia era justamente juntar nesta salada discursiva elementos de diversas esferas
discursivas e tentar reagrupá-los em uma mesma formação discursiva. Essa ideia de
sincretizar a cultura musical nas letras do Tropicalismo era uma tentativa de mostrar
o Brasil de norte a sul unidos uma identidade frente a outras nações.
Nesse sentido se fará uma análise do discurso Tropicalista, encarando as
letras das músicas como enunciados que apenas fazem sentido dentro de uma
formação discursiva específica. As formações discursivas do Tropicalismo serão
vistas com relação a uma nova identidade nordestina sincrética e reinvenção do
Nordeste. Entendo que cada forma de expressão dos enunciados se organiza em
formações que, embora dispersas reforçam sentidos de identidade e renovação da
música e da identidade nordestina.
1.2 Formação discursiva e descrição arqueológica dos enunciados
Todo enunciado está inserido em um determinado campo de utilização da
linguagem, ou seja, o discurso não é continuo nem cronologicamente organizado,
mas possui um núcleo comum ao qual se agregam todos os enunciados. Segundo
Foucault (2008, p. 36) “os enunciados diferentes em sua forma, dispersos no tempo,
formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto”.
Todo o saber do homem se constitui a partir dos discursos que o homem
registra ao longo de sua existência. Cada campo de atuação do homem é composto
por enunciados que pertencem a um dado objeto, ou seja, o objeto, que neste
sentido arqueológico, não existe a priori: o objeto nasce a partir do enunciado e sua
configuração dentro de uma determinada formação discursiva.
A formação discursiva permite que se descrevam os enunciados a ela
pertinentes. Ela é um conjunto de enunciados que forma um objeto que é passível
de análise observando sua constituição de sentidos. Essa constituição não obedece
a um sistema cronológico e contínuo de enunciados, mas sim enunciados
descontínuos, ou seja, é na descontinuidade que se analisam a constituição dos
objetos e das identidades do enunciado. Nessa perspectiva se entende que é na
28
dispersão que se encontram os sentidos dos enunciados, rejeitando-se, dessa
forma, qualquer tipo de saber acumulado e sedimentado pela filosofia clássica.
O objeto letras de músicas do Tropicalismo é um conjunto heterogêneo de
enunciados que se formam numa formação discursiva que aglomera vários tipos de
discurso. Nesses enunciados pode-se perceber que há uma renovação da
identidade nordestina e uma nova configuração de Nordeste. A formação discursiva
do Tropicalismo tem como elemento integrador as várias intertextualidades e
interdiscursividades que se fundam numa sincretude, ou seja, o Tropicalismo
organizou toda sua temática musical em torno de uma identidade sincrética para
mostrar várias manifestações culturais do Brasil de forma renovada e reinventada.
Várias tendências fazem parte da formação discursiva do Tropicalismo como
o Cinema Novo e suas inovações, a música erudita do maestro Rogério Duprat, o
teatro de Hélio Oiticica, a radicalidade da poesia de Oswald de Andrade, a poesia
concreta dos irmãos Campos, a música de Luiz Gonzaga e Jackson do pandeiro e o
rock dos Beatles.
Neste sentido a formação discursiva é:
melhor compreendida como um jogo de princípios reguladores que formam a base de discursos efetivos, mas que permanecem separados deles. Essa formulação sugere então que palavras, expressões e proposições adquirem seus significados a partir de determinadas formações discursivas nas quais são produzidas (os elementos linguísticos selecionados, como eles são combinados) e, assim o sentido se torna um efeito sobre um sujeito ativo, e não uma propriedade estável. (SARGENTINE & NAVARRO-BARBOSA, 2004, p. 54).
A formação discursiva compreendida nestes termos é uma regularidade em
que os enunciados são aglutinados por dispersão. São enunciados pertencentes a
outros discursos e domínios discursivos que se entrelaçam numa mesma regra,
formação de uma identidade através de um dado de sentido. Como se pode
observar os elementos dispersos só adquirem um sentido efetivo quando estão
dentro de uma mesma formação discursiva, ou seja, um conjunto de elementos que
compartilham limites de sentido. No caso Tropicalista o Cinema Novo traz as noções
de movimentos não lineares das imagens e postas no discurso do Tropicalismo, as
retomadas de elementos de outras formações cinematográficas do cinema italiano e
a constante atualização dos elementos temporais. Nas letras e no áudio de músicas
29
há marcas evidentes do visual e do movimento corporal. A formação discursiva
sugere a seleção de certos enunciados e a exclusão de outros que não façam parte
da constituição de sentidos dentro do campo de atuação dos enunciados.
A formação discursiva dentro do contexto Tropicalista é um aglomerado de
enunciados que são remetidos a vários discursos do contexto social da época como
elementos da cultura pop, do rock americano, da literatura poética concretista, da
cultura hippie, dentre outros. É como se as letras do Tropicalismo juntassem
elementos consonantes e ao mesmo tempo díspares para criar novos efeitos de
sentido. Nessa perspectiva de sincretizar vários elementos, os Tropicalistas
buscaram unir o norte e sul do país em suas canções, fazendo surgir uma unidade
de sentido que fazia emergir uma nova identidade para o nordestino dentro e fora de
sua terra e ao mesmo tempo mostrava o Nordeste com outro olhar. A dizibilidade de
um Nordeste que se urbanizava, balançava as estruturas hierárquicas do
coronelismo, desestruturava as antigas bases familiares como o patriarcalismo que
“parece obedecer a duas injunções contraditórias: trabalhar sobre sistemas e, no
mesmo processo, desfazer toda unidade ou trabalhar sobre as regularidades da
dispersão.” (SARGENTINE & NAVARRO-BARBOSA, 2004, p. 55).
Nessa linha de raciocínio, a formação discursiva se assemelha aos gêneros
do discurso de Bakhtin (1998), ou seja, entidades relativamente estáveis que fazem
parte de um determinado conjunto de enunciados particulares dentro de um mesmo
gênero. Os gêneros do discurso não são materializáveis, não possuem um suporte
específico, mas dão origem a todos os outros gêneros. No entanto Foucault não se
preocupou com a noção de ideologia, tal qual os marxistas, nem mesmo em
diferenciar os diferentes gêneros e as esferas de onde eles emergiam, mas apenas
em dizer que os vários domínios da linguagem, seja ela ordinária ou não, podiam se
manifestar em blocos heterogêneos e dispersos, mas que comungavam com uma
unidade de sentido.
Nessa perspectiva, os enunciados são como se fossem gêneros textuais
materializáveis que se materializam em algum gênero de texto e a formação
discursiva como formações discursivas instáveis e imaterializáveis, mas que se
organizam, segundo princípios próprios em campo específicos do conhecimento
como a economia, a política, a publicidade, etc., assim como os gêneros do
discurso.
30
As formações discursivas do Tropicalismo serão analisadas como identidades
a partir de enunciados-letras de música que se aglomeram em conjuntos específicos
que buscam novos efeitos de sentido. A forma como essas formações discursivas se
organizam em torno do tema da identidade e renovação do discurso sobre o
Nordeste é emblemática no sentido de que cada uma delas se reporta a um discurso
especifico, assim como resgatam certos tipo de discurso para causar novos efeitos
de sentido, como é, por exemplo, o resgate da poesia oswaldiana e da bossa nova
de João Gilberto.
1.3 O arquivo
Para AD de linha francesa é muito importante à noção de arquivo. O arquivo
não se confunde com o conjunto de textos deixados pelos homens ao longo da
história vivida, não é o rastro deixado pelas gerações para que as gerações
posteriores possam estudar.
Para Foucault o arquivo não é:
a soma de todos os textos que uma cultura guardou em seu poder, como documentos de seu próprio passado, ou como testemunho de sua identidade mantida; não entendo, tampouco, as instituições que, em determinada sociedade, permitem registrar e conservar os discursos de que se quer ter lembrança e manter a livre disposição. Trata-se antes, e ao contrário, do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não sejam simplesmente a sinalização, no nível das performances verbais, do que se pôde (sic) desenrolar na
ordem do espírito ou na ordem das coisas; mas que tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo. (FOUCAULT, 2008, p. 146).
Em Foucault a noção de arquivo não é a materialidade deixada pelos homens
e pelas instituições, mas as regras segundo as quais fizeram emergir esses
discursos sobre determinado objeto, ciência ou teoria. O arquivo surge, nesse
sentido, através de um jogo de performances verbais que atuam regidas por
determinadas leis ou ordens do discurso que apareceram segundo relações
manifestadas no nível do discurso.
31
Então, segundo Foucault:
O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas. (FOUCAULT, 2008, p. 146).
Para a noção de arquivo é imperativo a dispersão, porque o arquivo não é
algo que é dito e se sedimenta em forma de algum tipo de documento. Ele é
formado por enunciados que surgem a partir de regras específicas, por isso não
permanecendo inerte e parado no tempo. A noção de arquivo explica o porquê de
certos enunciados aparecerem de forma singular como um acontecimento e por que
outros são ocultados. Essa noção de acontecimento e singularidade é que torna o
arquivo como um monumento a ser estudado em qualquer época, já que ele não se
confunde com um documento, ele é percebido através de sua dispersão,
aparecimento e ocultamento, como um acontecimento singular.
O arquivo não se acumula como uma massa amorfa e empoeirada pelo
tempo; ele surge a partir de relações estabelecidas segundo ordens estabelecidas
pela sociedade. Não permanece igual, mas como algo passível de desvelamento de
seus não ditos, já que o sentido escapa às formas e às formações discursivas e, é
regido segundo regularidades específicas.
Para Sargentini & Navarro-Barbosa, o conjunto de regras que definem o
aparecimento de um enunciado num arquivo é a priori histórico [itálico do original]
que é desenvolvido graças à positividade, um campo que estabelece as identidades
e formas de continuidades temáticas e jogos de conceitos polêmicos. Para ela a
priori histórico são “as condições de emergência dos enunciados, a lei de sua
coexistência com outros, a forma específica de seu modo de ser, os princípios
segundo os quais subsistem, se transformam e desaparecem. O que chamo de a
priori histórico é o conjunto das regras que caracterizam uma prática discursiva.”
(SARGENTINE & NAVARRO-BARBOSA, 2004, p. 40). Para os autores o a priori
histórico é um conjunto de regras específicas que fazem surgir os enunciados no
arquivo, ou seja, seu aparecimento e desaparecimento, graças a princípios que
32
regulam sua coexistência com outros enunciados caracterizados pela prática
discursiva.
O conceito de arquivo para AD é o termo que pode unir todos os outros
conceitos de enunciado, conjunto de enunciados, formações discursivas, discurso,
prática discursiva criando uma hierarquia que regula os espaços discursivos e as
práticas discursivas dentro de um discurso na história.
Para Foucault:
O domínio dos enunciados assim articulado por a priori históricos, assim caracterizado por diferentes tipos de positividade e escandido por formações discursivas distintas [...] é um volume complexo em que se diferenciam regiões heterogêneas e em que se desenrolam, segundo regras específicas, práticas que não se podem superpor. Ao invés de vermos alinharem-se, no grande livro mítico da história, palavras que traduzem, em caracteres visíveis, pensamentos constituídos antes e em outro lugar, ternos nas práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização). São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que proponho chamar de arquivo. [...]. Trata-se do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, ha tantos milênios [...] tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo. (FOUCAULT, 2008, p. 147).
Dentro dessa perspectiva, o arquivo é constituído na história pelos a priori
históricos, ou seja, um conjunto de regularidades específicas que determinam cada
campo do saber constituído. Os saberes no arquivo são constituídos pela
positividade da época e pelos jogos de memória e identidade que caracterizam cada
formação discursiva com seu objeto. Nessa linha de raciocínio, o arquivo se constitui
nas relações de saber e poder que aparecem e desaparecem graças às relações da
utilização dos discursos por homens de cada época, não como fonte e origem do
saber e poder, mas como autores sociais que falam a partir de uma da formação
discursiva.
O arquivo, para este trabalho serão algumas músicas do movimento
Tropicalista, no período de 1967 ao final de 1968, e outras de períodos posteriores,
mas que tem a ver com a temática aqui defendida como “Sampa” “Baião atemporal”
e “De onde é que vem o baião”. Do total serão analisadas seis músicas: três de
Caetano Veloso, executados por ele mesmo e, três de Gilberto Gil, sendo uma
33
delas, “De onde é que vem o baião” é interpretada por Gal Costa. Há ainda outras
músicas que serão submetidas a paralelos e comparações com as músicas
tropicalistas como “Triste Partida” de Patativa do Assaré e cantada por Luiz
Gonzaga, “Baião” de Luiz Gonzaga, dentre outras que serão citadas nas categorias
de análise.
Essas músicas serão tratadas como enunciados que foram produzidos por
autores sociais da época supracitada e que se caracterizaram como parte de um
movimento em busca de renovação e experimentação no campo das artes e que,
apesar das atitudes de rebeldia relativas às identidades, pode-se inferir, a partir do
discurso e da formação discursiva, que hoje os saberes produzidos não são
aleatórios e ao devir dos falantes, mas se caracterizam por um jogo de identidades
constituídas pelo discurso nas relações de saber e poder.
Nesse arquivo musical serão selecionadas algumas músicas que
caracterizaram o movimento com relação à renovação do discurso sobre o Nordeste
e sobre a identidade nordestina, bem como o envolvimento social deste movimento
com relações ideológicas que o fomentaram.
1.4 A descrição arqueológica dos enunciados e as categorias de
análise
Para análise arqueológica do Tropicalismo selecionamos as músicas que
passaremos agora a explicitar o seu como e o porquê.
Será tomada como ponto inicial para análise do Tropicalismo com relação à
renovação do discurso sobre o Nordeste e sobre a identidade nordestina através do
sincretismo cultural a música Tropicália. Nessa música os Tropicalistas sincretizam
de forma brilhante o seu projeto tropical: mostrar que as produções culturais
refletidas na música do Brasil se organizam em blocos heterogêneos de formações
discursivas que integram todas as partes do país. A análise vai mostrar que não há
nenhuma manifestação cultural superior uma a outra, mas que todos produzem
cultura a partir de dados de sua realidade simbólica e em consonância com outros
elementos de fora para caracterizar sua identidade. Nessas músicas se juntam
semanticamente os vários brasis em sua produção musical, mostrando que o
Nordeste tropical não é aquele do atraso, da fome, da miséria e de gente rude,
34
ignorante e atrasada, mas um Nordeste realimentado pela urbanidade e pela
industrialização com requintes da cultura estrangeira, mostrando que as identidades
não se constituem pela cor nacional como queriam os romancistas da década de
19309, mas justamente pela junção de elementos de outras culturas que influenciam
diretamente na forma de falar, vestir, comportar-se e de produzir música.
A outra música será Procissão de Gilberto Gil. Nela destacaremos a
religiosidade nordestina da qual o compositor irá destacar como sendo Deus quem
manda, protege e dá coisas ao povo, ao lado da versão dos Tropicalistas de que
quem vive no Nordeste tem que fazer um jeitinho para viver, ou seja, deve procurar
maneiras de cultuar a Deus e buscar melhoras para si, tirando um pouco dessa
visão teológica da vida no Nordeste. Há na música inclusive o enunciado que diz
que não se deve esperar a morte para viver melhor, que aqui na Terra temos que
arrumar um jeito de viver melhor, explicitando que a visão católica de paraíso é
equivocada e que serve apenas para alimentar aqueles que almejam se manter no
poder: “Eu também tô do lado de Jesus/ só que acho que ele se esqueceu/ de dizer
que na terra a gente tem/ de arranjar um jeitinho pra viver” (GIL, Gilberto, 1967, faixa
10). Nessa música Gil mostra que esse “jeitinho de viver” é uma nova maneira de
mostrar um Nordeste não livre de suas tradições religiosas, mas sincretizando
religiosidade e revolução social de cunho mais urbano e cosmopolita para
desintegrar esse tema como sendo determinante da vida do nordestino, ao mesmo
tempo em que mostra um nordestino não como vítima do destino e sim como
controlador de sua vida e sem esquecer suas tradições religiosas.
Em Baião atemporal e No dia em vim-me embora há uma referência explícita
à noção daquela saída do nordestino de seu torrão natal que é bem caracterizada na
música Triste partida de Patativa do Assaré, na qual há uma dose exageradíssima
de saudosismo ao sair de sua terra. Na versão Tropicalista essas coisas não têm
9 Albuquerque Junior em Invenção do Nordeste e outras artes afirma que o regionalismo foi mais que
um conceito ideológico para categorizar o Nordeste como espaço da fome, da miséria e, por conseguinte, da saudade. Houve uma sedimentação imagético-discursiva dos discursos e dizibilidades sobre a região Nordeste em muitos romances regionais como são os casos mais significantes como Vidas Secas de Graciliano Ramos, O Quinze de Rachel de Queiroz, dentre outros. O importante a se destacar nessas obras é que além de uma resposta aos movimentos sulistas de modernidade, e das discussões retóricas em torno da identidade nacional e regional, elas representaram a sedimentação de uma identidade para a região Nordeste tal qual mostravam seus personagens mais representativos e suas obras. Hoje essa é uma ideia ainda tão bem concebida que mesmo com toda produção cultural do Nordeste em termos de modernidade, é assim que ainda somos vistos: como Fabianos e Sinhás famintos, magros e secos de sede, sem instrução, estando esses personagens mais próximos de animais que seres humanos.
35
mais razão de existir, nem mesmo os paus-de-arara, porque tudo muda e se
transforma de uma época para outra sem necessidade de ficar batendo em um
sentido que já se esvaiu, o lamento da saída de sua terra. Tudo se transforma com o
tempo, mas mantendo intacta a sua consciência, mas com uma nova roupagem que
pode estar ou não de acordo com a globalização do mundo.
Outras músicas que serão exploradas com a ideia de renovação do discurso
sobre o Nordeste e os nordestinos são De onde é que vem o baião, de autoria de
Gilberto Gil e cantada por Gal Costa. Alegria, alegria e Sampa, esta apenas como
elemento de comparação. Ambas compostas e cantadas por Caetano Veloso.
As músicas citadas acima constituem o arquivo de análise. Os elementos a
seguir são as categorias de análise que serão exploradas neste trabalho.
CATEGORIAS DE ANÁLISE
A formação discursiva: será descrita a formação discursiva de cada autor e
como se deu a construção das músicas, levando-se em conta a positividade
de cada época, bem como o tipo de arquivo selecionado por cada compositor
dentro da memória discursiva. Nessa perspectiva, serão analisados os
aspectos sociais e ideológicos que os levaram a pensar na hora de compor
suas canções e nelas detectaremos a presença da renovação do Nordeste
através da música. A formação discursiva é a formação de cada autor,
levando-se em conta os processos sociais e psicossociais que influenciaram
na constituição do movimento tropicalista.
A intertextualidade e a interdiscursividade: serão dois elementos
imprescindíveis, pois é através deles que se pode ver a presença de um texto
no outro, a retomada de um texto através de outro, assim como a retomada
de discursos através da memória discursiva que compõe o arquivo de cada
autor e época. Através da formação discursiva será descrita também a
interdiscursividade, que é o intercruzamento dos vários discursos que cruzam
as formações discursivas para poder se fazer comparações entre as
composições tropicalistas e de outros artistas ligados ao mesmo tema. A
intertextualidade é uma renovação dos discursos através das retomadas de
texto, as quais podem ser atribuídas têm muitos sentidos, já que podem ser
36
recriadas em forma de deboche, paródia, pastiche, etc. Importante que a
retomada ao mesmo tempo em que renova o discurso, também o faz de
acordo com as predisposições da formação discursiva de cada autor. São
esses processos, a intertextualidade e a interdiscursividade, o impulso criador
que renova a linguagem e o discurso com o passar dos tempos.
A ditadura militar: será uma categoria analisada levando em conta os
deslizamentos de sentido, os ocultamentos, as ironias, metáforas e muitas
outras formas de pensar que os Tropicalistas usavam para fugir da censura.
Nesta também explicitaremos a ideologia dominante representada pelos
militares e a ideologia das classes universitárias pensantes que idealizavam
um Brasil renovado sem a intervenção da base patriarcal, arcaica que
tentavam dar ao Brasil a cara de um país atrasado culturalmente. O golpe
militar representou um atentado terrorista à cultura do país. Seus censores
proibiam qualquer tipo de manifestação em prol da democracia. Para fugir da
censura os Tropicalistas e outros artistas da época precisavam trabalhar bem
a linguagem. O processo de criação era uma verdadeira obra de arte e
verdadeiros labirintos para os que buscavam nas músicas algo que tentasse
falar mal da ditadura militar. Foi um elemento muito importante para o impulso
criativo dos Tropicalistas. Para fundamentação desse item utilizaremos os
textos do escritor Elio Gaspari.
A antropofagia cultural: nas músicas iremos mostrar a presença da
modernização do Brasil e, consequentemente, do Nordeste nas músicas dos
Tropicalistas, com a incorporação de elementos estrangeiros e
contemporâneos à época em que o movimento aconteceu. Uma das formas
de incorporação será a antropofagia oswaldiana, segundo a qual se deglutia a
cultura estrangeira conjugada com a cultura nacional, em oposição àqueles
que pensavam o Brasil apenas sob a forma de protestos e com elementos
musicais característicos do Brasil, rejeitando-se as inovações do mundo
moderno e do mundo exterior. A antropofagia previa a junção das culturas
sem preconceito, ao mesmo tempo em que promovia o renascimento do país.
O Tropicalismo também representou o nascimento do Brasil para as artes
contemporâneas, mostrando nossa cultura através de procedimentos
37
antropofágicos, em que não se separavam os elementos de nossa cultura e
de outras culturas, mas sim os reunia em um único bloco heterogêneo
renovado e moderno.
Renovação pela carnavalização: a carnavalização dilui o discurso oficial
traduzindo-o em formas cotidianas, mostrando suas fraquezas e ao expor a
cultura oficial, a carnavalização tem o poder de dessacralizá-la e desmitificá-la
para depois renová-la. Essa foi uma das formas mais marcantes do
Tropicalismo: mostrar o carnaval da cultura brasileira, dessacralizando a arte
e a cultura para um mundo moderno e sincrético. Sua postura mostrava a
face de um país rural e em vias de desenvolvimento que resistia aos
elementos da pós-modernidade. O Tropicalismo representou a renovação da
cultura e da sociedade através da carnavalização.
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2. ANÁLISE DO DISCURSO: um campo de múltiplas facetas
Durante o século XX, surgiram muitas teorias para explicar o fenômeno
linguístico e seus desdobramentos e suas aplicações no campo das ciências sociais
e humanas. Essas teorias pretendiam separar o estudo da linguagem do âmbito da
filosofia, da matemática e da lógica, dando ao estudo da linguagem um objeto de
estudo definido.
A primeira das grandes teorias linguísticas que deu ao estudo da linguagem
um status científico e com objeto de estudo definido foram os estudos do suíço
Ferdinand de Saussure. Para Saussure a língua devia ser estudada sob a forma de
dicotomias, ou seja, cada parte deveria ter duas partes indissociáveis. Assim foi que
com a publicação póstuma do Curso de linguística Geral, doravante CLG,
apareceram os termos diacronia/sincronia, langue/parole, sintagma/paradigma,
significante/significado, mutabilidade/imutabilidade. Pela primeira vez aparece,
também, a noção de signo linguístico com uma definição de cunho científico
baseado no conceito de arbitrariedade10 e aplicado à descrição do sistema
linguístico. No CLG a língua é um sistema abstrato de signos linguísticos, ou seja,
para Saussure importava o estudo da língua enquanto sistema de signos, o que
ocasionou a primeira delimitação de estudos da linguagem.
Neste ínterim do sistema, Saussure, ao delimitar a língua como objeto da
linguística, exclui o sujeito, a história e a política, sob a alegação de que esses
elementos não eram essenciais ao sistema, visto que eram exteriores ao sistema
linguístico e não intervinham no estudo sistemático deste. A língua era
autossuficiente, não necessitando de nada que fosse externo. De fato, a maioria das
teorias linguísticas surgidas depois do CLG ou retomavam os postulados
saussurianos ou o refutavam. A principal justificativa das grandes teorias linguísticas
surgidas depois de Saussure para retomar/refutar sua metateoria é que o mestre
genebrino ignorou, grosso modo, a fala, a cultura e a sociedade. Baseadas nisso, as
grandes teorias se engajaram em por no centro das discussões linguísticas esses
componentes que Saussure não havia colocado.
10
A arbitrariedade não é algo novo no campo da linguagem. Entre os gregos já havia grande discussão sobre a natureza e a origem da linguagem. No entanto essa noção convenção aparece pela primeira vez no livro O Crátilo do filósofo grego Platão, no qual aparece a linguagem como natural, convencional e por último, a posição de Platão, de que a linguagem comporta elementos que lhe são naturais e, ao mesmo tempo, convencionais.
39
No estudo da fala surge a teoria dos Atos de fala e a Análise da Conversação.
A Etnografia reconhecia a cultura e a língua como elementos imprescindíveis na
análise linguística; A Sociolinguística trabalha com a noção de que língua e
sociedade são elementos indissociáveis e, portanto, não podendo um existir sem o
outro, etc.
Todas as teorias pós-saussurianas, embora incluam em sua análise um
componente extra como a sociedade e a cultura, todas trabalham com a noção de
língua e fala. A língua como sistema regulador11 das atividades de linguagem e a
fala como manifestação individual da língua na sociedade. Ambos essenciais e
indissociáveis na produção dos saberes e dizeres.
Surge no meio dessas teorias supracitadas uma disciplina chamada de
Análise do Discurso que, embora considere e reelabore a noção de fala postulada
por Saussure, assume um caráter múltiplo, já que não leva em conta apenas a fala,
mas também, o social e o linguístico e em sua última fase a Psicanálise. O termo
central da análise agora se chama discurso, que não é nem língua e nem fala, mas o
discurso como elemento constitutivo proferido por um sujeito socialmente
representado pela linguagem e atravessado por outros vários discursos sociais.
Ao lado do social e do linguístico surgem outros termos da epistéme
discursiva como a noção de sujeito, a formação discursiva, a psicanálise fruto do
inconsciente freudiano, a ideologia, a heterogeneidade discursiva, a memória
discursiva e o interdiscurso.
A AD pretende ser uma disciplina ampla e multidisciplinar onde os vários
discursos são estudados de forma interdiscursiva, mostrando que a sociedade,
assim como o sujeito são construções representadas pela linguagem em forma de
discursos que são produzidos socialmente. Essas noções fazem de alguma forma, a
AD ser uma disciplina dispersa e sem objeto de estudo delimitado, dado a
diversidade de procedimentos e conceitos que manipula no trabalho com a
linguagem e o simbólico.
A AD surge como centro das preocupações com o estudo científico da
linguagem a partir dos formalistas russos que, tentando superar as análises que se
11
Na verdade preferimos o termo regularidade por ser mais abrangente e plausível para dizer que o sistema linguístico nunca foi abandonado, porém não foi também prioridade e ferramenta única de análise linguística. É preciso não esquecer que o sistema linguístico de uma língua é o responsável por manter a identidade dessa língua e não retardar os processos de dialetização e inclusive, novos estados federados e separações dentro de um mesmo país.
40
pautavam somente sobre a estrutura da frase tal qual a linguística inaugurada por
Saussure, operavam sobre o texto, buscando neles encadeamentos transfrásticos
que superassem abordagens de cunho impressionística e filológica, mas ainda se
pautando ao estudo interno do texto e não indo ao encontro da exterioridade do
mesmo, ou seja, partindo para uma análise mais social, do sujeito falante e das
formações linguageiras.
Embora haja uma ruptura dos formalistas russos quanto ao estudo da
linguagem em relação ao estruturalismo que basicamente estendia suas análises à
frase, eles não ultrapassam os limites do texto, se preocupando com os elementos
que interligam as partes internas do texto e, embora seus trabalhos sejam muito
importantes, não se pode falar em uma análise do discurso tal qual será concebida
posteriormente. Estes só se detiveram ao estudo interno, sua forma de encarar o
fenômeno literário deu margem aos primeiros analistas que investigando os
processos exteriores ao texto puderam perceber que tudo estava em forma de
discursos, e que a sociedade como um todo era constituída de discursos, fato este
que levou esses analistas a acreditarem numa forma de estudo que ultrapassasse a
frase e o texto, chamando agora tudo de discurso.
A palavra discurso aparece pela primeira vez na década de 1950 em um
trabalho de Harris (Discourse analysis, 1952) de um lado ligado à corrente
americana dos estudos sobre a distribuição dos constituintes imediatos da frase e
tem cunho imanente, já que se limitava ao estudo da estrutura interior do texto, sua
constituição interna e uma preocupação com o sistema linguístico. E embora muito
frutífero seu trabalho sobre os constituintes imediatos da frase e do texto, ele se
prende muito ao sistema linguístico, operando com variantes internas ao texto. De
outro lado a AD de linha francesa que não descarta o estudo do texto, mas amplia
este estudo colocando também como preocupação os fatores exteriores ao texto
que devem ser levados em conta na hora da análise linguística. Esses fatores levam
em conta tanto o social como o linguístico na análise de textos, bem como seu
produtor e as condições de produção dos enunciados.
Como assinala Brandão (2004, p. 16) a AD “Inscreve-se em um quadro que
articula o linguístico e o social, a AD vê seu campo estender-se para outras áreas do
conhecimento e assiste a uma verdadeira proliferação dos usos da expressão
‘análise do discurso’”, ou seja, a AD tenta unir em seu esboço teórico o linguístico
41
em termos saussurianos e o social, isto é, incluir em sua análise as construções
sociais que usam a linguagem no seu dia a dia.
O termo discurso sugere não só um sistema linguístico regido por regras que
lhe são próprias, mas por um conjunto complexo e multifacetado de elementos de
outras disciplinas como a sociologia, a história, o direito, a medicina, a psicanálise,
dentre outros. A ideia central é conjugar os elementos linguísticos do sistema
defendido por Saussure com a teoria social do discurso, ou seja, investigar como os
discursos produzidos por meio da língua na sociedade influenciam na constituição
da própria sociedade, do sujeito e da própria evolução da língua.
2.1 O Sujeito e a história
O sujeito é uma das preocupações centrais da AD. Pensar em sujeito para AD
é rever um quadro bem amplo de teorias que refutando postulações da linguística
imanente bem ao gosto dos estruturalistas, principalmente nos trabalhos de
Ferdinand de Saussure, introduziram nas análises linguísticas o sujeito produtor do
discurso, que é ao mesmo tempo produtor e constituído pelo discurso. Ao refletir
sobre o sujeito se põe em xeque a questão da língua; não a língua da epistéme
clássica de representação da realidade e de estados de coisas como na metáfora do
espelho de Wittgenstein, mas numa visão demonstrativa da língua. A língua como
representação da realidade existe por si só e determina os estados de coisas do
mundo, inclusive o sujeito.
Não é que nas reflexões sobre a língua numa epistéme moderna descarte-se
o valor da língua, mas de certa forma abandona-se a ideia da língua como sistema
abstrato de signos linguísticos, no qual se estabelecem relações lógico-semânticas
dentro desse mesmo sistema e, se abre para uma visão mais demonstrativa da
língua, na qual emerge a função do sujeito produtor de discurso, ou seja, há certa
relação entre a língua, o homem e a sociedade; a língua é o meio de interação entre
esses elementos.
Um dos precursores da noção de sujeito rumo a uma análise para o exterior
linguístico, nesse percurso do sujeito caminhando para firmar o terreno da AD, foi o
francês Èmile Benveniste. A partir de seu trabalho aparece o sujeito da língua.
Segundo esse teórico havia na língua elementos gramaticais que apontavam para
42
um sujeito. Nasce a partir dessas ideias o sujeito individual através dos atos de
enunciação.
No interior da língua Èmile Benveniste se preocupou em demonstrar que
através dos atos individuais de apropriação da língua, o enunciado, surgia o sujeito
na marcação do EU e do TU. Ao enunciar o sujeito se faz sujeito da língua dirigindo-
se de um EGO para um TU. Nessa relação biunívoca demonstrada por Benveniste,
embora ainda na língua, aparece de alguma forma o sujeito. É uma relação
contraditória, já que o autor explora as possibilidades de existência do sujeito a partir
do ato de enunciação. Para ele só existia sujeito a partir do momento em que este
se apropriava da língua e enunciava de uma dada posição, fazendo-se um TU ou
um EU.
Para Benveniste:
O ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala sua fala. Este é um dado constitutivo da enunciação. A presença do locutor em sua enunciação faz com que cada instância de discurso constitua um centro de referência interno. Esta situação vai se manifestar por um jogo de formas específicas cuja função é de colocar o locutor em relação constante e necessária com sua enunciação. (BENVENISTE, 1989, p. 84).
Em Aparelho formal da enunciação Benveniste acentua que para haver
enunciação é preciso colocar como centro aquele que produz a enunciação, ou seja,
o próprio sujeito e o outro num princípio de alteridade. Essa emergência de por o
sujeito no centro das discussões sobre linguagem e, especificamente, a fala, é a
constituição da própria enunciação que sem o referente produtor não seria ela
mesma. É uma situação que põe em jogo as instâncias discursivas que remetem ao
próprio sujeito, sem o qual não teríamos nem referentes, nem enunciação.
O mérito de Benveniste é o de colocar o sujeito no centro das relações
discursivas como dono de seu ato de fala, seja ele determinado ou não pelo outro ou
pela situação de comunicação, o que era uma necessidade urgente para abrir novos
horizontes nas discussões a respeito da linguagem. Para ele (Benveniste) as formas
assumidas pelos pronomes pessoais de primeira e segunda pessoa são o indício da
presença do sujeito na linguagem, pois toda vez que ele se enuncia instaura o status
de sujeito, bem como as marcas de tempo e espaço marcadas pelos modalizadores,
os quais instauram a presença latente espaço-temporal do sujeito na linguagem.
43
mas cada um sabe que, para o mesmo sujeito, os mesmos sons não
são jamais produzidos exatamente, e que a noção de identidade não
é senão aproximativa mesmo quando a experiência é repetida em
detalhe. Estas diferenças dizem respeito à diversidade das situações
nas quais a enunciação é produzida. (BENVENISTE, 1958, p. 82-83).
Dentro da enunciação o sujeito se apropria da linguagem fazendo dela sua
identidade discursiva. Nela os enunciados são únicos e irrepetíveis, pois nem os
sons nem qualquer outra espécie de manifestação se realizam da mesma forma,
visto que nesse sentido o discurso é dinâmico e permite ao manipulador dele uma
infinidade de realizações e experiências que não se assemelham umas com as
outras. Nesse sentido há uma manifestação individual do sujeito enunciativo
decorrente das diversas situações enunciativas.
Na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo. A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibilidade de co-referir identicamente, no consenso pragmático que faz de cada locutor um co-locutor. (BENVENISTE, 1958, p. 84).
Em Benveniste temos a noção de sujeito linguístico, aquele que está
marcado na própria língua através de traços de subjetividade evidenciados por
formas gramaticais como os pronomes pessoais, certos advérbios e locuções
adverbiais, as marcas de tempo e espaço. Estas formas não especificam uma
gramática em si, mas a subjetividade daquele que produz enunciados utilizando os
mesmos para se situar no mundo e referir-se a ele. O fato de o locutor dizer, por
exemplo, “Nossa, como está quente hoje!”, não é simplesmente a constatação de
uma ideia de que esteja realmente fazendo calor, mas um ponto de instauração de
um discurso que diz algo que está quente, e que alguém utilizando a língua disse
que estava quente, e mais ainda, quando disse se dirigiu a alguém, ou para manter
um contato, realizando um ritual, ou mesmo tentando falar de outras coisas, onde o
tempo e o lugar são sempre o ponto de partida. Nesse sentido há um contrato
pragmático no qual o locutor é também um co-locutor, pois sua manifestação
discursiva inaugura, no momento da fala, o EU e o TU, criando sua identidade, ao
mesmo tempo em que se identifica com o processo enunciativo.
44
Para Benveniste, a enunciação nada mais é de que a possibilidade da
língua, isto é, que a língua em si (sistema) só atinge àquilo que é possível no plano
linguístico/gramatical, as noções do uso do sistema abre uma série de possibilidades
que esse não possibilita em termos de discurso, sujeito e situação de comunicação.
Como se pode perceber há em Benveniste uma supremacia do eu sobre o
tu, não havendo possibilidade de negociação dos saberes. O fato de haverem
apenas o eu e o tu, dá a ideia de um discurso homogêneo, sem conflitos e com
sujeitos bem comportados. Além disso, fica fora de todo esse jogo enunciativo a
questão da histórica e ideológica que é constitutiva do sujeito no discurso. Para o
referido autor as marcas do sujeito estão na língua a partir do momento que ele se
apropria da língua e enuncia. Nesse ponto não se fala dos esquecimentos, de
memória e consciência e inconsciência, pois o sujeito é uma possibilidade da língua.
O sujeito do discurso não está nem na língua nem mesmo em categorias
gramaticais específicas. Ele se encontra na linguagem enquanto relação de
discursos e formações discursivas específicas, se configurando como o produto das
relações linguageiras, atravessado por outros discursos, interpelado pela ideologia
e, dessa forma, assumindo a forma de sua incompletude.
Na segunda metade do século XX, muitos filósofos e estudiosos da
linguagem mostraram que o sujeito é constituído de linguagem e pela linguagem e,
segundo essa perspectiva não há, de forma absoluta, a presença do indivíduo
enquanto pessoa física, mas um sujeito marcado pela linguagem e pela ideologia.
Segundo Garcia:
somos vítimas de uma traiçoeira ilusão egocêntrica quando acreditamos ser donos de nossos discursos e quando consideramos a linguagem como simples instrumento que se encontra nossa disposição para ser manipulado à nossa vontade. Na verdade, é a própria linguagem que manda em nós, causando, modelando, constrangendo e provocando nosso discurso, a tal ponto que bem se poderia dizer que é a linguagem que fala através de nós. (GARCIA, 2004, p. 36).
Segundo Garcia (2004), há uma supremacia da linguagem sobre o sujeito.
Segundo ele a linguagem fala da linguagem, ou seja, a linguagem é quem manda no
sujeito. Acreditar que se fala conscientemente a linguagem é uma ilusão, já que a
linguagem fala por si só e o sujeito como mero portador de um dispositivo de
45
linguagem. Pode-se, assim, falar de uma morte do sujeito, já que ele não é dono de
seu dizer, mas um mero artefato produto da linguagem.
Segundo Orlandi (2007) o sujeito não é a sua forma empírica que coincide
com o status de pessoa, mas algo constituído de linguagem e como a linguagem é
incompleta e não transparente, sendo, portanto, uma forma em constantes
deslocamentos de construção e reconstrução e construção de sentidos.
Foucault (1979) decreta a morte do sujeito quando diz que com a morte da
filosofia consciente, morre também o sujeito que fica reduzido a efeito de linguagem.
Em seu livro A ordem do discurso o pensador francês assegura que o grande poder
emanado pela linguagem prende o sujeito em suas redes, reduzindo-o a uma malha
do discurso, uma peça discursiva de um enorme quebra-cabeça que é a linguagem
(GARCIA, 2004).
Nesse sentido o sujeito apresenta em sua formação discursiva uma relação
com a língua e a história. A história em AD é aquela que se inscreve na língua e esta
como portadora de sentidos não constituídos a priori, mas sim, nas relações que se
estabelecem no discurso da história. Pensando dessa forma, temos, então, o sujeito
não como dono de seu dizer, mas como algo a ser dito pelas relações e posições
assumidas nas diversas atividades de linguagem na sociedade.
Nessa trajetória é que a história, assim como o sujeito e a linguagem não são
transparentes, mas o espaço vazio para o agendamento de novos saberes que
foram esquecidos e que fazem sentido justamente por retomar aquilo que não foi
dito.12
Essa relação do sujeito com a história é o que Foucault vai chamar de sujeito
assujeitado. Esse termo não implica numa total relativização do sujeito à história e à
ideologia. Ele tem seu papel quando assume uma posição social nas relações de
poder e conhece, por assim dizer, as relações sociais que nela está engajada,
embora isso gere um conflito com a ideologia marxista de que o mascaramento da
realidade cegue os sujeitos sociais.
Na perspectiva da AD de linha francesa, os sujeitos, a história e a ideologia
são fundamentais já que analisam a sociedade a partir da exterioridade da língua,
observando que é na prática da linguagem que surgem os sentidos e suas
12
O não dito não se refere à originalidade, mas a novas formas de dizer o que já tinha sido dito e que de uma época para outra muda seu sentido devido aos lugares históricos em que os enunciados podem aparecer.
46
produções através das relações de poder que foram renegados ao esquecimento
pelas teorias linguísticas de cunho estruturalista. Nesse quadro teórico o termo
sujeito e discurso são vistos como relação, entendendo a relação como uma prática
constitutiva do discurso e do sujeito.
Para Fairclough, Michel Pêcheux trabalhando com a noção de uma teoria
social do discurso com a teoria de análise do texto, analisando o discurso político
dos partidos comunista e socialista, percebe que o sujeito aparece a partir de suas
relações com o discurso social e as instituições. Essa posição de Pêcheux dita por
Fairclough (2001) é uma retomada da teoria marxista e da ideologia de Althusser
que enfatiza a relatividade da ideologia nas práticas sociais e, as contribuições
dessas teorias no campo econômico.
Segundo Pêcheux apud Fairclough (2001, p. 53):
os sujeitos sociais são constituídos em relação a FDs (Formação discursiva - grifo nosso) particulares e seus sentidos; essas FDs são, de acordo com Pêcheux, faces de ‘domínios de pensamento... sociohistoricamente constituídos na forma de pontos de estabilização que produzem o sujeito e simultaneamente junto com ele o que lhe é dado ver, compreender, fazer, temer e esperar’
Nessa perspectiva em que Fairclough analisa a teoria de Pêcheux, o sujeito é
constituído pelo discurso dentro de uma formação discursiva particular, que segundo
Pêcheux são pontos de estabilização que se constituem sociohistoricamente com a
sedimentação dos saberes sociais na formação discursiva. Dentro de uma formação
discursiva ocorrem formações de discursos que com o sujeito determinado pela
ideologia contribuem para constituí-lo enquanto uma materialidade discursiva.
Uma posição importante em Pêcheux segundo as formações discursivas é
que elas são afetadas pelo seu exterior, contribuindo, dessa forma, para a
constituição do sujeito. Nessa concepção as formações discursivas mantêm
relações com outras formações discursivas através da interdiscursividade, algo que
é afetado pela ideologia conforme Althusser. Essa determinação exterior às
formações discursivas afetam o sujeito sem que ele tenha consciência disso,
fazendo com que os sujeitos criem a ilusão de que são fontes de sentido, quando na
verdade eles são efeitos de sentido (FAIRCLOUGH, 2001). Segundo essa tendência
são as relações exteriores à formação discursiva que determinam o lugar social dos
47
sujeitos e imprimem neles o que pode e o que não pode ser dito em uma dada
formação discursiva.
No entanto, pode ser que aconteça que o sujeito não se identifique com uma
dada formação discursiva por não ser compatível com aquilo em que o sujeito
pretensamente acredita13 e surge. Dessa forma, surgem outras práticas discursivas
diferentes da formação discursiva original14. Nesse ponto surge o que se
convencionou chamar de identidade discursiva, ou identidade da formação
discursiva, na qual o conjunto de enunciados que a formam convergem para a
formação de um mesmo objeto e efeitos de sentido.
A história, nesse sentido não aparece como aquela que tradicionalmente
contínua, mostra os grandes feitos a partir de discursos bem constituídos como o
das identidades nacionais. Segundo Foucault (2008), a história se caracteriza por
sua descontinuidade, vista a partir dos objetos constituídos pela linguagem, as
reações de poder atravessados pela ideologia e o sujeito como deslocado, disperso,
um dado de linguagem.
A noção de sujeito em Foucault difere daquele sujeito cartesiano dono do seu
saber e consciente de suas ações. O sujeito deixa de ser um artefato mecânico e
autônomo no sentido de conhecer sua função na representação do mundo e passa a
se constituir pela linguagem e pelas relações de poder, ou seja, um sujeito
descentrado e disperso. À noção de descentramento e de dispersão operada por
Foucault, se entende que o sujeito é um efeito de linguagem e constitutivo, ou seja,
não é completo e está sempre em constituição pelo fato de assumir sua
subjetividade a partir de lugares sociais diferentes. Nessa concepção o sujeito só se
completa na linguagem e pelas posições sociais que ele assume enquanto um ser
constituído de discurso. Nesse sentido o discurso se configura como o espaço da
constituição do sujeito nas diversas relações que se estabelecem na sociedade.
Segundo Foucault:
as diversas modalidades de enunciação, em lugar de remeterem à síntese ou à função unificante de um sujeito, manifestam sua
13
Nesse ponto pode se pensar que o sujeito seja momentaneamente livre para escolher o tipo de discurso que quer seguir, mas não pode escolher não ser o discurso. 14
Nesse ponto convém ressaltar que uma formação discursiva nunca está totalmente pronta e acabada, nela operam transformações de diversas ordens e que modificam suas práticas, ao mesmo tempo em que o sujeito pode pertencer a outras formações discursivas que inconscientemente pela relação com o interdiscurso fazem com certas formações discursivas sejam abandonadas.
48
dispersão: nos diversos status, nos diversos lugares, nas diversas posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na descontinuidade dos planos de onde fala. Se esses planos estão ligados por um sistema de relações, este não é estabelecido pela atividade sintética de uma consciência idêntica a si, muda e anterior a qualquer palavra, mas pela especificidade de uma prática discursiva. (FOUCAULT, 2008, p. 61).
Na prática discursiva, nas diversas modalidades enunciativas, o sujeito não é
unificante no sentido de todo o saber e poder, mas ao contrário, é justamente no
discurso que se opera sua dispersão que é a posição assumida pelo sujeito nos
diversos lugares sociais. Nesse sentido o sujeito é constituído pelo discurso e
também dele, não há uma linearidade que determina quem vem de quem, é uma
atividade dialógica.
Segundo Fairclough (2001, p. 74-75) “O trabalho de Foucault é uma grande
contribuição para o descentramento do sujeito social nas recentes teorias sociais
para a visão do sujeito constituído, reproduzido e transformado na prática social e
por meio dela, e para a visão do sujeito fragmentado.” Nessa concepção de
Fairclough a grande contribuição de Foucault é na descentralização do sujeito
cartesiano da filosofia clássica. Foucault dá uma nova visão não só ao sujeito, mas
também às novas formas de ver e sentir a sociedade em suas relações de poder e
saber. Nesta perspectiva, a prática discursiva é quem é constitutiva do sujeito e é
nessa prática que ele se constitui.
Nesse sentido a prática discursiva é:
antes um campo de regularidade para diversas posições de subjetividade. O discurso, assim concebido, não é a manifestação, majestosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: é, ao contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo. (FOUCAULT, 2008, p. 61).
Para Foucault (2008), a prática discursiva é o campo de regularidades e
possibilidades de dispersão do sujeito e não um campo homogêneo que
determinaria sua unidade. A unidade, nesse sentido é um mito cartesiano, já que
dependendo do lugar social de onde o sujeito fala irá determinar qual tipo de sujeito
ele está exercendo, por isso ele é disperso e não único.
49
Na concepção foucaultiana, o sujeito é tanto sujeito como objeto do
conhecimento. Sujeito porque é uma constituição a partir do discurso e das relações
de saber e poder, o sujeito é constitutivo. Objeto porque obedecem as mesmas
regras de formação de objetos constituídos pela linguagem. A materialidade do
discurso não separa os objetos, suas formações levam em conta os discursos que
são produzidos socialmente. Para uma autonomia do sujeito sobre o objeto, como foi
dito anteriormente, o sujeito precisaria ser autônomo e consciente, mas para
Foucault o sujeito é descentrado e disperso, sua constituição deriva do fato de ele se
constituir a partir de um lugar social determinado, assim como os objetos. Nesse
sentido há uma supervalorização do discurso como constitutivo do conhecimento,
saber e poder.
A relativa autonomia do sujeito vai surgir tanto nos trabalhos arqueológicos
quanto genealógicos de Foucault com relação ao desejo. O discurso vai ser o objeto
de desejo do sujeito e, embora o discurso seja constitutivo do sujeito em termos de
uso da linguagem em suas mais diversas práticas, o sujeito vai desejar se apropriar
de certos discursos para poder se fazer sujeito de outro lugar social. Então o desejo
como fonte de saber e poder é quem vai dá ao sujeito essa pseudo-autonomia de
desejar objetos e sujeitos.
Na constituição do sujeito, o desejo se torna um elemento central. Diante
dessa categoria que Foucault expõe, do sujeito cartesiano para o sujeito do
conhecimento e do saber, o desejo é o impulso criador e constitutivo de sua
autonomia. Há no sujeito a vontade de saber que nas relações sociais ele se
transforma no sujeito do poder. O desejo então vai ser o elemento que irá
protagonizar a vontade de saber e poder.
2.2 Discurso e formação discursiva
A AD de linha francesa não trabalha com a noção de língua como sistema
homogêneo e arbitrário de signos linguísticos, nem mesmo com a noção de
proposição oriunda da filosofia cartesiana, tentando mostrar o mundo como uma
representação pela linguagem com suas noções de verdade e falsidade. Pouco
importa para AD, em termos gerais, se algo é falso ou deixa de ser, ou se a língua é
social porque é dividida como dicionários por todos os seus falantes, importa o
50
discurso proferido por falantes de lugares sociais distintos e que através de sua
exterioridade constrói elementos que são constitutivos do homem e da sociedade
em geral.
Como assinala o próprio Foucault:
colocamos a questão no nível do próprio discurso, que não é mais tradução exterior, mas lugar de emergência dos conceitos; não associamos as constantes do discurso às estruturas ideais do conceito, mas descrevemos a rede conceitual a partir das regularidades intrínsecas do discurso; não submetemos a multiplicidade das enunciações à coerência dos conceitos, nem esta ao recolhimento silencioso de uma idealidade metaistórica; estabelecemos a série inversa: recolocamos as intenções livres de não-contradição em um emaranhado de compatibilidade e incompatibilidade conceituais; e relacionamos esse emaranhado com as regras que caracterizam uma prática discursiva. (FOUCAULT, 2008, p. 68).
Para Foucault é preciso descobrir no discurso elementos intrínsecos a ele
mesmo para criar objetos e conceitos para não se caracterizar falta de método.
Segundo ele, há regularidades no discurso que o caracterizam como passível de
uma análise mais fecunda no sentido se reconhecer a relação entre o discurso e sua
exterioridade relacionada com o sujeito e a história construídos pela prática
discursiva. Nessa trajetória, o discurso é constitutivo no sentido de não estar pronto
e acabado tal qual a gramática normativa de uma língua, nem mesmo com a
identidade dos vários discursos sociais como a política, a psiquiatria ou mesmo o
direito. O discurso é o espaço vazio a ser preenchido pelas práticas discursivas que
em sua materialidade irão constituir conceitos e elementos possíveis.
Para Brandão:
Foucault [...] concebe os discursos como uma dispersão, isto é, como sendo formados por elementos que não estão ligados por nenhum princípio de unidade. Cabe a AD descrever essa dispersão, buscando o estabelecimento de regras capazes de reger a formação dos discursos. (BRANDÃO, 2004, p. 32).
O discurso, na perspectiva foucaultiana, não é algo estável regido por um
núcleo centralizador e único, mas é concebido em sua dispersão, ou seja, os
elementos não estão ligados por um princípio de unidade. Descrever o discurso é
buscar o que Foucault chama de regras de formação, regras que possibilitam o
51
aparecimento e a coexistência de objetos em um espaço comum, onde aparecem
certos tipos de enunciação que são pertinentes aos discursos e que são capazes de
estabilizar15 conceitos e formas dentro de um campo enunciativo.
Nessa perspectiva o discurso é constitutivo. Ele não é uma formação
apriorística, mas uma espécie de elemento que é constituído pela prática discursiva
num dado espaço de uso da linguagem. O surgimento de uma estabilidade do
discurso como o político, religioso, psiquiátrico, tropicalista não é algo estável do
ponto de vista do próprio conceito de estabilidade, mas algo com possibilidades de
transformações dentro de um determinado campo de enunciação. Dessa forma
podíamos falar de uma estabilidade momentânea, já que com a dinâmica da
linguagem os discursos podem se transformar continuamente em busca de novas
possibilidades de efeitos de sentido.
Então para Foucault o discurso é:
Um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva; ele é constituído de um número limitado de enunciados, para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência; é, de parte a parte, histórico — fragmento de história, unidade, e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade (FOUCAULT, 2008, p. 135-36).
Não há sujeitado sem história, nem discurso sem sujeito (Orlandi, 2007), nem
enunciado que não se apoie numa formação discursiva, que limita a linha discursiva
dos enunciados, que são recortes históricos impostos pela própria relação da língua
com o sujeito e sua ideologia. Ela impõe o que pode e o que não pode ser dito pelos
sujeitos dentro de um campo específico de existência material dos enunciados. Para
isso surge o conceito de descontinuidade e dispersão dos enunciados, que são as
relações não uniformes dos enunciados que encontram na formação discursiva sua
identidade e regularidade. As relações discursivas dos enunciados são sempre
eventos históricos dispersos na descontinuidade da história.
Para Foucault, o discurso não é constitutivo, mas sim socialmente
constitutivo. Para Fairclough, há uma relação entre o discurso e as estruturas sociais
15
Essa estabilidade não implica na imobilidade dos conceitos quando formados. Pode-se, inclusive sugerir o termo regularidade que seria a estabilização dos conceitos e objetos constituídos por regras de formação. Essas regras determinariam dentro de um campo enunciativo essa suposta estabilidade do discurso.
52
das quais o discurso se constitui e de quem é construído, ou seja, há uma relação
dialética em que discurso e sociedade se interligam e se entrecruzam, não sendo
apenas o discurso uma relação da linguagem com o sujeito e o sentido. Segundo o
autor “Aqui está a importância da discussão de Foucault sobre a formação discursiva
de objetos, sujeitos e conceitos. O discurso contribui para a constituição de todas as
dimensões da estrutura social que, direta ou, indiretamente, o moldam e o
restringem: suas próprias normas e convenções, como também relações,
identidades e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma prática, não
apenas de representação. do mundo. mas de significação do mundo, constituindo e
construindo o mundo em significado.” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). Para o autor, o
trabalho de Foucault sobre o discurso é de essencial valor para o entendimento das
sociedades modernas, nas quais o discurso é a ferramenta central para a
constituição do sujeito, da sociedade e dos objetos sociais. Da mesma forma, o
discurso também é moldado pela sociedade cognoscente, não como uma relação
de dominância, mas como uma relação constitutivamente dialética, de relação. Este,
não é a representação do mundo pela linguagem, discurso significa significar o
mundo pela linguagem, ou seja, o mundo só adquire sentido por meio do discurso. O
mundo só adquire significado através do discurso.
Segundo Fairclough, o discurso como prática social implica:
uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação. Trata-se de uma visão do uso de linguagem que se tornou familiar, embora frequentemente em termos individualistas, pela Filosofia linguística e pela Pragmática linguística [...] implica uma relação dialética entre o discurso e a estrutura social, existindo mais geralmente tal relação entre a prática social e a estrutura social; a última é tanto uma condição como um efeito da primeira. Por outro lado, o discurso é moldado e restringido pela estrutura social no sentido mais amplo e em todos os níveis: pela classe e por outras relações sociais em um nível societário, pelas relações específicas em instituições particulares, como o direito ou a educação, por sistemas de classificação, por várias normas e convenções, tanto de natureza discursiva como não discursiva, e assim por diante. Os eventos discursivos específicos variam em sua determinação estrutural segundo o domínio social particular ou o quadro institucional em que são gerados. (Por outro lado, o discurso é
socialmente constitutivo). (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91).
53
Para Fairclough essa relação dialética entre o discurso e as estruturas sociais
é um efeito gerado pelas ideologias gerais e particulares, principalmente aquelas
ligadas à ideologia defendida por Althusser16, segunda a qual as ideologias
particulares são moldadas ou reproduzidas pelas microideologias que Foucault
chama de microfísica do poder. Nessa relação tanto os discursos gerais quanto os
particulares oriundos de disciplinas específicas que trabalham com enunciados
próprios, sejam eles discursivos e não discursivos, são moldados e transformados
pelas estruturas sociais que influenciam e são influenciadas pelo discurso.
Segundo Fairclough:
a relação entre discurso e estrutura social seja considerada como dialética para evitar os erros de ênfase indevida: de um lado, na determinação social do discurso e, de outro, na construção do social no discurso. No primeiro caso, o discurso é mero reflexo de uma realidade social mais profunda; no último, o discurso é representado idealizadamente como fonte do social. O último talvez seja o erro mais imediatamente perigoso, dada a ênfase nas propriedades constitutivas do discurso em debates contemporâneos. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 92).
Essa relação dialética entre discurso e estruturas sociais, é uma análise
cuidadosa pelo fato de não se cair num campo muito fechado de determinação de
quem vem primeiro ou quem tem primazia sobre os outros. O discurso influencia a
constituição das estruturas sociais que são efeitos de linguagem e ao mesmo tempo
sofrem transformações porque essas estruturas são formadas por sujeitos que estão
atuando sobre a linguagem e nela buscando novos efeitos de sentido.
Por ser de caráter disperso e não possuindo uma unidade de sentido
específico é que Foucault lança o termo formação discursiva. Para ele havia uma
unidade na dispersão, ou seja, os conjuntos de dispersões a que se encontravam os
enunciados formam unidade na formação discursiva, não como uma forma
homogênea como diz Orlandi: “A noção de formação discursiva, ainda que polêmica
é básica da Análise de Discurso, pois permite compreender o processo de formação
dos sentidos, a sua relação com a ideologia e também dá ao analista a possibilidade
de estabelecer regularidades no funcionamento do discurso” (ORLANDI, 2007, p.
43)”. Segundo Orlandi é a passagem do não-sentido para o sentido, ou seja, na
16
Aparelhos ideológicos do estado. (Orlandi, 2007).
54
formação discursiva é que o sujeito interpelado pela ideologia dá novos sentidos ao
mundo e o significa a partir de uma posição social dada.
Nesse sentido o discurso só faz sentido por aquilo que é dito ou não dito por
um sujeito inscrito em uma formação discursiva e isso não pode ser de outra forma,
já que as palavras não fazem sentido sozinhas ou por elas mesmas, mas quando
estão inscritas dentro de um conjunto de regularidades que caracteriza a formação
discursiva. Segundo Orlandi, “As palavras falam com outras palavras” (ORLANDI,
2007, p. 43). As palavras só adquirem sentido porque fazem parte de um discurso
específico, e é isso que caracteriza a formação discursiva e a produção de sentidos
do mundo.
A formação discursiva que faz parte dos trabalhos arqueológicos de Foucault
foi amplamente usada pelos teóricos franceses que deram a esse conceito outras
reformulações e usos. Para ele “Uma formação discursiva será individualizada se se
puder definir o sistema de formação das diferentes estratégias que nela se
desenrolam; em outros termos, se se puder mostrar como todas derivam (malgrado
sua diversidade por vezes extrema, malgrado sua dispersão no tempo) de um
mesmo jogo de relações”. (FOUCAULT, 2008, p. 76). Segundo Sargentini e Navarro-
Barbosa (2004) o conceito de formação discursiva aparece pela primeira vez em
Pêcheux17 (apud, FAIRCLOUGH, 2001) que conjugou formação discursiva com o
conceito de ideologia de Althusser, por exemplo.
A formação discursiva para Foucault são:
os enunciados, diferentes em sua forma, dispersos no tempo, formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto. Assim, parece que os enunciados pertinentes à Psicopatologia referem-se a esse objeto que se perfila, de diferentes maneiras, na experiência individual ou social, e que se pode designar por loucura. Ora, logo percebi que a unidade do objeto "loucura" não nos permite individualizar um conjunto de enunciados e estabelecer entre eles
17
Para Roberto Leiser Baronas desenvolve a ideia de que há contradições de onde o termo tenha surgido nas ciências sociais. Segundo Sargentini e Navarro-Barbosa o conceito de formação discursiva aparece pela primeira vez em Michel Pêcheux no seu artigo ‘A semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem e discurso’. Ao criticar os linguistas pós-saussurianos - estruturalistas e gerativistas - por terem de alguma maneira trazido o modelo fonológico saussuriano para o domínio do sentido, produzindo uma espécie de filos fonema que caracterizaria toda a linguística. Por outro lado, Fairclough afirma que “Pêcheux sugere que cada posição incorpora uma 'formação discursiva' (FD), um termo que tomou emprestado de Foucault. Uma FD e “aquilo que em uma dada formação ideológica” [...] determina o que pode e deve ser dito’. Isso e compreendido em termos especificamente semânticos: as palavras mudam seu sentido de acordo com as posições de quem as 'usa'" (FAIRCLOUGH, 2001, p. 52).
55
uma relação ao mesmo tempo descritível e constante. (FOUCAULT, 2008, p. 36).
O conceito de Foucault, embora muito filosófico e não aplicado à teoria de
textos, entende que os enunciados diferentes na forma e no sentido encontram uma
suposta unidade de sentido na formação discursiva. Essa é a relação com o objeto e
os enunciados, já que a mesma é formada por enunciados e que ao mesmo tempo
aglomera enunciados pertinentes a ela. Nessa perspectiva, a formação discursiva
não será uma unidade homogênea, dada a formação dos objetos e enunciados, mas
heterogênea pelo fato de manter relações dentro da própria formação discursiva e
também com outras formações discursivas com as quais estabelece relações de
diferenças e de identidade de sentido.
é preciso renunciar a todos os temas - tradição; influência; desenvolvimento e evolução; mental idade ou espíritos tipos e gêneros; livro e obra; ideia da origem; já-dito e não-dito -que tem por função garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência sempre reconduzida. É preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade e dispersão temporal, que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado... Não remetê-lo a longínqua presença da origem; é preciso tratá-lo no jogo da sua instância (FOUCAULT, 2008, p. 28).
Nessa citação, Foucault assinala que o discurso deve ser percebido a partir
da noção de acontecimento, descartando a ideia antropológica de que o sujeito seja
dono de seu dizer18. O discurso pode aparecer como um já-dito e um não dito e até
esquecido num jogo contínuo de ausência e presença, configurando sua dispersão
no curso da história como elemento constitutivo e a ser constituído. É preciso livrar-
se de toda ideia pré-concebida para cair no terreno de sua instância constitutiva.
Segundo Sargentini e Navarro-Barbosa:
é nesse sistema que internamente se produz um conjunto de regras as quais definem a identidade e o sentido dos enunciados que o constituem. Em outros termos, é a própria formação discursiva como uma lei de série, princípio de dispersão e de repartição dos
18
Essa noção de sujeito dono do discurso é posta pela AD com apropriação do discurso pelo sujeito, já que tudo já foi dito, não havendo uma entidade ou uma origem para os discursos. O discurso como sendo constitutivo não tem dono. Para isso a AD, na esteira de Foucault desenvolve a ideia de autor, na qual o sujeito assume o discurso através da posição social que assume: o pai em relação ao filho; o médico em relação ao paciente, etc.
56
enunciados que define as regularidades que validam os seus enunciados constituintes; por sua vez, tais regularidades instauram os objetos sobre os quais elas falam, legitimam os sujeitos para falarem sobre esse objeto e definem os conceitos com os quais operarão e as diferentes estratégias que serão utilizadas para definir um ‘campo de opções possíveis para reanimar os temas já existentes [...] permitir, com um jogo de conceitos determinados, jogar
diferentes partidas’ (SARGENTINI E NAVARRO-BARBOSA 2004,
p. 51).
Segundo Sargentini e Navarro-Barbosa, os enunciados se relacionam com
outros enunciados e são condicionados por um conjunto de regularidades internas,
constituindo um sistema relativamente autônomo, denominado de formação
discursiva. O conjunto de enunciados dentro de um mesmo conjunto produz uma
regularidade no sentido de serem regido por regras próprias e específicas a cada
objeto: é o que os autores chamam de formação discursiva. O termo regularidade
sugere não uma homogeneidade, mas um conjunto de regras de formações
dispersas que caracterizam um mesmo objeto.
Para AD o conceito de formação discursiva é fundamental. É ela que
estabelece, para a linguagem, o sujeito e a ideologia, a noção de sentido a partir da
interpretação da realidade simbólica demonstrada pela linguagem. Na formação
discursiva a regularidade dos enunciados e do discurso faz surgir em suas relações
à constituição dos efeitos de sentidos. Será a formação discursiva que irá dar, de
certa forma, um objeto passível de análise para AD que é o discurso. Na formação
discursiva o discurso encontra sua materialidade e seu poder de significar o mundo.
Dessa forma, a formação discursiva será o agrupamento de vários enunciados que
formam os objetos e os conceitos formadores dos elementos constitutivos do sujeito,
da ideologia e constituição/significação da sociedade.
2.3 A ideologia Um dos elementos centrais da AD francesa é o conceito de ideologia. Para
essa disciplina, a ideologia são as relações de poder que são estabelecidas através
das formas de discurso na sociedade. Para ideologia há regras a serem jogadas na
prática discursiva que, são realizadas pelos sujeitos na prática social de seu
discurso. Isso implica dizer que a ideologia é uma teia que está envolta em todo o
tecido social, disciplinando e combinando regras para manter a sociedade e os
sujeitos uma complexa rede disciplinar.
57
Segundo Brandão:
Na reprodução das relações de produção, uma das formas pela qual a instância ideológica funciona é a da “interpelação ou assujeitamento do sujeito como sujeito ideológico”. Essa interpelação ideológica consiste em fazer com que cada indivíduo (sem que ele tome consciência disso, mas, ao contrário, tenha a impressão de que é senhor de sua própria vontade) seja levado a ocupar seu lugar em um dos grupos ou classes de uma determinada formação social. (BRANDÃO, 2004, p. 46-47).
Na teia ideológica, há uma transformação, uma interpelação, pelo discurso,
do indivíduo em sujeito. Segundo a AD, o sujeito nasce por sua relação com a
história e com o discurso atravessado pela ideologia. Dessa perspectiva abandona-
se a ideia de um sujeito autônomo e dono de seu dizer, já que as coisas já foram
ditas e inscritas na história das ideias.
O termo ideologia, amplamente usado pela AD para se falar da relação da
língua com a história e do sujeito com as relações de poder, nasceu como sinônimo
de analisar faculdade de pensar em contraste com as coisas naturais como o corpo
humano e os fenômenos da natureza. Ele é gerado no discurso que constitui a
sociedade com suas relações com os sujeitos em posições distintas nas diversas
instituições.
Em Marx e Engels a ideologia é símbolo do embate das relações de produção
entre o proletariado e as classes dominantes. A ideologia sustenta o poder da
hegemonia através de mecanismo de controle dos meios de produção da grande
massa. Tem para Marx e Engels um sentido pejorativo, já que a ideologia é uma
forma de manter o poder dos dominantes sobre os dominados ao manipular não
apenas os meios de produção e consumo, mas também os bens culturais
produzidos pelo homem.
Segundo Marx e Engels, apud Brandão (2004):
As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade e, ao mesmo tempo, sua força espiritual. A classe que tem a sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual. [...] Na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, e evidente que o façam em toda a sua extensão e, consequentemente, entre outras coisas, dominem também como pensadores, como produtores de ideias; que regulem a produção e
58
distribuição de ideias de seu tempo e que suas ideias sejam, por isso mesmo, as ideias dominantes da época (BRANDÃO, 2004, p. 47)
A classe dominante de uma época não é somente a que comanda a força
material de produção, mas também aquela que pensa e cria ideias para que sejam
perpetuadas ao longo do tempo. A classe dominante domina tanto a força de
trabalho como também as ideias espirituais de uma época. Nessa perspectiva
descrita pelos marxistas, o controle sobre os meios culturais não é uma
consequência, mas uma extensão do domínio da força de trabalho dos indivíduos.
Para os marxistas, a ideologia é um conjunto ordenado de representações
simbólicas que fingem desvincular as condições materiais de produção do trabalho
da produção das ideias, em um jogo que elimina as contradições de classes, as
relações sociais e de consciência para legitimar a dominação de classe. Nesse
sentido é uma ilusão que inverte a realidade, já que tornam suas ideias as ideias de
todos.
Então, segundo Brandão:
Para criar na consciência dos homens essa visão ilusória da realidade como se fosse realidade, a ideologia organiza-se como um sistema lógico e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar, o que devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. (BRANDÃO, 2004, p.22).
De acordo com Brandão, a classe dominante, que mantém uma ideologia, cria
uma falsa realidade, fazendo crer que os sistemas de representações simbólicos por
ela elaborados são comuns a todos e são criados socialmente, mascarando os reais
interesses de quem quer se manter no poder e, dessa forma, ditando normas sobre
o que deve e o que não se deve fazer, impõe para isso, inclusive mecanismos
institucionais para garantir essa ordem. Nesses termos quem se mantém no poder
assegura, para não explicitar claramente, os objetivos das ideias criadas para
manter certa ordem. O que há, na verdade, são lacunas, e silêncios para assegurar
a ideologia dominante a coerência do seu sistema.
Embora Marx e Engels tenham elaborado sua teoria como crítica ao sistema
capitalista burguês, suas ideias não deixam de contribuir para uma visão social da
59
linguagem, mesmo que eles tenham se pautado muito num empirismo tecnocrático,
numa visão de mundo analisado sobre o material histórico.
Althusser (apud, Orlandi, 2007) amplia e dá novas conotações ao termo
ideologia proposto por Marx e Engels (apud, Orlandi, 2007). A ideologia não é
apenas um embate de classes e um mascaramento da realidade pelo uso da
linguagem, nem que ela se restrinja somente a análise empírica das condições de
produção da grande massa e das condições de produção do discurso intelectual dos
dominadores. Para ele a ideologia é mantida e perpetuada pelos aparelhos
ideológicos do estado (AIE), ou seja, quando houve a constituição dos estados
nacionais, não só na Alemanha de Marx e Engels, mas em todo mundo, houve uma
apropriação dos discursos para legitimar a dominação.
Na organização dos estados nacionais, quase sempre mantido pelas classes
dominantes há mecanismos que legitimam a dominação e ao mesmo tempo
repreendem as práticas anárquicas que ameaçam o discurso dominante. Segundo
Althusser apud, Orlandi, (2007), há os aparelhos ideológicos do estado que
perpetuam a dominação por instituições como a igreja, a política, o direito, o
sindicato, a escola, a família, etc, que reproduzem inconscientemente seus
discursos e fazem todos pensarem que ele é legítimo, justo e probo. Quando essas
forças institucionais se mostram falhas, entram em campo os Aparelhos
Repressores do Estado (ARE) que, utilizando da força e da repreensão, mantém
intactos seus mecanismos de dominação das massas.
Assim, assinala Althusser apud, Orlandi, (2007) “todo funcionamento da
ideologia dominante está concentrado nos AIE. A hegemonia ideológica exercida
através deles é importante para se criarem as conduções necessárias para
reprodução das relações de produção”, ou seja, todo o controle se faz pela
repressão, embora seus defensores assegurem que os ARE sejam utilizados
apenas em situações-limite e são secundárias as condições de reprodução dos AIE.
Na verdade um mantém o outro numa relação mutua de mascaramento e imposição
de uma dada realidade constituída. Segundo essa autora, o que diferencia um do
outro são as suas formas de funcionamento.
Para Orlandi (2007) a ideologia é constitutiva, ela faz parte do fazer histórico e
constitutivo do sujeito. O indivíduo só se torna sujeito quando faz uma leitura do
mundo constituído ideologicamente para a partir daí tomar sua posição interpretativa
da realidade enquanto linguagem em ação. Para a autora a ideologia é constitutiva
60
do sujeito e dos sentidos, já que interpelam os indivíduos a se tornarem sujeitos. A
posição defendida pela autora é que nos jogos de linguagem entram outros
mecanismos que são desconhecidos pela consciência dos sujeitos como a
inconsciência, o esquecimento e as estruturas sociais que sustentam os discursos.
Orlandi defende que “Não há discurso sem sujeito. E não há sujeito sem
ideologia” (ORLANDI, 2007, p. 47). Trabalha com a noção de que a sociedade é
feita de discursos e que esses discursos refletem uma ideologia que são o conjunto
de normas que regulam o dizer e o saber dos sujeitos nas posições sociais por eles
ocupadas. Nesse sentido há uma relação dinâmica entre língua, discurso e história,
no qual o indivíduo é chamado a ser sujeito.
Para Althusser (apud, Orlandi, 2007) em sua segunda parte do ensaio sobre
ideologia, há uma ideologia geral gerada socialmente pelo discurso dos AIE e que
são aplicados às ideologias particulares. Nesse ponto o autor defende que todos
comungam com as mesmas normas de manutenção de uma dominância. Embora o
sujeito possa ser constituído pela ideologia enquanto discurso, ele está sujeito às
normas gerais da ideologia dominante. Quando o autor se refere a ideologias
particulares, está dizendo que a ideologia é quem assegura a existência do homem
comum em sua prática social, garantindo a ele uma legitimação de sua vida e ao
mesmo tempo em que, o interpela a participar da ideologia geral, ou seja, a
ideologia é o norte do sujeito nas práticas sociais cotidianas
Neste ponto Orlandi (2007) fala da não transparência da linguagem que,
atuando sobre os sujeitos constituídos pela linguagem, dão a falsa impressão de que
somos donos dos nossos dizeres. Isso se concretiza na materialidade do discurso
que trabalha língua, história e ideologia conjuntamente. Tudo está inscrito na língua
e na história de forma ilusória e seus sentidos são constituídos a partir do momento
da interpretação. A realidade não é dada transparentemente a priori, é interpretável.
A ideologia é um efeito de discurso.
Nessa linha de raciocínio, Foucault (1979) descarta a ideologia como sendo o
mascaramento e ocultamento da realidade pelos discursos da classe hegemônica.
Para ele ideologia é prática discursiva e relação entre as várias formações
discursivas, no sentido de que nenhum discurso é igual um ao outro, mas se opõem
naturalmente, já que são produzidos por sujeitos diferentes e em formações
discursiva diferentes, não sendo apenas um mascaramento ou ocultamento da
realidade, mas a manipulação do poder e do saber dos sujeitos na constituição dos
61
sujeitos, das identidades e das instituições. Essa forma de encarar a ideologia está
presente nos trabalhos genealógicos do autor que não é o foco dessa pesquisa.
2.4 O enunciado
O conceito de enunciado, assim como o de sujeito, ideologia, o de discurso e
formação discursiva são também fundamentais para AD. Definir enunciado na
perspectiva da AD não é uma tarefa das mais fáceis, já que o mesmo não funciona
isoladamente, sem o sujeito e a formação discursiva, nem mesmo se não for
comparado com outros elementos da gramática e da retórica. Para podermos definir
o que é enunciado, melhor é saber o que ele não é.
Como já foi dito no capítulo sobre o método arqueológico, o enunciado não é
como uma proposição no plano dos estados de coisas do mundo no sentido de
Wittgenstein (1961). Ele está no plano do discurso, o que equivale dizer que os
enunciados não precisam nem necessitam ser submetidos a provas de verdadeiro e
falso, nem se referir às coisas do mundo de modo representativo; ele está mais para
o campo demonstrativo da linguagem.
O enunciado também não se confunde com a frase, que é própria da
gramática de normas, na qual os elementos constitutivos significam dentro de um
sistema fechado, homogêneo e fora do contexto extralinguístico. Nesse sentido há
uma distinção entre sentido e significação. A significação está para a frase com suas
regras dentro de um sistema linguístico organizado segundo seus constituintes
imediatos e divididos em partes constitutivas e exaustivamente identificados
segundo sua função linguística: sujeito, predicação, objeto direto, complementos.
“Um enunciado - qualquer que seja e por mais simples que o imaginemos - não tem
como correlato um indivíduo ou objeto singular que seria designado por determinada
palavra da frase” (FOUCAULT, 2008, p. 102). O sentido é para o enunciado aquilo
leva que conta as condições de produção, do sujeito e dos jogos de linguagem que
são postos em prática pelos falantes de uma determinada língua. “Entre o enunciado
e o que ele enuncia não há apenas relação gramatical, lógica ou semântica; há uma
relação que envolve os sujeitos, que passa pela história, que envolve a própria
materialidade do enunciado.” (SARGENTINI E NAVARRO-BARBOSA, 2004, p. 26-
27).
62
Segundo Foucault:
Se não houvesse enunciados, a língua não existiria; mas nenhum enunciado é indispensável à existência da língua (e podemos sempre supor, em lugar de qualquer enunciado, um outro enunciado que, nem por isso, modificaria a língua). A língua só existe a título de sistema de construção para enunciados possíveis; mas, por outro lado, ela só existe a título de descrição (mais ou menos exaustiva) obtida a partir de um conjunto de enunciados reais. Língua e enunciado não estão no mesmo nível de existência; e não podemos dizer que há enunciados como dizemos que há línguas. (FOUCAULT, 2008, p. 96).
Na perspectiva do pensador francês, o enunciado é a condição de existência
de uma língua, não como um sistema homogêneo e fechado em si mesmo, mas a
língua como possibilidade de acontecimento19, ou seja, a possibilidade de aparecer
e poder reaparecer em novos jogos de linguagem e em novos efeitos de sentido.
Essa condição de possibilidade remete às condições reais de produção de uma
língua, diferentemente das condições ideais da língua dentro de um sistema fechado
de signos.
Nessa perspectiva de possibilidade e acontecimento, a existência do
enunciado está associada às condições reais de uso da língua como repetência20 e
incompletude. Um enunciado é repetível no sentido de poder o mesmo enunciado
ser utilizado com outro efeito de sentido e, incompletude no sentido de nunca estar
pronto e acabado, mas sempre a serviço de novas configurações semânticas.
Nesse sentido, Foucault diz:
Um enunciado existe fora de qualquer possibilidade de reaparecimento; e a relação que mantém com o que enuncia não é idêntica a um conjunto de regras de utilização. Trata-se de uma relação singular: se, nessas condições, uma formulação idêntica reaparece - as mesmas palavras são utilizadas, basicamente os mesmos nomes, em suma, a
19
A noção de acontecimento aparece nesse sentido como possibilidade de existência e aparecimento. A existência de um enunciado é sua possibilidade de acontecimento para a língua; além disso, o enunciado não pode ser considerado apenas em relação à linguagem escrita ou falada, ele pode se configurar em outras possibilidades que ultrapassam os limites da língua. Nesse sentido o enunciado é qualquer manifestação que se ligue a uma dada formação discursiva. 20
Essa questão significa que o enunciado é irrepetível porque o sentido poderá nunca ser o mesmo; repetível no sentido de que se pode usar as mesmas palavras em qualquer situação, mas o sentido sempre é modificado pelas condições de produção do enunciado em situações reais de uso da língua.
63
mesma frase, mas não forçosamente o mesmo enunciado. (FOUCAULT, 2008, p. 101).
O enunciado, a depender de sua possibilidade de reaparecimento e
acontecimento, pode ser utilizado em outras situações reais de uso da língua em
novos jogos de linguagem buscando novos efeitos de sentido. Segundo Foucault
(2008), o enunciado com a mesma forma pode aparecer em outras possibilidades de
acontecimento sem que este seja o mesmo enunciado nem o mesmo sentido. Isso
explica o fato de o enunciado ser ao mesmo tempo repetível e irrepetível. Este no
sentido de sua forma linguística se repetir em outras situações de uso e com novos
sentidos e, aquele quando o enunciado possui significação única, ou seja, cada vez
que um enunciado aparece, ele possui sentido único.
Nessa perspectiva os objetos são constituídos pelo ponto de vista do analista.
Por exemplo, a caracterização de uma doença é feita por vários enunciados que são
pertinentes a ela. Na caracterização da loucura os enunciados do tipo: quadro de
fobias, pouco cuidado com os hábitos higiênicos, são prescritos na caracterização
de um louco. Já os enunciados que remetem, por exemplo, a conhecimento de seu
quadro clínico são tidos como não pertinentes e, portanto, não se enquadrando
nessa formação discursiva.
A formação dos objetos, dentro de uma formação discursiva específica, e os
discursos que cruzam essa superfície discursiva depende das regras de formação
dos enunciados dentro da formação discursiva. Da mesma forma podem aparecer
regras de formação diferentes para as formações discursivas particulares. Isso por
que as regras de formação dos discursos, dos objetos dependem do tipo de
enunciado que está envolvido no seu processo de formação.
Então a história não é contínua, é fragmentada e montada através de
enunciados e formações discursivas ideologicamente específicas dentro de um dado
campo enunciativo. Os objetos são formados dentro de uma formação discursiva
específica que os constitui e transformam em elementos de uma mesma categoria
discursiva, portanto, pertinente aos objetos em questão.
Segundo Foucault:
os enunciados, diferentes em sua forma, dispersos no tempo, formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto. Assim, parece que os enunciados pertinentes à Psicopatologia
64
referem-se a esse objeto que se perfila, de diferentes maneiras, na experiência individual ou social, e que se pode designar por loucura. Ora, logo percebi que a unidade do objeto "loucura" não nos permite individualizar um conjunto de enunciados e estabelecer entre eles uma relação ao mesmo tempo descritível e constante. (FOUCAULT, 2008, p. 36).
De acordo com Foucault, essa operação permite ver a história não como uma
constituição a priori, mas em constante construção e reconstrução. A formação dos
objetos depende dos enunciados que são utilizados para categorizá-lo, no sentido
não da homogeneidade, mas da dispersão como fundação dos objetos históricos.
Dentro desta perspectiva a história não é nem linear nem sucessiva, mas
atravessada por vários enunciados que não foram inscritos na história como
arquivos oficiais. Assim é que se permite revisitar antigos arquivos que não estavam
na história oficial e desvendar outros sentidos aos que foram propostos inicialmente.
A análise de Foucault difere da linguística porque não trabalha com frases
nem proposições, analisando sua gramaticabilidade, inteligibilidade e suas noções
de verdade e falsidade, mas com discursos/enunciados que estando fora das
concepções de língua imanente, tornam possível o aparecimento de certos
enunciados em lugares sociais e institucionais diferentes. A essas formulações
pode-se chamar de formação discursiva ou identidade discursiva dos enunciados.
Portanto é necessário se perguntar o porquê da aparição de certos enunciados e
outros não. Por que aconteceram certos jogos de linguagem e não outros?
Segundo Sargentini e Navarro-Barbosa (2004), há uma relação intrínseca
entre o enunciado e o sujeito. O sujeito está para o enunciado assim como o
enunciado está para o sujeito, é uma relação de constituição. No entanto, Foucault
assegura que, embora o sujeito seja o produtor do discurso, ele não é seu dono
como já foi mencionado anteriormente em ideologia e formação discursiva.
Para Foucault:
não é preciso, pois, conceber o sujeito do enunciado como idêntico ao autor da formulação, nem substancialmente, nem funcionalmente. Ele não é causa, origem ou ponto departida do fenômeno de articulação escrita ou oral de uma frase; não é, tampouco, a intenção significativa que, invadindo silenciosamente o terreno das palavras, as ordena com o corpo invisível de sua intuição; não é o núcleo constante, imóvel e idêntico a si mesmo de uma série de operações que os enunciados, cada um por sua vez, viriam manifestar na superfície do discurso. É um lugar determinado e vazio que pode ser
65
efetivamente ocupado por indivíduos diferentes; mas esse lugar em vez de ser definido de uma vez por todas e de se manter uniforme ao longo de um texto, de um livro ou de uma obra, varia - ou melhor, é variável o bastante para poder continuar idêntico a si mesmo, através de várias frases, bem como para se modificar a cada uma (FOUCAULT, 2008, p. 109).
Na perspectiva arqueológica de Foucault, o enunciado não se confunde com
seu autor, nem em substância nem mesmo em sua função, porque atividade
significativa da linguagem é um espaço vazio a ser preenchido por qualquer sujeito
socialmente localizado. Por isso a dificuldade de definir o enunciado e poucos
comentadores se arriscam em enfrentar tal tarefa. Esse espaço a ser preenchido
pelo sujeito é a própria relação de sentido entre o sujeito e o enunciado. Não há
como definir enunciado por si só, é preciso reforçá-lo com o conceito de sujeito que
já foi explicitado anteriormente, com discurso e formação discursiva. É por isso que
não há como falar de enunciado sem falar em seus elementos constitutivos, há uma
relação de coexistência e concomitância. É nesse sentido que Foucault assegura
que “uma sequência de elementos linguísticos só é enunciado se estiver imersa em
um campo enunciativo em que apareça como elemento singular” (SARGENTINI E
NAVARRO-BARBOSA, 2004, 30).
É nesse sentido que Foucault reforça:
não há enunciado em geral, livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo. (FOUCAULT, 2008, p. 114).
Desta perspectiva, o enunciado só faz sentido numa relação material de
existência de outros enunciados, ou seja, um enunciado só existe a partir de outro
enunciado ou outros enunciados pertencentes a um mesmo campo enunciativo.
Nessa relação é que aparece o conceito de formação discursiva e identidade dos
enunciados. Essa identidade é limitada pela imposição dos próprios enunciados, ou
seja, os próprios enunciados vão limitar a atuação desses enunciados no campo
discursivo.
Portanto, para Foucault (2008), enunciado é a possibilidade de existência da
língua, uma escolha a ser feita pelo sujeito que é uma lacuna a ser preenchida pela
66
presença do outro, o que caracteriza uma condição material especificada pela
escolha do tipo de discurso que pode ser dito e não dito, uma escolha ideológica
fomentada e controlada pelos discursos que são veiculados socialmente.
2.5 Memória discursiva e interdiscurso
A memória, segundo Orlandi (2007), é determinante na constituição dos
sentidos historicamente construídos. É ela que aciona a cada momento de utilização
dos discursos os efeitos de sentido desejados pelos falantes. Ao enunciar, não são
proferidos apenas enunciados socialmente localizados e instituídos pelas relações
sociais de poder e saber. A memória ativa e reativa no discurso elementos que
remetem a discursos já concebidos e que na discursivização fazem emergir novos
efeitos de sentido.
Nesse sentido há uma relação da memória com o discurso, que nesse caso
chama-se interdiscurso, ou seja, aquilo que se fala antes e em outro tempo e lugar e
que é recuperado pela memória discursiva. A memória discursiva comporta saberes
e dizeres de enunciados já ditos e que numa situação específica de comunicação
reativa novos efeitos de sentido através do material simbólico histórico e já
sedimentado socialmente, como por exemplo, o significa do símbolo da cruz para os
cristãos, etc. Quando algo como essa simbologia é reativado pela memória
discursiva, ela já traz consigo o seu significado contextual e esse mesmo significado
é recriado em um contexto atual de uso da língua.
Para Orlandi a memória discursiva é:
O saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada. (ORLANDI, 2007, p. 31).
Para autora, o que torna possível a construção do sentido é o interdiscurso,
ou seja, a relação entre a memória e o discurso e a história, que traz a tona os
sentidos almejados pelos sujeitos numa situação de comunicação específica. Cada
palavra é tomada pela memória discursiva que retoma outros saberes já construídos
67
para estabelecer as relações de sentido para o sujeito e a história. Nesse sentido a
memória é constitutiva do discurso.
A memória discursiva é a condição de produção do discurso, uma vez que no
contexto imediato, e, mais amplo que incluem o contexto sócio histórico, onde os
sujeitos estão engajados produzindo efeitos de sentido que são manipulados pelas
condições de produção do discurso em situações reais de uso da linguagem é a
condição de surgimento do discurso. Dessa forma, o discurso é o acionamento da
memória discursiva em um contexto real de uso da língua, por um sujeito
socialmente situado.
Essa relação da memória e do interdiscurso como fatores primordiais na
constituição dos discursos traz a noção de que não se pode dizer nada novo e
original e que tudo já foi dito, no entanto o sentido feito através das retomadas por
meio da memória discursiva já é um novo significado. No entanto, essa relação
estabelece que a originalidade seja um mito, enquanto que a criatividade é genuína,
ou seja, através da relação da memória com o discurso socialmente produzido pode-
se acionar antigas formas de saberes já concebidos em outras épocas e situações
distintas conjugadas com novas formas de dizer materializando no discurso e pelo
discurso novas formas de conhecimento. Nesse sentido o discurso é a junção da
memória como elemento constitutivo e da atualidade como elemento de formulação.
Para se produzir o discurso é necessário acionar o já-dito com a formulação dos
dizeres atuais.
Segundo Achard (1999) a memória é analisada em sua materialidade
complexa enfatizando a relação do texto com a imagem e o discurso na sua
passagem do dizível ao nomeado, ou seja, a memória deve ser objeto de análise na
sua materialidade, quando ela nomeia a partir de sua possibilidade de
materialização em algum discurso reminiscente. Dessa forma, a memória não pode
ser provada, se enquadra no discurso concreto já-dito.
Nesse caso da memória como um dos fundamentos do discurso
O que funcionaria então seriam operadores linguageiros imersos em uma situação, que condicionariam o exercício de uma regularidade enunciativa. Haveria deste modo, a colocação de uma série dos contextos e das repetições formais, numa oscilação entre o histórico e o linguístico. Através das retomadas e das paráfrases, produz na memória um jogo de força simbólico que constitui uma questão social. (ACHARD, 1999, p. 08).
68
Para que a memória seja um dado do discurso é necessário, segundo o autor,
que jogos de linguagem imersos numa situação enunciativa para retomar outros
discursos, fazendo emergir uma regularidade que em contextos diversos são
repetidos e recuperados por interdiscursos através de jogos de força do poder
simbólico. Em outras palavras, é necessário o uso da linguagem em suas mais
variadas formas manipulando os jogos linguageiros do simbólico para que com os
resgates se possam sentir e ver a memória fazendo sentido.
Na pós-modernidade os objetos culturais são ferramentas manipuladoras de
memória, já que entrecruzam a memória coletiva e a história. Esses objetos são
operadores sociais de memória, uma vez que a memória passa a ser transferida da
cabeça das pessoas para os objetos da imprensa: computadores, pendrives, CDs
etc., e dessa forma pode-se falar de uma memória fabricada para fins específicos,
guardar o conhecimento humano para que futuras gerações possam desposar deles.
A produção de sentido para AD é o cruzamento do discurso com a memória e
a história através do interdiscurso. O interdiscurso é a emergência do discurso
recalcado na memória que vem a tona quando utilizado em outras situações
comunicativas, ou seja, cada discurso é ativado graças à memória que se fixou com
seus sentidos, e que nessa nova utilização ganha novos efeitos de sentido através
do interdiscurso. O discurso não é repetível na memória, ele é reorganizado
utilizando formas e estruturas da memória inconsciente na busca de novos efeitos
de sentido. A repetição do discurso em AD não existe, existem novos efeitos de
sentido a partir do dito e do não dito.
2.6 Os gêneros do discurso
A palavra gênero referindo-se a atividades relacionadas a textos, obras sejam
elas escritas, orais, encenadas e cantadas surge pela primeira vez na obra A
Poética de Aristóteles. Nessa obra o autor descreve as principais características dos
gêneros literários utilizados e cultuados e produzidos na época, mostrando suas
partes constitutivas e as maneiras mais corretas de se escrever, encenar ou
declamar um determinado gênero, já que dentre eles havia aqueles que tinham essa
natureza.
69
Para o pensador grego, a constituição de um gênero se dava pela mimesis,
ou seja, pela imitação das ações dos homens. Essa imitação não era qualquer uma,
já que assim como os homens havia as ações que eram consideradas superiores e
as ações inferiores. As ações superiores e inferiores eram caracterizadas pela índole
dos homens que a praticavam e a positividade dessa índole pelo tipo de ação que a
sociedade grega considerava inferior e superior, ou seja, havia uma relação
mimética entre as ações e os gêneros que as representavam.
Assim como os gêneros, os poetas eram caracterizados pelo tipo de gênero
que escreviam. Os poetas superiores escreviam em gêneros que tratavam das
ações superiores, como os poemas épicos e as tragédias. Já os poetas inferiores
escreviam em gêneros menos nobres como as comédias, que imitavam as ações
cômicas e grotescas dos homens. Essa categorização de criava gêneros complexos
e simples. Os complexos não só tratavam das ações superiores dos homens, mas
tinham sua narrativa mais complexa com elementos caracterizadores como a
catarse, a peripécia e o reconhecimento, etc. Os gêneros simples imitavam ações
mais simples, tinham a narrativa com menos tramas e amarras menos complexas e
tinham a finalidade de divertir e entreter o povo. Todos esses elementos,
especialmente os dos gêneros complexos, deveriam desembocar num desfecho de
felicidade e infortúnio, sendo o mais apreciado pelos gregos fins trágicos e ações
não lineares, com personagens altamente complexados e enredo intrigante.
Segundo Aristóteles:
Essas distinções se podem encontrar na dança, na arte da flauta ou da cítara; assim também na prosa e na poesia não musicada. Homero imitava homens superiores; Cleofonte iguais; Hegêmon de Tasos, o primeiro a escrever paródias, e Nicócares, o autor da Dilíada, os inferiores; o mesmo se aplica aos ditirambos e nomos como o provam, nos Ciclopes, Timóteo e Filóxeno. (ARISTÓTELES,
1999, p. 38-39).
Na perspectiva aristotélica as distinções entre o que era inferior e superior se
davam tanto nas artes da música e da escrita em verso ou prosa. Para o pensador,
as artes eram imitações dos homens e por isso seguia os critérios de inferioridade e
superioridade, pois havia, entre os gregos, ações que eram consideradas mais
nobres como as ações desenvolvidas nas tragédias em que havia intervenções de
70
divindades21 ou ações que imitavam ou estavam de acordo com a tradição22 de
compor. Outras, porém menos nobres, eram ações corriqueiras do povo, ou
imitações de homens de péssima índole, ou ações que discordavam da tradição
grega de compor nas artes.
No livro A Poética, se tem uma teoria sobre a arte literária grega dedicada
exclusivamente aos gêneros literários. Nele se pode perceber a categorização sobre
os diferentes gêneros literários produzidos na sociedade grega da época de
Aristóteles, que nesse trabalho não tem a intenção de esmiuçar a obra do autor
grego referente aos gêneros literários, mas mostrar o quão longínqua é a relação do
homem com a linguagem e com a organização da linguagem pelos gêneros, embora
em Aristóteles os gêneros fiquem exclusivamente reduzidos aos gêneros literários.
Para Brait:
Para a clássica teoria dos gêneros, a definição das formas poéticas se manifestava em termos de classificação. A obra de Aristóteles é muito clara nesse sentido. Em sua Poética, classifica os gêneros como obras da voz tomando como critério o modo de representação mimética. Poesia de primeira voz é a representação lírica; a poesia de segunda voz, da épica, e a poesia de terceira voz, do drama. Trata-se de uma classificação paradigmática e hierárquica, facilitada pela observação das formas no interior de um único meio: a voz. (BRAIT, 2008, p. 151).
Segundo Brait (2008), os gêneros na poética de Aristóteles foram uma forma
de classificar as formas nas quais os gêneros se manifestavam. Para a autora essa
representação mimética classifica os gêneros segundo suas vozes, ficando cada
gênero restrito a um tipo de manifestação específica. A intenção de Aristóteles,
nesse sentido, segundo a autora era fazer uma classificação hierárquica dos
gêneros, explicitando inclusive seu grau de inferioridade e superioridade graças à
relação que esses gêneros tinham com a cultura grega.
Segundo a mesma autora, Platão já havia classificado os gêneros numa
classificação binária definidos pelas esferas de domínios desses gêneros. Para
21
Para os gregos, as divindades possuíam os mesmos desejos e caracteres dos humanos: eram invejosos, traiçoeiros, covardes, etc., e podiam se manifestar entre o povo de qualquer ser para conviver entre os homens. 22
Essa tradição teórica que foi criada pelo próprio Aristóteles, assim como boa parte das teorias mais abrangente de todos os tempos no campo da poesia, vindo a ser menos valorizada com o surgimento e, posteriormente, valorização da prosa.
71
Platão havia os gêneros sérios que circulam restritamente nas esferas mais
elaboradas da sociedade grega como a epopeia e a tragédia, que se opunham em
termos de seriedade ao burlesco, como a comédia e a sátira, que circulavam para
outras camadas da sociedade grega.
No livro A República, Platão muda seu foco para uma elaboração triádica dos
gêneros a partir da relação entre realidade e representação bem explicitadas
também no Mito da caverna. Nessa reconfiguração o gênero dramático ou mimético
pertenceria à tragédia e a comédia, o gênero expositivo, narrativo, ditirambo e
nomos à poesia lírica e, o gênero misto à epopeia. Toda essa classificação de
Platão se fundava no conceito de mimesis que vai ser retomado por Aristóteles
como paradigma para a tragédia que o mesmo irá denominar de poesia, ou seja,
para Aristóteles o conceito de poesia é a própria tragédia, assim como a epopeia e o
ditirambo.
O trabalho de Aristóteles sobre os gêneros se consagrou na literatura,
principalmente no campo da Poética e da Retórica. Sua obra será um paradigma
para o estudo dos gêneros literários no campo letrado durante os séculos que se
seguem até o surgimento da prosa comunicativa desenvolvida por Mikhail Bakhtin.
Os estudos de Bakhtin (1997) sobre o romance irão
marcar a época da prosificação da cultura, uma vez que o autor dará grande
importância aos gêneros prosaicos comunicativos, principalmente, aos gêneros
surgidos no cotidiano. A intenção de Bakhtin é fazer uma revisão e reviravolta de A
Poética de Aristóteles, não simplesmente descartando-a, mas mostrando seu lado
prosa sobre o qual o pensador grego não escreveu.
Como assinala Brait:
Os estudos que Mikhail Bakhtin desenvolveu sobre os gêneros do discurso considerando não a classificação das espécies, mas o dialogismo do processo comunicativo, estão inseridos no campo dessa emergência. [...] as relações interativas são processos produtivos de linguagem. Consequentemente, gêneros e discurso passam a ser focalizados como esferas de uso da linguagem verbal ou da comunicação fundada na palavra. (BRAIT, 2008, p. 152).
Os estudos de Bakhtin centravam-se na palavra em uso. Todo o processo de
uso da palavra estava ligado ao seu universo cultural e social, mostrando não uma
classificação exaustiva de configuração dos gêneros do discurso, mas a sua
72
emergência e agência em meio a processos interativos e produtivos de usos da
linguagem. Esses processos levam em conta o fato de a linguagem ser entendida
em seu processo comunicativo, no qual há interação entre seus locutores e
interlocutores de forma dialógica, ou seja, não há uma fonte única e responsável
pelo discurso, mas sujeitos com as mesmas atitudes responsivas frente aos atos
comunicativos dentro de um determinado gênero do discurso. O dialogismo vai ser
para a teoria de Bakhtin um dos conceitos fundamentais que irá fundamentar a ideia
de discurso, sujeito e ideologia.
Embora se concentre, inicialmente, nos estudos dos gêneros de texto dentro
da literatura, mostrando uma grande riqueza de análises de personagens, enredo e
trama, baseados em conceitos como dialogismo, polifonia, enunciado etc., Bakhtin
vai paulatinamente se dedicando ao estudo dos gêneros da linguagem ordinária,
mostrando nela também a emergência de gêneros com outras categorias
expressivas que diferem dos outros gêneros mais bem elaborados da cultura, assim
como Aristóteles, pelo grau de complexidade, pelas esferas de circulação e
produção desses gêneros e pelos novos tipos de gêneros que se originam a partir
de outros já existentes, ou seja, os gêneros híbridos.
Esse hibridismo visto inicialmente por Bakhtin, irá mostrar que nenhum
gênero é puro, mas que sofre influência de outros gêneros. Seja eles do cotidiano ou
das esferas sociais mais elaboradas, ou seja, a cultura e o uso da língua em
situações concretas de comunicação rompem com as antigas barreiras ditas por
Aristóteles e se entrelaçam uns aos outros. Em sua análise e teoria do romance, o
pensador russo mostra que um simples diálogo do cotidiano vem a ter outra função
dentro de um romance polifônico. Os romances se tornam vulgares ao fazer parte
das esferas mais imediatas da comunicação e vice-versa, ou seja, há um movimento
constante de diálogo entre a infraestrutura e a superestrutura.
Um conceito fundamental na obra de Bakhtin é o de interação. Tomando por
base os estudos de Ferdinand de Saussure23 sobre a língua enquanto sistema
abstrato de signos linguísticos, ela mostrou que a linguagem é a interação e o
plurilinguismo (não monolinguismo), a ferramenta necessária ao estudo efetivo da
linguagem.
23
Bakhtin chamará de objetivismo abstrato a tendência saussuriana ao descartar o sujeito, a história e a cultura, centrando-se somente no sistema linguístico.
73
Sobre o que foi dito anteriormente no livro de 1929, intitulado Marxismo e
filosofia da linguagem assinado com o pseudônimo de Volochinov24, a interação:
é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função
da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.). Não pode haver interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado. Se algumas vezes temos a pretensão de pensar e de exprimir-nos urbi et orbi, na realidade é claro que vemos “a cidade e o mundo” através do prisma do meio social concreto que nos engloba. Na maior parte dos casos, é preciso supor, além disso, um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a criação ideológica do grupo social e da época a que pertencemos (BAKHTIN, 2006, p. 106).
Na perspectiva bakhtiniana da interação verbal a enunciação, que é o
momento da produção da fala, exige locutores (locutor e interlocutor) que estejam
socialmente organizados numa situação comunicativa. Segundo esse pensamento
não há um locutor irreal, abstrato ou imaginário, mas locutores e interlocutores reais
numa situação concreta interagindo por meio da linguagem. Essa interação pode-se
dar com pessoas do mesmo grupo social, ou de grupos sociais distintos, o que
categoriza e organiza um determinado gênero do discurso. Além disso, cada grupo
social é organizado segundo seus discursos, que de certa forma restringe os usos
que se fazem da linguagem em determinadas situações. Essa forma de encarar os
gêneros dentro de uma determinada esfera do conhecimento é semelhante ao
conceito de formação discursiva em Foucault (2008), segundo a qual os discursos
são organizados em torno de um discurso cujos enunciados a ele se referem de
maneira relacionada e associada mostrando que o sentido é constituído a partir de
um conjunto de enunciados que se referem a um objeto específico, igual os gêneros
do discurso. Bakhtin trabalha com a ideia de esfera de produção do discurso,
Foucault com a ideia de campo de formação de unidades enunciativas, conceitos
bem semelhantes. Esses dois conceitos de pertinência e relação são bem
24
Seus comentadores explicam que esses pseudônimos eram pessoas ligadas ao circulo de Bakhtin que, por o autor viver constantemente se deslocando de um lugar para o outro devido às perseguições, lançava seus escritos no nome de amigos.
74
evidenciados na obra dos dois pensadores supracitados. Embora Bakhtin e Foucault
se refiram às formas de organização do pensamento em gêneros do discurso e
formação discursiva, ambos divergem nos dispositivos aplicados a cada categoria do
discurso e formulam suas hipóteses de ângulos diferentes: pela interação de
indivíduos socializados numa situação concreta de uso da língua, pela relação do
sujeito com a língua e a sociedade e o assujeitamento e morte do homem por meio
da linguagem.
A descoberta25 dos gêneros do discurso foi uma guinada para os estudos do
homem e das sociedades modernas. Bakhtin formula a teoria dos gêneros do
discurso, não, naturalmente, pensando no ensino, mas sim em demonstrar uma
nova forma de encarar os gêneros desde Aristóteles, já que a linguagem era
estudada em face apenas dos gêneros retóricos, em que predominava o estudo da
forma e do conteúdo com fins meramente estilísticos26. Ele mostrou a emergência
de gêneros discursivos no campo da prosa em todos os seguimentos da sociedade.
Mais do que forma e conteúdo, Bakhtin demonstrou que os gêneros eram
produto da atividade humana. “A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são
infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera
dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai
diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica
mais complexa” (BAKHTIN, 1997, p. 280), e estavam intrinsecamente ligadas às
práticas sociais, e que por isso, sua circulação e produção emergia da infraestrutura
à superestrutura em um movimento dialógico, em que, o segundo reelaborava o
primeiro e utilizava deste para fins pragmáticos e ideológicos. Os gêneros são tão
inesgotáveis quanto as atividades humanas e variam de acordo em que se
desenvolve sua esfera de produção e circulação desses gêneros.
Os gêneros do discurso surgem não como uma revolução (não deixa de ser
também), mas como um novo olhar sobre o estudo e produção da linguagem. Ao
levar em conta sua produtividade, Bakhtin traz para cena, não só o discurso bem
elaborado como o discurso científico e o romance de muitos volumes etc., mas
também os discursos que são produzidos nas esferas mais imediatas da população
como o diálogo face a face, a conversa de esquina, as discussões entre vizinhos, as
25
Na verdade o termo descoberta é usado no sentido de que somente há poucos anos o gênero começou a ser estudado, enquanto que sua aparição como teoria fundamentada já faz muitos anos. 26
O estilo deve ser entendido nesse período com referência a estilística clássica.
75
letras de músicas, mostrando que embora cada um com suas particularidades, todos
são simplesmente gêneros que pertencem a uma dada esfera discursiva. Isso, de
certa forma, serve para diminuir os preconceitos sobre a linguagem popular que
impera, por exemplo, nos estudos de gramática normativa. A essa nova
configuração de usos da linguagem em situações concretas de uso Bakhtin chamou
de “tipos relativamente estáveis” (BAKHTIN, 1997, p. 280), ou seja, os gêneros do
discurso.
É possível, com a teoria dos gêneros do discurso, perceber que a linguagem
não é simplesmente forma e conteúdo, mas que é constitutiva, ou seja, não importa
de onde e por que sujeito ela é produzida, importa que ela é constitutiva dela e do
sujeito que a produz; nesse ponto, a linguagem é constitutivamente constitutiva. A
linguagem é vista em sua realização concreta com enunciados concretos com
sujeitos reais em situações reais de uso da língua.
Portanto, a teoria dos gêneros discursivos é uma abertura às várias
manifestações da linguagem sem prescrições gramaticais e com interesses
pragmáticos de saber que ela é constitutiva do ser humano e por ele produzida. Os
gêneros, nesse caso, são a organização da linguagem humana nas esferas da
produção no campo em que é produzida.
Aparecem na obra de Bakhtin os termos infraestrutura e superestrutura como
o suporte teórico-metodológico para explicar a emergências dos gêneros
discursivos. O primeiro nível, chamado de infraestrutura, constitui a base econômica
(que é determinante, segundo a concepção materialista). Engloba as relações do
homem com a natureza, no esforço de produzir a própria existência, e as relações
dos homens entre si. Ou seja, as relações entre os proprietários e não proprietários,
e entre os não proprietários e os meios e objetos do trabalho. O segundo nível,
político-ideológico, é chamado de superestrutura. É constituído pela estrutura
jurídico-política representada pelo Estado e pelo direito: segundo Marx, a relação de
exploração de classe no nível econômico repercute na relação de dominação
política, estando o Estado a serviço da classe dominante, pela estrutura ideológica
referente às formas da consciência social, tais como a religião, as leis, a educação,
a literatura, a filosofia, a ciência, a arte etc. Também nesse caso ocorre a sujeição
ideológica da classe dominada, cuja cultura e modo de vida reflete as ideias e os
valores da classe dominante.
76
Bakhtin traz esses conceitos para o campo da linguagem, explicitando que
tanto a infraestrutura como a superestrutura são produtoras de discurso. Esses
discursos não são apenas uma produção aleatória, mas um discurso que mostra
tanto do ponto de vista da infraestrutura como da superestrutura sua ideologia. Essa
produção também se organiza dependendo da esfera de uso da língua onde é
produzida, ou seja, cada esfera da comunicação elabora seus “tipos relativamente
estáveis” (BAKHTIN, 1997, p. 280), de gêneros discursivos com propósitos
definidos.
Segundo Bakhtin (1997):
Classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um único e mesmo código ideológico de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Consequentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve
a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir. O signo, se subtraído às tensões da luta social, se posto à margem da luta de classes, irá infalivelmente debilitar-se, degenerará em alegoria, tornar-se-á objeto de estudo dos filólogos e não será mais um instrumento racional e vivo para a sociedade. A memória da história da humanidade está cheia destes signos ideológicos defuntos, incapazes de constituir uma arena para o confronto dos valores sociais vivos. (BAKHTIN, 2006, p. 45).
Os gêneros do discurso são produzidos numa mesma comunidade linguística,
e mesmo que seus usuários sejam diversos, não importa por quem os produziu, pelo
menos em termos de produção, importa que essa produção engloba todos os
usuários da língua em condições diversas. Dessa forma, os gêneros emergem das
esferas mais imediatas da comunicação até serem organizados pelas esferas
discursivas mais complexas, entrecruzando, assim, gêneros de várias modalidades
de usos da língua, ou seja, do cotidiano às esferas mais elaboradas da sociedade.
Isso é que Bakhtin chamou de ideologia. Ela não é simplesmente o embate de
classes no campo da política e da economia e nem simplesmente um mascaramento
da realidade pela classe dominante. Cada esfera da comunicação elabora seus tipos
de discursos relativamente estáveis; o cotidiano elabora gêneros mais imediatos
próximos da realidade concreta e tem certa instabilidade, que é moldada pelas
esferas mais elaboradas como a política, a economia e a publicidade etc., que é
77
transformada em ideologia dominante pela sua estabilidade de formas e conceitos.
Em suma a ideologia nasce nas classes subalternas, onde é moldada e modificada
constantemente e possui relativa instabilidade. Ao chegar às esferas hegemônicas
essa ideologia ganha relativa estabilidade.
Os gêneros do discurso refletem e refratam entre si. Cada gênero por si só,
depende da esfera discursiva onde é produzido, já é um reflexo e uma refração de
discursos já produzidos. Entenda-se que a realidade é mediada por discursos, nada
vem a fazer sentido a não ser pela linguagem, e o gênero é o que dá forma a essa
linguagem, ou seja, o gênero é o passaporte para o conhecimento da realidade
imediata. Essa concepção de Bakhtin é outro fator importante que é a alteridade.
Através da alteridade os sujeitos refletem e refratam uma realidade linguística. Ao
absorver e negar certas vicissitudes da vida o sujeito se constrói em relação ao
outro. Tanto na constituição do sujeito quanto do discurso o outro tem papel
fundamental.
Os gêneros do discurso são produtos da atividade humana e cada esfera
social produz seus tipos relativamente estáveis com fins e propósitos definidos e por
isso eles emergem de uma esfera mais imediata como a conversação face a face, a
conversa de botequim, as cartas pessoais, as anedotas etc., a gêneros mais
elaborados da esfera discursiva como o próprio romance, o artigo científico, os
discurso jornalístico, isto é, há um dialogismo entre a infraestrutura e a
superestrutura, uma e outra refletem e refratam os discursos que circulam entre
ambas. A reprodução de um diálogo por meio do discurso direto no meio de um
romance tem fins e propósitos que não são os mesmos de um diálogo espontâneo
entre dois locutores.
Desta perspectiva, Bakhtin diz que:
O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e
escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou
daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as
condições específicas e as finalidades de cada referido campo não
só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja,
pela seleção de recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da
língua, mas acima de tudo, por sua construção composicional. Todos
esses três elementos [...] estão indissoluvelmente ligados no todo do
enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um
determinado campo da comunicação [...] cada enunciado particular é
individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus
78
tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos
gêneros do discurso. (BAKHTIN, 1997, p. 261-262).
De acordo com Bakhtin (BAKHTIN, 1997) os gêneros do discurso são
entidades relativamente estáveis, produtos da atividade humana e que se
caracterizam por seu estilo, conteúdo temático e construção composicional. Dessa
forma, cada esfera27 da atividade humana elabora tipos de discurso com relativa
durabilidade, ou seja, a cada momento a produção humana de discursos se amplia e
evolui produzindo novos gêneros e substituindo ou renovando os antigos gêneros.
Implica, portanto dizer que todo gênero (para o Bakhtin enunciado em seu sentido
amplo) deve obrigatoriamente possuir conteúdo, estilo28 e composição.
Além disso, Bakhtin classifica os gêneros do discurso em primários e
secundários. Ele diz que:
Aqui é de especial importância atentar para a diferença entre os
gêneros discursivos primários (simples) e secundários (complexos) –
não se trata de uma diferença funcional. Os gêneros discursivos
secundários (complexos- romances, dramas, pesquisas cientificas de
toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas
condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente
muito desenvolvido e organizado (predominantemente escrito). [...].
No processo de sua formação eles incorporam e reelaboram diversos
gêneros primários (simples) que se formaram nas condições da
comunicação discursiva imediata. Esses gêneros primários, que
integram os complexos, aí se transformam e adquirem um caráter
especial: perdem o vínculo imediato com a realidade concreta e os
enunciados alheios. (BAKHTIN, 1997, p. 263).
O autor dá extrema importância à questão da produção dos gêneros do
discurso, tanto que faz a diferença entre os gêneros primários, aqueles que são
produzidos nas esferas mais imediatas da comunicação, ou seja, na infraestrutura e
os complexos que são produzidos em condições mais elaboradas, ou seja, na
superestrutura. No entanto é importante salientar que essa divisão não é estática no
processo de produção dos gêneros discursivos – os gêneros complexos absorvem e
modificam os gêneros primários, dando-lhes um caráter específico dentro de sua
27
Preferimos aqui o termo “esfera” por ser mais predominante na obra do círculo bakhtiniano. 28
Brait 2007.
79
esfera de circulação e os utilizam para fins pragmáticos, tanto que até uma conversa
entre amigos sobre um fato da vida cotidiana, ou qualquer fato insignificante, pode
se transformar em uma dissertação filosófica.
Há ainda outra característica dos gêneros do discurso que é a hibridização.
Um gênero de conteúdo, estilo e composição próprios pode configurar em outro de
natureza diversa, isto é, um gênero pode se manifestar funcionalmente em outro, por
exemplo, um poema escrito em forma de uma receita de bolo; uma bula de remédio
escrita em forma de um poema, etc.
Para Bakhtin:
A modelagem das enunciações responde aqui a particularidades
fortuitas e não reiteráveis das situações da vida corrente. Só se pode
falar de formulas específicas, de estereótipos no discurso da vida
cotidiana quando existem formas de vida em comum relativamente
regularizadas, reforçadas pelo uso e pelas circunstancias. Assim,
encontram-se tipos particulares de formulas estereotipadas servindo
às necessidades da conversa de salão, fútil e que não cria nenhuma
obrigação, em que todos os participantes são familiares uns aos
outros e onde a diferença principal é entre homens e mulheres.
(BAKHTIN, 1997, p. 125).
Em Marxismo e filosofia da linguagem, no capítulo sobre a interação verbal,
há uma defesa implícita e explicita sobre os gêneros do discurso. Nessa obra
Bakhtin discorre sobre o gênero como sendo uma atividade humana que é produto
da interação entre indivíduos na sociedade. Ao defender a ideia de que todo produto
da atividade humana parte do social para o individual e deste para o social, defende
que a expressão do pensamento se dá sob formas de interação entre indivíduos seja
qual for seu lugar e os sujeitos envolvidos. Essas formas vêm a se concretizar em
enunciados reais que se organizam em um dado gênero discursivo, seja na infra ou
na superestrutura.
Todo conjunto da obra de Bakhtin se organiza em função dos gêneros do
discurso. Vejam-se os termos enunciados, texto, discurso, que aparecem em sua
obra. De alguma forma todos caminham juntos com a ideia de que toda produção da
atividade humana, em termos de linguagem, acontece por meio de um gênero
específico, seja na infra ou na superestrutura.
80
Os termos intertextualidade e interdiscursividade não estão presentes,
explicitamente, na obra de Bakhtin. Eles são inferências feitas a partir de estudos
feitos por Julia Kristeva em que todo texto é um intertexto, outros textos estão
presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis.
A função da intertextualidade e interdiscursividade no campo da linguagem é
mostrar a construção de sentidos é um processo dialógico, onde tudo já foi dito,
apenas escolhemos outras maneiras de dizer o dito, porém por meio desses
processos aparecem novos sentidos através do uso de recursos de retomada de
textos e discursos, e da memória discursiva. Dependendo do ponto de vista, ambos
os termos são a mesma coisa.
81
3. TROPICALISMO E A RETOMADA DA LINHA EVOLUTIVA DA
MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
A Tropicália, Tropicalismo ou Movimento Tropicalista foi um movimento
cultural brasileiro que surgiu sob a influência das correntes artísticas de vanguarda e
da cultura pop nacional e estrangeira, como o pop-rock e o concretismo, que
misturou manifestações tradicionais da cultura brasileira junto às inovações estéticas
radicais como a poética de Oswald de Andrade e o rock.
Esse movimento tinha objetivos comportamentais, que encontraram eco em
boa parte da sociedade, sob o regime militar, no final da década de 1960. O
movimento manifestou-se em várias correntes artísticas, principalmente, na música
cujos maiores representantes foram Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa,
Torquato Neto, Os Mutantes e Tom Zé. Um dos maiores exemplos do movimento
tropicalista foi uma das canções de Caetano Veloso, denominada exatamente de
Tropicália. Todos esses elementos da música e das artes plásticas estavam
engajados num movimento de renovação das artes em geral. Pretendia-se
experimentar novas formas de fazer arte diante da exigência social pós-moderna e
da cultura pop, pelo fato de querer tornar popular a arte nacional.
O movimento surgiu da união de uma série de artistas baianos, no contexto
do Festival de Música Popular Brasileira de 1967, promovida pela Rede Record, em
São Paulo, e Globo, no Rio de Janeiro. Esse foi um momento crucial para a
definição da Tropicália, o Festival de Música Popular Brasileira, no qual Caetano
Veloso interpretou Alegria, Alegria e Gilberto Gil, ao lado dos Mutantes, Domingo no
Parque. No ano seguinte, o festival foi integralmente considerado tropicalista (Tom
Zé aí apresentou a canção São Paulo). No mesmo ano foi lançado o disco Tropicália
ou Panis et circensis, considerado quase como um manifesto do grupo. Embora não
tenha surgido com esse nome, Tropicalismo, seus principais expoentes, Caetano e
Gil, defendem que esse nome foi muito conveniente por sermos um país tropical. A
ideia tropical sugere também uma salada de culturas, um liquidificador de acarajés
(termos usados por Caetano Veloso em Verdade Tropical, capítulo sobre a música
Tropicália).
Falar em Tropicalismo não é só reviver o passado, nem muito menos se
lembrar da época dos festivais e de Caetano Veloso e Gilberto Gil. O Tropicalismo
foi muito mais que isso. Foi uma época de rupturas, de inovação, de provocação, de
82
experimentação do novo e contestação radical da cultura, assim como a
reelaboração dessa mesma cultura.
A década de 1960 foi uma época de grande efervescência cultural, política e
luta pela liberdade de expressão, marcada pelo golpe militar e pela implantação da
Ditadura Militar e, antagonicamente, pela conservação de uma cultura acadêmica e
anacrônica que buscava na cultura nacional por si só uma consagração de uma
identidade nacional na música, no cinema, nas artes plásticas. O Tropicalismo surge
como um movimento de vanguarda, de ruptura e enfrentamento desse contexto
social imediato. Ele vai ser uma revolução para a sociedade da época.
O Tropicalismo consegue filtrar todas essas inovações e experimentações da
década de 1960 e transmiti-las através de uma música rica em contrastes de formas
e sentidos, cores, luzes e som. Muitas inovações do campo social e artístico da
época cabem no Tropicalismo, sejam elas a cultura hippie, o kitsch, o rock
americano, poesia concreta, filosofia niilista, cultura de massa (pop arte), liberdade
sexual e religiosa, novas técnicas de trabalhar a linguagem como a paródia, o
pastiche, a intertextualidade, colagens, plágio, etc.
Nesse sentido amplo podemos falar não apenas de Tropicalismo, mas sim de
tropicalismos. Como foi um movimento cosmopolita baseado em várias correntes
artísticas de cunho social e cultural, podemos também citar o Tropicalismo como arte
alienante baseada na cultura urbana e cultura de massa sem preocupações
estéticas e sociais. Tropicalismo como resgate da música popular brasileira com o
declínio do samba do morro e da Bossa Nova. Tropicalismo como arte importada
como mero exibicionismo calcado no poderio das novas estéticas e formas de
compor do rock americano, do cinema de Hollywood com seus artistas mascando
chicletes e usando jaquetas de couro. Movimento literário radical apoiado na poesia
de Oswald de Andrade e na poesia concreta dos irmãos Campos. E, por último, a
que se pretende esboçar neste texto, movimento musical de cunho estético que de
forma sincrética junta vários elementos da cultura nacional fundindo-os com
elementos da cultura internacional, especialmente os da cultura americana. Vale
salientar que todos os artistas do Tropicalismo tiveram ampla experiência na terra do
“Uncle Sam”
Os maiores expoentes do Tropicalismo foram, ambos baianos e nordestinos,
inclusive é válido dizer movimento tropical baiano, tinham tendências artísticas e
sociais se enquadravam no novo cenário do mundo pós-moderno. Cultivavam uma
83
perspectiva musical nacional que viesse resgatar a Bossa Nova de João Gilberto
que se encontrava em declínio, e ao mesmo tempo, mostrar um Brasil renovado pela
tecnologia, pela televisão e pelo rádio e com a constante urbanização de suas
cidades e alargamento dos grandes centros como o Rio de Janeiro e São Paulo,
eixo da cultura da década de 1960.
A forma de compor e cantar dos Tropicalistas trouxe para a cena o Nordeste e
o nordestino. Eles entendiam o Nordeste recriado por José Lins do Rego, Jorge
Amado, Gilberto Freire e, mais recentemente Ariano Suassuna, e outros expoentes
da literatura de 1930, estava ultrapassado. Esses autores mostram aqueles quadros
de pobreza, fome e seca e o nordestino como matuto, atrasado, violento e fiel aos
coronéis e santos do povo. Tentou-se mostrar que a modernização das cidades deu
uma nova configuração a essa gente, que na cidade grande tinha trabalho
assalariado, a mulher podia sair para trabalhar e dividir as despesas de casa, os
filhos podiam ir à escola, perdendo-se, assim, o regime patriarcal e
consequentemente o coronelismo com a saída do nordestino para a cidade.
O Tropicalismo foi um movimento musical radical de ruptura e muita polêmica,
que congrega de forma sincrética, vários elementos e tendências sociais, como por
exemplo, roupas extravagantes e coloridas, guitarras elétricas, letras de música com
sintaxe deslocada de um lado e de outro, a adoção de uma postura niilista e
existencialista, que junta Freud e Sartre, cultura popular e cultura erudita, cultura
nacional e internacional etc.
O movimento tropicalista ganhou força com os movimentos estudantis da
USP, da UNE e do DCE, que na efervescência do regime militar, tentavam romper
com algumas posturas muito presentes aqui no Brasil como a arcaização da cultura
através dos centros de cultura, do militarismo e da manutenção da cultura nacional e
do populismo. Esse movimento buscava uma ruptura com os padrões sociais
vigentes na época relativos à sociedade e à cultura, pregando a liberdade sexual, a
livre expressão do pensamento e que terá na música o seu ápice.
O Tropicalismo tentava unir o popular, o pop e o experimentalismo estético.
As ideias tropicalistas acabaram impulsionando a modernização não só da música,
mas da própria cultura nacional, numa tentativa de sincretizar a identidade nacional,
inclusive a nordestina e a renovação do discurso sobre o Nordeste de forma
discursiva, reunindo seus principais elementos representativos no campo musical.
Dessa forma, mostram em suas músicas um Brasil moderno ao lado de formas
84
musicais consideradas arcaicas pelos tropicalistas, retiradas das cantigas de roda,
do folclore e da música nordestina, especialmente de Luiz Gonzaga e Jackson do
Pandeiro, deixando explícito que a identidade do Brasil reunia de forma sincrética
todos os elementos da música nacional. Teve-se, nesta perspectiva, uma nova
visão da identidade nordestina constituída não apenas pelo discurso regionalista,
mas pela junção de vários elementos que congregavam em suas descontinuidades
saberes que poderiam ser sincretizados para criar novos efeitos de sentido.
No tocante à reinvenção do Nordeste, o Tropicalismo renovou no sentido de
mostrar as visibilidades e dizibilidades de um Nordeste que se urbanizava e rompia
com as velhas tradições de formas inventadas pelos romancistas da década de
1930. O movimento Tropicalista veio mostrar através de suas músicas que o
Nordeste defendido na literatura era uma invenção construída sobre a memória do
povo saudosista que brutalmente resistia às mudanças que afloravam na
modernidade tardia.
Nesse movimento musical sincrético com canções que compunham um
quadro crítico e complexo do País – uma conjunção do Brasil arcaico e suas
tradições, segundo Favaretto (2007), do Brasil moderno e sua cultura de massa e
até de um Brasil futurista, com astronautas e discos voadores, elas sofisticaram o
repertório de nossa música popular, instaurando em discos comerciais
procedimentos e questões até então associados apenas ao campo das vanguardas
conceituais.
A forma sincrética adotada pelos tropicalistas pretendia modernizar a música
brasileira conjugando vários elementos dessa música, como o arcaico e o moderno
convivendo juntos, formando uma só identidade sincrética. Essa modernização era a
retomada da linha evolutiva da música popular brasileira iniciada pela Bossa Nova
de João Gilberto, com elementos novos tirados da própria tropicalidade do Brasil.
Nesse sentido os Tropicalistas buscavam na música uma inovação que fosse
sincrética e inovadora e ao mesmo tempo aberta e incorporadora. O Tropicalismo
misturou rock, bossa nova, samba, rumba, bolero e baião. A festa tropicalista
quebrou o dualismo que permanecia no país como os pares idealísticos: Pop x
folclore, alta cultura x cultura de massas, tradição x vanguarda. Essa ruptura
estratégica aprofundou o contato com formas populares ao mesmo tempo em que
assumiu atitudes experimentais para a época.
85
O movimento Tropicalista não trabalhava apenas com uma noção de música,
no sentido de mostrar a identidade nacional através do monopolismo da música
popular brasileira, mas sincretizava várias formas de manifestação da música
nacional e internacional, desde as mais cultivadas como a bossa nova que naquele
momento estava em decadência, o baião de Luiz Gonzaga, o pop rock americano,
até manifestações orais da cultura popular como as modinhas de cegos de feira,
manifestações, principalmente as vindas do Nordeste brasileiro, dos quais Luiz
Gonzaga e Jackson do Pandeiro eram os expoentes máximos.
O Tropicalismo é ao mesmo tempo um movimento de inovação e
experimentação. No campo da criatividade os tropicalistas buscaram quebrar com a
linearidade das letras de suas canções, adotando uma postura concretista, ao
mesmo tempo em que no ritmo e melodia incorporavam elementos diversos, desde
o mestre violão tão cultivado pelos bossa-novistas até as guitarras elétricas29, que
eram uma inovação do rock’n’roll americano. Contra a guitarra, houve inclusive
passeatas e quebras de guitarra em plena praça, como se fosse uma verdadeira
inquisição a esses instrumentos. Isso demonstrava um apego à cultura nacional que
na época tinha deixado, muitas vezes, os Tropicalistas não sendo bem vistos pela
sociedade, ante sua proposta de renovação da cultura e da música do Brasil.
No campo da experimentação, o movimento Tropicalista buscou incorporar
várias formas de expressão em suas letras. Acontece que para muitos essas
misturas pareciam algo ingênuo, mas para eles era totalmente proposital. As
cantigas de roda colocadas no meio de uma canção tinham propósitos bem
específicos, assim como colocar “Dadá”30, tentando misturar a poesia dadaísta com
a música de Luiz Gonzaga. Em “verde dos teus olhos”, “verde mata31” se tinha um
objetivo que não era captado à primeira vista e muito menos pelo leitor comum. E
nesse sentido havia uma grande contradição quanto ao pop tão discutido pelos
Tropicalistas, já que se era para fazer uma música de massa voltada para o grande
público, eles estavam na direção oposta.
29
Vale salientar que houve na década de 1960 passeatas de protesto contra a adoção da guitarra elétrica nas músicas produzidas no Brasil, passeata das quais Gilberto Gil participou, segundo ele a pedido de Elis Regina. (Ver Nelson Motta em: Google.com/group/digitalsource/noitestropicais) 30
Movimento dadaísta. 31
Luiz Gonzaga “A volta da Asa Branca”
86
O Tropicalismo sofreu muitas influências dos movimentos de vanguarda da
época. Um dos mais marcantes são as teses do cinema novo encabeçado por
Glauber Rocha. O cinema novo tinha como pressuposto a quebra da linearidade dos
cinemas americano e italiano. Outra influência marcante foi a da poesia concreta,
movimento estético32 eclodido com os irmãos Campos.
Tudo isso era chocante para a época, quando as artes no geral, e em
especial a música, tendiam para uma uniformidade, ignorando de forma proposital
as vanguardas da época. Esse movimento que ficou conhecido como música de
protesto foi encabeçado por Chico Buarque, Geraldo Vandré, dentre outros,
buscava na cor local uma identidade nacional que representasse o Brasil lá fora
eram contrários ao movimento tropicalista. Esses artistas não concordavam com os
elementos de vanguarda iniciados pelo movimento Tropicalista, que queria
justamente opor-se a essa forma de encarar a realidade nacional e mostrar outras
formas de manifestar o Brasil na era da modernidade tardia.
O movimento da cultura pop da época vinha ao encontro justamente com as
ambições de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Havia grande contestação da arte
acadêmica, buscando-se nos movimentos de massa outras manifestações culturais
que fomentassem e abastecessem os intelectuais, principalmente os filósofos da
escola de Frankfurt. A base da filosofia moderna se pautava da filosofia do
imediatismo, o niilismo nietzschiano e a total descrença nas coisas do mundo.
Essa virada para as massas era uma forma de ver o mundo não como
representação ideológica, mas algo empírico a ser testado, consumido, dilacerado.
As coisas tinham, agora, cor, forma e sabor que não se tinha antes de forma tão
explica com o jogo de cores e formas que tumultuava o cinema, a pintura, as artes
plásticas e, principalmente, a música. Esses elementos, agora, encarados como arte
tinham uma organização que seguia a atitude do seu criador, eram objetos
superpostos, materiais reciclados empilhados em paredes, músicas como Tropicália
de Caetano Veloso símbolo do manifesto tropicalista, tinham uma organização
icônica, no qual som e letra eram uma coisa só e, quando não isso, a desarmonia
proposital, à procura de novos efeitos de sentido no espectador.
Nesse sentido a letra da música era um emaranhado de temas e figuras que
caminhavam para uma mesma arquitetura textual, na organização do texto musical,
32
Poesia Concretista dos irmãos Haroldo de Campos e Augusto de Campos.
87
que para produzir efeitos de sentido fazia-se necessário realizar vários
procedimentos como raciocínios dedutivos, inferências dos enunciados buscando
uma convergência no campo geral da formação discursiva. Essa superposição dos
elementos que compunham a música, embora seja uma nova forma de dizibilidade
do saber, também é uma forma concreta de assimilar formas tão díspares das letras
tropicalistas. Nessa perspectiva os elementos que davam harmonia ao enunciado no
sentido da produção do sentido desejado ou partilhado pelos ouvintes se davam
pelo tema, pela remissão intertextual a outros enunciados do mesmo campo do
saber ou da mesma formação discursiva, pela paródia etc.
Primeiro com a noção de ruptura, ou seja, romper com os padrões culturais
da época como, por exemplo, a identidade que os governos totalitários tentavam
incansavelmente sedimentar no país, como o governo de Getúlio Vargas e dos
militares que assumiram o Brasil depois do golpe de 1964. Esses governantes de
base arcaica tentavam mostrar o Brasil arcaico com suas tradições culturais típicas
de país subdesenvolvido, insurgindo-se contra toda e qualquer manifestação que
aceitasse ideias estrangeiras no Brasil, algo muito contraditório, já que o capital
estrangeiro já estava bem avançado na área portuária, automobilística e na
construção de navios, ou seja, permitia-se o avanço científico e tecnológico, mas
pretendia-se deixar a mentalidade do povo séculos atrás.
Os Tropicalistas contestavam radicalmente a identidade daquele Brasil muitas
vezes, atrasado, cafona e servil ao capitalismo selvagem, mas ao mesmo tempo
almejavam mostrar um Brasil culturalmente misto com produções musicais e
literárias do norte e do sul sem excluir sob a noção da pseudo-academia brasileira
de letras o que era produzido na espontaneidade do povo nordestino que se
aglomerava as vilas de São Paulo. Sincretizar ideias da vanguarda cultural com
elementos primitivos da origem do homem com elementos tecnológico importados foi
a grande visão Tropicalista: misturar elementos de diferentes origens e encontrar
neles uma unidade de sentido, para que este trabalho de dessacralização da cultura
conseguisse renovar o discurso sobre o Nordeste e a identidade nordestina.
88
3.1 Sincretismo cultural e religioso
O termo sincretismo (do grego συγκρητισμός, originalmente "coalização dos
cretenses", composto de σύν "com, junto" e Κρήτη "Creta") “é uma fusão de
doutrinas de diversas origens, seja na esfera das crenças religiosas, seja nas
filosóficas” (www.google.com.br). Foi utilizado inicialmente por Plutarco em sua obra
Opera Morales, capítulo VII, amor fraterno, se referindo aos habitantes de ilha de
Creta que tendo inimigos comuns, deixaram suas divergências de lado, religião,
deuses, ideologias e território pra juntar-se para vencer seus inimigos.
Embora a origem do termo remonte, originalmente, a Ilha de Creta e a
posição assumida por seus habitantes durante certo período de dificuldade, o termo
sincretismo pode designar outras formas de dizer que, uma cultural ou religião ou
mesmo partidos políticos, podem assumir postural distintas e juntar elementos
dispares em nome de sua organização.
Para o dicionário Michaelis online “sin.cre.tis.mo s.m (gr
sygkretismós) 1 Filos Sistema que combinava os princípios de diversos
sistemas. 2 Amálgama de concepções heterogêneas; ecletismo. 3 Gram Fenômeno
de uma forma linguística ou de uma desinência acumular várias
funções. 4 SociolFusão de dois ou mais elementos culturais antagônicos num só
elemento, continuando, porém, perceptíveis alguns sinais de suas origens diversas.”
(www.michaelisonline.com.br).
Apesar da várias concepções sobre o vocábulo sincretismo, a acepção 4
parece-se a mais viável para a defesa aqui defendida. Sincretismo é juntar
elementos culturais distintos para formar um terceiro elemento. Este, embora seja a
fusão de várias formas sincretizadas, permite-se observar os sinais perceptíveis dos
elementos sincretizados.
Através dos conceitos expostos acima, observa-se que o sincretismo é uma
maneira de se juntar elementos em várias correntes de pensamento, seja na
religião, seja na cultura, na filosofia, na Linguística, etc. O sincretismo, dessa forma,
apresenta-se como uma síntese de várias formas de encarar a realidade ao juntar
de forma harmoniosa elementos heterogêneos.
O sincretismo é também uma forma de dizer que não há puritanismo nas
coisas do mundo, seja na religião, nas artes, na filosofia, porque cada forma de
89
pensamento está contaminada por diversas outras correntes de pensamento e/ou
doutrinas, que fazem com que nada se mostre como sendo puro. Pensando dessa
forma, pode dizer que nenhuma cultura ou religião sejam originais ou puros, porque
em algum ponto do passado houve a fusão de outros elementos que se agregaram
de forma sincrética no que se tem sincronicamente.
Exemplificando o sincretismo dentro da religião: a Religião católica Apostólica
Romana realiza celebrações anuais como o São João, Natal, que na sua origem
eram festas pagas, realizadas antes da oficialização do cristianismo por Constantino.
Em nome das tradições, sincretizou-se muitas festas e rituais pagãos e católicos
como o Natal, por exemplo, que celebram o nascimento de Jesus Cristo, quando na
verdade o dia 25 de dezembro é em homenagem ao deus Sol dos latinos, enquanto
que Cristo tenha nascido provavelmente entre março e abril. A festa de São João
está ligada à fertilidade da terra que era celebrada em homenagem a Apolo, na
Grécia, e a Minerva em Roma. Ambas as festas foram sincretizadas e adotadas
pelo cristianismo como festas sagradas, quando em sua origem eram festas pagãs
em homenagem aos deuses pagãos.
Muitas religiões, como os Testemunhas de Jeová temem ao sincretismo
cultural de modo que não celebram nenhuma festa que não seja citada na bíblia, por
entenderem que boa parte das festa e rituais, são cultos a deuses pagãs da
mitologia grega e romana.
Na cultura o sincretismo atua como um catalisador de manifestações
culturais, ao juntar elementos distintos em sua forma de representação e
homogêneo em sua forma de ligação com outras manifestações culturais. No Brasil
especificamente, o sincretismo é uma forma de juntar as diversas manifestações da
cultura, seja ela popular ou erudita, letrada ou iletrada, do sul o do norte em um
único bloco compacto e sincretizado. Isso ocorre devido á heterogeneidade da
cultura brasileira e a dimensão territorial do Brasil.
O Tropicalismo foi um movimento musical e cultural que trabalhou o
sincretismo com mais profundidade, ao juntar elementos culturais de várias partes
do país em suas canções, tentando mostrar que a cultura e a música do Brasil não
de uma única região, mas que todas contribuem à sua maneira para o
enriquecimento da cultura do país. Ao fazerem isso, os Tropicalistas renovaram a
música e a cultura do Brasil, já que o elemento sincretizado é sempre algo novo em
relação às partes que o constituíram.
90
3.2 Tropicalismo e Ditadura Militar: carnavalização, paródia e a
constituição de novos efeitos de sentidos.
A Ditadura Militar foi um período que se iniciou com o famoso Golpe de 1964,
ano em que os militares, provisoriamente, assumiram os destinos políticos do Brasil.
O país na época enfrentava problemas internos na política, na economia e no
conjunto de valores que o mundo depois da Segunda Guerra Mundial trouxe para os
países. O sistema político da época já não atendia às expectativas de determinados
segmentos da sociedade como os militares, alguns setores mais conservadores, o
empresariado, os latifundiários, setores da classe media e da Igreja Católica, se
aproveitando dessas fraquezas da política nacional, iniciaram um boicote que
culminou com o golpe de 1964. Toda essa perspectiva gerada nesses momentos de
tensão na política se baseava, primeiro, na retomada do desenvolvimento e
investimento no Brasil, inclusive com capital e empresas estrangeiras e na
manutenção da nossa cultura e de nossa identidade nacional.
A ideia do Golpe Militar era se manter um grupo de lideres militares pergunta
provisoriamente assumindo no comando do país até que aparecesse alguém capaz
de governar o país. Na realidade a intenção era governar o Brasil com mãos de
ferro, restringindo vários setores da sociedade sob uma pretensa e aparente
censura, que mais tarde serão os porões da morte e do sofrimento dos cidadãos que
aspiravam um país melhor.
A ditadura militar representou não um dos períodos mais negros da história do
Brasil em termos sociais, no sentido restritivo, da opressão, assassinatos, sumiço de
pessoas, mas também um retrocesso no processo de alavancamento da cultura e da
liberdade de expressão.
Foi nesse período que artistas de muitas áreas tiveram sua cidadania e sua
nacionalidade cassadas. Os AIs eram publicados sempre que algumas situações
fugiam ao controle dos militares, a maioria deles para conter as guerrilhas de
cidadãos que não aceitavam o golpe e dos supostos atentados terroristas que se
dizia que iam acontecer no Brasil e que, no entanto, não passaram de álibi para
conter situações arriscadas, tudo isto porque não permitiam serem criticados, nem
sequer questionados em suas posturas autoritárias e de moral inquestionável. A
censura bloqueava qualquer manifestação até mesmo as mais ingênuas sejam no
91
campo das artes plásticas, no cinema e principalmente na música, já que com a
cultura de massa que estava sendo gerada pela televisão, a música era uma arma
muito perigosa.
O Brasil da época se encontrava numa situação em que se lutava muito com
as ideias de moderno e o arcaico, ou seja, havia um grupo de pessoas que
aspiravam manter a cultura nacional intacta, produzindo apenas do que fosse
nacional em termos culturais, e outro grupo, como, por exemplo, os Tropicalistas
queriam renovar a cultura e arte do país através do sincretismo cultural e da mistura
de cultural. De um lado estavam aqueles que queriam que o Brasil entrasse na era
moderna copiando e consumindo os frutos da modernidade e, ao mesmo tempo
assimilando as novas ideias do mundo globalizado, renovado pela tecnologia,
liberdade de expressão, liberdade sexual, libertação das classes menos favorecidas
e industrialização e deixando de ser um país meramente agrário. Do outro lado
estavam alguns generais e aristocratas que ansiavam manter o Brasil com suas
tradições locais e nacionais, fugindo da globalização e da importação de cultura, e
ao mesmo tempo, tentando acelerar o crescimento industrial, que para muitos
representou o chamado milagre econômico que hoje se traduz como “endividamento
do país”. Era uma situação ambígua: os militares ao mesmo tempo em que tentavam
manter o país fora das influências da globalização, abria espaço para as indústrias
se instalarem para fortalecer a economia do país.
Se por um lado alguns militares e políticos queriam manter nossa cultura
intacta e sem as influências dos meios internacionais, do outro lado havia
intelectuais que estavam bem acomodados com isso, apenas não aceitavam a
questão da censura dos meios de comunicação, do fechamento de universidades e
diretórios estudantis. A questão é que tudo girava em torno de um certo arcaísmo e
saudosismo por parte da ditadura e de alguns intelectuais.
De alguma forma a ditadura se instaurou no Brasil para salvação econômica
do país, no entanto é com ela de quebra surgiram algumas restrições à liberdade de
expressão, embora isso por si só não tenha sido o fim dos direitos individuais e
coletivos dos cidadãos, mas incomodou bastante uma legião de artistas, músicos,
políticos de esquerda e direita e os universitários, etc. O milagre se converteu em
tortura e perseguição política, prisão de jovens artistas e universitários, inclusive
incêndio do diretório da UNE e da USP.
92
Segundo Elio Gaspari:
No Brasil, os órgãos de segurança provinham da desordem e do terrorismo, eram parte de um complexo projeto subversivo, derivado da anarquia militar. A tortura sancionada pelos oficiais-generais a partir de 1968 tornou-se inseparável da ditadura. Não há como entender os mecanismos de uma esquecendo-se a outra. De um lado a tortura dá eficácia à ordem ditatorial, mas de outro condiciona-a, impondo-lhe adversários e estreitando-lhe o campo de ação política. Quando a hierarquia se dá conta de que o custo dos porões é maior que seus benefícios, ela vai ao manual e decide desativar a engrenagem. Recebe de volta a conta do seu erro. (GASPARI, 2002, p. 24)
A tortura se tornou uma ferramenta para correção dos subversivos dentro do
aparelho da ditadura militar. Essa ferramenta foi implantada sob a suposta ameaça
terrorista que, segundo os militares, tinha se implantado no Brasil. Toda a força
utilizada pela ditadura sob forma de tortura era um aparelho que pretendia manter a
ordem para os subversivos, satisfazer as altas autoridades da manutenção de seu
poderio bélico e manter o país sob pressão por meio da brutalidade e dos
assassinatos de lideres de movimentos subversivos. Na maior parte das vezes era
só uma forma de controle, já que não havia nada de ameaça terrorista, a tortura era
uma forma cruel de manter-se no poder a qualquer custo.
Havia nesse ínterim, uma relação muito íntima entre o porão, a delegacia e o
quartel, o torturador, o torturado e as forças armadas. No geral se dizia que não
sabiam de nada e se acontecia tortura era de forma escondida e muito esporádica.
Ao torturador, normalmente, lhe era apagada a identidade, ninguém sabia quem era;
podia ser um doente da corporação, um sóciopata cuja identidade ninguém
conhecia, onde e como vivia. “O torturador maluco, vítima de uma perversão, é em
geral um produto da fantasia política. Para a ditadura, funciona como álibi. Permite-
lhe ter em mãos a tese da insanidade do agente para salvar a honra do regime se
algum dia a oposição conseguir provar os suplícios e identificar os torcionários.”
(GASPARI, 2002, p. 21).
Muitos generais negaram criteriosamente conhecer o que acontecia nos
porões das delegacias e, realmente, alguns desconheciam. No entanto, é pouco
provável que eles realizassem a tortura, mas se sabiam é outra coisa. “Um exemplo
da dissimulação dos hierarcas pode ser encontrado numa explicação do ex-
presidente João Baptista Figueiredo, em 1996: ‘Se houve a tortura no regime militar,
93
ela foi feita pelo pessoal de baixo, por que não acredito que um general fosse capaz
de uma coisa tão suja, não aceito isso’ Ou ainda nas memórias do ministro Jarbas
Passarinho: ‘Praticaram-na clandestinamente’”. (GASPARI, 2002, p. 20-21).
A ditadura chegou ao seu ápice com a publicação do AI-5 de 1969. Com ele
foram cassados todos os direitos individuais e coletivos dos cidadãos, o estado se
torna superior ao indivíduo e se legaliza a tortura, que na maior parte das vezes
ficava acanhada nos porões e nos lugares mais sórdidos e fétidos do país. Ao lado
das alegrias da Copa do Mundo de 70, da entrada dos televisores a cores no país e
da crescente taxa de emprego, aparecem os chamados anos de chumbo33, que
foram mais chumbo do que milagre econômico.
Caetano foi preso em um desses quartéis sob a suspeita de subversão e
participar de uma guerrilha secreta. Foi humilhado, tendo que cantar para o quartel
com o cano do fuzil nas costas; teve que mentir para proteger Gilberto Gil, das
garras do DOPS34 e foi exilado. Sua prisão e sua deportação foram devido à censura
que em posse de seu material escrito e fonográfico acreditavam estar ali o incentivo
à subversão contras as forças armadas. Não era totalmente mentira, pois as
músicas realmente falavam de elementos que lembravam ditadura, só que de forma
bem elaborada e bem discreta. Na música Tropicália aparecem alguns termos como
fuzil, O monumento não tem porta/A entrada é uma rua antiga/Estreita e torta/E no
joelho uma criança/Sorridente, feia e morta/Estende a mão...” “E no jardim os urubus
passeiam/A tarde inteira.
Embora o projeto Tropicalista fosse a retomada da linha evolutiva da Música
Popular Brasileira e a renovaçao da culttura e da identidade do país como um todo,
eles não fugiram à briga política, gastando muito de suas energias no combate à
33
A expressão anos de chumbo foi inicialmente pronunciada na Europa com a guerra fria e a tensão bélica entre países de regimes políticos e econômicos distintos, como os países capitalistas e os países socialistas. Essa expressão também foi bastante utilizada durante o período mais repressivo da Ditadura Militar no Brasil no Governo de Médici, que vai do final de 1968 a 1974. Embora seja uma expressão generalizada que marca uma época, no Brasil ela é atribuída ao general Médici devido à feracidade com que combateu as guerrilhas de extrema esquerda e extrema direita, que praticavam ações revolucionarias, inclusive assassinatos e assaltos em prol da libertação do país. Fizeram parte dessa militância pessoas hoje muito importantes como a Presidente Dilma Rousseff, José Genoíno e José Dirceu. 34
O Departamento de Ordem Política e Social foi criado em 1924, mas foi de grande utilidade durante o Estado Novo e a Ditadura Militar. Era o órgão responsável pela represália contra à subversão a ordem social e politica do país. Recebeu várias denominações como DEOPS e DELOPS , mas foi a
sigla DOPS que ficou consagrada. Esse departamento foi extinto em 1983, pelo então Presidente João Baptista Figueiredo.
94
repressao militar que se intaurou no Brasil a partir de 1964. Com um discurso
polissêmico e carnavalizado35, os Tropicalistas conseguiram mexer politicamente
com os militares, através de uma música nova, recheada de metáforas e palavras de
múltiplos sentidos, que embora fosse difícil de ser interpretada pelos agentes da
censura, era perfeitamente compreeensível ao público estudantil e universitário da
época.
As músicas tropicalistas, além de seu caráter subversivo ao regime militar
ainda conseguiam denunciar as injustiças sociais de algumas regiões como o
Nordeste, o que representa uma retomada do ideário do Cinema Novo de Glauber
Rocha no filme Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe. Suas denúncias
não só instigaram um olhar diferente ao Nordeste, mas também renovaram as artes,
a cultura e a identidade do nordestino ao trazê-lo para o debate ideológico na
música moderna, tecnologizante e de cunho cosmopolita e como parte integrante de
uma nação arcaica e rural que resistia ao desenvolvimento tecnológico e os
movimentos de vanguarda do mundo exterior.
3.3 Antropofagia e Tropicalismo: intertextualidades
O termo intertextualidade ou relação entre textos, aparece pela primeira vez
na obra do filósofo russo Mikhail Bakhtin, através dos estudos de Julia Kristeva.
Inicialmente, este trabalho surge no âmbito da literatura como o “Cruzamento num
texto de enunciados tomados de outros textos” (SAMOYAULT, 2009, p. 15), uma
noção um pouco vaga e imprecisa dada às várias formas de intertextualidades e da
complexidade deste termo. Isto porque a intertextualidade como simples retomada
de outros textos já era algo bem recorrente antes do surgimento desse termo, já
que em tese nenhum texto surge do nada, sendo, portanto, fruto da leitura e
retomada de qualquer texto que lhe sirva de base, inspiração ou cópia.
A intertextualidade toma liames mais amplos quando se observa que a
simples retomada do autor, do texto e do estilo do autor e da relação deste com seu
leitor vai ser também uma forma de intertextualidade. Desta forma, a interseção do
35
O discurso carnavalesco quebra as leis da linguagem censurada pela gramática e pela semântica e, por este motivo, é uma contestação social e política: não se trata de equivalência, mas de identidade entre a contestação do código linguístico oficial e a contestação da lei oficial. (KRISTEVA, 1969, p. 63.)
95
leitor com a obra lida e retomada de sua memória (lúdica, melancólica, social
individual, etc.) também é uma forma de intertextualidade.
Segundo Kristeva:
a palavra (o texto) é um cruzamento de palavras (de textos) onde se
lê, pelo menos uma outra palavra (texto). [...] todo texto se constrói
como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de
um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a
de intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como
dupla. (KRISTEVA, 1969, p. 64)
Segundo a autora, todo texto, por mais simples que seja, incorpora outros
textos, já que a ideia de um texto único, autêntico e original inexiste, pelo fato da
cultura ser uma interpretação da realidade, que nos é mostrada através de signos,
isto é, a cultura é mediada pelo simbólico. Nessa perspectiva, se tem o texto não
apenas como absorção ingênua de outros textos, mas uma intencionalidade que
transforma o texto-fonte, buscando-se novas formas de dizer e de significar. A
intertextualidade para autora é de mão dupla.
Para Brait, a intertextualidade é “Qualquer referência ao Outro, tomando como
posição discursiva: paródias, alusões, estilizações, citações, ressonâncias,
repetições, reproduções de modelos, de situações narrativas, de personagens,
variantes linguísticas, lugares comuns, etc.” (BRAIT, 2008, p. 165). A
intertextualidade, neste sentido, não é simplesmente retomar um texto tal qual sua
fonte, ou citá-lo indiretamente, mas qualquer forma de retomada, a simples remissão
pode ser um efeito de intertextualidade.
Para Samoyault:
O termo intertextualidade foi tão utilizado, definido, carregado de sentidos diferentes que se tornou uma noção ambígua do discurso literário; com frequência, atualmente, dá-se preferência a esses termos metafóricos, que assinalam de uma maneira menos técnica a presença de um texto em outro texto: tessitura, biblioteca, entrelaçamento, incorporação ou simplesmente diálogo. Ele apresenta, no entanto, a vantagem, graças a sua aparente neutralidade, de poder agrupar várias manifestações dos textos literários, de seu entrecruzamento, de sua dependência recíproca. A literatura se escreve certamente numa relação com o mundo, mas também apresenta-se numa relação consigo mesma, com sua história, a história de suas produções, a longa caminhada de suas
origens. (SAMOYAULT, 2009, p. 9)
96
A intertextualidade, nesse sentido vai além da simples retomada ipsis litteris;
ela representa todo um conjunto de textos que são retomados por outros, sua
arqueologia, e seus processos de retomada. No campo literário se manifesta como
uma dependência que pode se referir a si, à história e as suas fontes originais. No
campo da linguagem ordinária apresenta-se sob a forma de retomadas textuais que
podem ser mais explícitas e menos explícitas.
A intertextualidade explícita é aquela em que seu autor cita textualmente a
fonte de seu trabalho, seja como confirmação de sua tese, segurança em alguém
que estudou melhor o assunto. A intertextualidade implícita está mais no campo da
literatura, em que o autor, com certa autonomia poética mistura sua visão de mundo
às de determinado autor produzindo um novo texto que é a junção de um ou mais
textos e que só são percebidos por especialistas da área. Por meio da criatividade,
algumas formas e discursos ficam, muitas vezes, imperceptíveis36. Esse tipo de
recurso é muito utilizado pela mídia e pela propaganda publicitária.
De forma análoga, a referência propriamente dita como a citação, a paródia, a
colagem e o plágio se tornam um tipo de intertextualidade, já que estes recursos
estão disponíveis, muitas vezes, na alma da criatividade do escritor/leitor na hora de
escrever/ler uma obra literária. Desta forma, a intertextualidade não estaria apenas
no campo meramente da chamada cópia, ou simplesmente da citação de tal autor,
mas ela se tornou um elemento imprescindível, na verdade uma ferramenta do
leitor/escritor e a atribuição de sentidos a sua obra e ao texto lido.
Neste sentido, qualquer obra literária e os textos em geral são todos
intertextos já que nenhum texto nasce do nada, mas da relação com algo já
existente, seja no mundo textual, seja o mundo extratextual, todos servem de
hipotexto para a elaboração do hipertexto.
A intertextualidade só se torna possível graças ao dialogismo que é a vida da
linguagem e um dos processos de produção de textos e ideias. Esse processo é a
força motriz que move a constituição dos sentidos na linguagem, “O dialogismo é
inerente à própria linguagem [...] ‘o diálogo é a única esfera possível da vida de
linguagem’” (KRISTEVA, 1969, p. 66). Para a autora a intertextualidade só se torna
36
Na música Tropicália, Caetano Veloso faz referência explícita à música Luar do Sertão de Catulo da Paixão Cearense, quando retoma os trechos o monumento/é de papel crepom e prata/os olhos verdes da mulata/a cabeleira esconde/atrás da verde mata/o luar do sertão.
97
possível graças ao poder de diálogo entre as obras e entre os autores; sem isso a
linguagem seria morta e sem processos de recriação do mundo das ideias.
Para que as relações de significados se tornem lógicas e possuam sentido, é
necessário que ela ganhe corpo num tipo de discurso, ganha uma existência de
modo que nela apareçam às relações dialógicas e de efeitos de sentido e seu autor,
e embora este último seja tão importante para a vida da linguagem, precisa do
estatuto do outro, pela qual é povoada a linguagem. Sem o outro a linguagem
também não existe, e se existisse seria monológica.
Embora o dialogismo seja o elemento principal para renovação da linguagem,
dos processos de retomada, ele sempre acontece entre discursos, “O dialogismo é
sempre entre discursos. O interlocutor só existe enquanto discurso.” (BRAIT, 2008,
p. 166), ou seja, pelo dialogismo um discurso retoma o outro, ou um discurso cita o
outro. Dessa forma podemos falar em interdiscursividade como um processo mais
amplo que a intertextualidade. “A noção de alteridade é decisiva para estabelecer
esse movimento dos textos, esse movimento da linguagem que carrega outras
palavras, as palavras dos outros.” (SAMOYAULT, 2009, p. 20).
Para Samoyault:
Esta (intertextualidade) propõe uma árvore com galhos numerosos, com um rizoma mais do que uma raiz única, onde as filiações se dispersam e cujas evoluções são tanto horizontais quanto verticais. É impossível assim pintar um quadro analítico das relações que os textos estabelecem entre si: da mesma natureza, nascem uns dos outros; influenciam uns aos outros, segundo o princípio de uma geração não espontânea; ao mesmo tempo na há nunca reprodução pura e simples ou adoção plena. (SAMOYAULT, 2009, p. 9)
Segundo a autora, a intertextualidade é uma árvore com várias ramificações
que se dispersam em filiações horizontais e verticais. Através dela é possível se ter
um quadro analítico das gerações de textos que influenciaram o surgimento de
outros textos e movimentos culturais e literários. Isso por que essa retomada não é
uma simples colagem ingênua, mas um amplo processo de trabalho sobre o material
histórico que compôs e compõe a obra dos escritores.
É dessa forma que a obra poética do escritor modernista Oswald de Andrade
representa um marco na literatura brasileira, dada a sua alta frequência de
intertextos com outros textos literários da época e também de outras, como é o caso
da Carta de Caminha A retomada de outros textos, parodiando autores, fazendo
98
pastiche, deboche e crítica são os recursos do autor modernista na elaboração de
sua obra. Ele não só copiou, mas inaugurou uma nova forma de escrever e pensar
sobre a literatura. Para Kristeva "Esta dinamização [...] só é possível a partir de uma
concepção, segundo a qual a “palavra literária” não é um ponto (um sentido fixo),
mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de diversas escrituras: do
escritor, do destinatário (ou da personagem), do contexto cultural atual ou anterior”.
(KRISTEVA, 1969, p. 62)
A radicalidade de Oswald de Andrade, mais especificamente, no campo da
linguagem, fez o precursor de várias correntes de pensamento em termos estéticos,
tanto na literatura como nas artes em geral. A forma de compor poemas desde os
menores a uns poucos extensos, a exploração de outras formas de ver, ler e
escrever poemas utilizando recursos sensoriais na busca de uma linguagem mais
simples, primitiva, mas também altamente significativa.
Buscando romper com uma tradição discursiva, elitista e parnasiana e
acadêmica, Oswald de Andrade inaugura uma nova forma de fazer literatura,
mesclando elementos da cultura nacional com elementos da cultura estrangeira. Sua
ideia não era simplesmente a absorção ingênua do elemento exterior, mas segundo
o poeta uma devoração da cultura do colonizador para obter os “poderes que o seu
inimigo dispunha”, (MALTZ; TEIXEIRA; FERREIRA, 1993, p. 58) semelhante a um
ritual antropofágico; entenda-se, antropofágico, não como mero artefato canibalista,
na devoração nua e crua dos inimigos capturados pelos índios. Nesta perspectiva
Oswald pretendia chegar à alma primitiva do homem, fazer um tipo de poesia
natural, “a língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição
milionária de todos os erros” (ANDRADE, 1928), que viesse sem enfeites retóricos,
mas brotasse da própria linguagem natural do homem. Algo que, metaforicamente,
viesse do inconsciente freudiano, brotando tal qual nascia sem necessidade de
arrumação da linguagem.
Os movimentos das ideias oswaldianas tomaram corpo num outro movimento
iniciado em 1967 por um grupo de universitários, que, cansados das velhas formas
da arte e da cultura do país, desta vez, as musicas (embora esses músicos se
considerassem tanto poetas quanto músicos) pelo qual foi conhecido como
Tropicalismo, propuseram a renovação da cultura e das artes do Brasil por meio da
deglutição cultural e mistura de culturas de outras partes do mundo.
99
Esse movimento pretendia a retomada da linha evolutiva da música popular
brasileira, calcada na bossa nova de João Gilberto, no Cinema Novo de Glauber
Rocha, no teatro de Hélio Oiticica, nas manifestações da cultura oral, em Luiz
Gonzaga e, principalmente, na poética radical de Oswald de Andrade.
Os Tropicalistas iam apoiar-se tanto no Movimento Pau-Brasil, como no
Movimento Antropofágico, este último tomado com mais vigor, dado o contexto
social da época: o contraste entre um Brasil rural decadente e uma industrialização
de massa emergente, ou seja:
estão em geleia geral à sugestão (e aqui a apropriação do estilo: um discurso descritivo ou narrativo é substituído pelo imagístico) da favela, da cultura de massa, do folclore, da natureza tropical, do mestiço, da arte colonial brasileira, da psicologia do povo (alegria e cordialidade, resíduo das virtudes naturais de que fala o primitivismo e o matriarcado de Pindorama) e da sociedade industrial. Imagens, à maneira oswaldiana, articulada por uma sintaxe fragmentada, telegráfica, de versos e imagens justapostos, responsável pela
desorganização do discurso linear. (MALTZ; TEIXEIRA; FERREIRA,
1993, p. 36).
A proposta dos Tropicalistas, como afirmam Teixeira e Ferreira, era a de se
apropriar de um discurso imagístico em que aparecessem as mais distintas camadas
sociais, como uma geleia ou mesmo uma mistura antropofágica de vários elementos
da cultura, na tentativa de renovar o discurso acadêmico e formal por um que
falasse a língua do povo, que fosse ao primitivismo das formas e das cores do
mundo empírico. Além disso, pretendiam misturar essas formas da sociedade, tanto
as eruditas como aquelas de caráter popular com a sociedade industrial. Essas
imagens propostas pelos Tropicalistas na mesma esteira discursiva de Oswald de
Andrade gerariam uma linguagem concreta, fragmentada e cheia de vícios do povo,
numa tentativa de desorganizar o discurso linear e oficial para renovar o campo da
cultura e das artes do país.
3.4 Os manifestos: Antropofágico e Tropicalista37
37
Não há um manifesto tropicalista por ele mesmo, assim como o Manifesto Comunista, o Manifesto Antropofágico, apenas fazendo uma analogia através da memória discursiva que, já que os Tropicalistas retomaram a poética de Oswald de Andrade, também fizeram um manifesto em prol da música e da cultura do Brasil, que acredita-se que seja Tropicália, inclusive para a defesa deste trabalho. Como o manifesto era em prol da música, interessante é que ele também seja uma música.
100
Oswald de Andrade lança o manifesto antropofágico como o símbolo do
nascimento da história do Brasil. No dia 1º de maio de 1928, Oswald dizia que nossa
história tinha se iniciado há 374 quando nesse ano o Bispo de sobrenome Sardinha
havia sido devorado por índios aqui no Brasil.
Segundo Maltz, Teixeira e Ferreira:
A palavra Antropofagia evoca desse modo toda uma ideia trazida das raízes brasileiras do parente índio, a cerimônia de apropriação do outro, uma não submissão, um introduzi-lo e degluti-lo. Sabe-se que o ritual Antropofágico faz parte da ideia de apropriação do outro, “comer” o inimigo para dele abastar-se, assimilar o Outro para dele aproveitar suas virtudes, e nesse sentido, os modernistas foram pontuais na valorização desse conceito e criam a problemática da Antropofagia no sentido da assimilação da arte que vem das vanguardas europeias, propondo absorvê-la e recriá-la, não na acepção de “engoli-la” e reproduzi-la. Era essa a chave da ideia modernista na semana de 22, embutir em nosso país uma “nova” maneira do fazer arte; era a concepção de encarar, conhecer e recriar que gostariam que se mantivesse nos trabalhos produzidos
por quem representava a cena da vanguarda brasileira. (MALTZ; TEIXEIRA; FERREIRA, 1993, p. 23).
Este marco datado por Oswald vem de sua radicalidade em querer pegar as
coisas pela raiz, ou seja, marcar a história do Brasil a partir de um ritual simbólico38
entre muitas tribos do Brasil Tupiniquim, devorar o inimigo, não por simples
devoração, mas para absorver os seus poderes. Oswald também pretendia a uma
devoração só que em termos culturais e linguísticos, ou seja, deglutir a cultura
europeia e a partir disso produzir a nossa “O canibalismo de Oswald de Andrade
teria ainda, segundo alguns autores, nítido compromisso especialmente com a
tendência mais destrutiva das vanguardas europeias Dadá.” (MALTZ; TEIXEIRA;
FERREIRA, 1993, p. 19). E a destruição de Oswald de Andrade, neste sentido, está
em “destruir para depois construir em cima” e não uma mera atitude puritanista de
eliminar a cultura europeia em prol de uma cultura eminentemente nacional. O que
estava em jogo era apropriar-se desse material estético- ideológico e dele fazer uma
geléia geral com a cultura nacional e a partir daí produzir algo dignamente,
renovado.
38
Fala-se aqui em simbólico porque não está se falando de antropofagia no sentido antropológico das coisas, mas sim em termos de linguagem e cultura.
101
Maltz, Teixeira e Ferreira, (1993, p. 11), alertam:
Há que se cuidar, portanto, para não cair na interpretação ligeira de senha antropofágica adotada por Oswald como sinônimo de festival canibalista – em que se matava e comia o inimigo por gula ou vingança -, o que reduziria a metáfora antropofágica ao simples ato literário de destruição, quando, na verdade, opera-se nesse ato um processo dialético. Destruir para construir em cima. Deglutir para, de posse do instrumental do “inimigo”, poder combatê-lo e superá-lo. Deglutir o velho saber, transformando-o em matéria-prima de novo.
As ideias desse movimento, que é uma continuação do Movimento Pau-
Brasil, era absorver a cultura estrangeira e a acadêmica do parnasianismo (como
paródia, deboche, etc.) e adaptá-la ao Brasil da época39. No entanto, a cena
antropofágica de Oswald de Andrade não era um ritual canibalista onde os índios
comiam seus inimigos. Há que se ver essa perspectiva oswaldiana como um
fenômeno da destruição da cultura estrangeira por meio da assimilação ativa e
depois construir uma identidade nacional. O que se pretendia para Oswald de
Andrade era transformar o velho em novo, ou seja, assimilar tudo o que foi dos
antepassados e transformar junto com o novo a matéria-prima da obra poética e da
identidade nacional.
Numa das partes escritas do Manifesto Antropofágico Oswald inicia com “Só a
antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do
mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os
coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi
that is the question.” (ANDRADE, 1928). Parodiando Hamlet “To be, or not to be,
thatisthequestion” 40 de Shakespeare num ato de pôr em questão, o fato de nossa
religião e de todos os nossos costumes vindos do além-mar, Oswald põe em xeque
a cultura indígena sobre a letrada, no fato de que, o tupi enquanto povo e língua
remetem-nos ao passado antropofágico da língua original do Brasil. O Tupi seria a
língua que nos uniria “Socialmente. Economicamente. Filosoficamente” (ANDRADE,
1928), metonimicamente, a língua pelo todo. E neste sentido o modernismo logrou
“encurtar a distância entre a linguagem oral e escrita e instituir do ponto de vista
39
A poética de Oswald de Andrade continua mais atual do que nunca, aliás, esta é justamente a época em que a poesia de Oswald tem seu campo de aplicação e divulgação com as novas aberturas comerciais e culturais para outros países. 40
Ser ou não ser, eis a questão.
102
temático o progresso, a velocidade e a banalidade cotidiana da vida moderna,
expressos numa linguagem fragmentária, de estilo enxuto, telegráfico” MALTZ;
TEIXEIRA; FERREIRA, 1993, p. 30).
Com uma única língua41 seríamos unidos por uma mesma cultura original (um
grande idealismo poético!), sendo esta como hipotexto da literatura nacional.
Deglutiríamos a cultura do europeu, extrairíamos dela sua essência e aí teríamos
uma literatura eminentemente nacional. Sobre essa questão, Maltz, Teixeira,
Ferreira afirmam:
O indianismo de Oswald reverte tal projeto [o de Rousseau], resultado de um projeto nacionalista que avalizava o branqueamento e a cristianização de cunho redentor, ratificando o racionalismo e a ideologia da Metrópole, e que tematizava o índio em nome da tese da miscigenação. Em vez do índio travestido de valores racionais-burgueses, Oswald absorve o indígena como elemento de construção. O símbolo nacional não era mais Peri ou I-Juca Pirama, bem-comportados e de sentimentos nobres, mas o canibal (MALTZ; TEIXEIRA; FERREIRA; 1993, p. 21).
Oswald define a antropofagia como:
A formação de uma arte nacional, que se há de extrair, sem dúvida, da obra dos “antepassados”, mas que contemplasse as conquistas do século XX, como o triunfo do telefone, do avião, do automóvel. Há, aliás, toda uma correspondência viva e direta entre as artes de hoje e o nosso tempo tão diverso dos tempos idos. (ANDRADE, 1928, p. 36-38).
Enquanto Oswald marca a origem da nossa literatura no antropofagismo,
reelaborando nossa arte nacional a partir do nosso passado e das conquistas da
sociedade da Semana de 1922, o Tropicalismo se inicia justamente na poesia de
Oswald de Andrade. Oswald seria o marco da poesia eminentemente nacional, de
onde o Tropicalismo beberia em seus mananciais: poesia visual, poemas com
palavras justapostas que aparentemente não significavam nada, enfim uma profunda
mudança na linguagem poética. Ambos foram brutalmente radicais.
41
Vale lembrar que linguisticamente o Tupi era um hipônimo linguístico que designava o Tupi e suas variações, veja-se o termo Tupi-guarani.
103
Nesse sentido, é que Campos afirma:
Ser radical é tomar as coisas pela raiz. E a raiz, para o homem, é o próprio homem. [...] A radicalidade da poesia oswaldiana se afere, portanto, no campo específico da linguagem, na medida em que esta poesia afeta, na raiz, aquela consciência prática, real, que é a linguagem. Sendo a linguagem, como a consciência, um produto social, um produto do homem como ser de relação (CAMPOS, 1965, p. 07).
Aproveitando dessas formas de escrever poemas, os Tropicalistas resgatam a
forma de compor dos concretistas e em suas composições musicais transformando
essas formas músicas que mais parecem poemas concretos, pela combinação
semântica de elementos díspares e sem nenhuma conexão. O material discursivo
eram as manifestações modernas junto com as manifestações culturais locais e a
cultura estrangeira como em Tropicália 42, música - manifesto do movimento
Tropicalista.
A música é toda composta, fora a métrica já moderna, com construções que
dizem quase nada à primeira vista. Essa ideia de trazer essa linguagem natural que
Oswald defendia (primitivismo)43, no plano semântico é uma das formas tropicalistas
de crítica à música tradicional de Geraldo Vandré, Chico Buarque, onde havia uma
linearidade rítmica e semântica.
Os Tropicalistas, na esteira oswaldiana, enveredaram pela não linearidade e
pela combinação semântica de palavras sem nenhum nexo. O sentido estava
justamente na desconstrução das construções para depois construir, no confronto ao
velho e o “cafona”, termo muito usado por Caetano para caracterizar a música de
teatro elitizada. Essa forma de compor música envolvendo a narrativa urbana, as
frases-síntese e os aforismos remetem diretamente ao manifesto Pau-Brasil
(OSWALD, 1928):
Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. [...] Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtoras, nas questões cambais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil. Obuses de elevadores, cubos de
42
Veloso, 1968, BMG 43
Não interpretar primitivismo como sendo aqueles homens das cavernas vivendo numa sociedade nômade e que falavam resquícios de uma linguagem propriamente dita. O primitivismo de Oswald remete a linguagem natural saindo de suas entranhas, sem enfeites, sem organização linguística padronizada gramaticalmente, mas uma linguagem próxima da fala natural e espontânea.
104
arranha-céus e a sabiá preguiça solar. A reza. O carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa.
Matz, Teixeira, Ferreira reforçam que:
A saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-Brasil [...]. A floresta e a escola. O Museu nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação Pau-Brasil. Tudo isso poderia ser material temático para música, assim como tudo isso foi material poético para Oswald de Andrade. (MALTZ; TEIXEIRA; FERREIRA; 1993, p. 36).
Enquanto a ideia de Oswald era buscar na nossa origem histórica, os
alicerçes de nossa literatura, os Tropicalistas buscaram na cultura estrangeira, na
época a cultura americana, um reforço no combate ao puritanismo musical que
imperava no Brasil da época. Ambos ambicionavam por algo genuinamente novo no
campo da produçao identitária do Brasil. Oswald de Andrade com seus movimentos:
Pau-Brasil e Antropofágico na literatura e, os Tropicalistas na música. Oswald
inaugurou uma poesia que sobreviveu ao tempo. O Brasil abre novas fronteiras para
a importação e, principalmente, a exportaçao de produtos, serviços e cultura. Os
Tropicalistas inauguraram um movimento musical que até hoje influencia músicos de
todo país, a maneira de compor músicas da chamada Música Popular Brasileira
(MPB) é um reflexo tropicalista.
Tudo isso junto ganhou proporções gigantescas. As letras das músicas eram
poemas concretos, já uma herança oswaldiana trabalhada pelos irmãos Campos44.
Na melodia contrastavam instrumentos cultuados nacionalmente (se é que eram
nacionais) como a flauta, o piano e o violão, com guitarras elétricas do rock ‘n’ roll
americano e baterias de percussão, também adotadas pelo rock e os ritmos
americanos, como o próprio rock, o jazz, o blues etc.
No plano discursivo, tal qual Oswald, buscavam o resgate dos elementos
nacionais e os misturavam a elementos estrangeiros. Os Tropicalistas buscavam dar
continuidade à linha evolutiva da música popular brasileira que se perdera desde
João Gilberto. Aliados a isso, os Tropicalistas trouxeram para a cena Luis Gonzaga,
Jackson do Pandeiro e muitas cantigas regionais de manifestação oral,
principalmente, as do Nordeste, para se juntar a essa salada Tropicalista.
44
Augusto de Campos e Haroldo de Campos.
105
Semelhante, tambem fez Oswald de Andrade ao juntar o novo e o velho, o antigo e o
moderno, o popular e o erudito como no poema O capoeira45, no qual se vê traços
da linguagem oral, mesclados com o confronto de ideologias como os negros e a
polícia. Fato semelhante se vê também no poema O gramático 46e em tantos outros.
Segundo Samoyault (2008), não somente a retomada ipsis, litteris de um
autor ou uma obra é o sinal da intertextualidade, mas a retomada do estilo do autor,
de dados de sua ideologia é um determinado tipo de intertextualidade. Os
Tropicalistas, na realidade, retomaram o projeto oswaldiano para renovação
nacional da música e da literatura, já que trazem para a cena os poetas Haroldo de
Campos, Augusto de Campos, dentre outros. Sem contar o fato de que, os
Tropicalistas eram adeptos de certos recursos de intertextualidade como o plágio, a
referência, a paródia de músicas de Luis Gonzaga, Jackson do Pandeiro etc. É
comum na música Tropicalista expressões, como, por exemplo, os olhos verdes da
mulata, a verde mata, fogueira de São João, das músicas de Luiz Gonzaga.
Caetano Veloso disse certa vez que quando encontrou Oswald de Andrade47,
quando na época assistiu à peça O Rei da vela48 encenado pelo Teatro Oficina,
havia se encontrado. “Fico apaixonado por sentir, dentro da obra de Oswald, um
movimento que tem a violência que eu gostaria de ter contra as coisas de
estagnação, contra a seriedade. Uma outra importância muito grande de Oswald
para mim é a de esclarecer certas coisas, de me dar argumentos novos para
continuar criando, pra conhecer melhor a minha própria posição. Todas aquelas
ideias dele sobre poesia pau-brasil, antropofagismo, realmente oferecem
argumantos atualíssimos que são novos mesmo diante daquilo que se estabeleceu
como novo (MALTZ, TEIXEIRA, FERREIRA, 1993, p. 33), “A percepção, pelo leitor
de relações entre uma obra e outras que a precederam ou a seguiram”
(SAMOYAULT, 2009, p. 28).
Para Caetano Veloso, o autor de Antropofagia permitia fazer coisas que ele
gostaria fazer, embora fosse com uma ferocidade menor, tanto é que seu ideário
para a música nacional começou com a leitura de Oswald de Andrade. Também é
45
ANDRADE, 1928. 46
ANDRADE, 1928. 47
A esse respeito ver o livro do próprio Caetano “Verdade Tropical”. 48
Peça encenada pelo Teatro Oficina em 1967.
106
considerado uma forma de intertextualidade quando o autor se reconhece e inserido
na obra de alguém segundo Samoyault.
Segundo Samoyault:
A intertextualidade torna-se verdadeiramente um conceito para a recepção, permitindo impor modelos de leitura fundados sobre fatos retóricos captados em espessura, nas suas referências a outros, presentes no corpus da literatura. O intertexto – que o autor distingue da intertextualidade, caracterizado como ‘o fenômeno que orienta a leitura do texto, que governa eventualmente sua interpretação, e que é
o contrário da leitura linear. (SAMOYAULT, 2009, p. 25). [...] O intertexto é antes de tudo um efeito de leitura, nada deve impedir um leitor de hoje de interpretar uma figura presente no monologo de Molière, a partir de uma figura semelhante, presente no teatro de Brecht. A continuação da obra pelo leitor é uma dimensão importante
da intertextualidade. (SAMOYAULT, 2009, p. 25).
Observando os Tropicalistas na perspectiva da intertextualidade, a retomada
da poesia de Oswald de Andrade pelos Tropicalistas foi uma questão, também, de
recepção. Ao entrar em contato com a obra oswaldiana, os Tropicalistas
encontraram o seu calcanhar de Aquiles, ou seja, o projeto, ou melhor, a retomada
do projeto Oswald que guiaria o projeto Tropicalista.
A retomada da linha evolutiva da música popular brasileira é uma retomada
também da poética oswaldiana. Os Tropicalistas retomaram não só a forma de
compor suas músicas como se fossem poemas, nem sua linguagem renovada e
radical, mas também a ideologia oswaldiana de deglutição da cultura estrangeira
intercalada com a cor local. Disto resulta uma nova forma de ver e sentir o estado de
coisas, tanto em Oswald de Andrade como nos Tropicalistas, uma identidade
nacional.
De acordo com Bauman (2005), a identidade é constitutiva, ou seja, não
deixa de ser algo e passa, instantaneamente, a ser outro, mas a identidade é
construída sobre outra. Neste caso, a identidade brasileira vista a partir de
elementos nacionalmente constituídos sem a intervenção de outros elementos
externos e que caracterizavam a identidade nacional da época foi posta em xeque
por Oswald de Andrade e pelos Tropicalistas. Tanto é que, falar em identidade para
107
os modernistas assim como para Oswald de Andrade e os Tropicalistas é algo muito
complicado, porque eles negaram haver uma identidade nacional, embora se
perceba nas entrelinhas que, o que eles realmente pretendiam era dar uma nova
roupagem à identidade nacional, ou seja, uma nova identidade para o Brasil
construída em cima de nossa história, mas vista a partir de outros ângulos como o
processo de urbanização das regiões mais afastadas, os investimentos feitos aqui
no Brasil por indústrias estrangeiras e as correntes de vanguarda que no aspecto
cultural estavam movimentando o mundo.
De uma forma ou de outra, Oswald de Andrade e os Tropicalistas romperam
com a tradição. Oswald de Andrade na poesia e os Tropicalistas na música. Em um
e outro se percebe a valorização da cultura nacional e deglutição da cultura
estrangeira. Ambos utilizaram de vários recursos de intertextualidade para produzir
suas obras, e ao absorver todo esse arsenal cultural, ambos, Oswald de Andrade e
os Tropicalistas compuseram sua arte e sua forma de ver e encarar a realidade.
Aqui não se pretende esgotar o tema, seria muita pretensão, já que Oswald
de Andrade e os Tropicalistas, apesar da distância de produção literária e musical no
tempo, continuam mais atuais do que nunca. Também, a literatura sobre Oswald de
Andrade e os Tropicalistas é bem ampla, carecendo, ainda, de muitos estudos na
área.
Pode-se afirmar que, os recursos intertextuais são bastante variados. A
escolha de uso de um ou de outro recurso intertextual depende da maneira como o
produtor de discurso encara o fenômeno. No caso de Oswald de Andrade e os
Tropicalistas esses recursos foram usados conscientes e intencionalmente, já que a
ideia principal era mostrar que uma coisa puxa a outra e que nada é feito a partir do
nada, e que para se trabalhar algo “novo” é preciso buscar fontes para conciliar
formas para se produzir discursos.
Neste sentido, observando as produções de Oswald de Andrade e dos
Tropicalistas, a novidade não está no novo propriamente dito, já que o novo no
sentido original se configura como mito (O mito da originalidade), mas na maneira
como o escritor faz a interseção de teorias e produções acadêmicas, literárias, etc.,
e faz disso sua originalidade. Assim a palavra correta seria criatividade.
Pode-se afirmar que entre a poesia de Oswald de Andrade e a música dos
Tropicalistas há muitas intertextualidades. Declaradamente, estas bem explicitam, já
que os próprios Tropicalistas assumem essa postura, primeiro de resgate da música
108
popular brasileira e segundo que essas ideias vinham diretamente da poética da
radicalidade do poeta modernista Oswald de Andrade. Tanto em um como em outro
se percebe o questionamento de uma identidade já estabelecida e a renovação
desta identidade a partir da junção de elementos da cultura nacional mesclados com
requintes da cultura estrangeira para a constituição de uma nova identidade
nacional.
109
4. A QUESTÃO DA IDENTIDADE: raça, meio e música popular.
No campo cultural, muitos debates se travaram em torno do que seria
identidade, identidade nacional, identidade cultural etc. Inicialmente há um conceito
bem amplo que acredita no casamento indissociável entre o indivíduo e sua nação,
sua cultura e seu modus vivendi. A questão colocada é que quando se tenta forjar
uma identidade, seja ela nacional ou regional aparecem como topo das
preocupações a raça e o meio como elementos primordiais e categorizadores de um
povo.
Muitos sociólogos, filósofos, poetas e prosadores tentaram descrever a
identidade de um povo por meio daquilo que se considerava nacional, adotando
como ponto de partida a constituição dos povos que habitavam um determinado
território e o estado como catalisador das manifestações dessa identidade. Nesse
sentido, o estado tinha o poder de decidir sobre a identidade ou identidades de uma
nação.
Segundo Ortiz:
Meio e raça traduzem, portanto, dois elementos imprescindíveis para a construção de uma identidade brasileira: o nacional e o popular. A noção de povo se identificando à problemática étnica, isto é, ao problema da constituição de um povo no interior de fronteiras delimitadas pela geografia nacional. (ORTIZ, 2006, p. 17)
Os negros, a geografia e a questão gritante da mestiçagem preocupavam os
intelectuais da época porque se buscava uma identidade ideológica e menos
racional cunhada nos moldes europeus, dentro do território brasileiro. Parte dessa
questão se pautava nas teorias evolucionistas e expansionistas herdadas das
nações do além-mar.
No final do século XIX, início do século XX, as preocupações em torno da
questão da identidade ficaram mais afloradas devido ao crescimento das cidades,
maior liberdade dos negros e o aparecimento da importação de cultura dos países
europeus, especialmente França e Alemanha. Devido a essas influências se tentou
no Brasil uma arianização da população, excluindo dessa forma o elemento negro já
bem predominante nas terras brasileiras. Esse fato levou inclusive autores como
Sílvio Romero, segundo Ortiz (2006) a criar uma identidade nacional baseada na
110
raça branca que habitava os altos salões da corte e da burguesia. Numa atitude,
predominantemente preconceituosa, burguesa e com bases no darwinismo social,
Romero tentou cunhar uma identidade baseada na raça e nos costumes do além-
mar.
Durante boa parte do século XX atitudes preconceituosas foram aceitas pela
grande maioria dos intelectuais do Brasil, pelos governos e por grande parte da
população que desconhecia teorias sobre povos e raça diferentes, segundo os quais
a identidade brasileira precisava de uma higienização do componente negro para
poder-se ter uma identidade de fato que viesse ao encontro das aspirações da
classe dominante.
Nesse contexto, o índio nem sequer era lembrado, já que nem continha traços
de povo, nação ou até mesmo de gente, diferentemente do elemento africano que
era liberto e já fazia parte da sociedade como elemento indispensável ao trabalho.
Toda essa discussão em torno da identidade do Brasil buscava elementos
que pudessem criar símbolos nacionais. O povo e o meio foram os primeiros deles, e
embora se rejeitasse a figura do negro e dos índios, foram estes que viraram
símbolos de nossa brasilidade. Segundo Nicolau Netto (2009), a criação dos
símbolos nacionais é uma violência aos símbolos nacionais mais representativos de
uma nação, já que essa escolha não é arbitrária, mas politicamente orientada.
Antes mesmo da criação do Brasil como um discurso de brasilidade, é
possível se afirmar que os discursos sobre o Brasil já existiam nas manifestações
culturais. O que foi possível foi uma seleção dessas manifestações para criar uma
identidade nacional. “O processo de formação de identidade como histórico que só
se realiza em contextos específicos, a partir de conflitos entre forças de agentes que
buscam ‘uma definição de mundo social mais conforme aos seus interesses’”
(BOURDIER, 2005, p. 11).
Segundo Nicolau Netto:
A passagem da compreensão da identidade em sociedades primitivas para sociedades nacionais não é tão simples, pois é necessário perceber o surgimento de um novo poder material: o Estado-nação. Este se impõe, a partir do século XVIII como o poder material do qual emana – ou pelo qual passam – os modos de identificação do indivíduo do ponto de vista mais amplo, ou seja, fora de suas fronteiras imediatas, como o valor identitário supremo, sobrepondo-se à família, à comunidade, à coroa ou a qualquer outro todo unificador simbólico. (NICOLAU NETTO, 2009, p. 29)
111
Pode-se dizer que a segunda fase histórica que buscou criar uma identidade
brasileira foi o Estado. Sob seu poder será selecionado o material simbólico para
constituir a identidade nacional. Nessa perspectiva, ficava a questão do que seria
nacional, o que seria elemento da identidade nacional, como ficavam os elementos
estrangeiros e a imigração e as ideias importadas para o Brasil? A escolha de um
implicava a exclusão do outro e desse modo não se podia eliminar a contribuição
acadêmica e as produções culturais das elites e nem abandonar a cultura popular
efervescente e produtora de discursos sobre a nacionalidade, principalmente na
música.
Criou-se um embate então, entre aqueles que queriam manter as tradições
para não perder sua identidade constituída sobre as tradições de seus ancestrais e
aqueles que mesmo defendendo a manutenção das tradições, queriam o país dentro
da pós-modernidade que já chagava a muitas das nações. Nesse contexto, então,
predominou o que se chamou da questão do nacional-popular e do nacional-
moderno. O primeiro garantiria a manutenção da tradição e do nacional e o segundo
do nacional e do moderno. Ambas as formas de pensar estavam engajados em
manter a cultura do país produzida pela cultura popular e ao mesmo tempo entrar no
mondo pós-moderno capitalista, globalizado e mantendo suas raízes culturais.
Para isso, na música, se promovia a Bossa Nova nos centros urbanos e
requintados, com sua influência jazzíaca americana, ao mesmo tempo em que se
aceitavam de forma seletiva as músicas produzidas pelos negros e malandros do
morro e as músicas folclóricas do Nordeste, especialmente Luiz Gonzaga que,
cantando nos cabarés da cidade baixa do Rio de Janeiro, fazia a alegria de gringos
e nortistas que vinham para a cidade grande em busca de emprego.
Dessa forma pode-se se perceber um forjamento da identidade nacional, pois
os elementos que a constituem são selecionados pela elite dominante, que prefere a
cultura capitalista do jazz em oposição às músicas produzidas pelas camadas
populares. Embora de maneira preconceituosa e ainda bem lenta as músicas
populares saíram do folclore e ganharam as rodas de samba e os cabarés e boates
da cidade.
Com o crescente aumento das rádios no país essas músicas assumiram um
caráter muito peculiar como elemento identitário no Brasil, a cultura popular e a
cultura de elite. A cultura de elite é amplamente divulgada nas rádios e programas e
se põe como símbolo da brasilidade e modernidade, enquanto a música popular de
112
classe baixa é controlada pela elite, desde sua produção, execução, gravação e
divulgação, já que a maioria dos compositores eram negros e pobres, ou seja, a raça
e o meio continuam como elementos não de identificação do país, mas como
elementos de exclusão social.
Entre as décadas de 1920 e 1940, a noção de música popular era sinônimo
de música folclórica, e boa parte desses compositores ou eram do morro ou eram do
Nordeste. No entanto com o modernismo que se iniciou com a Semana de 1922, em
São Paulo, o elemento estrangeiro começa a ser visto como cultura que deveria ser
cultuada no Brasil e as elites receosas dessa americanização do país começaram a
investir nos cantores populares, tanto empresas como o próprio estado começou a
ver essa ameaça de fora como não boa para o país. A música popular teve grande
repercussão no rádio e logo depois na televisão, contribuindo para sedimentar a
identidade nacional a partir de cantores como Luiz Gonzaga, que agradava a elite e
a classe popular.
Segundo Nicolau Netto, (2009, p. 43) “O discurso nacionalista em torno da
música popular brasileira, a partir de então, se afirma [...] ‘a partir dos anos 1930, o
samba deixou de ser apenas um evento da cultura popular afro-brasileira ou um
gênero musical entre outros e passou a significar a própria ideia de brasilidade’” e
desde então a música passou a ser vista pelo estado e pela elite como um discurso
caracterizador de uma identidade nacional.
4.1 Identidade e pós-modernidade
Segundo o dicionário Michaelis, (www.michaelisonline.com.br) identidade
significa igualdade, diferença e similitude. Não é um conceito muito abrangente, nem
muito menos esclarecedor. No entanto se observa através da antropologia cultural e
da sociologia que identidade significa as diferentes formas e sentidos de um fazer
cultural de uma determinada cultura. É também igualdade, ou seja, é a observação
que na formação cultural de um povo há traços e dispositivos teóricos e empíricos
que caracterizam a identidade de um povo, bem as semelhanças que unem uma
nação por traços que lhe são peculiares. Em suma uma identidade nacional ou
regional não se faz pela perenidade, transparências e igualdades de hábitos e
113
costumes de um povo, mas justamente pelas semelhanças e diferenças que de
forma sincrética caracterizam uma identidade cultural de um povo.
A identidade é algo bem problemático, principalmente na pós-modernidade,
com a quebra das barreiras culturais entre as nações. Não se pode querer ou exigir
puritanismo na cultura de nenhum país atualmente, por que a cultura feita pelos
homens está continuamente se modificando e diferenciando com a adoção de
elementos não apenas da cultura nacional, mas de elementos de outras culturas,
inclusive aquelas bem longínquas e de costumes exóticos.
Para Bauman (2005), identidade é um “conceito altamente contestado” e “o
campo de batalha é o lar da identidade”. Isso quer dizer que a identidade não existe
a priori e está sempre em constante modificação, é uma batalha travada diariamente
em busca de uma formação identitária mais plausível, não cômoda. Segundo ele “A
identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma
intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa absoluta resoluta a ser
devorado” (BAUMAN, 2005, p. 84).
A identidade é sempre algo a constituir e nunca algo já constituído, pronto e
acabado. A ideia é que o indivíduo não nasce com uma identidade pronta e morre
com ela, o que pode-se levar a outra discussão, o de saber se a identidade é
marcada biologicamente. O indivíduo nasce em qualquer país do mundo e vai
construindo sua identidade através dos estímulos exteriores e sua vivência com os
outros indivíduos e com as disposições genéticas que ele traz do berço.
Com a pós-modernidade, não se pode mais dizer que um indivíduo nasce e
morre da mesma forma como nasceu. As grandes mudanças sofridas na sociedade
contemporânea mudaram o modo de ver e perceber as coisas do mundo e, a
relação do homem com as coisas mudou radicalmente. Isso implica dizer que, os
estados de cosas do mundo alteram a forma de como é vista o homem e a
sociedade e a constituição destes ao longo dos tempos.
Para Hall (2000) as mudanças que ocorreram no mundo na modernidade
tardia fizeram com que aparecesse para o sujeito um guarda-roupa de identidades.
Com a globalização, os movimentos feministas e a popularização da internet, as
pessoas necessitam se adequar às novas demandas sociais, não apenas por
mudar, mas para acompanhar o próprio processo de desenvolvimento do mundo.
Hoje é inconcebível a pessoas não saber sacar dinheiro num caixa eletrônico, puxar
um extrato bancário da internet, usar o computador. São coisas que não são
114
escolhidas se faz ou não faz, elas fazem parte da dinâmica da vida e estão se
tornando essenciais. Então, as pessoas que nascem nesse meio já nascem num
mundo diferente, onde o híbrido, a cópia, o pastiche, a paródia já são coisas que se
falam e praticam sem aquela ideia de original.
Para Bauman, nascer com uma identidade e sustentá-la até a morte é a mais
linda mentira pós-moderna. Não há como fazer isso nem mesmo sem as grandes
mudanças pelas quais passou o mundo. Imagine com os novos usos que se fazem
hoje dos diversos meios e redes sociais e sites de relacionamento.
Segundo Hall:
As sociedades da modernidade tardia, argumenta ele, são caracterizadas pela “diferença”; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes “posições de sujeito” – isto é, identidades – para os indivíduos. (HALL, 2000, p. 17)
De acordo com essa perspectiva, os antagonismos que caracterizam não só a
sociedade da pós-modernidade, mas também outras mais antigas, é a diferença. O
fato de não sermos iguais e não efetuarmos tudo da mesma forma faz com que
assumamos várias formas de sujeito para realizar os diversos tipos de atuações
para que essa identidade esteja de acordo e a atuação que está sendo executada.
Não que isso caracterize uma estabilidade em que cada estereótipo seja
determinado a exercer um papel social, mas que é necessário mudar de identidade
de acordo com as situações às quais os sujeitos são expostos.
Para Orlandi:
Assim, de certa forma, falar (dizer) é ser-se estranho, é dividir-se, uma vez que os processos discursivos não têm sua origem no sujeito, embora se realizem necessariamente nesse sujeito. Dessa contradição inerente a noção de sujeito deriva uma relação dinâmica entre identidade e alteridade: movimento que, ao marcar a identidade, atomiza (separa) porque distingue, e, ao mesmo tempo, integra, porque a identidade é feita de uma relação. (ORLANDI, 1988, p. 10).
O sujeito não é, então, algo exterior à linguagem, mas que está envolvido
nela, ou melhor, há nele algo que é interior e exterior desse modo não havendo
como separar sujeito e linguagem. A linguagem é um processo, uma faculdade do
115
sujeito social, pois a mesma vem de sua própria atividade linguageira socialmente
determinada pela relação que estabelece com os demais membros, o que implica
dizer que ela advém dele e a ele e às outras coisas do mundo se refere quando é
executada.
O fato de a linguagem ser autônoma, de certa forma, não significa que ela não
existe por si só, necessitando, pois de sua origem para existir enquanto algo da
natureza humana. Ela existe como um dado de constituição da identidade do sujeito
social na prática de seu discurso. Ao se pensar nisso, questiona-se se o sujeito é ou
não autor daquilo que produz, se levarmos em conta as condições de produção.
Nessa perspectiva, vê-se que o discurso do social é uma prática que se completa
nos sujeitos e não está somente em um, isto é, o discurso social propicia o
surgimento do sujeito no campo da complementaridade. Percebe-se que os sujeitos
estão socialmente engajados numa dada sociedade e, necessitando da cooperação
um dos outros, numa espécie de troca de favores, fazendo com que, muitas vezes,
para não dizer na maioria das vezes, os sujeitos se apropriam dos discursos alheios,
se houver algo que seja autêntico numa sociedade (BAKITHIN, 1997), e fazendo
desses discursos sua identidade. Com efeito, a representação de alguém pode ser o
reflexo ou a refração do outro; esse outro é o não eu ou até mesmo o eu refratado, o
que faz do sujeito algo que não está pronto e acabado, mas algo que se completa
nos outros e nas situações do dia-a-dia. A identidade também é constituída pela
relação de sujeitos sociais em constante movimento de aceitação e refração do
outro.
Para Goffman (1975) o eu sofre variações nas diversas atuações diárias. O
sujeito na vida quotidiana se manifesta como uma representação, um papel que o
mesmo desempenha na comunidade onde vive. Dessa forma, qualquer indivíduo
com sua formação, religião, ideologia, nível social, desempenha um papel, ou seja,
atua de forma a convencer (ou não) os outros de seu papel social. Ora, na sua
competência como ator, o indivíduo tenta sem prejuízo dos outros, mostrar uma
representação que o mesmo acredita ser mais aceitável em seu meio.
No tocante aos papéis desempenhados pelos sujeitos com relação a sua
atuação, Goffman diz:
Não é provavelmente um mero acidente histórico que a palavra “pessoa”, em sua acepção primeira, queira dizer máscara. Mas,
116
antes, o reconhecimento do fato de que todo homem está sempre em qualquer lugar, mais ou menos consciente, representando um papel... É nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros; é nesses papéis que nos conhecemos a nós mesmos. (GOFFMAN, 1975, p. 27).
Nas atuações cotidianas cada indivíduo possui uma máscara49 que é a
própria pessoa que desempenha um papel frente aos demais indivíduos. É um papel
consciente, pois é nele que o homem conhece a si mesmo e aos outros. Essa
mascara é mais do que nós podemos imaginar, já que, em alguns casos, a mentira é
uma idealização de nós mesmos, uma projeção ou até mesmo uma aspiração de ser
aquilo que desempenhamos como atores. Esse fato leva a crer que as pessoas de
um modo geral sabem qual é o seu papel social, já que reconhecem no outro um
papel que não é o seu. Essa é uma forma de ver o outro e saber que seu papel é
diferente, é importante tanto quanto o outro.
Com relação à representação de nós mesmos como pessoas ou máscaras:
Em certo sentido, e na medida em que esta máscara representa a concepção que formamos de nós mesmos – o papel que nos esforçamos por chegar a viver – esta máscara é o mais verdadeiro eu, aquilo que gostaríamos de ser. Ao final a concepção que temos de nosso papel torna-se uma segunda natureza e parte integral de nossa personalidade. Entramos no mundo como indivíduos, adquirimos um caráter e nos tornamos pessoas. (GOFFMAN, 1975, p. 27).
Como sujeito, a máscara que o eu representa é a concepção que se tem de si
mesmo, ou seja, uma representação formal de sua personalidade, uma construção
discursiva e, pois seu status de pessoa é a sua interpretação perante os demais
sujeitos discursivos. Essa representação é mais fiel a si mesmo do que o próprio
indivíduo, pois o papel que desempenha faz parte de sua personalidade e diz mais
de si do que o simples indivíduo. Inferindo, podemos dizer que a atuação é que
produz o sujeito, ou seja, sua formação é discursiva, feita de palavras como no
princípio (In principio erat verbum). Com efeito, a máscara que o eu representa é
aquilo que corresponde a ele. A máscara é construída a partir do eu para os outros,
49
- Nesse sentido Goffman discorre sobre a verdadeira etimologia da palavra máscara que vem de “persona”, resguardando seu sentido como a forma que as pessoas do teatro Grego figuravam seus personagens utilizando máscaras para representar os seres sociais do mundo real.
117
enquanto os outros também mascaram. É um jogo dialético, no qual se cria a
personalidade dos indivíduos em convivência com os outros.
Para Anthony Giddens (2002), as sociedades tradicionais que perpetuavam a
identidade através das gerações entraram em colapso devido às noções modernas
de tempo e espaço, isso porque no mundo globalizado o espaço não define mais a
etnia, a escolha sexual, nem sua identidade, visto que as conexões entre as culturas
tornaram as mudanças mais rápidas e essas transformações ocorreram em todo
planeta. Para ele a noção de identidade através do estado-nação não suporta a
menor crítica, pois seus pilares de sustentação como a família, o patriotismo e a
fidelidade à cultura não encontram âncora na modernidade tardia.
A modernidade, segundo Giddens, altera todo sistema de relações da vida
social e cotidiana. A pós-modernidade se entrelaça com a vida cotidiana fazendo
com que não se separe o eu social do eu individual e afetando toda a existência e a
constituição da identidade moderna, ou seja, “A modernidade é um risco”
(GIDDENS, 2002, p. 10) que ameaça o futuro construído e reconstruído
constantemente. É preciso estar atento às mudanças para não perder a identidade.
A vida social na modernidade traz profundas mudanças na relação dos
sujeitos com as instituições, caracterizando-os como fragmentado, clivado, sendo
cada lugar social, o lugar de um determinado sujeito, que como assinala Foucault
(2008), que o sujeito emerge do lugar social de onde ele fala com quem fala e como
fala. Para Anthony Giddens (1991), na modernidade a vida social está organizada
em torno do tempo e do espaço. Segundo ele, os mecanismos desenvolvidos na
modernidade deslocam os sujeitos de seus lugares específicos para outros lugares
que não são seus, mudando sua forma de viver socialmente e consequentemente
sua identidade. Nesse sentido ter identidade na modernidade significa participar do
mundial e do local sem perder de vista as particularidades que lhe são inerentes na
sua vida cotidiana no lugar onde vive.
Para Giddens a modernidade:
refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. Isto associa a modernidade a um período de tempo e a uma localização geográfica inicial, mas por enquanto deixa suas características principais guardadas em segurança numa caixa preta. (GIDDENS, 1991, p.8).
118
Para Giddens (2002) a identidade está ligada à questão cultural de um povo,
é por meio dela que se pode dizer que certos costumes são pertencentes ou não a
cada grupo. Importante dizer que o termo identidade só surge com o conceito de
moderno, ou seja, os antigos agrupamentos indígenas ou quilombolas não tinham
uma identidade tal qual se discute atualmente, porque esse conceito de identidade
engloba a cultura, o sujeito, a noção de modernidade e a ideologia que é um
conceito ainda jovem, já que surge justamente quando as identidades são postas
em xeque pelas novas formas de encarar o mundo moderno. Mesmo assim,
identidade ainda é uma verdadeira caixa preta.
Para Marx e Engels (1999) a revolução nos meios de produção não é
estanque e congelada ao longo dos anos e as relações fixas dão lugar a relações
mais abertas e flexíveis, ocasionando mudanças nas sociedades modernas e
consequentemente nos indivíduos que vivem essa experiência de representação dos
ideais de uma sociedade. Nada que é sólido envelhece até ossificar-se, desmancha-
se no ar ( MARX & ENGELS, 1999).
Para Bauman (2005) assim como Hall (2000) grandes acontecimentos em
outras eras causaram os impactos e o mal-estar que permeiam as sociedades na
modernidade tardia. Uma das grandes revoluções foi o pensamento protestante que,
quebrando com a unidade religiosa no Ocidente e com a ideia de salvação pela
instituição e pelo grupo, acabou por instituir o individualismo, ou seja, a salvação
individual. Essa postura religiosa trouxe para a modernidade tardia a noção de que
as coisas são vistas e percebidas a partir do olho individual do sujeito e o que
parecia uma novidade e uma nova forma de encarar e ao mesmo tempo
desmascarar as práticas da Igreja Católica foi uma revolução para as sociedades de
consumo, que investindo no sujeito isolado e posteriormente no seu grupo,
acabaram por fragmentar o indivíduo e sua identidade.
Esse mal-estar na pós-modernidade, que Bauman (2008) e Giddens (2002)
discutem recai bastante sobre a questão do individualismo. Ele é o grande
responsável pela fragmentação do indivíduo racional, da família e do casamento,
das relações interpessoais, inclusive do trato com as mazelas que sofre o mundo, a
tecnologia a serviço de grupos e a melhorias das condições individuais e aumento
da fome e da miséria da maioria. O individualismo é uma característica fundamental
para a modernidade tardia, uma vez que ele é responsável pelas desarticulações
que da base da identidade baseada na nação, na cultura nacional e na família.
119
Para Giddens:
A modernidade é uma ordem pós-tradicional, mas não uma ordem em que as certezas da tradição e do hábito tenham sido substituídas pela certeza do conhecimento racional. A dúvida, característica generalizada da razão crítica moderna, permeia a vida cotidiana assim como a consciência filosófica constitui uma dimensão existencial geral do mundo social contemporâneo. (GIDDENS, 2002, p. 10).
Para Giddens a vida moderna é guiada pelo princípio da dúvida em que tudo
não tem uma certeza ou mesmo uma condição própria de existência. O
conhecimento é a grande chave que abre todos os portões da ignorância humana,
no entanto, é uma questão tão controversa que já se espera que a ciência não seja
o único meio de conhecer, mas que para a modernidade a certeza na ciência é um
princípio básico norteador.
4.2 Identidade nacional
A primeira noção de identidade que tem preocupado filósofos, sociólogos,
cientistas políticos é a da identidade nacional cunhada pela noção estado-nação. O
estado com seus aparelhos reguladores criam para o país uma amostra, uma
imagem que nos representa lá fora, embora a maioria das pessoas não se enquadre
nesse grau de identidade. Ao mesmo tempo em que se cria uma identidade nacional
para todos se anulam as identidades particulares, e isso tem sido feito ao longo dos
tempos em prol do patriotismo.
Segundo Bauman:
A questão da identidade só surge com a exposição a “comunidades” da segunda categoria – e apenas porque existe mais de uma ideia para evocar e manter unida a “comunidade fundida por ideias” a que se é exposto em nosso mundo de diversidades e policultural. É porque existem tantas dessas ideias e princípios em torno dos quais se desenvolvem essas “comunidades de indivíduos que acreditam” que é preciso comparar, fazer escolhas, fazê-las repetidamente, reconsiderar escolhas já feitas em outras ocasiões, tentar conciliar demandas contraditórias e frequentemente contraditórias. (BAUMAN, 2005, p. 17).
120
O tema da identidade se torna uma faca de dois gumes50 justamente por
deixar de fora muitas pessoas que não participam dessa comunidade nacional como
cidadãos com seus direitos e deveres garantidos, uma vez que alguma comunidades
são excluídas do processo de pertencimento, pois não se enquadram em nenhuma
forma identitária do país, ou seja, ao se constituir uma identidade discursiva para a
maioria, exclui as minorias. Pensam-se nos marginais, pessoas que tiveram sua
nacionalidade cassada em função de guerras e ideologias políticas, degredados e
toda espécie de gente sem nação que reclama uma identidade para si, pertencer a
algo. Como a identidade foi e ainda é algo problemático no mundo moderno, é
preciso que certas escolhas sejam norteadas para que certas comunidades não
fiquem à margem do processo de identificação de seu grupo e de seu país. Os
princípios que norteiam, muitas vezes, os grupos e blocos políticos coesos não são
os mesmos de quem está fora desses padrões, então é necessário se buscar, fazer
escolhas, ou seja, construir novas identidades para si. A identidade se apresenta
como uma escolha, forçada, induzida, condicionada e cada uma das opções implica
em assumir riscos, uns mais passageiros, outros mais duradouros.
Nesse caso, segundo Bauman (2005), a identidade nacional é o conjunto de
crenças baseados na língua nacional e única, na memória, nos costumes e hábitos
que são postos como comuns a todos os membros de uma mesma comunidade e
estendida às mais longínquas terras de um país, sem que isso represente realmente
o pensamento identitário de determinada comunidade. Normalmente, o que é tido
como identidade nacional se estende às comunidades mais distantes dos grandes
centros, às províncias que devem seguir um padrão. São comuns também, as
comunidades mais distantes dos grandes centros comerciais e culturais não
aceitarem determinadas categorias constitutivas de identidade e se revoltar para
criar novas identidades como é o caso de como foi criada a região Nordeste, que já
nasce com o estereótipo de atraso, fome e miséria, mas que na verdade nem tudo
aqui é do jeito que foi pintado para os brasileiros. Foi algo inventado sem nenhuma
razão de ser ou existir.
50
A “identidade” é uma ideia inescapavelmente ambígua, uma faca de dois gumes. Pode ser um grito de guerra de indivíduos ou das comunidades que desejam ser por estes prestigiadas. Num momento o gume da identidade é utilizado contra as “pressões coletivas” por indivíduos que se ressentem da conformidade e se apegam a suas próprias crenças [...]. Em outro momento é o grupo que volta o gume contra o grupo maior, acusando-o de querer devorá-lo ou destruí-lo, de ter a intenção viciosa e ignóbil de apagar a diferença de um grupo menor, forçá-lo ou induzi-lo a se render ao seu próprio “ego coletivo”. (BAUMAN, 2005, p. 82-3).
121
Nesse sentido no qual se busca algo que lhe seja peculiar e inerente, a
identidade é algo confortável e que garante certa estabilidade para o indivíduo. O
Estado nacional, com seus estandartes e discursos apologéticos, faz seus cidadãos
proclamarem-se brasileiros, alemães, franceses, etc.: que o brasileiro é dócil,
amigável e de boa índole e que o Brasil é um país sem guerras, sem tufões, sem
terremotos, que vivem num país tropical, é que aqui todos são bem recebidos para
fazer tráfico de drogas e pessoas, prostituição de todos os níveis, etc; que os
alemães são filósofos, teóricos e sisudos; que na terra da cerveja, da polca e da
carne de porco a vida dos cidadãos é definida por sua intelectualidade de nação
europeia soberana. Que os franceses não tomam banho, em vez disso usam
perfumes caríssimos, falam uma língua bonita e apreciada pelo mundo, berço da
revolução francesa e dos princípios de Liberté-Egalité-Fraternité. São discursos que
se tem de algumas nações, mas que por si só não garantem uma identidade ou
identidades para nenhum indivíduo. Foi um discurso imaginado a partir de como a
nação queria ser vista pelos outros, ou seja, criou-se uma imagem de uma
identidade que muitas vezes não condiz com seus compatriotas, mas é uma imagem
projetada para as outras nações.
Com o encurtamento das distâncias e rompimento das barreiras culturais, o
mundo parece que se tornou uma aldeia global, embora todos não compartilhem dos
progressos conquistados pela humanidade e muitos povos ainda se encontrem
como se estivessem vivendo na Idade Média. Nesse sentido a globalização é mais
propaganda que realidade e em termos de mercadorias e serviços pode-se comer
comida japonesa em São Paulo, falar inglês em Pequim, usar perfume francês no
Brasil e assistir uma apresentação de capoeira em Nova York. Nesse intercâmbio de
mercadorias, serviços e cultura como é que fica a questão da identidade?
Para Hall (2000) a questão da identidade se coloca como centro das
preocupações de filósofos e cientistas políticos, assim como linguistas,
antropólogos, porque se tornou um assunto que preocupa, ou seja, se torna uma
questão quando está em crise, deixando de ser fixa e estável e agora deslocada e
posta em dúvidas. Segundo esse autor as profundas mudanças que ocorreram no
mundo pós-guerra acabaram por trazer à tona se a identidade realmente se
configura como algo ligado apenas à questão da nacionalidade. “Um tipo de
diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no
final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero,
122
sexualidade, etnia. raça e nacionalidade, que no passado, nos tinham fornecido
sólidas localizações como indivíduos sociais” (HALL, 2000, p. 09). Não que isso
implique na anulação da nacionalidade, mas que só a identificação maciça por meio
do estado se tornou muito frágil e que essas mudanças estão descaracterizando as
identidades mais sólidas com as quais se convivia no passado.
Segundo Hall (2000) essas mudanças na identidade têm a ver com a noção
de sujeito adotada. Para ele há três tipos de identidade segundo as concepções de
sujeito a saber:
O sujeito do iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ‘centro’ emergia pela primeira vez quando nascia. (HALL, 2000, p. 10).
Esse tipo de sujeito sugeria uma identidade única com a qual o sujeito nascia
com ela e permanecia durante toda sua existência. Segundo essa concepção
surgida a partir da noção de razão de Descartes, o sujeito já nascia com uma
identidade que lhe era dada no berço e que durante toda sua vida não se
modificava, mantendo-se intacta até a morte. Essa visão sugeria um sujeito único e
dotado de capacidades que o tornavam consciente de suas ações no mundo do
Cogito ergo sum. Vale salientar que o sujeito do iluminismo era um indivíduo
masculino, já que para essa época e essa mesma concepção a mulher não era nem
estudada nem vista como sujeito consciente.
“Sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a
consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e
autossuficiente, mas era formado na relação com ‘outras pessoas importantes para
ele’”. (HALL, 2000, p. 11)
O sujeito sociológico é o sujeito da relação entre o interior e o exterior, ou
seja, nele agem forças que lhe são próprias e dotadas biologicamente e ao mesmo
tempo forças exteriores que agem sobre o corpo e influenciam em sua constituição
discursiva e histórica. Nesse sentido o sujeito possui um núcleo interior que é
modificado ou influenciado pela sociedade. Percebe-se nessa postura uma
123
interatividade entre o sujeito cognoscente e os outros sujeitos sociais que tem
grande influência na formação de sua identidade.
Há nos trabalhos de Bakhtin (1997) há grande importância ao outro (principio
da alteridade) na formação do ethos interior. Seus trabalhos em parte dedicam-se à
formação do sujeito a partir das relações com os outros sujeitos sociais e, embora
Bakhtin esteja interessado no discurso polifônico, ou seja, das outras vozes que
compõem os estilos e tipos relativos de enunciados, sua teoria dá bastante ênfase à
formação do sujeito a partir do equilíbrio entre o interior e o exterior.
Nessa perspectiva, o sujeito não é único e dotado de uma consciência
autossuficiente, mas de uma identidade marcada pela presença do outro em um
processo de interação permanente entre os sujeitos das diversas camadas sociais
que influenciam direta e indiretamente na formação de sua identidade social.
Essas coisas agora estão ‘mudando’ [...] o sujeito está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades. Esse processo produz o sujeito pós-moderno conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente.” (HALL, 2000, p. 12).
Essa última concepção de sujeito e de identidade defendida por Hall (2000)
leva em conta as atuais mudanças ocorridas no mundo moderno e na modernidade
tardia, ou pós-modernidade como chamam alguns, a de que o sujeito nessa
sociedade não tem uma única identidade, mas sim várias identidades. Isso ocorre
devido aos diversos tipos de relações a que os sujeitos estão expostos e que de
alguma forma influenciam e até forçam51 a se ter uma nova identidade que atenda
as demandas sociais em micro e macrossistema de relações.
4.3 Identidade nordestina
A região Nordeste e a identidade nordestina, aquela de que tratam os
romances regionalistas, as novelas, e muitos outros programas televisivos, foi algo
inventado em um dado momento da história do Brasil. Sabe-se que a identidade de
51
Essa afirmação não implica numa imposição por ela mesma, mas que as sociedades, principalmente as de consumo, impõem gostos e estilos que forçam inconscientemente os sujeitos a adquirirem ou assumirem novas identidades que não são as deles, mas que são exigidas devido aos perfis traçados pela sociedade. Um bom exemplo disso são os diversos grupos que formaram na modernidade tardia com punks, roqueiros, pagodeiros, hippies, etc.
124
um povo ou um grupo de indivíduos é feita a partir da homogeneidade sociocultural
que os une, quando na verdade, deveria ser a heterogeneidade como ponto
fundamental para caracterização das identidades. Nesse sentido há uma confusão
entre região e regionalismo. O primeiro, ligado mais aos aspectos geográficos e
políticos na formação dos povos e dos conjuntos de vivências que um determinado
povo acumula para superar o meio. O segundo, como um aspecto mais discursivo,
ligado às produções que caracterizam a identidade das regiões através da
linguagem, da cultura, das vestimentas, do modus vivendi de cada região. A região
caracteriza a geografia onde o indivíduo vive, o regionalismo como um conjunto de
particularidades linguísticas oriundos da cultura de uma região.
A criação das identidades, principalmente as dos nordestinos, foi uma criação
de estereótipos, ou seja, se identificou a caracterização do indivíduo pela região,
mostrando que quem vivia no Nordeste tinha aquele tipo de vida porque a geografia
da região favorecia, mas ninguém nunca disse que as regiões nordestes de outros
países eram menores por serem mais afastadas dos grandes centros urbanos e não
participarem efetivamente da mesma cultura.
Albuquerque Júnior nos fala que o Nordeste foi inventado sobre um discurso
de nacionalização das coisas, precisando categorizar os tipos regionais para se
forjar uma identidade para o país. Uma das formas de criação da identidade
nordestina foram os romancistas de 1930.
Sobre o discurso regionalista da década de 1930, Albuquerque Júnior diz:
O discurso regionalista não mascara a verdade, ele o institui. Ele, neste momento, não faz mais parte da mimese da representação que caracterizava a epistéme clássica e que tomava o discurso como copia do real; na modernidade este discurso é regido pela mimese da produção em que os discursos participam da produção de seus objetos, atua orientado por uma estratégia política, com objetivos e táticas definidos dentro de um universo histórico, intelectual e até econômico específico. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 49)
Quem lê os principais romances produzidos na década de 1930 como Vidas
secas de Graciliano Ramos, Menino de engenho de Jose Lins do Rêgo, O Quinze de
Rachel de Queiroz, A bagaceira de José Américo de Almeida, dentre outros,
percebe o tipo de espaço geográfico e o tipo de gente que habita as terras do
Nordeste. É um quadro de fome e miséria assolado por bandidos e facínoras como
os cangaceiros e a figura mítica de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião; pelo
125
messianismo na figura do cearense Antônio Conselheiro, o beatinho e sua Guerra
de Canudos no sertão da Bahia descrita no livro Os Sertões de Euclides da Cunha.
Nesses romances há uma categorização do indivíduo que vive no Nordeste, quando
na verdade está se falando de literatura, que embora esses romances se pusessem
como um neorrealismo, não passavam de literatura. Então a identidade nordestina
vista a partir da literatura regionalista é uma ficção que se tornou uma realidade
visível para o nordestino e todas as visibilidades e dizibilidades sobre o Nordeste
nesse tipo de discurso se tornou o paradigma de nossa identidade.
Quem nunca veio ao Nordeste imagina que a região é da mesma forma que
foram tratados os romances ficcionistas de 1930. Que ainda vive-se da mesma
maneira que há 70 anos. O pior é que nem isso condiz com que é realmente ser
nordestino, que essas representações feitas do Nordeste e do nordestino na ficção
não representam realmente o conjunto de saberes e dizeres sobre a identidade da
região e do sujeito que nela vive.
Segundo Albuquerque Júnior:
A identidade nacional ou regional é uma construção mental, são conceitos sintéticos e abstratos que procuram dar conta de uma generalização intelectual, de uma enorme variedade de experiências efetivas. Falar e ver a nação ou a região não é, a rigor, espelhar estas realidades, mas criá-las. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 27)
Para esse autor se inverteram os papéis ao se colocar a geografia da região
como determinante do tipo que a habita, porque segundo ele a identidade nacional
ou regional de um povo é uma realidade inventada e não se espelha na realidade tal
qual ela se apresenta. Os papéis sociais de uma identidade nacional ou regional não
são dados pelo aspecto físico dos sujeitos que habitam esse espaço geográfico. Se
assim o fosse, como seriam os povos do deserto em suas caricaturas? Isso mostra
que a região Nordeste e a identidade nordestina foram uma criação ideal baseada
nas visões sobre a região Nordeste. Abandonaram essa região por anos, deixaram
seus indivíduos por conta própria só para depois criarem identidades forjadas
baseadas naquilo que foi instituído socialmente, ou seja, deixaram a região ao Deus-
dará para depois voltar e categorizar o que sobrou dessa imensa falta de políticas
públicas que viessem socorrer a região Nordeste.
126
A identidade parte de uma generalização sobre determinado espaço
geográfico e social ao lado das condições econômicas que definem a região como
superior ou inferior economicamente. Dessa forma, o Nordeste foi inventado a partir
das visibilidades e dizibilidades sobre os espaços geográficos e os sujeitos que nele
habitavam, foi uma identidade criada, assim como todas são.
O espaço não preexiste a uma sociedade que o encarna. É através das práticas que estes recortes permanecem ou mudam de identidade, que dão lugar a diferença; é nelas que as totalidades se fracionam, que as partes não se mostram desde sempre comprometidas com o todo, sendo este todo uma invenção a partir destes fragmentos, no qual o heterogêneo e o descontínuo aparecem como homogêneo e o contínuo, em que o espaço é um quadro definido por algumas pinceladas. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 25).
De modo geral, o que se privilegiou para formular uma identidade sobre o
Nordeste foi a geografia da região. Buscaram homogeneizar as diferenças e mostrá-
las como sendo o reflexo real da região e de quem habita nela. Não se apelou para
o fato de que tomar o todo como sendo a totalidade das partes encobria as
diferenças. Com base nisso é que Durval Muniz explica: “A formação discursiva
nacional-popular pensava a nação por meio de uma conceituação que a via como
homogênea e que buscava a construção de uma identidade, para o Brasil e para os
brasileiros, que suprisse as diferenças, que homogeneizasse estas realidades. Esta
conceituação leva, no entanto, a que se revele a fragmentação do país, a que seus
regionalismos explodam e tornem-se mais visíveis”. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999,
p. 49). O argumento central é que com a homogeneização da cultura do país ficaria
mais fácil o afloramento das regiões com suas características, quando na verdade,
houve uma criação de estereótipos sobre as regiões, principalmente o Nordeste.
Os Tropicalistas foram um dos grupos musicais que, sendo nordestino da
Bahia, não concordaram com essa ideia de Nordeste e de povo nordestino, fazendo
de suas músicas verdadeiras contestações sobre as visibilidades e dizibilidades que
se tinha sobre a região Nordeste.
O próprio Albuquerque Júnior assegura a cruzada tropicalista:
Privilegiamos, no entanto, neste debate, aquele que se trava especificamente em torno da ideia de Nordeste, como ele foi inventado, no cruzamento de práticas e discursos e os sucessivos
127
deslocamentos que a imagem e o texto desta região sofreram, até a sua mais radical contestação com os Tropicalistas, no final da década de sessenta. Buscamos perceber como determinados enunciados audiovisuais se produziram e se cristalizaram, como “representações” deste espaço regional, como sua essência. Perceber que a rede de poder sustentou e é sustentada por essa identidade regional, por este saber sobre a região, saber estereotipado, que reserva a este espaço o lugar do gueto nas relações sociais em nível nacional, região que é preservada como elaboração imagético-discursiva como o lugar da periferia, da margem, nas relações econômicas e políticas no país, que transforma seus habitantes em marginais da cultura nacional. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 27).
Foi esse grupo de baianos que contestou essas ideias e imagens que
circulavam e ainda circulam na mídia televisiva sobre o Nordeste. As representações
e as imagens que foram projetadas no país e na consciência coletiva sobre o
Nordeste são tão fortes que até mesmo grupos radicais como os Tropicalistas
tiveram grande resistência de aceitação por parte do público, quando estes, de
origem nordestina, tentaram se projetar no cenário musical da década de 1960.
Porém, as identidades não permanecem fixas o tempo todo e novas tendências vão
surgindo e fazendo com que certas imagens não continuem. Depois dos
Tropicalistas outros se aventuraram a reinventar a história do Nordeste, mostrando
sua grandeza cultural e musical no cenário do país e do mundo.
Toda essa história de invenção do Nordeste e arrebanhamento das
identidades não é algo ingênuo; ela obedece às relações de poder que se
instauraram na época em que o Nordeste foi inventado geográfica e discursivamente
e, posteriormente, quando grandes grupos de poderosos52 lucraram e ainda lucram
muito com essa ideia inventada de seca, fome, desgraça, pois tudo isso eram
argumentos para se desviar grandes levas de recursos que iriam acudir quem era
vítima de algum problema de estiagem.
Albuquerque Júnior resume o que é e o que foi o Nordeste e as imagens que
se tinha e se tem dessa região a partir de uma perspectiva discursiva:
O Nordeste é uma produção imagético-discursiva formada a partir de uma sensibilidade cada vez mais específica, gestada historicamente,
52
Albuquerque Júnior fala sobre o coronelismo e sobre os grandes latifundiários que ganhavam muito com essas ideias, porque as verbas destinadas a combater as secas eram desviadas para as terras de alguns desses tipos como a construção de barragens e açudes pelo DNOCS e pela SUDENE. Essas obras eram construídas nas terras desses poderosos, que utilizavam o recurso do povo para comprar o povo e para manter seus currais eleitorais, a chamada indústria da seca.
128
em relação a uma dada área do país. E é tal a consistência desta formulação discursiva e imagética que dificulta, até hoje, a produção de uma nova configuração de “verdades” sobre este espaço. (ALBUQUERQUE, JÚNIOR, 1999, p. 49).
Para o autor, o Nordeste é uma produção discursiva, ou seja, a produção
imagético-discursiva da região Nordeste se deu de acordo com as visibilidades e
dizibilidades sobre essa região. Isso se deu quando o Nordeste se opôs à região sul
e seu movimento modernista. Enquanto lá no Sudeste se mostrava um tipo de
dizibilidade sobre o país e sobre o Nordeste por meio da literatura, o Nordeste criou
sua própria identidade ao contestar as visões sobre o país e sobre a região
Nordeste. Essa identidade foi mostrada sempre com base em critérios geográficos e
econômicos, ou seja, para essa região do país que tem uma geografia irregular com
alta escassez de água, que não tem recursos financeiros que a levem a se manter
sozinha, criando com isso tipos extremamente rústicos, animalescos, como é o caso
de Fabiano de “Vidas secas”, que vive pior do que qualquer animal da região.
Essa formulação discursiva e as imagens que foram criadas sobre o Nordeste
são tão consistentes que fica difícil novas dizibilidades sobre a região e o espaço, ou
seja, a sedimentação da identidade nordestina foi tão intensa que ficou muito difícil
reverter essa configuração histórica que foi criada com relação à identidade, espaço
social e geográfico da região Nordeste.
Nessa perspectiva, o que se diz sobre o Nordeste é um conjunto de
visibilidades e de dizibilidades que se formulou a respeito de sua geografia e sua
gente baseadas nos discursos que se criaram a respeito do Nordeste, ou seja, o
Nordeste foi inventado a partir das produções e das imagens que se tinham da
região.
129
5. RENOVAÇÃO DO DISCURSO SOBRE O NORDESTE E SOBRE A
IDENTIDADE NORDESTINA ATRAVÉS DO SINCRETISMO
CULTURAL EM LETRAS DE MÚSICAS DO TROPICALISMO
Dentro do que foi exposto teoricamente até agora sobre a Análise do Discurso
Francesa e seus dispositivos teóricos, metodológicos e práticos, sobre os gêneros
do discurso, sobre a questão da identidade nacional e da identidade nordestina e a
própria história do Tropicalismo, passaremos, agora, à análise das letras de músicas
com vistas à renovação do discurso sobre o Nordeste e a identidade nordestina
através do sincretismo cultural que se manifesta nas letras das músicas dos
Tropicalistas.
Tropicália: sincretismo cultural e a formação de uma identidade
musical nacional
Inicialmente, para melhor entender o ideário Tropicalista precisamos recorrer
à ideia de gêneros do discurso e formação discursiva.
A música é um gênero discursivo da esfera midiática de grande circulação no
rádio e na televisão e mais recentemente na internet, mas que na época em análise,
circulava por meio de sons reproduzidos em discos de vinil (Long plays) em que as
letras das músicas eram escritas nas capas e contracapas em alguns discos. A
música é gênero discursivo que possui sua materialidade em textos poéticos, já que
as músicas são escritas em forma de versos para facilitar o canto e a leitura,
inclusive são rimadas e a quantidade de sílabas é contada. Na música dos
Tropicalistas, embora tenha essa materialidade, os versos são totalmente livres e
raramente apresentam rimas. O que se percebe são palavras superpostas como se
fossem a organização de um quadro, uma pintura ou uma tela de cinema, pois os
elementos não são ligados semanticamente pelo significado denotativo, mas por
palavras que aparentemente não têm ligações de sentido dentro do mesmo campo
semântico.
Na época da explosão do Tropicalismo entre 1968 e 1969 o rádio era a
grande atração para os festivais de música popular e grande divulgador da cultura e
da música nacional. Junto com o rádio apareceram ainda em preto e branco os
130
primeiros programas da TV Tupi de São Paulo que foram o palco de alguns festivais,
dos quais Caetano Veloso e Gilberto Gil foram protagonistas de algumas canções.
Dessa forma, o rádio e a TV foram os grandes protagonistas dos movimentos
estudantis e musicais da época que explodiu o movimento.
Como gênero discursivo as músicas do Tropicalismo apresentam um estilo
definido com particularidades de organização semântica dos enunciados através da
recorrência e a remissão a outros gêneros musicais, mesmo que se trate de outros
estilos e outras ideias. Tem uma forma composicional léxica, sintática e gramatical
totalmente própria, caracterizando-se por uma fragmentação intencional dos
enunciados, a quebra rítmica e sonora da música, uma sintaxe quebrada que foge
aos paradigmas da língua corrente e uma organização semântica que é necessária
a compreensão de outros campos do saber para se tentar entender o sentido
desejado pelo autor. E é justamente através do gênero que se resgata o Nordeste
para ser inovado num discurso atual, cosmopolita, polifônico e intertextual.
Os Tropicalistas utilizavam a música como meio de divulgação de sua
intenção discursiva, mostrando um sincretismo cultural que abarcava quase todas as
manifestações da cultura do país. Em especial houve grande resgate do Nordeste
através da importância dada a compositores e cantores nordestinos como Luiz
Gonzaga e Jackson do Pandeiro, bem como manifestações da cultura oral como O
hino ao Senhor do Bomfim, e outras formações discursivas oriundas do Nordeste.
A formação discursiva da época tinha como positividade de um lado o embate
entre aqueles que queriam renovar o Brasil e as artes por meio da cultura,
especialmente a música, agrupando outros gêneros e elementos formais,
semânticos e composicionais importados de outras culturas, corrente essa defendida
pelos Tropicalistas, pelo teatro de Hélio Oiticica, pelo Cinema Novo de Glauber
Rocha, pela banda de rock Os Mutantes, e do outro lado, àqueles que desejavam
uma cultura brasileira genuína em termos de valorização das canções nacionais,
tendendo para o anacronismo, o saudosismo e o protesto. E embora suas músicas
tivessem esse tom nacional, a experiência demonstrava que essa atitude
conservadora de compositores como Geraldo Vandré e Chico Buarque53, por
exemplo, não mais cabia no cenário mundial no qual o Brasil estava ingressando,
53
Embora esses compositores tenham tido e ainda tenham grande importância para a música e a cultura nacional, para a época cantores como Chico Buarque, Elis Regina, Geral Vandré eram considerados atrasados no sentido de não aceitar a importação de novos elementos da cultura cosmopolita e permanecendo com a música de protesto dela por ela mesma.
131
com o crescente aumento da industrial cultural e fonográfica, o advento da televisão
com os shows transmitidos ao vivo pela TV Tupi.
A formação discursiva do Tropicalista Caetano Veloso é a de um sujeito
múltiplo fragmentado pelas ideias revolucionárias da época como o movimento
Hippie, o rock americano dos negros do Brooklin, a ascendência da pop art, dos
movimentos de vanguarda nas artes plásticas e no cinema americano e o europeu,
etc. Seu ideário buscava renovar a música e cultura nacional por meio do
engajamento de outras artes como o Cinema Novo e a artes plásticas e as artes
cênicas. Nesse contexto de modernidade onde se cruzavam vários tipos de discurso
como o discurso nacionalista, o militarista, o esquerdista, o modernista e o arcaico, o
sujeito envolvido em práticas de linguagem buscou sincretizar todas essas
manifestações num discurso polifônico e intertextual, no qual várias linguagens se
entrecruzavam buscando uma consolidação no âmbito da cultura e da identidade
nacional.
Na formação discursiva do Tropicalismo percebemos uma tentativa de
aglutinar vários elementos de setores diferentes da arte nacional presentes na
música regional, na pintura, no cinema, no teatro e nos elementos da modernidade
para se criar uma nova identidade estética e sincrética para o país e a região
Nordeste, já que seus idealizadores são baianos e, portanto, sendo influenciados
diretamente pela cultura nordestina.
A formação discursiva, neste sentido, é um conjunto de enunciados que se
referem a um mesmo objeto, que neste caso é renovação da identidade nordestina
estética e sincreticamente e pela reinvenção do Nordeste54 ao retomar
constantemente os elementos da cultura musical e da literatura nordestina.
O sujeito Tropicalista tinha influências nacionais ligadas à antropofagia
oswaldiana pelo fato de pensar a cultura nacional através da deglutição de vários
elementos díspares, mas que tinham algo em comum, ou uma regularidade
discursiva. Também são extremamente válidas as influências do Cinema Novo de
Glauber Rocha que já trabalhava com a preocupação social do Brasil, seu passado
histórico, sua pobreza, suas cidades povoadas de miseráveis e o desolado Nordeste
brasileiro. Foi influenciado pelo Neorrealismo italiano e pela Nouvelle
54
Vale salientar que o Tropicalismo trabalha com muitas ideias e a que estamos defendendo aqui se refere àquelas diretamente ligadas ao contexto que cita o Nordeste com seus elementos culturais representativos na música.
132
Vague francesa, cujo lema era uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Essa
vertente discursiva tinha como ideial, se aproximarem ao máximo das ideias do
mundo empírico e gravar imagens reais da vida cotidiana. Essas influências
aparecerão mais tarde em filmes como Cidade de Deus de Fernando Meirelles e
Central do Brasil de Walter Salles. Foram e são protagonistas do Cinema Novo que
influenciou a música Tropicalista: Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Carlos
Diegues y Joaquim Pedro de Andrade e mais tarde Ruy Guerra e Walter Lima
Júnior.
Caetano Veloso tinha uma visão cosmopolita da música e da cultura
brasileira. Não estava ligado apenas às coisas nacionais, mas buscava em outros
países elementos que pudessem interagir com a cultura brasileira e fazer uma
renovação desta através da fusão de ideias e correntes de pensamento, etc. Não é
à toa que tanto Caetano como Gilberto Gil passaram boa parte de suas vidas
experimentando a cultura americana, o rock dos negros, o jazz dos brancos, as
pinturas de artistas modernos e o cinema tanto americano quanto o europeu.
O Tropicalismo em seu famoso jargão: retomada da linha evolutiva da Música
Popular Brasileira (MPB), foi a retomada da música que se iniciou com João
Gilberto e que, segundo os Tropicalistas, não evoluiu com o passar dos tempos,
portanto, não sobrevivendo às novas demandas do mercado. Para isso, retomou os
principais artistas de renome do país, especialmente aqueles ligados à cultura
popular para incrementar com a música mais sofisticada como a Bossa Nova.
Artistas como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Patativa do Assaré, Vicente
Celestino, foram trazidos para a grande cena tropicalista. As canções desses artistas
eram parodiadas, ironizadas, copiadas ou simplesmente regravadas com um estilo
novo que era arranjado com guitarras elétricas, baterias elétricas, contrabaixos, e
tudo que a cultura moderna favorecia.
Cada artista que era resgatado55 pelos Tropicalistas era renovado pela forma
como eles viam o mundo e as novas ideologias de mercado. Assim sendo, havia nos
Tropicalistas o desejo pela inovação das artes e da música brasileira em moldes
sincréticos, ou seja, juntar as várias manifestações musicais do país em suas
músicas.
55
Por exemplo, Luiz Gonzaga fez sucesso em meados da década de 1940 até a década de 1950 e ficou muito tempo fora das rádios. Os Tropicalistas resgataram esse grande artista popular.
133
A música Tropicália se inicia com a fala do baterista Dirceu: “Quando Pero
Vaz de Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes,
escreveu uma carta ao Rei: tudo que nela se planta, tudo cresce e floresce. E o
Gauss da época gravou” (Caetano, 1968, faixa 1) Embora seja posterior a Alegria,
alegria, para alguns autores como Celso Favaretto essa música é a fundadora do
Tropicalismo, porém observando-se o arquivo Tropicalista e o projeto de renovação
da música e da cultura brasileira, percebe-se que Tropicália é não só a música
fundadora do movimento, mas sim a música - manifesto desse movimento, já que
sua construção é como o resumo do projeto Tropicalista que condensa em si mesma
as várias manifestações musicais e culturais do Brasil, através de um sincretismo
que retoma por meio da intertextualidade explícita e implícita, pela
interdiscursividade e pela memória discursiva a evolução da música popular
brasileira e da identidade nacional.
No fragmento acima se percebe uma radicalidade típica da poética de Oswald
de Andrade em interpretar as coisas pela raiz: “Ser radical é tomar as coisas pela
raiz. E a raiz, para o homem, é o próprio homem” (CAMPOS, 1965, p. 7). É uma
retomada do discurso da formação do Brasil, mas de forma irônica já que pela
intertextualidade se remete à carta de Pero Vaz de Caminha. O discurso
Tropicalista, nesse sentido, é o discurso descolonizador, que não dá à Carta de
Caminha um fundamento para a nação brasileira, mas uma forma de pensar a nossa
brasilidade a partir da exploração. Esse discurso vai de encontro ao discurso oficial,
segundo o qual essa carta é a fundadora do Brasil. O locutor nesse fragmento apela
para a memória discursiva do seu interlocutor ao resgatar um documento oficial em
forma de paródia. A retomada é uma inovação que irá repercutir durante toda a
música.
Como diz Favaretto:
As imagens tropicalistas são construções oníricas; podem ser interpretadas como faz o analista com o sonho, isto é, operando em sentido oposto ao seu processo de formação. Partindo-se das manifestações paródicas, em que ‘as relíquias do Brasil’ são desatualizadas pela descentração contínua de suas versões
correntes, atinge-se a alegoria do Brasil. (FAVARETTO, 2007, p. 119).
134
A melodia de Tropicália tem um tom épico, tenebroso, com batuques de
índios e um clima de tropicalidade pelos sons de animais, água batendo nas pedras.
O locutor em tom profetizante anuncia ao mundo o seu projeto. Esses efeitos, muitas
vezes cômico, zombador, irônico, grotesco nas construções paródicas, não são
meros efeitos sonoros, mas alcançam uma eficácia crítica e desmitificadora.
Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No planalto central do país... (VELOSO, 1968, faixa 1)
O locutor fala de coisas amplas que estão acima e abaixo dos homens: aviões
e caminhões, produtos modernos que simbolizam a velocidade e a verocidade do
sujeito moderno. Essas imagens mostram um sujeito cognoscente que sabe o que
faz quando se dirige ao centro do país para “organizar o movimento”, “orientar o
carnaval”, “inaugurar o monumento”. O tom pessoal da primeira pessoa sugere um
sujeito poderoso, dono de si, com o poder de criar coisas. “No planalto central do
país” indica que se está falando de Brasilia. E embora se saiba que Brasilia já está
construída, se sugere a formação de um novo monumento representativo do Brasil.
Constiui-se como um poema surrealista, desenroalado em imagens nascidas das
justaposições de objetos e desejos coisificados, montados como se fosse uma cena
fantasmagórica. Nessa estrofe o autor sugere a organização de um carnaval, uma
festa popular que brinca com as coisas sérias sob a forma de deboches, ironias,
como por exemplo, inaugurar o monumento. Para Brait (2008), a caranavalização é
a corrosão das imagens oficiais, renovando as ideias sobre determiandos
acontecimentos, ao manifestar uma atitude de festa com a cultura institucionalizada.
A linguagem surreal e as imagens representativas da cultura são renovadas pelo
poder carnavalesco da dessacralização do divino e do poder institucional. O sujeito
como locutor do país investe contra todos na tenativa de reoganizar o país com uma
nova estética, a estética moderna da superposição das formas e imagens como se
135
fossem imagens cinematográficas. A intertextualidade com o cinema é uma forma de
renovação, carnavalização do discurso oficial.
Aviões e caminhões para a época são figuras importantes, pois esses
transportes simbolizavam poder. Os transportes aéreos e as novas demandas de
mercado: transporte de mercadorias, de pessoas, de armas, de soldados à Guerra
do Vietnã. Os caminhões com a mesma finalidade dos aviões, mas tudo por terra.
Pode-se dizer que o sujeito vai de encontro ao centro do país para mudar as coisas.
Viva a bossa
Sa, sa
Viva a palhoça
Ca, ça, ça, ça... (2x) (VELOSO, 1968, faixa 1)
A identidade cultural defendida em Tropicália é a junção de vários elementos
de procedências opostas e díspares como bossa e palhoça56, sem contar que bossa
é uma abreviação de Bossa Nova, coisa típica da linguagem oral. Esse refrão da
música é uma alegoria interjetiva que sincretiza duas coisas com lugares sociais
bem distintos, a velha briga do moderno e do arcaico na sociedade da época. De um
lado aqueles que pretendiam ou idealizavam um Brasil com uma música moderna
que refletisse os anseios de uma época da Bossa Nova de João Gilberto, que pelo
“viva” dá a ideia de que já está ultrapassada e o projeto Tropicalista é retomar a
linha evolutiva da música Popular Brasileira. Do outro lado está à palhoça, símbolo
do atraso, do cafonismo, do abandono, do Brasil rural esquecido pelo poder. O
termo “palhoça” também faz referência às coisas nacionais (também digna de um
“viva”) que está presente nas composições de Chico Buarque, de Elis Regina, de
Geraldo Vandré, que embora revolucionários contra a ditadura, são velhos brigando
com armas velhas, porque o projeto Tropicalista não era só político, mas também um
projeto de inovação da música e da cultura nacional ao unir o novo e o velho, o
arcaico e o moderno, mostrando que no país (pelos vivas) ambos têm a mesma
importância e tudo fazia parte de uma mesma rede de sentidos para a cultura do
Brasil.
56
Palhoça pode fazer menção também a palhaço, já que os Tropicalistas usavam uma linguagem metafórica para esconder-se da censura.
136
Para Giddens a pós-modernidade é uma junção de vários elementos que
podem ser modernos como também arcaicos, mantendo um foco de não preconceito
com as coisas, mas sim uma atitude de renovação.
Para Benveniste, o sujeito na pós-modernidade é aquele que se propõe
como locutor dentro de uma função enunicativa, apropriando-se da língua para
manifestar sua atitude perante o estado de coisas do mundo. O sujeito tropicalista se
apropria da língua e faz dela seu ato criador.
O que se percebe no discurso Tropicalista é uma renovação do país pela
modernização da cultura e da música por meio da junção dos elementos culturais do
país sem preconceito com nenhuma região, mostrando que todos têm seu espaço
no mundo cosmopolita. A sincretização dos elementos díspares da música não é
nem a favor nem contra, mas é uma operação dessacralizadora da ideologia oficial
do Brasil e que transforma as inconsistências histórico-culturais em operações
floclóricas. Tropicália se realiza como uma alternância de festa e degradação,
carnavalização, na qual se agendam e são enumeradas imagens caóticas, em um
procedimento metalinguístico, que materializa uma crítica corrosiva e também um
simulacro com a ingenuidade de ver com os olhos livres, primitivos, que se aproxima
discursivamente da poética Pau-Brasil. Essa atitude tropicalista é uma forma de
deglutição da cultura ao conjugar elementos díspares como bossa e palhoça como
se fosse a união do moderno e do arcaico, numa espécie de antropofagia cultural
que desmitifica a supremacia de dado estado de coisas do mundo como os grandes
centros culturais do Rio de Janeiro e São Paulo, bem como as manifestações
culturais do outro lado do Brasil mais arcaico, conservador e mais resistente às
mudanças que a modernidade propõe.
O monumento
É de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde
Atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga
Estreita e torta
E no joelho uma criança
Sorridente, feia e morta
Estende a mão... (VELOSO, 1968, faixa 1)
137
Nessa parte da música temos a presença dos versos “O monumento/ É de
papel crepom e prata/” que é uma bricolagem moderna em mostrar o monumento
que a capital Brasília, símbolo da modernidade e da prosperidade do país, que é
feita de concreto passa a ser como se fosse algo descartável. O monumento faz
referência maior ao país Brasil. Essa é uma atitude antropofágica misturada com
poesia surreal e dadaísta. Os versos acima são como se essa montagem tivesse
sido feita com elementos montados aleatoriamente. Embora tenha essa
configuração, ela não é aleatória, pois a maioria das composições tropicalistas não
são nem ingênuas nem sem compromisso social, mas ao contrário, uma titude
aparentemente ingênua com uma carga semântica altamente corrosiva. As imagens
criadas para alegorizar o Brasil mostram uma plascticidade e ao mesmo tempo
aspectos de modernidade nos enunicados citados acima.
Os versos seguintes “Os olhos verdes da mulata/A cabeleira esconde/Atrás
da verde mata/ O luar do sertão” podem ser colocados na ordem direta assim: “A
cabeleira esconde os olhos verdes da mulata, atrás da verde mata, o luar do sertão”.
São citações diretas de José de Alencar e Olavo Bilac e do compositor Catulo da
Paixão Cearense. O autor faz uma bricolagem, tipo da poesia dadaísta, como se
estes recortes tivessem sido jornais (Ou livros?) recortados e escolhidos
aleatoriamente e depois escritos. “Um enunciado existe fora de qualquer
possibilidade de reaparecimento; e a relação que mantém com o que enuncia não é
idêntica a um conjunto de regras de utilização. [...] se, nessas condições, uma
formulação idêntica reaparece - as mesmas palavras são utilizadas, basicamente os
mesmos nomes, em suma, a mesma frase, mas não forçosamente o mesmo
enunciado”. (FOUCAULT, 2008, p. 101), ou seja, o enunciado reaparece em sua
formulação ipsis litteris, embora o efeito seja outro o desejado pelo autor. Uma das
intenções aqui é retomar a música do Nordeste como uma forma de renovação do
discurso sobre o tema do regionalismo, da saudade e até mesmo da música como
integração das regiões.
Na continuação da música, mais especificamente no estrebilho temos as
expressões “viva mata/viva mulata”, que segundo o autor em seu livro “Verdade
Tropical” são palavras polissêmicas que podem se referir a qualquer coisa. Uma
delas é a derivação de significado da própria estrofe anterior que faz remissão aos
poemas de Olavo Bilac, ao romance indianista de José de Alencar e a música de
Catulo da Paixão Cearense. Outra é a repetição de “tá-tá” que lembra o barulho das
138
metralhadoras do regime militar, que é um recurso aproveitado pelo autor, a sílaba
final –ta, e sua repetição lembra esse barulho, que foi bem cantado na música “Era
um garoto que como eu amava os beatles e os Rolling Stones” cantada pelos
Incríveis, uma versão de C'era Un Ragazzo Che Come Me Amava I Beatles E I
Rolling Stones de Gianni Morandi em 1966.
Embora pareça aleatória a composição, pode-se observar nos três autores
algo em comum da poesia parnasiana de Olavo Bilac, e do romantismo indianista de
Alencar e da tristeza do luar do sertão de Catulo da Paixão Cearense. Todos são de
épocas distintas, movimentos distintos e que comungam com a mesma ideia rural,
atrasada e ao mesmo tempo atual e moderna por se atualizar num suporte midático
que é a música tropicalista. Essa postura mostra a convivência simultânea do velho
e do novo, do moderno e do arcaico no mesmo país-monumento.
O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga
Estreita e torta
E no joelho uma criança
Sorridente, feia e morta
Estende a mão... (VELOSO, 1968, faixa 1)
Nessa parte da música o autor retoma o regime militar ao mostrar o
monumento (Brasil ou Brasília, embora equivalham à mesma coisa, já que Brasil é
Brasilia em latim), na rua antiga, estreita e torta que parece mais as entradas
obscuras dos porões da ditadura, que pode ser resgatado pelo interdiscurso ao
lembrar que foi nos porões que muita gente morreu em nome da democracia, onde o
próprio compositor Caetano Veloso foi preso e talvez torturado junto com Gilberto
Gil. A parte “E no joelho uma criança/ Sorridente, feia e morta” pode fazer menção
ao fato de no mapa do Brasil, a parte que se situa o Nordeste ser uma forma
semelhante a um joelho, onde as crianças passam fome e pedem esmolas, uma
denúncia do descaso do governo com as regiões afetadas com a falta d’água,
intrigas políticas e o poder nas mãos dos coronéis. Esse verso pode também fazer
referência a um quadro do pintor holandês Hieronymus Bosch que provavelmente
quis descrever o governo de Felipe II da Espanha. Veja:
139
O Jardim das Delícias Terrenas – www.suapesquisa.com.br
A intertetualidade e a interdiscursividade gerada entre os versos da música e
o quadro formam um quadro sintético que mostra a forma cruel de como eram
tratados aqueles que se opunham aos regimes totalitários. Pela intertextualidade
percebe-se a violência dos versos e da imagem quando se menciona a ditadura
militar no Brasil: a censura, as mortes o sumiço de pessoas e degredo dos
subverisvos. A música e a imagem também trazem à tona o discurso militar, sua
ideologia e as formas de tratar o povo, que não estava de acordo com os militares.
Para Celso Favaretto a música Tropicália se instaura num ambiente
tecnologizante de vivência urbana que “Coloca lado a lado os índices de arcaísmos
e das poéticas de vanguarada, conforme a linguagem de mistura da carnavalização:
montagem cubista, imagens surrealistas, procedimentos dadaístas e do cinema de
Godard." (FAVARETTO, 2007, p. 64) A mistura é composta de ritmos populares
brasileiros e estrangeiros, folclore, música clássica e de vanguarda, ritmos primitivos
e Beatles, cancioneiro nordestino e poesia parnasiana: o bom gosto e o mau gosto,
o fino e o grosso. A determinação musical básica é dada por um baião sublimar”.
Toda essa mistura inserida no momento histórico da época implica numa inovação
cultural e musical do país ao sincretizar as manifestações de todas as partes do país
e do mundo, principalmente, do resgate do nordeste brasileiro.
140
No pátio interno há uma piscina
Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa
E fala nordestina
E faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E no jardim os urubus passeiam
A tarde inteira
Entre os girassóis... (VELOSO, 1968, faixa 1)
Os versos acima tratam de mostrar o monumento Brasilia. O pátio interno do
monumento forma uma piscina feita de água azul, lembrando os mares e praias do
país, e de coqueiro e brisa, nomes muito comuns na fala nordestina que é o verso
que segue, mostrando que Brasília foi construída com sangue e suor nordestino e os
“urubus”, que faz alusão ao paletó dos deputados e ministros e militares (o terno
preto) e pessoas que se beneficiam do trabalho dos outros, passearem entre os
girassóis, o verde e amarelo cor da bandeira do Brasil, mostrando, inclusive que a
arquitetura da capital do país, apesar de ter sido projetada por Oscar Niemiyer, tem
cara nordestina. Os faróis lembram carros, caminhões (falado no início da canção)
tanques de guerra dos militares.
Pela memória histórica e pelo interdiscurso os versos “Na mão direita tem
uma roseira/Autenticando eterna primavera” simbolizam a pós-modernidade e a
jovialidade do monumento feito na década de 1950 por Juscelino Kubstcheck com
seu famoso “50 anos em 5”, e sua eterna juventude pela sua projeção ultramoderna.
As duas mãos, nesse sentido, são os partidos políticos, as posições sociais de
direita/situação e esquerda/oposição. A roseira está na mão direita e não na
esquerda, mostrando que o golpe foi dado contra esquerda e contra o comunismo. O
regime militar, sediado em Brasilia, se pretendia eterno, quando se diz:
“autenticando eterna primavera”.
Viva Maria
Ia, ia
Viva a Bahia
Ia, ia, ia, ia... (VELOSO, 1968, faixa 1)
141
O estrebilho seguinte é “Viva Maria ia-ia-ia/ Viva Bahia ia, ia, ia, ia...” uma
homenagem às muitas marias do Brasil e principalmente às do Nordeste onde esse
nome é comum para as mulhres devido à influência da Igreja Católica Apostólica
Romana, assim como seu par José para o sexo masculino. Refere-se também a
estrela Lois Malle e Bigitte Bardot, estrelas do cinema italiano pelas quais Caetano
Veloso tinha grande simpatia. A variação “ia-ia” é a forma como as escravas marias
do Nordeste se referiam a suas senhoras, que no dialeto Ioruba quer dizer mãe. É
uma retomada intertextual por meio do dialeto e da situação social que viviam os
escravos da época. É um resgate da cultura nordestina que tinha esse costume e da
cultura africana que foi trazida para o Brasil, e especialmente da Bahia, de que se
acredita que o compositor estivesse falando.
Segundo Caetano Veloso, em seu livro Verdade Tropical (1997), essa forma
Tropicalista, é na verdade, não somente falar de elementos tão díspares por falar
simplesmente, mas mostrar uma nova realidade cultural do Brasil pela junção de
seus elementos culturais representativos, principalmente o Nordeste, que durante
muitos anos foi tido como uma região de atraso, miséria e fome, que, no entanto se
urbaniza e moderniza de forma lenta, mas que de alguma forma não é nem foi o
Nordeste descrito pelos adoradores do atraso e do cafonismo, mas que possui um
grande potencial cultural digno de representação da identidade cultural do Brasil.
A música Tropicália lança as bases de todo o movimento Tropicalista.
Fazendo um resgate da memória discursiva e do interdiscurso percebemos uma
retomada do manifesto antropofágico do poeta Oswald de Andrade, quando em 1º
de maio de 1928, lançara sua antropofagia cultural que nos unia “Socialmente.
Economicamente. Filosoficamente” (ANDRADE, 1928), e embora Oswald tivesse se
referindo à língua Tupi, estamos mostrando aqui a antropofagia como um todo no
tocante à deglutição da cultura popular nacional e da cultura estrangeira para
sincreticamente criarmos uma identidade cultural para o Brasil.
Para Samoyault, “A percepção, pelo leitor de relações entre uma obra e
outras que a precederam ou a seguiram” (SAMOYAULT, 2009, p. 28), ou seja, a
memória discursiva acontece quando o leitor percebe, não apenas textualmente,
mas também pela temática, pelo movimento, pela obra, a retomada de outras ideias
que não são explicitadas ipsis litteris quem precedeu ou quem deu continuidade a
essas ideias. Neste caso, temos em Tropicália a retomada pela memória discursiva
do movimento antropofágico de Oswald de Andrade, mais especificamente com
142
relação à inovação da cultura nacional através da ideia de deglutir a cultura nacional,
conjugando elementos modernos com elementos arcaicos, cultura nacional com
cultura estrangeira, buscar no nosso passado antropofágico uma identidade nacional
para o Brasil.
A antropofagia, no sentido oswaldiano, é a deglutição/assimilação da cultura
europeia pela cultura nacional, no sentido de deglutir e essa cultura para criar-se
junto com a cultura nacional em todas as suas nuances uma identidade nacional
autêntica para o Brasil. Essa retomada do movimento antropofágico de Oswald
pelos Tropicalistas se percebe na forma de compor suas canções, o sarcasmo, a
ironia, a paródia, o tom, muitas vezes coloquial dessas canções, a junção de
elementos modernos e arcaicos na música como no trecho “Viva a bossa/ Sa, sa/
Viva a palhoça/ Ça, ça, ça, ça...”, no qual a Bossa se referindo a Bosssa Nova
representa o moderno na música popular brasileira justamente por assimilar vários
elementos como o jazz, o cool, a cultura urbana etc, enquanto que palhoça se refere
ao arcaico, ao atraso, ao cafonismo, mas que de alguma forma faz parte da cultura
do país. Essa cafonice do cancioneiro popular se refere ao fato de esses sujeitos
fazerem, uma certa apologia, as coisas nacionais e regionais como sendo
autenticamente nacionais, desprezando e depreciando o sincretismo que começa
aparecer até mesmo nessa canções. O tropicalismo não combate isso, apenas
renova.
No pulso esquerdo o bang-bang
Em suas veias corre
Muito pouco sangue
Mas seu coração
Balança um samba de tamborim
Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhoras e senhores
Ele põe os olhos grandes
Sobre mim... (VELOSO, 1968, faixa 1)
No pulso esquerdo o bang-bang alude à luta armada de esquerda que o
regime derrotou com o golpe “na mão direita a “roseira”. Esse relógio em forma de
arma de fogo lembra os antigos filmes do velho oeste uma comparação, talvez a
ditadura militar. Esse resgate da memória através da formação discursiva “discurso
143
militar”, “faroeste”, em cujos filmes trabalhou Marlon Brando, figura admirada pelos
Tropicalistas, alegoricamente resume o que são os militares e seu poderio, pessoa
de pouco sangue nas veias, sem senso humanitário, preocupado apenas em manter
a ordem por meio da violência. Marlon Brando foi a grande figura do cinema por cujo
talento os Tropicalistas tinham grande admiração, sendo um dos atores mais
influentes dos Estados Unidos ao lado de Charles Chapplin e Marilyn Moroe. Ficou
famoso por seus filmes de ação, faroeste e máfias, bem como o do Super-Man e por
partir em defesa dos negros americanos e dos índios. Sua postura demonstrava
além de sua tumultuada vida artística, particular e profissional, um sujeito
preocupado com as coisas de seu tempo e uma revolução no cinema norte
americano.
O sujeito e o coração tropicalista são dançantes e alegres. O samba citado na
música, resgate dos sambas de Noel Rosa, figura também muito admirada pelos
Tropicalistas, emite acordes não padronizados, entoados em escalas escondidas
entre acordes maiores e menores: as sétimas, as oitavas, as nonas etc. Esse
samba, no coração, pulsa como cinco mil alto-falantes, maior que qualquer barulho
de bang, maior que o próprio regime militar, porque o samba de tamborim não iria
morrer, enquanto a ditadura teria seu fim. Esses olhos grandes sobre o sujeito
tropicalista é o alcance da ditadura no país. Sua censura não se limitava apenas às
músicas de protesto, mas estava "antenada" com tudo que acontecia também no
morro, inclusive é válido salientar que o samba foi proibido durante muito tempo:
primeiro por ser música de negro do morro e, portanto, de péssima qualidade, e
segundo porque essa música protestava por sua independência e autonomia, bem
como pela falta de investimento nas comunidades faveladas. Pela memória e pela
intertextualidade resgata-se também o romance Macunaíma do Modernismo
brasileiro, pós semana de 22 de Mário de Andrade, que era uma alegoria do Brasil,
já que os Tropicalistas propunham essa inovação. No texto citam-se os olhos
grandes da sucuri amazônica sobre Macunaíma, o herói sem heroísmo.
Alegoricamente o sujeito Tropicalista se sentia como Macunaíma nessa floresta de
pedras cercada pelos olhos da ditadura militar. Essa caranavalização feita pelos
Tropicalistas para alegoricamente se referir à ditadura era uma forma de denúncia
do que acontecia no meio cultural da época, quando a ditadura ditava as regras do
mercado fonográfico e de tudo que podia ser e não ser produzido no país.
144
Essa proibição do samba nos morros cariocas foi antes e durante a ditadura
Vargas (ORTZ, 2006). Isso refletia um tipo de puritanismo na música, acreditando-se
que a música do país não podia ser manchada pelo batuque dos negros, que
ficavam fora dos padrões sociais da época. Como a indústria fonográfica e o rádio
na era Vargas estavam apenas começando, não se permitiu que outras músicas
além das de branco circulassem nas rádios ou fossem gravadas.
Viva Iracema
Ma, ma
Viva Ipanema
Ma, ma, ma, ma... (VELOSO, 1968, faixa 1)
Neste trecho que é outro refrão fixo57 da música há uma referência intertextual
a Iracema, romance indianista do cearense José de Alencar, que é um discurso
mitológico fundador do Ceará e que se pretendia ser a fundação mitológica do
Brasil. O nome Iracema também é o nome de uma famosa praia de Ceará e o
anagrama de América, uma construção discursiva, talvez alegórica ao
descobrimento de terras novas pelos espanhóis. Iracema rima com Ipanema,
famosa praia do Rio de Janeiro que serviu de inspiração para Garota de Ipanema,
de Tom Jobim. Duas praias famosas que se conectam pelo oceano que foi também
o elo de conexão entre o velho e o novo mundo. Iracema é o romance que dá nome
à praia e Ipanema é a praia que dá nome a uma música símbolo do Rio de Janeiro.
Tanto José de Alencar quanto Tom Jobim são conhecidos pelo mundo por suas
composições e já foram traduzidos, cantados e lidos em vários idiomas. O discurso
Tropicalista tenta sincretizar o Sudeste e o Nordeste, o passado e o presente em
suas músicas numa representaçao mnemônica de construção de uma identidade
nacional pela arte.
Domingo é o fino-da-bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém!
O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo
Do meu terno
57
Diz-se fixo porque nesta parte trocam-se apenas os enunciados, mas as estrutura rítmica e o número de sílabas poéticas e musicais são as mesmas.
145
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem!
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem!... (VELOSO, 1968, faixa 1)
O primeiro verso dessa estrofe faz referência a um Programa de TV de Elis
Regina exibido no domingo. Elis Regina fazia parte de outro discurso que era o da
identidade nacional através da música popular brasileria feita com elementos do
Brasil, ou seja, era inaceitável para esse grupo de Elis Regina contavam com
Geraldo Vandré, Chico Buarque e o próprio Gilberto Gil, que tinha sido
simpatizante, no início por infuência da própria Elis Regina. Para esse mesmo grupo
a entrada de elementos estrangeiros não era nem bem vista e nem aceita, tanto é
que não se permitia o uso de guitarras elétricas, roupas extravagantes, ou qualquer
tipo de intervenção que lembrasse a cultura internacional.
Embora houvesse essa resitência por parte do grupo de Elis Regina, o tipo de
música feita por ela e pelo seu grupo já se afastava bastante desse tom nacional
que esse grupo tanto cultuava. Na verdade era uma espécie de enganação, pois
tudo que se produzia em termos culturais na época já não era o mesmo da década
de 1920 e 1930. A positividade da época (Foucault, 2008) já era outra e os sujeitos
sociais já se moviam ideias em busca de novas formas de composições musicais. O
próprio Caetano Veloso em Verdade Tropical afirma que o discurso da direita
militarista caminhava para um ostracismo cafona (VELOSO, 1997), pois se
negavam a explorar as possibilidades que o mundo moderno oferecia, se fechando
nessa suposta identidade nacional baseada apenas em ditames de parlamentares,
historiadores e generais de gabinete.
Um fato que talvez prendesse bastante a postura anti-cosmopolita de Elis
tenha sido o fato de ela ter sido filha de família tradicional e ter começado a cantar
na igreja. Esse patriotismo exagerado dela a aproximou bastante do regime militar,
do qual ela era uma espécie de musa. Seu programa era um sucesso para esse
grupo e para aqueles que acreditavam em um Brasil limpo e livre da intervenção
estrangeira. Elis Regina sempre dava um viva às forças armadas em suas
apresentações. Há episódios da vida de Elis Regina, em que a mesma fez
denúncias contra Nara Leão, dizendo que esta não respeitava o regime militar.
(VELOSO, 1997).
146
Para época, o discurso do grupo de Elis Regina era um discurso de
resistência, já que a pós-modernidade com as correntes de vanguarda na poesia
concreta, no Cinema Novo de Glauber Rocha e o teatro de Hélio Oiticica estavam se
tornando uma realiade para muitos deles. Além disso, havia a Bossa nova de João
Gilberto que já mostrava grandes avanços para a renovação da música e da cultura
do Brasil.
Talvez, devido a esse fato de Elis Regina estar ligada a esse tipo de discurso
e ser adorada pela ditadura militar é que o sujeito tropicalista tenha usado
simultaneamente domingo/fino da bossa, segunda-feira/fossa e terça-feira/roça. O
domingo como sendo o primeiro dia da semana, dia de festa e de alegria. Domingo
também vem do latim Dies Dominicus (Dia do Senhor), fazendo referência explícita
ao papel da igreja na sociedade da época. Se no domingo é o fino, a segunda-feira
já está na fossa, uma referência bem burlesca, pitoresca ao fato de aquele tipo de
bossa-nova já estar na fossa, necessitando de uma renovação. Na terça-feira já está
na roça, simbolizando tanto o desaparecimento da bossa-nova, como também seu
atraso devido à referência explícita “roça”. É como se Caetano estivesse dizendo
claramente que se a Bossa-nova continuasse da maneira como vinha iria virar
música folclórica, talvez, inclusive, com um dia no calendário dedicado a ela.
O porém, que liga os versos seguintes encerra uma oposição ao que foi dito
sobre a Bossa-Nova defendida por Elis Regina e seu grupo, dizendo o monumento
que aqui não significa Brasilia, mas sim o projeto tropicalista que é bastante
moderno, que num tom sarcástico se refere ao movimento com uma modernidade
relativa. Continuando, fala do terno se referindo às vestimentas dos Tropicalistas
que eram coloridas, descartáveis, de plástico em oposição às roupas engravatadas
da turma de Elis Regina e Chico Buarque que se apresentavam sempre bem
vestidos conforme a moda da época.
O sujeito termina mandando todo mundo pro inferno, que é uma atitude pop
encabeçada pela turma do iê-iê-iê de Roberto Carlos e sua música Quero que vá
tudo pro inferno, dizendo não se incomodar com o que dizem sobre o movimento
Tropicalista.
147
Procissão: religiosidade e sincretismo religioso.
A formação discursiva de Gilberto Gil é a de um sujeito cosmopolita ligada à
cultura moderna. Em termos gerais Gil é mais músico do que poeta, enquanto
Caetano é mais poeta do que músico. Gil sempre trabalhou como músico, tocando
violão e acordeón como contratado da rádio Tupi de São Paulo, na qual
acompanhava vários shows de calouros patrocinados pela emissora.
De certo modo Gil estava mais ligado com as coisas do Nordeste do que seu
companheiro Caetano Veloso. Embora sua formação na Bahia fosse cosmopolita
devido às suas amizades com o pessoal do cinema novo e da Bossa-Nova, ele
sempre esteve conectado com Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Muitas de
suas canções abrangem o universo nordestino, embora com a visão renovada
devido à influência do Tropicalismo, do rock, da Bossa-Nova e do cinema novo.
Procissão é um rock do tipo Bill Haley misturado com baião58. O nome procissão que
leva o nome da música de Gil é um nome característico do Nordeste. É lá onde se
cultuam santos e se fazem procissões em homenagem a eles. A procissão é uma
espécie de aglomerado de pessoas entoando hinos religiosos, que vai, geralmente
de um lugar profano para um lugar sagrado, nesse caso se parte de um lugar
qualquer até a estátua do santo homenageado. É uma forma inconsciente de
mostrar a devoção por santos interventores junto ao Deus todo poderoso, uma
tradição da Igreja Católica Apostólica Romana.
Olha lá vai passando a procissão Se arrastando que nem cobra pelo chão As pessoas que nela vão passando Acreditam nas coisas lá do céu As mulheres cantando tiram versos Os homens escutando tiram o chapéu (GIL, 1968, faixa 7).
Nesse trecho há a descriçao da procissão, visto por um sujeito que a vê de
longe, devido ao conteúdo pragmático do advérbio lá. A procissão é comparada com
uma cobra, símbolo do pecado de Adão e Eva e do pecado original no paraíso. Essa
58
O baião tocado por Gilberto e Gil na década de 1960 e o de Luiz Gonzaga na década de 1930 e 1940 já não é aquele baião folclórico cantado por cegos de feira, bandas e trios do Nordeste, seu ritmo quente já é uma criação nova devido às influências que Luiz Gonzaga também sofreu no Rio de Janeiro quando tocava ritmos americanos nos cabarés do Rio de Janeiro. Em ambos os casos o baião não é uma música genuinamente nacional, mas um ritmo novo feito pela mistura de valsas, mazurcas, tangos, etc.
148
comparação que o sujeito faz com a procissão tanto pode simbolizar a purificação
como também a maneira como a procissão anda “se arrastando”, lenta. O próprio
sujeito explica que as pessoas da procissão acreditam nas coisas celestiais e em
sinal de devoção e respeito, “as mulheres tiram versos”, porque normalmente são
elas que cantam os hinos religiosos, e “os homens tiram o chapéu” que é um
acessório mais masculino que feminino para época.
Eles vivem penando aqui na terra Esperando o que Jesus prometeu (GIL, 1968, faixa 7).
Essa parte da música remete pela memória ao discurso religioso da salvação,
no qual as pessoas têm que aceitar as coisas como elas lhes são dadas para
aguardar uma vida melhor no céu. Essa promessa foi dada por Jesus Cristo, nome
dado ao fundador do Cristianismo, que prometeu uma vida melhor para aqueles que
aqui na Terra passavam por aflições diversas. Para esses cristãos esse penar aqui
na Terra é passageiro e o paraíso que eles aguardam é para sempre. O sujeito
tropicalista mostra que essa forma de encarar as coisas é uma forma mitológica de
explicar fenômenos que têm uma vivência social, ou seja, a mudança de algo não
depende exclusivamente de religião, mas da ação do homem sobre as coisas. A
maneira como o autor trata o tema parece uma forma meio cômoda, quando na
verdade é uma crítica altamente mordaz e corrosiva ao mostrar que a forma de
resolver os problemas por meio da religião é uma cobra que se arrasta lentamente
sem lograr êxito.
Gil faz uma crítica ao discurso religioso por sua fuga da vida social,
prometendo um paraíso em outro plano esquecendo as mazelas que o povo sofre
aqui na Terra e, não se comprometendo com uma mudança social que procure
minimizar os problemas sociais através da luta de classes, da mudança na política
com a cassação dos corruptos, de melhores dias para educação, habitação e
saneamento básico. O discurso religioso promete um paraíso para os mortos.
Embora seja válida a posição social do sujeito em relação às colocações sobre o
discurso religioso, vale observar que fazer música também não resolve o problema.
Este é bem mais sério e vai muito, além disso, é necessário uma mudança de
paradigma para que se possa começar a perceber algumas mudança no campo
social e da distribuição de renda do país.
149
E Jesus prometeu vida melhor Pra quem vive nesse mundo sem amor Só depois de entregar o corpo ao chão Só depois de morrer neste sertão Eu também tô do lado de Jesus Só que acho que ele se esqueceu De dizer que na terra a gente tem De arranjar um jeitinho pra viver (GIL, 1968, faixa 7)
Nessa outra estrofe o sujeito reitera a questão do discurso religioso com a
salvação pós-morte, mas discorda do fundador do Cristianismo dizendo que ele se
esqueceu de dizer que enquanto não se morre para ir para o paraíso, tem que se
dar um jeito para viver. Essa postura niilista é típica tanto dos tempos modernos
quanto dos Tropicalistas que pregavam um discurso livre de coerções políticas e
religiosas, pretendendo a libertação do homem por meio do engajamento social e
pelo conhecimento de sua cultura. Esse jeitinho para viver é justamente a renovação
do discurso, pois ele discorda da não ação do homem, mostrando que não é disso
que ele vive, mas também de sua ação sobre o meio para modificá-lo sem esperar
só por Deus.
Pelo interdiscurso resgatamos a questão do coronelismo no sertão que usava
a Igreja, muitas delas aliadas a esse regime, para oprimir os pobres e ao mesmo
tempo inculcar-lhes a ideia de que eles sofrem assim porque Deus quer. Isso é uma
forma de manter o poder no sertão e ao mesmo tempo garantir que suas futuras
gerações de “coroneizinhos” continuarão bem, porque o povo ignorante com fome
não irá protestar por nada, porque a Igreja alivia seus males. A postura de Gil
também é uma forma de denúncia da ditadura militar que estava diretamente
vinculada às políticas do coronelismo, que juntos queriam manter o povo ignorante e
alheio à situação do país. Gilberto Gil renova o discurso sobre o Nordeste ao
questionar a autoridade da Igreja, que junto com os latifundiários do Nordeste
mantiveram o povo no cabresto por muito tempo, mostra que o Deus da igreja, na
verdade não passa de um mito para manter o povo sempre a mercê dos poderosos
que nada fazem para mudar a situação porque ela lhe favorece e lhe enriquece.
Esse discurso de Gilberto Gil é um resgate do discurso do Cinema Novo de
Glauber Rocha que tem como uma de suas preocupações o Nordeste brasileiro,
realizando denúncias através de filmes como Deus o Diabo na terra do sol, Terra em
Transe. O próprio aspecto da música é o simulacro de sucessivas imagens fílmicas,
150
como a imagem da cobra, dos rituais religiosos que se encena durante a trajetória
da procissão.
Muita gente se arvora a ser Deus E promete tanta coisa pro sertão Que vai dar um vestido pra Maria E promete um roçado pro João Entra ano, sai ano, e nada vem Meu sertão continua ao deus-dará Mas se existe Jesus no firmamento Cá na terra isto tem que se acabar. (GIL, 1968, faixa 7)
Nessa parte final da música, o sujeito fala sobre a pretensão dos coronéis do
sertão que se sentem Deus, prometendo fazer verdadeiros milagres para o sertão.
Esses milagres sarcasticamente citados por Gil são coisas como “vestido”, “roçado”
e outros como dentadura, sandálias e mais recentemente empregos. É uma situação
que se arrasta há anos: dá-se pouco para os pobres para comprarem sua
consciência com aquilo que já é deles.
No final aparece uma contradição do artista colocando novamente as coisas
no plano espiritual. Talvez por falta de opções ou mesmo pela falta de informação
das pessoas o autor tenha se conciliado com Jesus no final do texto. Outro
entendimento é que Gil tenha caído na mesma tentação do discurso religioso de por
as coisas para Deus resolver ao invés de mobilizar a cabeça dos homens para isso.
Em Gilberto Gil falta essa corrosão, esse espírito inquieto e sarcástico que está mais
presente nas composições de Caetano Veloso, tanto é que nos dois últimos versos,
o sujeito parece conciliar suas concepções sociais com o discurso religioso: Jesus
deve fazer justiça também na terra.
No dia em que eu vim-me embora: chega de saudade
Essa música reflete àquelas formações discursivas em que há o êxodo dos
nordestinos, para ir morar em um lugar diferente. Normalmente se faz isso em prol
da sobrevivência, intrigas entre famílias, ou, simplesmente, em busca do sucesso,
que na sua terra não é alcançado, seja pela falta de oportunidades, seja pelas
incoerências de ideias entre o compositor e seu público. Com essa formação
discursiva vamos analisar simultaneamente No dia em que vim-me embora de
Caetano Veloso, Triste partida de Patativa do Assaré, cantada por Luiz Gonzaga e
151
Sampa também de Caetano, que mesmo não pertencendo ao período que está se
analisando, se agrupa também nessa mesma formação discursiva.
O conjunto dessas músicas reflete justamente a ideia repetitiva de muitos
compositores brasileiros que, ao falar do Nordeste se referindo ao êxodo do campo
à cidade, mostram um certo saudosismo pela terra. É como se toda a vivência do
sujeito ficasse restrita apenas na saudade ao lembrar-se de sua terra natal. Luiz
Gonzaga foi um dos grandes compositores da MPB que difundiu e divulgou essa
ideia no sudeste do país e em todo Nordeste. Outros como Zé Geraldo, do interior
mineiro, também tratou do tema tal qual foi tratado por Luiz Gonzaga. Belchior,
compositor cearense, também compôs e cantou a saudade da terra de forma
saudosista, dentre tantos outros. Apenas os Tropicalistas fugiram a essa ideia,
defendendo que essa saudade gerada pela saída da terra natal é a ilusão do doce
retorno que atormenta todos que vivem fora de sua terra ou seu país. No entanto,
isso é algo que foi criado como um discurso para manter a dependência in locus do
sujeito que sai de sua terra natal ou país. Albuquerque Júnior (1999) fala que essa é
uma invenção imagético-discursiva que foi gerada ao longo da criação de discursos
sobre a região Nordeste, que busca reforçar esse retorno à terra natal, seu torrão,
seu lugar. O Nordeste foi gestado discursivamente como o lugar da saudade e do
esquecimento e esse pensamento saudosista é uma forma de lembrar-se de eterno
torrão.
No dia em que eu vim-me embora Minha mãe chorava em ai Minha irmã chorava em ui E eu nem olhava pra trás No dia que eu vim-me embora Não teve nada de mais (VELOSO, 1968, faixa 3).
Nessa primeira parte da música, Caetano faz um certo sarcasmo com relação
ao choro dos personagens mãe e irmã. Talvez não tenha acontecido realmente,
mas pelo tom irônico com o qual o sujeito trata o tema é, ao mesmo tempo, uma
alegoria da partida do nordestino para São Paulo e também uma forma proposital de
dessacralizar a saída da terra natal. O fato é que, independente da veracidade do
fato, chorar em “ai” é um choro de dor e de desespero, algo que toda mãe sente
devido ao seu instinto materno. Já o choro em “ui” é um choro de dor, mas é uma
dor menos forte que o “ai” da mãe, porque a relação fraternal não tem laços tão
152
doloridos entre os irmãos da mesma prole. E mesmo com todo esse lamento o
sujeito da música diz que isso não era nada demais.
Se observarmos a música Triste partida cantada por Luiz Gonzaga, a
formação discursiva muda totalmente. Primeiro porque se vai explicar o motivo da
partida, que é a seca, e aí dar-se uma longa jornada até se saber no dia 19 de
março, dia do padroeiro São José, que não vai mais chover. No discurso do sujeito
tudo isso que acontece é regido pela fé e pela observação da experiência. Tudo que
ele faz tem a ver com o que ele vive, já que observa os fenômenos naturais e
consegue um julgamento sobre a situação. Há nesse discurso do sujeito um apelo
religioso, atribuindo boa parte dessas desgraças a Deus. Há um resgate do discurso
religioso pela memória discursiva, segundo o qual Deus provém tudo e quando isso
falta é algum tipo de castigo por pecados cometidos.
Observa-se uma mesmice no discurso de Luiz Gonzaga, a repetição dos
lugares comuns, do tudo comum, da vida comum. O discurso não evolui e caminha
sempre para um mesmo desfecho: chorar a saída da terra natal. O Tropicalismo não
apenas rejeita, mas também renova essa ideia ao tentar desmitificar a identificação
com os lugares geográficos e situado-os em posições sociais distintas, tentado
desmitificar esssa ideia de que o homem deve nascer e morrer no mesmo lugar
geográfico e social.
Apela pra Março Que é o mês preferido Do santo querido Senhor São José Meu Deus, meu Deus Mas nada de chuva Tá tudo sem jeito Lhe foge do peito O resto da fé Ai, ai, ai, ai E vende seu burro Jumento e o cavalo Inté mesmo o galo Venderam também Meu Deus, meu Deus Pois logo aparece Feliz fazendeiro Por pouco dinheiro Lhe compra o que tem Ai, ai, ai, ai·. (GONZAGA, 1964)
153
Nesse momento se iniciam os preparativos para a longa viagem no pau de
arara. Entre choros, lamentos e saudades da roseira, do gato, do cachorro, do torrão
natal o caminhão parte para São Paulo. Essa saída é arastada, sofrida, dolorida de
saudade e lamento sobre a terra natal. Embora apareça a súplica “Meu Deus, meu
Deus” entoada como se fosse uma ladainha para justificar o momento de dor e
sofrimento, o fato de o “feliz fazendeiro” aparecer para comprar tudo com pouco
dinheiro já é uma crítica social aos aproveitadores, que sendo eles os causadores de
muitas dessas mazelas, são eles mesmos quem lucram com elas.
Há nesse discurso sobre a saída da terra natal uma maior importância à saída
e a todo o percurso até chegar a São Paulo. O sujeito dá ênfase às coisas da terra,
seus costumes, sua ingenuidade, mostrando o outro lugar, não como uma saída
para o mal instalado, mas como uma pena de morte. Instaura-se nessa formação
discursiva uma contradição: o sujeito vai para São Paulo para tentar sobreviver da
fome e da seca, e ao mesmo tempo mostra São Paulo “salvador” como a morte e o
castigo. Nessa perspectiva o sujeito está preocupado não apenas com o corpo que
sofre os efeitos do meio, mas com a cultura que vai ser perdida, esquecida em terras
distantes, onde a cultura é diferente e causa medo porque ele acredita que vai
desenraizar-se, perder seus vínculos com a terra natal e se transformar em algo que
ele não é.
Esse fator bastante comum em alguns compositores da época e em alguns
atuais não é simplesmente uma lamentação de abandono da terra natal; por trás
disso há algo bem maior que é o afloramento do capitalismo, da República, das
relações internacionais e da industrialização do país. O nordestino resiste a isso
porque já tem um discurso que fala dessa saudade. Luiz Gonzaga, cantando no eixo
Rio - São Paulo dissemina essa saudade da terra e seu possível retorno, porque ele
é o representante de toda uma leva de nordestinos tanto os de São Paulo e Rio de
Janeiro como os que estão no Nordeste. Seu canto é triste e melancólico para
aquele que se encontra “nas terras do sul” e para aqueles que têm parentes vivendo
lá.
Para Albuquerque Júnior (1999), esse discurso é uma invenção criada a partir
de um discurso sobre a constituição do Nordeste como região. No fundo tudo isso é
uma denúncia da situação da região que sempre foi relegada ao abandono, sem
nunca ter recursos dos governos para combater os efeitos da seca, e quando isso
era destinado, o dinheiro se perdia no caminho ou era desviado para alguma
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construção de algum açude ou barragem na terra de algum coronel para manter o
povo no seu curral eleitoral. Investia-se o dinheiro que era do povo em terras de
patrões e depois usava-se esses benefícios como se fosse algo de sua autoria para
que o povo, com essa gentileza, continuasse votando em seus candidatos.
Luiz Gonzaga, apesar de sua representatividade folclórica no Nordeste como
o fundador do baião59, e sua popularidade nas décadas de 1930 até 1950, devia ter
feito mais e ter ido mais longe à crítica social sobre as dizibilidades sobre o
Nordeste. Sua atuação no cenário artístico foi excelente, mas seu papel social foi
falho. Ele pregava o discurso do fazendeiro, do deputado, do governador, que queria
justamente isso: manter o povo ocupado, culpando Deus por suas desgraças e ao
mesmo tempo acreditando que eles eram seus bem-feitores, seus salvadores,
quando na verdade esse discurso da saudade era uma maneira de garantir o
sucesso e o sustento de Luiz Gonzaga e a manutenção das oligarquias no Nordeste.
Não se está, neste sentido, condenando a postura de Luiz Gonzaga, mesmo porque
seu grau de instrução e sua formação discursiva não permitiam uma visão de mundo
que ultrapassasse essa ideia de coronelismo e indústria da seca, embora se
perceba em certas canções como em Vozes da seca uma pitada de crítica sobre a
questão da chuva, de Deus e dos homens que mandam no Nordeste. A contribuição
da música de Luiz Gonzaga para colocar o Nordeste no cenário nacional como
música nacional é indiscutível. Discutível são apenas algumas questões como a
subserviência ao coronelismo e aos políticos da época. Na sua posição, como um
homem que falava em nome de muitos, Luiz Gonzaga podia ter feito mais pelos
seus irmãos nordestinos, porém sua formação discursiva, sua religiosidade ortodoxa
e sua pouca instrução, talvez tenha contribuído para que isso tivesse acontecido.
Luiz Gonzaga era nordestino, pernambucano filho de Januário e Santana,
saiu de casa fugido por tentar matar um homem. Levou uma surra da mãe tão
grande que fugiu de casa e só voltou vinte anos depois, já cantor e famoso. A saída
dele e de Caetano Veloso são totalmente distintas, as formações discursivas dos
dois são também distintas e a positividade da época também era diferente. Pode-se
perceber que a positividade das épocas envolvidas, o arquivo que cada um
seleciona para a formação discursiva a que cada um pertencia, mostram a forma
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Embora se diga que o baião é uma música e dança folclórica, sua composição e seu ritmo já são invenções novas, já que sua inserção no mercado fonográfico nacional obedece a padrões estéticos novos ao lado do jazz e do cool, da Bossa-nova. Então dessa forma sua representatividade pela originalidade e pela nacionalidade não se sustenta.
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como cada um ver o mundo: Luiz Gonzaga mais provinciano, mais ortodoxo,
enquanto que Caetano Veloso, mesmo sendo do Nordeste, é mais cosmopolita, não
religioso, mais rebelde, etc.
Já na música de Caetano Veloso No dia em que vim-me embora não se fala
do motivo da partida, nem se faz alusão à saída como algo sofrido pelo sujeito. Ao
contrário da formação discursiva de Patativa o sujeito tropicalista não acredita ser a
saída da terra natal uma fatalidade saudosista. Não há lamentos, nem choros por
parte do sujeito que parte, nem mesmo das coisas que deixa: mãe e irmã. Ele
simplesmente vai e não olha para trás. O Tropicalismo recria esse discurso
identitário sobre o Nordeste, mostrando nossas grandes composições, nossa cultura
e nossa gente em suas músicas modernas. Os tropicalistas resgataram toda a
cultura nacional, e em especial a nordestina, já que os mesmos também eram
nordestinos. Esse resgate era feito por meio do suporte que eles sustentavam na
mídia com sua música estética e sincreticamente estruturada, dentro de um conceito
de vanguarda e filosofia modernista. O fato de não se dar muita importância à
religião e aos costumes que os Tropicalistas consideravam cafonas, como por
exemplo, os costumes nacionais arraigados ao provincialismo, a religião, a política
militarista e seus conceitos de família, ordem, progresso e civilidade, era um
exemplo da filosofia niilista que pregava o apogeu do homem moderno, do homem
racional, do homem do poder, do homem-leão. Tentava-se mudar toda uma
estrutura social através do engajamento cultural do homem trabalhando sobre sua
cultura para poder modificá-la ou melhorá-la.
A música Sampa, que não faz parte das composições do período que
estamos analisando, também faz remissão ao tema tratado em Triste partida e No
dia em que vim-me embora. Essa música é como se fosse à continuação dessa
última, que embora se configure discursivamente como uma apologia à cidade de
São Paulo, sua temática remete à chegada do nordestino em São Paulo, das “duras
esquinas”, da esquisitice da cidade grande. Na música Sampa há a mesma
organização caótica do Tropicalismo como a quebra da sintaxe e organização dos
versos, superposição de imagens e o mesmo sincretismo cultural ao mostrar Vinícius
de Moraes, os irmãos Campos, Rita Lee e os Mutantes, os Demônios da Garoa, etc
na mesma música.
Nessa música o sujeito fala da experiência da cidade grande a partir de um
ponto que já é a própria cidade, do que acontece em seu íntimo quando passa pelas
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avenidas centrais de São Paulo. O sujeito não faz nenhuma relação com o lugar de
onde veio, a não ser na parte que diz “E quem vem de outro sonho feliz de cidade,
aprende depressa a chamar-te de realidade” (VELOSO, 1978, lado 2, faixa 2) para
dizer que São Paulo é a realidade do país com suas esquinas, filas, favelas, da
fumaça que cobre as estrelas, de seus compositores e seus ritmos. O sujeito
expressa que qualquer realidade que seja São Paulo é um sonho, algo inventado,
fantasiado, uma utopia, que o progresso de São Paulo com todas as suas mazelas é
que é a realidade, expressando assim um sentimento cosmopolita do mundo,
mostrando que a pós-modernidade é que é a realidade do país e não o discurso
sobre o atraso.
O movimento Tropicalista, como diz Albuquerque Júnior (1999), foi o único em
suas composições e em seu discurso fugiu da ideia de que o Nordeste é um lugar
atrasado, de messias, de cangaceiros, de gente rude e feroz, quase que
animalescos. Eles trataram de mostrar o Nordeste moderno com seu grande
potencial cultural com sua gente produtora de conhecimento, de sua evolução
perante os movimentos sociais, deixando para trás todo aquele discurso de jecas-
tatus, de Fabianos, de sinhás, de que tratava o regionalismo de 1930. Seu discurso
é sobre a cultura nordestina e não sobre a região. Não trataram de mostrar os
problemas enfrentados pelos nordestinos como uma calamidade gerada por Deus
ou por culpa da localização geográfica da região, e sim como problemas sociais
advindos da má distribuição de renda para as outras regiões do país e do desprezo
que sempre trataram os governantes com o Nordeste.
Ainda na música Sampa, o sujeito fala da estranheza que lhe causou a cidade
grande, o impacto que o fez refletir sobre sua condição de nordestino na cidade
grande. Que foi um começo difícil, não era o espelho do qual estava costumado,
porque quando olhou e se olhou não se viu refletido, porque tudo era o avesso
daquilo que estava acostumado. Esse discurso remete aos mesmos utilizados por
Patativa do Assaré e Luiz Gonzaga, só que o sujeito tropicalista já tem fixa a ideia de
que vai ficar por ali em vai ter que se acostumar e não quer voltar para sua terra. “E
os novos baianos te podem curtir numa boa” é justamente o contrário de “Faz pena
o nortista tão forte e tão bravo, viver como escravo no norte e no sul”.
Em No dia em que vim-me embora Caetano Veloso encerra dizendo que não
deixava nada para traz a não ser a família da qual ele fala. E embora não tivesse
certeza do que lhe aguardaria na cidade grande, não apresentava nem dor, nem
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medo nem saudade, porque o que ele queria era realizar os seus sonhos que na
sua terra não era possível. Termina dizendo que foi sozinho para capital.
Enfaticamente citado três vezes.
Alegria, alegria: bananas ao vento no coração do Brasil
Alegria, alegria é uma das primeiras canções tropicalistas. Foi uma música
recebida com muitas vaias por parte do público no Festival da Record em 1967.
Com essa música Caetano Veloso estava iniciando o Tropicalismo e, embora essa
não seja a música que filtra todo o projeto tropicalista, já lança as bases do que seria
o movimento; Tropicália é a música que lança o Tropicalismo como um projeto
cultural para o Brasil e ao mesmo tempo uma canção que tem a base filosófica
desse movimento.
Alegria, alegria por assim dizer foi a base filosófica, sociológica e
comportamental do Tropicalismo. Ela não fala no projeto cultural com as mesmas
propriedades de Tropicália, ela lança de modo geral como seria a filosofia, o
comportamento e as posturas que o Tropicalismo iria assumir a partir daquela
manifestação.
Com o mesmo espírito e formação discursiva com o qual compôs Tropicália
ou Panis et Circenses, Caetano Veloso mostrou naquela noite de 1967, na TV Tupi
de São Paulo, dia do 1º Festival de Música Popular Brasileira, acompanhado pela
banda Beat Boys, que a cultura nacional estava precisando ser revigorada,
reinventada, renovada, porque a música e a cultura do país estavam se perdendo
em meio ao anacronismo, o cafonismo e o discurso retórico da esquerda atrasada.
Pelo interdiscurso Caetano estava se referindo às músicas produzidas por Chico
Buarque, Elis Regina e outros compositores que insistiam em trabalhar apenas com
o nacional, rejeitando qualquer projeto de mudança vinda do exterior e, isso se dava
tanto em âmbito nacional, já que se fazia uma seleção do que deveria ser posto nas
canções com o olho grande da censura sobre todos, tanto no internacional que já
mostrava o Brasil se desenvolvendo culturalmente através da absorção ativa das
culturas que adentravam ao país com o populismo desenvolvimentista da classe
operária e das indústrias que aqui se instalavam.
Inicialmente, a música foi acompanhada por uma banda de rock, os Beat
Boys, uma banda que imitava os Beatles, daí o nome e o estilo da banda. Só isso
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foi causa para inúmeras vaias para o compositor, já que a maioria de seus
concorrentes se apresentou tocando sozinho ou com grupos de músicos que
usavam a estética musical padrão da época: uso restrito de baterias, o violão era o
mais usado, pois raramente se tinha outro instrumento de corda, o acordeón e os
ritmos eram típicos como canções, modinhas, baião etc. O som de “Alegria, alegria”
já é contagiante, alegre, alternando em ritmos dissonantes mesclados com guitarras
elétricas, contra-baixos e baterias.
A letra era mais dissonante ainda fazendo um recorte temporal de coisas
modernas e ideias arcaicas, dessacralizando e descolonizando a visão cultural que
até então predominava na música e na cultura do país. Fazia uma apologia hippie60
e ao mesmo tempo cool61, mesclado com uma semântica fragmentada, lembrando
mais pinturas surrealistas e textos dadaístas.
Caminhando contra o vento Sem lenço e sem documento No sol de quase dezembro Eu vou O sol se reparte em crimes Espaçonaves guerrilhas Em cardinales bonitas Eu vou (VELOSO, 1967, LADO B, FAIXA 4).
Nessa primeira parte da música, o sujeito tropicalista se diz caminhando
contra o vento que lembra a expressão popular “remar contra maré”, significando
que esse sujeito está indo de encontro a algo da época como: a arcaização da
música popular e, principalmente da Bossa Nova herdada de João Gilberto que
para os tropicalistas ficou conhecida pelo bordão retomada da linha evolutiva da
Música Popular Brasileira. Também contra o vento sugere a questão política do país
em que os militares assumiam o país com mãos de ferro e no qual os Tropicalistas
60
Movimento comportamental que se iniciou nos Estados Unidos nos anos de 1960 que tinha como lema “Paz e amor”, (Piece and Love). Pregavam o amor livre e a não violência. Foi um movimento de contracultura, no qual jovens de várias partes do mundo se juntaram para dizer não às armas e os valores tradicionais da época. Geralmente eram artistas e músicos que se sentindo presos pelos valores sociais da época criavam comunidades coletivistas e nômades cultivando mercados não formais, para viverem sua liberdade sexual e social. No Brasil esse movimento culminou na década de 1970 e em outros países ele já estava quase no fim. 61
Quer dizer “ser legal”, uma tendência pop que se juntou a uma série de movimentos de contracultura e subcultura. Está aliado aos movimentos pós-punks, beatniks, Jazz Cool e Bebop. Na música foi um movimento que se caracterizava pelo uso improvisado de instrumentos musicais que tocavam quase de forma independente, em confronto com a música clássica que seguia um padrão linear.
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foram contra e essa música deixa bem claro quando fala “Sem lenço e sem
documento”, numa atitude hippie de não levantar bandeira nem portar uma
identificação e seguir em frente com o verso “Eu vou”.
Os mesmos versos acima ainda sugerem pela memória discursiva do atraso e
a falta de políticas públicas para as regiões mais isoladas do país como o nordeste
brasileiro. As políticas de desenvolvimento da região estavam se concentrando nas
grandes cidades e quando era destinada alguma verba, essa se perdia no caminho
com os interventores coronéis que mandavam e desmandavam na região.
O sol de quase dezembro alegoricamente não é o sol astro que ilumina a
Terra, mas faz referência a uma revista da época “O Sol”. Pelo arquivo da época,
pode-se aludir a novembro (quase dezembro) e a rumores sobre a publicação de um
novo Ato Institucional (AI-5) que foi a peça-chave que cassou todos os direitos civis
no Brasil. Essa ideia de ditadura militar é mais latente nos versos seguintes quando
o sujeito tropicalista fala:
A revista O Sol, alegoricamente denuncia a ditadura militar, que praticava
seus crimes nos porões, nas ruas e nas delegacias, crimes estes que se deseja
esquecer, que eram praticados pelos altos e baixos escalões militares. A ditadura
aparece como uma mancha negra na história do Brasil, com a sua censura e a
cassação aos direitos dos cidadãos brasileiros que mantinha todo mundo deibaxo de
uma nuvem negra que não queria passar. “Espaçonaves e guerrilhas” remetem ao
arquivo em que a guerrilha foi uma das formas de protesto que alguns segmentos da
sociedade se engajaram para combater o regime militar; espaçonaves faz lembrar a
vigilância que era feita nas matas do Araguaia, onde militantes de esquerda eram
treinados por exércitos estrangeiros a manusear armas, se disfarçar entre os civis,
roubar, assaltar para manter a guerrilha e os “companheiros” degredados, bem
como a compra de armas e munições, provimentos para as famílias dos colegas
assassinados e para quem estava na guerrilha. “Cardinales bonitas”, embora fora do
contexto da ditadura militar é uma figura do cinema italiano que na época fazia muito
sucesso, segundo os Tropicalistas, mais que a famosa estrela americana do cinema
Merilyn Monroe. Cardinales bonitas talvez seja uma pista falsa para enganar a
censura, já que a música é vista como se fosse um quadro ou uma pintura com suas
imagens superpostas, disfarça porque não termina o que se diz sobre a ditadura,
embora pela intertextualidade Cardinale (Claude Josephine Rose Cardinale) que
interpreta no filme La Storia do diretor Luigi Comencini, uma viúva durante a
160
Segunda Guerra Mundial, o que faz com que seu nome na letra da música não seja
mera coincidência, mas totalmente intencional, já que de uma forma ou outra a
ditadura militar no Brasil é equiparada ao holocausto nazista.
Em caras de presidentes Em grandes beijos de amor Em dentes pernas bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot (VELOSO, 1967, LADO B, FAIXA 4).
O verso que segue é uma continuação de “O sol se reparte em crimes”
remetendo pela memória discursiva e o interdiscurso ao cinema francês e a nouvelle
vague francesa, inspirada no neorrealismo italiano do qual Brigitte Bardot foi uma de
suas atrizes e cantoras mais famosas. Em “caras de presidentes” remete ao regime
militar que trocava de presidentes constantemente; o sol, alegoricamente, ditadura
militar, para se segurar no poder provisoriamente até o grande golpe usou essa
tática de ficar trocando de presidente até que acontecessem as eleições que só
viriam acontecer já nos finais dos anos de 1985, ou seja, 21 anos depois.
Brigitte Bardot foi a grande musa dos anos de 1960, bela e provocadora que
entre beijos de amor, biquínis, perna e dentes propagaram-se como símbolo sexual
para o público francês e hollywoodiano. Sua personagem e sua vida pessoal podem
ser comparadas com uma bomba por suas polêmicas, dos vários casamentos
malsucedidos e por opções radicais contra mulçumanos e gays, o que lhe rendeu
muitos processos e multas altíssimas. Essa figura aparece alegoricamente na
música para falar da bomba polêmica e proliferadora da ditadura militar sem levantar
suspeitas, já que a atriz francesa chama mais atenção inibindo esse olhar de
denúncia para a música, uma das muitas estratégias tropicalistas.
O sol nas bancas de revista Me enche de alegria e preguiça Quem lê tanta notícia? Eu vou Por entre fotos e nomes Os olhos cheios de cores O peito cheio de amores vãos Eu vou
Por que não? Por que não? (VELOSO, 1967, LADO B, FAIXA 4).
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No fragmento acima o sujeito tropicalista continua sua caminhada sem rumo
certo, se esgueirando nas bancas de revista com as notícias do dia-a-dia. O sol
aparece novamente nas bancas de revistas caracterizando outro meio de
comunicação altamente censurado durante a ditadura militar. Sua atitude demonstra
uma fuga disfarçada na preguiça que termina com a interrogação Quem lê tanta
notícia? A linguagem surreal dos próximos versos mostra uma imagem de uma das
peripécias oswaldianas, isto é, poemas e versos que lembram imagens sensoriais
em fotos, nomes, os olhos cheios de cores, que também sugere um ambiente
urbano colorido de luzes e cartazes e mesmo assim surge a pergunta em meio a
esse bombardeio de informações Por que não, indicando a continuação da narrativa
na música.
Ela pensa em casamento E eu nunca mais fui à escola Sem lenço sem documento Eu vou
Eu tomo uma coca-cola Ela pensa em casamento E uma canção me consola
Eu vou (VELOSO, 1967, LADO B, FAIXA 4).
Os próximos versos são dessacralizantes e anti-arcaicos. Duas instiuiçoes
tidas como sagradas para época são caranavalizadas: o casamento, e a escola que
eram dois pilares da sociedade dita arcaica e uma das mais proclamadas pelo
militarismo. O casamento que gera uma família que era a célula da sociedade e a
escola, principal meio de divulgação das ideias tanto militares quanto da sociedade
da época. O sujeito tropicalista fala que enquanto ela fala em casamento ele não vai
à escola, duas atitudes que caranavalizam o discurso oficial; ela pensa em
casamento, ele não e ainda não está indo à escola, prefere andar sem lenço e sem
documento.
O sujeito agora toma coca-cola, um gosto de cultura estrangeira de consumir
produtos modernos, enquanto ela ainda pensa em casamento. Isso seria reduzido à
seguinte fórmula: enquanto ela só pensa em casar eu ando sem lenço e sem
documento tomando uma coca-cola lendo O Sol em quase dezembro junto dessas
bancas de revista. No verso “E uma canção me consola” é uma crítica mordaz ao
pessoal da canção de protesto como Chico Buarque, Geraldo Vandré, Elis Regina,
162
etc., dizendo que essas canções não possuem nenhuma criatividade nem uma
estética renovada, só consolam e confortam as pessoas, ao falar das mazelas
sociais, dos menos favorecidos, do militarismo e, todos acabendo na mesma fossa,
ou seja, é um tipo de canção triste que fala sobre temas e temáticas e não chegam a
nada, a não ser a tristeza e o conformismo e cada vez mais regredindo toda estética
e modernização da música popular brasileira. Ela fala de temas nacionais e não se
arrisca a mudar o padrão, são sempre as mesmas coisas. O Tropicalismo é um
movimento de renovação da identidade cultural do país, da música e das artes em
geral, adotando como padrão o não padrão e a deglutição das várias culturas para
renovação da cultura nacional. Por isso ele continua com Eu vou.
Por entre fotos e nomes Sem livros e sem fuzil Sem fome sem telefone No coração do Brasil
Ela nem sabe até pensei Em cantar na televisão O sol é tão bonito
Eu vou (VELOSO, 1967, LADO B, FAIXA 4).
No grupo de versos que segue, o sujeito continua sua caminhada entre fotos
e nomes” no coração do Brasil. O sujeito continua sem ideologia, ele não assume
nenhuma postura diante dos fatos e da positividade do seu tempo, a formação
discursiva que organiza os discursos do país em torno do militarismo na política
mostrando o “fuzil” como arma para lutar contra invasão estrangeira e contra as
guerrilhas nacionais e do outro lado o livro representando o conhecimento
acadêmico e o envolvimento dos universitários na democratização do país, dos
meios de comunicação, da libertação das antigas oligarquias. Mas o sujeito
tropicalista não quer saber disso, continua sua jornada “sem livros e sem fuzil”, o
que ele pensa mesmo é em cantar na televisão, pois esse “sol” lhe parece mais
bonito.
Com essa postura de não ideologia o sujeito tropicalista espera ir para a
televisão cantar e mostrar ao país uma nova forma de encarar os fatos. Como o
Tropicalismo é um movimento de renovação da música e das artes em geral, cantar
é a melhor saída para organizar o carnaval do país quem sabe até fundar um
monumento ou um movimento no coração do Brasil.
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Sem lenço sem documento Nada no bolso ou nas mãos Eu quero seguir vivendo amor Eu vou Por que não? Por que não?
Nessa parte final da música o sujeito continua “sem lenço e sem documento”
nem no bolso e nem nas mãos, o que ele quer é apenas seguir vivendo. Essa
postura niilista, sem compromisso sem fé, como se tudo fosse vítima do acaso
demonstra pouca preocupação com a ordem vigente na política e na sociedade e
até mesmo com a cultura. O que ele quer é só seguir vivendo com “amor” que rima
com “vou”, que quer dizer com amor eu vou.
Essa pretensa despreocupação do sujeito tropicalista não é um
descompromisso com a sociedade e a cultura; Na verdade essa foi a forma que o
Tropicalismo adotou para encarar a sociedade com descrença, com sarcasmo, com
ironia, criando uma alegoria filosófica e sociológica do país Brasil. Nessa perspectiva
foi preciso satirizar, ironizar e até que surgisse um novo padrão musical e uma nova
forma de ver, sentir e renovar a cultura do país, não apenas dos grandes centros
urbanos, mas também dos lugares mais esquecidos do país como o Nordeste, que
com a contribuição do Cinema Novo conseguiu resgatar e modernizar a cultura
nordestina por meio da intertextualidade e da interdiscursividade, ao parodiar, imitar,
copiar e até ironizar a cultura do Nordeste brasileiro, já que é muito comum nas
letras de músicas dos Tropicalistas expressões nordestinas de grandes
composições e de grandes compositores representantes culturais da região.
Alegria, alegria é a base filosófica que pôs em processo a alegoria do Brasil e
do Nordeste, dessacralizando a cultura oficial e propondo novas formas estéticas
para as artes no geral e deteriorando asa bases do patriarcalismo e do arcaísmo e
do militarismo que predominava na sociedade da época.
Baião; Baião atemporal; De onde é que vem o baião?
Essas três canções embora tenham nomes semelhantes são de formações
discursivas diferentes, estão inscritas em arquivos de épocas distintas e tentam
resgatar a memória musical do baião de forma semelhante. Os Tropicalistas, ao
resgatarem Luiz Gonzaga, tematizando suas canções estavam preocupados com o
164
baião, que embora se achasse que era uma música folclórica, na verdade era uma
evolução genuína das músicas folclóricas cantadas no Nordeste, ou seja, uma
evolução da Música Popular Brasileira.
Tanto Gilberto Gil como Gal Costa vai tratar a música baião de forma
diferente dando a ela novas configurações e novos efeitos de sentido ao resgatá-la e
incutir-lhe outros olhares que o compositor Luiz Gonzaga não viu ou não quis ver.
Pensamos, nesse sentido, no discurso povoado por outros discursos e no discurso
traído, em que Gal e Gil longe do discurso de que o Nordeste era uma região de
atraso cultural e saudosista e envolvidos em atividades culturais mais amplas,
tentaram através da intertextualidade e da interdiscursividade resgatar a linha
evolutiva da MPB.
Gilberto Gil e Gal Costa eram Tropicalistas e estavam envolvidos no projeto
de desenvolver a cultura e as artes do país de forma cosmopolita, agregando em
suas canções elementos de outros lugares, de outras artes, de outros discursos do
Brasil e do mundo. Ambos estavam mais preocupados com o Nordeste, de certa
forma, mais do que Caetano Veloso, pois o mesmo tinha ambições maiores, embora
mostrasse em suas composições uma renovação do discurso sobre o Nordeste e os
nordestinos ao parodiar, copiar e satirizar os compositores da região.
Por outro lado Luiz Gonzaga mantinha a mesma linha discursiva da saudade,
da tristeza e dos valores morais da sociedade e da Igreja Católica. Na música
“Baião” desse compositor ele toca o ritmo quente que é o baião tocado com sanfona,
zabumba, pandeiro e triângulo, mostrando não o que é a música nem a sua origem,
mas seu desenvolvimento ao misturar-se com outros ritmos que ele aprendeu no Rio
de Janeiro e São Paulo. Veja a primeira estrofe da música:
Eu vou mostrar pra vocês Como se dança o baião E quem quiser aprender É favor prestar atenção Morena chega pra cá Bem junto ao meu coração Agora é só me seguir Pois eu vou dançar o baião (GONZAGA, 1949, FAIXA 4).
Ele convida o povo a imitá-lo dançando o baião. Fala da forma como dança,
mulher e homem bem colados um ao outro no chamado “rala-bucho” nordestino
onde normalmente homem e mulher tinham isso como única diversão e um meio de
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celebrar os rituais: nascimento, casamento, batizado, menos a morte que era velada
com tristeza.
Na continuação da música ele fala:
Pois eu vou dançar o baião Eu já dancei balancê Xamego, samba e xerém Mas o baião tem um quê Que as outras danças não têm Oi quem quiser é só dizer Pois eu com satisfação Vou dançar cantando o baião (GONZAGA, 1949, FAIXA 4)
A música de Luiz Gonzaga, embora sendo uma das mais representativas do
compositor e do grande sucesso que teve na sua época e nas festas juninas atuais,
ainda é muito folclórica do ponto de vista da letra, já que fala como se dança o baião
e não o próprio baião. É uma musica de letra simples e musicalidade quente e
contagiante, própria para a dança e o remelexo, não representando discursivamente
nada de interesse. É como diz Albuquerque Júnior(1999), o povo estava
acostumado a dançar com a música e não ouvi-la. E segundo o mesmo autor,
embora Gonzaga tenha feito muito pela música do Nordeste do Brasil, poderia ter
feito mais se sua formação discursiva não fosse tão diferente do ponto de vista da
evolução da música, da crítica social e da luta de classes. Seu baião ficou reduzido
à dança e ao folclore. Isso foi altamente contestado pelos Tropicalistas, que
resgatando o compositor de sua fossa, renovaram o baião e a identidade da região
Nordeste ao mostrar outro discurso sobre uma mesma temática.
O baião tropicalista utiliza arranjos semelhantes, mas bem mais marcado com
arranjos de outros instrumentos como flauta, conta baixo, guitarra, berimbau.
Bateria, etc. A letra da música fala de pau de arara e de retirantes e de famílias que
abandonam seu lugar para viver fora. O ritmo chama-se baião, mas é totalmente
renovado pela temática e pela melodia, utiliza outras formas de falar, parodiar e
cantar o baião nordestino. Estamos partindo da ideia de que essa preocupação
tropicalista com Luiz Gonzaga se dá tanto pela sua importância no cenário musical
do país, tanto por sua ingenuidade em tratar de certos temas, já que Luiz Gonzaga
era da roça, sem formação acadêmica e com fortes inclinações ortodoxas devido a
sua fé católica.
Veja o que diz a canção de Caetano Veloso:
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No último pau-de-arara de Irará Um da família Santana viajará
Levará uma semana até chegar Junto com mais dois ou três outros cabras que estarão lá No último pau-de-arara de Irará
Se essa viagem comprida fosse um cordel Seria boa saída acabar no céu
A letra desse baião é riquíssima. Primeiro o título é chamado de “baião
atemporal” significando baião que não muda, que não varia, que o tempo passa e
ele continua do mesmo jeito. Começa com pau-de-arara que era um transporte típico
para transporte de pessoas e coisas na época em que retirantes iam embora de sua
terra em busca de melhores dias. Era uma viagem longa e sofrida, não apenas pela
dor física, mas também pela dor da saída da terra natal, segundo os nordestinos.
Esse transporte sai de Irará que é uma cidadezinha baiana que fica a 128 km de
salvador. É uma cidade festeira quase todo o ano, com competições culturais de
sanfoneiros e blocos de foliões pelo meio da rua. Também é conhecida como a terra
da farinha. Talvez, segundo o compositor sem razões para sair. Irará também é o
nome dado a um mamífero das Américas. É um animal carnívoro, mas que também
se alimenta de frutas, conhecido no Brasil como papa-mel e em países de língua
espanhola é chamado de “cabeza de cejo”, que significa cabeça de velho devido a
sua cor acinzentada no alto da cabeça, também sua orelhas arredondadas lhe dão
um aspecto humano. Coincidentemente (acreditando que não haja isso entre os
Tropicalistas), o animal se refere ao velho, ao atraso, ao cafona (longe de querer
supor isso para os idosos), por isso a escolha lexical, que poderia ter sido qualquer
uma, já que existem cidades mais famosas na Bahia, mas apenas esta se tornou um
acontecimento, um enunciado para evocar um sentido para a viagem do pau-de-
arara, um atraso, uma coisa sem nexo, que não tem razão de existir.
Nesse pau-de-arara viaja um da família Santana que retoma ipsis litteris o
nome da mãe de Luiz Gonzaga. É um recurso metonímico que retoma a parte pelo
todo, a família é Santana, mas que pela memória discursiva remete a Santana, mãe
do Rei do Baião que aparece em alguma de suas canções, bem como a figura
paterna do velho Januário.
Gil faz uma alegoria da viagem, mostrando a duração, quem vai e,
implicitamente, o que se vai fazer quando descer do pau-de-arara. Ironicamente, o
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compositor mostra o céu como saída para uma viagem tão longa e tão maltratada.
Essa alegoria remete ao discurso religioso de sofrer aqui na terra para ganhar o
paraíso: “Se essa viagem comprida fosse um cordel/ seria boa saída acabar no céu”,
citando também o cordel, um tipo de narrativa popular feito com versos populares
(normalmente redondilhas maiores e menores) que conta estórias fantásticas cheias
de peripécias dos personagens, que normalmente são figuras ilustres no Nordeste
como Lampião e Maria Bonita, o cangaceiro Corisco e sua mulher Dadá, Padim
Ciço, dentre outros.
Tudo isso que a cruzada tropicalista fazia era para mostrar o baião não
apenas como uma dança que precisa ser dançada e imitada, mostrar sua pureza em
relação a outras músicas do gênero, mas uma música moderna que fala de coisas
do povo que a criou, sua formação discursiva e os heróis que ela resgata por meio
da memória discursiva e não da saudade.
Só que este conto que eu canto é pra lá de zen Não tem sentido, não serve pra nada e é pra ninguém Pra ninguém botar defeito e não ter, porém Basta pensar que Irará poderá não ser Que os paus-de-arara de lá já não têm porquê Porque os tempos passaram e passarão Tudo que começa acaba, e outros cabras seguirão Cruzando o atemporal do tão do baião).
Gilberto Gil fala que seu conto narrativo cantado em forma de baião é pra lá
de zen, que remete à figura de Buda e da cultura japonesa, chinesa e coreana. O
autor quer dizer com base no enunciado que seu conto é feito a partir de uma
relação sublimar com a realidade, ele não vê as coisas apenas materialmente, mas
as antecipa, pois teve uma experiência que o faz mais hábil a ver a vida como ela
realmente é. Seu conto é mais real que o original, remetendo pela memória
discursiva ao discurso de Luiz Gonzaga. E como está além da experiência humana
diz que esse conto de pau-de-arara, viagem sofrida, atraso não tem razão de ser,
nem serve para nada e para ninguém, porque as coisas podem não ser o que
realmente são, ou não, porque os paus-de-arara não têm porque de existir, ou seja,
pode ser que tudo isso não passe de uma estória de cordel.
Nessa música, o uso de termos de culturas orientais como zen e o tão sinaliza
a modernização e o sincretismo temático dos tropicalistas. Embora seja considerada
uma música pós-tropicalista devido a sua transcedentalidade temática intercultural,
168
ela se encaixa nos moldes pós-modernos, servindo a crítica da música do Nordeste
brasileiro, ao mostrar o baião como uma música moderna e muito além de seu
tempo.
De onde é que vem o baião?
De onde é que vem o baião? É uma composição de Gilberto Gil que é
cantada por Gal Costa. Essa composição é um baião bem incrementando com
elementos modernos. Além do ritmo quente apresenta arranjos de sanfona
tradicional, guitarra elétrica, um baixo bem marcado e arranjos de metais um uma
marcação rítmica que se aproxima mais do rock e do jazz do que o baião tradicional.
A canção começa assim:
Debaixo do barro do chão da pista onde se dança Suspira uma sustança sustentada por um sopro divino Que sobe pelos pés da gente e de repente se lança Pela sanfona afora até o coração do menino
Gilberto Gil vai falar do baião como algo transcendental, que a terra onde o
baião é dançado, bem debaixo da pista, que era um terreiro molhado e batido para
dançar nos chamados sambas como eram chamadas as festas antigamente é que o
nasce baião. Debaixo desse chão batido Gil fala de uma sustança divina que move o
coração das pessoas e vai até a sanfona. Ele coloca o barro da pista como sendo a
força motriz para o baião, para mostrar suas raízes e sua importância para o
sertanejo.
Retomando a memória discursiva e o interdiscurso, o texto de Gilberto Gil
remete ao discurso religioso da criação, na qual o homem foi criado a partir do barro
e depois colocado nele o sopro divino. Nele Gil tenta mostrar que o baião e a forma
como ele é criado é como se fosse o corpo e a alma do nordestino, mostrando que é
um ritmo genuinamente62 nordestino e que faz parte da formação discursiva dessa
gente. E essa força que sustenta o baião é tão poderosa que se lança à sanfona e
ao coração do menino, aqui citado como o discurso figurado da ingenuidade, da
pureza e da juventude, mostrando baião como uma música pura no sentido de sua
62
Pesquisadores como Câmara Cascudo dizem que o baião é uma música influenciada por um tipo de música portuguesa chamada de chula. O próprio Luiz Gonzaga em entrevista já dissera que o baião vinha da chula.
169
originalidade e uma música ao mesmo tempo nova, pois ele é não apenas uma
música folclórica, mas a junção de vários ritmos novos que lhe deram uma origem
híbrida.
Nos versos seguintes Gilberto Gil vai fazer essa confirmação do baião como
algo transcendental:
Debaixo do barro do chão da pista onde se dança É como se Deus irradiasse uma forte energia Que sobe pelo chão E se transforma em ondas de baião, xaxado e xote Que balança a trança do cabelo da menina, e quanta alegria!
Nessa parte da música Gil continua com a mesma questão do baião ser uma
música original que nasce do chão de onde Deus irradia sal, energia e faz o baião se
multiplicar em outras formas de dança como o xaxado e o xote, ambas derivadas do
baião.
E uma pergunta é feita e respondida no final da música:
De onde é que vem o baião? Vem debaixo do barro do chão De onde é que vêm o xote e o xaxado? Vêm debaixo do barro do chão De onde vêm a esperança, a sustança espalhando o verde dos teus olhos pela plantação? Ô-ô Vêm debaixo do barro do chão
Nessa parte final ele afirma o que vem sendo dito antes sobre o baião ser
uma música que vem do chão, que possui um sopro divino, que esse mesmo chão
pode gerar o xaxado e também xote que são variantes do baião. Termina citando a
canção a volta da “Asa Branca” de Luiz Gonzaga, “espalhando o verde dos teus
olhos pela plantação”, que tudo que sustenta o homem vem da terra. A terra é o
elemento que dá vida ao homem e que está diretamente ligada também à produção
cultural de cada região, que reflete e ao mesmo tempo refrata as formações
discursivas existentes e o tipo de memória que resgata. Voltar ao nosso passado
distante e resgatar o que nos é digno de uma cultura legítima é uma atitude
antropofágica de querer ver e sentir as coisas pela raiz, uma radicalidade resgatada
da poesia oswaldiana.
170
CONCLUSÃO
Pode-se concluir que a maioria dos compositores nordestinos quando se
punham a falar do Nordeste e de sua gente sempre caia na mesma armadilha da
saudade como bem nos falou nos textos acima Albuquerque Júnior(1999). Ao que
parece essa formação discursiva era predominante nesses compositores na hora de
escrever e, o arquivo que resgatavam e tipo de memória discursiva que utilizavam
sempre se faziam em torno da “saudade da terra”, da miséria, da fome, do
messianismo, como se isso fosse a única coisa da qual o Nordeste dispusesse para
falar sobre ele.
Embora o Tropicalismo tenha sido para a época um movimento cosmopolita
que se espalha em várias direções, delimitamos e ressaltamos aqui nesse texto
apenas as músicas e as partes constitutivas das músicas que citavam o Nordeste
literalmente por meio de enunciados de outros compositores do Nordeste, por meio
da intertextualidade implícita e explícita, meio da memória discursiva e o
interdiscurso e pela formação discursiva de cada compositor.
Os Tropicalistas, ou grupo de baianos, como eram chamados, sem a
conotação baiano utilizada no Rio de Janeiro para depreciar o nordestino que
trabalhava na construção civil, foram os únicos que, sendo nordestinos, não
entraram na mesma formação discursiva que caracterizou tanto as composições63
de Luiz Gonzaga, o grande expoente da Música Popular Brasileira e criador do
baião, Catulo da Paixão Cearense, Patativa do Assaré etc. Esse grupo de baianos
influenciados por outros discursos e outras formações discursivas como a pop art, o
movimento hippie, o rock americano, o Cinema Novo, as artes plásticas mostrou um
discurso diferente sobre o Brasil, o Nordeste e os nordestinos no campo da música e
da cultura.
O que se percebe ao analisar algumas músicas do Tropicalismo é que elas
resgatavam aqui e acolá as composições nordestinas por meio de recursos
linguísticos como a intertextualidade e a interdiscursividade, trazendo-as para a nova
cena moderna, incrementando-a com poesia concreta, rock, guitarras elétricas e
ritmos dissonantes, criando uma alegoria do Brasil tropical mesclando ritmos,
63
Aqui vale lembrar que o que Luiz Gonzaga cantava não eram composições suas, a maioria era do médico Zé Dantas e de Humberto Teixeira, poucas são criações suas e mesmo assim não fogem à temática de seus compositores.
171
filosofia e pós-modernismo em letras chocantes, fragmentadas, com múltiplos
sentidos.
É interessante observar que mesmo sendo nordestinos da Bahia, os
Tropicalistas não aceitaram essa ideia de que o Nordeste fosse atrasado
culturalmente, nem geograficamente, o que se percebe nas letras tropicalistas é uma
denúncia da falta de políticas públicas que viessem socorrer o Nordeste e não
inventar um discurso sobre a região para categorizá-la como terra de ninguém com a
finalidade de excluí-la do mapa do Brasil, mas sim incluí-la no mapa da música e da
cultura.
O projeto tropicalista que embora se focasse na renovação da Música Popular
Brasileira e da cultura nacional por meio da sincretização dos elementos mais
representativos de sua cultura, foi também um movimento de vanguarda que
buscava resgatar aquilo que era brasileiro, aglutinando-o com elementos de outras
culturas como uma forma de renovar a cultura e a música do Brasil. Nesse ínterim,
fizeram uma salada tropical com a cultura brasileira. Sincretizavam em suas canções
as manifestações culturais e musicais do país, em especial a do Nordeste de onde
eles vinham, para acrescentar à linha evolutiva da Música Popular Brasileira novas
formas de compor e de mostrar novos efeitos de sentido, através do uso constante
de ironias, humor corrosivo e uma carnavalização humanoide da cultura, tentando
desmitificá-la e dessacralizá-la para poder renová-la.
Embebidos pela antropofagia cultural de Oswald de Andrade, os Tropicalistas
usaram e abusaram de recursos linguísticos e estilísticos para renovar a música e a
cultura nacional. Cruzavam elementos díspares como os velhos discursos de
esquerda com discursos sobre a modernidade. Enquanto compositores brasileiros e
nordestinos buscavam se lamentar e protestar usando elementos da cultura nacional
e popular, os Tropicalistas reuniam esses elementos em uma única música como
“Tropicália”, por exemplo, que é uma música-manifesto do movimento, ao mesmo
tempo em que inaugura uma nova forma de compor: organizar elementos
semanticamente distintos para falar de cultura, música, política e crítica social.
Os Tropicalistas mostravam, assim, uma atitude rebelde e moderna frente ao
grande universo cultural que ao Brasil da época estava sendo colocado. Enquanto
muitos compositores como Chico Buarque de Holanda, o paraibano Geraldo Vandré
e o pernambucano Luiz Gonzaga lutavam com todas as forças para que a cultura
moderna e cosmopolita não entrasse no cenário nacional, eles faziam justamente ao
172
contrário, introduzindo em suas músicas elementos do cenário mundial junto com a
cultura local como uma forma de inovar a cultura e a música brasileira.
O Nordeste, especialmente, foi quem influenciou a música tropicalista, já que
os principais compositores eram da Bahia. Mas essa influência não se limitava à
memória discursiva que era ativada pelos “cantadores da saudade”, mas uma
formação discursiva baseada na modernidade, na cultura pop, no Cinema Novo e
nas artes plásticas. Inicialmente todos esses modelos de arte foram a oficina
tropicalista e, depois essa se torna menos explícita porque a música foi quem
prosperou no palco nacional devido a grande influência do rádio e da televisão.
Aproveitando o espaço que o rádio e a televisão abriram no Brasil, os
Tropicalistas iniciaram seu projeto de renovação da música e da cultura nacional por
meio dos festivais musicais da TV e dos programas de rádio. De fato, sem esses
dois elementos, boa parte do projeto tropicalista não teria vingado, porque tudo o
que se produzia em termos culturais no Brasil da época tinha que passar pelo rádio
e pela televisão. Esses dois meios de comunicação foram quem colocaram Luiz
Gonzaga e o baião para o Brasil ouvir e dançar e conhecer as raízes nordestinas.
Foram esses mesmos meios que viram e ouviram os Tropicalistas cantar “Alegria,
alegria” e “Tropicália” e mostrar para o público da época uma nova forma de compor
e tocar e ao mesmo tempo inaugurar o carnaval alegórico de um país chamado
Brasil.
Suas músicas representavam a alegoria carnavalesca do Brasil Tropical que
crescia volumosamente nas grandes cidades com seus edifícios e seus carros ao
lado de um Brasil rural, atrasado e abandonado. Suas músicas mostravam que a
cultura do Brasil não era apenas aquela cultivada pela elite, mas que outras formas
de compor também faziam parte da cultura nacional que eram também dignas de
serem cantadas.
Com esse espírito modernizante com mil alto-falantes ligados a uma
velocidade antropofágica os Tropicalistas buscaram na cultura nordestina todo seu
impulso criador. Esqueceram a formação discursiva de um Nordeste sofrido e
abandonado e retomaram o seu lado cultural mais esplêndido: as músicas populares
e as cantigas de cegos de feira e as modinhas improvisadas de violas e repentes.
Ao resgatar a cultura nordestina acionando todo o arquivo popular que a
memória discursiva oferecia, não apenas representava mais composição nordestina,
mas a cultura nordestina levada a cabo para a cultura cosmopolita e uma sociedade
173
moderna, renovando-a e modernizando-a e mostrando ao país que o nordestino não
era apenas aquele descrito pelos “cantadores da saudade”, mas um Nordeste com
um grande potencial econômico e cultural semelhante, ou, talvez, superior ao da
região sul e sudeste.
Para fazer essa operação pós-moderna, usaram e abusaram de paródias, de
colagens e bricolagens. Pegaram os principais expoentes da música nordestina com
suas principais canções e citavam trechos dessas canções em suas composições
como se pode ser observado em “Tropicália”, “Baião atemporal”, “Procissão”, isso
usado de forma ipsis litteris; em forma de resgate pela temática temos tantas outras
como “Alegria, alegria” que se reportando a vários discursos e mitos fundadores
inaugura o niilismo tropicalista de dessacralização das relações sociais, das religiões
e uma crítica mordaz à sociedade militar, patriarcal e cafona. (termo amplamente
usado nas falas de Caetano Veloso).
Toda essa cruzada tropicalista64 foi feita por um sincretismo cultural que
mostrava nossas mazelas e nosso atraso social perante grandes potências mundiais
e ao mesmo tempo nos colocava de frente com a cultura globalizante que estava
entrando no país, em outras palavras, o Tropicalismo colocou o Brasil na vanguarda
da música e da cultura nacional e como o Nordeste era um dos elementos prediletos
dessa salada, houve uma renovação do discurso sobre o Nordeste e sobre o
nordestino.
O Tropicalismo ao lado de sua arte dessacralizante criou novos padrões
estéticos e ideológicos para a música e a cultura nacional. Seu arsenal cultural é
uma herança que predomina até hoje na MPB, e muitos, senão a maioria dos
compositores do Brasil, ainda são inspirados pelos Tropicalistas em suas
composições, tanto nos arranjos de instrumentais, quanto nas composições
escritas.
Embora fosse visto por alguns radicais da época como uma arte
descomprometida e sem ideologia, os Tropicalistas mostraram serem também
críticos da cultura e da sociedade da época. Em suas canções trataram de mostrar a
pobreza e a falta de liberdade de expressão por causa da ditadura militar; Utilizando
paródias e recortes semânticos do arquivo militar mostraram sua indignação ao
revelar o projeto anacrônico e anti-cultural, baseado na opressão, na tortura, no
64
Esse texto faz referência a um artigo publicado pelo crítico musical Nelson Motta na época em que eclodiu o Tropicalismo.
174
sumiço de pessoas e na morte. Em “Alegria, alegria” aparece nomes como
guerrilhas, espaçonaves, recusa à escola e ao casamento, tudo como um carnaval
que denunciava a ditadura e ao mesmo tempo mostrava a nova cara do modernismo
no Brasil. Em “Tropicália” os “urubus” simbolizam os generais que assumiram o
Brasil por pequenos períodos, mas que deixaram grandes manchas negras na alma
da cultura e do povo do país.
O projeto tropicalista de renovação do discurso sobre o Nordeste e o
nordestino vem da grande influência que sofreram do Cinema Novo de Glauber
Rocha, que também era baiano e, viu no cinema uma forma de denúncia e ao
mesmo tempo de renovação das artes sobre o Nordeste e sua gente. Em seus
filmes “Deus e o diabo na terra do sol”, “Cangaceiros” todos resgatavam essa
temática e ao mesmo tempo denunciavam a maneira como essa região era tratada
pelos governantes. Por isso é muito comum nas músicas tropicalistas aparecerem
enunciados de canções nordestinas como se pode observar em “Tropicália”,
“Procissão”, “De onde é que vem o baião?”, “Baião atemporal” e muitas outras
canções que não foram incluídas no arquivo dessa análise.
Nas músicas tropicalistas aparecem enunciados de músicas de compositores
nordestinos citados ipsis litteris, mas que tem outros sentidos. De acordo com
Michel Foucault (2008), um enunciado mesmo que repetido não tem o mesmo efeito
de sentido, nem a mesma função demarcatória. Isso mostra que os enunciados
citados não tinham a função meramente de repetir o já dito, mas mostrar uma
renovação deste mesmo enunciado em um suporte diferente e mais rico em
sentidos. Os enunciados citados indiretamente, ou apenas fazendo referência a
determinado tema, também eram uma forma de resgate e de renovação do discurso
tropicalista sobre o Nordeste e sobre o nordestino.
Como aconteceu essa inovação?
Sabemos que a literatura é uma inovação das artes porque se utiliza de
recursos linguísticos, estéticos e sociais para questionar sobre determinado tema. O
Tropicalismo, ao lado de um movimento musical e artístico-cultural, foi também um
movimento literário, já que usou muito da poética oswaldiana e da poesia concreta
para renovar suas composições. De Oswald de Andrade cultivaram e inovaram no
aspecto da antropofagia cultural, que fazia uma espécie de alegoria do país ao
dessacralizar a cultura e a literatura, dita acadêmica, buscando nas canções e nas
narrativas populares outras formas de renovar a literatura modernista. Oswald de
175
Andrade, talvez tenha sido junto com Mário de Andrade, um dos únicos modernistas
que pensou na modernização do país e da literatura.
Embora com seu gênio despreocupado, despretensioso e de não
comprometimento social, foi quem nos legou algo que se pode dizer literatura
autêntica, pois buscava ser original em suas composições ao tentar reinventar a
história do Brasil através da deglutição da cultura, misturá-la, incrementá-la para
depois modificá-la.
O procedimento antropofágico mesclava nos poemas elementos da cultura
popular como O capoeira, procedimentos que exploravam aspectos sensoriais como
a visão, o tato, etc. Esses elementos eram distribuídos de forma aleatória e,
aparentemente sem sentido e sem conexão, mas que no corpo do poema faziam
sentido, pois faziam ligações extralinguística e discursivamente com outros textos e
outros discursos. Esse processo de descolonização e dessacralização das artes e
da cultura foi, prioritariamente, resgatado pelo discurso tropicalista.
Nessa perspectiva, os Tropicalistas usaram de estratégias antropofágicas
para inovar no aspecto que eles queriam que era a música e a cultura do Brasil.
Nessa linha de raciocínio, os Tropicalistas resgataram Oswald de Andrade pela
memória discursiva ao utilizar os mesmos procedimentos na hora de compor as suas
músicas. Percebe-se em músicas como “Tropicália” e “Alegria, alegria” uma forma
de buscar em nossas raízes uma reinvenção alegórica do Brasil, como se
quisessem, assim como Oswald de Andrade, recolonizar o Brasil, buscando numa
origem longínqua nosso verdadeiro país. Ao citar Oswald de Andrade no manifesto
antropofágico o fizeram também com “Tropicália” como sendo a música símbolo do
movimento tropicalista.
Todas essas retomadas feitas pelos Tropicalistas para renovar a cultura e a
arte do Brasil se fazia com grande criatividade, já que utilizavam procedimentos
diversos, que fazem com que seja um movimento intertextual e polifônico por
excelência, já que inauguraram o carnaval no Brasil cruzando sementes culturais
distintas, niilismo, dadaísmo, surrealismo, poesia concreta, antropofagia, tudo isso
em nome da renovação da cultura e da música nacional, especialmente do Nordeste
e dos nordestinos que foram colocados na modernidade e na vanguarda da cultura e
da música no cenário brasileiro e mundial.
176
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www.michaelisonline.com.br/identidade
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181
ANEXOS
Tropicália Composição: Caetano Veloso
Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No planalto central do país...
Viva a bossa
Sa, sa
Viva a palhoça
Ca, ça, ça, ça... (2x)
O monumento
É de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde
Atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga
Estreita e torta
E no joelho uma criança
Sorridente, feia e morta
Estende a mão...
Viva a mata
Ta, ta
Viva a mulata
Ta, ta, ta, ta... (2x)
No pátio interno há uma piscina
Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa
E fala nordestina
E faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
182
E no jardim os urubus passeiam
A tarde inteira
Entre os girassóis...
Viva Maria
Ia, ia
Viva a Bahia
Ia, ia, ia, ia...(2x)
No pulso esquerdo o bang-bang
Em suas veias corre
Muito pouco sangue
Mas seu coração
Balança um samba de tamborim
Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhoras e senhores
Ele põe os olhos grandes
Sobre mim...
Viva Iracema
Ma, ma
Viva Ipanema
Ma, ma, ma, ma...(2x)
Domingo é o fino-da-bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém!
O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo
Do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem!
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem!...
Viva a banda
Da, da
Carmem Miranda
Da, da, da, da...(3x)
183
Procissão
Gilberto Gil
Olha lá vai passando a procissão
Se arrastando que nem cobra pelo chão
As pessoas que nela vão passando
Acreditam nas coisas lá do céu
As mulheres cantando tiram versos
Os homens escutando tiram o chapéu
Eles vivem penando aqui na terra
Esperando o que Jesus prometeu
E Jesus prometeu vida melhor
Pra quem vive nesse mundo sem amor
Só depois de entregar o corpo ao chão
Só depois de morrer neste sertão
Eu também tô do lado de Jesus
Só que acho que ele se esqueceu
De dizer que na terra a gente tem
De arranjar um jeitinho pra viver
Muita gente se arvora a ser Deus
E promete tanta coisa pro sertão
Que vai dar um vestido pra Maria
E promete um roçado pro João
Entra ano, sai ano, e nada vem
Meu sertão continua ao deus-dará
Mas se existe Jesus no firmamento
Cá na terra isto tem que se acabar
© Gege Edições Musicais ltda (Brasil e América do Sul) / Preta Music (Resto do mundo) 60687215
184
No Dia Em Que Eu Vim-me Embora Caetano Veloso No dia em que eu vim-me embora
Minha mãe chorava em ai
Minha irmã chorava em ui
E eu nem olhava pra trás
No dia que eu vim-me embora
Não teve nada de mais
Mala de couro forrada com pano forte brim cáqui
Minha vó já quase morta
Minha mãe até a porta
Minha irmã até a rua
E até o porto meu pai
O qual não disse palavra durante todo o caminho
E quando eu me vi sozinho
Vi que não entendia nada
Nem de pro que eu ia indo
Nem dos sonhos que eu sonhava
Senti apenas que a mala de couro que eu carregava
Embora estando forrada
Fedia, cheirava mal
Afora isto ia indo, atravessando, seguindo
Nem chorando nem sorrindo
Sozinho pra Capital
Nem chorando nem sorrindo
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital…
185
A triste partida
Patativa do Assaré
Meu Deus, meu Deus
Setembro passou
Outubro e Novembro
Já tamo em Dezembro
Meu Deus, que é de nós,
Meu Deus, meu Deus
Assim fala o pobre
Do seco Nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz
Ai, ai, ai, ai
A treze do mês
Ele fez experiência
Perdeu sua crença
Nas pedras de sal,
Meu Deus, meu Deus
Mas noutra esperança
Com gosto se agarra
Pensando na barra
Do alegre Natal
Ai, ai, ai, ai
Rompeu-se o Natal
Porém barra não veio
O sol bem vermeio
Nasceu muito além
Meu Deus, meu Deus
Na copa da mata
Buzina a cigarra
Ninguém vê a barra
Pois a barra não tem
Ai, ai, ai, ai
Sem chuva na terra
Descamba Janeiro,
Depois fevereiro
E o mesmo verão
Meu Deus, meu Deus
Entonce o nortista
Pensando consigo
186
Diz: "isso é castigo
não chove mais não"
Ai, ai, ai, ai
Apela pra Março
Que é o mês preferido
Do santo querido
Senhor São José
Meu Deus, meu Deus
Mas nada de chuva
Tá tudo sem jeito
Lhe foge do peito
O resto da fé
Ai, ai, ai, ai
Agora pensando
Ele segue outra tria
Chamando a famia
Começa a dizer
Meu Deus, meu Deus
Eu vendo meu burro
Meu jegue e o cavalo
Nós vamos a São Paulo
Viver ou morrer
Ai, ai, ai, ai
Nós vamos a São Paulo
Que a coisa tá feia
Por terras alheia
Nós vamos vagar
Meu Deus, meu Deus
Se o nosso destino
Não for tão mesquinho
Cá e pro mesmo cantinho
Nós torna a voltar
Ai, ai, ai, ai
E vende seu burro
Jumento e o cavalo
Inté mesmo o galo
Venderam também
Meu Deus, meu Deus
Pois logo aparece
Feliz fazendeiro
187
Por pouco dinheiro
Lhe compra o que tem
Ai, ai, ai, ai
Em um caminhão
Ele joga a famia
Chegou o triste dia
Já vai viajar
Meu Deus, meu Deus
A seca terrível
Que tudo devora
Lhe bota pra fora
Da terra natal
Ai, ai, ai, ai
O carro já corre
No topo da serra
Oiando pra terra
Seu berço, seu lar
Meu Deus, meu Deus
Aquele nortista
Partido de pena
De longe acena
Adeus meu lugar
Ai, ai, ai, ai
No dia seguinte
Já tudo enfadado
E o carro embalado
Veloz a correr
Meu Deus, meu Deus
Tão triste, coitado
Falando saudoso
Com seu filho choroso
Exclama a dizer
Ai, ai, ai, ai
De pena e saudade
Papai sei que morro
Meu pobre cachorro
Quem dá de comer?
Meu Deus, meu Deus
Já outro pergunta
Mãezinha, e meu gado?
188
Com fome, sem trato
Mimi vai morrer
Ai, ai, ai, ai
E a linda pequena
Tremendo de medo
"Mamãe, meus brinquedo
Meu pé de fulô?"
Meu Deus, meu Deus
Meu pé de roseira
Coitado, ele seca
E minha boneca
Também lá ficou
Ai, ai, ai, ai
E assim vão deixando
Com choro e gemido
Do berço querido
Céu lindo azul
Meu Deus, meu Deus
O pai, pesaroso
Nos filho pensando
E o carro rodando
Na estrada do Sul
Ai, ai, ai, ai
Chegaram em São Paulo
Sem cobre quebrado
E o pobre acanhado
Procura um patrão
Meu Deus, meu Deus
Só vê cara estranha
De estranha gente
Tudo é diferente
Do caro torrão
Ai, ai, ai, ai
Trabaia dois ano,
Três ano e mais ano
E sempre nos prano
De um dia vortar
Meu Deus, meu Deus
Mas nunca ele pode
Só vive devendo
189
E assim vai sofrendo
É sofrer sem parar
Ai, ai, ai, ai
Se arguma notícia
Das banda do norte
Tem ele por sorte
O gosto de ouvir
Meu Deus, meu Deus
Lhe bate no peito
Saudade lhe molho
E as água nos óio
Começa a cair
Ai, ai, ai, ai
Do mundo afastado
Ali vive preso
Sofrendo desprezo
Devendo ao patrão
Meu Deus, meu Deus
O tempo rolando
Vai dia e vem dia
E aquela famia
Não vorta mais não
Ai, ai, ai, ai
Distante da terra
Tão seca mas boa
Exposta à garoa
A lama e o pau
Meu Deus, meu Deus
Faz pena o nortista
Tão forte, tão bravo
Viver como escravo
No Norte e no Sul
Ai, ai, ai, ai
190
Sampa Caetano Veloso
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vende outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso
Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mais possível novo quilombo de Zumbi
E os novos baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa
191
Alegria, alegria Caetano Veloso Caminhando contra o vento Sem lenço sem documento No sol de quase dezembro Eu vou
O sol se reparte em crimes Espaçonaves, guerrilhas Em Cardinales bonitas Eu vou
Em caras de presidentes Em grandes beijos de amor Em dentes pernas bandeiras Bomba e Brigitte Bardot
O sol nas bancas de revista Me enche de alegria e preguiça Quem lê tanta notícia? Eu vou
Por entre fotos e nomes Os olhos cheios de cores O peito cheio de amores vãos Eu vou
Por que não? Por que não?
Ela pensa em casamento E eu nunca mais fui à escola Sem lenço sem documento Eu vou
Eu tomo uma coca-cola Ela pensa em casamento E uma canção me consola Eu vou
Por entre fotos e nomes Sem livros e sem fuzil Sem fome sem telefone No coração do Brasil
Ela nem sabe até pensei Em cantar na televisão O sol é tão bonito Eu vou
192
Sem lenço sem documento Nada no bolso ou nas mãos Eu quero seguir vivendo amor Eu vou
Por que não? Por que não?
© Editora Arlequim 60171588 BRMCA6700237
193
Baião atemporal Gilberto Gil
No último pau-de-arara de Irará Um da família Santana viajará
Levará uma semana até chegar Junto com mais dois ou três outros cabras que estarão lá No último pau-de-arara de Irará
Se essa viagem comprida fosse um cordel Seria boa saída acabar no céu
Só que este conto que eu canto é pra lá de zen Não tem sentido, não serve pra nada e é pra ninguém Pra ninguém botar defeito e não ter porém
Basta pensar que Irará poderá não ser Que os paus-de-arara de lá já não têm porquê
Porque os tempos passaram e passarão Tudo que começa acaba, e outros cabras seguirão Cruzando o atemporal do tão do baião
© Gege Edições Musicais ltda (Brasil e América do Sul) / Preta Music (Resto do mundo) 64758141 BRMCA9300101
194
Asa Branca Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira
Quando oiei a terra ardendo Qua fogueira de São João Eu perguntei a Deus do céu, uai Por que tamanha judiação
Que braseiro, que fornaia Nem um pé de prantação Por farta d'água perdi meu gado Morreu de sede meu alazão
Até mesmo a asa branca Bateu asas do sertão Então eu disse a deus Rosinha Guarda contigo meu coração
Hoje longe muitas léguas Numa triste solidão Espero a chuva cair de novo Para eu voltar pro meu sertão
Quando o verde dos teus oio Se espalhar na prantação Eu te asseguro não chore não, viu Que eu voltarei, viu Meu coração
© Addaf 63684349 BRMCA7100141
195
Olha pro céu
Luiz Gonzaga e José Fernandes
Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo
Olha pra aquele balão multicor
Como no céu vai sumindo
Foi numa noite igual a esta
Que tu me deste o coração
O céu estava assim em festa
Porque era noite de São João
Havia balões no ar
Xote, baião no salão
E no terreiro, o teu olhar
Que incendiou
Meu coração
196
Baião Luiz Gonzaga
Eu vou mostrar pra vocês
Como se dança o baião
E quem quiser aprender
É favor prestar atenção
Morena chega pra cá
Bem junto ao meu coração
Agora é só me seguir
Pois eu vou dançar o baião
Eu já dancei balancê
Xamego, samba e xerém
Mas o baião tem um quê
Que as outras dancas não têm
Oi quem quiser é só dizer
Pois eu com satisfação
Vou dançar cantando o baião
Eu já cantei no Pará
Toquei sanfona em Belém
Cantei lá no Ceará
E sei o que me convém
Por isso eu quero afirmar
Com toda convicção
Que sou doido pelo baião.
197
De Onde Vem O Baião? Gilberto Gil
Debaixo do barro do chão da pista onde se dança
Suspira uma sustança sustentada por um sopro divino
Que sobe pelos pés da gente e de repente se lança
Pela sanfona afora até o coração do menino
Debaixo do barro do chão da pista onde se dança
É como se Deus irradiasse uma forte energia
Que sobe pelo chão
E se transforma em ondas de baião, xaxado e xote
Que balança a trança do cabelo da menina, e quanta alegria!
De onde é que vem o baião?
Vem debaixo do barro do chão
De onde é que vêm o xote e o xaxado?
Vêm debaixo do barro do chão
De onde vêm a esperança, a sustança espalhando o verde dos teus olhos pela
plantação?
Ô-ô
Vêm debaixo do barro do chão