RISCOS OCUPACIONAIS E INVIBILIZAÇÃO DO ADOECIMENTO NO TELEATENDIMENTO
Vitor Araújo Filgueiras1 e Renata Queiroz Dutra2
Resumo: A precariedade e precarização do trabalho no setor de teleatendimento no Brasil podem
ser identificadas nos diversos aspectos da relação de emprego, e contemplam o significativo
adoecimento dos trabalhadores do ramo. Esses fatos, já diagnosticados por vários estudos
sociológicos, têm justificado a atenção de pesquisas à regulação do direito do trabalho no setor,
com destacado interesse para a atuação do INSS no reconhecimento dos benefícios acidentários e
do Poder Judiciário na condenação ao pagamento de indenizações por acidentes laborais. Também
tem chamado a atenção o enfrentamento dos Poderes Executivos e Judiciário aos processos que
figuram como causas desse adoecimento, e as condutas lenientes ou os conflitos interinstitucionais
que reduzem a eficácia da atuação regulatória.
Palavras-chave: regulação do direito do trabalho; adoecimento no setor de teleatendimento;
invisibilização.
1. Introdução
A precariedade e precarização do trabalho no setor de teleatendimento no
Brasil podem ser identificadas nos diversos aspectos da relação de emprego
(remuneração, forma de contratação, intensidade e ritmo de trabalho, ações
coletivas), e contemplam o significativo adoecimento dos trabalhadores do ramo.
Esses fatos, já diagnosticados por vários estudos sociológicos, têm
justificado a atenção de pesquisas à regulação do direito do trabalho no setor3.
Contudo, com a ressalva da adoção do critério do nexo técnico epidemiológico
pela Previdência Social, que gerou um incremento significativo do número de
benefícios acidentários concedidos no setor, na esfera de regulação do direito do
trabalho, notadamente em relação ao Poder Judiciário, identifica-se alguma
resistência a considerar a relação estreita entre trabalho precário e
adoecimento. Esse cenário tem reverberado numa atuação regulatória
permissiva em relação às diversas modalidades de exploração do trabalho
verificadas no setor e, por consequência, ineficaz quando se trata de evitar a
exposição da saúde dos trabalhadores a agravos.
Nesse ensaio pretende-se confrontar os meandros da regulação privada do
adoecimento no trabalho em call centers (aqui compreendida como a postura
das empresas em relação à gestão do trabalho, ao enfrentamento dos riscos
ocupacionais e ao reconhecimento das doenças ocupacionais que
reiteradamente têm atingido os trabalhadores do setor) e da regulação pública,
com foco na atuação institucional de Poder Judiciário e do Poder executivo em
relação às questões ambientais verificadas no setor e às situações de
adoecimento já constatadas.
Para isso são adotados algumas fontes e instrumentos de análise. Parte-se
1 Doutor em Ciências Sociais (UFBA), pós-doutorando em Economia (UNICAMP), auditor fiscal do Ministério do Trabalho. Email para contato:
[email protected]. Endereço para envio: Rua Dr. Luciano Venere Decourt - Número 845, Casa, distrito de Barão Geraldo, Campinas/SP, CEP 13083-740.
2 Mestra e Doutoranda em Direito (UNB), analista do Tribunal Superior do Trabalho. Ambos os autores integram o grupo de pesquisa “Indicadores de Regulação do Emprego”, sendo o presente texto desenvolvido no curso das atividades do grupo.
3 Ver: DUTRA, Renata Queiroz. Do outro lado da linha: poder judiciário, regulação e adoecimento dos trabalhadores em call centers. São Paulo: Editora LTr, 2014.
da revisão de outras pesquisas que abordam a saúde do trabalho no setor. Em
seguida, são analisados os dados totais de acidentes de trabalho registrados
pelo INSS no setor, assim como em atividades próximas, para efeitos
comparativos. Foram também colhidos dados do IBGE sobre quantitativo de
empresas. Uma das principais fontes de avaliação da postura das empresas de
teleatendimento é a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), documento
que as empresas são obrigadas a preencher e apresentar ao INSS, segundo a
legislação, para todo acidente de trabalho. A emissão de CAT pelos
empregadores consta nos dados do INSS, mas aqui é também observada no
conjunto das empresas do setor (por meio do Código Nacional de Atividades
Econômicas (CNAE 8220)) para os estados da Bahia e São Paulo, tanto de
modo agregado, quanto pelas empresas individualmente consideradas.
Complementarmente, para investigação aprofundada do comportamento
dessas quatro empresas é utilizada jurisprudência dos tribunais dos estados
supracitados, resultados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS),
movimentação do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED),
sendo também observados os resultados da Fiscalização do Ministério do
Trabalho e Previdência Social (MTPS) informados no Sistema Federal de
Inspeção do Trabalho (SFIT) e decisões da Justiça do Trabalho.
2. Telemarketing: o fenômeno do adoecimento
De acordo com dados da RAIS relativos ao ano de 20134, a categoria de
trabalhadores que se ativa nesse setor é composta, em sua maioria, por
mulheres (73% da força de trabalho), jovens (67,7% dos trabalhadores tem
entre 18 e 29 anos), de classes média e baixa, com nível de escolaridade
correspondente ao ensino médio completo (80,3%), que estão ingressando no
mercado de trabalho5. Dos trabalhadores admitidos no setor, 25,7% estariam
em situação de primeiro emprego.
A precariedade e a precarização6 identificadas nesse trabalho perpassa
desde a forma de contratação, na qual predomina a terceirização, até as
condições de ergonomia dos postos de trabalho e a inobservância de ritmo
adequado e de pausas na jornada. A pressão psicológica exercida sobre as
trabalhadoras compõe esse cenário, que culmina com índices elevados de
adoecimento, exaustivamente denunciados pela literatura.
A acentuada vulnerabilidade dessa categoria de trabalhadores marca o
setor e decorre da própria maneira como a atividade de teleatendimento vem
sendo gerida.
A mão de obra empregada no serviço de call center também é uma das
4 Dados disponíveis em http://portal.mte.gov.br/rais/. Acesso em 24/2/2014. 23h04min.
5 ver ANTUNES, Ricardo; BRAGA, Ruy (orgs.). Infoproletários. São Paulo: Editora Boitempo, 2009.
6 Precariedade é uma situação, um juízo sobre as condições das pessoas que vivem do trabalho em um dado momento, a partir de determinado parâmetro. Em regra, o parâmetro utilizado é a condição salarial estável, como descrita em Castel (2009), e a precariedade do trabalho constitui o oposto de tal condição. Já a precarização do trabalho é um processo em determinado período de análise, a mudança de uma dada situação dos trabalhadores para outra condição menos favorável, como mais vulnerável, penosa, perigosa, instável, insegura, etc., restabelecendo uma vulnerabilidade na vida das pessoas que haviam sido paulatinamente incorporadas pela condição salarial. A precarização, em síntese, é a emergência ou aprofundamento da instabilidade, da ausência de perspectivas, da vulnerabilidade, da exposição da integridade física a riscos, do desgaste físico e mental daqueles que trabalham.
mais rotativas do país. Pesquisa realizada pelo DIEESE para o ano de 2013
registra que, quando consideradas as dispensas a pedido dos trabalhadores,
forma de ruptura contratual que predomina no setor (registro de 51, 6% para
o ano de 20137), o quadro revela acentuada rotatividade no teleatendimento,
sobretudo quando comparado ao setor de serviços em geral. Enquanto que no
teleatendimento mais da metade dos desligamentos se dão a pedido do
trabalhador, modalidade de ruptura contratual que é seguida do também
elevado percentual de dispensas imotivadas (38,9%), no setor de serviços em
geral as dispensas imotivadas perpetradas pelo empregador predominam
(65,4%) sendo seguida de pedidos de demissão em percentual de 27,4%.
Enquanto o tempo médio de permanência dos trabalhadores ativos no
Teleatendimento é de menos de 1 ano e meio, no setor de Serviços o tempo
médio de emprego é de quase 4 anos. Do total dos trabalhadores do setor de
teleatendimento, 41% ficam menos de três meses no posto de trabalho e 17%
ficam entre três e seis meses, situação distinta da observada no setor de
Serviços, em que 33% dos trabalhadores ficam até 3 meses e 14%
permanecem de três a seis meses no emprego.
Sobre a alta taxa de pedidos de demissão, o dado fala por si e induz
algumas conclusões a respeito das condições de trabalho que são oferecidas
aos trabalhadores, mas também se revela como estratégia de defesa dos
trabalhadores em face da política punitivista de gestão do trabalho identificada
nas empresas. Por exemplo, a última fiscalização realizada pelo MTPS em uma
das cinco maiores empresas do setor, cujos padrões de gestão são comuns,
permitiu observar um excessivo número de advertências e suspensões que são
sucessivamente aplicadas pelas empresas, inclusive por razões banais (ex: não
cumprimento dos scripts de atendimento, deixar de oferecer um serviço ao
cliente, etc.) em cumprimento da denominada “escala pedagógica”. Portanto, o
trabalho de campo, realizado mediante entrevistas com trabalhadoras e
sindicatos, permite observar que muitas vezes as empregadas que já
receberam três punições optam por pedir demissão para evitar a penalização
por justa causa. Também há significativos registros no sentido de que essa
“opção” é oferecida pelos próprios superiores hierárquicos, mediante assédio,
para que a trabalhadora se desligue voluntariamente.
A categoria também desponta nos índices de adoecimento psíquico
(resultado do stress ocasionado pelo contato com os clientes, do ritmo de
trabalho intenso, com pausas mínimas demarcadas até para uso dos
sanitários, do alto grau de vigilância dos supervisores, das reiteradas notícias
de assédio moral, dentre outros.)8
É a essa caracterização da organização do trabalho nos call center que Ruy
Braga atribui o que denominou o “ciclo do teleoperador”, período entre 20 e 24
meses que abrange desde a contratação do teleoperador até o seu “descarte”
pela empresa9. Após um período de adaptação inicial, o teleatendente se
7 DIEESE, 2015.
8 ANTUNES, Ricardo; BRAGA, Ruy (org.). Infoproletários. São Paulo: Boitempo, 2009.
9 BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012.
encontraria apto a alcançar as metas impostas pela gerência: por cerca de um
ano que se segue, o alcance das metas e a consequente remuneração
diferenciada é objeto de satisfação pelo trabalhador e é nesse período que ele
apresenta o seu melhor desempenho. No entanto, “o endurecimento das
metas, a rotinização do trabalho, o despotismo dos coordenadores de
operação, os baixos salários e a negligência por parte das empresas em relação
à ergonomia e à temperatura do ambiente provocam o adoecimento e
alimentam desinteresse pelo trabalho”10. Com a queda dos resultados, o
trabalhador deixa de ser interessante para empresa. Então, porque pouco
produtivo ou porque já acometido de alguma espécie de adoecimento, ele é
descartado, dando lugar a outro trabalhador que reiniciará o ciclo.
A realidade encontrada por Braga, na pesquisa empírica realizada em São
Paulo, é de lesões por esforço repetitivo, tendinites, doenças de menière, crises
de vertigem repentinas associadas a zumbidos nos ouvidos e surdez
progressiva, quadros depressivos agudos, infecções urinárias, obesidade,
hipertensão e calos vocais11. Rosenfield, em sua pesquisa empírica, dá notícia
de casos frequentes de lesões por esforço repetitivo ou distúrbios
osteomusculares relacionados ao trabalho (Dores) e depressão, reportando-se
ainda a um relato de suicídio no local de trabalho12. Cláudia Mazzei, por sua
vez, atestou a ocorrência de LER/Dort, problemas auditivos, problemas
relacionados à voz e transtornos mentais de diferentes naturezas13.
Cavaignac14, Pena, Cardim e Araújo15 e Silva16 também indicam a ocorrência
de LER, problemas auditivos, na fala e na coluna, distúrbios do sono,
depressão e ansiedade e, ainda, infecções urinárias, potencialmente
decorrentes do controle excessivo do uso do sanitário.
As queixas sobre a duração reduzida do intervalo e o controle do uso de
banheiro, bem como pelo ritmo do trabalho e pelo monitoramento excessivo
das ligações aparecem com solidez nas entrevistas realizadas por esses
pesquisadores. Tais alegações vêm associadas a denúncias de assédio moral,
que é verificado como um modus operandi das gerências na cobrança de
metas dos empregados.
Corroborando esse quadro, dados fornecidos pelo Ministério da Previdência
e Assistência Social, por meio do Anuário Estatístico da Previdência Social
(doravante INSS), revelam uma significativa quantidade de acidentes do
10 Idem, ibidem.
11 BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012. p.190.
12 ROSENFIELD, Cinara Lerrer. A identidade no trabalho em call centers: a identidade provisória. In ANTUNES, Ricardo; BRAGA, Ruy (orgs). Infoproletários. São Paulo: Editora Boitempo, 2009. p. 179. A propósito do suicídio em centrais de teleatendimento, Venco relata o caso francês da contratação do sociólogo Philipe Zarifian para realização de pesquisa empírica na Francetelecom após quatro ocorrências de suicídio em centrais de teleatendimento. Consultar: VENCO, Selma Borghi. As engrenagens do telemarketing: vida e trabalho na contemporaneidade. Campinas, SP: Arte Escrita, 2009. p.176.
13 NOGUEIRA, Cláudia Mazzei. As trabalhadoras do telemarketing: uma nova divisão sexual do trabalho? In: ANTUNES, Ricardo; BRAGA, Ruy (orgs). Infoproletários. São Paulo: Editora Boitempo, 2009. p. 191-192.
14 CAVAIGNAC, Mônica Duarte. Precarização do trabalho e operadores de telemarketing. Revista Perspectivas, São Paulo, v.39, p. 47-74, jan/jun 2011.
15 PENA, Paulo Gilvane Lopes; CARDIM, Adryanna and ARAUJO, Maria da Purificação N. Taylorismo cibernético e Lesões por Esforços Repetitivos em operadores de telemarketing em Salvador- Bahia. Cadernos CRH [online]. 2011, vol.24, n.spe1, pp. 133-153.
16 SILVA, Fábio Pimentel Maria da. Trabalho e emprego no setor de telemarketing (Dissertação de mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Orientador: Ruy Braga. 2010
trabalho no setor. Desde 2007 o total de acidentes registrados pela Previdência
foi superior a três mil ocorrências, dentre elas sempre mais de mil doenças
ocupacionais.
Os dados sobre acidentes de trabalho divulgados pelo INSS são
apresentados da seguinte maneira: quando há emissão de CAT pela empresa,
o INSS discrimina as ocorrências entre doença e acidente típico (além de
trajeto, que não nos interessa). Quanto não há emissão de CAT pela empresa,
o INSS apresenta a ocorrência como acidente sem CAT (sem discriminar a
espécie). Todavia, neste último caso, normalmente se tratam de doenças
ocupacionais17.
Após anos seguidos de crescimento, a partir de 2010 há redução dos
acidentes e doença comunicados ou reconhecidos pelo INSS no setor de
teleatendimento. Isso poderia até sugerir que o cenário de adoecimento está
melhorando, todavia, não é o caso. Longe disso, como será demonstrado no
decorrer do texto, há fortes indícios de que se trata de corolário da regulação
do capital relativamente ao adoecimento dos trabalhadores no setor, que visa
ocultar problema.
3. Regulação privada e a estratégia de esconder o problema
Por meio dos dados do INSS é possível apreender evidências da natureza da
regulação privada do reconhecimento dos agravos ocupacionais pelas
empresas de teleatendimento. Ressalta-se, de início, que os dados a seguir,
por definição, tendem a ser subestimados, pois contemplam apenas os casos
admitidos pelas empresas ou de trabalhadores encaminhados à previdência.
Portanto, os trabalhadores lesionados que não tiveram CAT emitida ou que
não foram direcionados à previdência são, a priori, excluídos dos dados.
Pensamos, inclusive, que é justamente esse o comportamento que as
empresas do setor estão tendendo a adotar progressivamente nos últimos
anos.
Estamos considerando regulação privada o tratamento da força de trabalho
no âmbito da empresa18. Essa gestão dos trabalhadores pelo capital não
significa que o Estado está ausente da relação (que esta estaria adstrita a
patrão e empregado), já que ele garante a própria relação19. Trata-se, sim, do
cotidiano da relação sob a égide do capital, sem interferência direta de agentes
como as instituições de regulação do direito do trabalho.
Os dados abaixo se referem aos agravos ocupacionais, registrados pelo INSS,
em todo Brasil, no setor de teleatendimento entre 2006 e 2012, e fornecem
elementos relevantes para apreender como o capital tem regulado sua força de
trabalho no que concerne ao reconhecimento dos adoecimentos laborais.
17 Isso porque se tratam de transformações de benefício a partir do nexo epidemiológico (em 2007), que ocorrem quando a empresa não emite
CAT específica e afasta o trabalhador por mais de 15 dias das atividades como se fosse doença comum, mas o INSS reconhece a relação do agravo com o trabalho e registra a ocorrência como acidente de trabalho. O INSS transforma o benefício e reconhece o caráter ocupacional da lesão do trabalhador com base na análise de perito e cruzamento de dados sobre setores econômicos, atividades laborais realizadas e incidência de agravos à saúde.
18 Semelhante à definição de Krein (2007).
19 Necessariamente e, ao menos, garantindo a propriedade privada. Ver Filgueiras (2012), especialmente capítulo 3.
CNAE 82.20-0-00 – Atividades de teleatendimento
2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Total 1830 3510 4268 4764 3884 3579 3434
Doença com CAT 581 418 314 310 199 129 96
Acidente sem CAT - 1269 1656 1732 1396 1183 1052
Fonte: INSS
Trata-se do número de registros de doenças ocupacionais com CAT emitida
e de acidentes de trabalho sem CAT (em regra, representativos de doenças
ocupacionais reconhecidas pelo INSS a partir do nexo epidemiológico, como já
aludido) nas empresas enquadradas no CNAE referente a atividades de
teleatendimento.
Pelos dados, após 2007, com a adoção do nexo epidemiológico, mais de mil
doenças ocupacionais não reconhecidas pelas empresas todos os anos
passaram a ser cadastradas pelo INSS. Do total de acidentes a partir de 2007,
incluindo de trajeto e demais possibilidades, quase um terço são doenças
ocupacionais sem emissão de CAT pelos empregadores. O fato de haver grande
quantidade de acidentes não reconhecidos pelas empresas, que direcionam os
trabalhadores ao INSS como se estivessem doentes por razões alheias ao
trabalho, evidencia a resistência patronal em admitir o problema.
Contudo, quando a análise foca as doenças ocupacionais o comportamento
empresarial de ocultamento das doenças laborais fica muito mais evidente.
Em 2011 e 2012, dos casos de doença ocupacional cadastrados no INSS,
menos de 10% foram reconhecidos pelas empresas como tal. Ou seja, trata-se
de um fortíssimo indicador de uma não notificação muito intensa dos agravos
laborais pelas empresas de teleatendimento. Em havendo adoecimento e
incapacidade para o trabalho, a tendência das empresas é encaminhar o
trabalhador à previdência como se ele estivesse acometido por uma doença
comum, sem relação com o trabalho.
Mas não se trata simplesmente de não admissão das doenças por parte das
empresas. Os dados sugerem que há intenção deliberada e progressiva de
ocultar as lesões. Isso porque ano após ano tem ocorrido queda no
reconhecimento de doenças ocupacionais pelas empresas, sem que as lesões
reconhecidas pelo INSS caiam, ou em proporção muitas vezes superior de
queda. Assim, após a instituição do nexo técnico epidemiológico, parece que as
empresas passaram a emitir ainda menos CAT como reação ao
reconhecimento dos agravos pelo INSS e consequente elevação do número
trabalhadores estáveis20 em seus quadros.
Há indícios de que reação patronal foi mais longe. A partir de 2010 as
empresas parecem ter se dado conta de que simplesmente não emitir a CAT e
negar o caráter ocupacional da doença não era estratégia suficiente a obstar a
estabilidade dos trabalhadores lesionados, tendo em vista a possibilidade de o
INSS converter o auxílio doença comum em auxílio doença acidentário,
sobretudo se verificado o nexo técnico epidemiológico. Assim, o próprio
20 Trata-se da estabilidade provisória por acidente de trabalho, prevista no art. 118 da Lei nº 8.213/91.
encaminhamento do trabalhador ao INSS passou a ser evitado pelas empresas
como forma de fugir das consequências desses afastamentos no contrato de
trabalho, mantendo os trabalhadores lesionados em atividade, impedindo
afastamentos superiores e 15 dias ou dispensando esses empregados.
Com base na dinâmica do total de acidentes fica ainda mais forte a
suspeita de que as empresas estão evitando encaminhar os trabalhadores
para a Previdência. As CAT emitidas pelas empresas por doença ocupacional
caem imediatamente em 2007, com o início do nexo epidemiológico. Ao mesmo
tempo, cresce o número total de ocorrências, assim como o número de
registros de doenças sem emissão de CAT. Esse processo segue nos dois anos
seguintes. Em 2010 as empresas acentuam a redução na emissão de CAT,
mas caem também a quantidade de acidentes sem emissão de CAT e o número
total de acidentes no setor. Em 2011 e 2012 a queda total de acidentes é
quase idêntica à soma redução do registro de doenças com CAT e acidentes
sem CAT, mantendo-se praticamente constante o número de acidentes típicos.
Ou seja, parece que se aliou a prática de não reconhecer as lesões com sequer
afastar os adoecidos.
Ainda com os dados do INSS, tais como divulgados oficialmente, é possível
analisar a dinâmica do adoecimento e da postura empresarial no ramo do
telemarketing comparada à de outros setores semelhantes, como as atividades
catalogadas sob o CNAE de divisão “82”, que se relaciona a “serviços de
escritório, de apoio administrativo e outros serviços prestados às empresas”.
Pelo IBGE, o CNAE 8211 (serviços de escritório) tinha entre 33 mil e 50 mil
empresas entre 2009 e 2011, mas quase 80% a menos de doenças
ocupacionais registradas do que o teleatendimento. Já o setor 8299 (serviços
prestados à empresas), que mais se aproxima do teleatendimento em doenças
registradas, tem entre 81 e 82 mil empresas entre 2009 e 2011. Enquanto
isso, o número de empresas no telemarketing não passa de 2,5 mil em 2011,
mais de 20 vezes menos do que os outros setores, e mesmo assim possui
maior registro de adoecimentos.
Em todos os setores há indícios fortes de não notificação de doença
ocupacionais, já que o número de doenças não reconhecidas pelas empresas e
registradas pelo INSS é sempre muito maior do que as comunicadas pelos
empregadores. Entretanto, no teleatendimento a redução do número de
ocorrências de emissão de CAT por doença pelas empresas é maior. Essa
diminuição é também maior do que nos dados nacionais, nos quais a emissão
de CAT por doença cai de 30 mil, em 2006, para 15 mil, em 2011, ou seja, se
reduz pela metade. No teleatendimento o número de CAT emitida em 2006 é
mais de 4 vezes superior ao de 2011. Em suma, as empresas do setor de
teleatendimento lideram uma tendência de modus operandi na comunicação
das doenças ocupacionais que é comum a todo o Brasil.
Ademais, enquanto em outros setores o número de acidentes reconhecidos
pelo INSS sem emissão de CAT oscila, sé mantém ou até cresce entre 2009 e
2011, no teleatendimento os benefícios previdenciários dessa natureza caem
31,7%, e diminuem ainda mais em 2012. Desse modo, há indícios fortes de
que esses dados expressam as políticas empresariais de regulação da força de
trabalho no setor de teleatendimento. Em síntese, elas buscam ocultar as
doenças, deliberadamente, e incluem, para não emissão de CAT: procedimento
de “invisibilização epidemiológica”, por parte dos setores médicos da empresa,
que muitas vezes atuam negando a ocorrência de doenças do trabalho e
implementam estratégias de deturpação da causalidade da enfermidade21;
também há relatos de controle, por parte das empresas de telemarketing, dos
diagnósticos produzidos por empresas médicas conveniadas, por meio do
descredenciamento daquelas clínicas de assistência médica supletiva que
emitiam laudos caracterizando doença do trabalho. Complementarmente, e
principalmente, o ocultamento das doenças ocupacionais se encerra com o
não afastamento dos trabalhadores ao INSS, e descarte de empregados não
saudáveis, dispensando-os quando doentes22.
Apesar de já bastante significativos os dados apresentados, há que se
considerar que há indícios de subnotificação das doenças ocupacionais no
âmbito do próprio órgão previdenciário, mesmo após a adoção do critério do
nexo técnico epidemiológico. Luiz Salvador aponta que o Sistema SABI
(Sistema Administrativo de Benefícios por Incapacidade) da previdência tem
dificultado a concessão do auxílio-doença acidentário pelo NTEP, “ainda que o
perito reconheça o direito do segurado a tal benefício”, citando os casos em
que há incoerência dos CNAE com as atividades efetivamente realizadas pela
empresa, o curto tempo de preenchimento nos dados da perícia, entre
outros23.
Para além dos dados do INSS, é possível aprofundar a análise do
comportamento das empresas na comunicação dos adoecimentos a partir do
total de empresas existem no ramo de teleatendimento no país e em duas
unidades da federação, posteriormente discutindo o comportamento do
conjunto de empresas que emitem comunicação de acidente de trabalho, e por
fim detalhando a postura das empresas mais representativas em cada estado,
que estão também entre as maiores do país.
Entre 2006 e 2011, foi crescente o número de empresas de teleatendimento
no país. Mais de metade se concentra no Estado de São Paulo ao longo de todo
o período acima24. No Estado da Bahia esse número oscila, tendo sido
registrada queda em relação ao ano de 2006. Em 2011 foram identificadas 38
empresas na Bahia e 1293 empresas em São Paulo. A partir de pesquisa com
base em todos os CNPJ do CNAE de teleatendimento, descobriu-se que, na
21 Vale referir aos depoimentos colhidos na pesquisa de Pena, Cardim e Araújo: empresa utilizava estratégias com o objetivo de dificultar ou
impedir a emissão da CAT: "Depois foi que ele chegou [o médico da empresa] me disse que se ele me desse a CAT, ele estava contraindo dois problemas pra ele: um com o INSS e outro com a empresa" An.).(...), "LER não existe", "LER é invenção do sindicato" e "LER é lerdeza do trabalhador"”. (PENA, Paulo Gilvane Lopes; CARDIM, Adryanna and ARAUJO, Maria da Purificação N..Taylorismo cibernético e Lesões por Esforços Repetitivos em operadores de telemarketing em Salvador-Bahia. Cad. CRH [online]. 2011, vol.24, n.spe1, pp. 133-153). São frequentes as denúncias de assédio moral em relação aos lesionados, como acusa-los de estarem mentindo sobre as lesões, justamente para evitar a manifestação dos agravos, como consta no acórdão. http://aplicacoes1.trtsp.jus.br/vdoc/TrtApp.action?viewPdf=&id=253744
22 Trabalhadores são dispensados lesionados ou até mesmo tendo gozado de benefício previdenciário. Isso é concretamente indicado nos acórdãos da justiça do trabalho referentes a processos de trabalhadores para requerer seu direito à estabilidade.
23 Link: http://www.adital.com.br/site/noticia_imp.asp?cod=32983&lang=PT. Brasil – INSS: Conivência repudiada. Luiz Salvador. Janeiro de 2014.
24 Ver: ALMEIDA, Marina de Castro. Em outro ponto da rede: desenvolvimento geográfico desigual e o ‘vaivém’ do capital nas operações de Contact Center. Tese de Doutorado. FFCH – USP. 2013.
Bahia, entre janeiro de 2011 e junho de 2013, 18 empresas do setor emitiram
alguma CAT, ou seja, menos de metade das empresas existentes. Em São
Paulo, no mesmo período, 507 empresas emitiram alguma CAT (também
menos de metade do total), panorama que, a priori, já se mostra incompatível
com as ocorrências de adoecimento registradas pela literatura.
Isto é, de acordo com mais de metade das empresas de telemarketing
desses estados não houve NENHUM acidente de trabalho vitimando seus
trabalhadores durantes DOIS ANOS E MEIO. Vale ressaltar que São Paulo
responde por mais de metade do número de empresas de teleatendimento do
Brasil. Esses dados são indicadores de que não apenas as doenças
ocupacionais, bem como os acidentes típicos são omitidos pelas empresas de
telemarketing, já que é pouco plausível que num setor com as características
aqui apresentadas não ocorra nenhum acidente de trabalho (de nenhuma
espécie) em mais de metade das empresas ao longo de mais de dois anos.
Quanto às empresas que emitiram alguma CAT, na Bahia, das 18 que
reconheceram algum acidente, somente duas delas emitiram CAT concernente
a doença do trabalho: as demais ocorrências se referiam exclusivamente a
acidentes típicos. Em São Paulo, onde 507 empresas emitiram alguma CAT, só
47 emitiram CAT por doença ocupacional. Portanto, cerca de 90% das
empresas que emitem CAT não o fazem em razão de doenças ocupacionais.
Considerando o total de empresas mapeadas pelo IBGE, apenas menos de 5%
das empresas de teleatendimento em São Paulo e praticamente 5% dos
empregadores na Bahia reconhecem a existência de alguma doença
ocupacional nos seus quadros, justamente o tipo de adoecimento mais notório
no setor.
Corroborando os dados agregados do INSS para o setor, essas informações
evidenciam a relutância empresarial em reconhecer o fenômeno do
adoecimento como consequência do trabalho, especialmente no que concerne
às doenças ocupacionais, dificultando o acesso à proteção previdenciária que
a emissão da CAT proporciona.
Para as empresas, a não emissão da CAT reduz os custos oriundos do
afastamento dos trabalhadores doentes (deixam de recolher FGTS), diminui o
pagamento da alíquota em folha de pagamento do seguro acidente (SAT),
assim como ajuda a maquiar os dados concernentes à inadequação dos seus
processos produtivos às normas de saúde e segurança. Ademais, ao não
reconhecer a doença, as empresas buscam evitar a estabilidade acidentária
dos trabalhadores e obter maior flexibilidade na dispensa. Ao não admitir o
adoecimento dos empregados, o empregador dificulta a produção de provas
para as ações individuais de trabalhadores requerendo estabilidade ou dano
reparatório das empresas, bem como para as ações civis públicas (ACP) do
Ministério Público do Trabalho (MPT) e eventuais ações regressivas da
Advocacia da União (AGU) para ressarcimento do erário. Em suma, além de
espoliar os trabalhadores, ao ocultar os agravos as empresas buscam se furtar
da responsabilidade sobre eles, socializando o prejuízo com toda a sociedade.
Assim, esconder o adoecimento traz uma série de benefícios à lógica do
capital que explicam o modus operandi aqui descrito.
Finalmente, passe-se à análise do comportamento de quatro das principais
empresas do país, duas em São Paulo (que chamaremos de CX e MB), sendo
as que mais emitiram CAT no estado entre janeiro de 2011 e julho de 2013, e
duas da Bahia (CX1 e CX2, filiais de mesma empresa), que além de serem as
que mais emitiram CAT no mesmo período, foram as únicas que reconheceram
alguma doença ocupacional.
A CX, cujo total de empregados variou entre 4,5 mil e 6 mil entre 2011 e
2013, foi a empresa que mais emitiu CAT no estado de São Paulo nos últimos
3 anos. Foram emitidas pela empresa 216 CAT, sendo que apenas 3 se
referiam a doenças ocupacionais. A MB é a segunda empresa que mais emitiu
CATs no período analisado. Ela contou com uma faixa de 2,3 mil a 3,2 mil
empregos entre 2011 e 2013, e subscreveu 54 CATs no período. No entanto,
somente uma dessas comunicações foi emitida em razão de doença.
Na Bahia esse padrão se repete: foram apenas cinco CATs emitidas por
doença ocupacional no estado entre janeiro de 2011 e julho de 2013. Todas
elas, restritas a duas empresas, filiais de um mesmo grupo, mas mesmo assim
em proporção extremamente reduzida em relação aos acidentes comunicados.
A CT1 emitiu 107 CATs (possuía entre três e quatro mil empregados no
período), mas, dessas, apenas quatro por doença. A CT2 emitiu 63 CATs (para
um total de empregados que variou entre 5.650 e 6.178 no período maio de
2011 a julho de 2013), mas só uma CAT por doença laboral.
Portanto, o cenário de ocultamento do adoecimento é ainda mais grave: se
90% das empresas do setor que emitem alguma CAT não reconhecem
nenhuma doença, mesmo o percentual ínfimo daquelas que reconhecem
alguma doença o faz em proporção reduzidíssima, já que inferior a 4% dos
acidentes comunicados por elas.
Interessante ressaltar também que, apesar de mínimas, as CAT emitidas
pelas referidas empresas corroboram a miríade de adoecimentos que
acometem os trabalhadores do setor. Nas quatro empresas, os registros
referiam-se a adoecimento psíquico, síndrome do túnel do carpo em punho e
antebraço, perda auditiva, corroborando a constatação de que a precariedade
do trabalho no setor tem o potencial de lesionar a saúde dos trabalhadores de
diversas maneiras e em várias intensidades, alcançando desde a sua
corporalidade física até o seu bem-estar psíquico.
Corroborando os dados gerais do setor, a estratégia de ocultamento das
lesões nessas empresas vai além do não reconhecimento do problema, e
abarca a dispensa dos lesionados. A prática de dispensa dos trabalhadores por
essas empresas parece recorrente, como ilustram as informações e decisões de
alguns processos judiciais.
Na Bahia, acórdão do processo Nº 0021100-16.2008.5.05.0018 registra caso
em que a empresa CX1 encaminhou ao INSS uma trabalhadora com doença
ocupacional como ela se tivesse doença comum. Após o retorno da empregada do
benefício, ela foi dispensada pela empresa, lesionada, sem sequer haver novo
afastamento ao INSS. As empresas muitas vezes nem sequer respeitam a
estabilidade previdenciária e dispensam os trabalhadores nesse período, como no
caso do processo nº 00018308620105020028 do TRT de São Paulo, envolvendo a
MB. Do mesmo modo, a empresa CT (conforme acórdão do processo Nº
0000976-86.2010.5.05.0003) dispensou trabalhadora no período de estabilidade,
desrespeitando uma proteção ao emprego que deveria durar, no mínimo, quase
um ano inteiro.
O processo de dispensa e admissão de novos trabalhadores por essas
quatro empresas corrobora a hipótese do desligamento como estratégia de
omitir os casos de adoecimento em seus quadros. Nessas empresas essa taxa
varia entre 3% a 10% todos os meses. A troca anual de trabalhadores chega a
suplantar o total médio de empregados no mesmo período. Por exemplo, na
MB foram 6.901 vínculos em 2012, que começou com 2.690 e terminou com
2.577 empregados (variação absoluta inferior a 5%). Enquanto isso houve
4.652 desligamentos, ou seja, número suficiente para trocar todos os
empregados quase duas vezes em apenas um ano. Nessa impressionante
rotatividade, muitas vezes mais de 10% do total de emprego em um único mês,
como em janeiro, fevereiro em março de 2013, quando havia respectivamente
2.384, 2.515 e 2.648 empregados contratados, sendo trocados 276, 318 e 356
empregados em cada intervalo de 30 dias. Em 2011, a empresa teve entre de
dois a três mil trabalhadores no total, mas houve 8.016 vínculos ao longo do
ano.
Em que pese não ser possível determinar a quantidade de adoecidos,
fatores como a existência e condenação em processos por dispensa de
trabalhadores lesionados, a ínfima quantidade de CAT por doença (dez
somadas as quatro empresas em dois anos e meio) e a galopante dispensa
para troca de trabalhadores indicam fortemente que o recurso a descarte de
adoecidos é substancial25.
Em todo o Brasil, num universo de mais de duas mil empresas, menos de
cem doenças ocupacionais foram reconhecidas pelos empregadores do ramo
do teleatendimento (INSS) em 2012, o que é um dado insignificante diante das
estatísticas já aventadas pela literatura de trabalhadores acometidos de
alguma doença nos curtos períodos de tempo que abarcam seus contratos, do
reconhecimento de doenças pelo INSS não admitidas pelos empregadores, e,
sobretudo, diante do universo de trabalhadores que laboram no setor
(operadores de teleatendimento, segundo a RAIS: respectivamente 337, 388 e
414 mil em 2009, 2010 e 2011 em empresas do setor; mas há fontes que
afirmam que esse quantum supera um milhão de empregados26).
Ainda que algumas doenças possam ter uma manifestação sintomática
tardia em relação ao período trabalhado, as principais moléstias que
acometem os trabalhadores em call centers, quais sejam, as lesões
musculares por esforço repetitivos, os problemas nas cordas vocais e os
25 A recorrência da dispensa de trabalhadores como estratégia para omissão dos adoecimentos pode ser mais bem apurada por meio de análise
do histórico clínico dos trabalhadores dispensados. O histórico previdenciário por empresa também pode ajudar nesse sentido.
26 Dados da Associação Brasileira de Telesserviços. Disponível em http://www.abt.org.br/telemarketing.asp. Acesso em 25/11/2013; 20h28. Ver também: Telemarketing emprega 1,4 milhões no país. Portal G1. Disponível em http://g1.globo.com/concursose- emprego/noticia/2012/10/telemarketing-emprega-14-milhao-no-pais-veja-como-e-o-trabalho-nosetor. html. Acesso em 25/11/2013; 20h28.
problemas psíquicos, como a literatura pautada em entrevistas dos
trabalhadores e de médicos do trabalho demonstra, tendem a aparecer no
curso do contrato. Prova da manifestação das moléstias durante o contrato é o
alto índice de absenteísmo dos trabalhadores e as reiteradas disputas judiciais
em torno da validade dos atestados médicos apresentados pelos
trabalhadores27.
Quando comparados aos benefícios previdenciários (que, como visto,
também sofrem subnotificação), as informações indicam uma instrumental e
generalizada política de ocultação dos adoecimentos no trabalho por parte dos
empregadores. Ao contrário das empresas, que na maioria das vezes nem
sequer comunicam acidentes, o INSS reconhece que o problema existe, como
demonstra o fato de que um terço de todos os acidentes de trabalho
considerados como tal pelo INSS decorrem da conversão de ocorrências
comunicadas como doenças comuns, em benefícios ocupacionais.
Mesmo entre as empresas que admitem algum acidente, só uma em cada
dez o faz em razão de alguma doença. E, mesmo quando admitem alguma
doença, o percentual ínfimo de reconhecimento contribui para a invisibilização
do problema e, por consequência, para a redução das demandas regulatórias
por alteração das condições e processos de trabalho que contribuem para a
intensificação do adoecimento.
Além disso, é pouco plausível a hipótese de melhora nas condições de
trabalho nos últimos anos no setor. Por exemplo, as quatro empresas citadas
neste texto são flagradas corriqueiramente pela fiscalização do trabalho
cometendo centenas e reiteradas infrações às normas de segurança e saúde.
Desse modo, mantêm-se os riscos ocupacionais e, portanto, a probabilidade de
adoecimento dos trabalhadores.
A CX, em São Paulo, foi auditada em junho de 2012, sendo multada por
manter trabalhadores no teleatendimento com excesso de jornada, tanto
diária, quanto semanal; deixar de conceder pausas de descanso de 10 minutos
contínuos; deixar de submeter trabalhador a exame médico periódico. Na MB
as últimas inspeções foram em 2009 e 2010, sendo constatadas, dentre
outras, infrações como deixar de submeter trabalhador a exame médico a cada
ano e a exame médico demissional; excesso de jornada diário e semanal;
ausência de descanso; utilizar assentos nos postos de trabalho em desacordo
com a NR-17; não implementar programa de vigilância epidemiológica para
detecção precoce de casos de doenças relacionadas ao trabalho; deixar de
emitir a Comunicação de Acidente de Trabalho produzida em virtude das
condições de trabalho.
Na CX1 e CX2, na Bahia, houve inspeções em 2012, sendo flagradas
ilegalidades como: deixar de contemplar, na avaliação da organização do
trabalho da análise ergonômica, as variações da carga de atendimento; manter
local de trabalho com níveis de ruído acima do permitido; não realizar exames
complementares, de acordo com o disposto na NR-7; deixar de contemplar, na
27 http://www.trtsp.jus.br/Geral/Consulta/Jurisprudencia/Ementas/020111447636.html
análise ergonômica do trabalho, o relatório estatístico da incidência de queixas
de agravos à saúde colhidas pela Medicina do Trabalho nos prontuários
médicos. Em novembro de 2012, dentre várias outras infrações, detectou-se:
não implementação de modelos de diálogos que evitem carga vocal intensiva
do operador; ausência de medidas de redução do ruído; não inclusão de
atividades e situações de trabalho na análise ergonômica do trabalho.
Assim, em todas as quatro empresas, além de infrações que elevam os
riscos de adoecimento, como deixar de controlar ruído, de conceder pausas,
não realização correta das análises ergonômicas, exceder jornada, se verificam
infrações diretamente vinculadas ao ocultamento dos agravos, como não
realização de exames médicos (inclusive demissional), não realização de
exames complementares, não documentação das queixas dos trabalhadores,
não emissão de CAT.
Destarte, é difícil acreditar na diminuição dos agravos à saúde dos
trabalhadores no setor nos últimos anos, ainda mais pela dinâmica das ações
judiciais e dos benefícios acidentários previdenciários à revelia dos
empregadores28.
4. Regulação pública em disputa
Ao tempo em que buscam ocultar os resultados das suas escolhas em
termos de gestão do trabalho, as empresas do setor reproduzem
procedimentos quase uniformes que combinam alto controle do tempo, dos
movimentos e da inteligência dos trabalhadores a uma manipulação
acentuada da subjetividade obreira, alcançada por meio de campanhas
competitivas, cobrança de altas metas em contrapartida à remuneração
variável, assédio moral organizacional e de um sistema de punições
disciplinares combinado com dispensas dos “não adaptados” que garante um
alto patamar de produtividade para a empresa constantemente, à custa do
descarte contínuo dos trabalhadores esgotados em favor da contratação de
outros jovens em situação de primeiro emprego.
Essa fábrica de lesões ocupacionais tem chamado a atenção da fiscalização
do trabalho, que, após um interregno significativo de inércia desde a edição da
NR 17, anexo II, em 2007, partiu, em 2013 para um endurecimento da sua
ação em relação às recalcitrantes empresas do setor.
Uma fiscalização nacional de uma das maiores empresas foi deflagrada em
2013 e, além da lavratura de 932 autos de infração, com a imposição de
R$ 318,6 milhões em multas, R$ 119,7 milhões de dívidas com o FGTS e
quase R$ 1,5 bilhão em débitos salariais, a operação culminou na interdição,
em 2015, de uma planta dessa empresa em Pernambuco, na qual atuavam
cerca de 14.000 trabalhadores. A fiscalização entendeu que os riscos
ocupacionais acentuados justificavam a suspensão das atividades da central
de teleatendimento até que as infrações legais fossem sanadas.
28 Sem esquecer que os dados do INSS abarcam somente os trabalhadores que são encaminhados ao órgão para fruição de algum benefício, o
que implica dizer que, quando o INSS subnotifica os casos de doença, deixando de reconhecer o direito do trabalhador a algum benefício, ou quando a empresa deixa de afastar o trabalhador, mesmo por doença comum (que seria transformada), o adoecimento não é registrado.
A empresa CX foi instalada na cidade de Recife em agosto de 2011, com
capacidade para 14.000 operadores29. A busca por força de trabalho barata e
desprovida de organização sindical nos parece justificar a instalação de um
padrão de gestão do trabalho peculiar, que se pauta no hipercontrole do
trabalho, com vistas a redução dos tempos mortos, eliminando, inclusive, as
pausas para uso da toalete, a fim de lograr o alcance de metas. O modelo,
além de desenvolver uma lógica de trabalho assentada na pressão psicológica,
exerce efeitos contraditórios sobre os trabalhadores, na medida em que
acumula altos níveis de exigência e cobranças com altos índices de
absenteísmo e adoecimento elevados.
A fiscalização do Ministério do Trabalho realizada na planta da empresa
CX, em Recife, condensa de forma clara o desenho desses mecanismos de
gestão e seus resultados. Os Auditores Fiscais do Trabalho iniciaram suas
atividades no estabelecimento em maio de 2013, tendo havido intensificação
das avaliações em julho de 2014, com retorno em janeiro de 2015 para
conclusão. Em todas as etapas foram realizadas inspeções nos locais de
trabalho, entrevistas com empregados e prepostos e verificação de
documentos.
Embora se tratasse de fiscalização voltada à planta da empresa CX, outras
quatro empresas foram igualmente autuadas, porque se verificou que se
tratava de tomadoras dos serviços prestados pelos empregados à intermediária
CX, num modelo de terceirização trabalhista, prática condenada pela Justiça
do Trabalho desde 2012.
O relatório de fiscalização descreve minuciosamente as condições de
trabalho da empresa, as quais são aqui expressas em seis eixos centrais: 1)
Controle absoluto do tempo; 2) Metas e avaliações; 3) Assédio moral; 4)
Excesso de punições; 5) Riscos ambientais; e 6) Absenteísmo, Atestados
médicos e adoecimento, os quais passamos a analisar.
4.1. Controle do tempo: São identificadas as formas de controle e gestão
do tempo do trabalho, envolvendo duração das ligações, ritmo de trabalho,
desconsideração do tempo à disposição do empregador anterior ao login no
sistema informatizado, prejuízo das pausas, controle do uso de banheiros e de
outros tempos mortos.
O Ministério do Trabalho observou que essa lógica era exacerbada durante
os chamados “DMM – Dias de maior movimento”, que ocorrem cerca de oito
vezes ao mês, e nos quais os gerentes exigem que os trabalhadores evitem
mesmo a realização de pausas para uso da toalete (p. 87).
4.2. Metas e avaliações: Lançando mão da remuneração variável, as
empresas controlam o alcance de metas. Ficou demonstrado pela fiscalização
do trabalho que os critérios para pagamento da remuneração variável são
obscuros e que os trabalhadores os desconhecem. Ademais, foi evidenciado
um estímulo à competitividade entre os colegas aliados a um caráter excessivo 29 João da Costa e Dilma Rousseff Inauguram Nova Central de Call Center em Santo Amaro. Por Marcus Silva. T30 de Agosto de 2011.
Disponível em: http://www.recife.pe.gov.br/2011/08/30/joao_da_costa_e_dilma_rousseff_inauguram_nova_central_de_call_center_em_santo_amaro_178474.php Acesso em 17/4/2015, 22h42.
das metas fixadas.
A fiscalização estimou que praticamente a totalidade dos trabalhadores
(98,8%) não alcançam os valores remuneratórios mais vantajosos pela
dificuldade extrema de se aproximar das elevadas metas estipuladas. Tem-se,
então, que as avaliações decorrem de um misto de critérios, como o
absenteísmo (inclusive justificado), a já mencionada “aderência”, o tempo
médio de atendimento e a subjetiva avaliação de monitoria, que fertiliza um
cenário para o assédio moral. Os resultados de desempenho são expostos
publicamente e o desenvolvimento de atividades em equipes somente ocorre
como forma de aglutinação dos empregados em torno de um mesmo
supervisor, que tem liberdade para avaliá-los e pressioná-los, em tempo real,
por mais velocidade ou atendimento em prol do alcance de metas.
4.3. Assédio moral: Assim como observado no conjunto de pesquisas por
nós realizadas, também na referida empresa constatou-se, por meio da
fiscalização do trabalho, o “estímulo abusivo à competição”. O uso, por parte
dos supervisores, de termos chulos e repreensões públicas e pouco respeitosas
é recorrente e, além dessa situação, o monitoramento das ligações em tempo
real continua sendo realizado com o desconhecimento dos teleoperadores.
A fiscalização também aponta que o assédio moral verificado em escala
organizacional se apresenta como fator de risco ocupacional para o
surgimento de doenças psíquicas. Afirmou-se no relatório que a política
gerencial de controle, pautada em práticas abusivas, aliada à banalização das
penalidades, aos critérios de avaliação e à supervisão exagerada reverberam
no absenteísmo e no índice de adoecimento, caracterizando a gestão pelo medo
ou pelo stress. Constam do relatório do Ministério do Trabalho depoimentos
dos teleoperadores que revelam a tensão no ambiente de trabalho: “eu estou
com medo de vir trabalhar”; “aqui, se você respirar mais que o permitido, leva
suspensão”; “eu faço tudo direitinho, atendo bem o cliente, mas de repente,
por um detalhe, como não falar alguma frase que deveria, tiro nota zero de
monitoria, e perco a RV [remuneração variável]”.
4.4. Excesso de punições: O exercício do poder disciplinar, por parte da
gestão, é exacerbado. A fiscalização registra que entre janeiro e maio de 2014
foram aplicadas, na empresa, 17.672 penalidades, entre advertências e
suspensões, o que equivale a 3.534 penalizações por mês. São exemplos
dessas punições o fato de uma trabalhadora ter sido suspensa por dois dias
em razão de ter transferido indevidamente uma chamada.
Constatou-se que qualquer inobservância banal das múltiplas exigências
quanto ao modo (gentileza, apresentar o “sorriso na voz”) e tempo de
atendimento implica a aplicação sucessiva de advertências, suspensões, até
que se chegue à ameaça de demissão por justa causa, em que o trabalhador
perde o emprego sem direito às verbas rescisórias.
4.5 Riscos ambientais: A fiscalização do trabalho, ainda, identificou in
loco a existência de inúmeros riscos ambientais no call center. Verificou-se a
potencialidade de distúrbios relacionados ao uso da voz, tendo em vista que o
número de postos de atendimento em um mesmo espaço (até 936 PA)
proporciona um ruído de fundo que torna necessário que os operadores
elevem a voz ao telefone. Observou-se que não há estímulo à ingestão
frequente de água para lubrificação das cordas vocais, dado o impedimento do
uso livre das toaletes.
Destaca-se que uma das modalidades de afastamento mais recorrentes
entre os atestados médicos foram motivados por diarreias, cuja compreensão
da fiscalização do trabalho é que tal fato ocorre, em grande medida, pela falta
de refrigeração adequada das refeições que os trabalhadores trazem de casa,
especialmente considerando as temperaturas elevadas da região, que torna
mais rápida a degradação dos alimentos.
Somou-se a esse quadro o fato de que a gestão de saúde e segurança do
trabalho na empresa é deficitária, a começar pelo não reconhecimento dos
riscos ocupacionais apresentados pela fiscalização do trabalho, assim como
por desenvolver de forma insuficiente a “análise ergonômica do trabalho” e o
“Programa de vigilância epidemiológica”, o que se perfaz como consequência
da política de negação dos riscos.
4.6. Absenteísmo, Atestados médicos e adoecimento: Sobre o
adoecimento, a situação ainda é mais preocupante. Analisando um período de
três anos de atestados médicos recebidos pela empresa, a fiscalização
constatou que a maior causa de afastamentos se relacionava às doenças do
sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo, notadamente sinovites e
tenossinovites, seguidas de dorsalgias. Foram recebidos no período em análise
35.000 atestados relacionados a essa modalidade de doença. Como se
esperava, são recorrentes os afastamentos relacionados a exames
ginecológicos periódicos e gravidez devido à prevalência de mulheres no setor
(e na planta, 73% dos empregados eram mulheres, p. 125), o que aumenta
incidência de ausências relacionadas a tais questões.
Ainda, destacou-se a incidência de doenças das vias aéreas superiores,
potencialmente relacionadas, de acordo com a fiscalização, à permanência em
ambientes fechados, com grande número de pessoas, e com ar condicionado,
situação que é agravada pela higiene precária dos locais de trabalho.
Após o registro de todos esses elementos, a fiscalização do trabalho, numa
atuação que serviria de modelo nacional no setor de teleatendimento, lavrou
297 autos de infração, para as empresas envolvidas na atividade da planta
fiscalizada30. Ao final, conclui-se pela necessidade de interdição do
estabelecimento, com respaldo nos seguintes fundamentos: A interdição
aconteceu no dia 20/1/2015, com a determinação de fechamento das portas
da empresa e a interrupção das atividades até a adequação das condições
irregulares detectadas.
Contudo, 48 horas após a interdição, a empresa recorreu ao Poder
30 A interdição da CX insere-se no contexto de uma fiscalização mais ampla realizada nos estabelecimentos da empresa em Recife, que já
haviam rendido, em 23/12/2014, mais de 900 autos de infração lavrados e 318,6 milhões de reais em multas administrativas, que envolvem a situação de 185 mil trabalhadores. Esses dados foram extraídos da reportagem: Teles e bancos superexploram operadores de telemarketing, aponta fiscalização: Megaoperação do Ministério do Trabalho responsabiliza Oi, Vivo, Santander, Itaú, NET, Citibank e Bradesco por abusos trabalhistas contra 185 mil pessoas em sete estados. 23/12/2014. Por Igor Ojeda. Disponível em: http://reporterbrasil.org.br/2014/12/teles-e-bancos-superexploram-operadores-de-telemarketing-aponta-fiscalizacao/ . Acesso em 17/4/2015, 23h26.
Judiciário postulando a suspensão da interdição realizada pelos auditores
fiscais do trabalho e logrou êxito em seu intento: a juíza do Trabalho
responsável pelo caso, em decisão liminar, determinou a suspensão da
interdição. Em 13/4/2015 a decisão foi ratificada pela Justiça do Trabalho,
com a declaração definitiva de nulidade do auto de interdição. Na
oportunidade, a fundamentação adotada destacou a preocupação quanto a
não “surpreender” a empresa, que, segundo a própria decisão, vinha sendo
fiscalizada desde 2013, quanto a não adotar medidas de caráter emergencial
para reagir a danos cuja ocorrência, se existente, se materializaria em longo
prazo e, sobretudo, quanto a uma atuação “excessiva” do Estado em prejuízo
do desenvolvimento da atividade econômica.
5. Conclusões
À luz de todas as informações e argumentos apresentados, e considerando
que o teleatendimento é um setor em franco crescimento, a redução da
comunicação de doenças ocupacionais pelas empresas indica o ocultamento
deliberado dos agravos. Por outro lado, a forma de gestão empresarial,
pautada na disposição e regramento excessivos dos corpos dos trabalhadores,
como padrão de ação que induz o processo de adoecimento fica evidenciado
pelos problemas identificados pela fiscalização do trabalho de forma mais
intensa, somente a partir de 2013, e ainda não compreendidos, em sua
gravidade, pelo Poder Judiciário.
A estratégia de regulação do adoecimento laboral, cujo padrão é não
informar as ocorrências, ganha força com o silenciamento sobre a existência
de riscos ocupacionais em geral, que ora é atacado ora é chancelado pelos
poderes públicos.
Além disso, há fortes indícios de que, sabedoras do procedimento recente
do INSS de conversão dos benefícios previdenciários comuns em benefícios
acidentários, as empresas, objetivando reduzir custos e aumentar a
flexibilidade de dispensa, têm evitado o próprio afastamento (muitas vezes
dispensando os empregados lesionados), já que o número de benefícios tem
caído desde 2010, dado incompatível com, dentre outros indicadores, o
crescimento econômico galopante do setor (média de crescimento de 11% nos
últimos 12 anos31), que acarreta aumento do número de postos de trabalho, e
a intensificação do adoecimento da categoria, massivamente identificada pela
literatura sociológica.
Esse modus operandi das empresas não surpreende. Por natureza, o
capital questiona e ataca o que considera obstáculo ou simplesmente entrave
à sua reprodução, com os agravantes do nosso capitalismo retardatário. A
defesa da flexibilização do trabalho no Brasil nas últimas duas décadas, assim
como o desrespeito às normas vigentes, são evidência desse processo. A
preservação da saúde humana também é também tratada como uma barreira
à reprodução do capital, pois respeitá-la demanda redução de flexibilidade na
31 Dados da Associação Brasileira de Telesserviços. Disponível em http://www.abt.org.br/telemarketing.asp. Acesso em 25/11/2013; 20h28.
gestão da força de trabalho e dispêndio de recursos que provavelmente não
implicarão retornos financeiros. Assim, um limite às condições do
assalariamento só pode ser exógeno (seja através de intervenção subsidiária
estatal, da organização coletiva dos trabalhadores, etc.), pois a própria relação
não abarca inerentemente nenhum32.
A dinâmica aqui apresentada sobre o reconhecimento dos agravos à saúde
dos trabalhadores sugere que qualquer procedimento que seja confiado à
regulação privada tende a ser burlado em prejuízo dos trabalhadores e em prol
da reprodução do capital.
A atenuação ou reversão do quadro de invisibilidade do adoecimento
requer, tendo em vista a força insuficiente do movimento sindical, a regulação
das instituições públicas com atribuições concernentes ao problema, em
particular o INSS, a AGU, o MPT, a justiça e o ministério do trabalho.
Contudo, não pode se assentar no padrão conciliatório de atuação, que
incentiva a ilegalidade e contribui para a precarização justamente porque
espera que as empresas respeitem espontaneamente os direitos dos
trabalhadores e sua integridade física. Vale citar o caso da empresa CX1 e
CX2, na Bahia, que firmou TACs, desde 2008, com reiterados
descumprimentos.
A Justiça do Trabalho também não tem apresentado uma estratégia
regulatória eficiente para incitar as empresas a mudarem sua postura no
setor, pois normalmente individualiza a análise do adoecimento, dificultando o
nexo entre trabalho e doença, e, mesmo quando reconhecem a lesão
profissional e condena as empresas ao pagamento de algum valor
indenizatório, este montante tende a ser pouco expressivo diante do potencial
econômico das empresas33. A condescendência do poder judiciário no caso da
interdição da empresa CX em Pernambuco, justificada em fundamentos
estritamente econômicos, também é representativa da eleição de um modelo
de regulação que se enverga diante das demandas do capital.
A atuação do Estado, se pretende efetividade, necessita ser impositiva,
como o nexo técnico epidemiológico adotado pelo INSS é parcialmente. Isso
porque ele necessita de mecanismos de redução de lucro para as empresas
que não reconhecem os agravos. Para isso as ações regressivas da AGU
precisam se tornar corriqueiras. Além disso, multas do Ministério do Trabalho,
ACP do MPT e indenizações na Justiça do Trabalho e Federal devem ser
espraiadas de modo que o ocultamento dos adoecimentos acarrete perda
financeira maior do que os benefícios até agora obtidos pelas empresas que
escondem os agravos.
32 Consultar: KREIN, José Dari. Debates contemporâneos: economia social e do trabalho, 8: as relações de trabalho na era do neoliberalismo no
Brasil. São Paulo: Ltr, 2013; FILGUEIRAS, Vitor. Estado e direito do trabalho no Brasil: regulação do emprego entre 1988 e 2008. (Tese de Doutorado). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Orientadora: Graça Druck. 2012.
33 DUTRA, Renata Queiroz. Do outro lado da linha: poder judiciário, regulação e adoecimento dos trabalhadores em call centers. Dissertação de mestrado. Universidade de Brasília, 2014.