ELIANE ALVES LEAL
SSEEDDUUOO EE RREEBBEELLDDIIAA EEMM DDOOMM JJUUAANN:: AA RREECCRRIIAAOO DDOO MMIITTOO PPOORR FFEERRNNAANNDDOO PPEEIIXXOOTTOO ((11997700)) PPAARRAA AA
CCEENNAA BBRRAASSIILLEEIIRRAA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA UBERLNDIA MG
2010
ELIANE ALVES LEAL
SSEEDDUUOO EE RREEBBEELLDDIIAA EEMM DDOOMM JJUUAANN:: AA RREECCRRIIAAOO DDOO MMIITTOO PPOORR FFEERRNNAANNDDOO PPEEIIXXOOTTOO ((11997700)) PPAARRAA AA
CCEENNAA BBRRAASSIILLEEIIRRAA
Dissertao apresentada ao Programa de Mestrado em Histria Social da Universidade Federal de Uberlndia, como requisito parcial para obteno do ttulo de mestre em Histria. rea de concentrao: Histria Social
Orientadora: Profa. Dra. Rosangela Patriota Ramos
UBERLNDIA MG 2010
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
L435s
Leal, Eliane Alves, 1983- Seduo e rebeldia em Dom Juan : a recriao do mito por Fernando Peixoto (1970) para a cena brasileira. / Eliane Alves Leal. - 2010. 211 f. : il. Orientadora: Rosangela Patriota Ramos. Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Pro- grama de Ps-Graduao em Histria. Inclui bibliografia. 1. Histria social - Teses. 2. Teatro e sociedade - Teses. 3. Molire, 1622-1673 - Dom Juan - Crtica e interpretao - Teses. 4. Peixoto, Fer- nando, 1937- Crtica e interpretao - Teses. I. Ramos, Rosangela Patri- ota. II. Universidade Federal de Uberlndia. Programa de Ps-Gradua- o em Histria. III. Ttulo. CDU: 930.2:316
Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogao e Classificao
BBAANNCCAA EEXXAAMMIINNAADDOORRAA
Prof. Dr. Rosangela Patriota Ramos Orientadora Universidade Federal de Uberlndia (UFU)
Prof. Dr. Robson Corra de Camargo Examinador Universidade Federal de Gois (UFG)
Prof. Dr. Alcides Freire Ramos Examinador Universidade Federal de Uberlndia (UFU)
Aos meus pais e minha
irm, pelo amor incondicional.
AGRADECIMENTOS
Com este trabalho acredito que um ciclo de minha vida se encerre. H vinte anos
meus pais guiaram meus primeiros passos rumo vida escolar. Nessas duas dcadas
inimaginvel a quantidade de pessoas que fizeram parte de minha vida. Dessa forma,
elencar alguns nomes selecionar aqueles que de uma ou outra forma deixaram marcas
mais profundas em meu corao. Sem dvida, vocs tambm fizeram parte de minha
histria e contriburam significativamente para eu ser a pessoa que sou hoje.
Valdeci e Glria sero sempre os primeiros a receberem minha gratido. Pais
amados que mantiveram uma luta diria para que os meus sonhos, extenso de seus
prprios sonhos, se tornassem reais. Vocs so uma ddiva recebida e apreciada com muito
carinho por mim. Aprendi a ser generosa, grata e compreender os limites das minhas aes
e o modo como elas atingem os outros. Agradeo minha irm, que este ano, com toda a
certeza, foi quem mais me trouxe lies de aceitao, amor e entendimento de o quanto o
ser humano mltiplo. Obrigada aos meus tios Vanda e Cludio pelo eterno incentivo,
pelas palavras de carinho e incentivo.
Agradeo ao Bruno, luz da minha vida. Namorado carinhoso, compreensivo,
companheiro e meu grande amor. Voc foi um presente inesperado, porm por muito
tempo aguardado por meu corao. Sou muito grata pela pacincia, pelo incentivo e,
principalmente, por seu amor.
Apenas dizer sou grata professora Rosangela Patriota Ramos uma brisa
frente a tudo o que ela me proporcionou nesses quase seis anos de trabalhos comuns. O
curso de Histria no era minha primeira opo de carreira. Caminhos tortuosos me
levaram a curs-lo e, em um ano e meio, estava decida a investir em outra coisa. Foi
exatamente ser apresentada ao Teatro a razo que me convenceu a persistir neste que se
tornou meu objetivo. Assim, agradeo de corao a pacincia em me ensinar sobre a arte
da prtica do historiador de ofcio. Alis, suas lies no se restringem ao plano intelectual,
a coragem e a dignidade com as quais enfrenta os piores problemas sero sempre fonte de
inspirao para mim.
Agradeo ao professor Alcides Freire Ramos pelas incontveis contribuies ao
longo de toda a minha pesquisa. Sem dvida, sua participao em minha banca de
monografia no ano de 2007 e na Qualificao foram fundamentais para a construo do
que hoje se consolida como dissertao. Antecipo, assim, meus sinceros agradecimentos s
contribuies que adviro na defesa.
Muito obrigada ao professor Robson Corra de Camargo por ter aceitado a
participao nessa banca. No imagina o quanto fiquei feliz em saber que uma testemunha
desse espetculo avaliar a minha percepo do mesmo. Nesse sentido, adianto meus
agradecimentos s suas colocaes e tenho certeza que serviro para enriquecer minha
formao intelectual.
Ao falar em formao, percebo que dezenas de professores fizeram parte de minha
histria e so marcas fortes no modo como concebo a prtica docente. Nesse rol de grandes
mestres da minha vida, comeo agradecendo professora Lacimaire, que em 1992 me
apresentou o mundo mgico da leitura, quando eu ainda contava somente nove anos.
Agradeo pela pacincia e pela genialidade em ser mais que uma professora para todos os
seus alunos. Em meu corao existir um lugar muito especial para a senhora e espero, um
dia, em outro plano, que eu a possa encontrar para abra-la.
No ensino fundamental, mdio e cursinho tambm existiram vrios professores
que me despertaram para as mais variadas reas do conhecimento. Ao Sestak, professor de
matemtica, agradeo por me ensinar a ter persistncia, nunca tive tanta dificuldade em
alcanar a mdia (rsrsrs), Rosamlia e tambm professora Hlia Terezinha, ambas de
portugus, agradeo especialmente por me ensinarem a escrever de uma forma correta e
objetiva. Agradeo muitssimo professora Ana Anglica de Biologia, no s por me
apresentar essa disciplina que se tornou uma grande paixo minha, mas por me dar
exemplos de generosidade para com os alunos. Espero que eu tenha um pouco de voc
quando estiver ministrando minhas aulas. Agradeo aos professores do cursinho que, sem
dvida, tornaram essa passagem para a faculdade muito divertida. Ao Andr, professor de
Histria, e ao Mrcio Andr, de Filosofia, por possurem o dom de ensinar e tornar tudo
interessante aos olhos de seus alunos.
Em meu primeiro ano de Universidade, ainda na UEG, conheci uma pessoa muito
especial chamada Douglas. Agradeo imensamente a ele pelo incentivo e pelas lies
pessoais e profissionais que me ensinou em to pouco tempo de convivncia. Se um dia eu
for um pouco to boa professora como voc, serei muito feliz. Agradeo aos professores
Evaldo e Alcione pela confiana e oportunidade. E, no menos importante, obrigada aos
amigos conquistados, Erenilda, Marizaura, Mrcio, Renata.
Na UFU vrios nomes contriburam para a minha formao intelectual e sem
dvida sero para sempre lembrados. Agradeo aos professores Wenceslau, Dilma,
Guilherme, Jacy, Pedro Caldas, Ktia Eliane, Hermetes, pela disposio em ensinar, pelos
desafios impostos e pelos conhecimentos construdos.
Sou grata professora Beatriz pela maestria em revisar este trabalho,
enriquecendo-o. Obrigada tambm Dalila pela excelente traduo dos textos franceses
para o portugus.
Meus amigos, minha vida. No poderia lanar esses agradecimentos e deix-los
de lado. Foram muitas as pessoas especiais que cruzaram meu caminho. Tenho todas
guardadas em meu corao. Em primeiro lugar agradeo aos meus dois irmos de alma,
Muriel e Raquel. Vocs so ddivas em minha vida, me ensinaram a confiar de olhos
fechados, sem medo de cair. Amo muito os dois, e mesmo que nossos caminhos se
distanciem, vocs sempre estaro em meus pensamentos e em minhas oraes.
Agradeo tambm amizade de Maria Emlia e Angela, duas pessoas
maravilhosas que formaram comigo e com a Raquel o quarteto fantstico de amizade,
companheirismo e sinceridade. Espero que estejamos bem velhinhas e fazendo nossas
festas anuais. Agradeo aos meninos, hoje homens feitos, que so meus amigos de
corao: Eduardo Santana, Eduardo Lau, Emiliano, Emilliano e berton; sou grata pela
alegria que transbordam. Agradeo minha amiga witch Fernanda. Mesmo nossos
caminhos tendo se desencontrado, voc uma doce lembrana que sempre estar em meu
corao.
No saberei jamais retribuir a generosidade do meu amigo Rodrigo. Agradeo
pelos conselhos, orientaes, puxes de orelha, incentivos e por sempre estar disposto a me
ajudar no que fosse preciso. Sem dvida, grande parte do que sou hoje devo a voc.
Agradeo muito a amizade e companheirismo do Henrique durante toda a
graduao. Sem dvida, voc tornou o fardo mais leve porque o dividiu comigo sempre
nos momentos mais difceis. Agradeo ao Marcos e Alexandre, meus irmos Warners,
pelas bagunas, gargalhadas e companheirismo sempre, dentro e fora da universidade.
Ao nehakianos, por terem sido meus companheiros em pesquisas, viagens,
festas e pela amizade sempre. Ludmila, Manuela, Dbora e Dolores, vocs foram as
minhas primeiras companheiras no Ncleo, tenho muito carinho por todas e serei sempre
grata por me socorrerem sempre que precisei. Vitor e Eneilton, pela amizade terna e pelo
companheirismo tambm lhes sou muito grata. Agradeo minha companheira de
mestrado Talitta, pela alegria que transborda sempre, por ser prestativa e generosa,
obrigada por ser simplesmente a Talitta Tatiane. Sou muito grata Maria Abadia, pelas
conversas, por ser essa pessoa confivel e delicada em todos os momentos.
Agradeo aos meus colegas to queridos, companheiros de estudos, de amigo
secreto, de farrinhas nos congressos: Fernanda, Christian, Catarina, Carol, Andr, Renan,
Leilane, Ndia, Viviane e Ariane. Agradeo em especial Liliane pela confiana em me
aceitar na primeira banca de monografia e por ter me apresentado Carlos Queiroz Telles.
Agradeo tambm amizade maluca e totalmente incomum das minhas amigas
Carol, Jacque, Simone e Ana. O mundo virtual me presenteou com trs pessoas
maravilhosas que ouvem os meus desabafos, do gargalhadas com meus micos e so
companheiras de fofocas e de nossos adorveis barracos que me distraram nos
momentos mais crticos. Conhec-las virtualmente foi um presente muito especial que o
ano de 2009 me reservou.
Serei eternamente grata a Fernando Peixoto por ter disponibilizado e confiado
suas memrias professora Rosangela, que me permitiu mergulhar nesse perodo que tanto
me atrai. Obrigada, Peixoto, por sua lucidez, inteligncia e perspiccia em construir um
espetculo que se tornou o meu favorito na imensa histria do teatro brasileiro.
Agradeo Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal do Nvel Superior
(Capes) pelo incentivo financeiro durante esses dois anos de pesquisa. No tenho dvida de
que sem tal auxilio no teria sido possvel toda essa dedicao pesquisa.
SSUUMMRRIIOO
Introduo.........................................................................................................................
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Captulo I: Fernando Peixoto (1970) e Molire (1665): possibilidades de interpretao do texto teatral e do tempo histrico, por meio da pea Dom Juan...................................
Fernando Peixoto e Molire: o texto teatral como possibilidade criativa.......................
Molire e a Escrita Cmica: consideraes sobre a comdia e sua funo..........................
A Construo Esttica do Texto Teatral: em cena um Dom Juan hipcrita, sedutor e rebelde.....................................................................................................................
A Vida, Paixo e Morte de um Rebelde: criao textual de Dom Juan para o Brasil de 1970..............................................................................................................................
27
30
39 53
71
Captulo II: A Cena Teatral em Dom Juan: interfaces da contracultura sob o olhar de Fernando Peixoto..........................................................................................................
Montagem Cnica de Dom Juan: oportunidade para exorcizar meus fantasmas pessoais...................................................................................................................
Entre o Racional e o Irracional: a materialidade cnica de Dom Juan.....................
Um Espetculo para dois protagonistas: Gianfrancesco Guarnieri versus Raul Cortez.....................................................................................................................
Imagens construdas: as fotografias de Dom Juan....................................................
Imagens construdas: as crticas teatrais sobre Dom Juan........................................
78
83
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119
123
127
Captulo III: O Mito Dom Juan sob o Vu da Tradio..................................................
A Construo do Mito Dom Juan: a seduo e suas mltiplas interpretaes.........
De Sedutor de Donzelas a mito social e poltico: a seduo enquanto smbolo rebelde.......................................................................................................................
152
160
172
Documentao...................................................................................................................
191
Consideraes Finais........................................................................................................
199
Bibliografia...................................................................................................................... 202
O amor um sentimento cmico.
Jacques Lacan
RREESSUUMMOO
O texto teatral Dom Juan de Molire, ao ser encenado no Brasil, em 1970, por
Fernando Peixoto, no Teatro Oficina em So Paulo, e recuperado pelo historiador de
ofcio, torna-se ponto iluminador do passado. Em um primeiro momento da pesquisa,
acreditvamos que analisar o Brasil desse perodo e pensar sobre os dilogos estabelecidos
entre Arte e Sociedade seria suficiente. Todavia, as mltiplas possibilidades que o tema
provocou ampliaram esses parcos limites estabelecidos.
Sob este prisma so objetivos deste trabalho: pensar a historicidade inerente
traduo realizada por Fernando Peixoto e suas motivaes intelectuais e estticas; refletir
sobre os elementos cnicos que tornaram o texto teatral escrito no sculo XVII inteligvel
ao Brasil do sculo XX; compreender a relao passado/presente e como essa
atualizao se torna possvel; estudar a cena e o dilogo entre Histria e Esttica;
apreender as possibilidades do texto teatral, que esto alm da imaginao do seu criador
(Molire) e do encenador brasileiro (Fernando Peixoto) e, finalmente, entender por que
esse personagem se torna mito e permanece longamente na histria.
A pesquisa se justifica e se legitima uma vez que traz para o debate Arte e
Histria uma problemtica a ser resolvida. O texto teatral Dom Juan recuperado em um
tempo histrico diferente do seu e, mesmo assim, consegue ser interessante para a
assistncia. Ao mesmo tempo em que poderamos responder que isso se deve atualizao
e insero de elementos que o tornam contemporneo, no podemos ignorar o fato de que a
obra de Molire permanece presente na encenao de 1970. Assim, a problemtica se fixa
no que tange historicidade de uma obra que no atemporal, mas que permanece na
continuidade histrica ao ponto de tornar-se mito.
Palavras-chave: Histria, Teatro, Mito, Dom Juan, Fernando Peixoto
AABBSSTTRRAACCTT
The text theatrical Dom Juan of Molire, when being staged in Brazil, in 1970, by
Fernando Peixoto, in the Officinal Theater in So Paulo, and recovered by the occupation
historian, he becomes point illuminator of the past. In a first moment of the research, we
believed that to analyze Brazil of that period and to think on the established dialogues
between Art and Society would be enough. Though, the multiple possibilities that the
theme provoked they enlarged those scanty established limits.
Under this prism they are objectives of this job: to think the historic Dade inherent
to the translation accomplished by Fernando Peixoto and your motivations intellectual and
esthetics; to contemplate on the scenic elements that turned the theatrical text written in the
century intelligible XVII to Brazil of the century XX; to understand the relationship
past/present and as this " updating " it becomes possible; to study the scene and the
dialogue between History and Aesthetics; to apprehend the possibilities of the theatrical
text, that are besides your creator's imagination (Molire) and of the Brazilian engender
(Fernando Peixoto) and, finally, to understand why this character becomes myth and stays
at length in the history.
The research is justified and it is legitimated once it brings for the debate Art and
History a problem to be solved. The text theatrical Dom Juan is recovered in a historical
time different from yours and, even so, it gets to be interesting for the attendance. At the
same time in that could answer that it is due to the updating and insert of elements that turn
it contemporary, we cannot ignore the fact that the work of Molire stays present in the
staging in 1970. Like this, the problem notices in what it plays to the historic Dade of a
work that is not temporal, but that stays in the historical continuity to the point of
becoming myth.
Key-words: History, Theater, Myth, Dom Juan, Fernando Peixoto
INTRODUO
Um espetculo, uma obra, no uma emisso unilateral de signos, no uma doao de
significados que se produzem a partir da cena na inteno da platia ou a partir do texto e
visando ao leitor mas sim um processo interativo, um sistema baseado no princpio da
retro-alimentao, em que o texto prope estruturas indeterminadas de significado e o
leitor preenche essas estruturas indeterminadas, esses vazios, com sua prpria enciclopdia vital, com sua experincia, com sua cultura, com suas expectativas. E assim se produz um movimento
que o que gera a obra de arte ou a experincia esttica
Gianni Ratto.
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esta mais uma, ltima porm principal, das suas sedues: a de seu pblico; a
mais real de suas conquistas.1 Renato Janine Ribeiro tem razo quando afirma que a
ltima, e talvez, mais importante forma de seduo exercida por Dom Juan sobre o seu
leitor. Esse leitor pode ser qualquer pessoa, inclusive um pesquisador do conhecimento
histrico. Em grande medida, essa seduo serve para justificar, ao menos em primeira
instncia, o fato de esta pesquisa se desenvolver ao longo de cinco anos, abarcando
Iniciao Cientfica (2004-2007), financiada pelo CNPq, primeira bolsa balco do projeto
integrado O Brasil da Resistncia Democrtica (1970-1981): o espao cnico,
intelectual e poltico de Fernando Peixoto e Mestrado (2008-2010), financiado pela
CAPES. Alm disso, houve diferentes desdobramentos ao longo desses anos: artigos,
participaes em congressos e oficinas. Esses financiamentos propiciaram dedicao
exclusiva pesquisa, o que, sem dvida, contribuiu sobremaneira para a qualidade deste
trabalho.
Em princpio, quando nos deparamos com o texto teatral Dom Juan traduzido,
recortado e adaptado por Fernando Peixoto e depoimentos do diretor acerca da encenao,
no tnhamos ideia da proporo deste trabalho. Com vistas a esmiuar as anlises e
compreender o mximo de nuanas possveis desse espetculo, as pesquisas foram
divididas em dois momentos que no podem ser desconectados: o projeto de IC, que
resultou na confeco da Monografia e o projeto de Mestrado, materializado na
Dissertao.
Dada a imensa quantidade de verses que pululam no universo literrio versando
sobre esse mito, foi preciso localizar a qual delas Fernando Peixoto fazia referncia como
obra inspiradora de sua criao. Assim, os trs anos dedicados pesquisa de iniciao
cientfica tiveram como fonte principal o texto teatral escrito por Molire em 1665, na
Frana. Dessa forma, a monografia ficou por conta de investigar os principais aspectos do
texto molieresco.
Todavia, Dom Juan se mostrou multifacetado. O que era para ser uma anlise
centrada no texto teatral envolveu, tambm, o universo histrico de Molire, bem como a
esttica e a funo da comdia para esse comediante. Sob o ttulo Dom Juan (1665,
1 RIBEIRO, Renato Janine. A Poltica de Don Juan. In:____. A Seduo e suas Mscaras: ensaios sobre
Don Juan. So Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 9.
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Molire): olhares sobre o riso na Frana Neoclssica,2 a monografia sustentou
discusses que priorizaram a complexidade da obra teatral em sua historicidade. Nesse
sentido, para compreendermos o texto teatral escrito em 1665 fizemos uso de vrios
documentos que ampliaram o horizonte de pesquisa: Jugements (que, por falta de uma
traduo exata para o portugus, pode ser explicado como crticas sobre a pea) e peas
anteriores e posteriores a essa, com o objetivo de pinar olhares e concepes do autor para
um conceito fundamental na sua obra, a comdia. A partir dessas reflexes pudemos
chegar a algumas concluses. Molire possui uma compreenso especfica do que constitui
a escrita cmica e de sua funo prtica na vida social.
A escrita da monografia foi fundamental para a construo do Projeto de
Mestrado, porque desvendamos, nos limites desse trabalho acadmico, o esprito de
Molire.3 Dessa forma, com a base da pesquisa realizada foi possvel ampliar as reflexes
para, enfim, estudar a encenao de 1970, realizada por Fernando Peixoto no Teatro
Oficina, em So Paulo. Mais uma vez as expectativas foram alargadas, a cena teatral
tornou-se o mote para diferentes problemticas, pois o espetculo rompe os limites do abrir
e fechar de cortinas. H que se levar em conta o processo pelo qual ele chega aos palcos e
os vestgios que deixa quando no mais encenado. Sob este prisma, Roger Chartier
destaca que
[...] todo gesto criador inscreve em suas formas e seus temas uma relao com as estruturas fundamentais que, em um momento e um lugar dados, modelam a distribuio do poder, a organizao da sociedade, a economia da personalidade. Pensado (e se pensando como um demiurgo), o artista, o filsofo ou o cientista inventa, no entanto, na imposio. Imposio em relao s regras (do patronato, do mecenato, do mercado, etc.). que definem sua condio. Imposio mais fundamental ainda em relao s determinaes ignoradas que habitam cada obra e que fazem com que ela seja concebvel, transmissvel, compreensvel.4
Nesta pesquisa possvel visualizar esse gesto criador, cercado por sua
historicidade, em trs momentos distintos e, irremediavelmente, conectados: a traduo de
2 LEAL, Eliane. Dom Juan (1665, Molire): olhares sobre o riso na Frana Neoclssica. Uberlndia,
2007. 93 f. (Monografia (Graduao) Universidade Federal de Uberlndia, Instituto de Histria). 3 A expresso esprito de Molire utilizada por Fernando Peixoto ao se referir sua inspirao advinda
da obra francesa. Esse esprito refere-se, basicamente, postura inquieta e rebelde do comediante diante de sua sociedade.
4 CHARTIER, Roger. A Histria entre narrativa e conhecimento. In: ____. Beira da Falsia: a Histria entre certezas e inquietude. Traduo de Patrcia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 2002, p. 93-94.
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Fernando Peixoto, as crticas escritas sobre o espetculo e a pesquisa acadmica realizada
pelo historiador de ofcio. Assim, em todos esses instantes a obra de arte se torna
concebvel, transmissvel, compreensvel. Fernando Peixoto l a obra de Molire a partir
de suas condies de possibilidades e a partir destas condies que torna o texto
inteligvel para seus contemporneos no palco paulista. Os crticos, ao falarem da
encenao, tambm esto localizados em um ponto estratgico de onde observam e pr-
concebem o espetculo. Essas duas primeiras instncias de interpretao sero
problematizadas ao longo dos captulos desta dissertao. E, finalmente, o pesquisador
que, munido de suas fontes, de suas escolhas, se acha no direito de invadir um tempo que
no o seu. O que constitui um gesto criador, uma vez que a histria compreendida
enquanto operao, enquanto prtica social, admitindo-se que
ela faz parte da realidade da qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada enquanto atividade humana, enquanto prtica. Nesta perspectiva, gostaria de mostrar que a operao histrica se refere combinao de um lugar social, de prticas cientficas e de uma escrita.
5
Dessa forma, a escrita da histria uma atividade humana que possui sua prpria
historicidade, cuja forma de olhar e compreender o passado peculiar e nica. Esse
passado no est cristalizado, ele exerce sua fora, seu chamado ao presente, fazendo com
que nos voltemos a ele novamente, acreditando ainda haver fissuras no desvendadas.
Outra particularidade faz com que o trabalho do historiador seja ainda mais particular: as
escolhas que efetua em meio ao emaranhado de possibilidades que o passado lhe apresenta.
Marc Bloch, no ltimo captulo de sua obra Apologia da Histria, ou o Ofcio de
Historiador, nos inspira a refletir sobre estas escolhas que obrigam a selecionar, recortar e
reorganizar o passado. Assim, a realidade nos apresenta uma quantidade quase infinita de
linhas de fora, todas convergindo para o mesmo fenmeno,6 e a partir de quais linhas de
fora se decide compreender o fenmeno sempre uma escolha. Ela se funda,
basicamente, na formao intelectual do pesquisador e, no podemos nos esquecer, das
paixes que o motivam e das sedues a que est exposto. Tanto uma quanto a outra esto
5 CERTEAU, Michel. A Escrita da Histria.Traduo de Maria de Lourdes Menezes. 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitria, 2002, p. 66. 6 BLOCH, Marc. Apologia da Histria, ou O Ofcio de Historiador. Prefcio de Jacques Le Goff.
Apresentao edio brasileira de Lilia Moritz Schwarcz. Traduo de Andr Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2001, p. 156.
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intrinsecamente ligadas ao presente da pesquisa. Sob este aspecto, Bloch tem razo ao
considerar que o passado constantemente escrito e reescrito, tendo como princpio as
questes que motivam o olhar do pesquisador.
A escolha de pesquisar o espetculo Dom Juan, dirigido por Fernando Peixoto,
nasce justamente de inquietaes que incomodam no presente. Essas inquietaes foram
provocadas por leituras iniciais dos depoimentos do diretor sobre a criao cnica,
disponibilizados, gentilmente, pela professora doutora Rosangela Patriota que os recebeu
de Fernando Peixoto, compostos por fotografias e crticas teatrais. Patriota tambm
realizou diversas entrevistas com Peixoto e com outros atores e cengrafos que
participaram das encenaes ao longo das dcadas de 1960 e 1970. Esse acervo compe as
fontes de pesquisa do projeto O Brasil da Resistncia Democrtica (1970-1981): o
espao cnico, intelectual e poltico de Fernando Peixoto, idealizado e colocado em
execuo pela professora Rosangela.7
Esses documentos conduziram, assim, os primeiros passos para alcanarmos os
grandes motes que hoje fazem parte desta dissertao e que orientam a construo dos trs
captulos. O primeiro desses motes o vnculo criado por Peixoto com a obra de Molire
de 1665. Ao evidenciar que sua encenao buscou recuperar o esprito de Molire, h
uma preocupao intensa em desvelar o que foi e como percebido esse esprito. Outro
aspecto fundamental a consolidao do mito Dom Juan e o modo como ele se molda ao
longo do tempo graas habilidade intelectual e criativa de diferentes escritores e
diretores. Por fim, a materializao esttica do personagem para o Brasil de 1970 constitui 7 fundamental destacar a importncia desse projeto para a historiografia brasileira. Alm do fato de ser indita dentro dos estudos historiogrficos, a pesquisa de Rosangela Patriota Ramos e as demais que da surgiram, dentre elas esta dissertao, constituem a bibliografia referncia no que tange trajetria intelectual e artstica de Fernando Peixoto dentro da cena teatral no Brasil. Esse projeto se desdobrou em vrios projetos, monografias, apresentaes de trabalhos em encontros cientficos e artigos. Sobre o assunto verificar estas dissertaes orientadas pela professora Rosangela, cujo bero terico est no projeto Brasil da Resistncia Democrtica (1970-1981): o espao cnico, intelectual e poltico de Fernando Peixoto: COSTA, Rodrigo de Freitas. Tempos de Resistncia Democrtica: os tambores de Bertolt Brecht ecoando na Cena Teatral Brasileira sob o olhar de Fernando Peixoto. Uberlndia, 2006. 226 f. (Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de Ps-Graduao em Histria). CARDOSO, Maria Abadia. Tempos sombrios, ecos de liberdade a palavra de Jean-Paul Sartre sob as imagens de Fernando Peixoto: no palco, Mortos sem sepultura (Brasil, 1977). Uberlndia, 2007. 274 f. (Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de Ps-Graduao em Histria). 13. FREITAS, Ludmila S. Momentos da dcada de 1970 na dramaturgia de Gianfrancesco Guarnieri: o caso Vladimir Herzog (1975) (re)significado em Ponto de Partida (1976). Uberlndia, 2007. 127 f. (Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de Ps Graduao em Histria). RODRIGUES, Victor Miranda Macedo. Fernando Peixoto como crtico teatral na imprensa alternativa: jornais Opinio (1973-1975) e Movimento (1975-1979). Uberlndia, 2008. 258 f. (Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de Ps-Graduao em Histria).
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o cerne da pesquisa, uma vez que por meio dela que todos os outros fios de fora se
interligam.
Tendo tal nvel de complexidade, esta pesquisa tem como suporte terico e
metodolgico a recepo em sua historicidade. Nesse sentido, as colocaes de Roger
Chartier no artigo O Mundo Como Representao, colaboram para essa discusso. O
intelectual francs insiste que no h texto fora do suporte que lhe permite ser lido (ou
ouvido) e que no h compreenso de um escrito, qualquer que seja, que no dependa das
formas pelas quais atinge o leitor.8 Portanto, o cerne desta dissertao a forma pela qual
o texto teatral Dom Juan atinge o leitor em diferentes instncias: enquanto pesquisador,
enquanto diretor e enquanto escritor. Essa recepo aglutina-se em dspares momentos, no
Brasil da dcada de 1970, na Frana do sculo XVII, nos inmeros lugares em que o mito
Dom Juan escolhido para falar e no tempo presente que interpreta, analisa, reflete e
escreve sobre o passado.
Por essa via, os intelectuais da Escola de Constana que tm como foco de
pesquisa a esttica do efeito e da recepo so os suportes bsicos para compreender o
leque de possibilidades aberto pelo texto teatral. Para tanto, recuperamos um excerto do
ensaio Que significa a recepo dos textos ficcionais, de Karlheinz Stierle, que comporta,
em grande medida, nossas problemticas.
Em Jauss, a recepo sempre o momento de um processo de recepo, que se inicia pelo horizonte de expectativa de um primeiro pblico e que, a partir da, prossegue no movimento de uma lgica hermenutica de pergunta e resposta, que relaciona a posio do receptor com os seguintes e assim resgata o potencial de significado da obra, na continuao do dilogo com ela. O significado da obra literria apreensvel no pela anlise da obra, nem pela relao da obra com a realidade, mas to s pela anlise do processo de recepo, em que a obra se expe, por assim dizer, na multiplicidade de seus aspectos.9
Stierle, ao recuperar as concepes de Jauss sobre a esttica do efeito e da
recepo, nos ensina que h dois movimentos na obra de arte que necessitam ser
compreendidos no ato da pesquisa. O primeiro diz respeito ao efeito que ela exerce sobre
8 CHARTIER, Roger. O Mundo como Representao. Estudos Avanados. Vol. 5, n. 11. So Paulo,
Jan/Apr. 1991. Disponvel em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141991000100010&script=sci_arttext. Acesso em: 10 de maio de 2008.
9 STIERLE, Karlheinz. Que significa a recepo dos textos ficcionais. In: JAUSS, Hans Robert. et al. A Literatura e o Leitor: textos de esttica da recepo. Seleo, traduo e introduo de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 134.
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seu receptor. Isto , ela possui um horizonte de expectativa, possibilidades que podem
ser e so apropriadas por diferentes pblicos. O horizonte impede que a obra se pulverize e
deixe de existir enquanto referencial. Esse movimento desencadeia o segundo, que a
recepo. A recepo o momento em que as brechas da obra de arte so preenchidas pelo
leitor/espectador. Esse preenchimento se apropria das concepes, do horizonte de
expectativa dos pblicos anteriores, de forma consciente ou no. Para Stierle, esse o
significado da obra, a aglutinao do passado com as relaes estabelecidas no presente
entre a obra e a realidade social.
Sob esse prisma, Jos Sanchis Sinisterra nos ensina, a partir de outro intelectual
da recepo, Iser, que h uma distino evidente entre o texto e a obra. Texto o que o
autor produz e obra, criao do leitor. Dessa forma, o autor produz um texto; e o leitor, no
ato da leitura, converte esse texto em obra de arte, j que no ato da leitura [...] que se
produz realmente a natureza esttica.10 A separao que Sinisterra cria entre texto e obra
de arte interessante porque localiza na recepo a natureza esttica, ou seja, a maneira
pela qual o texto preenchido por seu receptor e ganha forma e sentido. Isto quer dizer
que, a cada recepo, novos sentidos so investidos ao texto e so criadas mltiplas obras
de arte. Inclusive, o que se observa que o mesmo texto, encenado pelo mesmo diretor em
uma mesma poca ganha conotaes diferentes a cada encenao e, se acaso h alteraes
de elenco, essa multiplicidade fica ainda mais evidente.
Tomando como pressuposto essas colocaes, foi necessrio investigar, com
acuidade, as relaes estabelecidas entre o texto molieresco e a traduo efetuada pelo
diretor brasileiro. O que observamos uma mescla de continuidades e descontinuidades
em relao estrutura de sentidos que move esses dois textos teatrais. Ao mesmo tempo, a
historicidade, inerente ao tempo de Peixoto, o envolve e influencia o seu gesto criador no
ato de compreender a pea de Molire e transp-la para o palco. Por isso, em um primeiro
momento, h o esforo em investigar o olhar do diretor para seu passado, a maneira como
entende a pea e o comediante francs. Em seguida, recuperamos o prprio Molire e, em
um movimento prximo ao realizado na Monografia, seus conceitos foram restaurados e o
texto Dom Juan, no sculo XVII, analisado. Feito isso, era o momento de entrelaar
passado e presente, e aproximar, por meio do trabalho intelectual, os dois homens de
10 SINISTERRA, Jos Sanchis. Dramaturgia da Recepo. Traduo de Aline Casagrande. Folhetim, n. 13,
p. 73, abr. Jun. 2002.
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teatro. Sobre essas questes que foi erigido o primeiro captulo desta dissertao, que
leva o ttulo de Fernando Peixoto (1970) e Molire (1665): possibilidades do texto
teatral e do tempo histrico, por meio da Pea Dom Juan.
Algumas linhas sobre Peixoto so necessrias. Ator, diretor, escritor e tradutor,
esse homem natural de Porto Alegre, Rio Grande do Sul tem uma carreira extremamente
mltipla, plural e, sobretudo, de reflexo sobre a realidade brasileira. Os primeiros passos
no teatro foram dados entre os dezesseis e dezessete anos, quando ainda seu interesse
estava voltado para o cinema. O curso de teatro dirigido Ruggero Jacobbi marcou
profundamente as suas perspectivas em relao ao fazer teatral. Dois anos aps esse curso,
Peixoto entrou para o Teatro de Equipe, cooperativa nos moldes do Teatro de Arena, com
exceo do palco, que no tinha esse formato.
Em 1962, Peixoto recebeu o convite para participar do Teatro Oficina. Encerrou
suas atividades em um Jornal de Porto Alegre e foi para So Paulo em 1963 integrar o
Grupo Oficina. Sua primeira participao foi como ator na pea Quatro num Quarto de
Valentin Katiev. No espetculo seguinte, Pequenos Burgueses, trabalhou como assistente
de direo. Durante sua estadia, manteve um dilogo interessante com o Teatro de Arena,
especialmente por meio de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal. Um exemplo desse
intercambio a viagem que realizou pelo Peru (cidade de Lima); Mxico (Cidade do
Mxico, Morelia, Puebla, San Luis de Potosi, Guadalajara, Guanajuato, Leon, Monterey);
nos Estados Unidos da Amrica (Berkeley, San Francisco, Lawrence, Kent, New York).11
Em 1970, durante as encenaes de Dom Juan, Peixoto saiu do Teatro Oficina e
iniciou sua atividade teatral como diretor. nesse perodo que dirigiu peas como
Tambores na Noite de Bertolt Brecht, Frei Caneca e A Semana, Um Grito Parado no
Ar e Ponto de Partida de Gianfrancesco Guarnieri e Mortos sem Sepultura de Jean Paul
Sartre. Desde a dcada de 1980 Fernando Peixoto se retirou da cena teatral brasileira. Cada
um desses espetculos apresenta dilogos com formas estticas variadas e reflete sobre as
questes sociais, culturais e econmicas brasileiras.12
11 Relatrio parcial do Projeto O Brasil da Resistncia Democrtica (1970-1981): o espao cnico,
intelectual e poltico de Fernando Peixoto realizado pela professora doutora Rosangela Patriota Ramos. p. 29.
12 fundamental ressaltar a importncia da figura de Fernando Peixoto para a aquisio dos documentos referentes sua trajetria intelectual e artstica. O diretor teve o cuidado de preservar suas memrias por meio de fotografias, maquetes, crticas teatrais. Peixoto abriu esses documentos e os cedeu gentilmente professora Rosangela Patriota Ramos, que por sua vez os disponibilizou no acervo do Ncleo de Estudos
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Em Dom Juan a personalidade multifacetada de Peixoto d mostras de sua
existncia. Todavia, a sua criatividade e inventividade demonstradas com a reelaborao
do texto de Molire tornam-se translcidas durante a encenao do espetculo. Dessa
maneira, a versatilidade em se apropriar de temas e assuntos em voga naquele instante, sem
falsos pudores, torna-se evidente no dilogo estabelecido entre a realidade histrica
brasileira, a sua formao intelectual e o fascnio exercido pela contracultura norte-
americana. Portanto,
as suas iniciativas no podem ser compartimentalizadas em um nico nvel de expectativas. Se a bandeira da resistncia democrtica estava em seu horizonte poltico, essa, por sua vez, no poderia estar localizada somente no retorno ao Estado de Direito, mas tambm no questionamento de relaes excludentes e autoritrias forjadas no cotidiano das pessoas e das cidades.13
fato que o espetculo Dom Juan supera os limites de questionamento Ditadura
Militar e retorno ao Estado de Direito. Evidentemente que isso parece em um ou outro
momento. Todavia, a cena oscila entre o racional e o irracional e representa o modo como
Peixoto se coloca frente a essas questes que implodem a cultura ocidentalizada, suas
instituies, seus dogmas e seus pilares de sustentao. Com isso a materialidade cnica e
sua problemtica so erigidas com fontes documentais privilegiadas, o que no impede que
outros olhares diferentes do do diretor sejam elencados. Nesse sentido, tanto as fotografias
quanto as crticas teatrais so pensadas como focos narrativos que interpretam e organizam
o olhar sobre esse passado deixado posteridade. Assim, cada fonte desvela o espetculo
por um prisma e juntas auxiliam a compor o mosaico do passado. E fragmentos desse
mosaico so delineados em A Cena Teatral em Dom Juan: as interfaces da
contracultura sob o olhar de Fernando Peixoto, Captulo II desta dissertao.14
em Histria Social da Arte e da Cultura. Essa disponibilidade da documentao, sem dvida, propiciou uma maior consistncia pesquisa.
13 PATRIOTA, Rosangela; RAMOS, Alcides Freire. Fernando Peixoto: um artista engajado na luta contra a ditadura militar (1964-1985). Revista Fnix Revista de Histria e de Estudos Culturais, v. 3, ano 3, n. 4. p. 6, Out-Nov-Dez 2006. Disponvel em >. Acesso em 06 out 2008.
14 Dada a multiplicidade de fontes de que esse captulo fez uso, utilizamos diferentes obras que priorizam o estudo da fotografia e da crtica teatral. Em relao primeira gama de documentos, Boris Kossoy, em Fotografia e Histria (Ver: KOSSOY, Boris. Fotografia & Histria. So Paulo: Ateli Editorial, 2001.) e, especialmente, Arlindo Machado, A Iluso Especular introduo fotografia (Cf.: MACHADO, Arlindo. A Iluso Especular introduo fotografia. So Paulo: Brasiliense, 1984.) foram bases metodolgicas para um estudo coerente e que respeitasse as particularidades das imagens.
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Mais uma vez vlido retornar ao que Marc Bloch diz sobre as escolhas
realizadas pelo historiador de ofcio que d historicidade sua pesquisa. Nesses primeiros
captulos selecionamos e focamos dois textos teatrais que levam o mesmo ttulo, mas que
possuem interpretaes e problemticas ora prximas, ora distantes. Ao mesmo tempo
fechamos os olhos a Dom Juan enquanto processo criativo, independente de seu criador.
Contudo, se o historiador quem seleciona e reorganiza o passado de acordo com suas
escolhas, tambm o passado lhe assopra apelos e lhe impe reflexes. Em momentos
incontveis desta pesquisa nos deparamos com o conceito mito atrelado figura de Dom
Juan. A partir disso que nasceu a estrutura bsica do Captulo III, O Mito Dom Juan sob
o Vu da Tradio.
Entretanto, compreender somente o que era o mito e como ele se manifestava ao
longo dos anos em algumas verses porque obviamente pesquisar todas seria impossvel
no suficiente para nos encaminhar em discusses que envolvem, de um lado, a
construo do mito e, de outro, a Tradio. Dessa forma, foi preciso enveredar pelo
conceito de tradio e entender como uma obra de arte permanece na continuidade
histrica de modo no universal ou atemporal. O mito, portanto, se torna um representante
dessa tradio, pois congrega elementos do passado, levando-os consigo em suas novas
verses. E, assim, tanto a tradio quanto o mito s permanecem porque so interpretaes
do passado, interpretao daquilo que foi criado por outros autores em outro momento
histrico. Portanto, a recepo do leitor/espectador que conduz e remodela a tradio e o
mito para que eles permaneam. Da advm uma postura indita para Dom Juan: a sua
transformao em mito social e poltico, por meio da recepo realizada por Fernando
Peixoto.
A esttica da recepo, com j sugerido, constitui a base metodolgica desse
trabalho intelectual. Nomes como Hans Robert Jauss, Karlheinz Stierle e Wolfgang Iser15
so imprescindveis para erigir um olhar sobre a obra de arte que leva em conta o efeito
exercido por ela e a maneira como recebida. Isso significa que a recepo de qualquer
obra de arte no acontece de modo passivo. Ao mesmo tempo em que o receptor tem uma
maneira particular de ler e perceber a obra, tambm ela lhe impinge sentidos, transpostos
por aqueles que a criaram e/ou a adaptaram antes daquele instante.
15 JAUSS, Hans Robert. et al. A Literatura e o Leitor. Coordenao e traduo de Luiz Costa Lima. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979.
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Por isso mesmo, os artigos que compem a obra de Renato Janine Ribeiro, A
Seduo e suas Mscaras: ensaios sobre Don Juan,16 constituem bibliografia
imprescindvel para o desenvolvimento da pesquisa, uma vez que enveredam pelo mesmo
caminho da esttica da recepo. Eles possuem uma matriz temtica: compreender o tema
seduo dentro das vrias verses do mito Dom Juan. Todavia, o artigo que mais chama a
ateno o de Renato Mezan, Mille e quattro, mille e cinque, mille e sei,17 por trabalhar
o conceito seduo em seus vrios sentidos, inclusive enquanto rebeldia. Ainda sobre o
mito, a obra de Ian Watt Mitos do Individualismo Moderno18 tambm se mostrou de
grande valia. Watt observa aspectos desse mito em consonncia com o mundo moderno e
defende que suas questes nascem com o perodo moderno.
Destarte, no pudemos ignorar que, para alm da especificidade de Dom Juan
enquanto mito, ele surge, plasticamente, em forma de pea teatral. Dessa forma, na rea de
Histria e Teatro, a pesquisa desenvolvida pela historiadora Rosangela Patriota Ramos
desponta como referncia na historiografia brasileira, por meio dos livros Vianinha: um
dramaturgo no corao de seu tempo19 e A Crtica a um Teatro Crtico.20 Essas obras
inserem discusses fundamentais no que tange relao Histria e Teatro, Arte e
Sociedade e Histria e Esttica. Alis, A Crtica tambm apresenta uma discusso acerca
da crtica teatral e da forma como ela escreve a histria do teatro brasileiro.
Desse repertrio terico-metodolgico fazem parte, direta e indiretamente,
trabalhos desenvolvidos pelos integrantes do Ncleo de Estudos em Histria Social da Arte
e da Cultura (NEHAC), do Instituto de Histria da Universidade Federal de Uberlndia.
Todos eles privilegiam o estudo da arte em constante dilogo com sua historicidade,
buscando recompor o passado de maneira no hierrquica ou cristalizada. Dentre as vrias
dissertaes destacamos Teatro Oficina e a Encenao de O Rei da Vela (1967): uma
representao do Brasil da dcada de 1960 luz da antropofagia de Ktia Eliane
16 RIBEIRO, Renato Janine. A Seduo e suas Mscaras: ensaios sobre Don Juan. So Paulo: Cia das
Letras, 1988. 17 MEZAN, Renato. Mille e quattro, mille e cinque, mille e sei. In: RIBEIRO. Op. Cit., p. 89.
Esse mesmo artigo republicado na obra A Sombra de Don Juan e outros Ensaios. Ver: Id. A Sombra de Don Juan: a seduo como mentira e como iniciao. In: ____. A Sombra de Don Juan e outros ensaios. 2 ed. So Paulo: Casa do Psiclogo, 2005, p. 15-56.
18 WATT, Ian. Mitos do Individualismo Moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson Crusoe. Traduo de Mario Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 131.
19 PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no corao de seu tempo. So Paulo: Hucitec, 1999. 20 Id. A Crtica de um Teatro Crtico. So Paulo: Perspectiva, 2007.
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Barbosa21 e A Encenao de Galileu Galilei no ano de 1968: dilogos do Teatro
Oficina de So Paulo com a Sociedade Brasileira de Ndia Cristina Ribeiro.22 Ambas
tem como objetivo refletir sobre duas encenaes que ocorreram no Teatro Oficina e, em
verdade, so apropriaes de textos teatrais produzidos em outro momento histrico. Nesse
sentido, compreender a adaptao cnica, bem como a estrutura de sentidos com vistas a
torn-las coerentes ao Brasil de fins da dcada de 1960 foi meta das duas pesquisadoras.
Outros dois trabalhos que colaboraram de maneira significativa para esta
pesquisa, pois analisam tambm encenaes de Fernando Peixoto, so as dissertaes de
Rodrigo de Freitas Costa e Maria Abadia Cardoso. O primeiro, sob o ttulo Tempos de
Resistncia Democrtica: os tambores de Bertolt Brecht ecoando na Cena Teatral
Brasileira sob o olhar de Fernando Peixoto,23 se prope a refletir sobre a reapropriao
do texto teatral Tambores na Noite, de Bertolt Brecht (1919) para o cenrio brasileiro de
1972. Freitas se debrua primeiro sobre o tempo histrico no qual a obra de Brecht foi
produzida. A partir da ele recupera a encenao brasileira pensando as concepes
estticas de Brecht luz do olhar de Peixoto, uma vez que este se utiliza amplamente de
vrios conceitos do dramaturgo alemo, inclusive no que se refere forma como entende
teatro.
A pesquisa de Freitas fonte inspiradora para estes estudos, materializados em
Dissertao, desde o momento da confeco do Projeto de Mestrado e, talvez,
indiretamente, na escrita da monografia. O modo como Freitas recupera a histria de
maneira no linear, como um processo no qual o passado lana lampejos sobre o presente e
atrai o pesquisador, fundamental porque concebe o ofcio do historiador como uma
prtica social que tem sua especificidade dada pelo momento presente, todavia sofre
influncias do passado que objeto da pesquisa. Isto , a tarefa do pesquisador no
unilateral ou passiva. Alm disso, o modo como entende a ressignificao do texto no
21 BARBOSA, Ktia Eliane. Teatro Oficina e a Encenao de O Rei da Vela (1967): uma representao
do Brasil da dcada de 1960 luz da antropofagia. Uberlndia, 2004. 145 f. (Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de Ps-Graduao em Histria).
22 RIBEIRO, Ndia Cristina. A Encenao de Galileu Galilei no ano de 1968: dilogos do Teatro Oficina de So Paulo com a Sociedade Brasileira. 157 f. (Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de Ps-Graduao em Histria).
23 COSTA, Rodrigo de Freitas. Tempos de Resistncia Democrtica: os tambores de Bertolt Brecht ecoando na Cena Teatral Brasileira sob o olhar de Fernando Peixoto. Uberlndia, 2006. 226 f. (Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de Ps-Graduao em Histria).
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25
Brasil privilegia um olhar histrico para as duas encenaes, respeitando as suas condies
de possibilidade.
Tempos sombrios, ecos de liberdade a palavra de Jean-Paul Sartre sob as
imagens de Fernando Peixoto: no palco, Mortos sem sepultura (Brasil, 1977) de Maria
Abadia Cardoso24 tambm possui parcela importante de influncia sobre a escrita deste
trabalho. Essa dissertao caminha, terico-metodologicamente, prxima das propostas
pensadas na pesquisa de Rodrigo de Freitas Costa. No entanto h uma particularidade no
que concerne a um esforo em conceber o passado e a tradio como interpretaes, bem
como s anlises sobre a crtica teatral. Cardoso, da mesma forma que Costa, privilegia os
dilogos estabelecidos entre dramaturgo e diretor, e a relao entre texto e cena.25
Alm dessas dissertaes, vale destacar as inmeras reunies acadmicas que
discutiram com acuidade e empenho autores como Michel de Certeau26 e Carlos Alberto
Vesentini.27 Eles se tornaram motes para este trabalho e, mesmo que no apaream
diretamente citados, conduzem o modo como compreendemos e escrevemos a Histria. A
Escrita da Histria e A Teia do Fato so matrizes metodolgicas para esta dissertao.
Ambas destacam e orientam na funo do historiador enquanto homem de seu tempo,
capaz de remodelar o passado e recontar a histria por meio de sua escrita. No entanto, o
24 CARDOSO, Maria Abadia. Tempos sombrios, ecos de liberdade a palavra de Jean-Paul Sartre sob
as imagens de Fernando Peixoto: no palco, Mortos sem sepultura (Brasil, 1977). Uberlndia, 2007. 274 f. (Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de Ps-Graduao em Histria). 13.
25 Outros trabalhos to importantes quanto esses tambm merecem destaque, porm no exerceram grande influncia na escrita desta dissertao. So eles: ARAJO, Sandra Rodart. Corpo a Corpo (1970) de Oduvaldo Vianna Filho: do texto dramtico encenao do Grupo Tapa de So Paulo (1995). 2006. 175 f. (Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de Ps-Graduao em Histria). CARVALHO, Jacques Elias de. Chico Buarque e Jos Celso: embates polticos e estticos na dcada de 1960 por meio do espetculo teatral Roda Viva (1968). 2006. 177 f. (Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de Ps-Graduao em Histria). FREITAS, Ludmila S. Momentos da dcada de 1970 na dramaturgia de Gianfrancesco Guarnieri: o caso Vladimir Herzog (1975) (re)significado em Ponto de Partida (1976). Uberlndia, 2007. 127 f. (Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de Ps-Graduao em Histria). LEO, Thas. Vianinha no centro popular de cultura (CPC da UNE): nacionalismo e militncia poltica em Brasil Verso Brasileira (1962). 2005. 154f. (Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de Ps-Graduao em Histria). MARTINS, Christian Alves. Dilogos entre passado e presente: Calabar O Elogio da Traio (1973) de Chico Buarque e Ruy Guerra. 2007. 201f. (Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de Ps-Graduao em Histria).
26 CERTEAU, Michel. A Escrita da Histria. 2 ed. Traduo de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2002.
27 VESENTINI, Carlos A. A Teia do Fato. So Paulo: Hucitec, 1997.
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26
cerne dessas duas pesquisas compreender o processo histrico como algo em constante
construo, seja pelas mos do pesquisador, seja pela memria histrica.
Assim, ao estudar as relaes entre passado e presente por meio do texto teatral,
tomamos como fonte as palavras de Regina Zilberman
[...] o novo uma qualidade mvel, com sentido esttico e tambm histrico, quando provoca o resgate de perodos passados. Igualmente a noo de histria afetada, porque deixa de ser vista como progresso e evoluo, segundo a tica linear e teleolgica herdada dos positivistas. Pelo contrrio, ela se faz de avanos e recuos, reavaliaes e retomadas de outras pocas, obrigando a histria da literatura a manter-se atenta e a repensar sua metodologia, que no pode mais limitar-se ao alinhamento unidirecional e unidimensional dos fatos artsticos. 28
Nesse sentido, a obra de arte, no caso o texto teatral Dom Juan, constitui um
ponto de luz para que possamos implodir a continuidade histrica e enxergar, por meio de
frestas, a criao da Histria.
28 ZILBERMAN, Regina. Esttica da Recepo e Histria da Literatura. So Paulo: tica, 1989, p. 38.
CCAAPPTTUULLOO II
FFEERRNNAANNDDOO PPEEIIXXOOTTOO ((11997700)) EE MMOOLLIIRREE ((11666655)):: PPOOSSSSIIBBIILLIIDDAADDEESS DDEE IINNTTEERRPPRREETTAAOO DDOO TTEEXXTTOO
TTEEAATTRRAALL EE DDOO TTEEMMPPOO HHIISSTTRRIICCOO,, PPOORR MMEEIIOO DDAA PPEEAA DDOOMM JJUUAANN
O TEATRO COMO UMA RVORE MILENAR que nunca morre. Vida de mil
estaes, suas folhas e frutos renovam-se constantemente e quando caem viram adubo
revitalizante: o que nasce novamente, embora pertencendo mesma raiz, reciclado na
textura, nas cores, no perfume.
Gianni Ratto.
FFEERRNNAANNDDOO PPEEIIXXOOTTOO ((11997700)) EE MMOOLLIIRREE ((11666655)):: PPOOSSSSIIBBIILLIIDDAADDEESS DDEE IINNTTEERRPPRREETTAAOO DDOO TTEEXXTTOO TTEEAATTRRAALL EE DDOO TTEEMMPPOO HHIISSTTRRIICCOO,, PPOORR MMEEIIOO DDAA PPEEAA DDOOMM JJUUAANN
28
O historiador francs Michel de Certeau, na obra A Escrita da Histria,29 amplia
as noes terico-metodolgicas do ofcio de historiador. Nesse sentido, a construo da
escrita historiogrfica estabelece uma conexo direta com o seu tempo e o seu lugar. De tal
modo, o cerne do trabalho de Certeau o lugar social ocupado pelo pesquisador. Ao
passado cabe ser constantemente construdo e reconstrudo pelo presente, a partir de novas
questes quele lanadas. Por este vis, o intelectual compreende que a escrita e a pesquisa
so prticas sociais e, portanto, histricas.
Para alm do lugar social ocupado pela escrita historiogrfica, Certeau inspira a
composio de motes fundamentais para as anlises em histria, envolvendo o objeto de
pesquisa. Dessa maneira, ao lanar questes sobre o passado imprescindvel compreender
que tambm os agentes sociais deste passado ocupam um lugar social. Portanto, eles esto
articulados com um lugar de produo scio-econmico, poltico e cultural,30 cujas
mediaes tm que ser levadas em considerao no ato da pesquisa e na posterior escrita,
ou seja, fundamental observar a historicidade do objeto pesquisado. Ao considerar essas
articulaes torna-se compreensvel, alm da percepo que o ator social tem de sua
contemporaneidade, a existncia de outro olhar que lanado para o seu prprio passado.
Isso significa que tambm o passado pensando, reconstrudo e representado luz das
questes presentes dos sujeitos sociais investigados.
Destarte, este captulo tem o escopo de compreender a historicidade inerente
traduo e roteirizao do texto teatral Dom Juan pelas mos do diretor Fernando Peixoto,
em 1970. Peixoto um homem de teatro, cuja virtude incide na capacidade mpar de
pensar sua prpria trajetria intelectual e artstica. Para tanto, no se furta a deixar registros
sobre suas concepes, planos e interesses em cada encenao.31 Ao mesmo tempo, faz
uma reavaliao desses espetculos, compreendendo seus limites e sucessos. A conscincia
que demonstra nesse ato de reflexo crtica no se restringe ps-encenao. H todo um
29 CERTEAU, Michel. A Escrita da Histria. 2 ed. Traduo de Maria de Lourdes Menezes. Rio de
Janeiro: Forense Universitria, 2002. 30 Ibid. p. 66. 31 Podemos elencar as seguintes obras escritas por Fernando Peixoto que versam sobre as peas por ele
encenadas: Dyonisos. Rio de Janeiro: MEC/SEC/SNT, n. 26, jan. 1982. Especial Teatro Oficina PEIXOTO, Fernando. Teatro em Pedaos. 2 ed., So Paulo: Hucitec, 1985 (1 ed., 1979) Id. Teatro em Questo. So Paulo: Hucitec, 1989. Id. Teatro em movimento. 3 ed., So Paulo: Hucitec, 1989. Id. Teatro em Aberto. So Paulo: Hucitec, 2002.
FFEERRNNAANNDDOO PPEEIIXXOOTTOO ((11997700)) EE MMOOLLIIRREE ((11666655)):: PPOOSSSSIIBBIILLIIDDAADDEESS DDEE IINNTTEERRPPRREETTAAOO DDOO TTEEXXTTOO TTEEAATTRRAALL EE DDOO TTEEMMPPOO HHIISSTTRRIICCOO,, PPOORR MMEEIIOO DDAA PPEEAA DDOOMM JJUUAANN
29
trabalho de escolha e preparao do texto teatral para a futura montagem cnica: Eu
procuro pensar antecipadamente os meus espetculos. Desde a preparao dos ensaios e da
produo at o instante da estria e da reao favorvel ou desfavorvel, superficial ou
complexa, do pblico.32
Peixoto mantm uma viso autntica e crtica, tanto em relao ao seu prprio
trabalho, quanto sobre a realidade que o cerca, uma vez que a reao do pblico est entre
suas preocupaes. Dessa maneira, o dilogo entre palco e plateia carece ser profcuo e,
para tanto, o encenador acredita que o espetculo precisa ser feito no sentido da Histria.
Ou ser destrudo por ela.33 Entrevemos, nessa frase, uma concepo especfica que o
diretor possui do conceito de Histria, bem como da necessidade de um dilogo entre esta
e a obra de arte. Compreendemos que, para ele, a Histria linear e nela se encaixam os
eventos, que possuem, portanto, um lugar. Nesse sentido, Peixoto percebe o teatro
enquanto
atividade social concreta, na medida em que o comportamento dos homens, objeto de estudo, com suas alternativas e responsabilidades, o comportamento histrico de determinada classe na sociedade, resultado da contradio entre os meios de produo e as relaes de produo. O teatro deve buscar a revelao desta contradio atravs dos personagens e dos conflitos.34
Fica evidente a concepo de uma histria marxista, linear e teleolgica, em que
as prticas sociais so delineadas pelas contradies que emergem entre os meios de
produo e suas relaes sociais. O espetculo teatral cumpre uma funo social de tornar
visveis essas contradies. Assim, o palco no se transmuta em um receptculo de
verdades, mas em fonte de questionamentos ao espectador, uma vez que, para Fernando
Peixoto, o pblico participa da cena na medida em que esta o provoque. Essa provocao,
no entanto, s tem existncia concreta quando a pea encenada mantm dilogo estreito
com a realidade que a rodeia, ou seja, quando est no sentido da Histria.
Percebemos assim o quo importante revestir as concepes de Peixoto de
historicidade, tanto no momento de anlise de suas encenaes quanto no instante em que
32 PEIXOTO, Fernando. Vinte e uma Notas (Esparsas & Incompletas). In:____. Teatro em Pedaos. So
Paulo: Hucitec, 1989, p. 215. 33 Ibid. p. 216. 34 Ibid.
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expe sua postura crtica em relao a esses espetculos. Pois, se vimos que, para ele,
fundamental que a pea dialogue com o sentido da Histria, as mediaes estabelecidas
entre o diretor e o seu lugar social so imprescindveis para compreender o olhar que lana
para o seu prprio tempo, bem como para o tempo passado em relao ao seu.
Sob este vis nasceu a motivao para a escritura deste captulo. O espetculo
Dom Juan concebido em um momento especfico da carreira intelectual e artstica de
Fernando Peixoto. Tal como ele prprio diz, a compreenso estava historicamente
situada.35 Sendo assim, nessa historicidade, inerente pea, que esta pesquisa est
envolvida, buscando recompor os fragmentos que compem o mosaico do passado.
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Em julho de 1970, entrou em cartaz, nos palcos do Teatro Oficina, o espetculo
Dom Juan, ltima direo de Fernando Peixoto nesse grupo teatral. Para o diretor, a
encenao foi a oportunidade de exorcisar [sic] meus fantasmas pessoais, numa
descompromissada linguagem cnica.36 Diante de tais palavras, apreendemos que a pea
foi uma resposta s solicitaes do tempo criativo de Peixoto, ou seja, serviu para
responder aos seus anseios pessoais e profissionais. No obstante, indica o olhar que o
diretor lana sobre a sua realidade, a maneira como a l e a compreende. Isso significa que
ele parte de um lugar social, motivado por questionamentos e apreenses, cuja
historicidade permanece intrnseca s suas reflexes sobre a encenao e sobre a
montagem.
35 PEIXOTO, Fernando. Molire e sua Luta contra os Tartufos. In: ____. Teatro em Pedaos. So Paulo:
Hucitec, 1989, p. 129. Fernando Peixoto dirigiu inmeros outros espetculos, dentre eles: Matar de Paulo Hecker Filho, Pedro Mico de Antnio Callado, Poder Negro de Le Roy Jones, Frei Caneca de Carlos Queiroz Telles, Tambores na Noite de Bertolt Brecht, Frank V de Drrenmatt, Ponto de Partida e Um Grito parado no Ar de Gianfrancesco Guarnieri e Mortos Sem Sepultura de Jean Paul Sartre. Todos esses espetculos, Peixoto tem o cuidado de situ-los em um perodo especfico de sua trajetria intelectual e artstica. Alis, o diretor os organiza temporal e espacialmente em um quadro de influncias sociais e princpios tericos que influem na concepo cnica dessas peas.
36 Ibid. p. 134.
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Nesse sentido, antes de tecer quaisquer consideraes acerca da construo
cnica, imprescindvel ampliar o campo de anlise e investigar as respostas para algumas
questes. Em um primeiro momento, ter a clara a noo de que Fernando Peixoto parte de
um roteiro para a criao da cena. Esse roteiro elaborado a partir de referncias que o
diretor mobiliza para montar a sua concepo da obra. Quais so elas? O que motiva a
traduo e encenao de um texto neoclacissista no Brasil do sculo XX? As essas
indagaes que buscamos responder nos pargrafos seguintes.
A pea escrita por Molire, em 1665 na Frana, a matria-prima para a
composio do espetculo de Fernando Peixoto. Entretanto, a montagem a partir do
original francs realizada de acordo com as suas concepes. Para o diretor, uma
traduo livre. No mais amplo sentido da palavra. Emenda, a essa reflexo, a conscincia
de que se trata de uma compreenso historicamente situada.37 Sob esse prisma, cogente
estruturar a anlise da encenao de Dom Juan a partir da historicidade do texto teatral, ou
seja, do seu lugar social.
Sobre a escolha em encenar Dom Juan de Molire, Peixoto sente necessidade de
justific-la e legitim-la. Para tanto mobiliza a vida e a obra do comediante francs em um
contexto histrico particular. Peixoto no se priva a delinear, inclusive, elementos
histricos polticos da Frana do sculo XVII que, de alguma forma, sob seu olhar, tm
relao com a escrita de Dom Juan, alm de enveredar pela formao artstica e intelectual
do comediante. Isso tudo visando localizar, no tempo e no espao, a matria prima de sua
criao no sculo XX. O diretor demonstra que a obra molieresca est historicamente
situada dentro de um momento especfico da histria francesa e que esse instante, mais
tarde, lhe inspira a encenao brasileira.
Todas essas escolhas, propostas e leituras foram materializadas no texto Molire e
sua Luta contra os Tartufos, originalmente publicado, em 1971, na edio n 7 da revista
Palco + Platia. Em 1989 foi republicado no livro Teatro em Pedaos. O artigo funciona
como divulgador da maneira como Fernando Peixoto olha para seu passado e concebe a
produo artstica de Molire. Dessa perspectiva fundamental observar o documento
enquanto construo e representao. Com isto, ele se torna ponto iluminador de uma
temporalidade elaborada e cuidadosamente pensada pelo diretor brasileiro, que tem sua
trajetria artstica e intelectual organizada. Para Peixoto, 37 PEIXOTO, Fernando. Teatro em Pedaos. So Paulo: Hucitec, 1989, p. 129.
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A vida e a obra de Molire so um exemplo de participao e combate, ainda que ele no tenha nunca se definido dentro do confuso ambiente ideolgico em que viveu. Mas seu vigor como escritor e homem de teatro permanece vlido hoje pela constncia e firmeza de sua posio crtica, pela inteligncia e coragem de sua stira, pelo trabalho que realizou como desmistificador de valores falsos, que eram erigidos como sagrados por uma sociedade injusta e corrompida.38
Em verdade, o diretor brasileiro olha para o comediante francs e enxerga
atualidade, ou seja, apreende elementos que se convertem em possibilidades de
interpretao da realidade contempornea, por isso a aluso a que o vigor como escritor e
homem de teatro permanece vlido hoje. Nesse sentido, a escolha de Peixoto,= incide no
fato de perceber em Molire o exemplo de participao e combate, bem como a postura
crtica, a inteligncia e coragem de sua stira e o carter de desmistificador de
valores, erigidos como sagrados por uma sociedade injusta e corrompida. Alis,
imprime a Molire o status de crtico agudo e incisivo.39 Peixoto vislumbra no
comediante uma fora rebelde inexistente em outros escritores. Admira, sobretudo, a sua
capacidade de resistir diante das contradies da sociedade francesa. Frente aos vrios
ataques empreendidos, em especial, por clrigos e estetas, segundo Peixoto, Molire
permanece forte atacando e se defendendo ainda com mais ardor.40 As defesas do
escritor so realizadas por meio da escrita de suas peas e sua argumentao sempre
cuidadosa e ttica.41 Para o encenador, esses so elementos fundamentais que aparecem
direta ou indiretamente no espetculo recriado por ele, em 1970, para o cenrio brasileiro.
O passado se torna, assim, para Peixoto, fonte de conceitos, temas e crticas
vlidas para o Brasil do sculo XX. A Frana de 1665 e o presente do diretor aproximam-
se na traduo e encenao de Dom Juan, com vistas a criar sentidos coevos ao pblico
contemporneo a Peixoto. Os sentidos pensados e elaborados por Molire so apropriados
luz das condies histricas brasileiras. Dessa forma, o significado da obra literria
apreensvel no pela anlise isolada da obra, nem pela relao da obra com a realidade,
mas to s pela anlise do processo de recepo, em que a obra se expe, por assim dizer,
38 PEIXOTO, Fernando. Molire e sua Luta contra os Tartufos. In: ____. Teatro em Pedaos. So Paulo:
Hucitec, 1989, p. 121. 39 Ibid. p. 124. 40 Ibid. 41 Ibid. p. 125.
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na multiplicidade de seus aspectos.42 Essa exposio de seus mltiplos aspectos se d no
momento de atualizao da obra artstica. Com a atualizao, o que ocorre que h
possibilidades de a obra do passado ser apreendida dentro do horizonte de expectativas
contemporneo por efeito da leitura.43 Em outras palavras, o recebedor, como diz
Zilberman, sofre esse efeito exercido pela obra de arte, mas o responsvel por inseri-la
em seu horizonte a partir do momento em que a atualiza para que faa sentido para si e
para seus pares.
A natureza eminentemente histrica da literatura se manifesta durante o processo de recepo e efeito de uma obra, isto , quando se mostra apta leitura. A relao dialgica entre o leitor e o texto este o fato primordial da histria da literatura, e no o rol elaborado depois de concludos os eventos artsticos de um perodo. A possibilidade de a obra se atualizar como resultado da leitura o sintoma de que est viva; porm, como as leituras diferem a cada poca, a obra mostra-se mutvel, contrria sua fixao numa essncia sempre igual e alheia ao tempo. 44
, pois, justamente nessa perspectiva de mutabilidade que Peixoto compreende
Molire e sua pea. Para tanto, da mesma maneira que traa o perfil histrico de Molire,
tambm nos apresenta a pea Dom Juan, com destaque especial para a postura rebelde do
protagonista. Esse olhar tambm especfico. Para ele, caracteriza
a trajetria de um rebelde solitrio e desesperado, um homem que pertence por nascimento e formao classe dominante, mas que se ergue, ainda que sem conseqncias, contra todos e contra tudo, se ergue disposto a enfrentar os valores vigentes, disposto a lutar contra o poder vigente, numa revolta angustiada, individual, mas vigorosa pela fora de contestao e pelo exemplo de coragem.45
O estigma de rebelde solitrio persegue a criao do personagem no Brasil em
1970, uma vez que, quando Peixoto compe o seu Dom Juan, com todas as
particularidades inerentes ao seu tempo histrico, esse olhar conservado. Estabelecem-se
conexes entre o protagonista e Molire que so impossveis de serem determinadas ou
separadas umas das outras. Para Fernando Peixoto ambos so rebeldes, erguem crticas
sobre a sociedade hipcrita e corrupta que os cerca. Contudo, essa revolta, apesar do
42 STIERLE, Karlheinz. Que significa a recepo dos textos ficcionais? In: JAUSS, Hans Robert et al. A
Literatura e o Leitor. Coordenao e traduo de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 134.
43 Cf. ZILBERMAN, Regina. Esttica da Recepo e Histria da Literatura. So Paulo: tica, 1989. 44 Ibid. p. 33. 45 PEIXOTO, Fernando. Teatro em Pedaos. So Paulo: Hucitec, 1989, p. 126.
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exemplo de coragem, no tem resultados profcuos, pois Dom Juan morre devorado
pelas chamas do inferno e Molire , constantemente, agredido pela crtica e tem vrias de
suas peas interditadas ou impedidas de ir aos palcos em sua totalidade.
sob esse vis que Fernando Peixoto diz que Dom Juan se dispe a enfrentar os
valores vigentes, numa revolta angustiada, individual, mas vigorosa pela fora de
contestao e pelo exemplo de coragem.46 Se, tal como ressaltamos, Molire era um
crtico arguto e perspicaz de tempo, personagem e criador mantm estreitas relaes. Isto
serve, inclusive, para o diretor legitimar sua escolha por um autor cmico do sculo XVII.
Dom Juan marca, para o diretor, um instante peculiar da vida do comediante
francs, pois a considera como resposta interdio do espetculo Tartufo, em 1664.
Nesse sentido, a pea representa essa luta contra os tartufos, homens que,
hipocritamente, teriam interditado a pea anterior por se verem representados no palco. A
partir desse episdio, Molire se ergue sozinho perante sua sociedade, contudo, tal como a
revolta dom-juanesca, a sua tambm sem conseqncias, j que o espetculo de 1665,
mesmo com sucesso de pblico, desaparece dos palcos contando apenas quinze
encenaes.
Alis, as justificativas em relao escolha do texto teatral Dom Juan no se
restringem a recuperar o contexto no qual nasce a obra de Molire. Em notas escritas nos
anos de 1970 e 1976, publicadas no livro Teatro em Pedaos sob o ttulo Notas sobre
Dom Juan e Crise no Oficina, observamos a mesma preocupao em localizar
historicamente o espetculo no Brasil do sculo XX. nesse sentido que Peixoto nos conta
que Molire falava e ns respondamos.47 A traduo realizada de maneira a manter o
original e, ao mesmo tempo, recri-lo a partir da sua realidade, com vistas a reche-lo de
sentidos contemporneos. Temos, pois, trs elementos primordiais que so a base para a
construo da pea: a luta armada, a resistncia democrtica e a Contracultura.48
A rigor, o cerne das reflexes desta pesquisa a historicidade inerente obra de
arte. Portanto, se o texto teatral foi utilizado em dois momentos histricos completamente
diferentes (Brasil, 1970 e Frana, 1665), ambos so pensados de acordo com o lugar que
ocupam, uma vez que a construo de sentidos realizada a partir das possibilidades do 46 PEIXOTO, Fernando. Teatro em Pedaos. So Paulo: Hucitec, 1989. 47 Ibid. p. 129. 48 Estes elementos sero amplamente analisados no segundo captulo, dedicado encenao da pea.
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tempo histrico, aliadas capacidade intelectual e criativa do sujeito social (Peixoto e
Molire). Isto , por responder a novas questes em pocas distintas, o texto explicita sua
historicidade, concomitantemente contrariando a idia de estar possudo por um presente
atemporal [...] com um sentido fixado para sempre. 49 Sob esse prisma, uma nica pea
teatral encenada em lugares sociais diferentes revestida por novas significaes, o que
no invalida a obra original, tampouco descaracteriza a cpia. Ao contrrio, as duas
encenaes aproximam-se, intelectual e esteticamente, no tempo e no espao.
Ao perceber em Molire respostas para a contemporaneidade brasileira, Fernando
Peixoto se apropria do passado para falar ao presente sobre o presente. Essa apropriao
converte em atual a escrita do comediante francs, uma vez que faz sentido experincia
do diretor no Brasil. Isso acontece na medida em que h adies de elementos e sentidos,
cujo escopo tornar a obra do passado contempornea aos espectadores. Todavia, a obra
original no se perde, mas deixa resqucios e marcas, responsveis pela aproximao, ao
menos intelectual, entre uma e outra produo.
Dito isso, entendemos que a essncia de uma obra de arte encontra-se em sua
historicidade, pois ali que se torna visvel o processo de construo de sentidos. Assim, a
traduo e roteirizao realizadas por Fernando Peixoto impregnam o texto teatral francs
de novas interpretaes, mas este no se perde, deixa vestgios. Portanto, devemos pensar
esses resqucios enquanto tradio, desde que
por tradio entendemos o processo histrico da prxis artstica, ento ele deve ser pensado como um movimento que comea com a recepo, que apreende o passado, tr-lo de volta a si e d ao que ela assim transformou em presente, traduziu ou transmitiu, o sentido novo que implica seu esclarecimento pela atualidade. 50
Esses vestgios compem a tradio que envolve o mito Dom Juan e a pea
molieresca. Ao compreendermos dessa maneira, apreendemos os sentidos das palavras de
Fernando Peixoto: nosso mtodo de trabalho foi o mais simples possvel: Molire falava,
ns respondamos. De igual para igual. Nos concentrvamos nas idias, mais que nas
palavras. Estas seriam nossas. Sem complexos de superioridade ou inferioridade.51
49 ZILBERMAN, Regina. Esttica da Recepo e Histria da Literatura. So Paulo: tica, 1989, p. 36. 50 JAUSS (s/d) apud Ibid. p. 41. 51 PEIXOTO, Fernando. Teatro em Pedaos. So Paulo: Hucitec, 1989, p. 129.
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Apesar de assegurar que a traduo acontece de igual para igual, o diretor tem
uma preocupao incessante em justificar as suas escolhas diante do texto francs.
Percebe-se isso quando ele diz que sua traduo guarda a estrutura do original, que
iramos depois modificar substancialmente na verso cnica definitiva do texto. Mantm os
mesmos personagens e as ordens de seqncias. Trata-se de uma traduo que assume os
riscos das traies.52 Peixoto pensa em termos de traio, porque tem um modelo a
seguir, o texto clssico de Molire. Ao mesmo tempo, possui conscincia de que a pea
precisou ser modificada para atender aos seus interesses, j que, se lembrarmos o incio
deste captulo, para Peixoto o espetculo teatral tem que seguir o sentido da Histria.53
Portanto, o ano de 1970 apresenta solicitudes criativas peculiares. Da porque as
opes se faziam dentro de um quadro preciso.54 Assim, o dilogo estabelecido entre o
original francs e o roteiro de Fernando Peixoto no se consolida de maneira hierrquica.
Ao contrrio, so produes que atendem s solicitudes do tempo criativo especifico de
cada uma delas. A rigor, compreendemos quando Fernando Peixoto afirma que interessava,
a ele e a Gianfrancesco Guarnieri,55 a nossa maneira de compreender o texto e o autor.
52 PEIXOTO, Fernando. Teatro em Pedaos. So Paulo: Hucitec, 1989, p. 130. 53 Ibid., p. 216. 54 Ibid., p. 129. 55 Gianfracesco Guarnieri teve sua vida ligada arte e aos movimentos sociais das dcadas anteriores de
1960. Foi militante do Partido Comunista, com a funo de organizar grupos de pessoas para formar clulas do Partido. Em 1955 fundou o Teatro Paulista do Estudante (TPE), sob orientao de Ruggero Jacobbi. Com a fuso, em 1956, do TPE ao Teatro de Arena em So Paulo, Guarnieri passou a atuar efetivamente dentro do Elenco Permanente do Teatro de Arena, com uma preocupao evidente em relao questo do pblico e s realizaes de teatros populares. Aps a encenao e sucesso de Eles no usam Black-Tie (1958), motivou a criao do Seminrio de Dramaturgia no Teatro de Arena. A partir de ento teve uma postura crtica e particular sobre a sua realidade, em especial, as camadas populares. Aps a instaurao da Ditadura Militar em 1964, concebeu espetculos de cunho crtico sobre o sistema vigente e tambm sobre os seus opositores. No que se refere ao dilogo entre palco e platia, Ludmila S de Freitas diz: Dialogar com a platia, denunciar o arbtrio, encontrar nas brechas uma forma de mostrar o que acontecia no pas (estrangulamento econmico, tortura, opresso, prises arbitrrias, cerceamento da livre manifestao artstico-cultural), apontar dificuldades enfrentadas pelo teatro e construir uma arte de resistncia democrtica. Essas aes corresponderam aos anseios do artista e nortearam sua produo nos anos de 1970. (FREITAS, Ludmila S. Momentos da dcada de 1970 na dramaturgia de Gianfrancesco Guarnieri: o caso Vladimir Herzog (1975) (re)significado em Ponto de Partida (1976). Uberlndia, 2007. 127 f. (Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de Ps-Graduao em Histria), f. 38.) Por fim, vale destacar que Guarnieri escreveu, encenou e participou de importantes espetculos para a cena teatral brasileira, entre eles, Gimba, presidente dos Valentes (1959), A Semente (1961), O Filho do Co (1964), os musicais Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta Tiradentes (1967), Marta Sar (1968), Castro Alves Pede passagem (1971), Um Grito Parado no Ar (1973) e Ponto de Partida (1976). Tambm teve participao ativa na televiso e tambm no cinema. Para saber mais sobre o assunto, consultar: FREITAS, Ludmila S. Momentos da dcada de 1970 na dramaturgia de Gianfrancesco Guarnieri: o caso Vladimir Herzog (1975) (re)significado em Ponto de Partida (1976). Uberlndia, 2007. 127 f. (Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Uberlndia, Programa de Ps-Graduao em Histria)
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evidente que nossa compreenso estava historicamente situada.56 Com isto, o texto Dom
Juan de Molire alcana a atualidade no roteiro e na cena de Fernando Peixoto. Em outras
palavras, as duas escritas teatrais tornam-se simultneas na representao de Peixoto, no
olhar que direciona para a sua realidade e tambm para o seu passado. Nesse caso, a obra
artstica guarda um elo com o seu mundo, ou seja, com o instante no qual foi produzida.
Entretanto, h uma continuidade de sentidos que a acompanha em suas futuras
apropriaes. Isso significa que o roteiro e a cena de Fernando Peixoto esto
irremediavelmente conectados escrita de Molire, uma vez que o texto teatral propicia a
mediao entre passado e presente.
Essa conexo possvel a partir do presente que interpreta o passado e dele se
apropria, compreendendo-o luz de seus questionamentos. Para compreender isso, o
conceito de presente interpretador de Carlos Alberto Vesentini fundamental. Vesentini,
na obra A Teia do Fato, tem como meta discutir a construo e legitimao da Revoluo
de 1930, no Brasil, enquanto fato histrico. Para tanto, Vesentini retorna ao processo
brasileiro, em um instante em que se aglutinam momentos e circunstncias que fizeram
com que o ano de 1930 se tornasse um marco de ruptura entre o passado e o presente. A
respeito dessa relao, o intelectual usa o conceito de tempo presente e interpretador,57
isto , o passado constantemente relido e reconstrudo no presente que o interpreta de
acordo com suas problemticas e seus olhares. o presente tambm o responsvel por
organizar a temporalidade, alocando acontecimentos e fatos, especialmente, de acordo com
a memria histrica. Em relao ao texto teatral, para tornar-se mediador entre passado e
presente, fundamental levar em considerao que a obra est investida de sentidos
elaborados pelo presente interpretador de Peixoto, mas, ao mesmo tempo, h uma
necessidade de aproximar-se o mximo possvel do que Molire propunha.
Fernando Peixoto evidencia que erros e acertos nasceram da vontade de sermos
fiis ao esprito de Molire.58 A relao que o encenador brasileiro estabelece com o
GUARNIERI, Gianfrancesco. Gianfrancesco Guarnieri. In: BARCELLOS, Jalusa. CPC da UNE: uma histria de paixo e conscincia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. Id. Entrevista com Gianfrancesco Guarnieri. In: PEIXOTO, Fernando. Teatro em Movimento. 3 ed. So Paulo: Hucitec, 1989, p. 44-60. ROVERI, Srgio. Gianfrancesco Guarnieri Um Grito Solto no Ar. So Paulo: Imprensa Oficial, 2004.
56 PEIXOTO, Fernando. Teatro em Pedaos. So Paulo: Hucitec, 1989, p. 129. 57 VESENTINI, Carlos A. A Teia do Fato. So Paulo: Hucitec, 1997, p. 89. 58 PEIXOTO. Op. Cit., p. 129.
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comediante o motiva a recuperar um esprito de Molire. Sem dvida, o que cha