Seminário e II Encontro Estadual de Auditoria do SUS/BA – Nov/2015
Palestra:
TRANSPARÊNCIA PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE COMBATE À CORRUPÇÃO
Prof. José Antonio G. de Pinho
Escola de Administração/UFBA
importância de olhar o passado, pois, como se diz, no Brasil até o passado é imprevisível. Então,
vamos beber nos clássicos e na História.
“O Estado atravessou o oceano” (Faoro, 1958). O Estado Patrimonialista se transfere para o Brasil.
O Patrimonialismo (Dominação Tradicional) vai ser a nossa marca: a indiferenciação entre o que é
público e o que é privado.
Marco de Partida de construção de um País mais contemporâneo: 1808, vinda da família real.
Talvez até essa data não haveria muita certeza se o Brasil “iria pegar”. Com a família real, vem um
séquito de funcionários, a nobreza e parasitas da corte.
Independência (1822): papel de José Bonifácio: mineralogista com experiência em Portugal e vários
países da Europa. Venceram os bacharéis que buscavam emprego exatamente nas estruturas do
Estado. Atenção: JB um iluminista (ciência) e antes do Positivismo. PB X PP.
• Regência (1831/40): país em crise econômica, social, financeira. Entre outros problemas:
excesso de funcionários. Um Pais que gira em torno do Estado.
• o Império é conservador. A República velha, ainda que promova algumas mudanças, não rompe
com as estruturas existentes. Tem-se um Estado descentralizado, com muito poder para as
províncias (estados).
• em 1930, com “uma Revolução sem revolução”, tem inicio o processo de State Building,
assentada em uma mistura de patronagem, clientelismo, patrimonialismo (presente desde o
início) e, fato novo, positivismo que vai ensejar um certo processo de modernização. Seremos
modernos a partir de uma matriz conservadora, o positivismo.
• recorrendo a Weber, os tipos de dominação tradicional e carismático são “eminentemente
pessoais” por haver “um compartilhamento de sentimentos e valores entre dominantes e
dominados” (Araújo, C, 1999), são tipos estáveis (de estabilidade, refratários à mudanças).
• o mesmo não se dá na dita dominação racional-legal que emergem em sociedades não
homogêneas, onde predomina um “politeísmo de valores”, como diz Weber, para quem este tipo
é um tipo impessoal de dominação, pois quem domina é “um conjunto de regras gerais e
abstratas, e não pessoas (sejam elas entendidas como sujeitos individuais ou coletivos), quanto
porque a aplicação das mesmas não faz distinção de pessoas” (Araújo).
• passados quase 100 anos de Weber e de Brasil (olhando da perspectiva de 2015), é de se
perguntar a definição e o alcance do que é racional e do que é legal no Brasil. Penso, que a
História nos ajuda a compreender estas questões.
• Nunes (1997) considera que até 1930 o Brasil era regido pela gramática do clientelismo. Com os
governos Vargas, 3 novas gramáticas são agregadas, passando a conviver com a existente:
corporativismo (legislação corporativista), insulamento burocrático e universalismo de
procedimentos. Para seus artífices, a Revolução de 30 visava a criar uma “ordem burguesa
moderna”, o que “jamais aconteceu” (Idem).
a nova ordem, através dos interventores nos estados, no entanto, teve que fazer coalizões com
facções das oligarquias estaduais conservadoras enfraquecendo o ímpeto revolucionário. Ruptura é
uma palavra que não está no nosso léxico.
na comemoração dos 10 anos da Revolução, Vargas ao listar os problemas enfrentados afirma que
“no serviço público reinava a patronagem” (idem) e a sucessão política nos estados e municípios,
salvo exceções, se dava no âmbito do “privilégio privado” (Idem).
primeiras ações da nova ordem (centralizadora): ainda no final de 1930 Vargas cria 2 novos
ministérios: Educação e Saúde e Trabalho, Indústria e Comércio. Em 1931 cria a Comissão Geral de
Compras, proibia os Estados de contrair empréstimos no exterior e “desarma” as forças policiais
dos estados. Cria também o DIP, A Voz do Brasil. (Idem).
em 1932 é institucionalizada a carteira de trabalho e as condições para a sindicalização dos
trabalhadores. Essa estrutura corporativa contribuiu ainda mais para o clientelismo (Idem) ao gerar
milhares de novos empregos em ministérios e em agencias governamentais acolhendo segmentos
de classe média: “advogados, burocratas e intelectuais” (Idem)
Vargas deu inicio ao processo de insulamento democrático. O DASP, criado em 1938, resulta da Comissão
Central de Compras (1931) e do Conselho Federal do Serviço Público e das Comissões de Eficiência (1936).
O DASP seria “um organismo paradoxal, porque combinava insulamento burocrático com tentativas de
institucionalização do universalismo de procedimentos” (Idem). Assim caminharam lado a lado, o
corporativismo e o insulamento burocrático e com a a centralização no governo federal concentraram-se
os recursos para o clientelismo. (Idem). No Estado Novo foram criadas um sem número de agencias
estatais tanto no setor de produção, como de defesa, como de bem estar social (Institutos de
previdência), de infra-estrutura (estradas de ferro, navegação), de serviços financeiros.
o Brasil até 1930 era uma “grande fazenda”. Até 1930, teve empréstimos feitos por estados no exterior
que não foram pagos. Assim, o sistema financeiro internacional começa a fazer pressão. O sistema
contábil brasileiro não existia, até 1916 não tinha sido emitido nenhum boletim estatístico. A comissão
instalada em 1931 para o estudo da dívida externa constatou “desordem, desperdício e
irresponsabilidade” (Idem). Em 31/12/1934, já se sabia o total da dívida externa de todos os níveis de
governo (Idem). Em 2015 não se sabe o orçamento...
� com a redemocratização, o DASP foi “totalmente esvaziado”, perde seu papel central no
planejamento, tendo seu escopo drasticamente reduzido como uma reação a sua posição
associada à ditadura. “Até 1961, só 12% de todo o funcionalismo público tinha sido admitido por
concurso” (Idem)
� a redemocratização de 1945 não rompeu com “a gramática personalista do clientelismo” (em
outras palavras: as ditaduras passam, mas o clientelismo fica). As elites que se beneficiaram do
regime anterior são mantidas na nova composição do poder (idem). A UDN que seria a “porta-
voz da modernização universalista da vida brasileira” abandonou este ideal descambando para
o pragmatismo, o fisiologismo e o golpismo. O Udenismo, sinônimo de moralismo, passou a ser
visto como uma atitude hipócrita, pois “todos os grupos que permaneceram fora do poder
acabaram tendo de cair nesta linguagem moralista como uma estratégia para angariar apoio
político” (Idem).
� no período 1945/64, a política partidária e eleitoral estava acima de todas as questões (idem) o
que implicou na “necessidade de driblar os partidos” durante o Vargas II e JK (Idem).
a patronagem respondia por milhares de nomeações na burocracia estatal tradicional e tornou
impossível qualquer reforma administrativa no âmbito do funcionalismo” (Estado cartorial). Os
políticos constituíam um spoil system em cima do Estado. No Vargas II, o DASP é reativado mas sem o
poder que tinha antes. E com JK o DASP volta a ser marginalizado impedindo que fizesse concursos
públicos. JK teria feito 7 mil nomeações apenas no 1.o ano do governo, mas a maior parte delas
teriam sido feitas por Jango nos ministérios do Trabalho e da Agricultura e nos institutos de
previdência, beneficiando o PTB (Idem). No mandato JK a imprensa estimou em 15 mil as
nomeações, número contestado pelo ministério do Trabalho, que estimou em 4.436 sendo que 1657
por concurso, sendo as restantes, portanto, 2779, nomeações clientelistas (Idem).
- Uma visão crítica no calor dos acontecimentos: interessante colher as impressões de MONTEIRO
LOBATO, um intelectual engajado, militante e contemporâneo e crítico de Vargas. Em 1943, já no
Estado Novo, afirma que “somos muito pobres de inteligência” e os que nos governam adotam a
política do avestruz diante do perigo: “esconder a cabeça”. E expressa que tem uma “curiosidade”:
“quantos anos durará a decomposição do Brasil”?
“a verdadeira situação do Brasil ninguém sabe qual é” (1945) vendo “um complexo sistema de
parasitismo” assentado sobre uma massa enorme de pobres, doentes, famintos, etc
terminada a guerra e o governo de Vargas, ML afirma que agora que “a Ditadura lá se foi e fazemos
um esforço para nos governar decentemente”. Aponta que o País está com a economia arrasada, não
produzindo nem alimentos suficientes para o consumo interno. E direciona suas críticas à “economia
dirigida” e aos altos impostos, clamando pela liberdade de mercado, pela livre concorrência (1947)
o Fracasso das Reformas Administrativas: Flávio Rezende mostra que as reformas administrativas no
Brasil falham recorrentemente. Apoiando-se em Kaufman (1995), localiza 3 razões para explicar as
resistências as mudanças que levam as falhas: 1) os interesses organizados procuram manter os
benefícios da manutenção do status quo existente, baixa performance do aparelho burocrático; 2)
oposição calculada à mudança; 3) reduzida habilidade dos interesses organizados em promover
mudanças.
como as reformas falham, elas pedem mais reformas (ou as leis não funcionam, pedem mais leis)
ao analisar o caso brasileiro (MARE, 1995), Rezende constata que as reformas dificilmente
conseguem alterar a performance do aparato burocrático. Em geral, são descontinuadas, abandonas
ou mesmo modificadas em sua essência. Isto vem desde o DASP, passando pelo Decreto 200/67 e
mesmo incluindo a reforma do MARE. Assim, “clientelismo, corrupção, déficits de efetividade,
eficiência administrativa e outros “males” burocráticos persistem” (Idem). Crítica: mas será que tudo
isso é atribuível à burocracia ou ao sistema político mais amplo?
no calor dos acontecimentos, Pinho (1998) mostrava que o gerencialismo, perseguido pela reforma
do MARE, esbarrava nos parâmetros do patrimonialismo ainda regendo a política brasileira e o Estado
em particular.
e hoje não se tem mais falhas permanentes, pois já não se tem mais reformas ou propostas de
reforma do aparato do Executivo. Os 3 últimos governos abandonaram por completo qualquer
tentativa de realizar qualquer reforma. Muito pelo contrário, através do chamado aparelhamento,
contribuíram para ativar o spoil system que caracteriza o Brasil há décadas, séculos. O Estado (agora
engordado por estatais relevantes) é um ativo a ser explorado, espoliado até sua exaustão.
vale trazer o conceito de que no Brasil a História é lenta (Martins, José de Souza): somos uma
sociedade barroca, dominada pelos adornos de aparência (p.14), o que pode nos remeter à profusão
de leis e instituições criadas que, em grande medida, só funcionam na aparência, “não pegam” ou são
burladas. Para Lamounier (2008), o Brasil é dominado por uma “cultura de transgressão”. Tratando
da formação de “um ambiente de mercado” , a existência de um “volume persistentemente alto de
transgressão” tem efeitos danosos na economia, no social, etc. O Estado não é efetivo em combater
essa situação dada a existência de um “sistema deficiente de aplicação das leis (Law enforcement).
Accountability: construção clássica de Anna Maria Campos sobre a percepção do termo
accountability (meados dos anos 70) e publicado em 1990: “Accountability: quando poderemos
traduzi-la para o Português?” Falta-nos o conceito. Pinho e Sacramento (2009) voltam ao tema e
constatam um avanço institucional, mas ainda longe de se poder dizer que a accountability está
implantada no Brasil. Accountability = transparência + responsabilização + punição (ou recompensa).
Democracia Digital: não há dúvidas que a internet e toda a parafernália digital trazem novas formas de
comunicação e de divulgação de informação. Essas formas são muito atrativas e despertam mesmo muito
entusiasmo e expectativas. Mas tudo isso tem que ser relativizado. Por um lado, do ponto de vista do emissor
(governos, instituições governamentais) cabe perguntar se o que está sendo divulgado é o que efetivamente
precisa ser divulgado, publicizado. Outro ponto é se as informações são compreensíveis, inteligíveis, de fácil e
rápida apreensão.
Um pouco de história: além do patrimonialismo a sociedade brasileira é caracterizada por ser uma sociedade
centrada no Estado e que implanta um processo de modernização conservadora. Assim, não se desfazem as
bases da velha estrutura de dominação do patrimonialismo, mas, sim, estas são adequadas a um processo de
modernização que não toca no essencial. E o que acontece se dá em um ritmo lento e de resistência a rupturas,
profundas transformações.
do ponto de vista do usuário, do consumidor, do cidadão precisa ver se efetivamente ele entende o que está
veiculado, compreende, encontra o que supostamente quer. Mas, mais que isso, se ele está interessado nessas
informações. Um pouco mais de teoria e de visão histórica: a sociedade brasileira é uma sociedade passiva,
dependente de revoluções passivas (feitas, conduzidas pelo Estado, de cima para baixo e não ao contrário), que
se ausenta de maiores mobilizações políticas.
Duas ilustrações sobre o dito acima de extração recente: 1) a divulgação de informações sobre a crise hídrica
em SP: pesquisa recente Datafolha mostra que as pessoas em SP (Capital) entendem que as informações
necessárias estão sendo escondidas (“Governo só fornece dados que interessam a ele próprio: 71% em ago/14 e
84% em out/15).
Observar que a crise hídrica é palpável, as pessoas sentem, sabem do que estão falando. Quando se trata de
informações mais abstratas, intangíveis, qual a capacidade de julgamento, de percepção dos cidadãos em
relação a essas questões (licitações, preços, custos, concorrência, etc); 2) a implantação do e-Social. presume-se
que seja algo simples e as pessoas (de um certo nível social, intelectual) tiveram muita dificuldade de acessar e
entender o que está sendo solicitado. Assim, o fato de se ter a tecnologia não garante automaticamente avanços
democráticos. Nesse caso ficou patente publicamente como os sistemas são difíceis de serem acessados e
compreendidos. E este é um sistema público, preenchimento de dados.
Conclusões: mais realidade, menos otimismo com as tecnologias digitais: risco de uma burocracia eletrônica,
uma profusão de dados, mais estéreis e/ou de difícil compreensão, leitura. Para não jogar a criança com a
água do banho (uma dose de otimismo), reconhecimento dos avanços principalmente do enforcement no
Brasil nas últimas décadas, mas ainda nos últimos anos, mas com cuidado, pois o avanço é lento e não tem
nada exatamente consolidado. Exemplos: a máfia dos fiscais na Prefeitura de SP, CARF (comendo o sistema
por dentro) e outros tantos. Como é que não se percebe sinais de riqueza incompatível com os rendimentos?
Esteja na rede ou não pouco é descoberto.
“O sistema punitivo no Brasil é um desastre. Ele é feito pra pegar pobre” (L.R. Barroso, ministro do STF,
31/10/15). “Se você quer, na vida política, se comportar dentro dos princípios do estado de direito, se
prepare para ter inimigos e perder amigos. É impossível que se cumpra no Brasil a lei e aja de acordo com a
sua consciência sem perder amigos e fazer inimigos” (J.E. Cardoso, Ministro da Justiça. FSP, 09/11/15).
Referencias:
ARAÚJO, Cícero: Império da Lei e Subjetividade. Novos Estudos. CEBRAP. São Paulo. N.o 54. Julho de 1999.
LAMOUNIER, Bolivar. Transgressão, Cultura e Economia de Mercado.: 10 pontos para discussão. In: Fernando H.
Cardoso e Marcilio Marques Moreira (orgs).Cultura das transgressões no Brasil. Lições da História. São Paulo.
Saraiva. 2008.
LOBATO, Monteiro. Prefácios e entrevistas. São Paulo. Globo. 2009.
NUNES, Edson: A gramática política do Brasil. Clientelismo e Insulamento Burocrático. Rio de Janeiro. ENAP.
Zahar. 1997.
PINHO, José Antonio G. de. Reforma do Aparelho do Estado: Limites do Gerencialismo frente ao
Patrimonialismo. O&S. Vo. 5. N.o 12. Salvador. Maio/agosto 1998.
REZENDE, Flávio da Cunha. Por que Reformas Administrativas Falham? Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol.
17. N.o 50. São Paulo. Outubro 2002.
REZENDE, Eron. Em segundo lugar, o cliente. Revista Muito. Encarte A Tarde. Salvador. 24/03/2013.