labrys, tudes fministes/ estudos feministasjuillet/ dcembre 2008 -julho/dezembro 2008
Histria Feminista, uma histria do possvel
Valria Fernandes da Silva
Resumo:
Ao longo do sculo XX, a Historiografia foi sacudida por varias
revolues internas. Novos quadros tericos, novos objetos, dilogo com outras
disciplinas. Tudo isso enriqueceu o fazer historiogrfico. No entanto, a ruptura com
as metanarrativas e o sujeito universal masculino no foi concluda.Em nosso artigo
abordaremos como as feministas contriburam para o enriquecimento das
discusses historiogrficas, no somente no que concerne insero das mulheres
nas grandes narrativas, ou da transformao das mulheres em sujeitos da Histria,
mas tambm ao proporem um novo olhar sobre as relaes humanas, percebendo a
riqueza dos discursos para alm dos arranjos binrios.Tendo isso em mente,
discutiremos a proposta da historiadora tania navarro-swain de fazer uma Histria do
Possvel, que busca os indcios de outras histrias que ficaram esquecidas ou
foram silenciadas pela historiografia tradicional.
Palavras-chave: Historiografia, Feminismos, Histria do Possvel,
Histria das Mulheres.
A trajetria da Histria como disciplina foi marcada por vrios
pressupostos tericos e muitas vozes conflitantes. A hegemonia de uma ou outra
corrente historiogrfica sempre foi pontuada por dissidncias, ainda que as rupturas
e brechas permanecessem escondidas e ignoradas, ou fossem simplesmente
silenciadas. Por conta disso, a idia de estabilidade e universalidade de conceitos e
categorias permaneceu como um horizonte a ser perseguido dentro de muitas
correntes historiogrficas. Tal viso termina por obscurecer a riqueza e a
diversidade de nossa rea de estudos.
Ainda que a revoluo proposta pela Escola dos Annales, nos anos
trinta do sculo XX, tenha inaugurado uma nova forma de se fazer Histria
valorizando as grandes anlises estruturais e o dilogo com outras disciplinas,
alguns objetos e possibilidades tericas continuaram marginalizadas e no se
rompeu com a idia de um sujeito universal.
O fazer historiogrfico, fundado pelos Annales, apesar de
revolucionrio em sua poca, reforava alguns paradigmas, como por exemplo, a
existncia de um sujeito universal. Tal noo, que a princpio parece acolhedora e
agregadora, no raramente se mostrava demasiado excludente, pois se remetia
idia de um sujeito masculino, branco, heterossexual e ocidental. Deixava de fora
todos aqueles que no se identificam com este homem, sujeito da Histria.
Nesse sentido, interessante ler o relato da experincia da
historiadora Michelle Perrot, no auge da Escola dos Annales, sobre a questo do
sujeito universal. Ela nos diz:
[...] redigi uma tese sobre os operrios em
greve, na qual as mulheres ocupavam somente um captulo.
Ao contrrio das rebelies para o abastecimento de vveres,
os chamados motins por alimentos, comandadas por
mulheres, a greve, no sculo XIX, era um ato viril. Tal
dissimetria chamou minha ateno, bem como a derriso com
que as mulheres eram tratadas. Entretanto, no me detive
muito na questo. [grifo nosso] (PERROT, 2007: 14)
Mas no devemos nos enganar, pois o silncio, como diz Eni Orlandi,
no um vazio sem histria. O no-dito sempre quer dizer alguma coisa na ordem
do discurso. (ORLANDI, 2002: 23) Se cada gerao de historiadoras e historiadores
faz suas prprias perguntas, o [...] modo como essas perguntas so formuladas
denuncia as prprias posies ideolgicas dos autores, [...]. (GWENDOLYN, 2003:
37) [1] Assim, boa parte da historiografia considerava os homens e as relaes entre
eles, ou a partir deles as nicas vlidas ou as norteadoras do conjunto social.
Um exemplo disso o livro As Origens do Pensamento Grego de
Jean-Pierre Vernant. Nele o autor se preocupa em estabelecer as diferenas entre
os gregos melhor seria dizer os atenienses, porque eles so o foco principal e
o passado Micnico ou as sociedades do Oriente Prximo. Trabalhando com a idia
de ruptura, este historiador enfatiza que na Grcia no existia lugar para o autocrata,
para o rei com poderes limitados, pois o que prevalece a idia de simetria e
equilbrio, o princpio de que todos os cidados so iguais. (VERNANT, 2005: 11) No
entanto, em nenhum momento feita qualquer reflexo sobre o fato desta igualdade
e simetria no se estender s mulheres. Os cidados, os sujeitos da histria so os
homens e a partir deles que a reflexo feita.
Uma Histria Feita de Silncios
A histria, que no fala das mulheres, que ignora a sua participao
nos grandes e pequenos acontecimentos, no neutra, mas serve para
perpetuar papis de gnero e representaes sociais a respeito das relaes entre
os sexos, negando-se a discutir as resistncias, a ao criativa das mulheres, e
como as estruturas patriarcais de poder com suas excluses e hierarquias foram
constitudas.
Este tipo de historiografia refora os silncios, criando [...] realidades
ao descrever relaes humanas baseadas em pressupostos essencialistas e
universalizantes. (NAVARRO-SWAIN, 2006: web) Navarro-Swain bem precisa ao
concluir que se trata da naturalizao das relaes humanas, especialmente quando
se trata das relaes entre homens e mulheres, dos espaos ocupados e dos papis
desempenhados por eles e elas. O que presenciamos em certos textos
historiogrficos um confisco da historicidade, ao se perceber ao longo da Histria
os mesmos arranjos sociais, os mesmos papis de gnero. Apaga-se o mltiplo
pois este cria a idia de que os discursos textos, fontes, instituies, smbolos
so neutros ou quase desprovidos de historicidade.
Outro aspecto importante o silncio. Calando-se sobre as
mulheres, os historiadores, em sua maioria homens, estavam falando do lugar que
desejavam que estas ocupassem em sua sociedade, um lugar de sombras, o
espao do privado, pois todo dizer cala algum sentido [...] (ORLANDI, 2002: 105).
Nesse sentido, importante salientar o quanto o olhar feminista possibilitou a
percepo de outras realidades possveis. Os indcios discursivos estavam
presentes, o que se fazia necessrio uma mudana de olhar.
Um tempo de desconfiana
A impossibilidade de se fazer uma histria objetiva e que
correspondesse verdade trouxe insegurana, aquilo que Michel de Certeau chama
de tempo da desconfiana, pois o sujeito, o historiador ou historiadora, tambm
algum que tem um sistema de referncias histrico e influenciado por suas
condies de produo; no neutro e seu trabalho contaminado por essa
subjetividade. (CERTEAU, 2002: 67) Toda leitura do passado encontra-se permeada
por uma determinada viso de mundo, e sempre contempornea em seus
questionamentos, suas abordagens e problematizaes.
Neste sentido, os questionamentos das historiadoras feministas esto
solidamente firmados na experincia social como mulheres ainda que esta mesma
categoria possa e deva ser desconstruda e na percepo de que a Histria
produzida por dcadas as ignorava como sujeitos em prol de um sujeito universal
masculino que nunca contemplou as diferenas.
Alm de desconstruir o discurso historiogrfico colocando em
evidncia suas condies de produo, evidenciando seu carter parcial e seletivo,
as historiadoras feministas questionam as certezas,
A Histria nunca mais ser a mesma, a das
certezas e dos positivismos, a das vises de mundo, e das
contradies a serem resolvidas. A Histria hoje uma
disciplina instigante, aberta s questes e aos paradoxos,
perguntando, em lugar de concluir, cuja preocupao central
no a descrio ou a compreenso de fatos ou
comportamentos esperados. A Histria, hoje, seria fator de
desordem do discurso, apontando a falcia das hegemonias,
como construes interpretativas. [...] (NAVARRO-SWAIN,
2004: web)
Mas a eroso do paradigma centrado na noo de humano e de
sujeito coerente, ainda no foi completamente digerida: as ansiedades em relao
perda de coerncia e cientificidade persistem dentro da academia. Nas palavras
da historiadora Margareth Rago, trata-se da ruptura do:
[...] conforto das continuidades histricas, que
legitimam o presente, ao construir identidades fixas e
assegurar-nos da existncia de um passado organizado,
espera de ser desvelado pelo historiador [...] atingiu
consideravelmente as metanarrativas ocidentais, masculinas
e universalizantes, desafiando as hierarquias sociais e
sexuais tradicionais. (RAGO, 2006: web)
A dcada de 60, perodo particularmente frtil, marcado pela luta
poltica e pela reflexo sobre questes como gnero e raa, pelo desmonte dos
ltimos imprios coloniais e o acirramento da Guerra Fria, foi marcado pela
emergncia das reflexes feministas, tanto dentro quanto fora da universidade, e
pela ao poltica em prol dos direitos das mulheres.
Linda Nicholson ressalta que essas reflexes conduzem a
necessidade de elaborao de uma teoria feminista ou teorias que explicassem a
opresso das mulheres e a opresso destas pelos homens. Essas reflexes
ganharam fora no final dos anos 60 e se adensaram nas dcadas posteriores
(NICHOLSON, 1997: 1-3 e SCOTT, 1994: 358)
Sandra Harding, ao discutir a questo da crise de paradigmas na
cincia,[2] explicita que as primeiras crticas contundentes a um modelo de cincia
como discurso de verdade veio ainda nos anos 40, apontando que o incomodo
poderia no ser generalizado, mas havia cientistas e filsofos refletindo sobre a
questo. (HARDING, s/d: 1-9)
Thomas Kuhn, em seu livro A Estrutura das Revolues
Cientficas, questiona os paradigmas cientficos e a noo de progresso, que veria
na Histria da Cincia um contnuo de avanos permeados pela racionalidade e
coerncia. (KUHN, 2005: 19-28) Aqui, h um encontro com o pensamento de
Foucault que defende que:
[...] a histria de um conceito no , de forma
alguma a de seu refinamento progressivo, de sua
racionalidade continuamente crescente, de seu gradiente de
abstrao, mas de seus diversos campos de constituio e
validade, de suas Regras sucessivas de uso, a dos meios
tericos mltiplos em que foi realizada e concluda a sua
elaborao. (FOUCAULT, 1997: 5)
A Histria passa a ser percebida tambm como um enunciado, uma
construo scio-cultural, pois a apreenso dos fenmenos da natureza depende do
observador, do seu local de produo e enunciao.
Para Harding, as discusses ps-colonialistas, adensadas a partir
dos anos 50, tambm colocaram em evidncia o fato de que as concepes de
cincia e tecnologias europias se consolidaram sobre o descrdito e a destruio
das de outros povos. Os discursos ps-coloniais denunciaram o racismo e a viso
de mundo moldada no Ocidente e que refora a superioridade cultural, poltica e
cientfica branca europia ou norte americana sobre os outros povos do mundo,
especialmente aqueles que foram colonizados. (BHABHA, 1992: 177-181)
Ainda que os pensadores ps-colonialistas no refletissem
diretamente sobre a condio das mulheres, ao evidenciarem que a perspectiva
europia no poderia ser o nico veculo de representao da realidade,
possibilitaram a ponte com os feminismos. O prprio conceito de racionalidade e
desenvolvimento so criaes europias impostas aos outros povos, carregadas,
inclusive de diretivas de gnero.
Assim colocado em discusso o quanto a educao, a classe
social, o gnero, a etnia, enfim, as condies de produo e de imaginao de
um determinado sujeito histrico influenciam na sua produo cientfica e no seu
olhar crtico sobre o passado e o presente. Harding aponta o papel fundamental das
feministas neste processo, afirmando que:
No exame da crtica feminista cincia, devemos, portanto, refletir
sobre tudo o que a cincia no faz, as razes das excluses, como elas conformam
a cincia precisamente atravs das ausncias, quer sejam reconhecidas, ou no.
(HARDING, 1993: 13)
Neste sentido, as reflexes ps-modernas desqualificam o modelo de
cincia herdado do sculo XIX e suas implicaes polticas, como a existncia de
um sujeito universal (masculino, branco e heterossexual), da idia de neutralidade e
do eurocentrismo. Segundo Jane Flax:
[...] discursos ps-modernos so todos
desconstrutivos, j que buscam nos distanciar de crenas
relacionadas verdade, conhecimento, poder, o eu e a
linguagem que so geralmente aceitas e servem de
legitimao para a cultura ocidental contempornea, e nos
torna cpticos em relao a tais crenas. (FLAX, 1991: 221)
Ao expor os mecanismos de construo dos discursos, entre eles o
cientfico, e como possibilitam a manuteno do poder e da supremacia por parte do
homem branco ocidental, as propostas ps-modernas apontavam para novas
prticas cientficas e polticas e a Histria no foi excluda das novas frentes de
reflexo. A efervescncia terica e social dos anos sessenta e setenta do sculo XX
com os movimentos de negros, feministas e a presso descolonizadora, acabou
expondo a fragilidade da Histria Universal, que mais exclua do que inclua, e que
ao se afirmar como neutra e universal, na verdade, supervalorizava alguns objetos e
sujeitos. (HUNT, 1992: 9-13)
Repensando o papel das mulheres na Histria ou repensando a
Histria?
Ao longo das ltimas dcadas, com o adensamento das discusses
tericas o fazer historiogrfico sofreu vrias modificaes, e o aporte das discusses
feministas permitiu repensar o papel das mulheres na histria, assim como a prpria
noo de histria.
Ainda que Michelle Perrot tenha deixado a discusso sobre a
participao histrica das mulheres nas lutas operrias do sculo XIX adormecida
por algum tempo, como vimos anteriormente, outras feministas se inquietavam.
Vrias questes estavam em pauta desde os anos 40 quando coube Simone de
Beauvoir a tarefa de desestabilizar as estruturas da natureza dos sexos, fundada
nas hierarquias e assimetrias, ao colocar claramente que as mulheres so
construdas no social e so constitudas como o outro em relao ao universal que
masculino. (BEAUVOIR, s/d) Abalar as certezas sobre as diferenas dos sexos foi
uma das crticas mais contundentes s verdades objetivas, criadas a respeito do
humano.
Dentro do caldeiro dos questionamentos das geraes de cientistas
sociais das mais diferentes disciplinas havia o litgio em relao neutralidade do
discurso cientfico e do seu estatuto de verdade. Outra discusso que se tornava
cada vez mais evidente era a de que no havia uma s histria, uma s perspectiva
possvel, e que havia a necessidade de repensar a presena das mulheres na
histria e como se deu a constituio de uma sociedade marcada pelo patriarcado,
desconstruindo relaes que apareciam em muitos textos cientficos como naturais.
Assim, principalmente nos anos 60, as feministas, e outros grupos,
passam a questionar os paradigmas e axiomas cientficos estabelecidos
especialmente a partir da dcada de 1960. Trata-se, como ressalta tania navarro-
swain, e um esforo intelectual e poltico que coloca em evidncia que:
[...] a cincia seria o discurso substituto do
dogma religioso, baseando-se, porm, no mesmo sistema de
crenas, onde os pressupostos axiomticos substituem os
dogmas, onde a autoridade do cientista supera a do
sacerdote. (NAVARRO-SWAIN, 2004)
No entanto, estas reflexes no so generalizadas, pois, ainda em
nossos dias, quando ns, feministas, fazemos Histria, encontramos inmeras
dificuldades. Isso, porque a Histria consolidada nas academias brasileiras ainda
parece ancorada em uma cientificidade que refora uma viso binria do mundo e
das relaes humanas. O carter assumidamente poltico da histria feita pelas
feministas, ao questionar as estabilidades, as certezas, as verdades, parece conflitar
com o fazer historiogrfico disseminado em nosso pas, ancorado em paradigmas
que negam a neutralidade, sem contudo conseguir fugir deste pressuposto da
cincia tradicional.
nesse contexto que a historiadora tania navarro-swain prope a
histria do possvel. Se o que a [...] o que a histria no diz no existiu,
(NAVARRO-SWAIN, 2000: 13), papel das historiadoras feministas buscar perceber
a riqueza nos arranjos sociais e como aquilo que parece hegemnico as vises de
mundo, os discursos so construes carregadas de historicidade.[3] Tal
proposta, segundo esta historiadora,
[...] no tenta esconder ou driblar o contedo
imaginativo de suas narrativas; ao contrrio, reivindica a
poderosa fora da imaginao para detectar o possvel, o
silenciado, os comportamentos e relaes humanas que no
obedecem aos esteretipos e padres; aponta para um
universo onde a fissura a superfcie, pois reconhece como
construdos os paradigmas de mentalidades hegemnicas
ou de vises de mundo, compartilhadas por uma maioria.
(NAVARRO-SWAIN, 2004: web)
Uma histria que no busca pelo Mesmo, ou que deliberadamente
procura ver aquilo que no foi percebido nas fontes profundamente
desestabilizadora. Nesse sentido, a histria feita pelas feministas tem apresentado
outras vises em relao a acontecimentos, instituies, arranjos sociais e
movimentos polticos que pareciam se no explicados, pelo menos conhecidos em
seus elementos chave.
Tem sido assim, por exemplo, nos estudos de Histria da Igreja,
especialmente, no que concerne ao papel das mulheres na instituio eclesistica,
nos primrdios do cristianismo. Muitos estudos tm sido feitos questionando a
insero das mulheres nos movimentos religiosos e a idia de que o sacerdcio era
vedado desde sempre s mulheres. [4]
Tais estudos, feitos por historiadoras feministas, colocam em questo
no somente as verdades sobre este passado distante, mas sobretudo as relaes
de poder hoje. Afinal, se o discurso de excluso no sculo XXI se baseia no
pressuposto de que as mulheres sempre estivaram excludas dos lugares de poder
simplesmente por serem mulheres, apontar indcios do contrrio colocar em risco
a hegemonia masculina nos nossos dias. No h como negar o carter
desestabilizador e engajado deste tipo de estudo.
Em Busca de uma Histria do Possvel
Mas quais seriam as caractersticas desta nova abordagem da
Histria? Como fazer uma Histria diferente daquela que qualificamos de
tradicional? Como romper com os resqucios positivistas?
Antes de tudo, a Histria que nos propomos a fazer aquela que
articula os sentidos presentes nos indcios do passado. Desta maneira, teremos a
possibilidade de romper com as metanarrativas sobre as relaes sociais e as
construes estveis sobre os papis e identidades de gnero de homens e
mulheres ao longo da histria.
Questionar e desconstruir estruturas que por muito tempo foram
apontadas como as hegemnicas no social, o normal das relaes humanas,
abraar a proposta de Michel Foucault de destruir as evidncias e universalidades.
(FOUCAULT, 1995: 242) Estes so os pressupostos para o que tania navarro-swain
denomina de histria do possvel. Segundo esta historiadora, a histria do
possvel aquela que busca:
[...] levantar questes e pesquisar
incansavelmente a diversidade, para escapar tirania do
unvoco, do homogneo, da montona repetio do mesmo,
que nos faz reiterar uma histria sem fim de dominao e
excluso entre feminino e masculino. (NAVARRO-SWAIN,
2006: web)
A histria do possvel aquela que desvela como foram constitudas
as naturalizaes a respeito da ao de homens e mulheres ao longo da Histria.
Esta uma das preocupaes das historiadoras feministas desde meados do sculo
XX, mas coube Navarro-Swain estruturar essa proposta de forma terica.
Se as historiadoras feministas no colocarem em evidncia a
diversidade do humano e como esse foi reduzido ao binrio hierarquizado, no ser
possvel escrever uma outra histria da relaes entre os sexos e da construo das
hierarquias e diferenas.
preciso ocupar o lugar de fala, tomar a palavra e construir uma
nova histria. Se ns mulheres, feministas, no questionarmos a
heteronormatividade, a maternidade compulsria, as representaes sobre espaos
masculinos e femininos, outros historiadores no iro fazer isso. Ou, se tomarem
para si a tarefa, talvez se produza uma outra Histria sem o carter subversivo e
contestador, pois:
Mesmo tentando despojar-se de seus preconceitos e modelos, os
cientistas de todos os campos disciplinares iluminam ou destacam o que lhes parece
justo, certo, evidente, o que lhes parece digno de importncia e de anlise. Toda
evidncia, porm, uma armadilha, na medida em que naturalizado o que se deve
questionar. (NAVARRO-SWAIN, 2000: 15)
A Histria um discurso que se fundamenta em indcios, fragmentos,
leituras do passado, mas que depende do olhar do historiador ou historiadora. No
desvelamos o passado, no somos neutros, as nossas condies de produo,
nossas vivncias, representaes sociais apontam para um lugar de fala. Estes
expem nossos pressupostos, estabelecem os limites, nossas condies de
possibilidade. Tais problematizaes orientam a composio narrativa, construindo
a Histria que fazemos.
Ao conceituar a histria do possvel, Navarro-Swain questiona que
uma:
[...] narrativa histrica se caracteriza pela
imposio de sentidos, pois distribui e opera significaes
que aprisionam a multiplicidade do humano em redes de
formas modelares e/ou essenciais. O humano tratado como
sendo um todo unvoco e tambm inequvoco: a biologia
define as competncias e os saberes, os papis e os poderes,
a expresso e a definio do sexo e da sexualidade, em
termos de normalidade e excluso. (NAVARRO-SWAIN,
2006: web)
A histria do possvel trabalha em consonncia com os ps-
modernismos, pois mais do que um projeto nico, articulado e coerente, um
campo aberto, contraditrio, em permanente ebulio, questionando as evidncias e
desconstruindo as meta-narrativas. Linda Hutcheon explicita que:
[...] o ps-modernismo um fenmeno
contraditrio, que usa e abusa, instala e depois subverte, os
prprios conceitos que desafia seja na arquitetura, na
literatura, na pintura, na escultura, no cinema, no vdeo, na
dana, na televiso, na msica, na filosofia, na teoria esttica,
na psicanlise, na lingstica ou na historiografia.
(HUTCHEON, 1991: 19)
O paradigma iluminista fundamentava-se em certezas oriundas de
uma pretensa decodificao da essncia da natureza dos seres e das coisas,
resultando em discursos tidos como verdadeiros, em axiomas sobre o real. As
teorias ps-modernas, por sua vez, no se apiam em um nico referencial, mas na
subverso de tudo o que unvoco e tido como uma verdade a priori. Como nos diz
Helosa Buarque de Hollanda:
A agenda terica ps-moderna abriga [...] um elenco de questes em
torno dos efeitos gerados pela perda da credibilidade nas metanarrativas fundadoras
e no processo de eroso e desintegrao de categorias at ento inquestionadas,
como as noes de identidade e autoria [...] privilegiando os caminhos crticos
apontados pela revalorizao da histria no exame das ideologias que estruturam as
formaes discursivas e os processos de construo das subjetividades.
(HOLLANDA, 1991: 8)
O que as discusses ps-modernas nos oferecem a possibilidade
de questionar a continuidade e universalidade dos discursos, assim como a
possibilidade de um passado apreensvel e uma Histria centrada na idia de um
sujeito coerente.
Os ps-modernismos e como no existe uma nica corrente
usamos o plural nos permitem, tambm, romper com uma organizao binria do
real, que proporcionou o apagamento das mulheres, e a naturalizao dos papis
masculinos e femininos ao longo da histria construda sobre o humano. De tal
forma que:
A noo de historicidade remete aos inumerveis perfis de formaes
sociais dispersas no tempo e no espao, cujas prticas e significaes no podem
ser seno singulares. Desta forma, quando os feminismos colocam em questo o
natural e a natureza humana, como sendo as bases imutveis do ser, revelam a
multiplicidade do social e as possibilidades infinitas de sentidos atribudos s
prticas, s culturas e aos seres. A histria mostra assim seu carter de construo,
resultado de uma operao de racionalizao e reduo do social, de apagamento
de pluralidade e diferena. A prpria noo de diferena nesse sentido construda
historicamente. (NAVARRO-SWAIN, 2000: 49)
Estamos, portanto optando pelo posicionamento crtico em relao ao
passado. Tal escolha fundamental para que possamos interpretar
adequadamente os indcios, buscando fugir de uma leitura binria pr-estabelecida
do passado que v em qualquer poca ou lugar os mesmos papis de gnero
distribudos para homens e mulheres, estes mesmos dados como sujeitos
atemporais.
Assim, fazer uma Histria do Possvel romper com as tradies,
buscando o mltiplo e a diversidade do humano, destruindo as evidncias e
expondo a historicidade dos discursos fundadores. Este foi o desafio lanado por
tania nararro swain ao defender que:
O papel d@s historiador@s, em meu entender,
no afirmar tradies, corroborar certezas, expor
evidencias. ao contrrio, destru-las para reviver o frescor
da multiplicidade, a pluralidade do real. Para encontrar uma
histria do possvel, da diversidade, de um humano que no
se conjuga apenas em sexo, sexualidade, dominao, posse,
polarizao. (NAVARRO-SWAIN, 2006: web)
Os feminismos buscam a construo de um mundo plural e
igualitrio, a Histria pode contribuir para este fim. Cabe a nossa disciplina
questionar as naturalizaes mostrando em um passado plural que os papis
exercidos por homens e mulheres foram mltiplos, histrica e socialmente
constitudos.
Tal exerccio e o dialogo com outros saberes proporciona meios de
reflexo e estimula uma ao que possibilite romper com as amarras que
inferiorizam e limitam as escolhas das mulheres, que possibilitam um controle sobre
nossos corpos e escolhas. Afinal, preciso mostrar que nem sempre foi assim. A
contribuio da Histria, uma Histria do Possvel, pode ajudar na construo de um
futuro diferente, com mais escolhas, mais liberdade e visibilidade para as mulheres.
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICA
___. 1980. O Segundo Sexo A Experincia Vivida. So Paulo:
Nova Fronteira.
___. 1997. Arqueologia do Saber. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitria.
___. 2004. Intertextualidade: perspectivas feministas e
foucaultianas. In Labrys Estudos Feministas, n. 5 (janeiro/julho)
http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys5/textos/eubr.htm. Acessado em: 12 de
outubro de 2008.
___. 2006. Os limites discursivos da histria: imposio de sentidos.
In Labrys Estudos Feministas, n. 9 (janeiro/julho).
http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys9/libre/anahita.htm. Acessado em: 06 de
outubro de 2008.
___. 1993. A Instabilidade das categorias analticas da teoria
feminist. Estudos Feministas. Florianpolis: CFH-CCE-UFSC, vol. 7, n 1: 7-32.
___. 2000. A Inveno do Corpo Feminino ou a hora e a vez do
nomadismo identitrio In ___, org. Textos de Histria. Revista de Ps-Graduao
em Histria da UNB, vol. 8, N 1/2: 47-84.
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo Fatos e Mitos. So Paulo:
Crculo do Livro.
BHABHA, Homi K. 1992. A questo do Outro: diferena,
discriminao e o discurso do colonialismo. In HOLLANDA, Helosa Buarque de
(org.). Ps-Modernismo e Poltica, 177-203. 2 ed. So Paulo: Rocco.
BUARQUE DE HOLANDA, Helosa, org. 1991. Ps-modernidade e
poltica. Rio de Janeiro: Rocco.
CERTEAU, Michel de. 2002. A Escrita da Histria. 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitria.
FLAX, Jane. 1991. Ps-moderno e relaes de gnero na teoria
feminista. In BUARQUE DE HOLANDA, Helosa, org. Ps-modernidade e poltica,
217-250. Rio de Janeiro: Rocco.
FLAX, Jane. 1991. Ps-moderno e relaes de gnero na teoria
feminista. In BUARQUE DE HOLANDA, Helosa, org. Ps-modernidade e poltica,
217-250. Rio de Janeiro: Rocco.
FOUCAULT, Michel. 1995. Microfsica do Poder. Rio de Janeiro:
Graal.
GWENDOLYN, Leick. 2003. Mesopotmia a Inveno da Cidade.
Rio de Janeiro: Imago.
HARDING, Sandra. A Role for Postcolonial Histories of Science in
Theories of Knowledge? Conceptual Shifts In ____. Is Science Multicultural?
Postcolonialism, Feminism and Epistemologies, 1-9. Bloomington-Indianapolis:
Indiana University.
HUNT, Lynn, org. 1992. A Nova Histria Cultura. Rio de Janeiro:
Martins Fonte.
HUTCHEON, Linda. 1991. A Potica do Ps-Modernismo. Rio de
Janeiro: Imago.
KUHN, Thomas S. 2005. A Estrutura das Revolues Cientficas. 9
ed. So Paulo: Perspectiva.
LE GOFF, Jacques. 2001. A Histria Nova. 4 ed. So Paulo:
Martins Fontes.
NAVARRO-SWAIN, Tnia. 1993/94 De deusa a bruxa: uma histria
de silncio. Revista Humanidades, UnB/EdunB, vol.9, n.1/.31.
NICHOLSON, Linda. 2000. Interpretando o Gnero. Estudos
Feministas. Florianpolis: CFH-CCE-UFSC, vol. 8, n 2: 9-41.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. 2002. As Formas do Silncio No
Movimento dos Sentidos. 5 ed. Campinas: Unicamp.
PERROT, Michelle. 2007. As Mulheres e os Silncios da Histria.
Bauru: EDUSC.
RAGO, Margareth. 2006. O desconcerto da mudana. Revista
Histria Viva, N 28 (fevereiro).
http://www2.uol.com.br/historiaviva/artigos/o_desconcerto_da_mudanca.html.
Acessado em: 09 de outubro de 2008.
SCOTT, Joan W. 1994. Desconstructing Equality-Versus-Difference:
or, The Uses of Poststructuralist Theory for Feminism. In HERRMAN, Anne C.,
STEWART, Abigail J. (ed.). Theorizing Feminism Parallel Trends in the
Humanities and Social Sciences, 358-371. So Francisco: Westview.
VERNANT, Jean-Pierre. 2005. As Origens do Pensamento Grego.
15 Ed. Rio de Janeiro: Difel.
Nota biogrfica
Valria Fernandes da Silva doutora em Histria pela UnB na rea
de Estudos Feministas e de Gnero. Participa do GEFEM Grupo de Estudos
Feministas da UnB e colaboradora do PEM Programa de Estudos Medievais
da UFRJ. Leciona Histria no Colgio Militar de Braslia e professora da faculdade
Teolgica Batista de Braslia.
[1] A prpria Perrot nos diz que fazer histria era um exerccio viril e
as mulheres no eram bem recebidas na ordem do discurso nem como produtoras
de conhecimento histrico, nem como objeto de estudo. (PERROT, 2005: 14)
[2] Harding discute o sucesso do modelo europeu reside na sua
capacidade de neutralizar alguns aspectos culturais enquanto refora e consagra
outros, trazendo para si uma capa de racionalidade, univocidade e neutralidade.
(HARDING, s/d: 6-7) S que este modelo no conseguiu escapar ileso s crticas
surgidas em vrios campos intelectuais.
[3] Estamos usando o conceito de discurso segundo a definio de
Joan W. Scott, segundo quem discurso [...] Um discurso no uma lngua ou um
texto, mas uma estrutura especfica de declaraes, termos, categorias e crenas
historicamente, socialmente, e institucionalmente construda. Foucault sugere que a
elaborao envolve conflito e poder, que os sentidos so localmente contestados
dentro dos "campos de fora" discursivos e que o poder de controlar um
determinado campo reside nos pedidos de conhecimento incorporado no s na
escrita, mas tambm em sanes disciplinares e das organizaes profissionais, em
instituies , e nas relaes sociais. Discurso , portanto, contido ou expresso em
organizaes e instituies, bem como em palavras; todos estes constituem textos
ou documentos passveis de serem lidos. (SCOTT, 1994: 359-340)
[4] So exemplos de estudos sobre a questo os livros: TORJESEN,
Karen Jo. 1995. When The Women Were Priests Womens leadership in the Early
Church & the Scandal of their Subordination in the Rise of Christianity. So
Francisco: Harper Collins; RAMING, Ida. 1976. A Posio de Inferioridade da
Mulher Segundo o direito Cannico Vigente. Concilium A Mulher na Igreja,
Petrpolis, Vozes, 111: 50-57, JOHNSON, Penelope. 1991. Equal in Monastic
Profession Religious Women in Medieval France. Chicago: The University of
Chicago, COON, Linda, HALDANE, Katherine J., e SOMMER, Elisabeth, ed. That
Gentle Strength Historical Perspectives on Women in Christianity. Virginia:
University Press of Virginia.
[5] Estamos usando o conceito de discurso segundo a definio de
Joan W. Scott, segundo quem discurso [...] Um discurso no uma lngua ou um
texto, mas uma estrutura especfica de declaraes, termos, categorias e crenas
historicamente, socialmente, e institucionalmente construda. Foucault sugere que a
elaborao envolve conflito e poder, que os sentidos so localmente contestados
dentro dos "campos de fora" discursivos e que o poder de controlar um
determinado campo reside nos pedidos de conhecimento incorporado no s na
escrita, mas tambm em sanes disciplinares e das organizaes profissionais, em
instituies , e nas relaes sociais. Discurso , portanto, contido ou expresso em
organizaes e instituies, bem como em palavras; todos estes constituem textos
ou documentos passveis de serem lidos. (SCOTT, 1994: 359-340)
[6] So exemplos de estudos sobre a questo os livros: TORJESEN, Karen Jo. 1995. When The Women Were Priests Womens leadership in the Early Church & the Scandal of their Subordination in the Rise of Christianity. So Francisco: Harper Collins; RAMING, Ida. 1976. A Posio de A Posio de Inferioridade da Mulher Segundo o direito Cannico Vigente. Concilium A Mulher na Igreja, Petrpolis, Vozes, 111: 50-57, JOHNSON, Penelope. 1991. Equal in Monastic Profession Religious Women in Medieval France. Chicago: The University of Chicago, COON, Linda, HALDANE, Katherine J., e SOMMER, Elisabeth, ed.