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 labrys, études féministes/ estudos feministas   juillet/ décembre 2008 -julho/dez embro 2008  História Feminista, uma história do possível  Valéria Fernandes da Silva Resumo:   Ao longo do século XX, a Historiogra fia foi sacudida por varias revoluções interna s. Novos quadros teó ricos, novos objetos, diálo go com outras disciplina s. Tudo isso en riqueceu o fazer historiog ráfico. No entanto, a ruptura com as metanarrativas e o sujeito universal masculino não foi concluída.Em nosso artigo abordaremos como as feministas contribuíram para o enriquecimento das discussões historiográficas, não somente no que concerne à inserção das mulheres nas grandes narrativas, ou da transformação das mulheres em sujeitos da História, mas também ao proporem um novo olhar sobre as relações humanas, percebendo a riqueza dos discursos para além dos arranjos binários.Tendo isso em mente, discutiremos a proposta da historiadora tania navarro-swain de fazer uma História do Possível”, que busca os indícios de outras históri as que ficaram e squecidas ou foram silenciadas pela historiogra fia tradicional. Palavras-chave:  Historiografia, Feminismos, História do Possível, História das Mulheres.  

SILVA, Valéria Fernandes Da - História Feminista, Uma História Do Possível

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história feminista

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  • labrys, tudes fministes/ estudos feministasjuillet/ dcembre 2008 -julho/dezembro 2008

    Histria Feminista, uma histria do possvel

    Valria Fernandes da Silva

    Resumo:

    Ao longo do sculo XX, a Historiografia foi sacudida por varias

    revolues internas. Novos quadros tericos, novos objetos, dilogo com outras

    disciplinas. Tudo isso enriqueceu o fazer historiogrfico. No entanto, a ruptura com

    as metanarrativas e o sujeito universal masculino no foi concluda.Em nosso artigo

    abordaremos como as feministas contriburam para o enriquecimento das

    discusses historiogrficas, no somente no que concerne insero das mulheres

    nas grandes narrativas, ou da transformao das mulheres em sujeitos da Histria,

    mas tambm ao proporem um novo olhar sobre as relaes humanas, percebendo a

    riqueza dos discursos para alm dos arranjos binrios.Tendo isso em mente,

    discutiremos a proposta da historiadora tania navarro-swain de fazer uma Histria do

    Possvel, que busca os indcios de outras histrias que ficaram esquecidas ou

    foram silenciadas pela historiografia tradicional.

    Palavras-chave: Historiografia, Feminismos, Histria do Possvel,

    Histria das Mulheres.

  • A trajetria da Histria como disciplina foi marcada por vrios

    pressupostos tericos e muitas vozes conflitantes. A hegemonia de uma ou outra

    corrente historiogrfica sempre foi pontuada por dissidncias, ainda que as rupturas

    e brechas permanecessem escondidas e ignoradas, ou fossem simplesmente

    silenciadas. Por conta disso, a idia de estabilidade e universalidade de conceitos e

    categorias permaneceu como um horizonte a ser perseguido dentro de muitas

    correntes historiogrficas. Tal viso termina por obscurecer a riqueza e a

    diversidade de nossa rea de estudos.

    Ainda que a revoluo proposta pela Escola dos Annales, nos anos

    trinta do sculo XX, tenha inaugurado uma nova forma de se fazer Histria

    valorizando as grandes anlises estruturais e o dilogo com outras disciplinas,

    alguns objetos e possibilidades tericas continuaram marginalizadas e no se

    rompeu com a idia de um sujeito universal.

    O fazer historiogrfico, fundado pelos Annales, apesar de

    revolucionrio em sua poca, reforava alguns paradigmas, como por exemplo, a

    existncia de um sujeito universal. Tal noo, que a princpio parece acolhedora e

    agregadora, no raramente se mostrava demasiado excludente, pois se remetia

    idia de um sujeito masculino, branco, heterossexual e ocidental. Deixava de fora

    todos aqueles que no se identificam com este homem, sujeito da Histria.

    Nesse sentido, interessante ler o relato da experincia da

    historiadora Michelle Perrot, no auge da Escola dos Annales, sobre a questo do

    sujeito universal. Ela nos diz:

    [...] redigi uma tese sobre os operrios em

    greve, na qual as mulheres ocupavam somente um captulo.

    Ao contrrio das rebelies para o abastecimento de vveres,

    os chamados motins por alimentos, comandadas por

  • mulheres, a greve, no sculo XIX, era um ato viril. Tal

    dissimetria chamou minha ateno, bem como a derriso com

    que as mulheres eram tratadas. Entretanto, no me detive

    muito na questo. [grifo nosso] (PERROT, 2007: 14)

    Mas no devemos nos enganar, pois o silncio, como diz Eni Orlandi,

    no um vazio sem histria. O no-dito sempre quer dizer alguma coisa na ordem

    do discurso. (ORLANDI, 2002: 23) Se cada gerao de historiadoras e historiadores

    faz suas prprias perguntas, o [...] modo como essas perguntas so formuladas

    denuncia as prprias posies ideolgicas dos autores, [...]. (GWENDOLYN, 2003:

    37) [1] Assim, boa parte da historiografia considerava os homens e as relaes entre

    eles, ou a partir deles as nicas vlidas ou as norteadoras do conjunto social.

    Um exemplo disso o livro As Origens do Pensamento Grego de

    Jean-Pierre Vernant. Nele o autor se preocupa em estabelecer as diferenas entre

    os gregos melhor seria dizer os atenienses, porque eles so o foco principal e

    o passado Micnico ou as sociedades do Oriente Prximo. Trabalhando com a idia

    de ruptura, este historiador enfatiza que na Grcia no existia lugar para o autocrata,

    para o rei com poderes limitados, pois o que prevalece a idia de simetria e

    equilbrio, o princpio de que todos os cidados so iguais. (VERNANT, 2005: 11) No

    entanto, em nenhum momento feita qualquer reflexo sobre o fato desta igualdade

    e simetria no se estender s mulheres. Os cidados, os sujeitos da histria so os

    homens e a partir deles que a reflexo feita.

    Uma Histria Feita de Silncios

    A histria, que no fala das mulheres, que ignora a sua participao

    nos grandes e pequenos acontecimentos, no neutra, mas serve para

    perpetuar papis de gnero e representaes sociais a respeito das relaes entre

    os sexos, negando-se a discutir as resistncias, a ao criativa das mulheres, e

  • como as estruturas patriarcais de poder com suas excluses e hierarquias foram

    constitudas.

    Este tipo de historiografia refora os silncios, criando [...] realidades

    ao descrever relaes humanas baseadas em pressupostos essencialistas e

    universalizantes. (NAVARRO-SWAIN, 2006: web) Navarro-Swain bem precisa ao

    concluir que se trata da naturalizao das relaes humanas, especialmente quando

    se trata das relaes entre homens e mulheres, dos espaos ocupados e dos papis

    desempenhados por eles e elas. O que presenciamos em certos textos

    historiogrficos um confisco da historicidade, ao se perceber ao longo da Histria

    os mesmos arranjos sociais, os mesmos papis de gnero. Apaga-se o mltiplo

    pois este cria a idia de que os discursos textos, fontes, instituies, smbolos

    so neutros ou quase desprovidos de historicidade.

    Outro aspecto importante o silncio. Calando-se sobre as

    mulheres, os historiadores, em sua maioria homens, estavam falando do lugar que

    desejavam que estas ocupassem em sua sociedade, um lugar de sombras, o

    espao do privado, pois todo dizer cala algum sentido [...] (ORLANDI, 2002: 105).

    Nesse sentido, importante salientar o quanto o olhar feminista possibilitou a

    percepo de outras realidades possveis. Os indcios discursivos estavam

    presentes, o que se fazia necessrio uma mudana de olhar.

    Um tempo de desconfiana

    A impossibilidade de se fazer uma histria objetiva e que

    correspondesse verdade trouxe insegurana, aquilo que Michel de Certeau chama

    de tempo da desconfiana, pois o sujeito, o historiador ou historiadora, tambm

    algum que tem um sistema de referncias histrico e influenciado por suas

    condies de produo; no neutro e seu trabalho contaminado por essa

    subjetividade. (CERTEAU, 2002: 67) Toda leitura do passado encontra-se permeada

  • por uma determinada viso de mundo, e sempre contempornea em seus

    questionamentos, suas abordagens e problematizaes.

    Neste sentido, os questionamentos das historiadoras feministas esto

    solidamente firmados na experincia social como mulheres ainda que esta mesma

    categoria possa e deva ser desconstruda e na percepo de que a Histria

    produzida por dcadas as ignorava como sujeitos em prol de um sujeito universal

    masculino que nunca contemplou as diferenas.

    Alm de desconstruir o discurso historiogrfico colocando em

    evidncia suas condies de produo, evidenciando seu carter parcial e seletivo,

    as historiadoras feministas questionam as certezas,

    A Histria nunca mais ser a mesma, a das

    certezas e dos positivismos, a das vises de mundo, e das

    contradies a serem resolvidas. A Histria hoje uma

    disciplina instigante, aberta s questes e aos paradoxos,

    perguntando, em lugar de concluir, cuja preocupao central

    no a descrio ou a compreenso de fatos ou

    comportamentos esperados. A Histria, hoje, seria fator de

    desordem do discurso, apontando a falcia das hegemonias,

    como construes interpretativas. [...] (NAVARRO-SWAIN,

    2004: web)

    Mas a eroso do paradigma centrado na noo de humano e de

    sujeito coerente, ainda no foi completamente digerida: as ansiedades em relao

    perda de coerncia e cientificidade persistem dentro da academia. Nas palavras

    da historiadora Margareth Rago, trata-se da ruptura do:

    [...] conforto das continuidades histricas, que

  • legitimam o presente, ao construir identidades fixas e

    assegurar-nos da existncia de um passado organizado,

    espera de ser desvelado pelo historiador [...] atingiu

    consideravelmente as metanarrativas ocidentais, masculinas

    e universalizantes, desafiando as hierarquias sociais e

    sexuais tradicionais. (RAGO, 2006: web)

    A dcada de 60, perodo particularmente frtil, marcado pela luta

    poltica e pela reflexo sobre questes como gnero e raa, pelo desmonte dos

    ltimos imprios coloniais e o acirramento da Guerra Fria, foi marcado pela

    emergncia das reflexes feministas, tanto dentro quanto fora da universidade, e

    pela ao poltica em prol dos direitos das mulheres.

    Linda Nicholson ressalta que essas reflexes conduzem a

    necessidade de elaborao de uma teoria feminista ou teorias que explicassem a

    opresso das mulheres e a opresso destas pelos homens. Essas reflexes

    ganharam fora no final dos anos 60 e se adensaram nas dcadas posteriores

    (NICHOLSON, 1997: 1-3 e SCOTT, 1994: 358)

    Sandra Harding, ao discutir a questo da crise de paradigmas na

    cincia,[2] explicita que as primeiras crticas contundentes a um modelo de cincia

    como discurso de verdade veio ainda nos anos 40, apontando que o incomodo

    poderia no ser generalizado, mas havia cientistas e filsofos refletindo sobre a

    questo. (HARDING, s/d: 1-9)

    Thomas Kuhn, em seu livro A Estrutura das Revolues

    Cientficas, questiona os paradigmas cientficos e a noo de progresso, que veria

    na Histria da Cincia um contnuo de avanos permeados pela racionalidade e

    coerncia. (KUHN, 2005: 19-28) Aqui, h um encontro com o pensamento de

    Foucault que defende que:

  • [...] a histria de um conceito no , de forma

    alguma a de seu refinamento progressivo, de sua

    racionalidade continuamente crescente, de seu gradiente de

    abstrao, mas de seus diversos campos de constituio e

    validade, de suas Regras sucessivas de uso, a dos meios

    tericos mltiplos em que foi realizada e concluda a sua

    elaborao. (FOUCAULT, 1997: 5)

    A Histria passa a ser percebida tambm como um enunciado, uma

    construo scio-cultural, pois a apreenso dos fenmenos da natureza depende do

    observador, do seu local de produo e enunciao.

    Para Harding, as discusses ps-colonialistas, adensadas a partir

    dos anos 50, tambm colocaram em evidncia o fato de que as concepes de

    cincia e tecnologias europias se consolidaram sobre o descrdito e a destruio

    das de outros povos. Os discursos ps-coloniais denunciaram o racismo e a viso

    de mundo moldada no Ocidente e que refora a superioridade cultural, poltica e

    cientfica branca europia ou norte americana sobre os outros povos do mundo,

    especialmente aqueles que foram colonizados. (BHABHA, 1992: 177-181)

    Ainda que os pensadores ps-colonialistas no refletissem

    diretamente sobre a condio das mulheres, ao evidenciarem que a perspectiva

    europia no poderia ser o nico veculo de representao da realidade,

    possibilitaram a ponte com os feminismos. O prprio conceito de racionalidade e

    desenvolvimento so criaes europias impostas aos outros povos, carregadas,

    inclusive de diretivas de gnero.

    Assim colocado em discusso o quanto a educao, a classe

    social, o gnero, a etnia, enfim, as condies de produo e de imaginao de

    um determinado sujeito histrico influenciam na sua produo cientfica e no seu

  • olhar crtico sobre o passado e o presente. Harding aponta o papel fundamental das

    feministas neste processo, afirmando que:

    No exame da crtica feminista cincia, devemos, portanto, refletir

    sobre tudo o que a cincia no faz, as razes das excluses, como elas conformam

    a cincia precisamente atravs das ausncias, quer sejam reconhecidas, ou no.

    (HARDING, 1993: 13)

    Neste sentido, as reflexes ps-modernas desqualificam o modelo de

    cincia herdado do sculo XIX e suas implicaes polticas, como a existncia de

    um sujeito universal (masculino, branco e heterossexual), da idia de neutralidade e

    do eurocentrismo. Segundo Jane Flax:

    [...] discursos ps-modernos so todos

    desconstrutivos, j que buscam nos distanciar de crenas

    relacionadas verdade, conhecimento, poder, o eu e a

    linguagem que so geralmente aceitas e servem de

    legitimao para a cultura ocidental contempornea, e nos

    torna cpticos em relao a tais crenas. (FLAX, 1991: 221)

    Ao expor os mecanismos de construo dos discursos, entre eles o

    cientfico, e como possibilitam a manuteno do poder e da supremacia por parte do

    homem branco ocidental, as propostas ps-modernas apontavam para novas

    prticas cientficas e polticas e a Histria no foi excluda das novas frentes de

    reflexo. A efervescncia terica e social dos anos sessenta e setenta do sculo XX

    com os movimentos de negros, feministas e a presso descolonizadora, acabou

    expondo a fragilidade da Histria Universal, que mais exclua do que inclua, e que

    ao se afirmar como neutra e universal, na verdade, supervalorizava alguns objetos e

    sujeitos. (HUNT, 1992: 9-13)

  • Repensando o papel das mulheres na Histria ou repensando a

    Histria?

    Ao longo das ltimas dcadas, com o adensamento das discusses

    tericas o fazer historiogrfico sofreu vrias modificaes, e o aporte das discusses

    feministas permitiu repensar o papel das mulheres na histria, assim como a prpria

    noo de histria.

    Ainda que Michelle Perrot tenha deixado a discusso sobre a

    participao histrica das mulheres nas lutas operrias do sculo XIX adormecida

    por algum tempo, como vimos anteriormente, outras feministas se inquietavam.

    Vrias questes estavam em pauta desde os anos 40 quando coube Simone de

    Beauvoir a tarefa de desestabilizar as estruturas da natureza dos sexos, fundada

    nas hierarquias e assimetrias, ao colocar claramente que as mulheres so

    construdas no social e so constitudas como o outro em relao ao universal que

    masculino. (BEAUVOIR, s/d) Abalar as certezas sobre as diferenas dos sexos foi

    uma das crticas mais contundentes s verdades objetivas, criadas a respeito do

    humano.

    Dentro do caldeiro dos questionamentos das geraes de cientistas

    sociais das mais diferentes disciplinas havia o litgio em relao neutralidade do

    discurso cientfico e do seu estatuto de verdade. Outra discusso que se tornava

    cada vez mais evidente era a de que no havia uma s histria, uma s perspectiva

    possvel, e que havia a necessidade de repensar a presena das mulheres na

    histria e como se deu a constituio de uma sociedade marcada pelo patriarcado,

    desconstruindo relaes que apareciam em muitos textos cientficos como naturais.

    Assim, principalmente nos anos 60, as feministas, e outros grupos,

    passam a questionar os paradigmas e axiomas cientficos estabelecidos

    especialmente a partir da dcada de 1960. Trata-se, como ressalta tania navarro-

  • swain, e um esforo intelectual e poltico que coloca em evidncia que:

    [...] a cincia seria o discurso substituto do

    dogma religioso, baseando-se, porm, no mesmo sistema de

    crenas, onde os pressupostos axiomticos substituem os

    dogmas, onde a autoridade do cientista supera a do

    sacerdote. (NAVARRO-SWAIN, 2004)

    No entanto, estas reflexes no so generalizadas, pois, ainda em

    nossos dias, quando ns, feministas, fazemos Histria, encontramos inmeras

    dificuldades. Isso, porque a Histria consolidada nas academias brasileiras ainda

    parece ancorada em uma cientificidade que refora uma viso binria do mundo e

    das relaes humanas. O carter assumidamente poltico da histria feita pelas

    feministas, ao questionar as estabilidades, as certezas, as verdades, parece conflitar

    com o fazer historiogrfico disseminado em nosso pas, ancorado em paradigmas

    que negam a neutralidade, sem contudo conseguir fugir deste pressuposto da

    cincia tradicional.

    nesse contexto que a historiadora tania navarro-swain prope a

    histria do possvel. Se o que a [...] o que a histria no diz no existiu,

    (NAVARRO-SWAIN, 2000: 13), papel das historiadoras feministas buscar perceber

    a riqueza nos arranjos sociais e como aquilo que parece hegemnico as vises de

    mundo, os discursos so construes carregadas de historicidade.[3] Tal

    proposta, segundo esta historiadora,

    [...] no tenta esconder ou driblar o contedo

    imaginativo de suas narrativas; ao contrrio, reivindica a

    poderosa fora da imaginao para detectar o possvel, o

    silenciado, os comportamentos e relaes humanas que no

    obedecem aos esteretipos e padres; aponta para um

  • universo onde a fissura a superfcie, pois reconhece como

    construdos os paradigmas de mentalidades hegemnicas

    ou de vises de mundo, compartilhadas por uma maioria.

    (NAVARRO-SWAIN, 2004: web)

    Uma histria que no busca pelo Mesmo, ou que deliberadamente

    procura ver aquilo que no foi percebido nas fontes profundamente

    desestabilizadora. Nesse sentido, a histria feita pelas feministas tem apresentado

    outras vises em relao a acontecimentos, instituies, arranjos sociais e

    movimentos polticos que pareciam se no explicados, pelo menos conhecidos em

    seus elementos chave.

    Tem sido assim, por exemplo, nos estudos de Histria da Igreja,

    especialmente, no que concerne ao papel das mulheres na instituio eclesistica,

    nos primrdios do cristianismo. Muitos estudos tm sido feitos questionando a

    insero das mulheres nos movimentos religiosos e a idia de que o sacerdcio era

    vedado desde sempre s mulheres. [4]

    Tais estudos, feitos por historiadoras feministas, colocam em questo

    no somente as verdades sobre este passado distante, mas sobretudo as relaes

    de poder hoje. Afinal, se o discurso de excluso no sculo XXI se baseia no

    pressuposto de que as mulheres sempre estivaram excludas dos lugares de poder

    simplesmente por serem mulheres, apontar indcios do contrrio colocar em risco

    a hegemonia masculina nos nossos dias. No h como negar o carter

    desestabilizador e engajado deste tipo de estudo.

    Em Busca de uma Histria do Possvel

    Mas quais seriam as caractersticas desta nova abordagem da

    Histria? Como fazer uma Histria diferente daquela que qualificamos de

  • tradicional? Como romper com os resqucios positivistas?

    Antes de tudo, a Histria que nos propomos a fazer aquela que

    articula os sentidos presentes nos indcios do passado. Desta maneira, teremos a

    possibilidade de romper com as metanarrativas sobre as relaes sociais e as

    construes estveis sobre os papis e identidades de gnero de homens e

    mulheres ao longo da histria.

    Questionar e desconstruir estruturas que por muito tempo foram

    apontadas como as hegemnicas no social, o normal das relaes humanas,

    abraar a proposta de Michel Foucault de destruir as evidncias e universalidades.

    (FOUCAULT, 1995: 242) Estes so os pressupostos para o que tania navarro-swain

    denomina de histria do possvel. Segundo esta historiadora, a histria do

    possvel aquela que busca:

    [...] levantar questes e pesquisar

    incansavelmente a diversidade, para escapar tirania do

    unvoco, do homogneo, da montona repetio do mesmo,

    que nos faz reiterar uma histria sem fim de dominao e

    excluso entre feminino e masculino. (NAVARRO-SWAIN,

    2006: web)

    A histria do possvel aquela que desvela como foram constitudas

    as naturalizaes a respeito da ao de homens e mulheres ao longo da Histria.

    Esta uma das preocupaes das historiadoras feministas desde meados do sculo

    XX, mas coube Navarro-Swain estruturar essa proposta de forma terica.

    Se as historiadoras feministas no colocarem em evidncia a

    diversidade do humano e como esse foi reduzido ao binrio hierarquizado, no ser

    possvel escrever uma outra histria da relaes entre os sexos e da construo das

  • hierarquias e diferenas.

    preciso ocupar o lugar de fala, tomar a palavra e construir uma

    nova histria. Se ns mulheres, feministas, no questionarmos a

    heteronormatividade, a maternidade compulsria, as representaes sobre espaos

    masculinos e femininos, outros historiadores no iro fazer isso. Ou, se tomarem

    para si a tarefa, talvez se produza uma outra Histria sem o carter subversivo e

    contestador, pois:

    Mesmo tentando despojar-se de seus preconceitos e modelos, os

    cientistas de todos os campos disciplinares iluminam ou destacam o que lhes parece

    justo, certo, evidente, o que lhes parece digno de importncia e de anlise. Toda

    evidncia, porm, uma armadilha, na medida em que naturalizado o que se deve

    questionar. (NAVARRO-SWAIN, 2000: 15)

    A Histria um discurso que se fundamenta em indcios, fragmentos,

    leituras do passado, mas que depende do olhar do historiador ou historiadora. No

    desvelamos o passado, no somos neutros, as nossas condies de produo,

    nossas vivncias, representaes sociais apontam para um lugar de fala. Estes

    expem nossos pressupostos, estabelecem os limites, nossas condies de

    possibilidade. Tais problematizaes orientam a composio narrativa, construindo

    a Histria que fazemos.

    Ao conceituar a histria do possvel, Navarro-Swain questiona que

    uma:

    [...] narrativa histrica se caracteriza pela

    imposio de sentidos, pois distribui e opera significaes

    que aprisionam a multiplicidade do humano em redes de

    formas modelares e/ou essenciais. O humano tratado como

  • sendo um todo unvoco e tambm inequvoco: a biologia

    define as competncias e os saberes, os papis e os poderes,

    a expresso e a definio do sexo e da sexualidade, em

    termos de normalidade e excluso. (NAVARRO-SWAIN,

    2006: web)

    A histria do possvel trabalha em consonncia com os ps-

    modernismos, pois mais do que um projeto nico, articulado e coerente, um

    campo aberto, contraditrio, em permanente ebulio, questionando as evidncias e

    desconstruindo as meta-narrativas. Linda Hutcheon explicita que:

    [...] o ps-modernismo um fenmeno

    contraditrio, que usa e abusa, instala e depois subverte, os

    prprios conceitos que desafia seja na arquitetura, na

    literatura, na pintura, na escultura, no cinema, no vdeo, na

    dana, na televiso, na msica, na filosofia, na teoria esttica,

    na psicanlise, na lingstica ou na historiografia.

    (HUTCHEON, 1991: 19)

    O paradigma iluminista fundamentava-se em certezas oriundas de

    uma pretensa decodificao da essncia da natureza dos seres e das coisas,

    resultando em discursos tidos como verdadeiros, em axiomas sobre o real. As

    teorias ps-modernas, por sua vez, no se apiam em um nico referencial, mas na

    subverso de tudo o que unvoco e tido como uma verdade a priori. Como nos diz

    Helosa Buarque de Hollanda:

    A agenda terica ps-moderna abriga [...] um elenco de questes em

    torno dos efeitos gerados pela perda da credibilidade nas metanarrativas fundadoras

    e no processo de eroso e desintegrao de categorias at ento inquestionadas,

    como as noes de identidade e autoria [...] privilegiando os caminhos crticos

  • apontados pela revalorizao da histria no exame das ideologias que estruturam as

    formaes discursivas e os processos de construo das subjetividades.

    (HOLLANDA, 1991: 8)

    O que as discusses ps-modernas nos oferecem a possibilidade

    de questionar a continuidade e universalidade dos discursos, assim como a

    possibilidade de um passado apreensvel e uma Histria centrada na idia de um

    sujeito coerente.

    Os ps-modernismos e como no existe uma nica corrente

    usamos o plural nos permitem, tambm, romper com uma organizao binria do

    real, que proporcionou o apagamento das mulheres, e a naturalizao dos papis

    masculinos e femininos ao longo da histria construda sobre o humano. De tal

    forma que:

    A noo de historicidade remete aos inumerveis perfis de formaes

    sociais dispersas no tempo e no espao, cujas prticas e significaes no podem

    ser seno singulares. Desta forma, quando os feminismos colocam em questo o

    natural e a natureza humana, como sendo as bases imutveis do ser, revelam a

    multiplicidade do social e as possibilidades infinitas de sentidos atribudos s

    prticas, s culturas e aos seres. A histria mostra assim seu carter de construo,

    resultado de uma operao de racionalizao e reduo do social, de apagamento

    de pluralidade e diferena. A prpria noo de diferena nesse sentido construda

    historicamente. (NAVARRO-SWAIN, 2000: 49)

    Estamos, portanto optando pelo posicionamento crtico em relao ao

    passado. Tal escolha fundamental para que possamos interpretar

    adequadamente os indcios, buscando fugir de uma leitura binria pr-estabelecida

    do passado que v em qualquer poca ou lugar os mesmos papis de gnero

    distribudos para homens e mulheres, estes mesmos dados como sujeitos

  • atemporais.

    Assim, fazer uma Histria do Possvel romper com as tradies,

    buscando o mltiplo e a diversidade do humano, destruindo as evidncias e

    expondo a historicidade dos discursos fundadores. Este foi o desafio lanado por

    tania nararro swain ao defender que:

    O papel d@s historiador@s, em meu entender,

    no afirmar tradies, corroborar certezas, expor

    evidencias. ao contrrio, destru-las para reviver o frescor

    da multiplicidade, a pluralidade do real. Para encontrar uma

    histria do possvel, da diversidade, de um humano que no

    se conjuga apenas em sexo, sexualidade, dominao, posse,

    polarizao. (NAVARRO-SWAIN, 2006: web)

    Os feminismos buscam a construo de um mundo plural e

    igualitrio, a Histria pode contribuir para este fim. Cabe a nossa disciplina

    questionar as naturalizaes mostrando em um passado plural que os papis

    exercidos por homens e mulheres foram mltiplos, histrica e socialmente

    constitudos.

    Tal exerccio e o dialogo com outros saberes proporciona meios de

    reflexo e estimula uma ao que possibilite romper com as amarras que

    inferiorizam e limitam as escolhas das mulheres, que possibilitam um controle sobre

    nossos corpos e escolhas. Afinal, preciso mostrar que nem sempre foi assim. A

    contribuio da Histria, uma Histria do Possvel, pode ajudar na construo de um

    futuro diferente, com mais escolhas, mais liberdade e visibilidade para as mulheres.

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  • Nota biogrfica

    Valria Fernandes da Silva doutora em Histria pela UnB na rea

    de Estudos Feministas e de Gnero. Participa do GEFEM Grupo de Estudos

    Feministas da UnB e colaboradora do PEM Programa de Estudos Medievais

    da UFRJ. Leciona Histria no Colgio Militar de Braslia e professora da faculdade

    Teolgica Batista de Braslia.

    [1] A prpria Perrot nos diz que fazer histria era um exerccio viril e

    as mulheres no eram bem recebidas na ordem do discurso nem como produtoras

    de conhecimento histrico, nem como objeto de estudo. (PERROT, 2005: 14)

    [2] Harding discute o sucesso do modelo europeu reside na sua

    capacidade de neutralizar alguns aspectos culturais enquanto refora e consagra

    outros, trazendo para si uma capa de racionalidade, univocidade e neutralidade.

    (HARDING, s/d: 6-7) S que este modelo no conseguiu escapar ileso s crticas

    surgidas em vrios campos intelectuais.

    [3] Estamos usando o conceito de discurso segundo a definio de

    Joan W. Scott, segundo quem discurso [...] Um discurso no uma lngua ou um

    texto, mas uma estrutura especfica de declaraes, termos, categorias e crenas

    historicamente, socialmente, e institucionalmente construda. Foucault sugere que a

    elaborao envolve conflito e poder, que os sentidos so localmente contestados

    dentro dos "campos de fora" discursivos e que o poder de controlar um

    determinado campo reside nos pedidos de conhecimento incorporado no s na

    escrita, mas tambm em sanes disciplinares e das organizaes profissionais, em

    instituies , e nas relaes sociais. Discurso , portanto, contido ou expresso em

    organizaes e instituies, bem como em palavras; todos estes constituem textos

    ou documentos passveis de serem lidos. (SCOTT, 1994: 359-340)

  • [4] So exemplos de estudos sobre a questo os livros: TORJESEN,

    Karen Jo. 1995. When The Women Were Priests Womens leadership in the Early

    Church & the Scandal of their Subordination in the Rise of Christianity. So

    Francisco: Harper Collins; RAMING, Ida. 1976. A Posio de Inferioridade da

    Mulher Segundo o direito Cannico Vigente. Concilium A Mulher na Igreja,

    Petrpolis, Vozes, 111: 50-57, JOHNSON, Penelope. 1991. Equal in Monastic

    Profession Religious Women in Medieval France. Chicago: The University of

    Chicago, COON, Linda, HALDANE, Katherine J., e SOMMER, Elisabeth, ed. That

    Gentle Strength Historical Perspectives on Women in Christianity. Virginia:

    University Press of Virginia.

    [5] Estamos usando o conceito de discurso segundo a definio de

    Joan W. Scott, segundo quem discurso [...] Um discurso no uma lngua ou um

    texto, mas uma estrutura especfica de declaraes, termos, categorias e crenas

    historicamente, socialmente, e institucionalmente construda. Foucault sugere que a

    elaborao envolve conflito e poder, que os sentidos so localmente contestados

    dentro dos "campos de fora" discursivos e que o poder de controlar um

    determinado campo reside nos pedidos de conhecimento incorporado no s na

    escrita, mas tambm em sanes disciplinares e das organizaes profissionais, em

    instituies , e nas relaes sociais. Discurso , portanto, contido ou expresso em

    organizaes e instituies, bem como em palavras; todos estes constituem textos

    ou documentos passveis de serem lidos. (SCOTT, 1994: 359-340)

    [6] So exemplos de estudos sobre a questo os livros: TORJESEN, Karen Jo. 1995. When The Women Were Priests Womens leadership in the Early Church & the Scandal of their Subordination in the Rise of Christianity. So Francisco: Harper Collins; RAMING, Ida. 1976. A Posio de A Posio de Inferioridade da Mulher Segundo o direito Cannico Vigente. Concilium A Mulher na Igreja, Petrpolis, Vozes, 111: 50-57, JOHNSON, Penelope. 1991. Equal in Monastic Profession Religious Women in Medieval France. Chicago: The University of Chicago, COON, Linda, HALDANE, Katherine J., e SOMMER, Elisabeth, ed.