UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL
CURSO DE GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE MÍDIA
TATIANA FERREIRA VARGAS
CRÍTICA 2.0
Tensões e convergências entre profissionais e amadores no processo de
recomendação musical
Niterói
2011
Tatiana Ferreira Vargas
CRÍTICA 2.0
Tensões e convergências entre profissionais e amadores no processo de recomendação
musical
Monografia apresentada à Universidade Federal
Fluminense como requisito parcial para obtenção do
título de Bacharel em Estudos de Mídia
Orientadora: Profª Dra. Simone Pereira de Sá
Niterói
2011
TATIANA FERREIRA VARGAS
CRÍTICA 2.0
Tensões e convergências entre profissionais e amadores no processo de
recomendação musical
Este Trabalho de Conclusão de Curso foi julgado
adequado à obtenção do título de Bacharel e aprovado
em sua forma final pelo Curso de Graduação em
Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense.
Niterói, 15 de dezembro de 2011.
______________________________________________________
Prof. Drª. Simone Pereira de Sá (Orientadora)
Universidade Federal Fluminense
______________________________________________________
Prof. Dr. Marildo Nercolini
Universidade Federal Fluminense
______________________________________________________
Prof. Ms. Ariane Holzbach
Universidade Federal Fluminense
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais e à minha avó, por me apoiarem e terem acreditado em mim, sempre.
Ao Lucas, que mesmo sem entender muito bem minha fascinação pelo Rock‘n’Roll, está
comigo em todos os shows.
À professora orientadora, Dra. Simone Pereira de Sá, por dar musicalidade à academia e
colocar fé neste trabalho.
Aos membros da banca avaliadora.
Aos críticos que colaboraram para a realização desta pesquisa: Marcelo Costa, Marcos
Bragatto, Neto Rodrigues e Tony Aiex. You guys rock!
“The point is that rock’n’roll, as I see it, is the
ultimate populist art form, democracy in
action, because it’s true: anybody can do it”
(Lester Bangs, 1982)
RESUMO
O presente trabalho procura elucidar como a disseminação dos princípios e práticas da web
2.0 impactam na crítica cultural. A internet colocou o campo musical em evidência, no
contexto em que a crise da indústria fonográfica se constituiu em questão central para se
pensar a dinâmica da música na última década. No entanto, para além da reconfiguração do
circuito musical, que reverberou nos processos de produção, distribuição e consumo, há outro
elemento neste cenário que apresenta mudanças: a crítica musical. Esta, que durante muito foi
legitimadora de cânones culturais, hoje é problematizada por enfrentar uma suposta crise, que
seria reforçada pelo advento da figura do crítico amador, que emerge como nova referência no
processo de recomendação musical.
Palavras chave: crítica musical; web 2.0; jornalismo
ABSTRACT
This paper aims at elucidating how the spread of the principles and practices of Web 2.0
impact on cultural criticism. The Internet laid the music field in evidence within the context in
which the crisis in the music industry was set up in central issue to think about the music in
the last decade. However, in addition to the reconfiguration of the musical circuit, which
reverberated in the processes of production, distribution and consumption, there is another
element in this scenario that presents changes: musical criticism. This, which was long
legitimating cultural canons, today is fraught supposed to face a crisis, which would be
reinforced by the advent of the figure of the amateur critic, which emerges as a new reference
in the recommendation of music.
Keywords: musical criticism, web 2.0, journalism
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO -------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 09
CAPÍTULO I
Contextualizando a crítica: uma perspectiva discursiva sobre a produção artística ---------------------------13
1.1 Web 2.0: a face social da evolução tecnológica---------------------------------------------------------------------20
CAPÍTULO II
Web, jornalismo e crítica: uma composição inacabada---------------------------------------------------------------24
2.1 O crítico é o inimigo? ------------------------------------------------------------------------------------------------- --28
2.2 Qual é a opinião que importa? ----------------------------------------------------------------------------------------31
CAPÍTULO III
Sobre os amadores ou da pura paixão por escrever sobre música -------------------------------------------------41
3.1 Profissionalizando o hobby --------------------------------------------------------------------------------------------45
CONSIDERAÇÕES FINAIS --------------------------------------------------------------------------------------------- -55
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ----------------------------------------------------------------------------------58
9
Introdução
Ao longo da primeira década do século XXI, presenciamos debates acalorados sobre
downloads supostamente ilegais e a criminalização do consumidor de música; a noção de
autoria colocada em xeque em tempos de mashups e remixes; as alternativas buscadas por
artistas à margem do esquema das majors para divulgar e viver de seus trabalhos, além das
estratégias dos medalhões da música para dar fôlego aos seus lançamentos, seja inovando em
clipes elaborados ou utilizando novas formas de comercialização – via aplicativos para
smartphones, por exemplo; além do financiamento de projetos artísticos e viabilização de
shows através das iniciativas de crowdfunding.
O argumento recorrente sobre este cenário é o de que as ferramentas da web 2.0 – a
segunda geração da internet comercial – permitiram aos usuários se constituírem em atores
fundamentais no processo de produção e distribuição de conteúdo. Assim, as noções de
emissor e receptor, antes organizadas no modelo de comunicação “um para muitos”, se
reconfiguram a ponto de reforçar a ideia de que no ciberespaço, os processos de
intermediação entre os pólos não são mais indispensáveis. Embora reconheça a mudança nos
papéis desempenhados por emissores e receptores, parto da perspectiva que reforça a
centralidade do mediador dentro de um sistema de recomendação. Assim, o meu objetivo
neste trabalho é discutir um tipo específico de mediação, papel este que cabe ao crítico
musical.
Historicamente, a função do crítico musical é avaliar de maneira fundamentada e
objetiva a produção artística, atuando como mediador desta com o público – em um sentido
até mesmo pedagógico, visto que o seu discurso possui legitimidade para orientar o gosto
estético e perpetuar cânones. Ademais, a crítica não é um ato isolado, pois reforça quais obras
devem ser consumidas em detrimento de outras, obedecendo portanto, uma lógica de
mercado.
Especificamente na crítica musical anterior à realidade da web 2.0, o crítico – quase
sempre jornalista por formação, em uma publicação especializada ou veículo impresso de
grande circulação – basicamente dependia das gravadoras para exercer o seu trabalho, pois
precisava aguardar o lançamento oficial de um álbum para recebê-lo e realizar sua análise.
10
Assim, os departamentos de marketing que se estruturaram nas grandes gravadoras a partir
dos anos 70 e se consolidaram nos anos 80, foram peças fundamentais na atuação desses
profissionais, pois buscavam exercer sua influência na medida do possível na publicação das
resenhas. Um exemplo dessa tentativa de persuasão se concretizava na distribuição dos
releases, os textos de apresentação de um disco enviados a todos os formadores de opinião
que recebem material promocional das gravadoras.
Com o advento da web 2.0 e a popularização de suas ferramentas, observa-se a
reconfiguração da cultura musical, como vimos, em diversos aspectos, dentre os quais a
própria crítica. Apesar dos debates referentes ao assunto que apontam para uma situação de
crise e até mesmo, para o seu desaparecimento, parto da perspectiva de que a crítica não
apenas sobrevive, mas também de que ela se complexifica, processo que ocorre a partir da
reconfiguração na atuação dos críticos. Assim, ao analisar o atual cenário em que se insere o
exercício da crítica cultural, observa-se a tensão entre a atividade profissional e a produção
amadora, realizada no âmbito de blogs e sites à margem dos jornais e revistas de grande
repercussão, os quais não precisam se submeter – a princípio – aos ditames da indústria
fonográfica e dos editores.
Pensar a crítica musical no âmbito da disseminação dos bens culturais na rede é tarefa
importante para compreender mais uma atividade que sofre os impactos das tecnologias de
comunicação. Além disso, é fundamental inseri-la no contexto maior que compreende a
circulação musical, considerando que muito já se discute sobre as consequências da
digitalização da produção artística: seus impactos no ato da criação, as novas possibilidades
em relação à divulgação e distribuição e o acesso e consumo em larga escala.
Considerando o exposto, o presente trabalho busca investigar o impacto da web 2.0 na
reconfiguração da atuação do crítico musical, levando em conta o seu papel na mediação entre
a indústria da música e o público consumidor. Para compreender o cenário que se apresenta,
parto da análise de atores que se constituem fundamentais no circuito musical: o crítico
profissional, que lida com as lógicas do jornalismo cultural e da indústria musical ao mesmo
tempo em que possui a responsabilidade de avaliar a obra artística em sua importância em
determinado contexto cultural; e os amadores, que a partir da utilização das ferramentas
11
digitais conferem novas facetas à atividade, levando à reflexão sobre a função da crítica
contemporaneamente.
No primeiro capítulo, é apresentada uma breve contextualização da crítica cultural no
Brasil, pois o formato em que a reconhecemos é tributário da trajetória do jornalismo cultural.
Faz-se importante entender essa relação, pois ela oferece subsídios para compreensão das
críticas ao atual cenário da atividade. Além disso, proponho a análise do assunto como parte
da dinâmica de circulação da música,1 especialmente no contexto digital, considerando a
abrangência do acesso às ferramentas que permitem a criação e publicação de conteúdo. Hoje
é possível uma resenha vir acompanhada do streaming do álbum analisado, por exemplo. Por
fim, contribui para a compreensão deste universo, a discussão do conceito de web 2.0 e o
quanto esta internet enquanto plataforma transforma não apenas os processos técnicos de
criação de websites, mas especialmente, todo um paradigma de construção do conhecimento
via colaboração.
No segundo capítulo, se discute o lugar do crítico profissional no momento em que a
conhecida estrutura de circulação musical se transforma radicalmente com a web 2.0. É
possível observar uma ambiguidade no exercício deste ofício, pois mesmo vinculado a uma
publicação da mídia “tradicional”, o crítico pode sair na frente desta e escrever um post em
seu próprio blog sobre o mais recente lançamento de um artista que “vazou” na rede. Mesmo
que essa atitude seja justificada pela urgência do jornalismo cultural, que respeita o timing da
imprensa de um modo geral no sentido de estar atento ao ineditismo de uma notícia, o
exercício da crítica pode ser comprometido por fatores que são consequência da dinâmica da
web.
No terceiro capítulo, é traçado o panorama que coloca luz sobre a relevância de novos
atores no referido contexto, pautado pela emergência de uma cultura que exalta a produção
amadora na rede e coloca em xeque determinados parâmetros antes fundamentais para
1 A música é apropriada de diversas formas graças às tecnologias de comunicação, o que coloca em xeque a
noção tradicional de circulação musical e seu final no ato do consumo. Vale lembrar reconfigurações que dão
novos formatos ao material musical, a exemplo dos mashups e remixes, que tiram o caráter passivo do mero
consumidor final, que pode até mesmo criar uma música a partir de outras já existentes.
12
respaldar a qualidade das obras artísticas. Formadores de opinião e gosto estético
descentralizados em blogs, sites de crítica amadores e redes sociais e não mais
necessariamente nas mídias tradicionais são novos mediadores que se utilizam das
ferramentas digitais falando para outros familiarizados com essa linguagem. Estes se
constituem em alternativa aos veículos midiáticos de grande repercussão, considerando a
referência negligenciada de determinados assuntos de interesse específico – neste caso, pode-
se falar na abordagem de certos gêneros musicais, justamente por serem considerados de
nicho e portanto, sem relevância para um público massivo, em uma espécie de “cauda longa”
da crítica.
Compreender como se dará a partir da internet a construção do gosto musical
considerando não apenas questões relativas às tecnologias digitais influenciando as práticas de
audição ou aspectos mercadológicos é tarefa desafiadora. Afinal, o processo de curadoria
ressaltado pela crítica amadora subverte a lógica naturalizada pelas mídias tradicionais,
construindo novas hierarquias na determinação do gosto estético, valendo lembrar que cultura
antes de tudo é campo de disputa pelo poder de discursar.
13
CAPÍTULO I
Contextualizando a crítica: uma perspectiva discursiva sobre a produção artística
A crítica cultural é uma instância importante para definir a relevância da produção
artística no processo de apreciação e consumo, e está diretamente relacionada à consolidação
do espaço público, fenômeno ligado ao advento da modernidade. Portanto, assim como a arte
é entendida enquanto reflexo dos contextos social, econômico e cultural, podemos concluir
que a crítica é uma atividade de cunho histórico, localizada no tempo e espaço determinados
e, portanto, assume características específicas de acordo com a organização intelectual de
cada sociedade.
Partindo dessa compreensão, e apesar dela, faz-se necessário reforçar que a crítica não
está sujeita apenas às forças externas que interferem nas produções artísticas, como no caso
do aparato articulado pela indústria cultural2. A tarefa de atribuir sentido a um bem simbólico,
considerando aspectos estéticos, técnicos, o contexto em que foi concebido e até mesmo a
história pessoal do artista, é constituída ainda por um viés subjetivo. Logo, a tensão existente
entre a opinião permeada pelas experiências culturais prévias e a realidade apresentada ao
crítico, é fundamental para compor esta atividade, como afirma Barthes:
“Pois, por um lado a linguagem que cada crítico escolhe falar não lhe desce do céu,
ela é uma das algumas linguagens que sua época lhe propõe, ela é objetivamente o
termo de um certo amadurecimento histórico do saber, das ideias, das paixões
intelectuais, ela é uma necessidade; e por outro lado essa linguagem necessária é
escolhida por todo crítico em função de uma certa organização existencial, como o
exercício de uma função intelectual que lhe pertence particularmente, exercício no
qual ele põe toda a sua ‘profundidade’, isto é, suas escolhas, seus prazeres, suas
resistências, suas obsessões”. (BARTHES, 2007, p. 163)
2 De acordo com Marcia Tosta Dias que problematiza a teoria adorniana da indústria cultural considerando-a
relevante para compreender o atual contexto sociocultural, ao contrário de estudos que a tem por obsoleta: “A
diversidade, a segmentação, a variedade, a pluralidade enunciadas pela era da mundialização, por mais que
tomem uma configuração específica neste fim de século, são características fundantes da indústria cultural e do
capitalismo global. A novidade está na radicalização de determinados processos, tais como a sofisticação da
pseudo-individuação e da estandardização, que criam micro-espaços autônomos e contudo subservientes à norma
em geral”. (DIAS, 2000, p. 49)
14
Ao limitar esse universo à dinâmica de circulação musical, observa-se a ausência de
referências ao exercício da crítica e à sua função em um contexto para além da relação com a
imprensa especializada. Ou seja, analisar o papel da crítica é basicamente refletir acerca do
fazer jornalístico, que no caso da imprensa cultural brasileira tem como marco o Caderno B,
editado pelo Jornal do Brasil3 (LIMA, 2006). A primeira edição no formato que conhecemos
chegava ao público em 15 de setembro de 1960, resultado da estratégia de reforma gráfica do
JB ocorrida entre 1956-62. É importante ressaltar que o arrojo editorial ocorre em um
contexto de efervescência cultural no país, que flertava com o moderno e buscava romper com
a tradição: a Bossa Nova, as manifestações literárias e artísticas do concretismo e até mesmo a
arquitetura, à ocasião da construção de Brasília.
O Caderno B se destacava entre os periódicos por ser o primeiro suplemento voltado
exclusivamente para as temáticas culturais, além do reconhecimento por sua inovação gráfica
– processo iniciado com a criação do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil em 1956,
idealizado pelo editor e poeta concretista Reynaldo Jardim, que “... convenceu a direção da
empresa a criar o Caderno B com a argumentação de que se ‘já existia um primeiro caderno,
de atualidades, e um de classificados, faltava alguma coisa no meio: o B, um espaço para a
cultura’”. (LIMA, 2006, p. 2). Apesar da relevância histórica, vale lembrar que as inovações
editoriais, técnicas e gráficas, enfrentaram resistências por parte de diversos setores do jornal
– dos cargos de chefia aos operários da gráfica. (DAPIEVE, 2002; LIMA, 2006)
O pioneirismo do Caderno B tornou-se referência para outros veículos, que são
tributários do caderno cultural do Jornal do Brasil: Dia D (O Dia), Caderno H (Zero Hora),
Tribuna Bis (Tribuna da Imprensa) e Caderno 2 (Estado de S. Paulo) são alguns exemplos que
acabaram por consolidar um formato de imprensa cultural único no mundo. Arthur Dapieve
(2002) aponta para a onda dos “cadernos de cultura à moda brasileira” – caracterizando-se por
serem diários e trazendo reportagens, resenhas críticas, colunas assinadas e os serviços, como
3 O blog do Jornal do Brasil disponibiliza para o leitor um breve histórico da criação do Caderno B, incluindo a
primeira capa. Disponível em http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?itemid=23614
Acesso em 27/09/2011
15
os roteiros de cinema, teatro, galerias, casas de espetáculo, constando horários, endereços,
telefones para contato –, em perspectiva com a lógica das notícias culturais em outros países,
onde esse tipo de jornalismo se restringe aos cadernos semanais ou publicações
independentes.
Apresentado um breve histórico das bases da imprensa cultural tal como a
reconhecemos hoje, e ainda na reflexão sobre a crítica atrelada ao universo jornalístico, outro
aspecto fundamental a ser discutido é o agendamento midiático, ou gatekeeping (MCCOMBS
& SHAW, 1972). Assim como o papel da crítica é frequentemente vinculado à recomendação
do que deve ser apreciado ou descartado, no jornalismo o agendamento tem a função de
selecionar os assuntos que permanecem em discussão, além de reforçar o seu grau de
importância no cotidiano em detrimento de outros debates ou fatos, relegados ao silêncio.
Schoenherr (2005) ao abordar o agendamento na editoria de música, ressalta que essa
relação é viabilizada pelo processo de mediatização da circulação musical, observado nos
âmbitos da produção, distribuição e consumo, o que resulta nas estratégias utilizadas por
artistas, empresários, produtores e gravadoras para garantir acesso aos veículos midiáticos e
por conseguinte, tornarem-se pautas relevantes tanto para jornalistas quanto para os críticos.4
Este cenário deixa claro que a crítica além de discurso, é lugar de disputas e manutenção de
interesses.
E quando o artista está fora da agenda midiática? Em tempos de reconfiguração da
circulação musical, pode-se dizer que existe um agendamento mainstream em oposição à
curadoria realizada na web, onde encontramos diversos segmentos musicais, com seus
respectivos públicos-alvo e mediadores específicos, que falam para os seus pares e são
responsáveis por estabelecer a relevância ou o obscurantismo em relação ao artista. Podemos
ter como exemplo artistas que começaram sua trajetória utilizando-se de estratégias voltadas
4 Exemplos da mediatização no setor musical que viabilizam o processo de agendamento: o polêmico “jabá”,
referente ao pagamento efetuado por gravadoras aos veículos de comunicação (rádios especialmente); o trabalho
das assessorias de imprensa, através dos releases e CDs enviados aos jornalistas; artistas que participam em
trilhas sonoras, promovendo-se a partir da divulgação dos filmes, entre outros. (SCHOENHERR, 2005)
16
para os meios digitais, como a cantora Mallu Magalhães5, que dificilmente teria espaço nos
veículos de grande repercussão, e no entanto, construiu uma base de fãs que foi importante no
processo de recomendação. Vale considerar ainda o movimento de músicos, bandas e cantores
que tornam-se fenômenos da internet, conhecidos através das indicações que geralmente
começam nas redes sociais e acabam por se tornar pauta nos blogs e sites amadores, para
surpreendentemente, tornarem-se assunto na grande mídia – mesmo que efemeramente, a
exemplo da Banda Mais Bonita da Cidade, cujo clipe “Oração” de um viral compartilhado à
exaustão na web, gerou burburinho nos veículos de grande repercussão.
Nesta breve exposição do panorama da crítica cultural em sua relação com o
jornalismo, há que se mencionar a centralidade da atuação do crítico, personagem
fundamental no estabelecimento e consolidação da atividade. Retomando o momento em que
a imprensa cultural começa a se estruturar no Brasil, especialmente a partir da criação do
Caderno B, e ao longo da década de 1960 – já marcada pelo contexto de repressão política,
cenário que dava o tom mais aprofundado e criterioso dos textos –, observa-se no teor das
matérias culturais que “escrever bem literariamente se confundia com escrever
jornalisticamente” (DAPIEVE, 2002; BARRETO, 2006). Vale lembrar que antes da
regulamentação da profissão de jornalista, ocorrida em 19696, escritores e demais intelectuais
como Graciliano Ramos, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector e Ferreira Gullar, atuaram neste
ofício, o que é um indício da vinculação imediata do crítico com a profissão de jornalista.
Na editoria de música passaram pelo B nomes que são referência como José Ramos
Tinhorão7, Joaquim Ferreira dos Santos, Tárik de Souza
8, Arthur Dapieve.
5 O processo de recomendação iniciado a partir da divulgação das músicas de Mallu Magalhães no MySpace
“ocorreu em plataformas da internet, mediante ações de ouvintes-navegadores que indicaram e recomendaram
as canções, constituindo-se nos primeiros críticos e divulgadores das composições” (LIMA, 2011, p. 5). 6 Decreto-lei nº 972, de 17 de outubro de 1969, no contexto da ditadura militar.
7 Tinhorão é reconhecido pela audácia em suas críticas sobre artistas considerados intocáveis. “Devido a sua
visão determinista e a posições radicais – às vezes até ofensivas – adquiriu diversos inimigos no meio artístico,
quando se tornou crítico musical do ‘Caderno B’, suplemento cultural do Jornal do Brasil, em 1961. [Esse
momento marca] sua fama de ‘maldito’ no cenário cultural, pois contava sua versão singular da história da
música popular brasileira, e muitas vezes, para isso, criticava os artistas de maior sucesso no país” (LAMARÃO,
p.10)
17
Considerando a trajetória da crítica no cenário cultural brasileiro, especula-se que no
atual momento vivenciamos uma crise nesta atividade, sob a justificativa de que as análises
das obras artísticas estão perdendo o caráter acurado, cedendo lugar às resenhas de cunho
meramente descritivo ou reféns do “achismo”, o que é frequentemente confundido com
opinião – situação resultante não apenas das decisões editoriais que cada vez mais limitam o
espaço destinado à crítica bem fundamentada sobre cultura. O outro aspecto que custa caro à
sobrevivência da crítica estaria relacionado à formação intelectual deste profissional, que não
deveria apenas contar com as credenciais da formação em curso superior, mas principalmente
com o conhecimento construído a partir da experiência pessoal com a forma de arte que se
propõe a analisar.
“O fato é que, hoje, contribuindo com a má fama da crítica e do crítico no senso
comum, as resenhas foram entregues a uma classe de pessoas que as estão
condenando a um papel secundário. Os críticos de ‘variedades’, sem formação
intelectual e sem capacidade de expressão complexa, confundem resenha com um
resumo aposto de um comentário ao final (...) Com isso, reduzem as obras de arte a
experiências unilaterais, restritas às sensações instintivas, e empobrecem a discussão
pública. Suas resenhas não são nem informativas, nem provocantes. A cultura, como
resultado, é ameaçada de paralisia”. (PIZA, 1996 apud SCHOENHERR, 2005, p.24)
Curiosamente, a afirmação de Piza relaciona a especulação de uma crise na crítica a
uma observação do “senso comum”, ao mesmo tempo em que problematiza a ausência de
profundidade nas resenhas. Este excerto deixa alguns questionamentos: afinal, quem clama
por uma crítica mais qualificada? Não seria um público mais específico, ou uma demanda até
mesmo dos próprios artistas?9 Apesar de se contestar o exercício da crítica contemporânea,
seja pela redução do seu espaço, da sua influência ou mesmo pelo conteúdo, a ponto de se
8 Trabalhou de 1974 a 2010 no Jornal do Brasil, onde manteve durante muitos anos a coluna "Supersônicas",
uma referência no meio musical.
9 Opinião de Daniel Piza em seu blog, no site O Estadão: “O jornalismo cultural tem perdido espaço para o
noticiário de celebridades e as críticas são cada vez menos inteligentes, com medo de qualquer coisa que soe
como discurso intelectual. E os grandes artistas não preferem assim; preferem interlocutores, mesmo que
adversos, à superficialidade e frivolidade dos tempos atuais”. Disponível em http://blogs.estadao.com.br/daniel-
piza/mais-critica-menos-celebridades/
Acesso em 27/09/2011
18
decretar o seu fim, encontramos muitas referências midiáticas desta atividade em formatos
que se adequam a públicos cada vez mais heterogêneos.
“Hoje, para uma compreensão dos possíveis papéis exercidos pela crítica não se
pode deixar de lado blogs, portais das grandes redes de comunicação e plataformas
de consumo musical. Mesmo quando praticada em outros suportes – como livros,
sites, blogs, programas de televisão e de rádio – as atividades relacionada tanto ao
jornalismo quanto a crítica permanecem em biografias, guias de consumo – as
‘paradas de sucesso’ –, reportagens, notícias sobre celebridades e a indústria da
música, além da avaliação de produtos”. (JANOTTI, NOGUEIRA, 2010, p. 3)
Portanto, a partir do panorama traçado compreende-se que o caráter histórico e de
processo do exercício da crítica permite sua adaptação às realidades socioculturais que se
estruturam, a ponto de abarcar tensões e refletir as disputas entre os agentes inseridos no
campo musical. Mesmo sob esse olhar, a finalidade da crítica permanece a mesma: atuar
como filtro de recomendação a partir dos parâmetros de qualidade subjetivos e critérios
técnicos e estéticos por parte de quem analisa, em consonância com as ações mercadológicas
de agendamento.
A partir desta reflexão, considero fundamental a inserção da crítica no contexto mais
abrangente de circulação musical, pois a relação desta atividade com as formas
contemporâneas de apropriação da música podem ajudar na apreensão das mudanças que em
um primeiro momento, são identificadas enquanto crise. Como apontam Janotti e Nogueira,
para uma compreensão do papel da música, considerando sua capacidade de refletir até
mesmo estruturas de organização social para além do aspecto material, ou seja, passando pela
construção de sentidos e identidades, é necessário considerar seu entorno comunicacional:
“Esse entorno engloba desde os artefatos que permitem a produção, gravação,
reprodução e circulação da música, até seus aspectos sociais, ou seja, além de ouvir
música, conversamos sobre predileções e desgostos musicais, afirmamos identidades
e aferimos julgamentos de valor” (JANOTTI, NOGUEIRA, 2010, p.1)
Assim, inserir a crítica no panorama das práticas musicais configuradas a partir dos
aspectos mercadológicos, tecnológicos e sociais, contribui para a compreensão da atividade
em si e em suas relações com outros âmbitos do cenário musical, especialmente no momento
19
em que encara a assimilação das ferramentas digitais e as implicações desta nova realidade.
Apesar do contexto em que blogs, redes sociais e plataformas de música online convivem – e
disputam a atenção – com a curadoria realizada pelos tradicionais veículos impressos, vale
ressaltar que não é a primeira vez, sob uma perspectiva histórica, que se registra um
movimento de reconfiguração na circulação das informações, como explica o jornalista e
crítico cultural Marcelo Coelho10
“Muito do nosso espanto diante da velocidade e da quantidade das informações se
assemelha ao que se falava no século 19 ou no começo do século 20. A proliferação
de blogs e sites é algo semelhante ao que ocorreu no século 18, com a constituição
de um espaço público muito caótico e desregulado, onde sequer a questão dos
direitos autorais, e mesmo a da própria autoria, estavam estabelecidas. Corriam
textos apócrifos e anônimos, como hoje... De algum modo isso se regula: os blogs
terminam sendo ‘empresariados’ por portais e provedores, assim como os autores de
panfletos terminaram sendo acolhidos pelo sistema das grandes casas editoras no
século 19”.
Dito isto, reforço a perspectiva de que não se trata de uma situação de crise, a exemplo
do que ocorre com a própria indústria fonográfica, que evidencia um processo de
reconfiguração. “Chegou a hora de fazer a crítica dos críticos”, como ressaltou Ivana
Bentes,11
ao analisar a polêmica iniciada com a publicação de um artigo do jornalista Álvaro
Pereira Jr.12
na Folha de S. Paulo, que questionava a estrutura dos coletivos culturais que
dinamizam o circuito musical alternativo, com apoio governamental. A reflexão de Álvaro
daria voz ao incômodo da imprensa especializada, por não ser mais a única instituição na
centralidade do processo de construção do gosto, antes restrita à chancela do crítico de
10Entrevista de Marcelo Coelho ao Observatório da Imprensa. Disponível em
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a-critica-cultural-em-debate
Acesso em 26/09/2011 11“Adeus aos críticos? Jornalismo cultural e crise dos mediadores”. Disponível em:
http://www.trezentos.blog.br/?p=6468 Acesso em 20/10/2011
12“Adeus aos indies”. Disponível em: http://sergyovitro.blogspot.com/2011/10/alvaro-pereira-junior-adeus-aos-
indies.html
20
redação. Hoje, esse crítico seria obrigado a tolerar e considerar cenas que antes seriam
qualificadas apenas como subestilos ou guetos musicais.
Lidar com novas formas de criação, apreciação e consumo no contexto em que a
própria noção de construção do conhecimento está se transformando – e a própria crítica não
deixa de ser uma dessas formas de contribuição para o conhecimento, como bem lembrou
Dapieve (2002): “ela é construção da inteligência de nosso tempo” – influencia novas
apropriações da música e revela outros atores importantes na lógica de distribuição e
curadoria cultural.
Assim, para viabilizar a análise do cenário que se apresenta com a disseminação das
mídias digitais no cotidiano da imprensa especializada e dos usuários da internet, é necessário
reconsiderar a própria noção de crítica. Esta, sistematizada enquanto “expressão, em palavras
de julgamentos sobre aspectos da arte da música”, que abordam em seu universo desde a
“discussão histórica e analítica em livros e periódicos até resenhas nos jornais diários”
(GROOVE, 1994 apud OLIVEIRA, 2011), abarca novos formatos, assimilando uma
configuração multimídia. Áudio, vídeo e texto se entrelaçam para oferecer uma nova
experiência de apropriação da música, em que a própria crítica além de ser fundamental para
orientar o consumo, é também objeto desta prática que guarda em sua lógica importantes
elementos de sociabilidade em torno da música.
1.1 – Web 2.0: a face social da evolução tecnológica
O termo web 2.0 vem sendo propagado à exaustão como sinônimo de inovação
tecnológica, a princípio por ser um contraponto à web 1.0, a primeira geração da internet
comercial, com sites construídos por programadores a partir de conhecimentos técnicos
específicos, apresentando conteúdo estático, pouco interativo, cabendo ao usuário apenas a
possibilidade da navegação não-linear, através dos hyperlinks.13
No entanto, o conceito de
13Vale mencionar que antes da disseminação da web 2.0, baseada na arquitetura da participação, o teórico da
cibercultura, Pierre Lévy, já afirmava que a leitura de sites realizada a partir da navegação nos hyperlinks
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web 2.0 vai além das suas especificações estruturais e funcionais, devendo ser entendido
como o período em que se consolida um conjunto de novas estratégias mercadológicas e
processos de comunicação mediados por computador, destacando-se o aspecto social
(PRIMO, 2007), a partir das novas formas de interação entre os sujeitos no ciberespaço,
reconfigurando o papel do usuário, que de mero consumidor de conteúdo emerge como
produtor do mesmo.
De acordo com O’Reilly (2005), o conceito de web 2.0 não se fecha em um sistema
rígido, mas sim, evoca um conjunto de princípios e práticas que podem ser verificados em
sites que apresentam alguns destes aspectos. Um desses princípios é a web como plataforma,
constituída a partir de softwares que funcionam online, acessados pelo navegador,
viabilizando funções que antes só poderiam ser conduzidas por programas instalados em um
computador, processo que diminui as exigências nas aptidões técnicas dos usuários.
(O’REILLY, 2005, AQUINO, 2006, PRIMO, 2007).
Ou seja, a partir do momento em que a usabilidade é aperfeiçoada, toma forma a
principal característica deste modelo web, a arquitetura da participação, outro aspecto chave
ressaltado por O’Reilly ao definir a segunda geração de serviços online: o usuário agrega
valor, no sentido de que contribui para o desenvolvimento da rede. Assim, quanto mais os
indivíduos usam um aplicativo, mais ele evolui conforme as apropriações realizadas, na
medida em que se percebe a necessidade de adaptação.
Essa dinâmica aponta para outro item importante observado nos sites 2.0, que é a
noção de beta perpétuo. Os aplicativos web estão disponíveis aos usuários assim como as suas
atualizações, que em constante desenvolvimento contam com a contribuição dos próprios
usuários, que por sua vez acabam atuando como testadores e até co-desenvolvedores. Assim,
as constantes alterações coletivas em busca da melhor performance possível para o sistema
configurava um contexto de alteração no papel do usuário. “Para ele toda a leitura no computador é então uma
edição e certamente seria, se qualquer usuário da web pudesse alterar os conteúdos das páginas e inserir e/ou
excluir links. Ele também acredita na fusão entre os papéis de autor e leitor pelo simples fato de que ao construir
seu próprio caminho, o leitor exerce o papel de autor ao recriar o texto. Mesmo assim o conteúdo permanece
estático, ocorrendo apenas uma permuta na ordenação do texto na medida em que o leitor percorrer os links por
rotas diferentes”. (LÉVY, 1996, apud AQUINO, 2006)
22
encontram-se em permanente construção, perspectiva que também pode ser considerada no
que diz respeito à produção e circulação de conteúdo. Nesse aspecto, podemos mencionar os
wikis e blogs, ferramentas importantes vinculadas à noção de inteligência coletiva. No caso
dos wikis
“A enciclopédia online cresce e se desenvolve a cada contribuição, o sistema
acredita nas intenções e conta com os usuários como co-desenvolvedores e por fim,
o sistema torna-se uma inteligência coletiva, já que os verbetes podem ser criados e
modificados por qualquer internauta. O hipertexto praticado na Wikipedia é
coletivo, qualquer internauta pode editar o conteúdo do hipertexto e inserir e/ou
excluir links e dessa forma não existe a limitação de apenas navegar de forma não-
linear, além de não existir um único autor do texto, que está sempre em constante
edição”. (AQUINO, 2006, p. 12)
Quanto aos blogs, embora sejam encarados apenas como ferramentas de publicação
individuais, que celebram os interesses particulares de seus donos, são relevantes por
constituírem importantes espaços de conversação, considerando a possibilidade de agregação
a partir dos assuntos de interesse específico, corroborando a teoria da cauda longa, aplicada
não apenas aos novos horizontes mercadológicos da economia e do marketing, mas também
impactando na fruição dos bens culturais.
“Em geral, as redes de trocas de arquivos oferecem mais músicas do que qualquer
loja de CD. Hoje, os ouvintes não só pararam de comprar tantos CDs quanto antes,
mas também estão perdendo o gosto pelos grandes sucessos que até então atraíam
multidões para as lojas, nos dias de lançamento. Ao se defrontarem com a
possibilidade de escolher entre uma banda de garotos ou algo novo, cada vez mais
pessoas estão optando pela exploração de novidades, e quase sempre ficam mais
satisfeitas com os resultados da busca (...) O que emerge desses dados é nada menos
que uma migração cultural dos artistas de hits para os artistas de nichos”.
(ANDERSON, 2006, p. 25)
Considerando o exposto, podemos perceber as consequências desse modelo web na
cultura musical como um todo, a partir das novas formas de apropriação do conteúdo no
ciberespaço. A partir da pulverização do gosto musical, agora não mais concentrado nos hits
(ANDERSON, 2006), vale a lógica da recomendação, hoje potencializada para além das
indicações de amigos ou críticas em publicações especializadas. Essas sugestões podem ser
23
encontradas nas redes sociais, blogs, fóruns de discussão e nos sistemas de tagging existentes
nas plataformas de música online,14
sistemas esses que constituem a base da folksonomia –
prática convergente aos ideais colaborativos da web 2.0, pois trata da organização das
informações sob a lógica dos próprios usuários, a partir da criação das tags, que identificam o
teor do conteúdo (AMARAL, 2007, AQUINO, 2007).
Portanto, a dimensão social da utilização das ferramentas digitais denota a validade do
capital cultural dos sujeitos. Esse fator de diferenciação, definido como o “... ter que se tornou
ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte da ‘pessoa’, um habitus”
(BOURDIEU, 2001, p.74-75), é fundamental no universo da música, pois a experiência
pessoal enquanto ouvinte, fã ou participante de uma determinada cena é relevante na
identificação de um usuário enquanto autoridade para discutir sobre determinados gêneros
musicais. Em poucas palavras, a lógica de recomendação é sustentada pela construção da
credibilidade e reputação dentro dos nichos de gosto musical. (AMARAL, 2007, SÁ, 2009).
Logo, a partir dessa breve contextualização acerca da consolidação das práticas da web
2.0 na organização e disseminação de conteúdo e os seus impactos na cultura musical, faz-se
importante avaliar qual a dimensão destas transformações no exercício da crítica.
14 São exemplos de plataformas online de música o Last.fm, Soundcloud, The Hype Machine, entre outras.
24
CAPÍTULO II
Web, jornalismo e crítica: uma composição inacabada
Em 2003, a jornalista e crítica cultural Ana Maria Bahiana publicou uma breve
reflexão sobre os rumos da imprensa musical. Naquele momento, ao tentar responder se
jornalismo de música dá certo no Brasil,15
o Napster já havia revolucionado a maneira de se
consumir música, não apenas no sentido material/mercadológico, mas também em suas
práticas de audição – tanto ao liberar o ouvinte do formato álbum, permitindo ao usuário ter
acesso apenas às faixas que interessam, quanto ao prescindir de um aparelho específico para
reprodução de CDs, colocando o computador conectado à rede na centralidade da fruição
cultural.
Embora seja de suma importância a compreensão dos impactos socioculturais, a
repercussão do consumo de música online teve maior amplitude na dimensão comercial, a
partir do momento em que gravadoras e artistas denunciavam as drásticas consequências para
a indústria fonográfica, devido às trocas de arquivos pelas redes P2P, através das quais não
havia remuneração. Enquanto isso, um novo cenário começava a se configurar, capitaneado
pelos artistas independentes, que sabiam lidar com a oportunidade de utilizar as ferramentas
digitais para produzir e divulgar seus trabalhos, sem os intermediários da indústria – mas, por
irônico que seja, alguns nutrindo a esperança de integrar o cast de uma major. Afinal, para
alguns segmentos, as gravadoras ainda funcionam como legitimação e negócio, mesmo que
não apresentem os lucros astronômicos de antes, o que força a busca por novas estratégias.16
15 “Jornalismo de música dá certo no Brasil?”. Disponível em: http://www.comunique-
se.com.br/Conteudo/NewsShow.asp?idnot=10187&Editoria=300&Op2=1&Op3=0&pid=1318561344&fnt=fntnl
Acesso em 28/09/2011
16 Apesar da busca por alternativas à sobrevivência no negócio da música – como os investimentos no setor
gospel – as majors ainda se utilizam das velhas práticas mercadológicas, a exemplo das aquisições. A compra da
EMI pela Universal é o mais recente indício dessas tentativas de reorganização – aquela uma das gravadoras
mais tradicionais do mundo, que tem em seu catálogo nomes renomados como Beatles e Pink Floyd, passando
por fenômenos recentes como Katy Perry e Coldplay.
25
O breve panorama apresentado formava o contexto musical em que Ana Maria Bahiana
publicou seu texto, no qual a autora enfatiza que “ouvir música e ler sobre ela são coisas
inteiramente distintas”. Esta observação é importante especialmente pelo fato de não
mencionar questões acerca da relação música-internet, a qual em uma análise imediata,
impacta apenas nas práticas de audição, enquanto a produção intelectual sobre a música em si
parecia estar imune ou alheia à rede.
Além disso, em uma espécie de desabafo, a autora reforça que o seu entusiasmo em
relação à música tem aumentado em proporção exata ao desinteresse pela crítica (BAHIANA,
online). Ou seja, a satisfação com o universo musical pode ter relação estreita com uma das
benesses atribuídas à internet: a possibilidade de travar conhecimento com artistas e gêneros
musicais que talvez nunca seriam descobertos e experimentados, não fosse o alcance de
divulgação da web. Quanto ao desinteresse pela crítica, curiosamente, apesar de se abster de
um posicionamento contundente sobre a situação da imprensa musical, ao afirmar que o seu
texto é resultado apenas de uma “mutação inteiramente pessoal”, Ana Maria adianta o
questionamento acerca da atividade do crítico musical - mesmo quando não fazia referência
ao universo da internet e aos seus desdobramentos editoriais, e muito menos à proliferação de
conteúdo amador.
Não é de hoje que se discute o papel do crítico e a influência deste ofício na circulação
da música, sendo os argumentos mais fortes aqueles relacionados à sua atuação como simples
vetor de propaganda, onde se verifica apenas “um ventríloquo a reproduzir a voz do mercado,
dos grandes conglomerados de mídia e entretenimento” (SCHOENHERR, 2005, p.32). Há
ainda os debates que ganham enfoque ético17
e de importância histórica, pois toda a produção
intelectual sobre música trata-se de fonte documental para compreensão da dimensão
sociocultural em determinados contextos.
No entanto, a discussão ainda é incipiente, mesmo quando consideramos as questões
introduzidas com os novos usos e práticas relacionadas à internet, que reverberam na
contestação à legitimidade de certos atores sociais no processo de recomendação cultural,
17 A exemplo do artigo “Quando uma amizade pode interferir num trabalho”. Disponível em:
http://screamyell.com.br/site/2011/02/14/o-jornalismo-e-a-musica-pop/ Acesso em 03/10/2011
26
caso da imprensa especializada. É cada vez mais recorrente, especialmente na web, matérias
acuradas sobre artes em geral cederem espaço ao que se convencionou chamar “jornalismo de
entretenimento”18
, colocando a crítica no centro de questionamentos sobre a sua relevância,
principalmente em seu formato jornalístico tradicional.
“De uma crítica acadêmica, especializada e que, por muito tempo, criou e celebrou
cânones, a uma crítica mais interessada e conectada com as mais diversas
vanguardas artísticas em diferentes áreas de produção cultural, parece que aquela
que, a duras penas, ainda permanece e se sustenta no espaço público tradicional é a
crítica jornalística, mesmo que com espaço cada vez mais reduzido e que venha,
cada vez mais, assemelhando-se a resenhas, enfocando na descrição da obra,
mantendo uma suposta objetividade, com poucas considerações contextuais sobre a
produção analisada e pouca tomada de posição. No caso da crítica musical, isso é
ainda mais gritante. É um tipo de crítica que acontece em ambientes midiáticos,
apresentando uma linguagem mais descritiva, semelhante a dos jornais, com sua
suposta objetividade” (NERCOLINI, WALTENBERG, 2010, p. 2)
Conforme apresentado no capítulo anterior, é recorrente o isolamento da crítica em
relação aos demais aspectos da circulação musical. Por outro lado, a atividade se consolida
enquanto elemento da imprensa musical, como podemos apreender a partir da definição
proposta por Shuker.
“Especificamente, o termo imprensa musical refere-se a publicações especializadas:
revistas que cobrem amplamente a área musical; jornais dedicados aos negócios
relacionados à atividade musical; publicações semanais ou mensais voltadas para a
música popular ou gêneros específicos” (SHUKER, 1999, p. 167)
Assim, pode-se dizer que o exercício da crítica tal como a reconhecemos é intrínseco
ao jornalismo. Portanto, faz-se necessário contextualizar a atividade no âmbito da web,
juntamente com as mudanças que ocorrem no cerne do próprio jornalismo, que para além das
alterações de formato, suporte e conteúdo – que configuram o webjornalismo – apresentam
18 Exemplos de jornalismo de entretenimento são encontrados em sites como Ego, Quem, Contigo!, além dos
tradicionais portais de notícias, que incluem em suas seções de cultura notas relacionadas a aspectos que vão
além da produção artística de músicos, atores e demais personalidades.
27
novas possibilidades, a exemplo do espaço aberto pelos grandes veículos de comunicação
online para a contribuição do usuário na dinâmica da produção de notícias.
Em termos gerais, observa-se em um primeiro momento a transposição do modelo
impresso para a internet, onde “as notícias seguem o padrão de texto e diagramação do jornal
tradicional, agregando poucos recursos para interação com o leitor”. (PRIMO, TRÄSEL,
2006). A demarcação entre redação/edição de notícias e usuários era bem definida.
Posteriormente, abre-se a possibilidade de contribuição dos leitores/usuários nos grandes
portais de notícias, através do envio de vídeos e fotos de acontecimentos locais em tempo real,
os quais dependendo da relevância poderiam até constituir pautas para apuração detalhada.
A disseminação das ferramentas 2.0 e a facilidade de usá-las complexificou o
fenômeno do “jornalismo cidadão”, que agora não necessariamente estaria vinculado à
contribuição com os grandes portais de notícias. O usuário que não se sentia contemplado
com informações de sua localidade, por exemplo, poderia atuar nessa lacuna deixada pela
grande mídia. Sendo assim, o papel principal do webjornalismo participativo é cobrir o vácuo
deixado pelos grupos midiáticos tradicionais, a exemplo do jornal online sul coreano
OhMyNews19
, precursor mundial na produção de conteúdo jornalístico amador.
O site entrou no ar em 22 de fevereiro de 2000, com um slogan que não poderia ser
mais adequado: “Todo cidadão é um repórter”. (BRAMBILLA, 2005; SPYER, 2007). A
repercussão dessa maneira de informar viabilizou a ideia de jornalismo open source, em
referência às premissas caras aos grupos adeptos do software livre, um exemplo evidente da
disseminação dos valores da web 2.0 no universo jornalístico.
“(...) liberdade para executar o programa para quaisquer propósitos, para estudar seu
funcionamento, adaptando-o a necessidades particulares (e para isso o acesso ao
código-fonte é fundamental), para distribuir cópias de modo que possa auxiliar
outros interessados e também para aperfeiçoar o programa, divulgando seus
avanços para que toda a comunidade se beneficie. Aplicando tais premissas ao
jornalismo, entende-se que a notícia, no modelo open source, é livre para ser
apropriada, lida, distribuída e referenciada para qualquer propósito; ser aperfeiçoada
ou comentada de acordo com visões particulares que possam enriquecer os relatos (e
para isso o acesso a ferramentas de publicação é fundamental) ser produzida de
19 O êxito do projeto originou a versão internacional em inglês.
Disponível em: http://international.ohmynews.com/ Acesso em 31/10/2011
28
modo irrestrito por diferentes pessoas, com diferentes objetivos, de modo que
possa auxiliar a compreensão de um fato pela sociedade” (BRAMBILLA, 2005, p.
2)
Contextualizar os impactos da web na atividade jornalística contribui para a análise da
imprensa especializada no momento em que se discute a suposta crise no âmbito da crítica
musical, considerando principalmente as mudanças introduzidas pelas mídias digitais. Além
disso, as disputas e tensões que envolvem a legitimidade da atuação do crítico são reforçadas
por debates que problematizam a necessidade da formação em jornalismo – discussão que se
complexifica no campo das tomadas de posição acerca da obrigatoriedade do diploma,
sobretudo em tempos de disseminação de sites e blogs que oferecem conteúdos bem
redigidos, com espaço aberto ao debate e o mais relevante, pautas que dificilmente
encontrariam espaço nos portais de notícias e nos jornais de grande circulação.
2.1 – O crítico é o inimigo?
Lester Bangs, lendário crítico de rock, publicou em 1974 uma espécie de tutorial
ensinando o que é necessário para atuar no ramo.20
Naquele momento, seu texto ácido
revelava os bastidores da relação deste profissional com o mercado fonográfico: do envio de
discos grátis, passando pelas festas oferecidas à imprensa e convites para shows, eventos e
convenções de gravadoras com passagens e estadia pagos. O próximo passo, a partir do
momento em que a rede de contatos estava constituída, seria travar relações diretamente com
os próprios artistas, a ponto de estar “brindando com as Estrelas. Nos bastidores dos shows,
bebendo vinho nos camarins, trocando uma ideia com os famosos, os talentosos, os ricos e os
20 “How to be a Rock Critic & Here’s How”, publicado originalmente no número 15 da Shaking Street Gazette,
em 10/10/1974 (“Como ser um crítico de Rock & Aqui está como”). Versão livremente traduzida por Silvio
Demétrio.
Disponível em: http://www.negodito.com/revive-lester-bangs-como-ser-um-critico-de-rock/ Acesso em:
08/11/2011
29
bonitos” (BANGS, online). Tudo isso compunha o glamouroso universo do backstage da
música, como o próprio Bangs definiu como sendo a paisagem cor-de-rosa da atividade.
Seguindo a máxima “seja honesto e impiedoso”, Bangs vocifera em seu melhor estilo
que poderia ser bem sucedido nesse esquema para se aproveitar de todas as vantagens
oferecidas, com a condição de não escrever resenhas negativas sobre certos artistas, por
exemplo. Mas, o ponto alto de seu texto é quando se refere à matéria prima de todo crítico: a
habilidade com as palavras, especialmente no sentido de influenciar o público, visto que a
finalidade primeira de seu trabalho é fazer com que as pessoas apreciem o que é recomendado
– o que a princípio, seria um impulso até honesto, por ser natural.
Para Bangs, o problema é que os críticos de rock ao compartilharem certas práticas – a
exemplo de escrever sobre bandas obscuras “que absolutamente ninguém no mundo a não ser
você e outras duas pessoas conheçam (o manager do grupo e a mãe de algum componente)”,
insistindo em seu talento até que venha o reconhecimento e a consequente aclamação por ter
sido o primeiro a apostar em algo genial – estariam deixando de escrever sobre música para
simplesmente falar de si mesmos, através de textos pomposos que não levariam a discussão a
lugar nenhum.
Esses vícios estariam chegando a tal ponto em que seria possível fazer resenhas a
partir de uma fórmula pré-determinada, esta encontrada em todas as publicações
especializadas, denotando portanto, que a crítica prescindiria do talento para escrever.
“De qualquer maneira, todo tipo de palavra que você vai precisar já foi escrita antes
mesmo, estão nas páginas amareladas das edições de Shakin’ Street, Rolling Stone,
Creem e todas as demais; então é só sentar e ler e reler aquelas coisas todas, todos os
dias, e logo você terá memorizado parágrafos inteiros de críticas de discos antigos, o
que não é somente uma boa maneira de impressionar as pessoas em festas e as
garotas que você está tentando conquistar com sua erudição, mas também permite
que você possa plagiar o tanto que quiser. E não se preocupe em ser pego, porque
ninguém nesse negócio tem alguma memória, além do mais, todos são também
plagiadores, tirando que todas as críticas de discos dizem também a mesma coisa.
Eu aprendi a escrevê-las na DownBeat, e é a mesma coisa na Rolling Stone; é a
mesma coisa em qualquer outra que for. Apenas manobre e arranje tudo num outro
contexto. Pegue um clichê e grampeie em outro, e se você ficar cansado de pensar
sobre como é ser um crítico de rock, lembre-se de William Burroughs e o método
Cut-up e considere tudo como sendo um tipo de invenção vanguardista. Eu faço isso
o tempo todo”. (BANGS, Online)
30
A análise contundente de Lester Bangs sobre o universo da crítica musical,
especialmente em seu vínculo inconveniente com a indústria fonográfica, reafirma a ideia de
que esta atividade carrega uma conotação ambígua, como bem verificou Schoenherr (2005),
ao apontar que até o próprio senso comum relaciona o ato de criticar ao de “falar mal”
“No dicionário, se por um lado a expressão crítica está ligada à exame e/ou
julgamento de obras, comentário, apreciação teórica ou estética, discernimento,
critério, discussão dos fatos históricos, censura, condenação, o ato de criticar já faz
referência ao ‘dizer mal de’. A expressão ‘Crítico’ por sua vez, além de significar
crise, ou aquele que tece julgamentos, aparece também como associada à grave,
perigoso, embaraçoso, difícil.” (SCHOENHERR, 2005, p.122)
Por outro lado, o autor sugere que recuperar a etimologia do termo “crítica” nos
permite resgatar o sentido que realmente interessa. Sua origem está na palavra grega krinein,
que significa “quebrar, separar”, ou seja, aproximando-nos da ideia de analisar uma obra sob
uma ótica acurada, cuidadosa. Essa palavra também está na origem do termo “crise” e
relacionada ao verbo grego krino, que significa escolher. Ou seja, crise, crítica e critério
compartilham a mesma etimologia, o que nos leva à razão primeira do trabalho do crítico:
pensar a obra de arte a partir de determinados juízos de valor, convidando ao debate,
questionando-a para além da dimensão do gosto pessoal. (ibidem, p.122).
Assim, ao considerar as premissas que fundamentam a atuação do crítico, como
avaliar o lugar deste ofício contemporaneamente? Ainda é importante para o campo musical,
o discurso legitimado – por estruturas intelectuais e até mesmo corporativas – , responsável
por selecionar aquilo que deve ser valorizado, consumido ou ao menos colocado em pauta
para discussão? Certamente, em tempos de excesso informacional, saber identificar o
conteúdo relevante acaba por se constituir enquanto valor, o que se reflete em capital social
para estes sujeitos. Ou seja, mesmo com a contestação do modelo tradicional de crítica
cultural, o fato é que os agentes autorizados ainda são importantes no processo de circulação
musical.
Portanto, o que está em jogo não é o fim da crítica, pelo contrário. Podemos até
mesmo falar em recriação (NERCOLINI, WALTENBERG, 2010), sob uma perspectiva que
transcende a tão discutida produção de conteúdo por amadores, cenário abordado no capítulo
31
seguinte. O presente contexto deve ser pensado não apenas sob a ótica da tomada de espaço
por parte dos usuários comuns, que passam a se tornar referências dentro do que se propõem a
abordar em seus blogs, sites e perfis em redes sociais. É fundamental entender como aqueles
que eram as únicas autoridades reconhecidas em seu campo de atuação, passam a lidar com a
nova realidade imposta pela internet no universo musical.
2.2 – Qual é a opinião que importa?
“Eles são uma bússola no oceano pop. Não é o poder de outrora, mas ainda é uma
tremenda responsabilidade”. A observação de Suzana Singer, ombudsman da Folha de S.
Paulo, ao fazer o balanço da cobertura do Rock in Rio 2011,21
define claramente o papel do
crítico musical na imprensa especializada atualmente. Mesmo sob a especulação de crise, a
inserção deste ator no cenário musical ainda é relevante, especialmente por conta do motivo
ao qual é atribuído o esvaziamento de sua importância: o advento da internet. Marcos
Bragatto, editor do site Rock em Geral22
e colaborador do site UOL-Música e da versão
brasileira da Revista Billboard, ressalta o lugar da crítica musical em tempos de música
digital.
“Nunca a crítica foi tão importante. Com tanta coisa, tanta informação circulando, o
que mais precisamos é de filtros. Gente que diga: isso é legal, e isso é ruim. Porque
todos têm opinião sobre tudo, mas qual é a opinião que importa? Desde sempre foi
assim, desde quando eu lia as resenhas nas revistas e ‘seguia’ orientações deste
crítico e ‘repudiava’ as de outro. Hoje, com a oferta exagerada de tudo, é preciso
mais do que nunca desses filtros. Mas ser crítico não é para qualquer um, não. É
mais que ser jornalista, saber escrever e achar que tem opinião. Tem que conhecer o
21 “It’s only rock’n’roll (but I like it)”, publicada na Folha de S. Paulo, São Paulo (SP), 2/10/11
Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_suzana_singer_ed662 Acesso em
04/10/2011 22
http://www.rockemgeral.com.br/
32
objeto da crítica com o mínimo de profundidade e contextualização. Infelizmente,
não é o que acontece. O sujeito recém formado chega na redação, é fã de tal
subgênero da música e colocam discos desse segmento para ele resenhar. Tá errado.
O crítico só poderia começar a exercer esse ofício depois de ralar muito em várias
outras funções na imprensa”.
Verificamos no argumento de Bragatto a legitimidade concedida à experiência no
jornalismo para se exercer de maneira satisfatória a crítica, embora ele também afirme que o
ideal seria não acumular essas funções, ao ressaltar que “a figura do crítico, que deveria ser só
o crítico, infelizmente não existe mais. O crítico é o repórter, é quem faz e edita matérias e até
fotografa”. Em tempos de internet, ser esse profissional multitarefas é praticamente uma
obrigação, principalmente quando consideramos o timing do jornalismo cultural, que preza
pela cobertura de eventos praticamente em tempo real devido ao valor dado ao ineditismo de
uma matéria.
Nesse sentido é importante reforçar que o debate acerca do papel da crítica musical
contemporânea em muitos casos vem sendo realizada sob uma perspectiva equivocada,
quando consideramos a dimensão nostálgica, tendo em vista o momento pré-Internet, o que
inevitavelmente gera comparações entre o conteúdo das publicações de música tradicionais e
as versões digitais. Portanto, faz-se importante considerar como os críticos se adaptam à
internet ao exercer a atividade, pois muitos conciliam a colaboração nas mídias tradicionais
com seus próprios espaços online.
Assim, a primeira questão que podemos levantar é justamente a constituição da crítica
nessas diferentes mídias. Retomando McLuhan e o argumento de que “o meio é a mensagem”
(MCLUHAN, 1964), vemos que o autor defende a ideia de que este meio, suporte ou
tecnologia ao viabilizar a comunicação, é fundamental para constituir o teor da mensagem. Ao
pensar esse sistema na relação com a música, percebemos que a internet alterou fortemente a
lógica de recomendação baseada na crítica. Marcelo Costa, editor do site de música Scream &
33
Yell23
e integrante da equipe de coordenação da primeira página do portal iG24
, avalia as
diferenças fundamentais entre os suportes na recepção da crítica pelo leitor/ouvinte.
“São duas mídias completamente diferentes. Jornal é diário (revistas são semanais,
quinzenais, mensais), internet é segundo a segundo. No entanto, o formato como se
empacota a notícia pode ser diferente, mas a notícia é a mesma. A vantagem da
internet é que ela possibilita agregar outras mídias. É possível falar de um disco e,
no mesmo texto, incluir as músicas para o leitor ler e ouvir - algo impossível no
impresso. No entanto, o impresso (assim como a televisão) ainda tem uma força
imensa balizada no costume das pessoas. Se está no jornal, se está na TV, é verdade
(algo, claro, bastante duvidoso, mas real). A internet, até pela quantidade de hoax,
ainda não é tão levada à sério pelo usuário quanto deveria. No entanto, ela ainda
permite cobertura em tempo real, críticas rápidas e agilidade na informação, material
que se for conduzido por alguém de talento pode render muito mais do que o
publicado em impresso (até pela limitação de espaço)”.
Por outro lado, Bragatto considera que não há muita diferença na atuação do crítico
em cada mídia, tratando-se apenas de uma questão de formato, em que determinados aspectos
se reconfiguraram para se adaptar a passagem do impresso para o digital.
“Acho que é tudo a mesma coisa, muda só o formato. No lugar dos boxes da revista,
os links do site, só para dar um exemplo. A questão na internet é saber se quem
publicou a informação tem credibilidade, porque na web todo mundo pode falar,
mas poucos sabem o que dizer. Na verdade, na mídia impressa também era assim,
sempre houve os críticos preferidos e os odiados do leitor. O suporte faz diferença,
por exemplo, na hora de publicar uma crítica. Em vez de só escrever sobre o disco, é
possível colocar o disco para o leitor ouvir junto”.
No entanto, ambos argumentos convergem sobre a importância da legitimidade deste
ator, que se destaca ao oferecer conteúdo relevante sob a avalanche de informações que cresce
exponencialmente na web.
Além do trabalho do crítico em si, as práticas de escuta que podiam ser influenciadas
pelas resenhas também se transformam. Basta remetermos à dinâmica musical anterior às
23 http://screamyell.com.br/
24 http://www.ig.com.br/
34
mídias digitais, em que o crítico tinha o acesso ao álbum antes de seu lançamento oficial, e
publicava suas impressões em uma revista ou jornal, criando uma expectativa ao
leitor/ouvinte, que precisava cumprir ainda todo um rito que compreendia desde aguardar o
lançamento – especialmente em casos de discos importados – até a sua aquisição, que
abarcava ainda a apreciação da arte gráfica e do encarte com as letras. Hoje, o crítico
“compete” com os usuários ao noticiar um lançamento – ou vazamento, quando o álbum cai
na web antes de sair oficialmente – e dependendo da expectativa em torno da obra, a crítica
acaba sendo realizada a partir de uma versão que ainda nem está finalizada, com qualidade de
áudio inferior ou sem encarte contendo informações sobre a produção do disco. Marcelo
Costa argumenta que
“Um disco é uma obra de arte fechada. Pensando assim, capa e encarte fazem parte
do pacote. Como alguém poderia pensar em resenhar ‘Sargent Peppers’ [Sgt.
Pepper’s Lonely Hearts Club Band, álbum emblemático dos Beatles, lançado em
1967, considerado divisor de águas na música pop] sem aquela capa? Ainda assim,
estamos falando de música, certo. A ficha técnica é algo extremamente importante
para saber quem fez o que dentro daquele produto de arte - e como isso influencia o
resultado final. Mas, na música pop principalmente, é tudo tão resumido no contexto
de produção que muitas vezes mesmo a ficha técnica é dispensável. Lógico que a
chance de alguém cometer um equívoco é enorme. Mas isso diz mais sobre quem lê
do que quem escreve”.
Para ilustrar esta nova dinâmica, vale apresentar o caso do lançamento do álbum
Angles (2011), da banda norte-americana The Strokes. Havia um grande burburinho em torno
da obra, especialmente pelo fato da banda estar em um hiato de cinco anos desde o último
trabalho, First Impressions of Earth (2006). É interessante observar que a partir da divulgação
da data oficial de lançamento do disco, o que ocorreu em janeiro, até sua saída no mercado em
março, a imprensa – não somente a especializada em música – veiculava desde matérias de
teor especulativo sobre o grupo, que iam de rumores sobre desentendimentos internos até
informações sobre o álbum em questão, como a possível arte da capa, passando pelas
informações estrategicamente liberadas sob a lógica do marketing. (Figura 1)
35
Figura 1 – Grandes portais de notícias circulam notas sobre o álbum
Fonte:http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2011/01/strokes-divulga-nome-das-musicas-do-novo-
album.html
Nesse sentido, é importante observar que a internet viabiliza ao artista a possibilidade
de ser ativo no processo de agendamento. Há vários exemplos no mundo do entretenimento de
artistas que se utilizam das redes sociais para anunciar um novo single ou clipe, alimentando a
dinâmica de notícias na imprensa especializada. Raquel Recuero (2009) observa o papel dos
sites de redes sociais em uma dimensão que vai além do tradicional gatekeeping. Este, como
vimos anteriormente, relaciona-se à influência do jornalismo ao decidir e disseminar o que é
considerado relevante para a sociedade na perspectiva dos sujeitos que atuam nas redações.
No entanto, a partir do momento em que as redes sociais se constituem em canais importantes
de circulação de notícias, toma forma a dinâmica de gatewatching que se adequa ao campo
musical, por se tratar de uma dimensão de informações mais específica.
O gatewatching consiste na seleção do que é publicado nos veículos tradicionais, com
a finalidade de identificar notícias relevantes assim que são veiculadas, filtro este realizado
pelo próprio usuário, que circula essa informação em sua rede de contatos. Recuero
argumenta que essa forma de divulgar conteúdo “é mais adequada ao trabalho de filtragem
36
realizado pelas redes sociais, muitas vezes especializado, focado em informações que estão
fora do mainstream informacional”. (RECUERO, 2009, p. 11)
Assim, aproveitando o potencial da internet em termos de divulgação de notícias, o
vocalista da banda, Julian Casablancas, postou em seu perfil no Twitter dois meses antes da
data prevista para o lançamento do álbum, uma imagem que seria a da capa do novo disco do
Strokes. Tratava-se de uma brincadeira de Julian, que no entanto, obteve uma repercussão
importante na preparação dos fãs e principalmente, da imprensa especializada para o que seria
um dos grandes lançamentos do ano. (Figura 2)
Figura 2 – Brincadeira com fundo de marketing divulga disco
Fonte:http://virgula.uol.com.br/ver/noticia/musica/2011/01/10/266828-vocalista-do-strokes-divulga-
imagem-fofa-que-pode-ser-capa-do-novo-album
Quase um mês depois, a banda disponibiliza para download em seu site oficial o
primeiro single, Under cover of darkness, como parte da estratégia de marketing da
gravadora. Dois dias depois, o próprio Julian retorna ao Twitter anunciando a verdadeira capa
de Angles, certamente ainda dentro da estratégia de divulgação do disco – a linha entre
espontaneidade e marketing quando se considera artistas e redes sociais é cada vez mais
tênue. Nesse tempo, críticos começam a especular como soaria o retorno da banda,
37
considerando inclusive o aspecto estético da capa, que seria um indício da aproximação do
grupo com uma sonoridade de elementos eletrônicos e menos “roqueira”.
Em março, a contagem regressiva para o lançamento do álbum era iniciada com a
divulgação do segundo single, You’re so right, seguida do clipe de Under cover of darkness,o
primeiro single. Até que uma semana antes da data oficial, o álbum vaza e a notícia circula
nas redes sociais, junto com o link para download. Curiosamente, o site da banda mostrava
um marcador que fazia a contagem regressiva para o lançamento oficial, o que acabou se
tornando uma ironia nas notícias veiculadas sobre o vazamento do disco. “No site oficial da
banda a contagem regressiva ainda faz rolar dias, horas, minutos e segundos, mas para os fãs a
espera acabou”25
. (Figura 3)
Figura 3 – Os fãs/usuários repercutem o vazamento do álbum na web
Fonte: http://www.twitter.com/
Em relação a imprensa especializada, a cobertura do assunto variou da simples
menção ao fato até a publicação de resenhas. (Figuras 4 e 5). Há consciência de que uma
análise realizada sob a pressão do ineditismo de uma matéria pode sofrer influência dos
fatores mencionados anteriormente, relacionados à qualidade do material que cai na rede.
25 “Previsto para ser lançado no dia 22, 'Angles', o quarto disco dos novaiorquinos Strokes, cinco anos após o
último, cai na rede” Disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/previsto-para-ser-lancado-no-dia-22-angles-
quarto-disco-dos-novaiorquinos-strokes-cinco-anos-apos-ultimo-cai-na-rede-2812045#ixzz1elsISFWr
38
Marcos Bragatto afirma que é necessária ao leitor/ouvinte a compreensão de que equívocos
podem ocorrer justamente por conta dessa urgência na veiculação das notícias online.
“Por exemplo, quando um disco vaza, num dia de tarde, o editor, a título de se
antecipar, já manda o crítico baixar ilegalmente, ouvir e escrever antes do
fechamento do jornal, de noitinha, para publicar já na edição do dia seguinte. A
resenha é publicada, mas o leitor precisa saber que aquele disco pode ter sido
baixado numa qualidade ruim, escutado num computador, naquelas caixinhas
terríveis, apenas uma ou duas vezes, quando muito. Ou seja, não se pode confiar
nessa resenha, mas também não é para ignorá-la; é preciso ter a informação sobre
todo o processo. Quantas vezes eu publiquei resenhas em revistas, ouvindo o disco
N vezes e depois mudei de opinião? Imagina ouvindo uma vezinha só e em
condições precárias”.
A partir do exemplo apresentado temos subsídios para entender a razão das críticas
realizadas à imprensa musical, considerando que boa parte desse jornalismo está focado na
produção de notícias e alheio à análise.
Figura 4 - Grandes portais veiculam notícia do vazamento
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/888175-novo-disco-dos-strokes-vaza-na-internet.shtml
39
Figura 5 – Além da notícia: crítica a partir do material que caiu na rede
Fonte:http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversaoearte/2011/03/17/interna_diversao_arte,243045/
strokes-recomeca-com-angles-elogiado-pela-critica-e-mal-aceito-por-fas.shtml
No entanto, os mesmos jornalistas que estão sob essa pressão, fazem questão de
ressaltar a diferença entre crítica e notícia. Marcelo Costa deixa claro que a crítica se alimenta
do hard news, mas tem seu próprio tempo. “Escrever um parágrafo sobre um disco não é a
mesma coisa que tentar entender sua posição no tempo / espaço - que deveria ser a intenção
da crítica. O que esse disco diz sobre a sociedade? É bom não confundir comentário com
crítica”.
E quanto aos amadores? Como esses profissionais encaram o avanço destes atores
enquanto relevantes na constituição do gosto musical? Ambos entrevistados afirmam que é
positiva a oportunidade dada pela web aos usuários de discursar sobre assuntos de interesse,
difundir a opinião e incitar o debate. Por outro lado, eles deixam claro que é necessário ao
leitor o conhecimento do terreno em que este caminha ao optar pela crítica amadora, como
explica Marcos Bragatto.
“Acho ótimo que exista o espaço, porque dali podem sair grandes profissionais. Mas
é preciso deixar claro para o leitor – e este precisa ter o discernimento – de que tipo
de trabalho está sendo feito, qual é a linha editorial (se existe), quem está escrevendo
e qual sua formação e intenções, etc. Como disse, é a era da informação, em todos os
sentidos”.
40
Os críticos entrevistados apresentam em seu discurso o argumento de que a crítica
amadora muitas vezes está relacionada à figura do fã, o qual não seria criterioso no momento
de realizar análises acerca de uma obra. Além disso, há o questionamento da habilidade com a
argumentação por parte desses entusiastas de música, que não teriam a formação e bagagem
cultural suficientes para avaliar a qualidade de um álbum. Marcelo Costa afirma que o
trabalho desses amadores não constitui crítica musical.
“Acho sensacional, mas isso não é crítica. Obviamente, existem aqueles que se
destacam, e que muitas vezes conseguem realizar um trabalho melhor do que o que
está feito na grande mídia. Mas é raro, muito raro. No entanto, ajuda a disseminar a
informação, a ideia de argumentação, e uma sociedade necessita de pessoas que
saibam argumentar. Ainda assim é preciso verificar que um fã escrevendo na
maioria das vezes não é argumentação, e sim puxação de saco”.
Portanto, é evidente a tensão entre profissionais e amadores, especialmente pelo fato
dos primeiros reconhecerem a importância de seu papel na lógica da circulação musical. No
entanto, é importante considerar que estes sujeitos, oriundos de uma tradição que colocava o
fazer jornalístico em uma posição privilegiada de autoridade discursiva, hoje tentam se
adaptar à lógica da internet, que subverte a hierarquia das fontes de informação. Afinal, se o
cenário mudou, é necessário se inserir na dinâmica que se constitui a partir das mídias
digitais, assim como acredita Marcelo Costa. “Não dá para ser nostálgico e ficar chorando
sobre a coca-cola derramada. A crítica ainda tem um valor imenso que é entender o contexto
cultural. Um crítico é quase um filósofo moderno...”
Se a crítica tem seu valor, por que contestá-la quando realizada por amadores? O
capítulo seguinte apresenta este universo e procura analisar os elementos que constituem a
relevância desses atores no processo de recomendação musical.
41
CAPÍTULO III
Sobre os amadores ou da pura paixão por escrever sobre música
Ao longo deste trabalho, foram apontadas algumas das razões que norteiam a
produção de conteúdo amador. Seja a lacuna deixada pela mídia tradicional em determinadas
pautas, a facilidade de manipulação das ferramentas 2.0 ou a simples vontade de participar
emitindo uma opinião, o fato é que todo usuário já deixou sua marca digital em algum
momento – de um comentário sobre uma matéria jornalística, até ao “upar” um vídeo caseiro
no Youtube. No entanto, é necessário ressaltar que os níveis de participação no ciberespaço,
variam da participação ocasional até à dedicação a projetos que consomem mais do que
simples interação na seção de comentários em um site.
Como apresentado anteriormente, a era da web 2.0 introduziu valores que repercutidos
pelos usuários resultaram em transformações importantes na circulação de conteúdo. Assim, o
conceito de colaboração torna-se fundamental para compreender a dimensão social
estruturada a partir dos usos das tecnologias da informação. De acordo com Juliano Spyer
“Colaboração é um processo dinâmico cuja meta é chegar a um resultado novo –
como aperfeiçoar um verbete da Wikipedia – a partir das competências diferenciadas
dos indivíduos ou grupos envolvidos. (...) na colaboração, existe uma relação de
interdependência entre indivíduo e grupo, entre metas pessoais e coletivas, o ganho
de um ao mesmo tempo depende e influencia o resultado do conjunto” (SPYER,
2007, p.23)
Portanto, o que orienta a discussão que proponho extrapola aspectos técnicos,
editoriais ou de qualquer ordem extrínseca aos agentes. O ponto de partida para compreender
o fenômeno do amador, estabelecido na centralidade dos processos de trocas culturais no
ciberespaço, é mais simples e óbvio do que se poderia supor e está no cerne da colaboração: a
motivação.
No caso dos exemplos que ilustram a análise a seguir, a motivação primeira sem
dúvida, é o gosto por música. Ou como os entrevistados afirmaram, a paixão por essa forma
42
de arte, que impulsiona projetos de sites que hoje são referências para quem procura se
informar a respeito do assunto, ao lado dos críticos profissionais.
Há espaço para todos? Até o momento, sim. Mas o que oferecem esses usuários a
ponto de os colocarem em um lugar de autoridade, dentro da lógica de recomendação? No
caso da crítica musical amadora, um dos fatores que devem ser considerados é a experiência
pessoal nesse universo, começando pelo conhecimento cultivado sobre o assunto a partir da
escuta de álbuns relevantes – os “clássicos” de determinado gênero musical, por exemplo.
Outra noção importante para compreender a hierarquização dos sujeitos, e que legitima a
autoridade dos amadores é a de cena musical
“O próprio ato de nomear uma cena como indie rock, heavy metal, samba ou música
instrumental já é um primeiro enquadramento que tenta dar conta da partilha de uma
experiência musical que acontece em espaços urbanos delimitados. Ou seja, quando
os críticos musicais rotulam o modo como determinados grupos vivenciam as
cidades através do consumo de práticas musicais diferenciadas, e quando os
participantes da cena se reconhecem nesse enquadramento, há a afirmação de
fronteiras sensórias que possibilitam não só o auto-reconhecimento dos atores
sociais bem como de possibilidades singulares de viver as cidades”. (JANOTTI,
2011, p. 12-13)
Ou seja, ao crítico amador é conferido o status de autoridade não apenas pela
identificação por gosto musical e qualidade editorial, mas também pelo reconhecimento de
códigos que incluem festas, eventos, pontos de encontro como lojas de discos ou bares, o
culto a ícones que transcendem a música, a exemplo de determinados filmes e a indumentária.
(Figura 6). São vivências compartilhadas por emissores e receptores, que horizontalizam a
relação, mesmo que exista a hierarquia que confere prestígio aos que produzem o conteúdo.
43
Figura 6 – Amadores dinamizando a cena indie
Fonte: http://movethatjukebox.com/hoje-tem-festa-estreando-em-sao-paulo/
O status é outro aspecto intrínseco à motivação dos blogueiros que escrevem sobre
música. A relevância do que é publicado, considerando o alcance que uma informação possui
na web – especialmente com as redes sociais e seus mecanismos de compartilhamento – é
convertida em capital social a esses atores, que conseguem mobilizar a sua audiência a partir
de conteúdo especializado, com curadoria realizada a maior parte das vezes, em sites
estrangeiros ou nos perfis dos próprios artistas. Não raro alguns blogs saem na frente dos
veículos tradicionais ao noticiarem o vazamento de um álbum ou lançamento de um clipe. Em
contrapartida, os próprios leitores se utilizam dessas informações para construir prestígio, ao
repassar essas notícias em primeira mão à sua rede de contatos. Raquel Recuero ao analisar os
impactos da produção e circulação de informação através das redes sociais no jornalismo, sob
a perspectiva da manutenção do capital social, oferece subsídios para compreendermos a
dinâmica que funciona no âmbito dos amadores.
44
“Quando focamos esses valores que são gerados na rede social pelo espalhamento
dessas informações, temos valores de dois tipos: aqueles sociais, ou seja, aqueles
que são construídos na rede social e aqueles que são apropriados individualmente
pelos atores sociais. Por exemplo, ao publicar uma determinada informação que seja
considerada relevante para a rede, um ator pode aumentar o conhecimento que
circula no grupo. Por conta disso este ator pode receber, em troca, algum tipo de
reputação do grupo. Essa reputação pode estar relacionada com a credibilidade das
informações divulgadas, com a relevância dessas informações para a rede e etc. Com
o tempo, o ator pode transformar essa reputação em alguma forma de capital, seja
através de fama, anúncios em seu blog, centralização na rede e etc. Vemos, portanto,
que há tanto interesse do grupo em receber e fazer circular as informações quanto
dos atores em divulgá-las e repassá-las” (RECUERO, p.6)
Embora as motivações dos usuários ao produzirem conteúdo sejam permeadas por razões
individuais, tais como vontade de escrever sobre música, obtenção de status na rede ou
objetivando a reciprocidade, ao ajudar com a expectativa de receber o mesmo retorno, é
importante ressaltar que o êxito desses projetos na web é tributário da dinâmica de
colaboração, que tem como um dos pilares fundamentais a ideia de inteligência coletiva. O
conceito elaborado por Pierre Lévy é amplificado na interpretação de Jenkins (2006) ao
abordar a noção de convergência, que para além de indicar uma mudança tecnológica em si,
diz respeito a como os sujeitos se reapropriam dos produtos midiáticos. O autor reforça sua
teoria ao analisar o fandom – termo que caracteriza a produção de conteúdo realizada por fãs
– e deixa claro que esses atores são os primeiros a se adaptar às novas tecnologias midiáticas,
justamente por se recusarem a permanecer passivos em relação à circulação de bens culturais.
A autonomia em relação à cultura mainstream é tributária da ideia de que nenhum de
nós detém o conhecimento sobre tudo, reforçando assim a “capacidade das comunidades
virtuais de alavancar a expertise combinada de seus membros. O que não podemos saber ou
fazer sozinhos, agora podemos fazer coletivamente” (JENKINS, 2006, p. 56). A figura do
expert, que retém o conhecimento limitado sobre determinado assunto, perde espaço na
medida em que as trocas online reafirmam os laços sociais de uma comunidade, estes a base
da inteligência coletiva.
Apesar da celebração do ideário de construção coletiva do conhecimento, há quem
conteste incisivamente essa ideia, especialmente quando relacionada aos bens culturais.
Andrew Keen polemiza a questão ao afirmar que os “guardiões da cultura” são
45
imprescindíveis à humanidade, principalmente por conta do volume de conteúdo que a
internet disponibiliza, o que exige um filtro confiável que nos direcione ao que realmente vale
o nosso tempo.
“Os editores, técnicos e guardiões da cultura – os especialistas num imenso número
de campos – são necessários para nos ajudar a distinguir o que é importante do que
não é, o que é verossímil do que não merece crédito, aquilo com que vale a pena
gastarmos nosso tempo do que é ruído branco que pode ser seguramente ignorado.
Assim, embora os profissionais – os editores, os estudiosos, as empresas editoriais –
sejam certamente as vítimas de uma internet que reduz seu valor e tira seus
empregos, as maiores vítimas somos nós, os leitores da Wikipédia, dos blogs e de
todo conteúdo gratuito que está insistentemente chamando a nossa atenção” (KEEN,
2009, p.46)
Os pressupostos analisados orientam a organização dos sites Move That Jukebox26
e
Tenho Mais Discos Que Amigos!,27
as referências escolhidas para ilustrar como a produção
amadora se constitui e disputa a atenção dos usuários com os espaços tradicionais de crítica.
3.1 – Profissionalizando o hobby
Em novembro de 2007, o Orkut28
mobilizava uma gama considerável de usuários nos
fóruns constituídos nas comunidades, sendo estas palco de interesses diversos. Certamente, as
comunidades relacionadas à música ainda são as mais ativas, mesmo no momento em que a
referida rede social vem perdendo espaço entre os usuários, pois nelas se concentram
importantes elementos para a manutenção da sociabilidade em torno dos bens culturais, a
exemplo dos links para downloads.
26 http://movethatjukebox.com/
27 http://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/
28 http://www.orkut.com
46
Neste contexto, interações realizadas entre determinados usuários em uma comunidade
sobre o Tim Festival – evento importante da cena indie – era o início do que viria a se tornar o
Move That Jukebox. (Figuras 7 e 8) De um movimentado tópico destinado ao
compartilhamento de downloads até o site que conhecemos hoje, todo um processo de
contatos online se fortaleceu a ponto de constituir uma equipe de colaboradores que inclui
usuários de São Paulo e Minas Gerais.
Figura 7 – Primeiro layout do Move That Jukebox em 2008
Fonte: http://movethatjukebox.wordpress.com/2008/07/29/tim-festival-escala-rapper-para-line-up/
Organizar a estrutura de um site que publica notícias diariamente pode ser bem
complexo. Basta remetermos à hierarquia existente nos veículos tradicionais, nos quais os
jornalistas se reportam aos seus editores-chefes em reuniões de pauta, dependendo da
aprovação para realizar uma matéria. Obviamente, não podemos comparar a estrutura de
grandes corporações midiáticas a de um site amador, mas é interessante observar o nível de
organização existente dentro de um sistema autônomo, o que a princípio poderia significar
47
desordem. Neto Rodrigues, um dos colaboradores do MTJ, explicou como funciona a
distribuição das pautas diárias no site.
“O sistema de pauta que usamos é bem mais simples que do que alguns possam
imaginar. A gente simplesmente vai trocando e-mails durante o dia – na maioria das
vezes falando bobagens e coisas que não têm a ver com o blog, necessariamente – e,
por quase todo mundo que escreve no site também trabalhar e estudar, os posts vão
saindo com calma, à medida que o pessoal tem uma folguinha durante a rotina. E
cada um é bem livre pra fazer o que quiser dentro da pauta: resenhas, postar clipes,
entrevistas, notícias, artigos, documentários e por aí vai. É um ambiente bem solto e
descontraído, na verdade. Ninguém se estressa por conta disso não”
Figura 8 – Layout atual do site
Fonte: http://movethatjukebox.com/
Outro aspecto interessante na colaboração online é observar como uma iniciativa
individual, resultante de um certo incômodo relacionado à inércia do próprio público
consumidor de música, acaba por se consolidar em uma fonte de distribuição de notícias que
busca mostrar à audiência o que o mercado não cobre. Tony Aiex, idealizador do Tenho Mais
Discos Que Amigos!, (Figura 9) explica sua motivação quase militante em prol do
reconhecimento da produção musical contemporânea, tão criticada em muitos casos.
48
“Comecei o TMDQA! em 2009 primeiramente por uma questão pessoal. Sempre
adorei escrever e sempre amei música, então uni 2 grandes paixões em uma só.
Além disso estava cansado de ver tanta gente falando que não existe música boa
hoje em dia quando eu estava comprando dezenas de discos excelentes, em vários
formatos interessantes e descobrindo tantas boas novas bandas. Dessa forma, achei
que precisava mostrar ao mundo que sim, existe muita coisa boa por aí, basta
garimpar”
Vale ressaltar que o TMDQA! passou por uma reformulação editorial. Inicialmente, o
projeto dava ênfase aos lançamentos em vinil, em consonância com o revival em torno deste
suporte musical. Posteriormente, como o próprio Tony afirma, a necessidade observada de
preencher a lacuna deixada pela imprensa especializada foi o impulso fundamental para
reorganizar o conteúdo. Tony afirma o seguinte: “com o tempo, vi que poderia transformar o
TMDQA! em uma fonte de notícias musicais já que não via outro site abordar muitas das
bandas e estilos dos quais falamos, e acabou dando certo”.
Figura 9 – Tenho Mais Discos Que Amigos!
Fonte: http://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/
49
Estes editores de conteúdo embora atuem de maneira autônoma, selecionando o que
consideram relevante para publicação, não deixam de acompanhar a imprensa especializada,
em mais um indício de que os críticos profissionais ainda exercem uma importante influência,
especialmente na busca por pautas. Afinal, é necessário aos amadores acompanhar o que
acontece no cenário musical, pois a audiência também é um fator importante no caminho para
o crescimento destes projetos, o que pode ser observado através das parcerias firmadas com
marcas ligadas ao público jovem.29
(Figura 10) Além disso, o reconhecimento conferido a
esses usuários nas mídias sociais se traduz em oportunidades de maior visibilidade junto ao
público, sob a forma de hospedagem nos grandes portais de conteúdo do país.30
Figura 10 – Parcerias entre o TMDQA! e marcas
Fonte: twitter.com/mdiscosqamigos/
29 Os sites analisados firmaram parcerias com os eventos SWU e Planeta Terra, na forma de sorteio de ingressos,
além da promoção de ações com marcas a exemplo de Nike, Universal Music, Spoleto, Telefonica e Campus
Party Brasil.
30 O Move That Jukebox integra o portal MTV, vinculado ao UOL, enquanto o TMDQA! está hospedado no
portal de conteúdo POP.
50
Outro ponto interessante é o fato desses jovens escritores lamentarem não ter
acompanhado o que consideram os tempos áureos da imprensa musical, em referência
especialmente aos anos 90. Ou seja, há toda uma memória alimentada pela geração que viveu
o contexto que é repassada adiante, a exemplo dos grupos dedicados à revista Bizz no
Facebook,31
onde os membros compartilham impressões de uma época pré-Internet, em que
dependiam basicamente deste meio para acompanharem o universo musical.
Apesar de considerarem o valor, tanto histórico quanto de autoridade legitimada da
imprensa tradicional, esses escritores são críticos em relação ao conteúdo veiculado por esses
meios. Ambos entrevistados são contundentes ao afirmar que é necessário muito mais que as
credenciais da formação em jornalismo para escrever bem sobre determinado assunto. Neto
Rodrigues reforça que a bagagem pessoal faz toda diferença na hora de mobilizar o leitor.
“Não acho que isso tenha um peso muito grande hoje em dia [a formação em
jornalismo]. Escrever é prática. É leitura. Tanto que tem muito formando em
jornalismo por aí que não sabe colocar uma crase. E às vezes a resenha nem precisa
estar gramaticalmente impecável. Se ela passar o recado e emocionar/atiçar/provar o
leitor, tá valendo”
Tony Aiex complementa a observação de Neto, ao reforçar a importância da autonomia
do crítico, sempre problematizada devido à dinâmica de agendamento existente nos veículos
tradicionais, embora considere o peso da legitimidade autorizada pela profissão de jornalista.
“É claro que pesa o autor ter um ‘currículo’, mas acho que o que mais importa
mesmo é ler uma resenha e perceber que o autor entende do assunto, foi ponderado
em suas opiniões e principalmente sincero. É chato ler resenhas tendenciosas ou que
claramente foram ‘encomendadas’. Como isso raramente acontece com autores que
não tem tanto gabarito, muitas vezes elas acabam tornando-se mais interessantes”
Mesmo assumindo uma postura questionadora em relação aos profissionais, os críticos
amadores admitem os percalços de escrever na era da informação. Afinal, o timing da
31 Esses grupos concentram discussões sobre música de uma maneira geral, mas especialmente, constituem
espaços de memória, onde os usuários além de comentarem sobre edições antigas da revista, disponibilizam
esses exemplares para download.
51
circulação de notícias valoriza o ineditismo, o que em muitos casos impede uma apuração
mais cuidadosa. O volume de lançamentos e apostas em hypes acirram a disputa por
determinar quem foi o primeiro a apresentar determinado artista ao público. Uma dinâmica
que cada vez mais prescinde da audição acurada. De acordo com Tony Aiex
“Isso é bem visível nas resenhas de discos, por exemplo. Hoje em dia um álbum
nem é lançado oficialmente e já está na Internet e cheio de resenhas por aí, muitas
delas feitas às pressas e cujos seus autores se arrependem depois de uma terceira ou
quarta audição do álbum. Quanto às notícias acho que a interferência é menor, já que
basta relatar um fato o mais cedo possível e não há muito no que mexer depois”
No entanto, há ocasiões em que a corrida pelo furo pode significar a repercussão de uma
notícia equivocada. Em alguns casos, os próprios usuários atentam para um eventual erro, a
exemplo de uma nota sobre um suposto anúncio de David Bowie no Twitter, de que estaria
retornando aos estúdios. Em pouco tempo, alguns leitores afirmaram que o músico nem
possuía conta no microblog, tratando-se de um fake, fato apurado e retificado. (Figuras 11 e
12). Os seja, os usuários que compartilham com os amadores práticas de busca por notícias
sobre seus gêneros musicais favoritos, especialmente em sites estrangeiros, acabam
colaborando com a construção do conteúdo, em um exemplo de relação horizontal entre
produtores e consumidores.
Figura 11 – Leitores alertam equívoco na notícia veiculada
Fonte: http://movethatjukebox.com/david-bowie-anuncia-retorno-pelo-twitter/
52
Figura 12 – Errata sobre notícia
Fonte: twitter.com/movethatjukebox
Considerando a fala de Tony sobre a velocidade da circulação das notícias do meio
musical, faz-se importante avaliar o papel destes usuários/editores/curadores na mediação da
indústria fonográfica com o público. Apesar desses personagens serem encarados como
amadores, eles começam a estruturar uma nova hierarquia dentro do vasto universo de blogs,
sites e perfis em redes sociais que emitem impressões sobre música. Esses produtores de
conteúdo inauguram uma rede de relações que se estabelece junto aos próprios críticos
profissionais e em outras instâncias valorizadas na cena musical, como o acesso a shows e
eventos. A constituição da autoridade legitimada por instâncias relacionadas ao mainstream
pode ser o primeiro passo no caminho para a profissionalização desses usuários. Nesse
sentido, é interessante a análise de Marcelo Costa, editor do Scream & Yell, que reconhece o
processo de diferenciação entre os amadores no contexto de disseminação de conteúdo sobre
música na rede.
“No geral, a qualidade da crítica encontrada na internet neste primeiro momento
ficava entre o ruim e o razoável, embora fosse possível encontrar pequenas epopeias
argumentativas que cumpriam melhor a função do que muito profissional da grande
mídia. O cenário está mudando, no entanto. Muitos blogueiros que entraram na onda
da crítica na web estão descobrindo que para brincar de ser crítico é preciso
disciplina e dedicação, e o número de resenhistas de fim de semana parece diminuir
– inversamente, a qualidade está aumentando” (COSTA, 2010, p.157)
53
Apesar do capital social gerado a favor desses usuários/editores/curadores e
considerando a responsabilidade de manter um site atualizado diariamente, até que ponto vale
a pena continuar um projeto na web quando este não dá retorno financeiro? Por quê utilizar o
tempo livre para filtrar notícias, pesquisar pautas, contribuindo para manter uma determinada
comunidade informada, sendo que essas mesmas pessoas não retribuem se oferecendo para
colaborar, por exemplo? Como já apontado, o capital social que confere status a esses
usuários se constitui em grande valor nesse universo. Ser mencionado, retuitado ou curtido é
importante para projetar esses sites, os quais conforme mencionado anteriormente, caminham
para a profissionalização.
No entanto, a razão primeira apontada por ambos entrevistados para continuar seus
trabalhos é de ordem afetiva, como resume Neto Rodrigues: “Pura paixão por escrever sobre
música. É basicamente isso, porque o retorno financeiro muitas vezes é nulo mesmo. É o
prazer de apertar o ‘Publicar’ ao final de um post bem feito, de um review bem bolado, de
uma dica que com certeza vai atingir o gosto do seu público” (entrevista)
Além disso, a possibilidade de um hobby pessoal se transformar em referência
valorizada, ultrapassando a esfera local, é outro motivador importante, como explica Aiex
“Primeiro de tudo é uma mistura de amor por música e amor por escrever. A Internet
é um veículo que proporciona um alcance enorme para todo mundo. Antigamente se
você queria falar sobre música e expôr suas opiniões precisava trabalhar em uma
revista, rádio, TV ou algo do tipo. Hoje em dia você pode fazer com que um gostoso
hobby acabe se tornando uma referência para muita gente, mesmo que não traga
retorno financeiro”
A crítica amadora não vai substituir a especializada. Ocorre que a disseminação de
conteúdos de qualidade produzidos fora do âmbito legitimado pelas autoridades culturais,
subverte a lógica de recomendação perpetuada há muito pela indústria fonográfica e mídia
especializada. Essas instâncias precisam encontrar formas de lidar com novos atores, que se
inserem no campo musical já valorizados por sua expertise em relação ao universo digital, em
consonância com o cenário em que os próprios artistas já se apropriaram dessas ferramentas
para atuarem de maneira autônoma.
54
Os críticos amadores por sua vez, ajudam a dar voz aos nichos de gosto que
anteriormente não tinham espaço garantido na mídia, dinamizando o campo musical ao
apresentar novos artistas e estabelecer novas hierarquias nas cenas musicais. Resta saber
como as tensões entre profissionais e amadores vão se estruturar, na medida em que estes
cada vez mais se consolidam enquanto referência para quem procura a última novidade no
mundo da música.
55
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho buscou apresentar o panorama da crítica contemporânea sob uma
perspectiva de inclusão na dinâmica de circulação musical, que compreende os processos de
criação, distribuição e consumo. Embora os debates relacionados ao assunto estejam
ganhando força no contexto de reconfiguração da indústria fonográfica, é importante
considerar que antes da internet colocar o campo musical em evidência, devido às novas
apropriações realizadas pelos usuários, a crítica já se constituía em elemento fundamental no
mercado da música, graças a sua função de recomendação.
Sob as alegações de enfrentar uma crise, a crítica musical se recria em sua forma e
conteúdo. Ao incorporar elementos e linguagens a partir dos usos das mídias digitais, usos
esses permeados por valores e práticas caras à lógica da web 2.0, destacam-se novos atores
que utilizam sua expertise no uso das ferramentas digitais para expressar e compartilhar com
outros usuários a sua paixão por música. O que para muitos é identificado como mero
trabalho de fãs – em um sentido pejorativo conferido ao termo, o que estaria relacionado à
ausência de critérios para analisar uma obra – na realidade se estrutura em uma organização
editorial cuidadosa, pensada para o público que se interessa pelo meio musical.
Por outro lado, a imprensa musical precisou acompanhar os novos tempos. Sempre
encarada com desconfiança por artistas, produtores ou mesmo pelos fãs, seja devido a relação
estreita com a indústria ou por conta de uma certa “arrogância” ao exercer a atividade de
recomendação, influenciando a formação do gosto e do mercado, agora os críticos são
criticados por supostamente, se recusarem a compartilhar o papel de relevância com usuários
que não estão nas redações e sequer saíram dos cursos de jornalismo, o que conferia a
chancela para escrever a um grande público.
Os debates referentes ao papel da crítica especializada estão em consonância com o
contexto de reformulação da atividade jornalística sob os impactos da internet. Vídeos,
podcasts, a valorização do ineditismo com informações praticamente em tempo real e a
agilidade dos textos, considerando o discurso de que o leitor não tem interesse por matérias
extensas dão o tom da imprensa contemporânea e repercutem no jornalismo cultural. Este,
tradicional lugar de reflexão, cede cada vez mais espaço para notícias de cunho meramente
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informativo, em detrimento da análise, a exemplo do que conhecemos por jornalismo de
entretenimento. Resumindo o cenário sob esses aspectos, a lógica seria de que a internet é a
grande responsável pelo declínio da crítica cultural, considerando as novas necessidades
forjadas na constituição do jornalismo online.
No entanto, faz-se necessário pensar este panorama sob uma forma mais cuidadosa.
Afinal, os críticos profissionais também buscaram se adaptar aos tempos 2.0. Se são limitados
pelos editores das publicações para as quais colaboram, por outro lado, mantém seus próprios
espaços para resenhar os lançamentos que consideram importantes, mesmo que a mídia
mainstream não compre a ideia. Na internet, todos são usuários. Nesse sentido, o que
determina as diferenças são as maneiras pelas quais esses sujeitos constituem sua relevância
online, ao circularem conteúdo interessante para o público certo.
Após a primeira década de consolidação da internet e os seus desdobramentos na
fruição cultural, fica claro que um novo cenário começa a se desenhar. Se em um primeiro
momento a disseminação das ferramentas 2.0 incentivou o usuário a ter a iniciativa de
publicar conteúdo, expressar suas opiniões sobre qualquer assunto de interesse específico,
resultando na proliferação de blogs e consequentemente no abandono dos mesmos na
proporção exata em que foram criados, hoje podemos verificar a constituição de uma nova
fase em termos de amadorismo.
A partir da valorização dos sites de redes sociais enquanto espaços de repercussão de
tendências, observamos que projetos iniciados informalmente acabam por se consolidar
devido a recomendação dos próprios usuários nesses ambientes, devido à identificação com o
conteúdo segmentado oferecido. Consequentemente, esse reconhecimento se desdobra em
parcerias com grandes portais, marcas e eventos, sendo um claro indício de diferenciação
dentro do circuito amador. Seria um caminho para a profissionalização?
Neste sentido, vale refletir ainda sobre os ideários da web 2.0, marcados pelo viés
democratizador, libertário, que confere voz a todos que querem apenas se expressar. A
internet estaria se autorregulando e atravessando um momento de reestruturação, ao constituir
hierarquias e legitimando novos atores. Até que ponto isso poderia significar um retrocesso
nas práticas que celebram o do it yourself digital?
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Apesar de muitas questões permanecerem em aberto, conclui-se neste trabalho que a
crítica não perdeu sua relevância, pelo contrário. Ela se reconfigura, moldando-se conforme a
necessidade dos leitores conectados, especialmente daqueles que não acompanharam o auge
do formato impresso. Basta termos em mente que as atividades relacionadas à música
apresentam uma grande capacidade de adaptação às inovações tecnológicas, o que reverbera
nas práticas culturais. Um bom exemplo é remetermos ao tradicional rito da reunião com os
amigos para ouvir um disco faixa a faixa, apreciando a arte gráfica da capa e o encarte com as
letras. A sua versão 2.0 está relacionada ao ato de compartilhar os links para download
daquele álbum tão esperado que caiu na rede. Ambas práticas reforçam sociabilidades em
torno da música, apenas sob lógicas de suportes diferentes.
Em relação à crítica podemos verificar a mesma dinâmica do impacto tecnológico na
fruição cultural. Se antes a expectativa pelo álbum era alimentada por uma resenha escrita
após a audição em primeira mão por parte do crítico, privilegiado por ter acesso ao material
com antecedência, hoje o fã de música consegue formar uma opinião sobre a obra antes
mesmo de ser influenciado por uma crítica, que pode ser oriunda de um veículo tradicional ou
do blog do melhor amigo.
Portanto, não se trata de debater apenas os desdobramentos tecnológicos, pois é certo
que estes implicam em mudanças de paradigmas. O elemento chave para desenvolver esta
discussão reside na constituição da legitimidade, objeto de disputa entre os atores que estão na
centralidade do processo de recomendação musical. Passado o primeiro momento de
disseminação de blogs e sites amadores, faz-se importante acompanhar a trajetória daqueles
que se consolidaram enquanto referências e em como estes se relacionam com a esfera
profissional, da crítica de redação. Enquanto isso, o que importa é que a música vai bem,
obrigada.
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