Pedro Duarte de Andrade
Estio do tempo:
o amor entre arte e filosofia
na origem do romantismo alemão
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia.
Orientador: Prof. Eduardo Jardim de Moraes
Rio de Janeiro, agosto de 2009
Pedro Duarte de Andrade
Estio do tempo: o amor entre arte e filosofia na origem do romantismo alemão
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Eduardo Jardim de Moraes
Orientador Departamento de Filosofia da PUC-Rio
Profa. Katia Rodrigues Muricy
Departamento de Filosofia da PUC-Rio
Prof. Luiz Camillo Osório Departamento de Filosofia da PUC-Rio
Prof. Bernardo Barros Coelho de Oliveira
Universidade Federal do Espírito Santo
Prof. Pedro Süssekind Viveiros de Castro Universidade Federal Fluminense
Prof. Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa
Universidade Federal Fluminense
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro
de Teologia e Ciências Humanas - PUC-Rio
Rio de Janeiro, 14 de agosto de 2009
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da Universidade.
Pedro Duarte de Andrade
Graduou-se em Comunicação Social na PUC-Rio em 2002. Mestre em Filosofia pela PUC-Rio em 2005.
Ficha catalográfica
CDD: 100
Andrade. Pedro Duarte de Estio do tempo: o amor entre arte e filosofia na origem do romantismo alemão / Pedro Duarte de Andrade; orientador: Eduardo Jardim de Moraes. – Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Filosofia, 2009.
277 f.; 30 cm Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia. Inclui referências bibliográficas 1. Filosofia – Teses. 2. Arte. 3. Romantismo. I. Moraes, Eduardo Jardim de. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.
Agradecimentos
ao Eduardo Jardim de Moraes, pela amizade e pela sabedoria de orientar, desde cedo, para que eu buscasse algum caminho próprio; à Katia Muricy, cujo pensamento ofereceu diálogos, falados ou não, que estiveram sempre presentes comigo neste trabalho; à Irley Franco, cujo convite para dar aulas sobre o romantismo alemão no curso de pós-graduação que coordena esteve no começo deste trajeto; ao Luiz Fernando Valente e a todos os professores e amigos que estiveram por perto no período em que fui professor visitante na Brown University, nos Estados Unidos; à Marcela Oliveira, que, além do amor e da paciência, ofereceu também para mim a leitura minuciosa de cada página (e pé de página) deste trabalho; à Letícia Warner, alegria de mãe que tenho, e ao Peter Warner, que, além de tudo, deram o teto sob o qual o fim desta tese foi escrito; aos professores que, de vários jeitos, ajudaram a formar a escuta que tento exercer até hoje para a filosofia e para o mundo; aos tantos alunos que, por anos, ouviram falar das descobertas que eu fazia sobre a filosofia e o romantismo, até quando os cursos não eram sobre o assunto; aos poucos mas tão queridos amigos que fiz graças ao convívio começado pelo acaso de estarmos juntos na pós-graduação de filosofia; aos meus amigos e familiares que acolheram pacientemente várias ausências que foram exigidas para a execução deste trabalho; ao Departamento de Filosofia da PUC-Rio, que durante tantos anos, desde bem antes deste doutorado, foi o espaço em que grande parte da filosofia aconteceu para mim;
à Edna Sampaio e à Diná Lucia, pelo trabalho de todos os dias; ao CNPq e à PUC-Rio, pelo apoio financeiro concedido para este trabalho acadêmico; ao Antonio Abranches, porque o princípio é como um deus que, enquanto permanece entre nós, tudo salva.
Resumo
Andrade, Pedro Duarte de; Moraes, Eduardo Jardim de. Estio do tempo: o
amor entre arte e filosofia na origem do romantismo alemão. Rio de Janeiro, 2009. 277p. Tese de Doutorado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Esta tese estuda a tensão que caracteriza o pensamento dos primeiros
autores do romantismo alemão, situados entre a consciência crítica (kantiana), que
proibia nosso acesso à verdade absoluta, e o desejo de síntese (hegeliano) que
pretendia alcançá-la. Nesse contexto, a arte apareceu como forma de dizer o
absoluto justamente pela oposição à clareza objetiva pretendida pelo sujeito do
conhecimento. Fora do quadro tradicional do classicismo, e trazendo consigo o
traço moderno da reflexão, a arte seria genial: sua criação não dependeria da
obediência a regras prévias. Por sua vez, a crítica saía do paradigma avaliativo
pautado em normas, tornando-se filosófica. Forçava-se, então, a transformação do
contato com a antiguidade clássica, que seria agora fragmentado, ao apontar para
o caráter vanguardista que abre mão da totalidade. Ironia e alegoria seriam
emblemas dessa quebra, evidenciando a descontinuidade entre signo e sentido na
época moderna. Habitar a linguagem era experimentar o amor entre arte e
filosofia, contrariando a querela que permanecera entre ambas desde Platão. Este
“estio do tempo” ocorreu, na virada do século XVIII para o XIX, com a escrita do
grupo de jovens capitaneado por Friedrich Schlegel na origem do romantismo,
forjando uma filosofia da arte que foi também uma arte do filosofar.
Palavras-chave
Romantismo; arte; filosofia.
Abstract
Andrade, Pedro Duarte de; Moraes, Eduardo Jardim de (Advisor). Time of
Quietness: The Love Between Art and Philosophy in the Origin of German Romanticism. Rio de Janeiro, 2009. 277p. Doctoral Thesis – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This thesis examines the tension that characterizes the thinking of the first
German Romantic authors situated between (kantian) critical consciousness,
which prohibits our access to absolute truth, and the (hegelian) desire for
synthesis which presumes to lead us there. In this context, art emerges as a way of
expressing the absolute precisely in opposition to the objective clarity intended by
the subject of knowledge. Outside the traditional form of classicism and bringing
with it the trace of modern reflection, art is genial in that its creation does not
depend upon obedience to pre-existing rules. In turn, criticism leaves its
evaluative paradigm, based on norms, and becomes philosophical. It therefore
forces the transformation of the contact with classical antiquity, now fragmented,
and points to the new vanguard, which surrenders the concept of totality. Irony
and allegory are emblematic of this break, which shows the discontinuity of sign
and sense in the modern era. Using this language means experiencing the love
between art and philosophy, in contrast to the separation that has existed between
them since Plato. This “quietness in time” occurred at the turn of the XVIII to the
XIX Century in the works of a group of young writers led by Friedrich Schlegel at
the origin of Romanticism, forging a philosophy of art that is also an art of
philosophy.
Keywords
Romanticism; art; philosophy.
Sumário
1. Introdução – Dos extremos ao meio: arte, filosofia e vida 10
2. Breve momento de escrita: quem foram os primeiros românticos 24
3. Seres anfíbios: entre a crítica de Kant e a síntese de Hegel 46
4. Dizer o absoluto: a emergência filosófica da arte 66
5. Modernidade na arte: poesia transcendental e nova mitologia 79
6. Filosofia do romance: o gênero dos gêneros 94
7. Entre a regra e a liberdade: a criação do gênio 113
8. Do juiz ao crítico de arte: a reflexão da obra 135
9. Neo, pós ou anticlassicismo: a imitação da antiguidade na formação moderna 156
10. Fragmentos de vanguarda: a consciência do instante 177
11. Ironia, pátria da arte e da filosofia: a representação alegórica 196
12. Ler o universo, viver o poema: a linguagem como diluição do autor 219
13. Fúria apaixonada: arte e filosofia na contramão da tradição 243
14. Referências bibliográficas 264
O que se pode fazer, enquanto filosofia
e poesia estão separadas, está feito,
perfeito e acabado. Portanto é tempo
de unificar as duas.
Friedrich Schlegel
1
Introdução
Dos extremos ao meio: arte, filosofia e vida
“De todos faz covardes a consciência”, afirma Hamlet em seu famoso
solilóquio, completando ainda que “o natural frescor de nossa resolução definha
sob a máscara do pensamento, e empresas momentosas se desviam da meta diante
dessas reflexões, e até o nome de ação perdem”1. Shakespeare, através das
palavras de seu personagem, expunha a aflição que está na origem da
modernidade: a ascendência do poder pensante do homem ameaçava acuar sua
capacidade de agir. Reflexiva, a era moderna jogava o homem sobre si mesmo e o
cindia. Hamlet pensa. Mas não age. Internaliza subjetivamente todas as
considerações possíveis sobre a vingança que gostaria de perpetrar pela morte de
seu pai e, com isso, não a consuma. Nós acompanhamos, na peça, menos o que
Hamlet faz do que suas reflexões sobre o que fazer. Desde que o espectro do pai
falecido surge e acusa o tio de Hamlet de ser seu assassino, o filho não acredita
completamente na aparição, embora não consiga esquecê-la. Ele só suspeita.
Imagina poder tirar a dúvida, porém, através da arte. Encena uma peça cujo
enredo estaria baseado nas correspondências com os possíveis fatos que o
espectro do pai contara, para poder então observar as reações do tio, que
supostamente denunciariam sua culpa ou sua inocência. Recorre Hamlet ao pouco
provável âmbito da arte para procurar a verdade, e não à ciência, como se poderia
esperar.
Esse enredo de Shakespeare poderia servir de epígrafe para a época
moderna, de acordo com os primeiros românticos alemães no final do século
XVIII. Friedrich Schlegel afirma que, no caráter de Hamlet, tudo “é concentrado
no entendimento; a força ativa, porém, é completamente destruída”, já que “sua
mente puxa a si mesma em diferentes direções como se estivesse em uma
1 W. Shakespeare, “Hamlet”, in Tragédias: teatro completo (Rio de Janeiro, Agir, 2008), p. 572.
11
máquina de tortura”2. Hamlet vivia a dilaceração do homem moderno. Schlegel a
explica como “máximo de desespero”, “dissonância colossal” e “desarmonia sem
solução que é o objeto atual da tragédia filosófica”3. Nessa época, a cultura alemã
criava o que veio a ser chamado de filosofia do trágico. Não eram, contudo,
análises empíricas das tragédias gregas que estavam em primeiro plano aí. No
conflito trágico entre deuses e homens, o que chamava a atenção, agora, era a
oposição que constituía ontologicamente o ser, especialmente na época moderna –
que deixava de fazer tragédias como as antigas para se tornar, ela mesma, a época
trágica por excelência.
Sua pré-história estaria em Descartes, com a dúvida sobre nosso acesso à
verdade. Sua consolidação aconteceria na doutrina de Kant, com a crítica à
possibilidade de conhecermos as coisas como elas são em si mesmas. Esta crítica
era delimitação do espaço da verdade absoluta, agora separado de nós. “Entre os
modernos se fala sempre deste e do outro mundo, como se houvesse mais de um”,
escreve Friedrich Schlegel, “mas com certeza entre eles a maioria das coisas
também é tão isolada e dividida quanto este seu mundo e o outro”4. Eram as
palavras dos primeiros românticos sobre sua conflituosa época. Separavam-se
sujeito e objeto, homem e mundo, mortais e deuses, Estado e Igreja, antiguidade e
modernidade. Por onde procurar, neste contexto, o âmbito sem cisão da verdade
absoluta para que pudéssemos nos sentir em casa no mundo?
Seguindo o exemplo de Hamlet, os primeiros românticos alemães foram
até a arte. Encontraram na arte, contudo, situação parecida com a da sua época em
geral. Ela não era o oásis cheio de vida no deserto moderno: a criação e a fruição
estéticas estavam também afetadas pela perda do contato direto e certo com a
experiência. Não é, portanto, Hamlet o herói romântico. É Shakespeare, que
pensou essa modernidade em sua peça. De todos os artistas, escreve Friedrich
Schlegel, “Shakespeare é o que mais completa e precisamente caracteriza o
espírito da poesia moderna em geral”5. Ironicamente, Shakespeare colocara a arte
dentro da arte. Destacava-se, na sua obra, “a mais profunda e mais compreensiva
2 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 144-145.3 Ibid., p. 144-145.4 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 55 (Athenäum, Fr.55).5 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 145.
12
filosofia poética”6. Refletia ele sobre a arte e a fazia ao mesmo tempo, como
Cervantes e, depois, Goethe. Ingenuidade deixava de ser algo possível. Estava
perdida, e perdidos estavam os artistas que ainda confiassem nela para criar com
suposta perfeição suas obras.
“Desde que comemos da árvore do conhecimento”, como disse Kleist,
deixaram de ser evitáveis os erros: “o paraíso está trancado”, afirma; portanto
“precisamos dar a volta ao mundo, e ver se não há talvez, do outro lado, uma
abertura em algum lugar”7. Foi a viagem que empreenderam os primeiros
românticos alemães. Diz o ditado: “se não pode vencê-lo, junte-se a ele”. Era o
que a arte deveria fazer com o pensamento. É certo que a arte já pensava antes,
porém, pensar a si mesma não era condição de sua atividade; agora era. “Se a
poesia deve se tornar arte, se o artista deve ter profundo discernimento e ciência
dos seus meios e fins, e dos obstáculos e objetos dela, o poeta tem de filosofar
sobre sua arte”8, afirma Schlegel. Justo onde a arte parecia perder a simples
centralidade histórica que tinha por exemplo com os antigos gregos, surgia a
transformação que a faria moderna. Razão pela qual Baudelaire sentenciou:
“quem diz romantismo diz arte moderna”9.
Refletir deixava de ser só o entrave para a ação de criar. Tornava-se outro
jeito de criar: o jeito moderno. Nesse sentido, a arte aproximava-se da filosofia.
Romantismo, na origem, é esta aproximação. Surpreendentemente, o que achamos
aí “não é a glorificação do instinto ou a exaltação do delírio, mas, bem ao
contrário, a paixão do pensamento e a exigência quase abstrata posta pela poesia
para que refletisse sobre si e se fizesse através desta reflexão”, como observou
Maurice Blanchot, para quem “o romantismo é excessivo, mas seu primeiro
excesso é um excesso de pensamento”10. Se, depois, o movimento caiu várias
vezes no emocionalismo exagerado que conhecemos, foi porque abandonou, em
outras vertentes, aquilo que buscaram – e como o buscaram – os primeiros
românticos.
6 Ibid., p. 145.7 Heinrich von Kleist, Sobre o teatro de marionetes (Rio de Janeiro, 7Letras, 2005), p. 21.8 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 93 (Athenäum, Fr.255).9 Charles Baudelaire, “Salão de 1846”, in Poesia e prosa (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995), p.675.10 Maurice Blanchot, “L’Athenaeum”, in L’Entretien infini (Paris, Gallimard, 1969), p. 518.
13
Seu caminho da arte para a filosofia, contudo, não possuía só esta direção,
mas também a oposta: “pois na filosofia o único caminho que leva à ciência passa
pela arte, assim como, ao contrário, só por meio da ciência o poeta se torna
artista”11, sublinhou Friedrich Schlegel. Se a arte passa pela filosofia, a filosofia
passa pela arte. Nesse trânsito, a modernidade poderia achar a força de ação no
seu excesso de pensamento. Para tanto, a “poesia só pode ser criticada por poesia”
e o “juízo artístico que não é ele mesmo uma obra de arte (…) não tem
absolutamente direito de cidadania no reino da arte”12. Se a arte deve ser
filosófica, a filosofia tem que ser poética. Ser ou não ser arte? Ser ou não ser
filosofia? Eis as questões dos primeiros românticos.
*
Segundo a antiga tradição do pensamento ocidental, para ser alguma coisa
não se pode ser outra. Identidade é ser o que se é sem ser outro, senão estaríamos
em contradição. Mas “o princípio de contradição está mesmo irremediavelmente
perdido, e se tem somente a escolha entre querer comportar-se passivamente em
relação a isso ou querer elevar a necessidade, pelo reconhecimento, à fidalguia de
ação livre”13, constatavam os primeiros românticos. Liberdade de ação do que é
contraditório foi o que eles buscaram fazer em seu pensamento. Identidade clara
do que seria a arte e do que seria a filosofia foi o que precisaram abandonar para
tanto. Este abandono era da ordem do amor, estado em que, como sabemos, as
fronteiras que separam os elementos envolvidos tornam-se porosas.
Tratamos aqui, portanto, do amor entre arte e filosofia na origem do
romantismo alemão, experiência que contrariava a duradoura tradição ocidental
que as colocara em oposição desde Platão. Só que esse “amor original jamais
aparece puro, mas em diversos invólucros e figuras, como confiança, humildade,
devoção, júbilo, fidelidade, vergonha e gratidão; acima de tudo, porém, como
nostalgia e serena melancolia”14. São várias, então, as formas de amor entre arte e
filosofia. “Segundo a origem, o verdadeiro amor deveria ser ao mesmo tempo 11 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 101 (Athenäum,Fr. 302).12 Ibid., p. 38 (Lyceum, Fr. 38).13 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 52 (Fr. 26).14 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 157 (Idéias, Fr.104).
14
inteiramente arbitrário e inteiramente casual, e parecer ao mesmo tempo
necessário e livre; mas, segundo o caráter, deveria ser ao mesmo tempo
destinação e virtude, e parecer um mistério e um milagre”15. Não seria diferente
com arte e filosofia em seus encontros tematizados e experimentados durante o
romantismo.
Esse princípio de alternância amorosa entre a arte e a filosofia entraria em
colisão também, pouco depois, com o sistema de Hegel, que procurava consumar
a tradição ocidental começada por Platão. Tal colisão é fruto, sobretudo, da
pretensão de Hegel. Ele queria tudo compreender: as contradições só seriam
aceitas como etapas do que chamou de dialética, cuja essência era, ao fim,
solucioná-las na figura da síntese. Limitação finita do homem diante do todo do
ser, como firmara Kant, era o que ficava para trás. Nenhuma separação poderia
perdurar diante do poder dessa especulação. Tal qual Édipo, o “senhor
onipotente”16, Hegel encarnava a desmedida trágica da época moderna, burlando
todas as proibições concernentes ao caráter finito do homem. Para tanto, a
filosofia deveria deixar a prática da arte para trás, fazendo dela apenas objeto
compreendido no saber absoluto.
Para trás, aliás, deviam ficar também os primeiros românticos alemães, de
acordo com Hegel. Ele buscava, em seu sistema, a totalidade do conhecimento
forjado na e pela história do espírito absoluto, cujo âmbito de exercício seria a
própria humanidade. Nessa empreitada, fizera de tudo o que veio antes dele, na
história em geral e na história da filosofia em particular, etapas do processo que
trouxera o mundo progressivamente até a era moderna. Romantismo e arte seriam
etapas deste tipo, devidamente superadas pelo próprio Hegel e por sua filosofia.
Muito diferente, claro, era a concepção dos primeiros românticos, a começar pelo
sentido que davam à história da filosofia.
Ir cada vez mais fundo, subir cada vez mais alto, é a inclinação predileta dosfilósofos. O que conseguem, caso se creia na palavra deles, com admirávelrapidez. (….) Sobretudo com relação à altura superam regularmente uns aosoutros, como quando duas pessoas têm a recomendação expressa de fazer amesma compra num leilão. Mas toda filosofia que é filosófica talvez seja
15 Ibid., p. 54 (Athenäum, Fr. 50).16 Sófocles, “Édipo Rei”, in A trilogia tebana (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006), p. 20 (v53).
15
infinitamente elevada e infinitamente profunda. Ou Platão está abaixo dosfilósofos atuais?17
Ironizando a pretensão progressiva de alguns filósofos, antes mesmo de
Hegel ter feito sua obra, os primeiros românticos alemães não se alinhavam dentro
de qualquer processo histórico teleologicamente orientado para algum futuro pré-
determinado. Eles defendiam, antes, o estado de tensão em que se encontravam.
Lutavam contra ele, por vezes. Entretanto, consideravam que a batalha não traria
qualquer vitória que não fosse seu próprio exercício. Mesmo porque, “a felicidade
não se amontoa como dinheiro e outras matérias, mediante comportamento
conseqüente”, conforme escreveu Friedrich Schlegel: “a felicidade surpreende-
nos, como a música nascida do éter aparece para logo desaparecer”18. Era esta
felicidade efêmera que buscavam os primeiros românticos.
Não podiam, portanto, antecipar aquele fechamento sistemático que Hegel
depois executou. Tampouco, porém, contentavam-se com a proibição crítica feita
por Kant quanto à verdade. Eles não abandonavam a pretensão ao absoluto,
embora sabendo paradoxalmente que esta jamais seria completada. Segundo
Friedrich Schlegel, “o salto até aquilo que é perfeito e acabado permanecerá
sempre infinito”19, ou seja, aberto. Só que, ainda assim, o salto é o que tentam, a
cada vez e de novo, os primeiros românticos alemães, pois “o jogo do comunicar
e do aproximar-se é a ocupação e a força da vida, uma vez que a completude só
existe na morte”20, afirma ainda Schlegel.
Era sugerido, aqui, outro caminho para a modernidade ocidental, que não
se jogava na sanha hegeliana pelo saber absoluto sem despertá-la, toda vez, pela
consciência crítica kantiana – e que não se contentava com esta sem sonhar com
aquela. Foi neste contexto que Hölderlin, embora amigo de Hegel, afirmou
romanticamente que “a unificação ilimitada se purifica por meio de uma
separação ilimitada”21. Diante da desmesura do desejo de acasalamento completo
entre homens e deuses, só há purificação pela separação, o que seria apresentado
17 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 101 (Athenäum,Fr. 303).18 Friedrich Schlegel, Lucinda (Portugal, Guimarães & C. Editores, 1979), p. 72.19 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 139 (Athenäum,Fr. 432).20 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 30.21 F. Hölderlin, “Observações sobre Édipo”, in Observações sobre Édipo; Observações sobreAntígona (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008), p. 78.
16
nas tragédias. Seu significado, por isso, seria melhor concebido no paradoxo.
“Nesse momento, o homem esquece de si e de deus, e se afasta, certamente de
modo sagrado”22. Suportar o afastamento dos deuses que caracteriza a época
moderna torna-se, paradoxalmente, o que há de sagrado para o homem. Início e
fim, ao contrário do que gostaria Hegel, não mais rimam. Talvez porque a vida
seja sempre o que fica no meio.
Nesse sentido, o amor entre arte e filosofia, para os primeiros românticos
alemães, não alcança qualquer completude final que pudesse salvar a
modernidade de todos os seus conflitos e sanar as ausências e vazios que a
atormentavam. “Poesia e filosofia são apenas extremos”23, afirma Friedrich
Schlegel. Só que ele mesmo aconselha: “vinculem os extremos, e terão o
verdadeiro meio”24. Mas o que fica no meio? Responde Schlegel: “o que está no
meio tem o caráter da vida”25. São a comunicação e a aproximação entre os
extremos da arte e da filosofia que dão a vida. Não se tratava de aniquilar ou
pacificar a diferença entre elas, então. Pelo contrário. Só quando não podemos
separar completamente alguma coisa de outra e tampouco juntá-las como se
fossem a mesma, aparece o exercício da alteridade. No caso dos primeiros
românticos alemães, este exercício ocorria entre a arte e a filosofia. Eles assim o
teorizaram e assim o praticaram. Meu objetivo, nesta tese, foi estudar esta teoria e
esta prática do amor entre arte e filosofia experimentadas pelos primeiros
românticos alemães. Seu percurso está sucintamente antecipado abaixo.
*
No primeiro capítulo desta tese, apresento quem foram os primeiros
românticos alemães, tarefa árdua por alguns elementos específicos de sua
situação. Primeiro, porque ainda não é comum conhecermos esses autores por si
mesmos: quando já ouvimos falar de alguns deles, o que é exceção, em geral foi
de segunda-mão através de outros pensadores ou só pontualmente a partir de
questões colocadas por outros mas que os tangenciam. Segundo, porque a
22 Ibid., p. 79.23 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 156 (Idéias, Fr.96).24 Ibid., p. 153 (Idéias, Fr. 74).25 Ibid., p. 162 (Idéias, Fr. 137).
17
efervescência da produção filosófica e artística daquele período da história alemã
entre o final do século XVIII e o começo do XIX torna este contexto bastante
emaranhado. Busquei, diante disso, descrever o clima dentro do qual se forma o
primeiro grupo romântico, assim como seus personagens e sua situação histórica,
definida a partir do acontecimento da Revolução Francesa. Junto, aproveitei para
apresentar os temas e as questões principais que, no decorrer da tese, são tratados,
e que esclareço a partir de agora, anunciando os pontos de parada da viagem que
este texto empreendeu.
No segundo capítulo, explicito o que me parece ser a situação não só
cronológica, mas também filosófica dos primeiros românticos alemães. Estavam
entre Kant e Hegel. Seu caráter era kantiano, ou seja, crítico quanto às
possibilidades de alcance da verdade absoluta. Seu desejo, porém, era hegeliano:
queriam o absoluto. Tal situação foi explorada dentro do cenário filosófico da
época. Idealismo era a doutrina em voga, sobretudo com Fichte. Bem cedo,
porém, Novalis e Hölderlin estabelecem suas diferenças quanto a ele, abrindo o
horizonte singular do que viria a ser o primeiro romantismo alemão. Isso ocorria
com sutileza, pois a proximidade teórica e afetiva entre todos esses pensadores era
grande. Hölderlin, por exemplo, era amigo de Hegel. “Mas esta proximidade é
problemática”, como observou Martin Heidegger: “o poeta, já nesta época, e a
despeito de toda aparência dialética que seus ensaios podiam mostrar, já tinha
ultrapassado e quebrado a dialética especulativa – enquanto Hegel estava no
processo de estabelecê-la”26. Parece-me que o mesmo vale para os primeiros
românticos alemães, embora Hölderlin não tenha pertencido ao grupo por eles
formado. Interdita-se, em ambos os casos, a síntese dialética como solução plena
para o desamparo da situação moderna. Intuição intelectual, como veremos, foi o
conceito central nessa discussão em torno do acesso ao absoluto, cabendo saber se
ela poderia superar a dicotomia entre sujeito e objeto no âmbito da doutrina da
ciência (Fichte) ou não (Hölderlin e Novalis). Era a tensão, e não a solução, que aí
aparecia.
No terceiro capítulo, em continuidade com o segundo, explico como a
emergência filosófica da arte no começo da época moderna surge justamente
diante da frustração de concretizar, no âmbito estrito do saber, o absoluto.
26 Martin Heidegger, Vier Seminare (Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1977), p. 25.
18
“Filosofia é na verdade nostalgia, o impulso de sentir-se em casa em toda parte”27,
dizia Novalis. Nostalgia esta que só poderia ser sanada com a superação da cisão
que apartava o homem, enquanto sujeito, do mundo, enquanto objeto. Só que o
conhecimento é sempre de algum objeto e para algum sujeito: aí o ser de tudo o
que é fica cindido. Não é absoluto. Não seria aí que nos sentiríamos em casa,
portanto. Era a arte, então, a dimensão na qual este absoluto poderia ser buscado,
porque seu jeito de dizê-lo dispensava a clareza objetiva da ciência. Neste ponto,
o jovem Schelling e Hölderlin parecem concordar. Dizer o absoluto, mesmo na
filosofia, exigiria sentido estético, para falar daquilo que não se evidencia, de algo
que só se apresenta como o que se ausenta. Já se anunciava, aí, o deslocamento da
filosofia para a arte e da arte para a filosofia que tomaria conta do primeiro
romantismo alemão.
No quarto capítulo, explico qual era esta arte moderna de que falavam os
primeiros românticos alemães. Enquanto Hegel enxergava a ascensão do caráter
espiritual pensante do homem moderno como sinal do fim dos dias da grande arte
atrelada à sensibilidade da matéria, os primeiros românticos alemães, neste
aspecto mais próximos de Schiller, viam aí apenas a transformação do caráter da
arte. Reflexão passava a ser sua marca. Foi o que pretenderam chamar de “poesia
transcendental”. Por analogia com o vocabulário de Kant, este caráter
transcendental significava que a arte não deveria apenas poetizar as coisas fora de
si, mas explicitar as condições de possibilidade do próprio ato artístico. Em suma,
a arte não deveria apenas ser, mas saber que era. Por isso, caberia a construção,
nesse contexto, do que os primeiros românticos compreendiam por “nova
mitologia”, em oposição à tradicional. Sua novidade estava em acolher a perda da
antiga mitologia naturalmente dada, em prol da artificial elaboração
autoconsciente de outra, moderna.
No quinto capítulo, trato da valorização sem precedentes do romance
como forma literária. Sua centralidade, para os primeiros românticos, estava em
que era o espaço privilegiado da construção de sentido na arte quando esta perdera
a segurança do amparo divino antes presente na mitologia tradicional. Misturando
os gêneros, ao invés de ser apenas mais um gênero, o romance seria prosa e poesia
juntas, permitindo a penetração da própria filosofia dentro da mesma obra.
27 Novalis, “Das Allgemeine Brouillon”, in Werke, Tagebücher und Brief, v. II (München, CarlHanser, 1978), p. 675 (n. 857).
19
Refletindo sobre si mesmo, o romance era a forma de arte destinada a dar sentido,
por precário que fosse, à falta de sentido em que o desamparo moderno deixara o
homem. Seu exemplo principal seria Goethe, com Os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister, obra exaustivamente discutida no romantismo.
No sexto capítulo, estudo a complexa gênese da noção de gênio na
modernidade. Ele deveria criar sem se fiar em regras prévias (como dizia Kant),
até para que obras como os romances pudessem ser arte, pois seu gênero não se
enquadrava na divisão tradicional. Liberdade tornava-se o centro da criação, por
oposição às regras que a pautavam durante o neoclassicismo francês. No teatro, os
exemplos de Racine e Corneille saíam de cena. Entrava Shakespeare. Sem deter
sua genialidade por conta de exigências exteriores à sua obra, ele criara a grande
poesia da era moderna. No lugar das regras fixas, os primeiros românticos, porém,
não colocavam o gênio como pura força subjetiva e pessoal, o que às vezes
ocorreu com os pré-românticos. Eles colocavam o pensamento. Toda criação
pensa a si mesma na sua singularidade, por isso não segue normas definidas antes
de si. Paradoxalmente, o gênio seria, ao mesmo tempo, espontâneo e reflexivo.
Ingenuidade, portanto, não seria característica necessária sua, mas sim o
pensamento criativo original.
No sétimo capítulo, mostro que, para compreender obras criadas
genialmente, a crítica transformava-se. Ela não poderia contar com parâmetros
prévios para falar da arte produzida fora de determinações tradicionais. Esta arte,
como observou Georg Lukács, “não é mais uma cópia, pois todos os modelos
desapareceram; é uma totalidade criada, pois a unidade natural das esferas
metafísicas foi rompida para sempre”28. Tal arte exigia que sua compreensão
abandonasse a simples verificação da adequação ou não a modelos, já que estes
deixavam de ser obedecidos. Por conta disso, os primeiros românticos alemães
contestavam a apropriação da Poética de Aristóteles pelos neoclassicistas
franceses, que sobre ela construíam a poética prescritiva que deveria orientar a
criação e pautar o julgamento da arte. Julgar, para os primeiros românticos, era o
contrário de criticar, pois supunha alguma legislação geral que absolve ou
condena a obra, ao invés de pensá-la na sua singularidade. Walter Benjamin
destacou que o conceito de crítica de arte do romantismo alemão era
28 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 34.
20
potencialização da obra e intensificação de sua reflexão. Ela continua o que a obra
fez. Por isso, a própria crítica, aliás, deveria ser poética.
No oitavo capítulo, explicito a questão que já se delineava nos anteriores:
a criação de outro contato do presente moderno com o passado clássico. Imitar a
antiguidade não seria a diretriz para a arte, ao menos não enquanto cópia. Ela
estaria submetida à formação da cultura moderna, devendo ser apropriada
criativamente. “Esta grande combinação”, para Friedrich Schlegel, “inaugura uma
perspectiva inteiramente nova e ilimitada daquela que parece ser a mais alta tarefa
de toda arte poética – a harmonia do clássico e do romântico”29. Não se tratava de
subserviência aos antigos como se fossem modelos e tampouco da sua negação
para dar luz ao novo. Era, antes, a formação do próprio (moderno) através do
diferente (antigo) que os primeiros românticos buscavam na criação exemplar do
gênio e na reflexão da crítica. Essa consciência de seu momento no tempo,
segundo Dilthey, foi a “primeira fundação da estética sobre a base da história da
arte”30.
Já o nono capítulo enfatiza menos o contato romântico com o passado e
mais com o futuro. “Estamos em relações com todas as partes do universo, assim
como com o futuro e a antiguidade”31, diz Novalis. Essas relações, porém, seriam
todas fragmentadas, pois os românticos não conseguem totalizá-las. “Eis o que faz
a abundância de esboços, estudos, fragmentos, tendências, ruínas e materiais
poéticos”32, para Friedrich Schlegel. Seu caráter de vanguarda opunha-se às
grandes filosofias da história, como a de Hegel. Essa situação era acolhida já na
própria fragmentação da escrita dos primeiros românticos, na qual se buscava a
consciência do instante, e não a consciência do processo histórico.
Retrospectivamente, Habermas diria que, em todo este contexto, “o conceito
profano de tempos modernos expressa a convicção de que o futuro já começou:
indica a época orientada para o futuro, que está aberta ao novo que há de vir”33.
No décimo capítulo, enfoco a fragmentação da escrita dos primeiros
românticos a partir de sua problematização da produção de sentido na linguagem.
29 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 76.30 Wilhelm Dilthey, Historia de la filosofia (México, Fondo de Cultura Econômica, 1996), p. 19931 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 86 (Fr. 92).32 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 21 (Lyceum, Fr.4).33 Jürgen Habermas, O discurso filosófico da modernidade (São Paulo, Martins Fontes, 2000), p.9.
21
Ironia e alegoria, para eles, evidenciavam, de dentro da própria linguagem, sua
falta de completude. Exploravam o paradoxo de que, se o sentido jamais é de todo
esclarecido, tampouco é de todo ausente. Estariam fortemente presentes na arte
moderna e na filosofia, o que suscitou duras críticas de Hegel, que desejava a
completude do saber. Priorizava-se, aqui, menos a beleza, como ideal clássico de
perfeição, do que o sublime, como forma alegórica descontínua de frisar a
impossibilidade da representação e, junto, apresentar esta impossibilidade.
No décimo primeiro capítulo, estudo a concepção de linguagem dos
primeiros românticos alemães. Para eles, palavras entendem-se melhor do que
aqueles que as usam, ou seja, a compreensão possui sua sede menos nos sujeitos
do que na própria linguagem. Este horizonte determinou seu exercício da escrita
coletiva, chamado de sinfilosofia e simpoesia, e dos chistes, entendidos como
achados na arte combinatória das próprias palavras para além do domínio da
consciência subjetiva. Nos dois casos, a figura do autor, prezada pela
modernidade como fonte de autoridade do sentido, diluía-se, dando espaço para a
linguagem poética em sua autonomia, fora do contexto pragmático. Nela, as
palavras não se ordenariam como significantes diante das coisas que teriam valor
de significados. Palavras e coisas teriam seu contato por espelhamentos fundados
em analogias e correspondências. Ritmo e cadência das palavras entre si trariam,
consigo, o caráter poético das próprias coisas, que não seriam apenas objetos
petrificados. Essa linguagem teria certo caráter divino, porém bastante atípico.
Pois a religião romântica costumava se apresentar através da falta, embora a falta
de religião, por sua vez, fosse vivida religiosamente. Exilados estavam os deuses,
como cantava Hölderlin.
No décimo segundo capítulo, encaminho palavras com caráter conclusivo.
Situo o contato entre arte e filosofia como forma de habitar o mundo moderno na
ausência dos deuses, fazendo a experiência desta ausência. Este gesto dos
primeiros românticos, porém, corria na contramão da tradição ocidental que, de
Platão a Hegel, separara a filosofia da arte. Esta separação fundava-se na
exigência do princípio de não-contradição e na sede pela compreensão total do
ser. Só que os primeiros românticos alemães acolhem tanto a contradição quanto a
ausência de compreensão completa do sentido das coisas. Pensam, aliás, que é aí
que se faz a vida, nas traduções que tornam o estranho familiar e o familiar
estranho: “não achar nada mais estranho que o comum, e ter sentido para o
22
estranho, procurar e pressentir muito nele”34, dizem. Romantizar é este gesto, que
nos desafia, portanto, a olhar a filosofia de outro jeito, a partir da exigência de que
ela seja poética.
Espero que, com o caminhar deste percurso aqui apenas anunciado, fique
claro que o caráter fragmentado dos escritos dos primeiros românticos alemães
não os torna apenas aleatórios ou avessos a toda tentativa de compreensão.
Interpretação é o que eles exigem. Não permitem que esperemos o sentido já
pronto. Devemos construí-lo junto com os textos. “Somente mostro que entendi
um escritor quando sou capaz de agir dentro de seu espírito, quando sou capaz de,
sem estreitar sua individualidade, traduzi-lo e alterá-lo multiplamente”35, afirma
Novalis. Nesse sentido, busquei, nesta tese, traduzir aquilo que os primeiros
românticos alemães pensaram, sabendo que este gesto traz necessariamente
alguma alteração, permanecendo aberta a possibilidade, portanto, de ouras
traduções, é claro. Interpretar é o gesto que jamais deixa seu objeto exatamente
como o encontrou, mas sem o qual este objeto não poderia produzir qualquer
sentido. Foi o que tentei fazer aqui.
Devo dizer, ainda, que os ecos contemporâneos das questões expostas
antes pelos primeiros românticos alemães às vezes precederam o meu contato com
eles mesmos, o que certamente determina algumas abordagens desta tese. Destaco
a idéia de linguagem do Heidegger tardio, o conceito de crítica de arte do jovem
Benjamin, a reflexão de Octavio Paz sobre a poesia e sua história moderna, a
crítica literária de Maurice Blanchot, a teoria do romance de Lukács, as teses de
Paul de Man, as observações sobre história da filosofia da arte de Peter Szondi e o
estudo de Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy sobre o próprio primeiro
romantismo. Em todos esses casos, explicita ou discretamente, o pensamento de
homens como Novalis e Friedrich Schlegel apontou caminhos que provavelmente
não teriam sido possíveis sem ele. Esses caminhos de outros autores, tantas vezes
brilhantes e originais, evidenciam a vivacidade do primeiro romantismo alemão.
Eles foram também decisivos para que esta tese fosse escrita do jeito que foi.
Por fim, gostaria de sublinhar que busquei escrever este texto dando aos
seus capítulos alguma autonomia. Lê-los separadamente é possível, embora o
34 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 56 (Fr. 31).35 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 98 (Athenäum,Fr. 287).
23
conjunto ajude a dar mais sentido às partes, já que elas oferecem constantemente
sugestões para assuntos tratados nas outras. Múltiplos são os contatos entre as
questões postas em todos os capítulos. Procurei apontá-los sempre que possível,
mas certamente não os esgotei. Percorrer os capítulos fora da ordem em que estão
expostos também é possível. Sua seqüência aqui apresentada foi a que me pareceu
mais coerente, contudo, sem dúvida há outros percursos possíveis. Fica, assim,
algum espaço desta tese que só ganha vida quando chega ao outro; e o escritor
“não o concebe parado e morto, mas vivo e reagindo”36, como dizia Friedrich
Schlegel. Leitor é este outro que escreve também o texto ao acolhê-lo, já que,
afirmam os primeiros românticos, o autor não consegue controlar completamente
o sentido daquilo que diz. Este pertence à linguagem.
36 Ibid., p. 38 (Lyceum, Fr. 112).
2
Breve momento de escrita:
quem foram os primeiros românticos
“Hoje, poucas pessoas vão querer dar a esta palavra um sentido real e
positivo”1. Essas linhas de Baudelaire, escritas em 1846, comentavam a palavra
“romantismo”. De lá para cá, a fortuna do termo não mudou muito, talvez tenha
até decaído. É comum empregarmos o adjetivo “romântico” para falar da ingênua
nostalgia do passado ou da sonhadora esperança do futuro. Tais sentimentos
podem até ter raízes, de fato, românticas, mas de modo nenhum dão conta, em sua
simplicidade, do que foi o romantismo ou daquilo que, em seus melhores
momentos, ele pretendeu. Menos ainda nos trazem o que permanece pulsando no
pensamento romântico quando lemos os seus primeiros autores.
Não é novidade a dificuldade de definir o escopo de movimentos
literários, escolas filosóficas ou períodos históricos. Nem é diferente com o
romantismo, especialmente se lembramos que ele “foi um movimento literário,
mas também foi uma moral, uma erótica e uma política”, como observou o poeta
Octavio Paz, completando ainda que, “se não foi uma religião, foi algo mais que
uma estética e uma filosofia: um modo de pensar, sentir, enamorar-se, combater,
viajar” – “um modo de viver e um modo de morrer”2.
Esse amplo raio de ação do romantismo explicita pelo menos dois fatores
que dificultam a tarefa de defini-lo. Primeiro, os românticos, em geral, buscaram
mais borrar demarcações do que desenhá-las, apagar fronteiras do que fixá-las,
misturar gêneros do que conceituá-los. Segundo, seu caráter transgressor os fazia
atacar cada fundamento conquistado e cada caracterização mais sólida, que eram
rapidamente derrubados pelo poder corrosivo da sua própria crítica. Em suma:
1 Charles Baudelaire, “Salão de 1846”, in Poesia e prosa (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995), p.674.2 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 83.
25
como definir algo que já foi chamado de “revolução permanente”3, que se quer
essencialmente inquieto, irônico e contraditório?
Não é difícil, portanto, concordar com Arthur O. Lovejoy, para quem
nenhuma visão do homem ou do mundo e nenhuma forma filosófica ou estética
específicas caracterizariam de modo pertinente tudo aquilo que chamamos de
romântico4. Ele achava que definir o romantismo seria impossível, por conta das
diversas matrizes envolvidas neste fenômeno cultural ocidental entre 1780 e 1848.
Para além das divergências nacionais e das diferenças ideológicas, até essa
suposta limitação cronológica parecia extremamente flexível. Resumindo, a
dificuldade de compreender o romantismo não advém da escassez de definições
sobre ele, mas sim do excesso.
Não pretendo desmentir essa tese, como tentou fazer, por exemplo, René
Welleck, ao caracterizar o romantismo pela predominância da imaginação, da
natureza, do símbolo, do mito e, sobretudo, pela união de sujeito e objeto5. Mas
caberia questionar se a resistência a definições que exibe o romantismo não é, por
si mesma, fator decisivo para compreender o que ele é. Se for assim, é como se o
romantismo, por si mesmo, já nos forçasse a pensar para além do modo
classificatório habitual que ele tanto criticou.
Mesmo porque, como notou Charles Larmore, “sem dúvida, os temas
românticos formaram nosso pensamento e nossa experiência de muitas maneiras,
mas nós ainda precisamos ver claramente qual sua verdadeira promessa”6. Bem
antes dele, Baudelaire já pedia: “que nos lembremos das inquietudes destes
últimos tempos, e veremos que, se restaram poucos românticos, foi porque poucos
dentre eles encontraram o romantismo”7. Dentre os poucos, estavam aqueles nos
quais nos deteremos, aqui, particularmente: os primeiros românticos, assim
chamados por terem, pela primeira vez, assumido a palavra “romântico” como
ponto central de seu pensamento e a empregado positivamente.
3 Charles Rosen e Henri Zerner, Romanticism and Realism: The Mythology of Nineteenth-CenturyArt (New York, The Viking Press, 1984), p. 7-48.4 Arthur O. Lovejoy, “On the Discrimination of Romanticisms”, in Essays in the History of Ideas(Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1948), p. 228-253.5 René Welleck, “The concept of Romanticism in Literary History” e “Romanticism Re-examined”, in Concepts of Criticism (New Haven, Yale University Press, 1963), p. 161 e 218.6 Charles Larmore, The Romantic legacy (New York, Columbia University Press, 1996), p. xv.7 Charles Baudelaire, “Salão de 1846”, in Poesia e prosa (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995), p.674.
26
*
É claro que, assim, privilegio a abordagem “histórica” singular que situa
no tempo e no espaço o romantismo, ainda que seus efeitos não fiquem aí
circunscritos. Dou menor ênfase à abordagem “psicológica”, que dilata o adjetivo
romântico para diversos lugares e épocas, sem preocupação com sua situação
específica. Parece-me que esta abordagem, embora tenha seu papel, pode trair a
historicidade exigida pelos próprios primeiros românticos e corre o risco de, em
meio à vulgata do “sentimento do sentimento”, perder, mais uma vez, o que ficou
prometido na sua origem. Mesmo porque, os primeiros românticos, como notou
Frederick Beiser, são parte do “esforço contra o subjetivismo” da filosofia alemã
no final do século XVIII: “bem antes de consistir no triunfo progressivo do
subjetivismo, na gradual expansão do círculo da consciência, o desenvolvimento
do idealismo alemão é mais a história da crescente reação contra o subjetivismo”8.
É comum situar “a emergência do romantismo”9 entre os ingleses e,
sobretudo, os alemães. Muitas foram as razões aventadas para justificar “a
primazia da vertente alemã (de 1796 em diante), a primeira a empregar, numa
conotação crítica e histórica, a palavra romântico, e que selaria a fortuna teórica
desse termo”10. É certo que a Reforma Protestante, ao defender que a
interpretação da Bíblia não era exclusiva da Igreja mas dependia da revelação
pessoal, contribuiu, com seu exemplo, para a liberdade que os românticos queriam
na leitura de todo e qualquer texto. “Lutero conquistou a liberdade espiritual (…),
estabelecendo vitoriosamente que aquilo que seria a eterna determinação do
homem deveria acontecer nele mesmo”11, como notou Hegel. Também não há
dúvida de que o atraso cultural alemão frente à Itália e à França estimulava a
tentativa de criação intelectual independente da tradição clássica que reinava
nesses países, que se colocavam como herdeiros da antiguidade grega. Foi isso
que alimentara já o pré-romantismo alemão.
8 Frederick C. Beiser, German idealism: the struggle against subjectivism, 1781-1801 (Cambridge,Harvard University Press, 2002), p. 2.9 Nicholas V. Riasanovsky, The Emergence of Romanticism (New York, Oxford University Press,1992).10 Benedito Nunes, “A visão romântica”, in J. Guinsburg, O romantismo (São Paulo, Perspectiva,2002), p. 52.11 G. W. F. Hegel, Filosofia da história (Brasília, Editora UnB, 1999), p. 362.
27
Mas, além de tudo isso, havia o clima comum, na Europa, de excitação por
conta do evento político capital que foi a Revolução Francesa, em 1789, bem
como de seus efeitos: a queda da monarquia em 1792, a fundação da República, a
decapitação de Luiz XVI, a ditadura jacobina. Seu impacto entre os alemães não
tem como ser superestimado. Kant, como se sabe, percebia nos espectadores da
Revolução Francesa certa simpatia de aspirações que chegava ao entusiasmo12.
Segundo famosa anedota, seu passeio diário pela cidade de Köningsberg,
realizado religiosamente na mesma hora durante toda a vida, só foi interrompido
uma vez, para conseguir notícias da Revolução Francesa.
Entretanto, uma “revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo
pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, porém nunca produzirá a
verdadeira reforma do modo de pensar”13, dizia Kant. Essa foi a direção forte
tomada pela cultura alemã: pensar as transformações que ocorriam no âmbito
mundano da história. Heine falava aos franceses: “nós tivemos revoltas no mundo
intelectual assim como vocês no mundo material, e ficamos tão excitados com a
demolição do dogmatismo antigo quanto vocês com a queda da Bastilha”14. Marx
encontrava entre os alemães a consciência teórica do que as outras nações estavam
fazendo naquela mesma época15.
Essa direção, para Marcuse, deveu-se ao fato de que os alemães não
encontravam as condições econômicas e políticas para seguir o exemplo francês e
perpetrar a revolução concreta. Nesta altura, o território alemão estava
fragmentado em inúmeros principados e sua população era sobretudo agrária, sem
a formação da classe média que poderia se opor ao governo. Por aí, Marcuse
explica o caráter idealista da filosofia alemã: “enquanto a Revolução Francesa
começava por assegurar a realização da liberdade, ao idealismo alemão cabia
apenas se ocupar com a idéia de liberdade”16. Lukács caminha em compreensão
semelhante, ao falar sobre o jovem Hegel, contemporâneo dos românticos.
12 I. Kant, O conflito das faculdades (Lisboa, Edições 70, 1993).13 I. Kant, “Resposta à pergunta: que é ‘Esclarecimento’?”, in Textos seletos (Petrópolis, Vozes,1985), p. 104.14 Heinrich Heine, “Concerning the History of Religion and Philosophy in Germany”, in TheRomantic School and Other Essays (New York, Continuum, 1985), p. 212.15 Karl Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel (São Paulo, Boitempo, 2005).16 Herbert Marcuse, Razão e Revolução: Hegel e o advento da teoria social (São Paulo, Paz eTerra, 2004), p. 16.
28
Estamos no início de um novo período histórico: é o que Hegel nos diz noscursos ministrados em Iena. A evolução da humanidade – que conheceu umacrise na época do iluminismo e, em particular, com a Revolução Francesa –atingiu agora uma nova forma, recebeu uma nova figura no período napoleônico;e a tarefa da Alemanha é encontrar em sua literatura, em sua filosofia, a ideologiae o espírito deste novo período.17
É conhecido o repúdio de Hegel à Revolução Francesa e, sobretudo, ao
período do Terror que se seguiu, pois esta liberdade solta se opunha à exigência
de um Estado, crucial para ele. Porém, o impacto prolongado por Napoleão, a
quem Hegel saudara como a “alma do mundo a cavalo”, refletia o sentimento de
que o espírito rompeu com o mundo “que até hoje durou; está a ponto de
submergi-lo no passado, e se entrega à tarefa de sua transformação”, portanto,
esse desmoronar-se gradual “é interrompido pelo sol nascente, que revela num
clarão a imagem do novo mundo”18.
Embora os primeiros românticos sejam muito diferentes de Hegel,
provavelmente eles concordariam, vagamente, “que nosso tempo é um tempo de
nascimento e trânsito para uma nova época”19. Não por acaso, Friedrich Schlegel,
líder do primeiro grupo romântico, afirma que “a Revolução Francesa, a doutrina-
da-ciência de Fichte e o Meister de Goethe são as maiores tendências da época”20.
Nessa passagem, é preciso frisar a palavra “tendência”, pois ela dá o sentido de
trânsito e nascimento a que se referia Hegel, ou seja, de que a época não está
pronta, mas, antes, em devir. Só que, diferentemente de Hegel, Friedrich Schlegel
não supunha que tal transformação cessaria e alcançaria um fim, pois, assim como
“o gênero poético romântico”, poderíamos dizer: “sua verdadeira essência é
mesmo a de que só pode vir a ser, jamais ser de maneira perfeita e acabada”21.
Revolução Francesa na política, Fichte na filosofia e Goethe nas artes
seriam as grandes tendências da época. Diante da aparente disparidade de
gravidade do âmbito político perante o filosófico e o artístico, Friedrich Schlegel
adverte: “alguém que se choca com essa combinação, alguém ao qual nenhuma
revolução pode parecer importante, a não ser que seja ruidosa e material, alguém
17 György Lukács, O jovem Marx e outros escritos de filosofia (Rio de Janeiro, Editora UFRJ,2007), p. 100-101.18 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 26.19 Ibid., p. 26.20 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 83 (Athenäum,Fr. 216).21 Ibid., p. 65 (Athenäum, Fr. 116).
29
assim ainda não se alçou ao alto e amplo ponto de vista da história da
humanidade”22. Mas ele não pára por aí, e destaca que “alguns livrinhos, nos
quais na época a plebe não prestou muita atenção, desempenham um papel maior
do que tudo o que esta produziu”23.
Esse tipo de declaração motivou, mais tarde, o ataque ao “romantismo
político” por Carl Schmitt. Para ele, estaria presente aí certa absolutização da arte,
e “nem decisões religiosas, morais ou políticas e nem conceitos científicos são
possíveis no domínio daquilo que é exclusivamente estético”24. Ele situa o
romantismo na linhagem da filosofia moderna que, por sua vez, “é governada por
um cisma entre pensamento e ser, conceito e realidade, mente e natureza, sujeito e
objeto”25. No caso romântico, esses conflitos seriam solucionados, segundo ele,
pela arte: “todas as oposições e diferenças, bem e mal, amigo e inimigo, Cristo e
Anticristo, podem se tornar contrastes estéticos e meios de compor um romance, e
podem ser esteticamente incorporadas no efeito total de uma obra de arte”26.
Schmitt, contudo, engana-se ao generalizar que a reação estética do
romantismo ao racionalismo moderno “transforma as oposições em balanceada
harmonia estética”27. Tal afirmação não é válida para todas as vertentes
românticas e, a meu ver, certamente não para a primeira, já que ela não acreditava,
a rigor, em solução final para os conflitos com que lidava. É verdade que, pelo
menos em seu sentido estrito, os primeiros românticos não primam pela ação
política, como aponta Schmitt. Mas isso não faz deles escapistas ou conformistas,
pois a arte, pensavam, tem caráter eventualmente revolucionário, embora sem os
ruídos da ação política e por outras vias.
Por isso, a acolhida romântica da Revolução Francesa não foi total. Se os
ideais de liberdade e fraternidade pareciam ir ao encontro do romantismo, já a
igualdade parecia ir de encontro a ele, por conta de sua valorização da diferença,
entre indivíduos ou nações mas também filosoficamente. Foi este mesmo motivo
que levou os românticos a reagirem diante do racionalismo do iluminismo, cujo
caráter universalista trazia, segundo eles, a pretensão de tornar homogêneo o que é
22 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 83 (Athenäum,Fr. 216).23 Ibid., p. 83 (Athenäum, Fr. 216).24 Carl Schmitt, Political Romanticism (Cambridge, MIT, Press, 1986), p. 16.25 Ibid., p. 52.26 Ibid., p. 16.27 Ibid., p. 55.
30
heterogêneo: os homens, os países, a própria vida. Isso os levava a desconfiar
bastante da Revolução Francesa, não apenas pelo terror por ela desencadeado com
Robespierre e os jacobinos, mas também porque, especialmente com Napoleão,
revelava-se um ímpeto imperialista temerário, que ameaçava impor violentamente
os padrões franceses sobre a Europa.
A Revolução Francesa pode ser considerada o maior e mais notável fenômeno dahistória dos Estados, um terremoto quase universal, um imenso dilúvio no mundopolítico; ou o protótipo das revoluções, a revolução pura e simples. Estes são ospontos de vista habituais. Mas também pode ser considerada como centro eapogeu do caráter nacional francês, onde estão concentrados todos os paradoxosdele, como o mais temível grotesco da época, onde seus preconceitos maisarraigados e pressentimentos mais fortes se mesclam num caos pavoroso, seenredam da maneira mais bizarra numa colossal tragicomédia da humanidade.28
Esta ambivalência pela qual os primeiros românticos, como Friedrich
Schlegel, relacionaram-se com a Revolução Francesa, às vezes louvada, às vezes
renegada, enraíza-se na disputa franco-alemã que remonta ao pré-romantismo
germânico, pois ali se formou certa consciência pela qual não apenas se buscava o
caráter individual da nação mas, além disso, recusava-se, sobretudo, a perpetuação
francesa dos “preconceitos arraigados” provenientes da continuação impensada da
antiguidade. Recusar a Revolução Francesa era recusar o possível expansionismo
do neoclassicismo francês e de sua estreita interpretação do classicismo
propriamente grego.
Se os primeiros românticos, portanto, queriam uma revolução, ela não era
política, mas artística e filosófica. “Para a Alemanha, havia apenas um caminho
para a cultura: o interno, o da revolução do espírito”29, comenta Lukács. Friedrich
Schlegel afirmava que “a poesia e o idealismo são os centros da arte e cultura
alemãs”30. Se, das três tendências da época, a política possuía cunho francês, a
artística e a filosófica caberiam aos alemães. São elas que os próprios românticos,
portanto, buscaram levar adiante.
*
28 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 134 (Athenäum,Fr. 424).29 Georg Lukács, Die Seele und die Formen. Essays (Darmstadt e Neuwied, Luchterhand, 1971), p.65.30 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 534.
31
Pouco a pouco, se não definimos o romantismo, pelo menos nos
aproximamos da sua origem. Situá-lo perto da filosofia idealista alemã pareceu
ser, até aqui, o melhor caminho, como notou Rudolf Haym ao falar da “escola
romântica”31 ainda no século XIX. Mas ele pode trazer a tentação de fazer do
primeiro romantismo alemão a mera versão literária da filosofia de Fichte,
Schelling e até de Hegel. Tão certo quanto o estreito vínculo entre românticos e
idealistas é que uns não foram só a tradução poética dos conceitos dos outros.
Existe, nesta hipótese, o básico problema biográfico: Fichte logo desvinculou suas
idéias daquelas dos românticos, Schelling participa do grupo romântico mas
depois se afasta deles pela maior parte da vida e Hegel os atacava
veementemente32.
Mas o maior problema desta cômoda compreensão dos românticos como
versão abrandada das teorias idealistas é que ela passa por cima, em sua distinção,
justamente do que está em jogo. Tende-se a sugerir, então, a figura caricata do
romantismo sentimental, subjetivo, irracional, impulsivo, caótico e dispersivo,
julgando-o segundo as alternativas duais que, ao menos na sua primeira
expressão, ele questionava, nas quais, do lado oposto, estariam a frieza, o
objetivo, o racional, a sobriedade, a ordem e o centro. Em geral, essas dualidades
são trazidas à tona para situar a origem do romantismo alemão no extremo inferior
das hierarquias de valor assim estabelecidas – extremo no qual se enquadrariam
muitas manifestações românticas outras, tardias ou anteriores, mas não as do
próprio primeiro romantismo. Dentre as dualidades, está a alternativa entre
filosofia ou poesia. Mas, no primeiro romantismo, trata-se de filosofia e poesia, da
relação amorosa entre elas.
Do ponto de vista tradicional, porém, essa relação feita pelos românticos
em geral foi vista como mútuo empobrecimento. Nicolai Hartmann afirmava que
só assim entende-se “que de fato a filosofia se torne para eles simbolicamente
vaga e a poesia transborde intelectualidade metafísica”33. Sua visão parece não
31 Rudolf Haym, Die romantische Schule (Berlin, Gaertner, 1870).32 “É, de fato, no esforço de pensamento para superar o ‘romantismo’ de sua juventude,romantismo que foi de toda a sua geração, que consiste a grandeza de Hegel”. Alexandre Koyré,“Hegel em Iena”, in Estudos de história do pensamento filosófico (Rio de Janeiro, ForenseUniversitária, 1991), p. 140.33 Nicolai Hartmann, A filosofia do idealismo alemão (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,s/d), p.192.
32
comportar justamente a duplicidade do pensamento filosófico e poético dos
românticos, empurrando-o só para o lado da arte: “o romantismo puro é tudo
menos filosofia; mais próximo dele se encontra a poesia”34.
Este é, ainda hoje, o desafio que os primeiros românticos impõem e a
razão pela qual permanecem, em geral, discretamente mencionados, seja na arte
ou na filosofia, pois cada lado os vê como impuros demais para si e, portanto,
prefere jogá-los para o outro. No caso mais agudo da filosofia, os primeiros
românticos são vítimas de grande preconceito por conta da forma fragmentária na
qual apresentaram seu pensamento, em especial na sua época, na qual reinava a
forma do sistema. Nicolai Hartmann os acusou da falta de um “sistema de
conceitos”35. Nesses casos, julga-se o sintoma, ou seja, a aparência do pensar na
forma de fragmentos, sem, contudo, olhar a sua causa, pois tal escolha, no caso
romântico, longe de ter sido feita pela carência de filosofia, foi feita por razões
filosóficas.
Tentou-se, às vezes, dizer que se trataria, então, de crítica de arte. Mas
como ignorar os poemas, romances, peças, contos e demais experimentações de
linguagem que os primeiros românticos fizeram e que dificilmente se
enquadrariam no conceito corrente de crítica, aliás tão diferente do deles? Não
bastasse isso, é possível que assim apenas redobrássemos o problema, pois faltaria
compreender a natureza filosófica que assume a crítica de arte romântica. Mesmo
que isso fosse possível, restaria a questão crucial de que, como notou Benjamin,
os românticos “superaram a diferença entre a crítica e a poesia”36.
Permanece, assim, o problema do sentido do romantismo na sua origem.
Mas isto pode não ser mau, já que é sinal de que ele continua a desafiar nossas
maneiras habituais de pensar, mesmo passados mais de dois séculos. Pode valer,
por fim, lembrar que, segundo os próprios primeiros românticos, “o sentido
somente entende algo quando o acolhe em si como germe, o alimenta e deixa
crescer até a flor e o fruto”37. Sendo assim, melhor do que definir o primeiro
romantismo, é acolhê-lo e aguardar a flor e o fruto que podem advir do seu
crescimento. 34 Ibid., p. 189.35 Ibid., p. 189.36 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 77.37 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 145 (Idéias, Fr.5).
33
*
Diante da gritante dificuldade de classificar o sentido do pensamento do
primeiro romantismo alemão, seja como filosofia, arte ou crítica de arte, já que ele
inclui tudo isso mas segundo relações sempre novas para a nossa tradição,
Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, por exemplo, preferem defini-lo
segundo critérios bastante empíricos.
Todo o “projeto” romântico está nisso: este momento de escrita breve, intenso ebrilhante (cerca de dois anos e algumas centenas de páginas), que por si só abretoda uma era, mas se exaure na sua inabilidade de alcançar sua própria essência eobjetivo, e que, em última instância, não encontra nenhuma outra definição senãoum lugar (Iena) e uma revista (a Athenäum).38
Pode até ser que, além de Iena, tenha havido mais alguma cidade, como
Dresdem. Pode ser que não tenha sido só uma revista, mas tenham sido três. Pode
ser que não tenham sido dois anos, mas cinco. Mesmo que se alargue a definição,
porém, o núcleo do primeiro romantismo alemão continua sendo Iena, a
Athenäum e os anos de 1798 a 1800. Seu pequeno raio no espaço e sua rápida
presença no tempo são, no entanto, inversamente proporcionais à sua energia, ao
seu empenho e à verdadeira revolução que fizeram no pensamento diante dos
marcos tradicionais, especialmente no campo da teoria da arte.
Situados, portanto, na parte mais ao norte do território alemão, os jovens
primeiros românticos puderam usufruir da paz que reinava ali em Iena com o
armistício que veio em 1795 depois da derrota da Prússia e de seus aliados na
guerra contra a França, bem como de uma universidade com grande liberdade
acadêmica devido a diversos fatores históricos39, na qual lecionaram Reinhold,
Schiller, Fichte, Schelling e Hegel. No meio do furacão que varria a época, eles
buscaram responder, pelo pensamento, ao que então ainda nascia: a modernidade.
Parece razoável datar em 1796 o início dessa estória. No verão deste ano,
Friedrich Schlegel juntou-se a seu irmão mais velho, August, na cidade de Iena,
onde este lecionava. Naquela altura, Friedrich já escrevera, mas não publicara, o
38 Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, The litarary absolute: the theory of literature inGerman romanticism (New York, State University of New York Press, 1988), p. 7.39 Foi o que notou Theodore Ziolkowski, German Romanticism and its Institutions (New Jersey,Princeton University Press, 1990).
34
ensaio Sobre o estudo da poesia grega, texto que adianta muitos temas e posições
românticas sobre a relação com a antiguidade clássica, embora num estilo tímido
e pouco resolvido. Seu irmão já era, então, respeitado crítico literário, tendo
valorizado autores como Dante e Shakespeare, que seriam centrais para o cânone
estético romântico.
Em 1797, Friedrich vai a Berlim. Lá, torna-se amigo de Schleiermacher,
teólogo cujo pensamento formulou as bases da hermenêutica moderna, e de
Ludwig Tieck, conhecido autor de peças, romances e alguns ensaios. Desde que
fora estudante em Leipzig, ele também fizera laços de amizade bem próximos
com Friedrich von Hardenberg, mais conhecido pelo pseudônimo Novalis, figura
central da poesia ocidental e decisiva na filosofia romântica. Todas essas relações,
entre outras, teciam os fios que serviriam de rede para que se formasse o
movimento romântico.
Seus primeiros encontros grupais ocorreram no verão de 1798, em
Dresdem, por convite dos irmãos Schlegel. Estavam lá Caroline Schlegel, esposa
de August, e Novalis, além de Fichte, professor de muitos deles, e de seu
discípulo Schelling. Parte desses encontros era no museu da cidade. Temos
alguma noção de seu conteúdo pois nessa altura a Athenäum já havia sido fundada
pelos irmãos Schlegel, que a comandavam. Nela, August e Caroline publicaram o
texto As pinturas, que, em forma de diálogo, dava conta das “conversações no
Museu de Dresdem”. Esse texto adianta a discussão central dos primeiros
românticos sobre a linguagem, pois gira em torno da sua relação com as artes
plásticas em geral. “Para todas as artes, como quer que se chamem, o único órgão
de comunicação comum é a linguagem”40, chegam a afirmar.
É possível que 1799 tenha sido o ano em que a interação do grupo atingiu
o cume. Entre 11 e 15 de novembro, ocorreu a mais famosa reunião dos primeiros
românticos em Iena, nas quais estavam presentes os irmãos Schlegel e Tieck com
suas respectivas companheiras, Schelling, o físico Johann Wilhelm Ritter e
Novalis junto com seu irmão. Novalis, aliás, lê seu texto A cristandade ou a
Europa para o grupo, que no entanto não o acolhe como esperava seu autor e,
assim, é recusado para publicação na Athenäum.
40 Caroline y August Schlegel, Las pinturas (Buenos Aires, Biblos, 2007), p. 37.
35
Embora tenha sido recusado pelo grupo, este texto serve, até hoje, para
alimentar a polêmica que tenta, retrospectivamente, enxergar certo
“conservadorismo romântico” que, por sua vez, colocaria o movimento na
“origem do totalitarismo”41 político que vicejou entre os alemães mais de um
século depois. Lidas assim, as teses religiosas de Novalis, desde a defesa do
cristianismo, conteriam contornos reacionários. Esta leitura, porém, costuma
esquecer a forte ambiguidade do texto, que não permite simplesmente alojá-lo no
começo desta linhagem conservadora. Sua singularidade gritante suscitara
divergência de opiniões desde sua origem, quando foi lido entre os primeiros
românticos alemães, revelando, aliás, como era concretamente a dinâmica de seus
encontros.
Neste caso, por exemplo, Schelling escreveu um poema satírico contra
Novalis e o entusiasmo religioso do texto. Friedrich Schlegel, então, sugeriu a
publicação conjunta do escrito de Novalis e do poema de Schelling.
Retrospectivamente, Dorothea Veit e Tieck deram depoimentos contraditórios
sobre o tema: a primeira dizia apenas ela ter sido contra a publicação, enquanto o
segundo falava de rejeição geral ao texto de Novalis. Schleiermacher, embora não
estivesse no encontro, tomou conhecimento do escrito e não gostou, sobretudo da
visão exposta sobre o papado romano. August Schlegel sugeriu pedir a opinião de
Goethe, que desaconselhou a publicação do texto, tendo em vista as polêmicas
reações que a Athenäum já vinha suscitando42.
No ano de 1800, o último de grande vigor do grupo, Friedrich Schlegel
publica aquele que talvez seja o mais fundamental documento do primeiro
pensamento romântico, a Conversa sobre a poesia. Sua centralidade aumenta pelo
fato de que a dita conversa envolve personagens que correspondem ao retrato do
núcleo do grupo de Iena: “Antonio” é o próprio Friedrich, “Camila” é sua
companheira e futura esposa Dorothea, “Andrea” é o irmão August Wilhelm
Schlegel, “Amalia” é sua mulher Caroline, “Lothario” é Novalis, “Marcus” é
Tieck e “Ludoviko” é Schelling. Logo no início do texto, Friedrich Schlegel, em
tom que confunde o biográfico e o ficcional, explica o seu teor.
41 Roberto Romano, Conservadorismo romântico. Origem do Totalitarismo (São Paulo, Unesp,1997).42 Essas informações podem ser achadas em José Miranda Justo, “As articulações do pensamento ea questão da história”, in Novalis, A cristandade ou a Europa (Lisboa, Antígona, 2006), p. 7.
36
Tem-me sido sempre estimulante falar de poesia com poetas e pessoas deinclinação poética. De muitas conversações deste gênero jamais me esqueci,enquanto de outras já não sei ao certo o que pertence à fantasia e o que pertence àlembrança; muita coisa efetivamente ocorreu, e o resto terei inventado. Como naconversa que se segue, que deve apresentar em oposição pontos de vistacompletamente diferentes, cada qual podendo apontar o espírito infinito da poesiasob uma nova luz, e todos eles se esforçando, mais ou menos, às vezes de umângulo, às vezes de outro, para alcançar o âmago da questão. O interesse destavariedade de abordagens fez-me decidir por partilhar o que havia observadonuma roda de amigos, e inicialmente pensado apenas em referência a estes…43
Tal partilha é a escritura do primeiro romantismo alemão. Na explicação
da estrutura de “conversa” de seu texto, Friedrich Schlegel, ao mesmo tempo,
situa a razão de ser da forma do “fragmento”, provavelmente a mais central
daquelas empregadas por ele e seus amigos. Fragmento, para os românticos, não
era algo póstumo ou circunstancialmente incompleto, mas o modo, por
excelência, de abordar a verdade ou, como eles chamavam, o absoluto. Este modo
era justamente o da combinação de diferentes perspectivas, como, por exemplo, as
diversas opiniões de um diálogo, de sorte que cada uma delas pudesse lançar foco
de luz sobre este ou aquele aspecto da questão.
É claro, ainda pela passagem citada, o quão decisivas eram as relações
fraternais do grupo, o que fora anunciado, aliás, desde o início do projeto da
Athenäum. Seus laços iam além dos objetivos artísticos ou filosóficos. Eram laços
amorosos, tanto de amizade quanto eróticos. Não apenas os irmãos Schlegel
estavam lá com suas companheiras. Schelling, por exemplo, parece ter tido
especial interesse por Caroline, mulher de August com quem ele se casaria mais
tarde, em 1803. Ela, aliás, recebeu, por parte de Schiller, a alcunha de “Madame
Lucífer”44, por conta da atração sexual e intelectual que exercia sobre os homens
nos círculos sociais da época. Romanticamente, o convívio no grupo encorajava a
interação que fugisse dos padrões tradicionais de relacionamento social e buscava
exercitar o lado mais liberal da ascendente classe burguesa.
Liberal, para os românticos, era “aquele que é, como que por si mesmo,
livre de todos os lados e em todas as direções, e atua em toda a sua humanidade;
que venera, na medida de sua força, tudo aquilo que age, é ou será, e participa de
toda vida sem se deixar desviar, por visões limitadas, ao ódio ou desprezo por ela”
43 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 31.44 É o que nos conta Gisela Dischner, Caroline und der Jenaer Kreis (Berlin, Verlag KlausWagenback, 1979), p. 81.
37
45. É a disposição de conversar, de não se limitar, de comunicar. E os amores eram
as experiências mais felizes nesse sentido. Friedrich Schlegel, que defendera
abertamente o amor livre no seu romance Lucinda, de 1799, não hesitou em
deixar isto claro em um dos fragmentos da Athenäum.
Quase todos os matrimônios são apenas concubinato, casamento morganático ou,antes, tentativas provisórias e aproximações longínquas de um casamento efetivo,cuja essência própria (…) consiste em que muitas pessoas devem se tornar umasó. Pensamento primoroso, cuja realização parece no entanto envolver muitas egrandes dificuldades. Por isso mesmo, aqui se deveria limitar o menos possível oarbítrio, que também deve ter direito à palavra quando o que está em questão é sealguém quer ser um indivíduo por si ou apenas parte integrante de umapersonalidade coletiva; e não se pode prever o que de profundo se poderia objetarcontra um casamento à quatre. Se, não obstante, o Estado quiser manter à forçaessas tentativas frustradas de matrimônio, impedirá com isso a possibilidade dopróprio matrimônio, que poderia ser estimulado por tentativas novas e talvezmais felizes.46
Em seus momentos mais audaciosos, alguns dos membros do círculo
romântico, na esteira das sugestões de Friedrich Schlegel, iriam até imaginar que
ali podia se formar algo como uma sociedade secreta, marginal. Para além das
curiosidades biográficas, isto é coerente, a despeito da possível ingenuidade, com
a crítica romântica à crescente atomização da sociedade moderna e com o seu
repúdio à cultura filistéia que, prezando a erudição vazia, tirava da arte sua
ligação com a vida e da vida sua ligação com a arte.
Essa interação afetiva e criativa estimulava todo o grupo. Estudando
juntos, indo a aulas juntos, em contato com as maiores figuras da época, como
Goethe, Schiller e Fichte, discutindo exaustivamente a filosofia e a arte de seu
tempo, mas também a política e a sociedade, os primeiros românticos deram luz a
uma comunidade intelectual única. Sua intensa convivência vinha de par com a
importância que a amizade e o amor tinham no seu pensamento. Friedrich
Schlegel afirma que “seria melhor não escrever obras cujo ideal não tem para o
poeta realidade tão viva e, por assim dizer, tanta personalidade quanto a amada ou
o amigo”, ou que “ao menos é certo que não se tornarão obras de arte”47.
Essa convivência tornava possível, na prática, a subversão do princípio
autoral na arte e na filosofia. Muitas vezes, os primeiros românticos escreveram
45 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 140 (Athenäum,Fr. 441).46 Ibid., p. 52 (Athenäum, Fr. 34).47 Ibid., p. 65 (Athenäum, Fr. 117).
38
textos anonimamente, que seriam produções coletivas, nas quais não haveria uma
só pessoa como autor, questionando a idéia de uma subjetividade empírica
responsável por uma obra. Boa parte da Athenäum foi assim oferecida ao público,
o que não deixa de ser mais uma versão da rebelião tipicamente romântica contra
os cânones normativos, ou seja, contra a figura da autoridade. Foi o que eles
chamaram de “simpoesia” e “sinfilosofia”, onde o prefixo “sin” significa
“mesmo”, “junto”. Seria possível, então, estar numa mesma sintonia e, assim,
poetizar ou filosofar junto, o que ressoa na formação concreta de uma comunidade
filial.
*
Por conta da produção conjunta, que poderíamos mesmo chamar de escrita
coletiva, é por vezes difícil discernir o “patrimônio intelectual” de cada um dos
integrantes do primeiro grupo romântico, o quanto de originalidade pertence a
cada um, o quanto um influenciou o outro. Mesmo antes da formação deste
primeiro grupo em Iena, o trânsito de idéias era forte o suficiente para fomentar
sobre si, hoje em dia, “um projeto de pesquisa substancial, ao qual Dieter Henrich,
iniciador e líder deste trabalho, deu o nome de ‘pesquisa-da-constelação’”48, como
lembrou Manfred Frank, ele mesmo expoente decisivo dos estudos filosóficos
sobre o romantismo. Não faltavam estrelas naquele céu histórico. Sabemos que
“a fermentação era tão intensa que uma cronologia teria que ser calibrada não em
anos, mas em dias; pretensões de prioridade e demonstrações de influências
teriam que se erguer e cair na velocidade do correio”49, como observou Marshall
Brown.
Tarefa ainda mais árdua quando lembramos da importância que, no
romantismo, tiveram, por exemplo, Goethe e Schiller. Primeiro, eles fizeram parte
do movimento pré-romântico conhecido como “Tempestade e Ímpeto”, o Sturm
und Drang, que teve em Herder o grande líder intelectual, mas que também se
inspirava nas idéias de Hamann, pensador místico conhecido como “Mago do
Norte”. Depois, através de certa mudança de rumo marcada pela viagem de
48 Manfred Frank, The philosophical foundations of early German romanticism (New York, StateUniversity of New York Press, 2004), p. 177-189.49 Marshall Brown, The Shape of German Romanticism (Ithaca, Cornell University Press, 1979), p.13.
39
Goethe para a Itália entre 1786 e 1788, onde toma contato íntimo com as obras
antigas, ele e Schiller constituíram em Weimar certo classicismo, aparentemente
em oposição aos românticos. Mas Weimar, que fica separada de Iena por não mais
do que trinta quilômetros, entretinha grande contato com esta, seja por afinidade
ou por embates que, em última análise, justificavam-se pelas questões em comum.
Essa confusão aumenta porque Lessing e, sobretudo, Winckelmann, pertencentes
à geração anterior à dos românticos, foram grandes influências em seu
pensamento, a despeito de seu pendor clássico, o que problematiza, aliás, a
oposição entre clássicos e românticos.
Na dimensão mais estritamente filosófica, os primeiro românticos situam-
se no que ficou conhecido como pós-kantismo. E de fato o enfrentamento com a
filosofia de Kant torna-se, em certo sentido, o enfrentamento da própria
modernidade, para eles. Neste contexto, prepondera a influência pessoal e
intelectual de Fichte, professor de muitos e inspirador de toda geração. Seu mais
conhecido aluno, Schelling, participa do primeiro grupo romântico, como vimos,
e depois desenvolve, dentro de sua linha própria e mais puramente filosófica,
muitas das intuições gestadas ali. De quebra, embora mais distante em termos
pessoais, o poeta Friedrich Hölderlin, em suas idéias, esteve próximo, muitas
vezes, dos primeiros românticos. Hegel também fazia parte dessa geração, tendo
sido companheiro de Schelling e Hölderlin no seminário de Tübingen. Sua
juventude é muito marcada pelo romantismo, mas sua avassaladora consolidação
filosófica madura não apenas deixa para trás o lastro romântico como o critica
com violência. Embora mais distante, Humboldt, com suas reflexões sobre a
linguagem, pertence ainda a esta cena.
Não faltaram, além disso, influxos tardios de outros grupos românticos
que se seguiram ao primeiro baseado em Iena, como o de Heidelberg, em torno de
1806 até 1808, do qual participaram Clemens Brentano, Achim von Arnim,
Bettine von Arnim, Joseph Görres e Eichendorff, sendo que a ele também foram
ligados os irmãos Grimm. Entre 1808 e 1809, houve um grupo romântico em
Dresdem, centrado em Adam Müller e Heinrich von Kleist. Pouco mais tarde,
surgia o romantismo de Berlim, que recebeu integrantes de Heidelberg e de
Dresdem, contando com figuras como Arnim, Brentano, Adelbert von Chamisso,
Friedrich de La Motte Fouqué, E. T. A. Hoffmann e, num certo período, Kleist.
Existiram, ainda, outros centros românticos, mas de menor projeção.
40
No meio dessa miríade de envolvimentos intelectuais, “o próprio fervilhar
do período frustra toda tentativa de derivar uma ‘escola romântica’ do movimento
romântico”, o que torna “infrutífero procurar grupos fixos onde autores
individuais estão incessantemente experimentando e onde nenhum pode ser
seguro numa posição fixa”50. Por isso, não apenas no romantismo, mas em todo
esse período da cultura alemã, “não é possível compreender a evolução dum
filósofo sem referir à dum outro”51.
Existe, porém, certo círculo que se forma especificamente em Iena. E não
apenas no sentido do grupo, mas no de um certo modo de pensar no qual, não por
acaso ou por deficiência, nenhuma “posição fixa” pode ser segura. Trata-se de
circular, de se movimentar num círculo do qual, talvez, não haja saída, pois pensar
não é achar a saída, mas ganhar, na circulação, o movimento. Friedrich Schlegel
achava que a “filosofia ainda caminha demasiadamente em linha reta, e ainda não
é suficientemente cíclica”52. Por isso, podemos empregar as expressões “grupo”
ou “escola”, no caso dos primeiros românticos, com os significados rigorosos de
“círculo” e de “movimento” num sentido filosófico.
Mas não é só isso. Tem mais, pois fazer a distinção entre os integrantes do
grupo romântico e os que, mesmo situados no clima da estética romântica, não
fizeram parte dele não é apenas um artifício historiográfico de rigor
eventualmente desnecessário. É que, como vimos, os primeiros românticos
constituíram um grupo em sentido literal. “Foram os próprios românticos de Iena,
e isto assinala logo uma novidade digna da máxima atenção, a sentir-se e a querer
apresentar-se como um grupo ao mesmo tempo compacto no seu interior e
orientado polemicamente para o exterior”53, conforme apontou Paolo d’Angelo.
Em outras palavras, não é de fora que classificamos os primeiros românticos
como grupo. Foram eles mesmos que assim se compreenderam e assim se
apresentaram.
Eles não chamavam a si próprios, que fique claro, de românticos, nem
foram os primeiros a usar a palavra. No sentido literário, o termo surge na
Inglaterra, no século XVII, referindo-se ao modo dos velhos romances, mas não 50 Ibid., p. 14.51 Nicolai Hartmann, A filosofia do idealismo alemão (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,s/d), p.13.52 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 53 (Athenäum,Fr. 43).53 Paolo d’Angelo, A estética romântica (Lisboa, Editorial Estampa, 1998), p. 18.
41
definia o gênero literário como forma moderna típica, e sim a narrativa de aspecto
fantástico com cunho cavaleiresco e amoroso, em geral proveniente de culturas
românicas neolatinas, como a portuguesa ou a espanhola. Sua marca era a
desobediência ao que seria o ideal clássico de equilíbrio e proporção, tendo, por
isso, conotação pejorativa. Pouco a pouco, porém, seus personagens ganham
apelo perante os leitores, justamente por seu caráter livre e conflituoso. Daí que,
ainda hoje, associemos o romântico ao avatar das emoções e à subjetividade
desenfreada. Essa associação, contudo, faz bem mais sentido em relação ao pré-
romantismo. Lembremos, por exemplo, da onda de suicídios desencadeada entre
os alemães pela publicação, por Goethe, de Os sofrimentos do jovem Werther.
Porém, com o grupo de Iena, o significado da palavra “romântico” muda
bastante. Refere-se, às vezes, ao cânone que passa por Dante, Cervantes e
Shakespeare. Pode ser aplicada para falar da tradição medieval. Em outros
momentos, seu sentido aproxima-se daquilo que é simplesmente moderno. Mas,
em geral, predomina o significado daquilo que ainda precisa ser feito, da poesia
que deve ser produzida. Só que, como anunciou Friedrich Schlegel, essa poesia
romântica, longe de estar restrita à forma literária, “abrange tudo o que seja
poético, desde o sistema supremo da arte, que por sua vez contém em si muitos
sistemas, até o suspiro, o beijo que a criança poetizante exala em canção sem
artifício”54. É em torno desse ideal amplo de poesia que se juntam aqueles que
incluímos no ciclo do primeiro romantismo alemão, orientados ao mesmo tempo
para o passado e para o futuro.
Este traço exige a autoconsciência que caracteriza o grupo e, em especial,
Friedrich Schlegel. Portanto, “aquilo que conta não é tanto a homogeneidade
efetiva do grupo (cujos participantes manifestam, aliás, desde o início grandes
diferenças entre si), mas o projeto explícito de actuar na cena literário-filosófica”,
como mostrou ainda Paolo d’Angelo, para concluir que foi, assim, “o primeiro
movimento estético-literário em sentido moderno”55. Por isso, Philippe Lacoue-
Labarthe e Jean-Luc Nancy afirmaram, constantemente, que o primeiro
romantismo “claramente antecipa a estrutura coletiva que artistas e intelectuais do
54 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum,Fr. 116).55 Paolo d’Angelo, A estética romântica (Lisboa, Editorial Estampa, 1998), p. 18-19.
42
século XIX até o presente irão adotar”, completando que, “de fato, e sem qualquer
exagero, foi o primeiro grupo ‘avan-garde’ da história”56.
*
No grupo de vanguarda do primeiro romantismo, Friedrich Schlegel era a
figura de proa, o pensador mais ousado. Por outro lado, a presença de Novalis foi
decisiva, pois, além da cultura vasta, trazia a veia artística mais acentuada dentro
do grupo. Também August Schlegel foi importante, em especial pela visão da
teoria da arte como história da arte, bem como outros autores que compõem a
cena intrincada de um momento raro no pensamento ocidental, quando num
período de tempo muito curto e num espaço geográfico muito pequeno
floresceram, de modo impressionante, a produção artística e a criação filosófica.
Nenhum grupo romântico foi tão radical quanto este primeiro, reunido na cidade
de Iena. Nem seus integrantes, seguindo cada um o seu caminho após a dissolução
do círculo, mantiveram a radicalidade experimentada nesses poucos anos da
virada do século XVIII para o XIX. Já em 1800, cessa a publicação da Athenäum.
Novalis morre em 1801, marcando o enfraquecimento do grupo.
Schleiermacher aceita o cargo de pregador numa pequena cidade e abandona
Berlim. Seus interesses mudam e mesmo quando volta suas reflexões para a
estética, anos mais tarde, pouco resta da visão romântica. August Schlegel dedica-
se à divulgação da estética romântica em cursos que foram decisivos na difusão
das idéias do grupo, mas pouco acrescentaram a elas e, às vezes, simplificavam-
nas. Se a Revolução Francesa, em 1789, impulsionara os jovens alemães ao
frescor renovador, eles não passaram incólumes pela maré conservadora que se
abateu sobre sua cultura a partir de 1815, com o fim das guerras de libertação face
à dominação de Napoleão.
Friedrich Schlegel é o caso mais emblemático, motivo pelo qual é difícil
pensar em evolução na sua obra57. É verdade que, a partir de então, ele ainda
escreve importantes ensaios sobre pintura italiana e arte gótica e cristã, além de
fazer seu estudo pioneiro sobre a cultura da Índia. Porém, sua guinada
56 Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, The literary absolute: the theory of literature inGerman romanticism (New York, State University of New York Press, 1988), p. 8.57 Esta é a perspectiva adotada pelo, ainda assim, ótimo livro de Claudio Ciancio, FriedrichSchlegel. Crisi della filosofia e rivelazione (Milão, Mursia, 1984).
43
conservadora é clara, o que faz da nota biográfica de sua conversão ao catolicismo
fato simbólico. Resta pouco da impetuosidade que marcara sua reflexão juvenil.
Peter Szondi sugere que ele foi “um pensador pioneiro que cedo abandonou um
caminho promissor”58. E já se exclamou: “é naquele curtíssimo entretempo –
iniciado em 1797, com o aparecimento da primeira série dos fragmentos, e não vai
além de 1800! – que se elabora a assombrosa parcela da obra de Schlegel” 59.
Desconsiderar esse rápido abortar do que o romantismo foi na sua origem
pode levar à acusação, já comentada aqui, de que ele seria politicamente
conservador – embora seu apego quase exclusivo ao estético possa explicar este
abortar, como sugeriu Lukács60. Sem fazer distinção, caímos na confusão, pois,
como notou Robert J. Richards, “ao considerar o caráter religioso e político do
romantismo (…), o que precisamos ter em mente é que seu fim difere
significativamente de seu começo”61. Daí o acerto de dizer que o momento de
escrita da origem do romantismo, embora intenso e brilhante, foi breve.
Se o próprio Friedrich Schlegel não conseguiu, portanto, estar
completamente à altura da reflexão produzida pelo primeiro grupo romântico de
que fez parte, é possível que nós também não estejamos. Só o fato de que
continuamos a imputar autoria a esta obra já é sinal de que nos falta algo para
chegar a ela, já que, em grande parte, ela foi oferecida sem autor, como criação da
própria linguagem a partir da escrita coletiva. Não demos conta, ainda, da
concentração inovadora de pensamento na origem do romantismo. E isso, em
certo sentido, não o deixa permanecer só no passado. Ele está no futuro, à espera
de leitores, ainda que este futuro seja algo como o futuro do pretérito.
Seu ímpeto juvenil, aliado ao fôlego erudito e crítico, levou à contestação
da hegemonia tanto do iluminismo quanto do neoclassicismo no interior da
modernidade. Nem por isso, contudo, os primeiros românticos fizeram o simples
elogio do novo como pretensão de começar tudo do zero, como alguns
modernistas. Pelo contrário, a força da palavra crítica, para eles, estava
relacionada justamente à capacidade de criar pela apropriação daquilo que já
58 Peter Szondi, “Schlegel’s theory of poetical genres”, in On textual understanding and otheressays (Minneapolis, University of Minnesota Press, 1986), p. 57.59 Luiz Costa Lima, Os limites da voz: Montaigne, Schlegel (Rio de Janeiro, Rocco, 1993), p. 226.60 Georg Lukács, Die Seele und die Formen. Essays (Darmstadt e Neuwied, Luchterhand, 1971), p.65-72.61 Robert J. Richards, The romantic conception of life (Chicago, The University of Chicago Press,2002), p. 59.
44
existe, sem descartar, assim, o passado. Por isso, “Friedrich Schlegel e Novalis
não apenas se encontram entre os fundadores da modernidade, mas, no ato mesmo
da sua fundação, superam-na”62, como observou Márcio Seligmann-Silva. É que
eles participam daquilo que Habermas chamou de “crítica estética da
modernidade”63. Foi Octavio Paz, por fim, quem descreveu melhor esta situação
moderna do romantismo.
O Romantismo é a grande negação da modernidade tal como fora concebida peloséculo XVIII e pela razão crítica, utópica e revolucionária. Mas é uma negaçãomoderna, quero dizer: uma negação dentro da modernidade. Só a idade críticapodia gerar uma negação assim tão radical. O Romantismo convive com amodernidade e a ela se funde só para, uma e outra vez, transgredi-la.64
Embora modernos, os primeiros românticos experimentaram certa
estiagem no tempo moderno. “Estava a murchar o horto deleitoso da jovem
estirpe”65, explicou Novalis. Para ele, “só e sem vida a Natureza estava”, pois,
acrescenta, “cingiram-na o árido número e a exigente medida, com cadeias de
ferro”66. Essa crítica romântica visava limitar o poder que a ciência moderna das
Luzes gostaria de exercer, pois o intelecto, ao mensurar tudo através de cálculos,
poderia matar a própria vida das coisas, motivo pelo qual deveria estar sempre
acompanhado da imaginação estética – da poesia.
*
Não seria de bom tom, portanto, submeter os primeiros românticos ao
critério de mensuração numérica que eles mesmos atacaram. Deveríamos, antes,
lê-los criticamente, sabendo que, como disse Friedrich Schlegel, “crítico é um
leitor que rumina” e que, “por isso, deveria ter mais de um estômago”67. Essa
tarefa não é simples, pois vai contra a pressa da técnica moderna que nos faz
correr com as leituras, ao invés de remastigá-las ou remoê-las. “É certo que, a
62 Marcio Seligmann-Silva, Ler o livro do mundo (São Paulo, Iluminuras, 1999), p. 76.63 Jürgen Habermas, O Discurso filosófico da modernidade (São Paulo, Martins Fontes, 2000), p.66.64 Octavio Paz, A outra voz (São Paulo, Siciliano, 1993), p. 37.65 Novalis, Os hinos à noite (Lisboa, Assírio & Alvim, 1998), p. 41.66 Ibid., p. 41.67 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 23 (Lyceum, Fr.27).
45
praticar desse modo a leitura como arte, faz-se preciso algo que precisamente em
nossos dias está bem esquecido (…), para o qual é imprescindível ser quase uma
vaca, e não um ‘homem moderno’: ruminar”68, escreveu Nietzsche em passagem
claramente inspirada na dos românticos. Mais do que classificar o romantismo e
isto ou aquilo como romântico, podemos tentar corresponder a ele, sem defini-lo,
ou seja, dar-lhe fim. Mesmo porque, como Friedrich Schlegel disse, “há
classificações que são bastante ruins como classificações, mas dominam nações e
épocas inteiras”69. Melhor seria acompanhar aquilo que o ritmo romântico sugere
para nós, como acontece na música de Schumann: “ela inicia como se continuasse
um processo que já estava em movimento, e termina, sem resolução, em uma
dissonância”70, observou Charles Rosen.
Prefiro, assim, encerrar – ou começar – por aqui com as belas palavras da
poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner, que, ao definir o romantismo alemão,
termina, paradoxalmente, não com um “árido” ponto final, mas com um ponto de
interrogação. Suspeito que os românticos prefeririam assim.
A Alemanha romântica é um estio maravilhoso do tempo. Mas este estio nãoconsegue deter os caminhos da civilização ocidental, não consegue deter oshomens que trabalham incessantemente como as fúrias. Pois a Alemanharomântica não é uma época, é apenas alguns homens. E poderão alguns homenssalvar o mundo?71
68 Friedrich Nietzsche, Genealogia da moral (São Paulo, Companhia das Letras, 1998), p. 15.69 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 55 (Athenäum,Fr. 54).70 Charles Rosen, A Geração Romântica (São Paulo, Edusp, 2000), p. 79.71 Sophia de Mello Breyner, “Hölderlin ou o lugar do poeta”, in Sofia Maria de Souza Silva,Reparar brechas: a relação entre as artes poéticas de Sophia de Mello Breyner Andresen e AdíliaLopes e a tradição moderna – Tese de Doutorado (Rio de Janeiro, PUC-Rio Departamento deLetras, 2007), p. 127.
3
Seres anfíbios:
entre a crítica de Kant e a síntese de Hegel
Fernando Pessoa escreveu, certa vez, “que no desenvolvimento da
metafísica, de Kant a Hegel, alguma coisa se perdeu”1. Seus versos expressam a
percepção de que a filosofia moderna foi compreendida como o caminho que vai
de Kant até Hegel, sendo que alguma coisa entre eles acabou sendo esquecida. Em
termos históricos, entre Kant e Hegel fica o curto período no qual se situam os
primeiros românticos e seus contemporâneos idealistas, como Fichte. Será que
com eles estava a “alguma coisa” perdida de que fala Fernando Pessoa? E, se sim,
o que seria esta coisa?
*
Foi o próprio Hegel quem se pronunciou sobre o desenvolvimento da
metafísica, destacando sua formação histórica. “Para tornar-se saber autêntico, ou
produzir o elemento da ciência que é o seu conceito puro, o saber tem de se
esfalfar através de um longo caminho”2, afirmou. Esse caminho seria a
constituição espiritual do mundo na história, sendo que Hegel pretendia dar a
contribuição definitiva para este saber se tornar absoluto. Desse modo, caberia à
filosofia, enquanto ciência, apresentar “esse movimento de formação cultural”,
cuja “meta final (…) é a intuição espiritual do que é o saber”3. Porém, essa
intuição espiritual tinha sido eliminada como capacidade humana pela filosofia de
Kant, poucos anos antes. Para ele, “não podemos conhecer objeto algum como
coisa em si, mas somente enquanto objeto da intuição sensível”4. Intuição teria
caráter só sensível, e não espiritual ou intelectual, portanto, nosso conhecimento
1 Fernando Pessoa, “Datilografia”, in Obra poética (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986), p. 335.2 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 35.3 Ibid., p. 36.4 I. Kant, “Prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura”, in Textos seletos (Petrópolis,Vozes, 1985), p. 48 (B XXVI).
47
jamais chegaria às coisas em si mesmas ou ao saber absoluto, já que seria sempre
parcial. Na contramão da tradição ocidental de Platão a Descartes, Kant limitou o
acesso direto e imediato às coisas, conhecido como intuição, à nossa
sensibilidade. Por sua vez, nosso entendimento intelectual não seria capaz disso,
pois pensamos já sobre as intuições sensíveis dadas.
“Portanto, pela sensibilidade nos são dados objetos e apenas ela nos
fornece intuições”5. Nós não criamos aquilo que nos afeta, pois, como notou
Heidegger, “a par com o desenvolvimento crítico da essência do entendimento
caminha a limitação de seu uso, limitação que o restringe à determinação daquilo
que é dado através da intuição sensível”6. Esta sensibilidade e este entendimento
eram, para Kant, especificamente humanos, logo, jamais conhecemos as coisas
nelas mesmas, mas apenas o modo pelo qual se dão para nossa estrutura subjetiva
(cujo caráter transcendental salva a objetividade da experiência, já que
compartilhamos todos os mesmos traços dessa estrutura). Somente conhecemos os
fenômenos, que são as coisas tal como aparecem para nós de acordo com a
recepção intuitiva da sensibilidade combinada com a ação conceitual do
entendimento.
Restringindo a intuição à sensibilidade, Kant a proibia de ser intelectual e,
com isso, proibia o conhecimento da verdade absoluta. Esse é o sentido do projeto
crítico em sua origem. Kant fala da “distinção exigida pela nossa crítica, entre as
coisas como objetos da experiência e estas mesmas coisas como coisas em si
mesmas”7. Sua “crítica” significa distinção, discernimento, divisão. Se ela possui
sentido negativo, não é o de atacar o que critica ofensivamente. Ela nega só para
restringir. Nosso conhecimento fica restrito aos fenômenos, sem chegar às coisas
em si. É imposto a ele o “não” quando tenta passar deste limite. Esta limitação
crítica de Kant consolidou, para os modernos, seu contexto de cisão: fenômeno e
coisa em si, sensibilidade e entendimento, intuição e conceito, necessidade e
liberdade, conhecimento e moral, teoria e prática, finito e infinito, sujeito e objeto.
Esse dualismo foi sentido como problema pelo próprio Kant ao final de
sua vida, ao escrever a Crítica da faculdade do juízo, em 1791. Ela serviu de
5 I. Kant, Crítica da razão pura (São Paulo, Abril Cultural, 1980), p. 39 (B 33).6 Martin Heidegger, “A tese de Kant sobre o ser”, in Conferências e escritos filosóficos (SãoPaulo, Abril Cultural, 1979), p. 245.7 I. Kant, “Prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura”, in Textos seletos (Petrópolis,Vozes, 1985), p. 48 (B XXVII).
48
provocação para muitos filósofos que vieram depois, chamados por isso de pós-
kantianos, nomenclatura cujo significado vai bem além da cronologia. Seguindo o
aceno do próprio Kant ao fim de seu projeto crítico, esses filósofos tinham por
objetivo responder à cisão que marcara tal projeto. Em suma, a filosofia de Kant,
ao colocar limites, foi sentida, na maioria das vezes, como aquilo que deveria ser
ultrapassado. Era o problema que exigia solução. Tudo que ficara separado devia
ser juntado numa síntese. Daí nasceu o que conhecemos como idealismo alemão.
Fichte e Schelling buscaram, cada um a seu modo, alguma espécie de superação,
mesmo que às vezes pensada como consumação, da filosofia de Kant.
Nenhum dos dois, contudo, foi tão resoluto neste propósito quanto Hegel.
Se Kant desconfiara da pretensão de saber como as coisas eram em si mesmas e a
trocou pela certeza de conhecê-las com segurança mesmo que apenas como
fenômenos para nós, Hegel retrucou ao perguntar “por que não cuidar de
introduzir uma desconfiança nessa desconfiança, e não temer que esse temor de
errar já seja o próprio erro”8. Se, para Kant, nós não teríamos como conhecer o
que fica por trás do fenômeno, ou seja, as coisas em si, já para Hegel, “por trás da
assim chamada cortina, que deve cobrir o interior, nada há para ver; a não ser que
nós entremos lá dentro”9. Hegel, é verdade, abandonou, no decorrer de seu
pensamento, a idéia de intuição transcendental ou intelectual enquanto união
imediata de opostos; “não obstante, a lógica de Hegel, como é um pensamento
não-empírico sobre pensamentos, assemelha-se um pouco à intuição intelectual no
sentido kantiano”10, observou Michael Inwood. Entretanto, no sentido kantiano, a
intuição intelectual jamais poderia ser humana, hipótese admitida apenas no caso
de Deus. É que, “diferentemente de Kant, Hegel não hesitava em assimilar o
homem a Deus”11.
É claro que Hegel não pretendeu restaurar o dogmatismo pré-crítico com a
pura positividade da verdade, colocando de fora toda falta e toda negatividade
crítica. Por isso, o espírito, para ele, “não é essa potência como o positivo que se
afasta do negativo – como ao dizer de alguma coisa que é nula ou falsa,
liquidamos com ela e passamos a outro assunto”12. Hegel não aniquila o negativo,
8 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 64.9 Ibid., p. 118.10 Michael Inwood, Dicionário Hegel (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997), p. 194.11 Ibid., p. 194.12 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 38.
49
mas o coloca no que chamava de dialética. Ela o absorve enquanto antítese que,
ao invés de anular a tese a que se opõe, produz, a partir do choque com ela, outra
coisa, resultado das anteriores: a síntese final da tensão entes existente. Inclui-se o
negativo como motor do positivo: “o espírito encara diretamente o negativo e se
demora junto dele”, sendo que “esse demorar-se é o poder mágico que converte o
negativo em ser”13. Hegel, assim, reconhecia a relevância da crítica de Kant e, ao
mesmo tempo, a superava, pois “o que surge desse movimento, apreendido como
resultado, é o negativo determinado e portanto é igualmente um conteúdo
positivo”14. Todo “não” passava a ser apenas etapa preparatória para o “sim” final
e pleno do processo dialético. Portanto, a crítica era até necessária: ao cindir
negativamente, ela obrigava o pensamento a fazer seu movimento de re-união
positiva – de Kant a Hegel.
*
Para os primeiros românticos alemães, situados antes de Hegel, a ênfase
no sentido negativo da crítica era também problemática. Para eles, se “Kant
introduziu na filosofia o conceito de negativo”, talvez fosse “uma tentativa útil
introduzir agora na filosofia também o conceito do positivo”15. Desde cedo,
Friedrich Schlegel já encarava a dualidade moderna de dois princípios opostos: o
impulso da alma a partir de dentro e os decretos da natureza a partir de fora. Esta
divisão entre a interioridade subjetiva e a exterioridade objetiva aparecia como o
grande problema da modernidade. Logo, seria preciso juntá-las. Esta unidade era
buscada tão mais ardentemente pela dualidade que a movia. Nessa medida, os
românticos reconheciam, com Hegel, que a “formação recente” levou “ao topo da
mais dura contradição”, já que “o entendimento moderno produz no homem esta
contraposição que o torna anfíbio, pois ele precisa viver em dois mundos que se
contradizem, de tal sorte que a consciência, nesta contradição, também se dirige
para lá e para cá e, jogada de um lado para o outro, é incapaz de satisfazer-se”16.
13 Ibid., p. 38.14 Ibid., p. 54.15 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 47 (Athenäum,Fr. 3). Se há, neste fragmento, referência ao Ensaio para introduzir o conceito de grandezanegativa na filosofia, da fase pré-crítica de Kant, sua relevância é mais ampla, pois ele expõe ummodo de olhar a herança kantiana.16 F. W. G. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 72.
50
Se o diagnóstico da modernidade era bastante parecido nos primeiros
românticos e em Hegel, o prognóstico, porém, era bem diferente. Enquanto Hegel
queria a solução plena e definitiva para aplacar este pêndulo que, entre os
extremos modernos, jamais se satisfazia, Friedrich Schlegel afirmava que “o
espírito que conhece as orgias da verdadeira musa nunca irá percorrer esse
caminho até o fim”17. Nesse sentido, ainda que sentissem a mesma necessidade
que Hegel de ir além de Kant, não acreditavam, como ele, que fosse possível, de
fato, o espírito alcançar por completo o saber absoluto. É que, a despeito da
tentativa de engendrar a positividade na filosofia como forma de chegar ao
absoluto, os primeiros românticos, como escreveu Novalis, consideravam que
“este absoluto que é dado a nós só pode ser conhecido negativamente”18. Pela
própria pretensão positiva, tão anti-kantiana, da conquista da verdade absoluta, os
românticos experimentaram a sua resistência negativa. No seu pensamento, o
negativo não consegue ser totalmente absorvido pelo positivo, nem mesmo
através da dialética.
Para Friedrich Schlegel, o espírito “nunca pode saciar uma ânsia que
renasce da própria plenitude da satisfação, eternamente renovada”19. Para ele, não
havia como aplacar completamente o desejo de união que, no entanto, pulsava aí
tanto quanto nos demais pensadores pós-kantianos. É que, a cada solução,
surgiriam novos problemas e, a cada satisfação, renasceria o desejo. No lugar da
“eternidade” como substantivo, os primeiros românticos a transformaram em
advérbio aplicado à renovação – “eternamente”. Desse modo, atentavam contra o
mais caro preceito metafísico tradicional, a saber, de que a verdade absoluta se
define pela ausência de tempo, cuja concretização é a eternidade. Novalis
escreveu que “a eternidade é realizada temporalmente, a despeito do fato de que o
tempo contradiz a eternidade”20. Esta contradição explica-se porque nada é eterno
senão a própria busca pela eternidade, que se dá eternamente pois o objeto que ela
almeja lhe diz “não”, recusa sua apropriação absoluta, tem caráter negativo,
portanto. Nada que está no tempo é eterno, mas o próprio tempo é. Só o tempo é
para sempre: a dinâmica infinita pela qual, a cada falta, nova resposta é dada, mas 17 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 29.18 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), #566.19 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 29.20 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), #566.
51
ela não é senão o início de outra falta – e assim em diante, sem ponto final, saber
absoluto ou eternidade.
Nesse sentido, os românticos tinham seu desejo definido por Hegel, mas
sua natureza marcada por Kant. Eles queriam a síntese, mas sabiam, criticamente,
que ela não era possível. Situados nessa tensão, os primeiros românticos
esboçaram o pensamento tantas vezes contraditório que, até hoje, gera
desconfiança acerca de sua consistência. Ela não é, como vemos, casual. Pelo
contrário, é resultado do lugar onde a reflexão romântica original se instalou, que
fica entre a crítica de Kant e a síntese de Hegel.
Mesmo quando o diagnóstico sobre o caráter conflitante de sua época era
muito severo, os primeiros românticos não chegavam a compactuar com a solução
de Hegel. Friedrich Schlegel, por exemplo, escreveu, certa feita, que “o pecado
original da cultura moderna é a separação completa e o desmembramento das
forças humanas, que, contudo, só poderiam permanecer saudáveis numa
combinação livre”21. Muitas vezes, o próprio Schlegel não considerou esta
separação um pecado. Mas, até quando o fez, não apelou para a síntese final do
saber absoluto, ao modo de Hegel. Ele falou, ao invés disso, de livre combinação,
de conjugação ou de vinculação, o que não significa, necessariamente, abolir os
termos conflitantes em prol do seu resultado dialético.
É provável que o romantismo, para Hegel, fosse figura daquilo que ele
chamava de “consciência infeliz”: embora consciente de sua cisão, ela não
consegue resolvê-la, “é desalojada imediatamente (…) quando pensa ter chegado
à vitória e à quietude da unidade”22. É isso que constitui, para os primeiros
românticos, o movimento do espírito: ele é, a cada vez que pensa ter chegado à
unidade, novamente desalojado, e assim ocorre eternamente. Nessa medida, de
acordo com o critério de Hegel, tal consciência jamais chega à felicidade, pois não
supera sua própria dualidade. Desse modo, “a consciência infeliz é a subjetividade
que aspira ao repouso da unidade, é a consciência de si como consciência da vida
e daquilo que supera a vida, mas não pode senão oscilar entre os dois
momentos”23, como explicou Jean Hyppolyte. Esta oscilação é o movimento
21 Friedrich Schlegel, “Jacobis Woldemar”, in Kritische Schriften (München, Carl Hanser Verlag,1970), p. 260.22 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 140.23 Jean Hyppolyte, Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel (São Paulo,Discurso Editorial, 2003), p. 210.
52
romântico. Ele não acha a feliz reconciliação que Hegel pretende – aliás, “que tal
reconciliação, que tal síntese (…) seja possível, é precisamente o que não admite a
maior parte de nossos contemporâneos, aí residindo a crítica por eles feita ao
sistema hegeliano como sistema”24. Nessa medida, o pensamento romântico, em
sua origem, antecipava a problematização contemporânea do sistema de Hegel, já
que, mesmo antes de seu surgimento, já experimentava a ausência de
reconciliação absoluta para a situação do homem no mundo.
Se o romantismo prenunciava a resistência contemporânea em aceitar a
conclusão do pensamento de Hegel, ao mesmo tempo mantinha a filosofia
segundo sua mais antiga determinação etimológica, a de amor pelo saber. Nisso,
estava, novamente, na contramão de Hegel, que declarou abertamente: “colaborar
para que a filosofia se aproxime da forma da ciência – da meta em que deixe de
chamar-se amor ao saber para ser saber efetivo – é isto o que me proponho”25.
Pelo contrário, os românticos experimentaram o amor como seu elemento
justamente porque não conseguiam chegar à concretização do saber efetivo,
permanecendo este sempre apenas o vislumbre que os levava a filosofar e a viver.
Essa singular posição romântica, como veremos adiante, foi aberta pela
crítica que Novalis e Hölderlin fizeram, já em 1795, a seu professor Fichte,
primeiro grande pensador a tentar consumar o projeto de Kant. Eles contestavam a
“egoidade” de Fichte. Negavam a primazia do “eu” sobre o “não-eu”, valorizando,
ao invés, a “determinação recíproca” entre ambos, tematizada pelo mesmo Fichte,
mas que nem sempre ocupara lugar de primazia no seu sistema em comparação
com a síntese por ele pretendida.
Nesse diálogo com Fichte, nascia a matriz filosófica do primeiro
romantismo alemão. Biograficamente, tal diálogo pode ter ocorrido quando, em
maio de 1795, Novalis e Hölderlin conheceram-se, sob a presença de Fichte, em
Iena, na casa de Immanuel Niethammer, amigo comum aos três. Esse encontro,
metaforicamente, desenha a pirâmide que define o preâmbulo filosófico do
romantismo alemão. Na ponta de cima, estava Fichte e, nas de baixo, Novalis e
Hölderlin, cuja vida, àquela altura, voltava-se para a filosofia – o que significava
abordar a pretensão de Fichte. Por fim, a base da pirâmide buscaria desbancar o
topo, iniciando a reviravolta filosófica que ganhou corpo no romantismo.
24 Ibid., p. 219.25 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 23.
53
*
Fichte está entre os pensadores que, após Kant, responderam aos desafios
por ele colocados, no sentido de completar seu projeto crítico ou de apontar falhas
e corrigi-lo. Reinhold, Schulze, Maimon, Beck, Jacobi e Bardili compõem essa
cena de recepção da filosofia de Kant. Seu principal desafio era resolver a
oposição entre o mundo objetivo da natureza e o mundo subjetivo do espírito.
Deste ambiente surge Fichte, superando seus companheiros por não se deter
apenas em problemas pontuais da filosofia de Kant, mas por apreendê-la na sua
totalidade e, ainda assim, levá-la além do que seu autor podia prever. É que Kant
contentara-se em realizar, nas suas próprias palavras, “um tratado do método, e
não um sistema da ciência em si”26. Sob a inspiração de Reinhold, Fichte fazia, na
forma idealista da doutrina da ciência, o sistema da razão que Kant não
concretizara.
Seu objetivo era encontrar o princípio elementar fundamental por trás da
crítica de Kant, explicitando a unidade da razão para além do dualismo entre “eu”
e “não-eu”. Esse dualismo tornara-se agudo, em Kant, pois o “eu” subjetivo não
alcançava o “não-eu” objetivo das coisas em si. Nossa apreensão da realidade,
para Kant, viria da subordinação da recepção intuitiva direta daquilo que eu não
sou (as coisas) à atividade conceitual indireta (minha) – indireta pois, enquanto
entendimento, não entra em contato imediato com as coisas, mas apenas através
da sensibilidade. Logo, para ele, nós jamais teríamos qualquer intuição intelectual,
pois a atividade do entendimento não é direta (intuitiva).
Fichte precisou, então, reabilitar a noção de intuição intelectual, para
encontrar o princípio aquém da divisão entre “eu” e “não-eu”. Sua estratégia,
porém, não foi a de enfrentar Kant, mas de evitá-lo. Pois “o que Kant chamava de
intuição intelectual, e com razão recusava, é desde o começo para Fichte um
absurdo ‘indigno do nome’ – exatamente como o seu suposto objeto”27, notou
Nicolai Hartmann. Fichte, ao invés de direcionar a intuição intelectual para fora,
como modo de alcançar as coisas em si no mundo exterior, a remeteu para o
26 I. Kant, “Prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura”, in Textos seletos (Petrópolis,Vozes, 1985), p. 48 (B XXIII).27 Nicolai Hartmann, A filosofia do idealismo alemão (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,s/d), p. 63.
54
interior. “Precavido do sentido da intuição intelectual proibido por Kant, fica
outra vez livre o conceito desta”28. Ela se torna auto-intuição, auto-apreensão da
atividade do “eu”. Portanto, diz Fichte, “a inteligência intui a si mesma (…) como
inteligência pura, e nessa auto-intuição consiste seu ser”, logo, “essa intuição será
denominada, com razão, intuição intelectual”29.
Só que, afirma Fichte, “em vez da palavra inteligência prefiro empregar a
denominação: egoidade; pois esta designa da maneira mais imediata (…) esse
retorno da atividade para dentro de si mesma”30. Porém, como pode o sujeito que
é “eu”, ao se voltar para dentro de si, alcançar o objeto que é “não-eu”? Não
ficaria ele, assim, ainda mais apartado do mundo? Para Fichte, não, porque,
quando penso a mim mesmo, sou tanto o sujeito que pensa quanto o objeto
pensado, estou cá e lá sem sair do lugar. Para ele,
ao pensares tua mesa ou tua parede (…), tens consciência da atividade em teupensar, era para ti mesmo, nesse pensar, o pensante; mas o pensado não era, parati, tu mesmo, e sim algo a ser distinguido de ti. Em suma, em todos os conceitoscomo este (…), o pensante e o pensado são dois. Mas, ao te pensares, não és parati apenas o pensante: és também, ao mesmo tempo, o pensado; nesse caso,pensante e pensado devem ser um só.31
Esse raciocínio permite a Fichte conceber o engolfamento do “não-eu”
pelo “eu” como modo de trazer ambos para seu fundamento comum, sem divisão.
Nesse “eu”, “a autoconsciência é imediata; nela, subjetivo e objetivo estão
inseparavelmente unificados e são absolutamente um”32, diz ele. Esta metafísica
da autoconsciência achava no “eu” a superação decisiva do dualismo de Kant,
pois sua constante atividade seria a produtora responsável, inclusive, pelo “não-
eu”: “o conceito ou o pensamento do eu consiste no agir sobre si do próprio eu; e,
inversamente, um tal agir sobre si mesmo dá o pensamento do eu, e pura e
simplesmente nenhum outro pensamento”33.
*
28 Ibid., p. 63.29 J. G. Fichte, “O Princípio da Doutrina-da-Ciência”, in Escritos filosóficos (São Paulo, AbrilCultural, 1973), p. 45.30 Ibid., p. 45.31 Ibid., p. 41-42.32 Ibid., p. 44.33 Ibid., p. 42.
55
São bastante conhecidos os elogios dos primeiros românticos a Fichte, que
foi considerado por eles, no âmbito da filosofia, a grande tendência da época34.
“Encontraram em Fichte um romantismo pré-figurado, uma antecipação do que
vinha definir as suas próprias aspirações”35. Menos conhecidas, entretanto, são as
críticas que fizeram a Fichte, embora elas sejam tão ou mais importantes do que
os elogios. Elas representam aquele movimento, tão familiar na história da
filosofia, pelo qual certo pensamento precisa abrir seu caminho dentro da estrada
na qual se situa. Esta estrada é Fichte. Por isso mesmo, a separação dele define o
caminho singular dos primeiros românticos, ainda que este, por sua vez, siga a
tendência já sugerida por Fichte. Por ser aquele de quem eles se sentem mais
próximos, o confronto aí é pela conquista de sua própria identidade filosófica.
Novalis dedicou-se, em 1795, aos seus estudos sobre Fichte. Ele
posicionava-se próximo ao elogio fichtiano da intuição intelectual, mas apenas na
medida em que seu estatuto fosse o daquilo que Kant chamava de “idéia
reguladora”36. Embora Fichte chegue a sugerir esse caráter apenas regulador, ele
não prevalece sempre no seu pensamento, ao contrário da força que assume com
Novalis. Todo primeiro princípio fundamental que explicaria o ser possuía, para
ele, estatuto somente regulativo: norteia a direção mas não se concretiza,
determinando que dele nos aproximemos sempre, mas que, por este “sempre”,
jamais nele cheguemos. Novalis suspeitou que “Fichte muito arbitrariamente
colocou tudo dentro do eu”37, já que ele, ao afirmar a intuição intelectual,
concebia que criamos até o que nos afeta, pois mesmo o “não-eu” seria posto pelo
próprio “eu”. Novalis, no entanto, afirmava: “eu nunca acho a intuição porque eu
devo procurá-la através da reflexão e vice-versa”38. Ele, com isso, marcava o
desencontro constante entre intuição e reflexão. É verdade que Fichte não temia as
contradições e desencontros. Ele “pode admitir o contraditório como realmente
existente na razão, porque está, ao mesmo tempo, na posse do meio de lhes
34 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 83 (Athenäum,Fr. 216).35 Gerd Bornheim, “A filosofia do romantismo”, in J. Guinsburg (org.), O Romantismo (São Paulo,Perspectiva, 2002), p. 84.36 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), #502.37 Ibid., # 5.38 Ibid., # 566.
56
restituir a unidade numa síntese superior”39, afirmou Nicolai Hartmann. Esse meio
é o “eu” enquanto pura atividade da autoconsciência, como vimos. Mas estaria tal
síntese a salvo de toda crítica? Novalis achava que não.
Por isso, Novalis vê Fichte obliquamente. Ele valoriza os momentos em
que Fichte sublinha o caráter contraditório do absoluto, como quando afirma que
“o centro e o ponto-de-inflexão do saber absoluto é um oscilar entre ser e não-ser
do saber” ou que “não há unidade a não ser dos separados, e não há separados a
não ser da unidade”, portanto o saber “oscila entre ambos”40. Novalis quase repete
tais frases, ao dizer que se “fosse para haver a esfera mais alta, teria quer ser a
esfera entre ser e não-ser” e que na “oscilação entre os dois” fica “o conceito da
vida”41. Esse “entre” é a tensão do romantismo alemão em sua origem, na qual
Fichte, porém, não permaneceu. Depois de falar da oscilação entre ser e não-ser,
ele anunciava: “voltemos ao ponto de vista da síntese completa”42. Sua meta é o
“captar-se do saber, como aqui chegado a seu término e absolutamente fixado”:
no fim, há a conclusão do saber absoluto com “o cunho de sua própria
perfeição”43.
Tudo isso era estranho a Novalis, pois ele compreendia o fundamento do
ser como princípio negativo, como vimos. Não considerava possível a absorção
positiva do não-ser. Nesta situação, afirmava, “a filosofia fica paralisada e deve
permanecer assim – pois a vida consiste precisamente nisso, em não poder ser
possuída”44. Na contramão do movimento que caracterizaria, mais tarde, a
dialética de Hegel, Novalis defendeu que a filosofia devia paralisar a tensão entre
ser e não-ser: quando o negativo (o não-ser) entra em oposição com o positivo (o
ser), eles não constituem o processo de síntese da nova positividade, pois a vida
não pode ser possuída. Para Novalis, a “vida é alguma coisa composta de síntese,
tese e antítese, e, ainda assim, de nenhuma das três”45, porque a dialética não
esgota ou totaliza o ser da vida como busca infinita. Novalis chega a dizer que a
39 Nicolai Hartmann, A filosofia do idealismo alemão (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,s/d), p. 67.40 J. G. Fichte, “A Doutrina-da-ciência e o saber absoluto”, in Escritos filosóficos (São Paulo,Abril Cultural, 1973), p. 142, 126.41 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), # 3.42 J. G. Fichte, “A Doutrina-da-ciência e o saber absoluto”, in Escritos filosóficos (São Paulo,Abril Cultural, 1973), p. 144.43 Ibid., p. 140, 155.44 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), # 3.45 Ibid., # 3.
57
“filosofia, o resultado do filosofar, surge em conformidade através da interrupção
do esforço na direção do conhecimento do fundamento”46. Filosofia não é
continuidade progressiva, pois seu fundamento não pode ser possuído
completamente, como quer aquele conhecimento. Interrompe então ela, frisando a
falta do que Fichte desejava com o “captar-se do saber absolutamente fixado”. Por
isso, Novalis o critica, contestando a perfeição do balanço da equação que acharia
a igualdade entre sujeito e objeto.
Fichte a traduzira no princípio lógico “a = a”. Pense-se que cada termo é o
“eu”. Temos, então, “eu = eu”. Parece óbvio. Mas a astúcia está em que tal
equação permanece válida na atividade da autoconsciência, ou seja, que o “eu”
que pensa é igual ao “eu” pensado, ou ainda, que o “eu” que é sujeito, ao pensar a
si, é também objeto. Só por isso, o princípio “a = a” pode simbolizar a
fundamentação comum da dualidade entre “eu” e “não-eu”, já que o “eu”, ao
refletir sobre si, pode se colocar na posição do “não-eu” sem deixar de ser o “eu”.
Fichte interessava-se, então, pela igualdade da equação “a = a”.
Novalis enxerga mais: “o que o fascina é a simultaneidade do mesmo e do
outro expresso pela fórmula a = a”, como observou Géza von Molnár, pois ela
“não pode afirmar a identidade a não ser através da duplicidade”47. Para Novalis,
o princípio de identidade, ao invés de sustentar a perfeita fundamentação do ser
consigo mesmo, instaura a dessemelhança, já que, na sua apresentação, ele só
consegue ser ao fazer-se dois, e não um: “a = a”. Logo, “a identidade aparece
apenas dentro do medium da não-identidade”48. É o próprio “um” que, ao se
querer igual a si, precisa ser “dois”, rompendo sua unidade.
Na busca pela síntese das oposições, como na fórmula de Fichte, os
românticos esbarravam na análise como quebra daquela unidade e, daí, irrompia o
poder da diferença no meio do mesmo. Novalis afirmava que a filosofia “nada
pode gerar” e que “algo precisa lhe ser dado”. No estilo truncado de seus estudos
sobre Fichte, ele, após isso, põe, entre barras, a palavra “análise”49. Sua idéia,
aqui, é oposta à de Fichte: o “eu” não põe o “não-eu” somente, pois a filosofia não
gera, ela precisa que algo lhe seja dado. Seu signo não é o da síntese, como quis 46 Ibid., # 566.47 Géza von Molnár, Romantic vision, Ethical Context: Novalis and Artistic Autonomy(Minneapolis, University of Minnesota Press, 1987), p. 30.48 Ibid., p. 30.49 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), #15.
58
Hegel mais tarde, já que ela está presa, ao mesmo tempo, na análise, na quebra, na
divisão. Para Novalis, o “eu” não é só ativo, mas tem certa passividade que não é
eliminável. “Este é o motivo decisivo para seu realismo ontológico: ser é anterior
à nossa consciência; nós o sentimos, mas não o produzimos ou mesmo o
constituímos”, logo, neste caso, “poder-se-ia falar de um retorno a Kant ainda
antes de o idealismo absoluto ter tido tempo de abrir suas asas”50, observou
Manfred Frank.
Nesse lugar entre a crítica de Kant e a síntese dos idealistas, surge o
conceito romântico de filosofia, cuja expressão lapidar foi dada pelas palavras do
próprio Novalis.
O que eu faço quando filosofo? Eu reflito sobre um fundamento. O fundamentodo filosofar é, então, o esforço da procura do pensamento de um fundamento.(…) Todo filosofar deve, portanto, acabar em um fundamento absoluto. Mas, seele não é dado, se este conceito contém uma impossibilidade – então o impulsopara filosofar seria uma atividade infinita – e sem fim porque haveria uma eternaurgência por um fundamento absoluto que só pode ser satisfeita relativamente – eque, portanto, jamais cessaria.51
Essa foi a revisão a que Novalis submeteu a filosofia de Fichte, já em
1795. Seus estudos abrem, de modo pioneiro, a singularidade do primeiro
movimento romântico. Diversos comentadores, por isso, enfatizam que este é o
ponto decisivo não apenas na carreira de Novalis, mas na história do romantismo
alemão, já que aí surge a separação entre ele e a filosofia idealista, abrindo seu
caminho próprio52. Novalis descobria, assim, o horizonte específico da visão
filosófica romântica, ao abandonar o idealismo de Fichte53.
*
Por volta de 1795, Fichte era a figura chave da filosofia alemã. Hölderlin
não o deixa mentir, ao exclamar em carta de 1794: “Fichte é agora a alma de
Iena”. Ele declara: “não conheço homem algum com tamanha profundidade e
50 Manfred Frank, The philosophical foundations of early German romanticism (New York, StateUniversity of New York Press, 2004), p. 169.51 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), #566.52 Wm. A. O’Brien, Novalis: Signs of Revolution (Durham, Duke University Press, 1994), p. 78.53 Jane Kneller, “Introduction”, in Fichte Studies (Cambridge, Cambridge University Press, 2003),p. xvi.
59
energia espiritual”54. Logo, não só para Novalis, mas também para Hölderlin, o
engajamento com seu pensamento tornava-se crucial. Porém, este engajamento
não levou apenas ao elogio. Mesmo porque, Iena era então o posto avançado da
filosofia alemã, e não apenas por causa de Fichte, já que seu predecessor na
cadeira de filosofia, Karl Reinhold, havia introduzido o programa para a filosofia
pós-kantiana que Fichte continuava. Mais ainda, observou Charles Larmore,
“alguns membros da audiência de Reinhold já tinham descoberto razões
importantes para rejeitar este programa” e, sendo assim, “quando Fichte chegou
em Iena na primavera de 1794, seu pensamento parecia para muitos ali passé”55.
Sobretudo para Hölderlin, a continuidade com Reinhold devia soar suspeita, pois
aquele a quem ele chamava de seu “mentor filosófico”56, Niethammer, mesmo
fazendo parte da audiência de Reinhold, já o contestava com argumentos céticos.
Portanto, como explicou Jean-François Courtine,
Hölderlin se lança, durante o inverno de 1794-95, quando segue os cursos deFichte, num primeiro grande confronto com o nascente idealismo pós-kantiano –à custa, é claro, de simplificações ou contra-sensos, que, no entanto, serãoprodutivos e revelam, sobretudo, uma virada decisiva no pós-kantismo. (…) Éum período no qual Hölderlin, que desde o início dá evidências bastante fortes deseu entusiasmo por Fichte, apropria-se cada vez mais profundamente de seupensamento, elaborando uma crítica cada vez mais radical.57
Essa crítica encontra sua formulação básica no curto texto intitulado
“Juízo e Ser”, de 1795. Hölderlin admitia que, “através do fato de que me oponho
a mim próprio, separo-me de mim” e que, “independentemente dessa separação,
reconheço-me como o mesmo no oposto”58. Embora me separe de mim na
autoconsciência, porque sou eu que penso e eu aquilo que é pensado, é o mesmo
“eu” que está pensando e sendo pensado, como queria Fichte. Mas qual o sentido
deste “mesmo”? “Posso, devo perguntá-lo; pois, por outro ponto de vista, ele é
oposto a si”59. Hölderlin notou que, na atividade pela qual me torno objeto de meu
pensamento, sou e não sou o mesmo. Pois quando o sujeito toma a si como objeto,
ele é, de um lado, sujeito e, de outro, objeto – experimenta certa diferenciação. 54 F. Hölderlin, Correspondencia completa (Madrid, Hipérion, 1990), p. 214.55 Charles Larmore, “Hölderlin and Novalis”, in Karl Ameriks (ed.), The Cambridge Companionto German Idealism (Cambridge, Cambridge University Press, 2005), p. 145.56 F. Hölderlin, Correspondencia completa (Madrid, Hipérion, 1990), p. 288.57 Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 71, 4858 F. Hölderlin, “Juízo e Ser”, apud Antonio Cícero, “O destino do homem”, in Adauto Novaes(org.), Poetas que pensaram o mundo (São Paulo, Companhia das Letras, 2005), p. 235.59 Ibid., p. 235.
60
Em suma, o movimento da autoconsciência, que devia mostrar a unidade
de sujeito e objeto, só se realiza pela divisão do sujeito em dois. Nas palavras de
Hölderlin, “quando digo: eu sou eu, o sujeito (eu) e o objeto (eu) não estão tão
unidos que nenhuma separação possa ser pretendida (…); ao contrário: o eu só é
possível através dessa separação entre eu e eu”60. Este “eu sou eu” é o signo da
autoconsciência para Fichte, pois coloca o “eu”, pela própria sentença gramatical,
tanto no lugar, primeiro, de sujeito quanto, depois, de objeto, tendo o verbo “ser”
no meio, evidenciando a identidade entre os dois lados da equação. Mas, para
Hölderlin, a sentença, ao mesmo tempo, separa o “eu” em sujeito e objeto.
Tal separação mostraria que a autoconsciência não nos dá o absoluto, pois,
para Hölderlin, este só é “onde sujeito e objeto é unido de modo absoluto, e não
apenas parcial, unido de tal maneira que nenhuma separação pode ser pretendida
sem ferir a essência daquilo que se pretendia separar”61. Se o absoluto é o “ser”,
“juízo” é a separação, onde há o sujeito que julga e o objeto julgado, até quando
este último é o próprio sujeito que ali se põe. “Logo, a identidade não é uma união
de objeto e sujeito que se encontre de modo absoluto, logo a identidade não é =
ser absoluto”62, afirma ele.
Essa ruptura com Fichte pode ser verificada na correspondência de
Hölderlin. Em 1795, escrevendo ao irmão que não era versado em filosofia, ele
adotava postura didática, destacando a relevância de Fichte e justificando sua
proximidade em relação a ele.
Eu gostaria de te contar (…) uma importante característica da filosofia de Fichte.Existe no homem uma aspiração pelo infinito, existe uma atividade que o impedede aceitar barreiras permanentes e não lhe permite nenhum momento de repouso,e que, pelo contrário, tende a se tornar cada vez maior, mais livre e independente;esta atividade, infinita por impulso próprio, é limitada; a atividade infinita eilimitada segundo seu próprio impulso é necessária à natureza de um ser comconsciência (um “eu”, como diz Fichte), mas a limitação desta atividade tambémé necessária à natureza de um ser com consciência, pois se a atividade não fosselimitada, insuficiente, seria tudo, e não haveria nada fora dela.63
Porém, diante de um interlocutor que entende filosofia, Hölderlin critica
Fichte, vendo, na sua egoidade, o desrespeito à limitação da atividade da
consciência, que põe tudo dentro de si – ao contrário do que narrara ao irmão. 60 Ibid., p. 235.61 Ibid., p. 235.62 Ibid., p. 235.63 F. Hölderlin, Correspondencia completa (Madrid, Hipérion, 1990), p. 242.
61
Escrevendo a Hegel, ainda em 1795, suspeita que Fichte fosse dogmático, “ainda
mais manifestamente transcendente do que a aspiração dos metafísicos
anteriores”. Para Hölderlin, aí, o “eu” de Fichte
contém toda realidade: ele é tudo e, fora dele, nada há; portanto, não há objetoalgum para este eu absoluto, pois do contrário não encerraria toda realidade; masuma consciência sem objeto não é concebível, e, se sou eu mesmo esse objeto,sou, como tal, necessariamente limitado (…), logo, não sou absoluto.64
Nessa carta, Hölderlin descreve o raciocínio de Fichte: a autoconsciência
seria a solução para o problema de que, na oposição entre a consciência e seu
objeto, não há absoluto, já que uma coisa limitaria a outra, afinal, se todo “eu”
supõe consciência, toda consciência supõe o objeto de que ela é consciente. Logo,
a unificação absoluta só seria possível com o “eu” dobrando-se sobre si, pois aí o
objeto de minha consciência sou eu mesmo. Mas, para Hölderlin, esta operação
importa a separação anterior para dentro do próprio “eu”, que deixa de ser apenas
sujeito para ser também objeto: funda-se a limitação de um diante do outro. Na
medida em que o absoluto não pode ser limitado, ele não pode ter objeto que se
lhe contraponha, logo, o “eu” não pode ser absoluto. Hölderlin evoca a estrutura
reflexiva da consciência apenas para evidenciar que, se não há consciência sem
objeto, também não há consciência-de-si sem objetivação ou autoconsciência sem
limitação. Para ele, por fim, seria uma contradição em termos o conceito de “eu
absoluto”, já que aquele substantivo jamais pode ser qualificado por este adjetivo.
Não é difícil notar, aqui, o afastamento da filosofia de Fichte como certo
recuo na direção de Kant. Em maio de 1794, Hölderlin já confidenciara ao irmão
que Kant era quase sua única leitura65. Mas seu movimento não se reduz à
aproximação de Kant. Pois a nova questão que então desponta é saber se a
limitação do juízo subjetivo de identidade formulado por Fichte “não obriga a dar
mais um passo, aquele que conduz a se elevar até o próprio ser”66, como aponta
Jean-François Courtine. Hölderlin opõe, ao juízo que marca o absoluto em Fichte,
o ser, pois o “ser exprime a ligação do sujeito e do objeto”67. É claro que, na
tradição aristotélica, juízo era tanto “diaíresis” como “synthesis”: dissociação e
64 Ibid., p. 232.65 F. Hölderlin, Correspondencia completa (Madrid, Hipérion, 1990), p. 189.66 Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 82.67 F. Hölderlin, “Juízo e Ser”, apud Antonio Cícero, “O destino do homem”, in Adauto Novaes(org.), Poetas que pensaram o mundo (São Paulo, Companhia das Letras, 2005), p. 235.
62
associação. Só que, ao fazer a ponte que associa os elementos separados, o juízo
já admite que são diferentes. Manfred Frank reparou que, nesse sentido, aparece
uma contradição entre conteúdo e forma: “o que é expresso no e pelo juízo é
precisamente a indistinção dos relacionados; a forma do juízo consiste, porém, em
distinguir estes termos indistintos”68.
Hölderlin conclui que “no conceito de separação já se encontra o conceito
da relação recíproca de objeto e sujeito um com o outro e a pressuposição
necessária de um todo do qual objeto e sujeito são as partes”69. Só porque há ser,
há a “separação através da qual tornam-se em primeiro lugar possíveis objeto e
sujeito”70. Para Terry Pinkard,
subjetividade e objetividade emergem juntas; seriam só formas diferentes dedogmatismo (…) a explicação de uma a partir do outra. Em Fichte, a“subjetividade” veio primeiro, e ele ficou atolado na tarefa (impossível) demostrar como a “objetividade” surgia (…). Devemos sempre começar com osentido de nós mesmos “no” mundo (como parte do “ser”), e este é mais básicoque qualquer articulação de nós como “sujeitos” e “objetos”.71
Por conta disso, “se não estamos preparados para derivar o termo ‘eu’ de
alguma coisa que o precede, não seremos capazes de transcender a correlação
original entre o eu e o eu como objeto”72, observou Dieter Henrich. Este termo é o
ser, aquém do juízo. Para serem sujeito e objeto, sujeito e objeto, antes, precisam
ser. Nesse sentido, o ser é “anterior a toda posição, a toda oposição, bem como a
toda síntese”73, como mostrou Jean-François Courtine. Ele não se define porque
põe ou está posto como sujeito ou objeto, e nem pela síntese dialética dos dois.
Toda posição só põe ou é posta porque é. No âmbito da filosofia moderna,
Hölderlin, com isso, compreende o ser diferentemente de Kant, Fichte e Hegel,
que o definiram, respectivamente, levando em conta a posição74, a oposição e a
síntese.
68 Manfred Frank, The philosophical foundations of early German romanticism (New York, StateUniversity of New York Press, 2004), p. 124.69 F. Hölderlin, “Juízo e Ser”, apud Antonio Cícero, “O destino do homem”, in Adauto Novaes(org.), Poetas que pensaram o mundo (São Paulo, Companhia das Letras, 2005), p. 235.70 Ibid., p. 235.71 Terry Pinkard, German Philosophy 1760-1860: the legacy of Idealism (Cambridge, CambridgeUniversity Press, 2002), p. 142.72 Dieter Henrich, Between Kant and Hegel (Cambridge, Harvard University Press, 2003), p. 292.73 Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 62.74 Cf. Martin Heidegger, “A tese de Kant sobre o ser”, in Conferências e escritos filosóficos (SãoPaulo, Abril Cultural, 1979).
63
*
Entre Kant e Hegel, o que teria sido perdido? Era essa a pergunta de
Fernando Pessoa. Teria sido perdido, quem sabe, o lugar entre a precaução crítica
que separava o homem da verdade das coisas e a pretensão da posse positiva
plena dessa mesma verdade na figura da síntese. Porém, poucas vezes percebemos
esse lugar de tensão não resolvida na qual se situam os primeiros românticos.
Somos seduzidos pela versão coerente e progressiva da história do pensamento
contada por Hegel, através da qual todos os que se situaram antes dele, se não
estavam propriamente errados, foi apenas porque contribuíram, cada um a seu
modo, para que a filosofia culminasse em seu próprio sistema. Ele atacava a
opinião que “não concebe a diversidade dos sistemas filosóficos como
desenvolvimento progressivo da verdade, mas só vê na diversidade a
contradição”75. É claro que, assim, Hegel coloca os mais diferentes filósofos
dentro do desenvolvimento da verdade. Mas o preço que eles pagam por esta
inclusão é que são submetidos, retrospectivamente, ao ponto de referência que é o
próprio Hegel. Sua diversidade, portanto, é acolhida mas, no mesmo lance,
reduzida ao critério do progresso cujo ponto ótimo é o sistema que a acolhe.
Entre Kant e Hegel, portanto, ficara perdido aquilo que, entre os dois, não
levasse de um a outro necessariamente, mas que sugerisse alternativas diferentes
de pensamento. Roubava-se, assim, a possibilidade de que, por exemplo, os
primeiros românticos não estivessem tentando dizer o mesmo que Hegel e não
conseguindo, mas sim dizendo algo, propositalmente, distinto. Portanto, o efeito
dessa concepção de história é que tudo o que fica entre Kant e Hegel passa a ser
considerado como degrau numa escada que vai de um a outro. Foi o próprio
Hegel, então, o primeiro a sugerir que lêssemos a história que vai de Kant até ele
como linha espiral mas sem desvios, fazendo com que os pensadores pós-
kantianos representassem esforços, mais ou menos bem sucedidos, de resolver os
problemas que, no entanto, só ele foi capaz de solucionar.
No caso dos primeiros românticos, é comum pensar que eles buscavam a
síntese geral que Hegel logo mais tarde proporcionara, mas que não tiveram o
talento filosófico para tanto. Pode até ser. Porém, não deixemos de lembrar que,
75 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 22.
64
para eles, a ausência de superação completa dos limites críticos de Kant na síntese
do saber devia-se menos aos seus recursos filosóficos, ou à falta deles, do que à
condição do próprio homem diante do absoluto. É que a vida, para eles, era
marcada pela falta, pela incompletude e pela diferença, motivo pelo qual
ficaríamos correndo atrás do preenchimento e da completude, num movimento
que, ao contrário do que ocorre no sistema de Hegel, não cessa jamais.
Já no enfrentamento prematuro que Novalis e Hölderlin têm com a
filosofia de Fichte, percebe-se essa dissonância com o projeto do idealismo
alemão que culminou com Hegel. Mesmo Schelling, que chegou a participar do
primeiro grupo romântico na juventude, segue, por fim, o destino idealista,
acreditando que, pelo menos através da arte, “todas as contradições são
suprimidas, todos os enigmas são resolvidos”76. Por mais que a arte ganhe
relevância para os primeiros românticos, ela não seria capaz, como nada seria, de
apaziguar definitivamente as cisões da existência (trágica) do homem.
Tudo “isso implica, sem dúvida, deslocar a ênfase, no estudo do idealismo
alemão, para os primeiros anos de sua elaboração (1794-1800); mas não se trata
tanto de buscar circunscrever aquilo que em Hölderlin pode haver contribuído
para a gênese desse idealismo”, afirmou Jean-François Courtine, “quanto de tentar
avaliar a originalidade e a pertinência da crítica hölderliniana, tal como se
manifesta desde o início”77. Podemos dizer o mesmo para os primeiros
românticos. Sua conexão com “a metafísica em vias de acabamento é, por isso,
fundamentalmente ambígua”, como observou Courtine sobre Hölderlin, pois sua
situação “em relação a esse horizonte, muito grosseiramente esboçado, da
metafísica absoluta no limiar de seu acabamento só pode ser determinada de
maneira rigorosa como uma situação de exterioridade ou, em todo caso, de
crescente estranheza”78. Hölderlin não fez parte do primeiro grupo romântico que
se reunia em Iena, mas o que ele escreveu naquela cidade abriu, junto com as
reflexões de Novalis, o horizonte para tal pensamento. Não seria difícil aplicar aos
primeiros românticos o que Heidegger diz ao comparar Hölderlin com Hegel:
76 F. Schelling, “Trecho do Sistema do Idealismo Transcendental”, in Rodrigo Duarte (org.), Obelo autônomo (Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1997), p. 137.77 Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 42,78 Ibid., p. 44, 39.
65
estão muito próximos, “com a diferença, porém, de Hegel olhar para trás e fechar
um ciclo, Hölderlin olhar para a frente e abrir outro ciclo”79.
79 Martin Heidegger, Introdução à metafísica (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978), p. 151.
4
Dizer o absoluto:
a emergência filosófica da arte
Desde Platão, a arte foi tema caro à filosofia. Nem por isso, contudo, sua
fortuna crítica foi das melhores. Não raro, a filosofia rebaixou a arte, por submetê-
la à exigência cognitiva à qual ela não atendia bem, se comparada à ciência.
Recanto da beleza, mas não da verdade, a arte ficaria, na melhor das hipóteses, em
segundo plano. Kant alterou, já na modernidade, essa história, ao fundar
filosoficamente a autonomia da estética, liberando-a da subordinação à verdade
cognitiva. Mas, Kant pensava antes na beleza natural do que na artificial, ou seja,
antes na estética em sentido amplo do que particularmente na arte. Mesmo assim,
sua contribuição foi decisiva para que, depois, a arte experimentasse valorização
filosófica sem precedentes. Era a época dos românticos e idealistas alemães.
Embora esses fossem próximos uns dos outros, Novalis e Hölderlin, já nas
suas pioneiras reflexões em 1795, expuseram o quanto não desempenharam papel
apenas formador no idealismo, lançando as notas dissonantes que seriam o
preâmbulo do romantismo alemão. Essa situação é complicada porque o léxico do
qual dispunham os primeiros românticos era muito semelhante ao dos idealistas, o
que não ajudou a perceber que sua contribuição, nesse contexto, foi mais crítica
do que afirmativa. É o que ocorre com o conceito central de intuição intelectual.
Hölderlin desejava compreender o fundo da “separação original do objeto e
sujeito”, que é “mais intimamente unido na intuição intelectual”1. Esse fundo é o
ser absoluto sempre buscado pela filosofia e “porque é unidade originária do
sujeito e do objeto, ele não pode ser caracterizado senão com o auxílio desse
conceito-limite de todo conhecimento, no pós-kantismo, o conceito de intuição
intelectual”2, notou Jean-François Courtine. Mas o que é a intuição intelectual?
1 F. Hölderlin, “Juízo e Ser”, apud Antonio Cícero, “O destino do homem”, in Adauto Novaes(org.), Poetas que pensaram o mundo (São Paulo, Companhia das Letras, 2005) p. 235.2 Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 86.
67
No idealismo de Fichte, “eu sou essa intuição, e pura e simplesmente mais
nada, e essa intuição mesma sou eu”3. Sua estratégia era fazer com que o “eu”, ao
pensar a si mesmo, experimentasse estar tanto no lugar do sujeito, já que está
pensando, quanto no lugar do objeto, já que o que ele pensa é ele mesmo – assim
chegaríamos ao ser absoluto e sem divisão. Para Hölderlin, porém, com essa
atividade da autoconsciência ficamos presos na separação dicotômica, já que o
suposto mesmo “eu” que pensa e é pensado, na verdade, não é o mesmo: ele é, de
um lado, o sujeito que pensa e, de outro lado, o objeto pensado, como convém à
forma do juízo cognitivo, na qual a intuição do absoluto não seria viável. Dieter
Henrich notou que não é possível “alcançar a completa reunificação daquilo que
foi separado”, já que não há “caminho de retorno ao ‘ser’ indiferenciado desde
que a mente se originou”, pois “isso significaria a mente superar sua própria
natureza”4. Não adiantaria, então, a “egoidade” que Fichte buscara. Estaria, assim,
o ser absoluto fora de alcance, completamente interditado? Não, pois, para
Hölderlin, “pode falar-se de um ser de modo absoluto, como é o caso ao se dar a
intuição intelectual”5. Este ser, porém, não seria dado no “eu” e sim, como
veremos, no âmbito da arte, exigindo sentido estético.
*
É provável que a noção de intuição intelectual empregada por Hölderlin
tenha surgido nas conversas com seu amigo Schelling, o mais importante
discípulo de Fichte. Já em 1795, no âmbito da filosofia pós-kantiana, Schelling
dizia: “somente por termos saído do absoluto surge o conflito com ele, e somente
por esse conflito originário do próprio espírito humano surge a controvérsia dos
filósofos”6. Se não estivéssemos exilados do absoluto, não haveria discordâncias
sobre ele. É só porque não o temos, que o buscamos. Logo, “se alguma vez (…) o
homem lograsse deixar esse domínio ao qual foi conduzido pelo exílio do
3 J. G. Fichte, “O Princípio da Doutrina-da-Ciência”, in Escritos filosóficos (São Paulo, AbrilCultural, 1973), p. 45.4 Dieter Henrich, Between Kant and Hegel (Cambridge, Harvard University Press, 2003), p. 293.5 F. Hölderlin, “Juízo e Ser”, apud Antonio Cícero, “O destino do homem”, in Adauto Novaes(org.), Poetas que pensaram o mundo (São Paulo, Companhia das Letras, 2005), p. 235.6 F. Schelling, “Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo”, in Escritos filosóficos (SãoPaulo, Abril Cultural, 1973), p. 184.
68
absoluto, cessaria toda filosofia e aquele domínio”, afirma Schelling, “pois ele só
surge por aquele conflito e só tem realidade enquanto ele perdura”7.
Porém, o fito do idealismo, em geral, foi conciliar essas controvérsias e
produzir o saber do absoluto. Sua esperança de síntese, contudo, dependia da
cisão, para que tivesse o que sintetizar: “a condição da síntese é o conflito em
geral, e aliás, precisamente o conflito entre o sujeito e o objeto”8, disse Schelling.
Este conflito aparecia já que, segundo Kant, não teríamos intuição intelectual,
logo, nossa relação com o mundo estaria mediada por conceitos do entendimento
que estruturariam os dados recebidos na sensibilidade, interditando o aceso às
coisas em si mesmas, que só chegariam a nós filtradas por nossa estrutura
subjetiva geral. Nossa comunhão com o mundo, portanto, ficara proibida.
Quanto mais afastado de mim está o mundo, quanto mais intermediários eucoloco entre ele e mim, tanto mais limitada é minha intuição dele, tanto maisimpossível aquele abandono ao mundo, aquela aproximação mútua, aquelesucumbir em luta de ambos os lados (o princípio da beleza). A verdadeira arte, ouantes o theion, o que é divino na arte, é um princípio interior (…). Perdemos esseprincípio interior quando perdemos a intuição intelectual do mundo, que surgepela unificação instantânea dos dois princípios conflitantes em nós.9
Schelling coloca a hipótese de que, se a intuição intelectual no
conhecimento não ocorre, como já dizia Kant, ela poderia se dar esteticamente, na
beleza, pois aí não é mais necessária a objetividade cognitiva. Fora da relação
entre sujeito e objeto, que estrutura o conhecimento, o absoluto deixa de estar
proibido, pois abandona a cisão dessa relação dicotômica, logo, dividida – não
absoluta. “Essa intuição intelectual se introduz, então, quando deixamos de ser
objeto para nós mesmos”10, afirmou Schelling, contrapondo-se à esperança de
Fichte de que, ao me tornar objeto para mim mesmo no pensamento, pudesse
alcançar a reconciliação absoluta pelo saber da autoconsciência. É nessa fissura
que entra a estética. “Segundo Schelling, a arte entra em ação quando o saber
desampara os homens”11, afirmou depois Adorno. Era a emergência filosófica da
arte. Ela aparece como forma de buscar o absoluto na lida com a tensão de forças
contraditórias e, aparentemente, sem conciliação. Sujeito e objeto, liberdade e
7 Ibid., p. 184.8 Ibid., p. 186.9 Ibid., p. 180.10 Ibid., p. 198.11 Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento (Rio de Janeiro, Jorge Zahar,1985), p. 32.
69
necessidade, espírito e natureza ou consciência e inconsciência foram alguns dos
modos de falar dessas forças em combate.
Por isso, Peter Szondi afirmou: “desde Aristóteles há uma poética da
tragédia; apenas desde Schelling, uma filosofia do trágico”12. Schelling
encontrava, nessa clássica forma de arte grega, o exemplo emblemático do
“conflito da liberdade humana com a potência do mundo objetivo”13 que marcava
a modernidade. Porém, “liberdade e submissão, mesmo a tragédia grega não podia
harmonizar”14, diz ele. Essa imagem do conflito trágico que não se soluciona
aproxima o jovem Schelling dos primeiros românticos, como Friedrich Schlegel, e
o mantém, nesta altura, ligado a Hölderlin.
Só que, como mostrou Artuto Leyte Coello, Schelling, ao contrário de
Hölderlin, abandona esta filosofia ligada ao papel da tragédia, ainda que não para
recusar a arte, mas sim para lhe atribuir papel mais acorde com a tradição da
filosofia moderna, que não pode em geral ficar detida em sua mera constituição
como tragédia. Essa tradição filosófica moderna, insiste o comentador, precisa
entrar na solução desse antagonismo para alcançar uma noção de absoluto que não
só se encontre além do antagonismo, mas que o explique. “E que, no fim das
contas, desative-o”15. Durante sua maturidade, Schelling parece abandonar,
progressivamente, a concepção filosofia e da arte na chave da tragédia, em prol da
reconciliação harmônica. Mesmo na sua juventude, ainda em 1795, os sinais dessa
perspectiva já existiam. Em sua tentativa de resolver a duplicação do “eu” na
atividade da autoconsciência em sujeito que pensa e objeto pensado, como
descrevera Fichte, Schelling conclui, falando sobre a intuição intelectual na arte,
que, assim, “retirado em si mesmo, o eu que intui é idêntico ao eu intuído”16. É
por isso que “o propósito de Hölderlin é precisamente distinguir, contra Fichte e
contra Schelling, o ser no sentido próprio e a identidade pretensamente i-
mediata”, como mostrou Jean-François Courtine, concluindo que “o ser está
portanto, ousamos dizer, para além da identidade”17.
12 Peter Szondi, Ensaio sobre o trágico (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004), p. 23.13 F. Schelling, “Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo”, in Escritos filosóficos (SãoPaulo, Abril Cultural, 1973), p. 208.14 Ibid., p. 208.15 Arturo Leyte Coello, “Arte e sistema”, in As filosofias de Schelling (Belo Horizonte, Ed.UFMG, 2005), p. 29.16 F. Schelling, “Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo”, in Escritos filosóficos (SãoPaulo, Abril Cultural, 1973), p. 198.17 Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 62, 86.
70
Mesmo assim, importa que Schelling deslocara a intuição intelectual para
o âmbito estético, pois, como frisou Benjamin, “no sentido primeiro romântico, o
ponto central da reflexão é a arte e não o Eu”18. Saía-se, então, do caráter egóico
da reflexão proposta por Fichte, como Schelling deixa claro mais tarde, em 1801,
ao pensar a arte como “órgão da filosofia”. É a obra de arte, enquanto produto
concreto no mundo, a realização da intuição intelectual. “Esta objetividade da
intuição intelectual (…) é a própria arte”, diz Schelling, “pois a intuição estética é
justamente a intuição intelectual que se tornou objetiva”19. Nessa altura, vale
dizer, ele já abandonara a manutenção da tensão da tragédia, o que o afasta dos
primeiros românticos. Supõe encontrar o “absoluto que contém o fundamento
geral da harmonia pré-estabelecida entre o consciente e o não-consciente”20.
Porém, como permanece a convicção de que “a arte é a única e eterna revelação
que existe, e o milagre que, mesmo que só tivesse existido uma vez, teria de
convencer-nos da realidade daquele supremo”21, não se pode falar de
distanciamento completo dos primeiros românticos.
*
Em carta a Schiller de 1795, Hölderlin escrevia que, através dos juízos
filosóficos, não alcançaríamos a intuição intelectual e, portanto, o ser absoluto,
ficando presos na separação entre sujeito e objeto. No âmbito da teoria, nossa
relação com o ser “só é possível por meio de uma aproximação infinita tal como a
aproximação do quadrado ao círculo”22, afirma Hölderlin. Novalis escreveu quase
o mesmo na mesma época: “toda procura por um princípio único seria como a
tentativa de enquadrar o círculo”23. Nos dois casos, a teoria tradicional com a
pureza de sua prosa conceitual, por si só, não seria capaz de chegar ao ser
absoluto, pois tanto um quanto outro consideravam a natureza deste ser dotada de
18 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 48.19 F. Schelling, “Trecho do Sistema do Idealismo Transcendental”, in Rodrigo Duarte (org.), Obelo autônomo (Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1997), p. 145.20 Ibid., p. 138.21 Ibid., p. 139.22 F. Höldelrin, “Cartas”, in Reflexões (Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994), p. 112.23 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), #566.
71
certa opacidade frente à pretensão de esclarecimento filosófico completo que, em
geral, eles testemunhavam no âmbito do conhecimento.
Mas, ainda na carta a Schiller, Hölderlin dá certa pista decisiva sobre o
que pensava ser a possibilidade de contato com o ser. Ele dizia que esse contato
“só é possível, esteticamente, na intuição intelectual”24. Somente pelo caráter
estético da intuição, ela poderia ser intelectual. Somente pelo caráter estético do
intelecto, ele poderia ser intuitivo. Todas as indicações são claras: a filosofia,
enquanto simples teoria, não basta para chegar ao ser. Seria preciso mais. Seria
preciso sentido estético, como antecipara Schelling. É o que afirma outra carta de
Hölderlin, já de 1796.
Busco encontrar o princípio esclarecedor das separações pelas quais pensamos eexistimos e permita o desaparecimento do antagonismo entre sujeito e objeto,entre o nosso si mesmo e o mundo, sim, entre razão e revelação, teoricamente, naintuição intelectual (…). Para tanto, necessitamos de sentido estético.25
Numa carta do ano anterior, Hölderlin já confessara a Hegel o que lhe
interessava em Kant: “tento, especialmente, familiarizar-me com a parte estética
da filosofia crítica”26. Era a estética que emergia como dimensão privilegiada de
acesso ao ser na modernidade romântica, que seguia assim a sugestão de Kant,
pois ele já buscara, na estética, o fundamento comum das dualidades que seu
projeto crítico consolidara. Só no sentido estético, sem a dicotomia de sujeito e
objeto dos juízos de conhecimento, poderia se dar a intuição intelectual do ser.
Para falar sobre ele, seria preciso certo tipo de discurso fora do âmbito cognitivo
estrito, já que este se dá na dualidade estabelecida por sujeito (que conhece) e
objeto (conhecido). Foi o que atraiu desde Schelling e os primeiros românticos até
Kant na Crítica da faculdade do juízo para a estética. Parecia que ali surgia
alguma esfera na qual o que não pode ser provado como fato verificável pode ser,
entretanto, articulado. Foi a tarefa de dizer o absoluto, portanto, que provocou a
emergência filosófica da arte. É que o próprio absoluto, para os primeiros autores
fundamentais do romantismo alemão, não poderia ser, a rigor, provado, já que
precisar de prova já aponta para a necessidade de alguma condição e o absoluto,
24 F. Höldelrin, “Cartas”, in Reflexões (Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994), p. 111-112.25 Ibid., p. 113.26 F. Hölderlin, Correspondencia completa (Madrid, Hipérion, 1990), p. 199.
72
por sua vez, deve ser incondicionado, “independentemente de toda causalidade
objetiva”27, como escreveu Schelling.
Novalis definira a filosofia como busca infinita: o fundamento que procura
não lhe é dado por completo. Hölderlin, em carta a Schiller na mesma época,
dizia: “busco desenvolver a idéia de um progresso infinito da filosofia”28. Mais
tarde, no coração do romantismo alemão, Friedrich Schlegel afirmou que “a
intuição intelectual é o imperativo categórico da teoria”29. Ironicamente,
deslocava, com isso, o que Kant colocara no centro de sua moral, a saber, o
imperativo categórico, para a teoria, fazendo com que o conhecimento do ser
ficasse sob a égide do dever ser, como tarefa infinita. “Desde que esta apreensão,
este modo de ‘intuição intelectual’, não pode, em si, ser articulada judicativa ou
proposicionalmente, ela só pode ser aludida indiretamente”30, afirmou Terry
Pinkard. Foi a arte, em geral, o modo de dizer com caráter alusivo que se prestou,
então, a esta aproximação, via intuição intelectual estética, do absoluto, motivo
pelo qual ela se tornou o centro do pensamento romântico. Entretanto, como se
trava apenas de alusão e de aproximação, esse contato com o absoluto ficaria, no
máximo, dentro do âmbito do que Kant concebera como “progresso que avança ao
infinito”31, por oposição à pretensão de Hegel da consumação final deste processo
no saber absoluto.
*
Por ser refratário à absorção pelo homem, o absoluto o joga no progresso
infinito da filosofia, sem termo final. Para trilhá-lo, a filosofia precisa angariar
modos de falar capazes de aludir àquilo que, por si, não se deixa conceituar. Logo,
a natureza do discurso da filosofia tradicional não atenderia às exigências de
consideração do absoluto. Foi dessa dificuldade que surgiu o primeiro romantismo
alemão, bem como sua necessidade de relacionar a arte à filosofia, mais do que de
apenas ter na arte seu objeto preferencial. “Existe, portanto, uma tensão essencial 27 F. Schelling, “Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo”, in Escritos filosóficos (SãoPaulo, Abril Cultural, 1973), p. 198.28 F. Höldelrin, “Cartas”, in Reflexões (Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994), p. 111.29 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 58 (Athenäum,Fr. 76).30 Terry Pinkard, German Philosophy 1760-1860: the legacy of Idealism (Cambridge, CambridgeUniversity Press, 2002), p. 140.31 I. Kant, Crítica da razão prática (São Paulo, Martins Fontes, 2002), p. 198 (A 221).
73
no pensamento idealista e romântico que reside na nada fácil coexistência do
desejo (idealista) de poder dizer o que está pensando que é ilimitado, com um
sentido (romântico) que o acompanha de impossibilidade de dizê-lo”32, comentou
Andrew Bowie. Esta ausência de possibilidade tornava questionável, então, a
empreitada filosófica de alcançar o absoluto pela forma já conhecida. E esta seria
a explicação para a fixação romântica à arte, que derivaria, assim, da necessidade
de responder àquela tensão. Portanto, o caráter não objetivo, mas também não
subjetivo, do ser absoluto deixava a pretendida linguagem puramente conceitual
da filosofia em apuros.
Na medida em que o problema surgira, para os românticos, no diálogo
com o projeto idealista, não é demais dizer que, embora Fichte tenha escrito
pouco sobre arte, o significado de sua filosofia para a estética posterior
dificilmente pode ser superestimado. Mesmo que Fichte não tenha concretamente
aberto sua filosofia à arte, os problemas por ele colocados contribuíram nessa
direção. Portanto, “ao propor uma nova equiparação entre reflexão filosófica e
reflexão originária, entre forma e matéria, sujeito e objeto da filosofia, o
romantismo está na verdade tentando contornar algumas das dificuldades
inerentes à exposição da doutrina-da-ciência, aliás já previstas pelo seu autor”33,
asseverou Márcio Suzuki, referindo-se à grande obra de Fichte. Não desejavam,
enfim, os românticos, nas palavras de Novalis, “fichtizar”34? Porém, ao fazerem
isso, descobriram mais do que o próprio Fichte. Foi o que percebeu Benjamin,
quando estudou a influência de Fichte no romantismo.
Aqui vem ao caso notar exatamente até onde os primeiros românticos seguemFichte, para identificar com clareza onde eles se separam dele. Tal local deseparação deixa-se fixar filosoficamente, não pode ser pura e simplesmentedesignado e fundamentado pelo afastamento que o artista toma com relação aopensador científico. Pois também nos românticos encontram-se na base destaseparação motivos filosóficos.35
Por isso, ainda segundo Benjamin, a arte, para os românticos, não é o
contato intuitivo sem intelecção, já que “a reflexão se expressa de modo supremo
32 Andrew Bowie, Aesthetics and subjectivity: from Kant to Nietzsche (Manchester, ManchesterUniversity Press, 2003), p. 81.33 Márcio Suzuki, O gênio romântico (São Paulo, Iluminuras, 1998), p. 100-101.34 Novalis, “Fragmentos logológicos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 111.35 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 30.
74
enquanto princípio da arte”36. É daí que emerge o peso da arte para a filosofia.
“Do mesmo modo que Hölderlin, Novalis achou na poesia uma capacidade
expressiva maior do que a filosofia pode reunir”, pois “a poesia é capaz de
mostrar a intangibilidade do absoluto”37, notou Charles Larmore. Talvez isso
explique que ambos tenham se dedicado a poetar, como se aquela fosse a
linguagem mais adequada à natureza do absoluto que perseguiam. Friedrich
Schlegel, por sua vez, considerava “a arte como o cerne da humanidade”38. Em
suma, a emergência ontológica da arte deveu-se ao desafio de dizer o absoluto.
Entretanto, a migração da filosofia à poesia não alcança o sentido do
primeiro romantismo, e provavelmente obscurece a compreensão até de seus
poemas. Por isso, Hölderlin falava de “sentido estético”: ele poderia estar presente
inclusive na filosofia. Logo, não seria preciso abandoná-la, como não fizeram
Hölderlin e Novalis. Seria preciso, antes, encará-la de outra maneira, com o
sentido estético que, em geral, a tradição lhe negou. É que “com essa mudança de
registro, pensam os românticos, a própria filosofia só teria a ganhar, pois poderia
então se desfazer de seu aparato técnico e readquirir as cores de uma apresentação
realmente ‘viva’”39, observou Márcio Suzuki. Essa filosofia voltava-se para a arte
não só como tema de pesquisa, mas como aquilo de que deveria impregnar-se.
Seria preciso que a filosofia fosse também poética, o que não quer dizer escrever
em versos ou coisa que o valha, mas apenas levar em conta a sua forma, enquanto
escrita.
*
No seminal e hoje famoso texto de 1796 conhecido como “Mais antigo
programa de sistema do idealismo alemão”, está escrito que “a poesia recebe
assim uma dignidade maior, torna-se ao final o que era no início: educadora da
humanidade, pois não há mais filosofia”40. Nessas idéias envoltas em ar
romântico, de autoria dos jovens seminaristas Hölderlin, Schelling e Hegel, 36 Ibid., p. 108.37 Charles Larmore, “Hölderlin and Novalis”, in Karl Ameriks (ed.), The Cambridge Companionto German Idealism (Cambridge, Cambridge University Press, 2005), p. 155.38 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 534.39 Marcio Suzuki, O gênio romântico (São Paulo, Iluminuras, 1998), p. 100-101.40 F. Hölderlin, “Esboço (O mais antigo programa de sistema do idealismo alemão)”, in KathrinRosenfield (org.), Filosofia & Literatura: o trágico (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001), p. 173.
75
costuma-se ver a apologia da poesia sobre a filosofia. Esquece-se, porém, que
antes dessa afirmação estava escrito: “o filósofo deve ter a mesma potência
estética que o poeta”41. Só nessa medida a poesia pode ser mestra da humanidade,
não porque a filosofia acabe, mas porque ela mesma torna-se poética. Por isso, o
caráter poético dos textos filosóficos do romantismo não se explica pelo luxo
retórico ou pela falta de vocação para a rigidez sistemática, ainda que,
biograficamente, esta existisse, como confessou Friedrich Schlegel. Trata-se,
antes, da atenção ao modo de acesso requerido pelo ser do absoluto.
Essa atenção complicara-se porque a ânsia de liberdade absoluta pedia ao
homem que ele se colocasse acima de todas as coisas, já que estas poderiam
limitar tal liberdade ao se imporem sobre ele. Só que, fazendo assim, perdia-se, ao
mesmo tempo, a comunhão absoluta com estas mesmas coisas, forçando à
situação de divisão que, por definição, não é absoluta. Portanto, como afirmar a
liberdade sem exilar-se da sensibilidade? Kant, ao tratar do problema da moral,
agravou a pergunta, visto que exigia a superação, pela vontade livre, dos desejos,
das compaixões, das inclinações. Mesmo ao tratar do problema do conhecimento,
Kant já subordinara a passividade receptiva da sensibilidade à atividade do
entendimento e de seus conceitos. Legara, assim, o rigoroso dualismo ao qual a
geração seguinte, e não apenas os românticos, buscou responder.
Essa resposta foi dada, sobretudo, através da arte. Schiller, por exemplo,
achava que “liberdade no fenômeno é o mesmo que beleza”42. Buscava, com isso,
não atrelar as sensações fenomênicas exclusivamente às necessidades naturais que
castram a liberdade do homem. Esteticamente, esses dois domínios não
precisariam estar em luta mortal um com o outro, pois a liberdade poderia se dar
sem prejuízo da sensibilidade, ao contrário do dualismo de Kant. Na estética,
como vira o próprio Kant, a sensibilidade não precisaria ser negada para afirmar a
liberdade, a imaginação não se subordina ao intelecto. Pode, aqui, haver “livre
jogo”, dizia a estética de Kant, com caráter “lúdico”, como explica Schiller.
Também no amor, a liberdade não nos tira das coisas, mas nos deixa nelas
estar. “Hölderlin acredita que a possibilidade de interpretar o amor é uma das
maiores conquistas de seu novo sistema – amor como manifestação e realização
da liberdade”, afirma Dieter Henrich, completando que, para ele, “a liberdade
41 Ibid., p. 173.42 F. Schiller, Kallias ou sobre a beleza (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002), p. 82.
76
pode legitimamente se render à beleza”43. Tanto no amor quanto na estética, a
liberdade subjetiva da razão humana não toma a necessidade objetiva da natureza
sensível como sua inimiga.
Por isso, o poeta português Luís de Camões, admirado e traduzido pelos
primeiros românticos alemães, afirmava que amor “é um cuidar que ganha em se
perder; é querer estar preso por vontade”44. Estar preso, no amor, não nega a
liberdade da vontade, mas, pelo contrário, é seu ato. Estar submetido, ao outro ou
ao mundo, não aparece, então, como aniquilamento da liberdade, mas como prova
de que ela pode não apenas se impor, mas também acolher. No amor, a dualidade
entre sujeito e objeto, entre a razão e a sensibilidade ou entre o espírito e a carne
pode achar no conflito a maneira de certa aproximação, e não só de
distanciamento – assim como com a filosofia e a arte. Não se trata de resolver a
contradição, como queria Hegel, mas de aceitá-la na sua tensão, pois os primeiros
românticos, seguindo as trilhas abertas por Hölderlin e Novalis, fizeram o “elogio
de um procedimento e de um pensamento mais pacientes, abertos à possível
correlação entre a plenitude a indigência”45, conforme certa vez disse Jean-
François Courtine. Tendo isso em vista, os primeiros românticos não precisaram
optar pela filosofia ou pela arte, podendo colocá-las, amorosamente, em relação.
Sendo assim, o amor, que promove a junção do que ficara separado e nos
deixara no exílio, não nos devolve o absoluto em sua perfeição. Porém, nos salva
de apenas padecer neste exílio sem mais. Sim, pois “deveríamos perecer no
conflito dessas pulsões antagônicas”, comenta Hölderlin. “Mas o amor as reúne”,
afirma, pois “tende infinitamente ao que há de mais elevado e melhor, pois seu pai
é a plenitude, mas ele não renega sua mãe, a indigência”46. É clara, aqui, a
influência de Platão, para quem Eros “descende de um pai sábio e rico em
expedientes, e de mãe nada inteligente e de acanhados recursos”47. Por conta
disso, o amor, segundo Hölderlin, apenas tende ao infinito: seu pai é a plenitude,
mas sua mãe não o abandona e o joga, novamente, na indigência. Segundo
Platão, “o que adquire hoje, perde amanhã, de forma que Eros nunca é rico nem
43 Dieter Henrich, Between Kant and Hegel (Cambridge, Harvard University Press, 2003), p. 294.44 Luis de Camões, Obra completa (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2005), p. 270.45 Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 78.46 F. Hölderlin, apud Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34,2006), p. 81.47 Platão, “O Banquete”, in O Banquete – Apologia de Sócrates (Belém, EDUFPA, 2001), p. 66(204b).
77
pobre e se encontra sempre a meio caminho da sabedoria e da ignorância”48. Para
Hölderlin, “amar assim é humano”49.
Filosofar assim também. “E a razão é a seguinte: nenhum dos deuses se
dedica à filosofia nem deseja ficar sábio – pois isso ele já é”50, explicava
antecipadamente Platão. Filosofia é amor, “filos”, amor pelo saber, pelo absoluto.
Mas aqueles que filosofam não são, eles mesmos, sábios, ou nem desejariam o
saber. Portanto, se “aquilo que amamos é, realmente, belo, delicado, perfeito e
bem-aventurado”, continua Platão51, “porém o amante é de natureza muito
diferente”52. Friedrich Schlegel, sublinhado a negatividade dessa relação, dizia:
“pode-se amar intimamente algo, justamente porque a gente não o possui”53. Ele
tinha em mente, como Hölderlin, a filosofia de Platão, já que, “como o eros
platônico, esse sentido negativo é, portanto, filho da abundância e da penúria”54.
Essa relação entre o absoluto e o homem que, ao buscá-lo esteticamente
porque o ama, está dele desprovido foi exposta por Hölderlin no prefácio à
penúltima edição do Hipérion. Ela define o que David Farrell Krell, comentando
autores como Novalis e o próprio Hölderlin, chamou de “absoluto trágico”55, o
que se aplicaria, provavelmente, a todo o primeiro grupo romântico alemão.
A unidade da alma, o ser no único sentido da palavra, está perdida para nós, e seera para desejá-la, conquistá-la, tínhamos de perdê-la. Subtraímo-nos ao pacíficoHen kai Pan [Tudo é um] do mundo para restabelecê-lo por nós mesmos.Rompemos com a Natureza, e o que era há pouco, ao que se pode crer, Uno,agora se faz contradição; soberania e servidão alternam-se de ambos os lados.Com freqüência, parece-nos que o mundo é tudo e que não somos nada, mas comfreqüência também que somos tudo, e o mundo nada… Pôr fim a esse combateentre nós e o mundo, restabelecer a mais pura paz, que ultrapassa toda razão,unirmo-nos à Natureza em um Todo infinito, tal é a meta de todas as nossasaspirações, quer nos entendamos ou não sobre isso. – Mas nem nosso saber nemnossa ação alcançarão em qualquer período da existência esse ponto em que éabolida toda contradição, em que tudo é uno: a linha definida não se confunde
48 Ibid., p. 66 (204a).49 F. Hölderlin, apud Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34,2006), p. 81.50 Platão, “O Banquete”, in O Banquete – Apologia de Sócrates (Belém, EDUFPA, 2001), p. 66(204c).51 É claro que, aqui, não se tratava da famosa expulsão dos artistas que Platão descreveu naRepública, mas da suprema posição que a beleza ocupa em tantos outros diálogos, como noBanquete e no Fedro.52 Platão, “O Banquete”, in O Banquete – Apologia de Sócrates (Belém, EDUFPA, 2001), p. 66-67(204c).53 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 31 (Lyceum, Fr.68).54 Ibid., p. 31 (Lyceum, Fr. 68).55 David Farrell Krell, The tragic absolute (Indianapolis, Indiana University Press, 2005).
78
com a linha indefinida senão numa infinita aproximação. – Não teríamosnenhuma idéia dessa paz infinita, desse ser único no sentido da palavra, nãoaspiraríamos de modo algum a nos unirmos à natureza, não pensaríamos nemagiríamos, não haveria absolutamente nada (para nós), não seríamos nós mesmosnada (para nós), se essa união infinita, se esse ser único no sentido da palavra,não existisse. Ele existe – como Beleza; para falar com Hipérion, um novo reinonos espera, no qual a Beleza será rainha. – Creio que no fim exclamaremos todos:Santo Platão, perdoa-nos! pecamos gravemente contra ti!56
56 F. Hölderlin, apud Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34,2006), p. 89-90.
5
Modernidade na arte:
poesia transcendental e nova mitologia
“Seja como for, o fato é que a arte não mais proporciona aquela satisfação
das necessidades espirituais que épocas e povos do passado nela procuravam e só
nela encontraram”1. Essas palavras de Hegel delimitaram o que, até hoje, chama-
se de morte da arte. Escrevendo no início do século XIX, Hegel não achava que
novas obras de arte não fossem ser produzidas. Mas achava, sim, que elas não
seriam a expressão privilegiada da verdade do espírito na época moderna. Seu
diagnóstico é essencialmente histórico: “os belos dias da arte grega assim como a
época de ouro da Baixa Idade Média passaram”2. Hegel não tem em vista,
primordialmente, dizer que a arte do passado é superior à do presente. Seu
objetivo é mostrar que o presente moderno não lida com a arte do mesmo jeito
que a antiguidade clássica. “Hoje, além da fruição imediata, as obras de arte
também suscitam em nós o juízo, na medida em que submetemos à nossa
consideração pensante o conteúdo e o meio de exposição da obra de arte”3. É esta
submissão que Hegel destaca, pois a beleza da arte não passaria mais às nossas
vidas sem o crivo da reflexão. Ele conclui, então, que “a ciência da arte é, pois,
em nossa época muito mais necessária do que em épocas na qual a arte por si só,
enquanto arte, proporcionava plena satisfação”4. Não é, a rigor, a arte que
preocupa Hegel, mas sim a filosofia da arte, pois a arte, como determinação
superior da verdade, pertence ao passado, enquanto a filosofia da arte, esta sim,
pertence ao presente: “o pensamento e a reflexão sobrepujaram a bela arte”5.
Hegel, como a maioria de seus contemporâneos, enxergava a modernidade
nascente como a emergência do poder do pensamento reflexivo no homem. E a
arte, apegada à beleza sensível, não faria parte deste progresso, ficando para trás.
1 F. W. G. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 35.2 Ibid., p. 35.3 Ibid., p. 35.4 Ibid., p. 35.5 Ibid., p. 34.
80
Diríamos que as condições de recepção não mais permitiam que as obras de arte
desempenhassem o papel de outrora.
Hegel, porém, não subestimava a arte. Pelo contrário, parecia ter
verdadeira estima por ela. Só que, por isso mesmo, não se contentava em afirmar
sua presença secundária no mundo e assistir seu declínio como centro da vida
coletiva do homem. Se a arte “perdeu para nós a autêntica verdade e vitalidade”6,
como ele achava, o melhor seria compreender este processo. Pois as obras de arte
modernas, diz ele, não despertam o efeito das antigas: “a impressão que elas
provocam é de natureza reflexiva e o que suscitam em nós necessita ainda de uma
pedra de toque superior”7. Esta pedra de toque superior era a filosofia. Mas ela
não poderia conviver com a arte. Deveria, antes, compreendê-la conceitualmente
e, assim, superá-la, ainda que a conservando no processo reflexivo que leva a
cabo a retrospecção de toda a história do espírito do mundo. Para Hegel, a
modernidade é a época da filosofia, enquanto a antiguidade foi a época da arte.
Daí seu famoso veredicto: “a arte é e permanecerá para nós, do ponto de vista de
sua destinação suprema, algo do passado”8.
Nem todos, porém, pensavam como Hegel. Basta lembrar do caso de
Schiller. Ele, no final do século XVIII, já expunha a transformação da situação da
arte na modernidade em termos parecidos com os que Hegel empregaria depois,
mas com conclusões bem diferentes. Schiller comparava os poetas antigos e
modernos, afirmando que “aqueles nos comovem pela natureza, pela verdade
sensível, pela presença viva; estes nos comovem pelas idéias”9. Ele dizia que,
entre os primeiros, predominava o estilo “ingênuo”, enquanto, entre os segundos,
o estilo “sentimental”. Enquanto os ingênuos podem sê-lo porque desfrutam da
comunhão direta com a natureza à sua volta, os sentimentais o são pois a reflexão
media sua relação com o ser em geral. Embora os sentimentais comovam, não o
fazem acolhendo com tranqüilidade, simplicidade ou desenvoltura e expondo, do
mesmo modo, aquilo que foi acolhido. Neles, “involuntariamente, a fantasia se
antecipa à intuição, o pensamento à sensação, e fecham-se olhos e ouvidos para se
imergir completamente em si”, pois aí “a mente não pode suportar nenhuma
impressão sem ao mesmo tempo assistir a seu próprio jogo e pôr diante e fora de
6 Ibid., p. 35.7 Ibid., p. 34.8 Ibid., p. 35.9 F. Schiller, Poesia ingênua e sentimental (São Paulo, Iluminuras, 1991), p. 61.
81
si, mediante reflexão, aquilo que tem em si”10. Essa situação define o problema da
criação poética moderna. Nela, “jamais alcançamos o objeto, mas apenas o que o
entendimento reflexionante do poeta fez do objeto, e mesmo quando o próprio
poeta é esse objeto, quando quer nos exprimir suas sensações”, completa Schiller,
“não experimentamos imediatamente e em primeira mão o seu estado, mas como
se reflete em sua mente, aquilo que pensou sobre tal estado como espectador de si
mesmo”11. Era a arte que se tornava crítica de si mesma.
Marca a criação moderna a autocrítica de suas obras, que não mais
usufruem diretamente da natureza. Em suma, os modernos separaram-se da
“chama que alimenta o espírito poético”: a natureza. “Entre nós, a natureza
desapareceu da humanidade”12, afirma Schiller. Tornamo-nos, assim, a cultura
separada da natureza. Schiller pergunta-se, então, “o que teriam por si mesmos de
tão aprazível para nós uma flor singela, uma fonte, uma rocha musgosa, o gorjeio
dos pássaros, o zumbidos das abelhas”, a princípio sem saber o que “poderia dar-
lhes um direito ao nosso amor”. Mas ele responde: “neles amamos a vida
silenciosamente geradora, o tranqüilo atuar por si mesmos, o ser segundo leis
próprias, a necessidade interna, a eterna unidade consigo mesmos”13. Estaríamos,
então, diante da suposta perfeição passada da “idade de ouro” dos gregos? Não,
pois “essa perfeição não é mérito seu, porque não é obra de sua escolha”14. Estes
poetas ingênuos o foram natural e necessariamente. “Nossa cultura deve nos
reconduzir à natureza pelo caminho da razão e da liberdade”15, diz Schiller. Não é
pelo retorno ao passado que o problema da poesia moderna se resolveria, e sim
pela perseguição do ideal no futuro. Este seria, como notou Peter Szondi16, a
síntese dialética na qual o sentimental conquista, através da reflexão livre, aquilo
que o ingênuo tinha apenas pela necessidade natural. Schiller chega a dizer que “a
disposição sentimental é o resultado do empenho em restabelecer a sensibilidade
ingênua segundo o conteúdo, mesmo sob as condições da reflexão”17. Schiller,
ainda que destaque o caráter reflexivo da cultura moderna, não fez disso, como
10 Ibid., p. 72.11 Ibid., p. 72.12 Ibid., p. 55.13 Ibid., p. 44.14 Ibid., p. 44.15 Ibid., p. 44.16 Peter Szondi, “Das Naive ist das Sentimentalische”, in Schriften II (Frankfurt, SuhrkampVerlag, 1978), p. 75-76.17 F. Schiller, Poesia ingênua e sentimental (São Paulo, Iluminuras, 1991), p. 88.
82
Hegel, a cova da arte como expressão digna do espírito de seu tempo; ao
contrário, enxergava a possibilidade de que a arte, ao se transformar, fornecesse a
verdadeira “educação estética do homem”18.
Essa perspectiva foi decisiva para o primeiro grupo romântico alemão.
Friedrich Schlegel, no prefácio de seu ensaio Sobre o estudo da poesia grega,
sublinha que poderia melhorá-lo se tivesse tido tempo de alterá-lo após ler as
reflexões de Schiller19. Não pôde. Ficou esta observação, que é significativa
porque Schlegel, nesse ensaio escrito antes da formação do grupo romântico,
apresenta a arte moderna, em geral, de forma pejorativa, ao contrário de Schiller.
Faltariam a esta arte, pensa Schlegel, a objetividade e a coesão no todo que
possuía a antiguidade. Em seu lugar, havia a dispersão fragmentada do tipo
subjetivo “interessante”. É possível, como sugeriu Hans-Robert Jauss20, que a
leitura de Schiller tenha dirigido o olhar de Schlegel para a caráter reflexivo da
arte moderna não só como problema mas, paradoxalmente, como oportunidade
para pensar diferentemente os dilemas da criação neste momento histórico. Tanto
que, a partir de então, Schlegel acompanha Schiller, contra o que Hegel diria mais
tarde, na tese de que, se a reflexão é a marca específica da época moderna, ela não
implica a superação da arte pela filosofia.
Na Conversa sobre a poesia, Schlegel afirma que “romântico é justamente
o que nos apresenta um conteúdo sentimental em uma forma da fantasia”21. Seu
vocabulário neste texto, já escrito a partir da experiência no grupo de amigos
formado com o primeiro romantismo alemão, evidencia o quanto Schiller
determinou a virada no seu pensamento. Romântico e sentimental chegam até a
funcionar como sinônimos às vezes. Para tanto, contudo, é preciso, diz ele,
esquecer “o significado corriqueiro e pejorativo da palavra sentimental, em que
por esta denominação se entende quase tudo o que comove de modo trivial, é
lacrimoso e cheio daquele familiar sentimento de honradez”22. Eis a definição de
Schlegel para o termo sentimental: é “o que nos agrada, onde o sentimento
18 F. Schiller, A educação estética do homem (São Paulo, Iluminuras, 1990).19 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 116.20 Hans-Robert Jauss, “Schlegels und Schillers Replik auf die ‘Querelle des anciens et desmodernes’”, in Literaturgeschichte als Provokation (Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1970), p. 160.21 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 65.22 Ibid., p. 65.
83
domina, mas aquele sentimento espiritual, não o que provém dos sentidos”23.
Enquanto os sentidos dizem respeito ao contato direto e, portanto, mais objetivo
com as coisas, o espírito, por sua vez, diz respeito à presença do pensamento
reflexivo no acesso ao ser. Espírito é o sentido que vê a si mesmo. Tal situação
marca indelevelmente a arte moderna pelo caráter reflexivo. Hegel achava que,
com isso, a arte já não possuía o esplendor de antes e devia, assim, dar lugar à
filosofia. Segundo Schlegel, a conseqüência da situação é, antes, a aproximação
entre ambas – tese que será a do primeiro romantismo.
*
Para Friedrich Schlegel, a transformação da arte na modernidade
significava seu contato mais próximo com a filosofia. Já o próprio nome que os
primeiros românticos dão a ela evidencia isso. “Há uma poesia cujo um e tudo é a
proporção entre ideal e real e que, portanto, por analogia com a linguagem técnica
filosófica, teria de se chamar poesia transcendental”24. É o termo “transcendental”
que, tomado à filosofia, caracteriza a arte moderna. Precisamos, então,
compreender seu sentido através da discussão colocada por Schlegel da relação
entre o ideal e o real. No tradicional realismo filosófico, supõe-se que o homem
tem acesso ao ser de tudo o que é tal como é, ou seja, a realidade apresenta-se a
ele como é, mesmo que esta apresentação faça-se ao pensamento, e não aos
sentidos. Na modernidade, porém, o ceticismo de Hume colocou sérias suspeitas
sobre essa pretensão, pondo a dúvida no coração da filosofia. Não à toa, Kant
dizia que foi despertado de seu sonho dogmático, ou seja, realista, graças a Hume.
Ele, a partir daí, formulou sua filosofia crítica. Sugeriu que se experimentasse o
contrário do realismo objetivo, mas sem o refúgio cético. Tal crítica consistia em
fazer com que o aparecer dos objetos obedecesse não ao seu puro ser interior, mas
às estruturas daquele para quem o aparecer aparece: o sujeito que todos somos.
Eis o caráter ideal que sustenta a apreensão do real nessa filosofia.
Nesse contexto, o termo “transcendental”, para Kant, designa o recuo
filosófico que não se preocupa tanto com o real como coisa objetiva quanto com
23 Ibid., p. 65.24 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 88 (Athenäum,Fr. 238).
84
as condições de possibilidade desse real, com seu fundamento que, no caso,
aparece como sujeito. Nesse sentido específico, a filosofia transcendental
precisava ser crítica ou, melhor, autocrítica, já que se questiona sobre o
fundamento de sua própria compreensão do real, e não apenas sobre o real em si.
Seu movimento é a reflexão, é flexionar-se sobre si mesma. Por isso, os primeiros
românticos apontam a proximidade de Fichte, sua principal referência filosófica, e
Kant: “apenas assim se pode ver e compreender a identidade de sua filosofia com
a kantiana”, afirma Friedrich Schlegel, completando que “principalmente a nova
exposição da doutrina-da-ciência é sempre ao mesmo tempo filosofia e filosofia
da filosofia”25.
Fichte teria seu mérito principal no teor crítico. É filosofia da filosofia. Ela
é reflexiva, coloca em questão antes a forma de conhecer do que o próprio
conhecimento, já que este só é o que é naquela. Segundo Schlegel, “crítico
também é algo que jamais se pode ser o bastante”26. Daí o elogio da radicalização
desse procedimento na filosofia madura de Fichte, “um Kant elevado à segunda
potência”27. Transcendental, então, seria a crítica como autocrítica, segundo os
primeiros românticos, acarretando a centralidade da reflexão. Eles acompanham,
até aí, Kant e, sobretudo, Fichte. Mas, a partir daí, separam-se de ambos, já que
essa reflexão, pensavam, não diz respeito, em primeiro lugar, ao sujeito, e sim à
linguagem. Este será o deslocamento que devemos ter sempre em vista.
Kant afirmava: “chamo de transcendental todo conhecimento que se ocupa
não tanto dos objetos quanto do modo de conhecê-los”28. Se Schlegel o tivesse
parafraseado, provavelmente diria assim: “chamo de transcendental toda poesia
que se ocupa não tanto dos objetos quanto do modo de poetizá-los”. Eis a
transformação da natureza da poesia na época reflexiva que é a modernidade. Seu
centro não é mais o objeto de que trata, e sim a forma como o trata, mesmo que
isso nem sempre apareça explicitamente, como acontece na filosofia de Fichte,
que “não fala muito da forma, porque dela é mestre”29.
25 Ibid., p. 97 (Athenäum, Fr. 281).26 Ibid., p. 97 (Athenäum, Fr. 281).27 Ibid., p. 97 (Athenäum, Fr. 281).28 I. Kant, Crítica da razão pura (São Paulo, Abril Cultural, 1980), p. 33 (B 25). Trad. modificadaa partir de J. Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia (São Paulo, Edições Loyola, 2001), p. 2918.29 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 97 (Athenäum,Fr. 281).
85
É claro que o caráter reflexivo não é privilégio absoluto da modernidade,
embora predomine nela. Por isso, o esforço romântico é destacar, a partir do
presente, o passado que estimula a nova poesia, fundando sua própria linha de
descendência na tradição, selecionando experiências poéticas que anteciparam o
caráter moderno, como em Homero, Dante, Petrarca, Boccaccio, Ariosto,
Cervantes ou Shakespeare. Mesmo porque,
assim como se daria pouco valor a uma filosofia transcendental que não fossecrítica, não expusesse o producente com o produto e contivesse ao mesmo tempo,no sistema de pensamentos transcendentais, uma caracterização do pensamentotranscendental: assim também aquela poesia deveria unir, aos materiaistranscendentais e aos exercícios preliminares para uma teoria poética dafaculdade criadora, uns e outros não raros nos poetas modernos, a reflexãoartística e o belo auto-espelhamento que se encontram em Píndaro, nosfragmentos líricos dos gregos e na elegia antiga, mas, entre os modernos, emGoethe, e expor também a si mesma em cada uma de suas exposições e em todaparte ser, ao mesmo tempo, poesia e poesia da poesia.30
Poesia transcendental é a que poetiza a própria poesia, que reflete sobre si.
Logo, ao invés de dar lugar à filosofia, como gostaria Hegel, a arte transforma-se
para agregar a si o caráter que define a época moderna: a reflexão. Ela se dobra
sobre si mesma e, por isso, não expõe apenas o produto, mas também o próprio
processo de produção, que passa a fazer parte do produto. “E no entanto ainda não
há uma forma tão feita para exprimir completamente o espírito do autor: foi assim
que muitos artistas, que também só queriam escrever um romance, expuseram por
acaso a si mesmos”31. Seguindo o exemplo da filosofia transcendental, que deve
tornar-se filosofia da filosofia, a poesia torna-se, ela mesma, poesia da poesia. Em
tudo o que faz, o homem moderno coloca, junto, a consciência que tem de estar
fazendo. Daí a recorrente metáfora romântica do espelho. É como se o artista
moderno, ao escrever ou pintar, ao compor ou construir, enfim, ao fazer sua
atividade, estivesse sempre diante do espelho no qual vê o reflexo do que está
fazendo. Ele, com isso, não pode senão trazer para o que cria este fato: sua
consciência de estar criando. Por isso, o produtor entra no produto, o criador na
obra, o sujeito no objeto. Não se trata de pôr o artista empírico vaidosamente
retratado na obra feita, mas sim de deixar que esta obra carregue consigo a
consciência que ela tem de sua criação, ou seja, seu caráter reflexivo, cuja
30 Ibid., p. 88-89 (Athenäum, Fr. 238).31 Ibid., p. 64 (Athenäum, Fr. 116).
86
metáfora é o espelho. Essa poesia, às vezes chamada simplesmente de romântica,
“pode se tornar, como a epopéia, um espelho de todo o mundo circundante, uma
imagem da época” ou, ainda, “oscilar, livre de todo interesse real e ideal, nas asas
da reflexão poética, sempre de novo potenciando e multiplicando essa reflexão,
como numa série infinita de espelhos”32.
*
Fazem parte os primeiros românticos da conquista histórica da
autoconsciência reflexiva e, com isso, da perda da suposta ingenuidade antiga, já
que, como sustentou Gumbrecht, “há um processo de modernização, abrangendo
as décadas em volta de 1800, que gerou um papel de observador que é incapaz de
deixar de se observar ao mesmo tempo em que observa o mundo”33. Essa
transformação epistemológica abarca o poeta moderno. Ele não só faz, mas sabe
que faz. Não apenas cria, sabe que cria. E, com isso, precisa colocar tal saber na
própria criação, já que ele faz parte dela. Essa situação diagnosticada na origem
do romantismo antecipa “a não-ingenuidade a que já, segundo Hegel, não mais se
pode esquivar”34, como disse Adorno mais tarde. Tal processo, em suma, foi a
perda da naturalidade da atitude criativa, que, desde então, tornou-se atividade
crítica de si. Por isso, mesmo quando propostas dos primeiros românticos parecem
querer, de algum modo, resgatar a ingenuidade passada, seu sentido é irônico.
É o caso daquilo que, em especial na esteira da participação de Schelling
no grupo, eles chamaram de “nova mitologia”. Nessa expressão, deve-se sublinhar
a palavra “nova”, talvez até mais do que a palavra “mitologia”, a fim de não
corrermos o risco de, justamente, entendê-la como proposta restauracionista, o
que ela não é. Não se trata de recuperar a velha mitologia, mas de construir a
nova, que, por isso mesmo, não é natural, como a antiga, mas requer certo esforço
consciente de elaboração.
Pois ela nos virá através do caminho inverso da de outrora, que por toda partesurgiu como a primeira floração da fantasia juvenil, diretamente unida e formadacom o mais vivo e mais próximo do mundo dos sentidos. A nova mitologiadeverá, ao contrário, ser elaborada a partir do mais profundo do espírito; terá de
32 Ibid., p. 64 (Athenäum, Fr. 116).33 Hans Ulrich Gumbrecht, Modernização dos sentidos (São Paulo, Ed. 34, 1998), p. 13.34 Theodor Adorno, Teoria estética (Lisboa, Edições 70, 1993), p. 11.
87
ser a mais artificial de todas as obras de arte, pois deve abarcar todo o resto, umnovo leito e recipiente para a velha e eterna fonte primordial da poesia; ao mesmotempo, o poema infinito, que em si oculta o embrião de todos os poemas.35
Nessas linhas, o diagnóstico da arte antiga de Schlegel parece com o que
ele esboçara antes no ensaio Sobre o estudo da poesia grega. Fundada na religião,
a mitologia fornece a solidez sobre a qual assenta a coesão da poesia grega, sua
força que não se dispersa: “os poemas da antiguidade unem-se todos, um com o
outro, até se constituírem em partes e membros sempre maiores do todo; um se
engrena no outro e, por todas as partes, é sempre um e o mesmo espírito
diversamente expresso”36. No ensaio juvenil, esta perfeita completude grega
servia como contraste para a precária incompletude moderna desorientada.
Naquela altura, Schlegel considerava que a beleza, na modernidade, “não seria
tanto experimentada com alegria serena quanto com anseio insatisfeito”37.
No primeiro grupo romântico, Schlegel, através do personagem Ludoviko,
na Conversa sobre a poesia, ainda se dirige aos amigos e afirma: “vocês já
poetaram e com freqüência devem ter sentido, ao fazê-lo, que lhes faltava um
firme apoio para sua ação, um seio materno, céu e vento vivo”, completando que
“o poeta moderno tem de arrebatar tudo isso de dentro”38. E por quê? É o próprio
Ludoviko quem afirma que “falta a nossa poesia um centro, como a mitologia o
foi para os antigos, e tudo de essencial em que a arte poética fica a dever à antiga
reside nestas palavras: nós não temos uma mitologia”39.
Mas sua argumentação, a partir daí, descola-se da posição de Schlegel no
ensaio Sobre o estudo da poesia grega, testemunhando sua mudança. Justamente
aquele anseio insatisfeito, antes lamentado, torna-se o motor para a criação da
nova poesia, diferente da velha. Ela será construída, não dada. Lodoviko explica:
“estamos próximos de possuir uma, ou melhor: é chegado o momento em que
devemos colaborar seriamente para produzi-la”40. Mitologia produzida, eis a
paradoxal pretensão dos primeiros românticos.
35 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 51.36 Ibid., p. 51.37 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 123.38 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 51.39 Ibid., p. 51.40 Ibid., p. 51.
88
Por que não deveria acontecer de novo o que antes já aconteceu? De uma outramaneira, bem entendido. E por que não maior, mais bela? (…) A ela cabe, naatual situação, renovar-se ou entrar em declínio. O que é o mais provável e o quenão se poderia esperar de tal época de rejuvenescimento? A antiguidadeencanecida torna-se-á de novo viva, e o futuro mais distante já se apresenta empresságios.41
Todos os elementos modernos que Schlegel destacara em Sobre o estudo
da poesia grega tornam-se, agora, positivos. São presságios da nova mitologia,
como o fato de que “as fronteiras da ciência e da arte, da verdade e da beleza, são
tão confundidas que até a convicção de que essas fronteiras eternas são
permanentes tem, geralmente, começado a esmorecer”42. No ensaio juvenil, esse
contágio de áreas era mal visto. Para deixar isso claro, Schlegel, ao reeditá-lo,
substituiu a frase em que, originalmente, dizia “a filosofia poetiza e a poesia
filosofa” pela seguinte: “a filosofia perde-se de si na incerteza poética e a poesia
tende na direção de uma profundidade taciturna”43. Longe de corrigir o texto para
afiná-lo com seu pensamento posterior, Schlegel, com isso, sublinha o quanto sua
disposição ali era diferente. Não o deixa mentir o fato de que, depois, a “nova
mitologia” para a arte vem, sobretudo, da filosofia. “Se é apenas das mais íntimas
profundezas do espírito que uma nova mitologia pode elaborar-se como se através
de si mesma, há uma indicação muito significativa, uma notável confirmação
disto que procuramos no grande fenômeno de nossos dias – no idealismo”44. Essa
presença da filosofia idealista mostra o quanto a situação da arte, no contexto da
nova mitologia, entrava no registro moderno reflexivo. Neste contexto, os
primeiros românticos chegam a empregar a palavra “revolução” para designar
aquilo que têm diante dos olhos na sua época: “a grande revolução irá arrebatar
todas as artes e ciências”45. Eram os alemães sendo tomados pelo clima político
da Revolução Francesa e o aplicando ao mundo da cultura e do espírito. Sua ponta
de lança era a filosofia: “assim o idealismo será não só um exemplo, em seu modo
de surgimento, para a nova mitologia; será até mesmo, de maneira indireta, sua
fonte”46.
41 Ibid., p. 51-52.42 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 123.43 Friedrich Schlegel, On the Study of Greek Poetry (New York, State University of New YorkPress, 2001), p. 18 e 110. (Conferir a nota do tradutor para a referida passagem).44 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 51.45 Ibid., p. 52.46 Ibid., p. 53.
89
*
Idealismo, para os primeiros românticos, precisa acolher o movimento que
vai ao realismo. É claro que, aqui, não se trata do realismo dogmático tradicional,
mas apenas de situar o caráter transcendental da reflexão fora do casulo da
subjetividade. Desse modo, “o idealismo precisa, em todas as suas formas, sair de
si mesmo, de um modo ou de outro, para que possa retornar a si mesmo e
permanecer aquilo que é”, logo, “é preciso e certo que se erga de seu seio um
novo e igualmente ilimitado realismo”47, afirmavam.
Não se tratava, assim, da proposta de “egoidade” da primeira filosofia de
Fichte, e sim de algo mais próximo de seu pensamento tardio, na “nova exposição
da doutrina-da-ciência”, como dizia Friedrich Schlegel. Tanto que “para o Fichte
da última fase (…) fica o idealismo fundamentalmente eliminado”, explica
Nicolai Hartmann, observando ainda que, assim, se “chega de novo ao
realismo”48. Este novo realismo, distinto do antigo, foi o que buscou, sobretudo, o
jovem Schelling, afastando-se de seu professor Fichte e valorizando a concretude
efetiva que a arte oferecia através das suas obras. Lembremos que, na Conversa
sobre a poesia, o discurso sobre a nova mitologia é feito por Ludoviko,
personagem criado por Friedrich Schlegel mas claramente inspirado em Schelling.
Ludoviko confessa: “há muito que trago em mim o ideal de um realismo
como esse, e se isto, até agora, não foi compartilhado, foi apenas porque ainda
procuro o órgão, o meio que me permitirá fazê-lo”49. E confessa: “sei no entanto
que somente na poesia posso encontrá-lo”50. Se lemos o título da conclusão do
Sistema do idealismo transcendental, de Schelling, escrito quase simultaneamente
à Conversa sobre a poesia, ele diz o mesmo que Ludoviko: “dedução de um órgão
geral da filosofia ou proposições principais da filosofia da arte segundo os
princípios do idealismo transcendental”51. Em jogo está a dedução, isto é, a
demonstração da existência do órgão ou ferramenta capaz de concretizar os
47 Ibid., p. 53.48 Nicolai Hartmann, A filosofia do idealismo alemão (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,s/d), p. 95.49 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 53.50 Ibid., p. 53.51 F. Schelling, “Trecho do Sistema do Idealismo Transcendental”, in Rodrigo Duarte (org.), Obelo autônomo (Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1997), p. 135.
90
princípios gerais da filosofia, que no caso é a idealista. Este órgão deve ser
buscado na filosofia da arte pelo simples motivo de que ele é a arte, sendo que a
nova mitologia surge como o entreposto de tal realização. Mas vejamos ainda
como isso ocorre, resumidamente, na argumentação de Schelling.
Ele pretende, aí, mostrar que o absoluto procurado pela filosofia apenas
pode ser encontrado, fora do subjetivismo, através da arte. Enquanto a filosofia só
permitiria pensar em teoria o absoluto, ou seja, a dimensão do ser na qual a cisão
entre sujeito e objeto ou idealismo e realismo ainda não se operou, a arte, por sua
vez, faria com que ele acontecesse concretamente na realidade, enquanto obra. Se
a beleza é, segundo Schelling, “o infinito apresentado finitamente”52, a filosofia
não poderia fazê-la, já que não se expressaria na finitude, ou seja, no realismo
concreto como obra, mas apenas nas idéias.
É a síntese ocorrida no produto que Schelling tem em vista, ou seja, a
junção da liberdade da consciência idealista humana com a necessidade sem
consciência realista da natureza, o que acontece na obra de arte porque nela a
matéria natural ganha a forma livre que o homem, na criação estética, lhe dá. Por
isso, Schelling afirma que “a intuição estética é justamente a intuição intelectual
que se tornou objetiva”53, ou seja, é a efetivação realista da síntese entre a intuição
sensível e o intelecto pensante que, na filosofia, só ocorria abstratamente enquanto
atividade subjetiva, como seria o caso do jovem Fichte, por exemplo, mestre de
quem Schelling buscava se distanciar.
Portanto, continua Schelling, “a arte é o único órgão verdadeiro e eterno
da filosofia, e ao mesmo tempo seu documento, que reconhece sempre e
continuamente o que a filosofia não pode apresentar externamente”54. Em seu
horizonte, aparece, assim, a possibilidade de que a filosofia acabe por ser
engolfada pela poesia. “É de se esperar que a filosofia, assim como na infância da
ciência nasceu da poesia e foi nutrida por ela (…), após o seu acabamento reflua
como muitas correntes singulares ao oceano universal da poesia, de onde
partiram”55. É que, desse modo, a própria filosofia, já devolvida à poesia, poderia
também passar do idealismo ao realismo, tornando-se obra efetiva no mundo.
52 Ibid., p. 141.53 Ibid., p. 145.54 Ibid., p. 146-147.55 Ibid., p. 147-148.
91
Por fim, Schelling pensa em qual seria o “membro intermediário” para
este retorno da filosofia à poesia. E diz que não deve haver mistério sobre isso, já
que ele existiu no passado: como mitologia. “Mas como pode surgir uma nova
mitologia, que não pode ser invenção do poeta singular, mas de uma nova geração
que (…) representa apenas um único poeta, é um problema cuja solução só deve
ser esperada dos destinos posteriores do mundo e do curso mais afastado da
história”56. Reencontramos, portanto, a proposta apresentada pelo personagem de
Ludoviko nas palavras de Schelling: a nova mitologia.
*
Essa nova mitologia proposta pelos primeiros românticos, vale dizer,
permanece, como vemos, com contornos bastante vagos, lançados até para o
futuro. Temos, contudo, algumas pistas mais concretas sobre ela. Ludoviko, por
exemplo, a aproxima do próprio conceito de poesia romântica: “aqui encontro
muita semelhança com aquela grande espirituosidade da poesia romântica, que
não se mostra em lampejos isolados mas na construção do todo (…) quanto às
obras de Cervantes e Shakespeare”57. Essas duas referências, como fontes já da
construção da nova mitologia, fazem com que não a possamos pensar como o
fundamento que, só depois de pronto completamente, sustentaria a arte moderna.
Parece, antes, que a construção da nova mitologia já é a nova mitologia, como nos
autores que souberam agregar à sua produção literária o caráter reflexivo da época
moderna, casos de Cervantes, Shakespeare ou Goethe.
“Esta confusão artificialmente ordenada, esta excitante simetria de
contradições, este maravilhoso e eterno jogo alternado de entusiasmo e ironia,
vivo até mesmo nos melhores segmentos do todo, já me parecem uma mitologia
indireta”58, diz Ludoviko. Todos os componentes, portanto, da melhor poesia
moderna fazem parte da formulação da nova mitologia, cuja fome é tão generosa
que abarca os mais diversos alimentos culturais. “Também as outras mitologias
precisam ser novamente despertadas (…), para acelerar o surgimento da nova
56 Ibid., p. 148.57 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 55.58 Ibid., p. 55.
92
mitologia”59. Este foi o peculiar movimento romântico que buscou alternativas à
tradição clássica hegemônica. “Se ao menos os tesouros do oriente nos fossem tão
acessíveis quanto os da antiguidade”60, exclama Ludoviko. Pergunta-se, ainda, se
“novas fontes de poesia não poderiam fluir da Índia”61, por exemplo.
Nesse sentido, a dispersão moderna poderia se revelar não apenas como
problema, mas como oportunidade. “É preciso, em geral, que se possa chegar ao
objetivo por mais de um caminho”, ou seja, “cada um por aquele que é todo seu,
com alegre confiança, da maneira mais individual”62. Portanto, a nova mitologia
não é o programa fixo e totalitário para a arte que pode parecer. Pelo contrário, ela
só se faz a partir das buscas diversas de cada caminho singular que, no seu próprio
caminhar, a constituem. Mitologia esta, portanto, completamente distinta da
antiga, cuja solidez dada sustentava o sentido de totalidade que justamente falta ao
mundo moderno fragmentado.
Friedrich Schlegel, com o personagem Ludoviko, adverte que “poderiam
rir desse místico poema, da quase desordem que resultaria da abundância e do
congestionamento de tantos versos”63. Ele parece, com isso, quase suspeitar da
recepção que, anos antes, talvez tivesse de sua própria proposta, já que, ao
escrever Sobre o estudo da poesia grega, ainda abominava a “anarquia” moderna,
sem caráter definido e confusa. Mas, já naquele contexto, Schlegel, ao falar da
“falta de propósito e de lei do mundo da poesia moderna” e mencionar que tais
fragmentos da arte se moviam numa “mistura lúgubre”, considerava que se
“poderia chamar isso de caos de tudo o que é sublime, belo e encantador que –
justo como o caos antigo a partir do qual, segundo a lenda, emergiu o mundo –
aguarda um amor e um ódio para separar as partes diferentes e unificar as partes
semelhantes”64.
Reencontramos passagem parecida, mais uma vez, nas palavras de
Ludoviko, o personagem criado por Schlegel. Ele afirma que “a mais elevada
beleza, a mais elevada ordem é, justamente, a do caos, um caos que só espera o
59 Ibid., p. 55.60 Ibid., p. 55.61 Ibid., p. 55.62 Ibid., p. 56.63 Ibid., p. 51.64 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 126.
93
contato do amor para se desdobrar em um mundo”65. Por isso, a poesia deveria
“transplantar-nos de novo para a bonita confusão da fantasia, o caos originário da
natureza humana, para os quais”, afirma, “não conheço, até agora, símbolo mais
belo que a multidão colorida dos antigos deuses”66, ou seja, do que a mitologia.
Essa capacidade associativa do amor ganhava significação histórica decisiva na
situação fragmentada da modernidade. Por isso, Friedrich Schlegel se pergunta,
retoricamente, “o que é toda mitologia senão uma expressão hieroglífica da
natureza circundante nesta transfiguração de fantasia e amor”67. É a transfiguração
amorosa que dá sentido ao caos, dirigindo a construção da nova mitologia.
Deve a arte, em geral, nos levar à beira do caos porque é justamente ali
que, com o toque do amor, as coisas se organizam originariamente, é ali que o
mundo pode formar-se, juntar-se e se erguer. Portanto, o amor, para os primeiros
românticos, não era apenas o sentimento que enlaça dois seres humanos no afeto
sexual e espiritual. Ele só pode ser isso porque, antes, possui o valor ontológico
geral de ligar, relacionar, conectar: “um claro aroma paira quase imperceptível
sobre o todo, por toda parte a eterna nostalgia encontra uma ressonância das
profundezas da obra pura, que em tranqüila grandeza exala o espírito do amor
original”68.
65 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 51.66 Ibid., p. 55.67 Ibid., p. 54.68 Ibid., p. 54.
6
Filosofia do romance:
o gênero dos gêneros
Falar de romantismo é falar de romance. Não se trata apenas da
coincidência etimológica. Tanto que os primeiros românticos alemães a
aproveitaram conscientemente. Eles o fizeram porque o romance era a expressão
privilegiada da poesia que procuravam. Mesmo a proposta romântica de
construção da mitologia da época moderna, distinta da mitologia natural grega,
encarnava-se no romance. Na Conversa sobre a poesia, Friedrich Schlegel faz o
“Discurso sobre a mitologia” ser sucedido pela “Carta sobre o romance”. Surge a
forma do romance como resposta aos problemas colocados para a criação artística
na ausência da base religiosa tradicional. Esta nova mitologia precisava de outro
espaço de elaboração, diferente do antigo, contendo a reflexão moderna. Este
espaço era o romance.
Lukács, retrospectivamente, chamou a atenção para tal espaço, ao declarar
que “o romance é a epopéia do mundo abandonado por deus”, pois sabe que “o
sentido jamais é capaz de penetrar inteiramente a realidade, mas que, sem ele, esta
sucumbiria ao nada da inessencialidade”1. É a busca artística pelo sentido não
dado completamente na vida que forja o romance. Daí seu caráter irônico. É que
“a ironia do escritor é a mística negativa dos tempos sem deus: uma docta
ignorantia em relação ao sentido”2, observa Lukács. Trata-se de construir o
sentido perdido na modernidade desencantada, mesmo sabendo que a antiga
totalidade não será atingida, pois “nosso mundo tornou-se infinitamente grande e,
em cada recanto, mais rico em dádivas e perigos que o grego, mas essa riqueza
suprime o sentido positivo e depositário de suas vidas: a totalidade”3. Daí a aposta
dos românticos no romance como nova forma da construção da mitologia, já que
ele, como disse Lukács, “é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva
1 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 88.2 Ibid., p. 92.3 Ibid., p. 31.
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da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à
vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”4
– ainda que precária. Esta é a era moderna. Como expressão sua, “o romantismo
alemão, embora nem sempre esclareça em detalhes, estabeleceu uma estreita
relação entre o conceito de romance e o de romântico”5.
Por isso, os primeiros românticos chegam a afirmar que “um romance é
um livro romântico”6. Mas é preciso compreender o conceito de romance aí
envolvido. “Detesto o romance, na medida em que ele se pretenda um gênero
específico”, dizia Friedrich Schlegel, para completar declarando, contra a
classificação tradicional, que “entre o drama e o romance há tão pouco lugar para
uma oposição que, pelo contrário, o drama tratado e tomado tão profunda e
historicamente como o faz Shakespeare, por exemplo, é o verdadeiro fundamento
do romance”7. Levantar, portanto, a questão do romance no primeiro romantismo
alemão é, junto, discutir o problema dos gêneros poéticos, já que ele só é a forma
privilegiada de expressão da época moderna porque não é apenas mais um dentre
diversos gêneros, e sim o gênero que abrange os outros, o gênero dos gêneros.
Sabemos que a divisão de gêneros começa com Platão. Na República8,
Sócrates distingue a poesia em que as ações são apresentadas apenas com as falas
dos personagens daquela em que o próprio poeta é quem narra as ações e, ainda, a
poesia em que ambos os processos são combinados. No primeiro caso, estão as
tragédias e as comédias. No segundo, estão os ditirambos. Por fim, na terceira
modalidade, fica a epopéia. Não é muito diferente a visão aristotélica sobre o
assunto, que mantém ainda que “é possível imitar os mesmo objetos nas mesmas
situações, numa simples narrativa, ou pela introdução de um terceiro, como faz
Homero”9. Nós viemos a conhecer esta mesma classificação oriunda dos gregos,
em geral, sob os nomes de poesia dramática, lírica ou épica.
Essa organização tradicional dos gêneros, para os primeiros românticos
alemães, não mais se sustenta com a modernidade, o que fica patente na forma do
romance. “Já se têm muitas teorias dos gêneros poéticos”, afirma Friedrich
4 Ibid., p. 55.5 Ibid., p. 37.6 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 67.7 Ibid., p. 67.8 Platão, A república (Belém, EDUFPA, 2000), p. 148 (394c).9 Aristóteles, “Arte poética”, in Arte retórica e Arte poética (Rio de Janeiro, Ediouro, 2005), p.243.
96
Schlegel, para, a seguir, perguntar “por que não se tem ainda nenhum conceito de
gênero poético” e concluir que “então teríamos talvez de nos contentar com uma
única teoria do gêneros poéticos”10. Parte-se, assim, da constatação de que
existem muitas teorias dos gêneros poéticos, mas, a despeito disso, não existe
conceito de gênero poético. Logo, é preciso não tanto aplicar certa classificação
genérica às obras, de acordo com o procedimento empírico, quanto explicar
filosoficamente a condição de possibilidade transcendental dos gêneros.
Essa condição de possibilidade, para Schlegel, tem sentido histórico.
Desde o ensaio Sobre o estudo da poesia grega, ele já discernia entre a “formação
natural” grega e a “formação artificial” moderna. Peter Szondi, tendo em vista
seus escritos póstumos, afirmou que “os gêneros poéticos, se eles são
verdadeiramente poesia da natureza, são válidos apenas para a poesia clássica e
não para a poesia moderna”, concluindo, ainda, que o “conceito de poesia
moderna não deve conter a divisão em gêneros (…), deve coincidir com o
conceito de um só gênero que unifica todos os outros em si”11.
É verdade que mesmo autores modernos quiseram manter estaticamente
válida para todas as épocas a antiga doutrina dos gêneros. “No próprio universo
da poesia, porém, nada está em repouso, tudo vem a ser, se transforma e move”12,
afirma Schlegel. Esse movimento é o da própria história, dentro da qual “nossa
arte poética começa no romance”13. Essa historicidade da arte quebrava a
pretensão da classificação tradicional dos gêneros de dar conta da nova situação
moderna. Schlegel preferia, se fosse o caso, falar de gêneros que predominam em
cada época: a tragédia para os gregos, a sátira para os romanos e o romance para
os modernos, por exemplo.
Essa predominância não quer dizer só que os livros considerados como
romances superavam outras formas literárias modernas. Pois o ponto é que
mesmo essas acabam respirando o ar de romance. Para Schlegel, “o romance tinge
toda a poesia moderna”14, ou seja, ele contagia mesmo aquelas expressões que, a
10 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 30 (Lyceum, Fr.62).11 Peter Szondi, “Schlegel’s theory of poetical genres”, in On textual understanding and otheressays (Minneapolis, University of Minnesota Press, 1986), p. 77.12 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 139 (Athenäum,Fr. 434).13 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 67.14 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 70 (Athenäum,Fr. 146).
97
rigor, não são classificadas como romance. Ele “dá o tom”. É que os efeitos do
romance espraiam-se para além do que seria a fronteira definida dele mesmo
como gênero, deixando seu selo marcado na poesia moderna em geral. Tal
situação explica-se porque “o romântico não é tanto um gênero quanto um
elemento da poesia, que nela predomina em maior ou menor grau, mas nunca
deve faltar completamente”15, diz Schlegel.
Somente assim, o romance pode pôr em ação seu jeito próprio de articular
as partes no todo, fora dos marcos de composição de cada gênero específico. Sua
continuidade é forjada artificialmente pela heterogeneidade. Pode catar seus
componentes em diversos gêneros. Segundo Novalis, deveria “o romance incluir
toda a sorte de estilos, ligados entre si em ordem variada, e animados por um
espírito comum”16. Impureza marca o romance, como observou depois Octavio
Paz, atribuindo a ele a ambiguidade da modernidade: “ritmo e exame da
consciência, crítica e imagem”17. Para Schlegel, “em sua rigorosa pureza, todos os
gêneros poéticos clássicos são agora ridículos”18, confirmando que, com o
movimento da história, a organização antiga se desfaz. Nem o presente possuía
sua configuração definitiva, tanto que “o gênero romântico ainda está em devir;
sua verdadeira essência é mesmo a de que só pode vir a ser, jamais ser de maneira
perfeita e acabada”19.
Partindo dessa tese, Schlegel faz a ponte entre a poesia romântica em geral
e sua manifestação particular privilegiada na forma do romance. Ele diz: “o
gênero romântico é o único que é mais do que gênero e é, por assim dizer, a
própria poesia: pois, num certo sentido, toda poesia é ou deve ser romântica”20.
Não se tratava, aí, de afirmar a poesia romântica em detrimento das outras.
Schlegel pensava, antes, na capacidade do romance de agregar diferentes
discursos: filosofia e poesia, épico e dramático, canção e narração, clássico e
barroco. Por esta característica geral, o romance quebrava a possibilidade de ser
classificado por uma ou outra característica específica. “Não posso conceber um
15 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 67.16 Novalis, “Das Allgemeine Brouillon”, in Werke, Tagebücher und Brief, v. II (München, CarlHanser, 1978), p. 504 (n. 169).17 Octavio Paz, “A ambiguidade do romance”, in Signos em rotação (São Paulo, Perspectiva,1996), p. 69.18 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 30 (Lyceum, Fr.60).19 Ibid., p. 65 (Athenäum, Fr. 116).20 Ibid., p. 65 (Athenäum, Fr. 116).
98
romance que não seja uma mistura de narrativa, canção e outras formas”21, afirma
Schlegel.
Restringindo a divisão de gêneros à antiguidade, Schlegel enxergou no
romance moderno não apenas mais um elemento que pertencia a ela. Tampouco
pretendeu enquadrá-lo em algum gênero anterior apenas adaptado à modernidade,
como, em certo sentido, faria Hegel posteriormente, para quem o romance é a
forma moderna da antiga epopéia. Kathrin Rosenfield observou, com precisão
pontual, que “vinte a trinta anos após a publicação dos grandes romances de
Goethe, Hegel continua desconhecendo a especificidade da forma romanesca
enquanto forma mista”22. Se tivesse levado a sério os escritos de Friedrich
Schlegel, Hegel possivelmente teria farejado a singularidade que se enunciava na
nova forma de literatura encabeçada por Goethe: o romance. Pois os primeiros
românticos já o compreendiam exatamente como mistura. Era o gênero que
englobava os outros.
Essa descoberta fundou o que hoje aparece para nós, mesmo em suas
transformações, como tradição do romance, empregando desde discussões
filosóficas, como na Montanha mágica de Thomas Mann, até imagens
entremeadas ao texto, como em Austerlitz de W. G. Sebald. Para Schlegel,
Goethe, na sua época, realizara o romance essencial. Por isso, “aquele que
caracterizasse devidamente o Meister de Goethe diria, na verdade, de que será
época agora na poesia” e, “no que concerne à crítica poética, não precisaria fazer
mais nada”23. Bem, o próprio Schlegel escreveu tal crítica.
*
Muitos romancistas foram celebrados pelos primeiros românticos alemães.
Sterne e Swift são citados por conta do humor. Se Diderot teria “abundância de
espirituosidade”, sendo Jacques, o fatalista “um livro organizado pelo intelecto e
realizado com mão segura”, Jean Paul seria dotado de fantasia “extravagante e
21 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 68.22 Kathrin Rosenfield, “Uma falha na Estética de Hegel: a propósito de um silêncio sobre oromance de Goethe”, in A linguagem liberada (São Paulo, Perspectiva, 1989), p. 33.23 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 39 (Lyceum, Fr.120).
99
fantástica”24. Nenhum, porém, alcançou as alturas de Cervantes, no passado, ou
de Goethe, no presente. Nada a estranhar, portanto, que, depois da “Carta sobre o
romance”, a Conversa sobre a poesia dê lugar ao discurso que trata de Goethe. É
que, se o romance é a diversidade dos gêneros juntada, “o Meister permanece a
mais compreensível suma para abranger, com os olhos, toda a extensão desta
diversidade como que reunida, unificada em um ponto central”25.
Mas a decisiva reflexão romântica sobre Os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister não foi feita na Conversa sobre a poesia, e sim na antológica
crítica de Friedrich Schlegel sobre o livro. Sua abordagem enxergou a novidade
da obra, em parte, por conta de sua problematização dos gêneros. Em geral, a
crítica literária alemã compreendia o romance moderno a partir da mesma raiz que
a épica antiga: a narrativa clássica. Seriam como duas plantas brotadas do mesmo
solo. Schlegel considerava essa perspectiva estreita para dar conta da fluidez do
romance, que passava de gênero para gênero no mesmo livro. Nem mesmo seu
caráter narrativo, portanto, podia ser a diretriz que traçava seu ser geral.
Por esta razão, Schlegel, ao contrário de Schelling ou de Hegel, não
lamentava a falta de capacidade de sua época para produzir o verdadeiro épico.
Esperar outro Homero era não se dar conta da transformação histórica que
conduzia à nova arte. “Nada é mais oposto ao estilo épico do que as influências da
própria disposição pessoal que se tornam, de algum modo, visíveis; para não falar
do abandono ao próprio humor, de jogar com ele, como acontece nos melhores
romances”26, dizia Schlegel. Toda a ironia e a reflexividade dos romances
modernos não deixava que eles fossem derivados dos gêneros clássicos.
Dentro do Wilhelm Meister, Goethe explicita esse debate quando os
personagens começam “certa tarde a discutir qual dos gêneros seria superior: o
drama ou o romance”, e logo aparece alguém que afirma “tratar-se de uma
discussão inútil, equivocada”, pois “tanto um quanto outro poderiam ser
excelentes a seu modo, contanto que se mantivessem nos limites de seu gênero”.
Mas Wilhelm contrapõe-se: “eu mesmo ainda não tenho uma opinião totalmente
24 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 63.25 Ibid., p. 71.26 Ibid., p. 68.
100
clara a esse respeito”27. Se tomarmos a fala como pista compreensiva, devemos
olhar para a obra sem preconceitos sobre à qual classificação ela atenderia.
Daí o esforço de Schlegel, na crítica ao Meister, de fazer justiça à
singularidade da obra. Para ele, “este livro é absolutamente novo e único” e “nós
só podemos aprender a entendê-lo em seus próprios termos”, longe das tentativas
de “julgamento acadêmico ortodoxo deste organismo divino”28. Porém, ao mesmo
tempo que é singular, o livro, por sua qualidade moderna reflexiva, fornece sua
própria medida crítica. “Talvez, devêssemos julgá-lo e, ao mesmo tempo,
abstermo-nos de julgá-lo; o que não parece ser, de modo algum, tarefa fácil”,
afirma Schlegel, para completar que, “por sorte, este é um daqueles livros que
acaba por carregar seu próprio julgamento consigo e dispensa o crítico de seu
trabalho”29. Tal tarefa não é fácil pois não consiste em classificar a obra na tabela
dos gêneros, o que seria, segundo Schlegel, como a criança que quer pegar a lua e
os astros com a mão e guardá-los em sua caixa. Trata-se, antes, de compreender
os critérios críticos da obra a partir da própria obra, e é só nesse sentido que ela
dispensa o trabalho do crítico.
“Sem qualquer presunção, sem som e fúria, como o quieto desdobramento
do espírito que anseia, como o mundo recém-criado erguendo-se suavemente a
partir de dentro, o conto lúcido começa”30. Foram essas as palavras que Schlegel
achou para descrever a abertura do romance de Goethe. Elas buscavam, ao
salientar a construção da obra a partir de si, situar sua organização, na qual “os
contornos são leves e gerais, mas nítidos, precisos e seguros”, ao mesmo tempo
que “o menor detalhe é significativo, a cada toque uma leve pista; e tudo é
reforçado por contrastes claros e vivos”31.
Essas descrições de Schlegel tinham por objetivo desvendar como, em
meio à presença de prosa e poesia ou de reflexões estéticas e cenas soltas, surgira
a coesão da organização do romance de Goethe. Em outras palavras, tratava-se de
explicitar o cerne do princípio do romance a despeito de seu desencaixe nos
princípios clássicos dos gêneros. Tal tarefa era crucial pois envolvia,
metaforicamente, a própria situação histórica geral da modernidade. Schlegel 27 J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 300.28 Friedrich Schlegel, “Über Goethes Meister”, in Kritische Schriften (München, Carl HanserVerlag, 1970), p. 459-460.29 Ibid., p. 459-460.30 Ibid., p. 452.31 Ibid., p. 452.
101
afirma que é necessário, então, visar a obra “como um todo, até mesmo nas suas
partes mais escondidas e fazer conexões entre os mais remotos cantos”.
Por que não podemos tanto respirar o perfume de uma flor quanto, ao mesmotempo, inteiramente absorvidos na observação, contemplar nas suas infinitasramificações o sistema de veias de uma única folha? (…) Tanto a maior quanto amenor massa revelam o impulso inato da obra, tão organizada e organizadora atéseus mais finos detalhes para formar o todo. Nenhum intervalo é acidental ouinsignificante; e neste romance, no qual tudo é, ao mesmo tempo, tanto meioquanto fim, não seria errado considerar a primeira parte, a despeito de sua relaçãocom o todo, como um romance em si mesma.32
Schlegel encontra, no romance de Goethe, a articulação da mais antiga
questão filosófica, a da relação entre o particular e o geral. Ele observa que
“nossas expectativas de unidade e coerência são frustradas por este romance tanto
quanto são satisfeitas”33. Seu objetivo é provar que, a despeito da liberdade
individual que as partes contêm, a obra sabe juntá-las com precisão. Schlegel fala
de “homogeneidade não-intencional” e de “unidade original” que se fazem pelo
emprego de variados meios, porém sempre poéticos. “E, desse modo, cada parte
essencial do romance singular e indivisível torna-se um sistema em si mesma”34.
Nos seus fragmentos, Schlegel já dissera, aliás, que só “mirando do modo mais
certeiro num único ponto um achado isolado pode atingir uma espécie de
totalidade”35.
*
É no encontro entre a prosa e a poesia que se situa Os anos de aprendizado
de Wilhelm Meister, de Goethe, para Friedrich Schlegel. Nós, que já vivemos hoje
a completa diluição dos gêneros tradicionais, mal nos damos conta da revolução
dessa apreensão crítica. Em geral, o romance era veementemente desvalorizado
por sua escrita prosaica. Segundo o classicismo, ele não era gênero poético, justo
o que Schlegel detecta no Meister. Sua crítica considera que ali “tudo é poesia –
alta, pura poesia”. Reconhecia-se, assim, a prosa poética moderna. Tal fato
tornou-se possível apenas porque Schlegel já abandonara a aplicação empírica da 32 Ibid., p. 457.33 Ibid., p. 460.34 Ibid., p. 460-461.35 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 37 (Lyceum, Fr.109).
102
classificação em gêneros sobre a obra que tinha em vista para, em seu lugar,
construir o que chegou a chamar de “filosofia do romance”36.
“Essa maravilhosa prosa é prosa, e, no entanto, é poesia”, afirma Schlegel
sobre o Meister, completando que “sua riqueza é graciosa, sua simplicidade,
significativa e profunda, e seu nobre e delicado desenvolvimento sem rigor
desnecessário”37. Portanto, “mesmo que as linhas mestras deste estilo sejam, no
todo, tiradas do discurso social culto da vida, ele também toma parte em
metáforas raras e estranhas que possuem como objetivo estabelecer uma relação
entre o mais alto e puro, de um lado”, continua Schlegel, “e alguns aspectos
peculiares a este ou aquele jeito de falar cotidiano, ou aquelas esferas que, de
acordo com o senso-comum, são muito distantes da poesia”38.
Por trás dessa análise da linguagem do romance, estava em jogo a
transformação histórica da modernidade. Para Lukács, “a nova poesia da vida,
impetuosamente almejada por Goethe, a poesia do ser humano harmonioso, que
domina ativamente a vida, já está ameaçada pela prosa do capitalismo”39.
Portanto, tomar o discurso social culto da vida ou do senso comum cotidiano e
transformá-lo em alta poesia é o caminho, para o romance, de mediar tal conflito
moderno, que Hegel expressou ao falar da “prosa das relações” e da “poesia do
coração”. No fio da narrativa, a “prosa das relações” destina Wilhelm para o
trabalho burguês, para ganhar dinheiro e logo assumir sua profissão. Mas a
“poesia do coração” não o deixa abandonar a pretensão de aprimoramento
espiritual e moral. Essa resistência poética do coração às relações prosaicas fica
evidente na carta que Wilhelm escreve ao tio, após a morte do pai. Nesta carta,
estão resumidos os conflitos do personagem com o mundo no qual se situa, assim
como sua motivação diante dele.
De que me serve fabricar um bom ferro, se meu próprio interior está cheio deescórias? De que me serve também colocar em ordem uma propriedade rural, secomigo me desavim? Para dizer-te em uma palavra: instruir-me a mim mesmo,tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde ainfância.40
36 Ibid., p. 92 (Athenäum, Fr. 252).37 Friedrich Schlegel, “Über Goethes Meister”, in Kritische Schriften (München, Carl HanserVerlag, 1970), ps. 459.38 Ibid., p. 459.39 Georg Lukács, “Posfácio”, in J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (SãoPaulo, Ed. 34, 2006), p. 591.40 J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 284.
103
É o cumprimento desse desejo de instrução do personagem durante o livro
que fez com que ele fundasse o gênero do “romance de formação”. Mas Wilhelm
não é Werther, o protagonista do famoso romance da juventude de Goethe. Em Os
sofrimentos do jovem Werther, a poesia do coração dirige o personagem para
dentro de si, ou seja, para a exploração de sua subjetividade como fuga da
objetividade social prosaica. Tanto que ele confessa: não tratará seu
“coraçãozinho” senão “como uma criança doente, satisfazendo-lhe todas as
vontades”41. Roland Barthes observou que é o “monólogo”42 do sujeito que está
aí. Não é assim no Meister, onde a formação do personagem acontece justamente
no diálogo com o mundo – diálogo da poesia com a prosa. Não por acaso, ainda
na carta ao tio, Wilhelm afirma: “tenho visto mais mundo que tu crês, e dele me
tenho servido melhor que tu imaginas”43. No Meister, a formação do personagem
depende de seu contato com a sociedade. É no meio das relações prosaicas que
fica o coração poético.
Em romances de formação, como mostrou Mikhail Bakhtin, a formação do
homem apresenta-se em indissolúvel relação com a formação histórica”. Sua
análise mostra que os romances tradicionais colocavam o personagem estático,
como “grandeza constante”, e deixavam como “grandeza variável” o seu entorno:
“o movimento do destino e da vida dessa personagem pronta é o que constitui o
conteúdo do enredo; mas o próprio caráter do homem, sua mudança e sua
formação não se tornam enredo”44. É o oposto que ocorre no romance de
formação, pois aqui o herói e seu caráter são “grandezas variáveis”, afirma
Bakhtin, portanto “a mudança do próprio herói ganha significado de enredo”. Foi
esta a novidade de Goethe no M e i s t e r , onde “o homem se forma
concomitantemente com o mundo” e, assim, “é obrigado a tornar-se um novo tipo
de homem, ainda inédito”45.
*
41 J. W. Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther (Porto Alegre, L&PM, 2001), p. 17.42 Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso (Rio de Janeiro, Francisco Alves, 2001),p. 64.43 J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 284.44 Mikhail Bakhtin, Estética da criação verbal (São Paulo, Martins Fontes, 2003), p. 219.45 Ibid., p. 222.
104
Nada poderia ser mais condizente com o nascimento da época moderna do
que a procura da formação do novo homem, já que os próprios tempos eram
novos e não davam a este homem seu lugar definido pela ordem do cosmos.
Goethe fazia isso na literatura. Foi o que chamou a atenção de seus
contemporâneos românticos alemães. Novalis chegou a declarar, sobre o Meister,
que “a filosofia e a moral do romance são românticas”46. Não demorou, porém,
para que sua primeira admiração fosse transformada em crítica severa, mas ainda
amorosa. Schlegel, embora depois também fizesse algumas poucas reservas à
obra, jamais voltou-se contra ela como Novalis. Foi essa rejeição que levou este a
escrever seu próprio romance, Heinrich von Ofterdingen, que permaneceu sem
finalização.
Para Novalis, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister “são, de certa
maneira, completamente prosaicos e modernos”47. Ele, ao contrário de Schlegel,
não observa no romance de Goethe o casamento de poesia e prosa, mas sim a
prevalência da segunda, ou seja, do comum e ordinário das relações sociais.
Ficava para trás a poesia do coração e, assim, “o elemento romântico vai embora,
e, junto, a poesia da natureza, o maravilhoso”48, argumenta Novalis. Ele afirma,
ainda, que o Meister foca “apenas em coisas triviais, humanas, são inteiramente
esquecidos o misticismo e a natureza”, portanto, a história é burguesa. Por fim,
Novalis afirma que “ateísmo artístico é o espírito do livro”49. Temos, aqui, a
principal pista que explica a crítica de Novalis. Ele afirma que o livro é “sem
poesia ao máximo grau, por mais que sua exposição seja poética”50. Se o
problema não está na apresentação, que é poética, está no espírito, que é prosaico.
Poderíamos dizer, nesse sentido, que a forma do romance de Goethe, para
Novalis, é boa, mas o conteúdo não é. Embora a linguagem respire profunda
poesia, a estória permanece presa à prosa das relações sociais, sem conseguir
romantizar a realidade de que fala. Para compreender a questão, contudo,
precisamos lembrar em que consiste o enredo nesse aspecto.
46 Novalis, “Das Allgemeine Brouillon”, in Werke, Tagebücher und Brief, v. II (München, CarlHanser, 1978), p. 561 (n. 445).47 Novalis, “Fragmente und Studien II, 1799-1800”, in Werke, Tagebücher und Brief, v. II(München, Carl Hanser, 1978), p. 800-806 (n. 290-320).48 Ibid., p. 800-806 (n. 290-320).49 Ibid., p. 800-806 (n. 290-320).50 Ibid., p. 800-806 (n. 290-320).
105
Desde o começo, o personagem Wilhelm resiste ao mundo burguês por
conta de seu desejo pelo teatro. São as artes que o puxam para o coração e, até
certa altura, a estória transcorre assim. Só que, depois, Wilhelm desiste do teatro.
Não porque não conseguira sucesso, já que o fato ocorre após a ótima montagem
de Hamlet, que ele almejava. É que, conforme observou Lukács, “Wilhelm
Meister não deixa jamais de sentir o quanto Shakespeare se estende para além dos
limites daquele palco”, e é por isso que a apresentação de Hamlet “converte-se
numa clara configuração do fato de que teatro e drama, e mesmo a arte poética,
não são senão um aspecto, uma parte do extenso complexo problemático da
educação”51. Não é mais só a arte, portanto, a solução de sua formação. Na
dialética do romance, essa direção do enredo significa a vitória da chamada
Sociedade da Torre sobre personagens como Mignon e o harpista. Mignon, com
toda sua singeleza infantil, abomina a crueldade da razão e prefere ficar só com o
coração. Já a Sociedade da Torre, por sua vez, possui papel decisivo no
deslocamento da formação que o personagem compreendia como individual até
ali para outra, em contato com o mundo.
Em suma, o enredo do Meister de Goethe, a despeito da forma poética, faz
com que o personagem forme-se na prosa das relações sociais. E este parece ser o
problema para Novalis. Por isso, o romance que ele mesmo pretende escrever,
Heinrich von Ofterdingen, caminha na direção do conto de fadas, a fim de salvar-
se completamente do prosaico. Todo seu projeto aparece concentrado já nas
primeiras linhas do livro.
“Não foram os tesouros que despertaram em mim tal ânsia inexprimível”, eledisse para si. “Não há cobiça no meu coração; mas eu desejo vislumbrar a florazul. Ela está perpetuamente em meu pensamento, e eu não posso mais escreverou pensar em outra coisa. Nunca me senti assim antes; é como se só então eutivesse um sonho, ou como se o sono tivesse me carregado para outro mundo.Pois no mundo onde eu sempre vivi, quem alguma vez se preocupou com flores?Além disso, tal estranha paixão por flores é alguma coisa da qual nunca ouvi falarantes”.52
Essa flor azul, cuja imagem provavelmente Novalis colheu em Jacob
Böhme, concentra, para ele, toda poesia do mundo. Seu personagem, Heinrich, faz
51 Georg Lukács, “Posfácio”, in J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (SãoPaulo, Ed. 34, 2006), p. 583.52 Novalis, “Henry von Ofterdingen”, in Novalis Werke (München, Verlag C. H. beck, 1969), p.130.
106
questão de logo avisar que a ânsia por ela não veio por conta de tesouros, ou seja,
de riquezas como aquelas das atividades burguesas. Pelo contrário, é pela entrada
em outro mundo, já onírico, que se dá a possibilidade de vislumbre da flor azul,
mesmo porque, constata o personagem, no mundo concreto em que vive ninguém
se preocupa com flores. Enquanto a jornada de Wilhelm Meister supunha o
encontro com outras pessoas da sociedade, a viagem de Heinrich é, antes, pela
natureza e pelo sonho.
Não é diferente a viagem empreendida por Jacinto em Os discípulos em
Sais, outro romance não finalizado de Novalis. Jacinto abandona seus pais e seu
amor, Rosinha, com as seguintes palavras: “queria dizer-lhes aonde irei, mas eu
mesmo não sei, vou para onde mora a mãe de todas as coisas, a virgem encoberta
de véus: é por ela que anseia o meu espírito”53. Seu caminho passa por elementos
da natureza, que se mostram com caráter mágico: camundongos riem, gansos
narram contos, pedras dão cambalhotas, violetas e morangos conversam.
Procurando pelo que chama de “deusa sagrada”, Jacinto, ao fim, aproxima-se
dela. “Imerso em aromas celestiais deliciosos, ele adormeceu, pois apenas seria
permitido entrar no mais sagrado recinto caso fosse dirigido pelo sonho”54.
Tanto no Heinrich von Ofterdingen quanto em Os discípulos em Sais, os
enredos de Novalis podem permanecer na poesia do coração apenas porque
evitam a prosa da relações, ou seja, o mundo capitalista da burguesia nascente
com sua sanha industrial. Não é aí que se encontram a flor azul ou então a deusa
sagrada. Pelo contrário, só pelo distanciamento face à racionalidade da vigília é
que se abraça, pelo sonho, a poesia. Está explicada a crítica de Novalis ao
Meister, de Goethe, que não saberia preservar a poesia diante da prosa social
burguesa, o que fica patente pelo abandono do personagem em relação à vida da
arte no teatro como centro absoluto de sua formação.
Por outro lado, é justamente aí que aparece, ao mesmo tempo, a
fragilidade do projeto ficcional de Novalis. Ele dependia da negação da realidade
prosaica que se anunciava historicamente dominante. “Goethe condena, porém,
não só essa prosa, mas também a revolta contra ela”, afirma Lukács, já que esta
revolta “é somente sedutora, contudo infrutífera; não é uma subjugação da prosa,
53 Novalis, “Die Lehrlinge zu Sais”, in Novalis Werke (München, Verlag C. H. beck, 1969), p.110-111.54 Ibid., p. 112.
107
mas um não reparar nela, um descuidado deixar de lado seus autênticos problemas
– com o qual essa prosa pode continuar florescendo intacta”55. Por fim, Lukács,
na Teoria do romance, afirma que
a fissura artística que Novalis detecta com argúcia em Goethe torna-se aindamaior e absolutamente intransponível em sua obra: a vitória da poesia, o seudomínio transfigurador e redentor sobre todo o universo, não possui a forçaconstitutiva para arrastar consigo a esse paraíso tudo o que, de resto, é mundano eprosaico (…). Por isso, a estilização de Novalis permanece puramente reflexiva;embora recubra na superfície o perigo, na essência apenas o agrava.56
*
Friedrich Schlegel não enxergava em Goethe, como Novalis, a derrota do
espírito poético para o prosaico das relações sociais burguesas. Basta ler o
romance Lucinda, de Schlegel, para perceber sua distância de Novalis. Não se
trata de comparar os méritos literários de um e de outro, que provavelmente
favorecem Novalis, mas de compreender, a partir da efetivação concreta de seus
romances, o projeto de cada um. No belo Heinrich von Ofterdingen, Novalis
encaminha-se para o conto de fadas mágico, buscando dar conta da “fantasia
geognóstica ou da paisagem”57 que considerava faltar a Goethe. Schlegel, por sua
vez, faz a suma da transição entre gêneros e estilos, indo da confissão à carta, do
idílio ao sexo. Novalis preza a pura poesia do coração, voltando-se para a
natureza, enquanto Schlegel está mais preocupado com a construção irônica e
reflexiva de sua obra.
Se, no enredo do Wilhelm Meister, o personagem central desiste da vida
no teatro, Schlegel concebe tal virada como ganho de amplitude de sua
perspectiva. Goethe, originalmente, planejara a primeira versão do romance toda
centrada no que chamava de “missão teatral” do personagem. Em grande parte por
conta de sugestões de Schiller, ele acabou transformando aquele enredo, de onde
surgiu Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Essa transformação pode
esclarecer a diferença de opiniões de Novalis e Schlegel sobre a obra. Enquanto o
55 Georg Lukács, “Posfácio”, in J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (SãoPaulo, Ed. 34, 2006), p. 583.56 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 147.57 Novalis, “Fragmentos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 155.
108
primeiro encontra aí seu problema, por conta da perda de centralidade da arte para
a conclusão da formação do personagem, o segundo acha aí seu encanto, pois fica
explicitado que o valor da arte pode extravasar para a vida, sendo não apenas
dramatizado no palco especificamente teatral. Schlegel enfatiza que a obra foi
“feita duas vezes, em dois momentos criadores, a partir de duas idéias”, já que “a
primeira era apenas a de fazer um romance de artista; mas então, subitamente, a
obra tornou-se, surpreendida pela tendência de seu gênero, muito maior que seu
propósito inicial”, e aí “imiscuiu-se nela a doutrina do cultivo da arte de viver,
que se tornou o gênio todo”58.
Para Schlegel, portanto, “a obra pretende abraçar não apenas o que
chamamos de teatro ou poesia, mas o grande espetáculo da própria humanidade, e
a arte de todas as artes, a arte de viver”59. Meister, ao desistir do teatro, não o faz
porque desiste da arte, mas porque percebe que seu problema é a vida enquanto
arte. No romance, o personagem chamado de “desconhecido” diz a Meister que
“cada um tem a felicidade em suas mãos, assim como o artista tem a matéria
bruta, com a qual ele há de modelar uma figura”60. Traça, assim, o paralelo entre a
felicidade buscada na vida e a obra buscada na arte, aproximadas pelo problema
da formação, que o “desconhecido” explica ao dizer que “ocorre com essa arte
como em todas: só a capacidade nos é inata; faz-se necessário, pois, aprendê-la e
exercitá-la cuidadosamente”61.
Esse desafio geral da formação, como nota Lukács, “objetiva-se como
psicologia dos heróis romanescos: eles buscam algo”62. É como se a forma do
romance fosse o espelho da própria modernidade, à diferença da narrativa antiga.
Por isso, “a primeira é consagrada a um herói, uma peregrinação, um combate; a
segunda, a muitos fatos difusos”63, como observou Benjamin. Tanto o Meister, de
Goethe, quanto o Heinrich, de Novalis, são personagens que estão a sós em busca
de sua formação, a despeito do caminho distinto que esta toma para um e para
outro. Para nenhum deles está em jogo o destino da comunidade, mas o destino
individual, ao contrário do que ocorria com o herói da epopéia antiga, “pois a 58 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 76.59 Friedrich Schlegel, “Über Goethes Meister”, in Kritische Schriften (München, Carl HanserVerlag, 1970), p. 469.60 J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 83.61 Ibid., p. 83.62 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 60.63 Walter Benjamin, “O narrador”, in Magia e técnica, arte e política (São Paulo, Brasiliense,1994), p. 211.
109
perfeição e completude do sistema de valores que determina o cosmos épico cria
um todo demasiado orgânico para que uma de suas partes possa tornar-se tão
isolada em si mesma, tão fortemente voltada a si mesma, a ponto de descobrir-se
como interioridade”64, o que já ocorre no romance, conforme mostrou Lukács.
Essa formação, contudo, não era, segundo Schlegel, o desenvolvimento
teleológico para certo fim determinado. Tal opinião pode soar estranha, já que o
Meister termina com as seguintes palavras: “sei que alcancei uma felicidade que
não mereço e que não trocaria por nada no mundo”65. Meister alcança a
felicidade, o enredo se fecha e chegamos à sua conclusão. Estaria completada a
educação. Mas, a despeito daquelas palavras que situam o sentimento da vida do
personagem, como explicar que, no que diz respeito à vida da obra, seu fim não
deixe de ser algo abrupto, como se as coisas subitamente se resolvessem?
Quão decepcionado o leitor desse romance deve ficar ao fim, pois nada resulta detodos aqueles arranjos educacionais, a não ser um singelo encanto; e por trás detodos aqueles oportunos acontecimentos incríveis, das insinuações proféticas eaparições misteriosas, não há nada a não ser a mais lúcida poesia.66
Essas palavras de Schlegel buscavam sublinhar que o Meister era poesia,
embora escrita em prosa e não em verso, portanto, os conteúdos dos episódios
contados ao longo do enredo valem pela forma poética na qual aparecem e pela
qual se conjugam entre si. É por isso que os “críticos são, em geral, unânimes ao
elogiar o entendimento de Friedrich Schlegel das mais finas tonalidades da
estrutura do romance”, observa Ernst Behler, “mas ficam, simultaneamente,
decepcionados com sua aparente incapacidade completa para compreender a meta
final e concretização do aprendizado de Wilhelm”67. É que, para Schlegel, não é a
continuidade prosaica e progressiva da formação do personagem que faria da obra
de Goethe o epicentro da teoria romântica da literatura em sua própria época.
Seria, antes, sua construção formal reflexiva cuja essência é poética.
64 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 67.65 J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 575.66 Friedrich Schlegel, “Über Goethes Meister”, in Kritische Schriften (München, Carl HanserVerlag, 1970), p. 470.67 Ernst Behler, German Romantic Literary Theory (Cambridge, Cambridge University Press,1993), p. 176.
110
Por isso, Schlegel afirma que “a poesia puramente poética de Goethe é a
mais completa poesia da poesia”68, ou seja, ela pratica a “poesia transcendental”
almejada pelos primeiros românticos alemães. É chamada de transcendental
porque não se preocupa tanto com seus objetos quanto com o modo de poetizá-
los. No caso do Meister, essa abordagem explica o que Schlegel dizia. Não é tanto
o conteúdo da vida do personagem que está em questão, mas sim a forma literária
pela qual ela é organizada enquanto obra de arte no livro do Goethe. Este é o
desafio da arte moderna. Lukács comenta que se trata, então, da “tentativa
desesperada, puramente artística, de produzir pelos meios da composição, com
organização e estrutura, uma unidade que não é mais dada de maneira
espontânea”, completando, ainda, que é “uma tentativa desesperada e um fracasso
heróico”, já que “uma unidade pode perfeitamente vir à tona, mas nunca uma
verdadeira totalidade”69. No caso do Meister, de Goethe, essa tentativa aparece
sob a forma de poesia da poesia, segundo Schlegel, pois é poesia que se sabe
enquanto poesia.
Tal operação acontece pelo emprego da ironia presente no texto, segundo
Schlegel. Ela funciona como consciência da obra em relação a si mesma. Luiz
Costa Lima notou que, nesse contexto, “sem o emprego de uma técnica
distanciadora, a presença do tão-só humano ameaçaria comprometer o sentido da
cena, dando a entender que a meta visada fossem os tipos que as personagens
encarnam e não o texto que compõem”, acrescentando ainda que “ao mesmo
tempo que assegura o contato com o humano, a ironia impede que o humano
usurpe o lugar do texto”70. É que a totalidade da obra literária não vem da
totalidade realista das estórias dos personagens, mas da construção poética na
linguagem.
Por conta disso, Schlegel enfatiza o caráter poético de Goethe, mais do
que o desfecho da narrativa. E, quando não o faz, critica Goethe pela ausência da
relação com o infinito em sua obra, ou seja, pelo fechamento que o enredo
encerra. Num fragmento, Schlegel já deixara dito que “uma obra está formada
quando está, em toda parte, nitidamente delimitada, mas é, dentro dos limites,
ilimitada e inesgotável; quando é de todo fiel, em toda parte igual a si mesma e,
68 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 91 (Athenäum,Fr. 247).69 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 54.70 Luiz Costa Lima, Limites da voz: Montaigne, Schlegel (Rio de Janeiro, Rocco, 1993), p. 212.
111
no entanto, sublime acima de si mesma”71. É de acordo com essa tese que ele
pretende ler Goethe. Está em jogo, antes da formação de Meister, a formação da
obra da qual ele é protagonista. E aquela, ao contrário deste, acaba, mas não
termina, ou seja, é lançada ao infinito.
*
Se Friedrich Schlegel, mesmo dando a Goethe o estatuto da poesia e da
reflexão espiritual, às vezes não considera que ele realizou o romance em sua
essência, a razão não está em falhas do autor, mas no horizonte amplo de quem
considera, como vimos, que o gênero romântico “só pode vir a ser, jamais ser de
maneira perfeita e acabada”, logo, “não pode ser esgotado por nenhuma teoria”72.
Se “o consumo de romances nos séculos XVII e XVIII era enorme, como o
entusiasmo que eles despertavam; mas só um ou outro crítico os considerava algo
mais que um divertimento fácil”73, como apontou Antonio Candido, certamente o
horizonte dos primeiros românticos estava dentro deste seleto grupo de críticos.
Justo porque os romances “não tinham a nobreza conferida pela tradição teórica
nem a chancela das formas poéticas definidas”74, eles não apenas somavam mais
um gênero à classificação antiga, mas fundiam o dramático, o lírico e o épico,
abrindo a possibilidade de pensar a literatura como absoluto em que todos os
textos comunicam-se entre si, como o grande Livro de todos os livros, tese que,
depois, ressoaria em Mallarmé.
“Eu me animaria a tentar uma teoria do romance”75, afirma Antonio,
personagem criado por Schlegel na Conversa sobre a poesia, contrariando o que
dissera seu autor. “Semelhante teoria do romance teria de ser, ela mesma, um
romance que reproduzisse fantasticamente cada nota eterna da fantasia”76,
completa. Em suma, a teoria do romance precisava ser ela mesma romance porque
a derrubada da tradicional divisão de gêneros atinge seu ponto culminante ao
conceber que a própria crítica faz parte da literatura, não se situa fora dela. 71 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 100 (Athenäum,Fr. 297).72 Ibid., p. 65 (Athenäum, Fr. 116).73 Antonio Candido, “O patriarca”, in A educação pela noite (Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul,2006), p. 87.74 Ibid., p. 87.75 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 68.76 Ibid., p. 68.
112
Realizar esta teoria crítica é fazer filosofia, até porque “os romances são os
diálogos socráticos de nossa época”, já que, “nessa forma liberal, a sabedoria da
vida se refugiou da sabedoria escolar”77. Essa filosofia do romance como gênero
dos gêneros é o “livro por vir” romântico, no qual “viveriam os velhos seres em
novas feições; ali a sombra sagrada de Dante se ergueria de seu inferno, Laura
passearia de modo celestial ante nossos olhos, e Shakespeare conversaria em
intimidade com Cervantes – lá Sancho poderia gracejar novamente com Dom
Quixote”78.
77 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 23 (Athenäum,Fr. 26).78 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 68.
7
Entre a regra e a liberdade:
a criação do gênio
Em seus cursos de estética, Hegel afirma que, antes dele, no fim do século
XVIII, surgira a “época do assim chamado período do gênio, período que foi
instituído pelas primeiras produções poéticas de Goethe e, então, pelas de
Schiller”1. Referindo-se ao momento em que os dois escritores, ainda jovens,
participaram do pré-romantismo alemão, Hegel os destacava como figuras de proa
do que então nascia: a estética do gênio. Por esta palavra, ele buscava denotar a
quebra com a obediência às ordens classicistas para a arte. Em seu lugar estava,
agora, a liberdade da criação, que se encarnara em obras como o Götz von
Berlichingen, de Goethe, e Os salteadores, de Schiller, nas quais as normas
tradicionais de composição eram desrespeitadas. Segundo Hegel, as “regras
práticas foram então na Alemanha violentamente descartadas”, sendo que “o
direito do gênio, as suas obras e os efeitos delas foram afirmados contra as
pretensões presunçosas daquelas legislações e vastas torrentes de teorias”2.
Sabemos que a noção de gênio ganha força com a busca romântica pela
autonomia da criação na arte face às pretensões que tornavam algumas estéticas
classicistas anteriores legislações para orientar obras como se fossem réus.
Embora admita essa conquista, Hegel esclarece que, ao fim, não simpatiza com o
que seria o gênio, que é “em parte inflamado por um objeto, em parte pode
colocar-se neste estado voluntariamente, sem esquecer o bom serviço da garrafa
de champanhe”3. Em sua provocação, Hegel fala da garrafa de champanhe para
destacar a participação de forças não transparentes para aquele que cria durante a
criação. Ela não seria, portanto, controlada. Seria fruto apenas do “entusiasmo”.
Logo, essa teoria do gênio, para Hegel, “considera não só supérfluo, mas também
prejudicial para a produção artística toda consciência sobre sua própria
1 G. W. F. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 49.2 Ibid., p. 43.3 Ibid., p. 49.
114
atividade”4. É essa ausência absoluta da consciência no processo criativo que
Hegel não pode tolerar e, por isso, precisa sublinhar sua discordância com o
elogio ao gênio.
Entretanto, o próprio Hegel comenta “as confusões que imperam sobre o
conceito de entusiasmo e de gênio”5. Dele até nossos dias, as confusões, ao invés
de diminuírem, aumentaram. Poucas palavras, ao longo da modernidade,
envolveram tantas definições quanto “gênio”. Sabemos, claro, que o romantismo
foi a época privilegiada de elaboração do conceito. Nem podia ser diferente, já
que os primeiros românticos contestavam, por exemplo, a tradicional divisão dos
gêneros poéticos, que para eles se misturavam na forma do romance, espécie de
literatura que aglomerava discursos das mais diversas naturezas. Para criar a
literatura romântica, então, exigia-se o gênio que não se submete cegamente aos
parâmetros classicistas do passado, formulando a produção moderna da arte. Esta
arte precisaria de reflexão, contrariando o veredicto de Hegel sobre a total
ausência de consciência do gênio. Nas próximas linhas, buscaremos compreender
a gênese do conceito de gênio até a sua formulação romântica, para mostrar que
ela é mais complexa do que pretende a acusação de Hegel e só por isso pode estar
na base da criação da arte moderna.
*
Ecoam, na origem da criação moderna do gênio, as antigas palavras de
Platão: “quem chegar às portas da poesia sem a inspiração das Musas, convencido
de que pela habilidade se tornará um poeta capaz, revela-se um poeta falho”.
Tratava-se, para ele, “de possessão divina e de loucura”6. É provável que Hegel
tivesse essa passagem do Fedro em mente ao criticar o gênio como aquele que
abdica da consciência e do esmero no processo criativo para se disponibilizar a
sair de seu estado normal e criar divinamente. Inspiração, não transpiração, seria a
marca do gênio. Nessa linha, até teóricos franceses admiradores de Descartes,
4 Ibid., p. 49.5 Ibid., p. 49.6 Platão, Fedro (Lisboa, Edições 70, 1997), p. 59 (245a).
115
como Jean-Baptiste Dubos7 e Charles Batteux8, rendem-se aos poderes do gênio
na arte durante o século XVIII, a despeito de seu racionalismo.
Entre os ingleses, desde cedo Shaftesbury afirma que era comum “para
poetas, na entrada de suas obras, dirigirem-se para alguma Musa, e esta prática
dos antigos ganhou tanta reputação que até em nossos dias a achamos
constantemente copiada”9. Esta cópia, porém, seria feita pelos modernos só pelo
hábito de seguir o senso-comum e a moda da tradição, lamenta Shaftesbury. Ele
denuncia a diferença entre o “ar do entusiasmo, que se assenta tão graciosamente
nos antigos”, e o que é “sem espírito e inábil num moderno”10. Epígonos dos
antigos, os artistas modernos, em sua maioria, não seriam geniais, ainda que
pudessem agradecer às Musas. Gênios, porém, nunca são maioria. Foi o que
sublinharam Robert Wood11 e Edward Young12 com o conceito de originalidade.
Em 1759, Young escreve após o contato com o Paraíso perdido, de Milton, e as
tragédias de Shakespeare, obras que não se deixariam explicar pelos critérios das
poéticas antigas. Eram geniais. Nada copiavam, logo, não ofereciam modelos a
partir dos quais poderiam ser julgadas.
Esse começo da teoria do gênio moderno atinge o cume entre os alemães,
para os quais a originalidade de Shakespeare continua crucial13. Lessing desejava
colocá-lo no lugar ocupado por Corneille e Racine, símbolos da criação pautada
pelas regras da estética neoclássica francesa. Preocupado com o teatro nacional,
ele queria deslocar o referencial da dramaturgia alemã na direção de Shakespeare,
pois “um gênio só pode ser inflamado por outro gênio, e com maior facilidade por
um que pareça dever tudo à natureza e que não intimide pelas árduas perfeições da
arte”14. Goethe, em 1771, confessa, no estilo exaltado que o fez aderir ao pré-
romantismo alemão na juventude, o quanto o gênio de Shakespeare determinara
seu próprio, confirmando a previsão de Lessing. Foi preciso colocar Shakespeare
como referência para que surgisse o gênio alemão: Goethe.
7 Jean-Baptiste Dubos, Réflexions critiques sur la poésie et sur la peinture (Paris, Pissot, 1770).8 Charles Batteux, Les beaux arts réduits à un même principe (Paris, Chez Durand, 1747).9 Earl of Shaftesbury, “A letter concerning enthusiasm to my Lord”, in Characteristics of men,manners, opinions, times (New York, Cambridge University Press, 1999), p. 4.10 Ibid., p. 5.11 Robert Wood, An essay on the original genius and writings of Homer (London, H. Hughs,1775).12 Edward Young, Conjectures on original composition (Ithaca, Cornell University Library, 2009).13 Conferir o livro de Pedro Süssekind, Shakespeare: o gênio original (Rio de Janeiro, JorgeZahar, 2008).14 G. E. Lessing, “Cartas”, in De teatro e literatura (São Paulo, EPU, 1991), p. 110.
116
Ao ler sua primeira página tornei-me seu adepto para toda a vida, e ao terminar aprimeira peça, senti-me como um cego de nascimento a quem fora dado derepente a vista por uma mão milagrosa. Reconheci, senti vivamente que toda aminha existência se alargara infinitamente, tudo era novo, desconhecido, e a luz aque não estava acostumado doía-me nos olhos. Aos poucos aprendi a enxergar etenho de dar graças ao meu gênio reconhecido, se ainda hoje sinto vivamente oque ganhei.15
Goethe deixa claro o laço fraternal que o liga a Shakespeare: a partir dali,
afirma, “não tive a menor dúvida de renunciar ao teatro regular”16. Por teatro
regular, Goethe tem em vista o que respeita as unidades de lugar, tempo e ação na
composição das peças, conforme as prescrições classicistas oriundas das lições
poéticas aristotélicas. Elas soavam como “cadeados maçantes para nossa
imaginação”17. Shakespeare aparecia, então, como possibilidade de criação
dramatúrgica fora de tais marcos. Era a partir dele que Goethe entendia seu
projeto literário: “quando via quanta injustiça havia sofridos dos Senhores das
Regras dentro de seus cárceres e quantas almas livres ainda lá se torciam
aprisionadas, meu coração teria arrebentado, se não lhes houvesse declarado
guerra”18.
Durante o pré-romantismo, Goethe estendeu o significado do gênio para
além do campo da arte. É o que lemos em Os sofrimentos do jovem Werther. Fiel
à sensibilidade aflorada de então, o personagem exige a singularidade do gênio na
conduta da vida em geral, que não devia ser submetida aos padrões sociais
tradicionais.
Um coração juvenil pende inteira e unicamente de uma moça, passa a seu ladotodas as horas do dia, oferece-lhe todas as suas forças, tudo o que possui para lhedeixar claro a todo instante que se entregou a ela por inteiro. E eis que vem umfilisteu, um homem de boa posição, com cargo público, e lhe diz: “Meu bomrapaz! Isso de amar é próprio do homem; porém tendes de amar como homem!Dividi bem o vosso tempo, dedicando parte dele ao trabalho, e as horas de folga àvossa namorada. Calculai vossa fortuna e, com o que sobrar depois de atendidasvossas necessidades, não vos proíbo de dar a ela de vez em quando, mas não commuita freqüência – talvez no aniversário e no dia do seu santo –, umpresentinho…” Se o nosso rapaz seguir esses conselhos, se tornará uma pessoabastante útil, e eu até mesmo o recomendaria a qualquer príncipe, a fim de lhe darum emprego em sua chancelaria; mas quanto ao amor, adeus… E se for artista,
15 J. W. Goethe, “Para o dia de Shakespeare”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo,EPU, 1991), p. 66.16 Ibid., p. 66.17 Ibid., p. 66.18 Ibid., p. 67.
117
adeus talento. Ó meus amigos! Por que é que a torrente do gênio transborda tãopoucas vezes e tão poucas vezes chega a ferver, em encrespadas ondas, sacudindovossas almas letárgicas?19
Não apenas na arte, mas também no amor, seria preciso gênio, segundo
Werther. Em suma, o pré-romantismo fez do gênio a arma de sua luta contra as
regras, na arte e na sociedade. Individualidade genial era oposição às normas
gerais. “Pode-se dizer muito a favor das regras, mais ou menos tanto quanto se
pode dizer para louvar as etiquetas da sociedade burguesa”, comenta Werther, já
que “um homem que se forme seguindo-as, jamais produzirá algo falto de gosto
ou ruim”; ele o faz, porém, só para arrematar que, “em compensação, as regras,
por mais que se diga algo em favor delas, destroem o verdadeiro sentimento da
natureza e sua genuína expressão”20. Essas palavras explicitam o esquema
compreensivo de Werher: de um lado a mediocridade das normas construídas pela
cultura e de outro a natureza não maculada por elas. É a esta que o gênio filia-se,
pois sua expressão é genuína: aí fica a singularidade. Ela serve à arte como
inspiração que prescinde de modelos. Werther quer se “prender apenas à
natureza”, pois “só ela é infinitamente rica e só ela é que forma os grandes
artistas”; para ele, “a cidade em si é desagradável, mas nos arrabaldes a natureza é
de uma beleza indizível”21.
Tal natureza podia ser exterior ou interior, desde que não corrompida. Na
natureza interior da subjetividade, as regras não teriam poder e a singularidade do
“eu” estaria viva. No que diz respeito a Werther, “sua desigualdade se fundará
também interiormente”22, como notou Irley Franco23. Roland Barthes considera a
amada de Werther, Carlota, “a personagem medíocre de uma encenação forte,
atormentada, armada pelo sujeito Werther”24. Embora narre este amor, o livro,
19 J. W. Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther (Porto Alegre, L&PM, 2001), p. 25-26.20 Ibid., ps. 24-25.21 Ibid., ps. 14.22 Irley Franco, “Eros Platônico e Moderno”, in Revista O que nos faz pensar, n. 01 (Rio deJaneiro, PUC-Rio, 1989), p. 78.23 E, ainda aí, há o dedo de Shakespeare. Em Romeu e Julieta, por exemplo, o homem étematizado como “ser psicológico que obedece a linhas de ação independentes das regras queorganizam a vida social em termos de grupos, papéis, posições”, como notaram Eduardo V. deCastro e Ricardo Benzaquem. Embora proibido pelas famílias rivais, o amor dos personagens évivido. E a peça, através dele, fala da “origem do indivíduo moderno”, de “sua dimensão interna”.E. B. Viveiros de Castro e Ricardo Benzaquen de Araújo, “Romeu e Julieta e a origem do Estado”,in Arte e sociedade (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1978), p. 142.24 Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso (Rio de Janeiro, Francisco Alves, 2001),p. 45.
118
escrito na forma epistolar, só tem as cartas do remetente. Ele apresenta apenas os
sentimentos do personagem, que, como vimos, admite: não tratará seu
“coraçãozinho” senão “como uma criança doente, satisfazendo-lhe todas as
vontades”25. Segundo Hannah Arendt, “o indivíduo moderno e seus intermináveis
conflitos, sua incapacidade de sentir-se à vontade na sociedade ou de viver
completamente fora dela, seus estados de espírito em constante mutação e o
radical subjetivismo de sua vida emocional nasceram dessa rebelião do coração”,
sendo que esta “reação rebelde contra a sociedade, no decorrer da qual Rousseau e
os românticos descobriram a intimidade, foi dirigida, em primeiro lugar, contra as
exigências niveladoras do social, contra o que hoje chamaríamos de conformismo
inerente a toda sociedade”26.
“Já nos últimos anos do século”, porém, como nota Anatol Rosenfeld,
“inicia-se o movimento romântico propriamente dito, separado do pré-romantismo
por uma imensa ampliação de horizontes”27. Era o fim do século XVII com os
primeiros românticos, para quem, “quanto ao mais elevado, não devemos confiar
de modo tão exclusivo em nosso coração”28, como disse Friedrich Schlegel. Se é
verdade que “em quem esta fonte secou nenhuma outra jorrará”, também
“devemos, aonde quer que seja, nos associar ao cultivado, ao que já tomou
forma”29. Eis o delocamento face aos pré-românticos.
*
Entramos, assim, na separação dos primeiros românticos em relação ao
movimento pré-romântico Sturm und Drang, “Tempestade e Ímpeto”, assim
nomeado por conta da peça homônima de F. M. Klinger. Este fizera da
subjetividade a expressão natural que constituiria a criação na arte e na vida.
Ímpeto, ousadia e petulância fariam a tempestade violenta para acabar com a
clareza solar classicista. Essa caricatura esteve presente algumas vezes com os
pré-românticos, mas raramente nos primeiros românticos, de quem jamais
ouviríamos as seguintes palavras, declaradas por Werther no romance de Goethe. 25 J. W. Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther (Porto Alegre, L&PM, 2001), p. 17.26 Hannah Arendt, A condição humana (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999), p. 49.27 Anatol Rosenfeld, “Introdução: da Ilustração ao Romantismo”, in Autores pré-românticosalemães (São Paulo, EPU, 1991), p. 8.28 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 54.29 Ibid., p. 54.
119
Mais de uma vez me embebedei, minhas paixões nunca estiveram longe dademência, e não me arrependi de nenhuma das coisas que fiz, pois graças a elaspude compreender, por excelência própria, como todos os homensextraordinários que levaram a cabo alguma coisa grande, alguma coisa reputadaimpossível, desde sempre foram declarados ébrios e dementes…30
Entendemos agora a acusação de Hegel sobre o emprego da garrafa de
champanhe pelos gênios: a aproximação do estado do louco e do bêbado servia
como fonte não apenas simbólica, mas efetiva, para que eles criassem sem a
vigilância autoconsciente orientada pelas regras. Toda a antipatia de Hegel com o
conceito de gênio fica ainda mais clara quando lembramos que ele tinha em
mente, ao dizer isso, exatamente obras dos jovens Schiller e Goethe, como Os
sofrimentos do jovem Werther. “Em suas primeiras obras estes poetas partiram do
zero ao pôr de lado todas as regras que na época foram fabricadas e ao agir
intencionalmente contra elas”31. Essa observação vale, ao menos em parte, para o
que pensaram os pré-românticos. Mas não para os primeiros românticos.
Prova disso é que a avaliação de Hegel sobre Goethe concorda com a que
Friedrich Schlegel fizera na Conversa sobre a poesia. Ele critica as obras que
abrem a trajetória de Goethe, levando em conta o mesmo critério que Hegel
aplicaria depois. “Não encontrarão com facilidade outro autor cujas primeiras e
últimas obras sejam tão notavelmente diferentes quanto neste caso”, diz Schlegel:
“trata-se da mais aguda oposição entre todo o ímpeto do entusiasmo juvenil e a
madurez de uma formação plenamente acabada”. Sua conclusão é que, do ímpeto
à formação, ocorreu “a progressão de um desenvolvimento ascendente”32. Para
Schlegel, “Goethe purificou-se, em seu longo percurso, das efusões do ímpeto
inicial”33. Tal desenvolvimento, porém, não fez dele menos gênio, e sim mais,
pois o gênio, para os primeiros românticos, não precisa deixar de refletir ou se
cultivar.
Tanto é assim que o diagnóstico que os primeiros românticos fazem da
trajetória de Shakespeare tem o mesmo feitio. Suas primeiras obras, embora
“profundas, grandiosas e cheias de engenho”, seriam “incompletas e sem
perspectiva”. Só depois aparece o “lindo e doce cultivo do belo espírito”, graças à
30 J. W. Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther (Porto Alegre, L&PM, 2001), p. 72.31 G. W. F. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 49.32 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 72.33 Ibid., p. 76.
120
“maturação” em seu percurso, com peças, agora, dotadas de “mais plenitude,
encanto e espirituosidade”. Nem por isso, contudo, são menos geniais. São tão
geniais que os primeiros românticos desejam qualificá-las de românticas para
poderem se filiar a elas. São “todos os seus dramas insuflados pelo espírito
romântico que, unido à grande profundidade, os marca da forma mais
característica, deles fazendo um fundamento romântico do drama moderno que
durará por toda a eternidade”34.
Retornando a Goethe, ele, após sua fase juvenil, persiste dando
importância ao conceito de gênio, como lemos no livro mais admirado pelos
primeiros românticos, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Nele, o teatro
tem papel decisivo na fromação do personagem, sendo sua descoberta do gênio de
Shakespeare crucial. Mas ele só chega lá após abandonar o preconceituoso
privilégio que concedia ao teatro francês, como veremos agora. Era isto que
importava aos primeiros românticos.
“Haviam dito a Wilhelm que em tais ocasiões deveria elogiar o favorito do
príncipe, Racine, o que causaria boa impressão”35. Nesta altura, o personagem
está em uma corte. Ele segue o conselho e, na primeira oportunidade, disserta para
o príncipe sobre as maravilhas do teatro neoclássico de Racine e Corneille. Não
percebe, na ânsia de agradar, que, embora o príncipe lhe tivesse perguntado se lia
a grande dramaturgia francesa, já perdera o interesse e se dirigia a outras pessoas.
No meio das loas que tecia, Wilhelm é então interrompido pelo nobre Jarno, que
pergunta se ele já assistira a alguma peça de Shakespeare. Wilhelm responde que
não, justificando: “tudo que ouvi dizer dessas peças não me despertou a
curiosidade de conhecer mais a fundo esses monstros estranhos, que parecem
ultrapassar qualquer verossimilhança, quaisquer conveniências”36.
Essas palavras não são casuais e tampouco são fruto de alguma
particularidade do personagem. Pelo contrário, elas refletem boa parte das críticas
da época. Shakespeare era reprovável porque, a despeito do talento, não
conseguira domá-lo com a razão na obediência às regras do classicismo,
desrespeitando a verossimilhança e as conveniências. É o que diz, por exemplo,
Voltaire, com palavras parecidas às do personagem de Goethe. Para ele,
34 Ibid., p. 43-44.35 J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 182.36 Ibid., p. 183.
121
Shakespeare faz “farsas monstruosas, chamadas tragédias”, e suas peças são
“desprovidas de conveniência”37. Essa recorrência da referência à monstruosidade
advém do fato de que, do ponto de vista da composição tradicional, as peças de
Shakespeare pareciam deformadas, já que não seguiam as unidades de tempo, de
lugar e de ação.
No caso do romance de Goethe, porém, a apreciação de Wilhelm será
alterada. Jarno empresta livros de Shakespeare a ele, dizendo: “em nada poderá
empregar melhor seu tempo do que, ao se livrar imediatamente de tudo, ver na
solidão do seu velho quarto a lanterna mágica desse mundo desconhecido”. E
completa: “só uma coisa exijo: que não se escandalize com a forma; o resto, deixo
aos cuidados do seu justo sentimento”38. Essa ressalva sublinha que mesmo os
admiradores de Shakespeare sabiam que a forma de suas composições não estava
de acordo com o que o senso-comum estético da época esperava.
Wilhelm, então, “recebeu os livros prometidos e em pouco tempo, como
se pode presumir, arrebatou-o a torrente daquele grande gênio, conduzindo-o a um
mar sem fim, no qual rapidamente se esqueceu de tudo e se perdeu”39. Inúmeras
passagens se seguem no livro sobre a experiência que produz em Wilhelm a
leitura do gênio inglês. “Ele vivia e se movia no universo shakespeariano”, afirma
o narrador. “Sentado, e com movimento ignorado agitavam-se nele mil sensações
e faculdades, das quais não havia tido nenhuma noção, nenhuma idéia”40. Depois,
ao encontrar Jarno, agradece confessando: “não lembro de nenhum outro livro, ser
humano nem de qualquer acontecimento da vida que tanta impressão me tenha
causado quanto essas peças magníficas, que graças à sua bondade pude conhecer”.
Por fim, Wilhelm decreta: “parecem obra de um gênio celestial”41.
*
Nas declarações de Goethe sobre Shakespeare, em ensaios ou romances,
as obras criadas pelo gênio transformam os que entram em contato com elas. Não
37 Voltaire, “Cartas inglesas”, in Os pensadores, v. XXIII (São Paulo, Abril Cultural, 1973), p. 39e 41.38 J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 183-194.39 Ibid., p. 183-194.40 Ibid., p. 183-194.41 Ibid., p. 183-194.
122
se submetem às regras tradicionais, logo, abrem novos caminhos de sensibilidade.
Essa visão de Goethe era influenciada pelo líder do movimento pré-romântico
alemão, seu mestre na juventude: Johann Gottfried Herder. Para ele, “os
adversários de Shakespeare inculpam-no e dele escarnecem porque, embora um
grande bardo, não chegaria a ser um bom dramaturgo, e, sendo-o, não chegaria a
ser na verdade um autor trágico tão clássico como Sófocles, Eurípedes, Corneille
e Voltaire”, enquanto seus amigos “vêm-se contentando em, nisso, apenas
desculpá-lo e salvá-lo; ponderando e compensando as belezas de sua obra sempre
em relação às regras violadas” 42. Para Herder, tanto aquele ataque quanto esta
defesa de Shakespeare não dão conta de seu gênio. Enaltecer seu talento e a
beleza de sua obra a despeito dos erros na desobediência aos parâmetros
classicistas era, ainda, reconhecer tais erros, embora lhes conferindo menor
relevância. Só que Shakespeare não é genial apesar de seus erros, mas por causa
deles. É porque infringe a legislação estética tradicional que pode trazer ao mundo
obras diferentes. Seus erros são seus maiores acertos.
Essa apreensão de Herder pôde ocorrer graças à sua filosofia da história,
coisa não tão comum àquela época. Dado que Shakespeare criava em solo e em
tempo distintos dos gregos antigos, não poderia simplesmente copiá-los. Mesmo
para chegar no patamar da arte grega, o artista moderno precisaria ser diferente, já
que seu habitat é outro. Logo, conclui Herder, “Shakespeare irmana-se a Sófocles
justamente onde lhe é na aparência tão dessemelhante, para ser no fundo de todo
igual a ele”43. Tal fato explica-se pela produção do gênio. Ele é “dotado de força
divina para justamente de matéria contrária e através de uma elaboração
totalmente diversa, produzir o mesmo efeito”44. Nesse sentido, o gênio só cria
obras que se situam no âmbito de excelência da arte grega antiga porque não a
copia.
Herder pensa na chance de que, “nesta época feliz ou infelizmente
modificada existisse um gênio, que de sua matéria extraísse uma criação
dramática tão natural, grande e original como os gregos o fizeram com a sua, e
essa criação, justamente pelos mais diversos caminhos, alcançasse o mesmo
42 J. G. Herder, “Shakespeare”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU, 1991), p. 66.43 Ibid., p. 58.44 Ibid., p. 49.
123
objetivo”45. Destaque-se, aqui, a emergência do valor da originalidade do
presente, que só ocorreria com a criação natural, pois ela não se fia a regras do
passado. Ninguém deveria criticar a “segunda criação”, como a chama Herder, por
não ser a “primeira”, pois “toda a sua essência, virtude e perfeição está em que
não é a primeira”46. Novo solo, outra planta. Não se deveria criticar Shakespeare
por não obedecer aos princípios formais clássicos, já que ele floresceu em outro
ambiente.
J. M. R. Lenz, em suas notas sobre o teatro, tomava o mesmo caminho do
elogio ao gênio. Mas aguçava, em tom provocador, seu traço de espontaneidade,
por oposição ao do estudo acadêmico das regras. “Chamamos de gênios aos
cérebros que penetram imediatamente em tudo que lhe vêm à frente, que tudo
enxergam nitidamente até o fundo, de tal modo que seu conhecimento tem o
mesmo valor, volume e clareza como se for adquirido pela intuição”47.
Estabelece-se, aqui, a oposição que caracteriza boa parte da difusão do conceito
de gênio até hoje. Intuição contra reflexão. Todo gênio não deve carecer de
mediações reflexivas, pois tem acesso direto pelos sentidos àquilo que cria.
Seria olhando direto para a natureza, e não para como os clássicos a
apreenderam, que nos juntaríamos a eles, que também teriam procedido assim.
“Nisso Shakespeare é o grande mestre, justamente por ser sempre e unicamente
servo da natureza”48, diz Herder. No lugar da apropriação neoclássica das lições
poéticas aristotélicas como referência para a criação, surge o gênio natural.
Hamann afirma que o gênio “substitui em Homero o desconhecimento das regras
artísticas, depois dele pensadas por Aristóteles”, assim como “substitui em
Shakespeare o desconhecimento ou o desprezo das próprias leis críticas”49.
Ironicamente, Lenz chega a perguntar se “a natureza pediu conselhos a
Aristóteles, para ser genial”50. Se ela não precisou, os artistas modernos também
não. Eles devem olhar para a natureza, seja interior ou exterior, se querem criar
originalmente as suas obras.
45 Ibid., p. 48.46 Ibid., p. 48-49.47 J. M. R. Lenz, “Anotações sobre o teatro”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU,1991), p. 102.48 J. G. Herder, “Shakespeare”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU, 1991), p. 54.49 J. G. Hamann, “De Escritos e Cartas”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU,1991), p. 27.50 Ibid., p. 110.
124
Essa fuga do homem moderno de seu mundo social conformista procurava
abrigo na natureza ou no coração. Mas, se houve uma rebelião romântica, ela não
parou aí. Esta não é a única face que ela tem, assim como o conceito de gênio não
é só o da potência subjetiva espontânea prevalecendo sobre tudo o mais. Essas
não foram, por exemplo, as idéias de Kant, que produziu a mais importante
reflexão filosófica sobre o gênio até hoje e que determinou o modo pelo qual os
primeiros românticos alemães o pensaram.
*
Em 1789, Kant escrevia “que o gênio é um favorito da natureza”51,
aproximando-se dos que apelavam para a natureza como referencial para a criação
na arte, ao invés de deixar este lugar para as regras classicistas. Juntava-se, assim,
à reviravolta histórica na determinação platônica e aristotélica da arte como
imitação (“mimésis”). “É na criação, não na imitação, que se atingirá a ‘verdade’
da natureza”, disse Ernst Cassirer, já que “o íntimo acordo com a natureza que é
exigido da arte não significa que ela esteja envolvida na realidade das coisas
empíricas e que deva contentar-se em copiá-las”52. Ele tinha em vista, sobretudo,
a filosofia de Shaftesbury, que nesse ponto prenuncia a estética de Kant. No
gênio, a arte “não imita simplesmente o produto mas o ato de produção, não o que
é engendrado mas a própria gênese”, explicou Cassirer: “mergulhar diretamente
nessa gênese e participar nela intuitivamente, eis a verdadeira natureza e o
mistério do gênio”53.
Fiando-se na natureza, o gênio é o “talento para produzir aquilo para o
qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada”, logo, “originalidade tem
de ser sua primeira propriedade”54, afirma Kant. Pela singularidade, e não pela
semelhança a modelos, nasce a obra. Mas nem por isso o gênio depende da
subjetividade aflorada, pois a criação não é fruto seu, e sim da genialidade, que
não lhe pertence. Kant dizia que o gênio “não sabe como as idéias para tanto
encontram-se nele e tampouco tem em seu poder imaginá-las arbitrária ou 51 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 164(200).52 Ernst Cassirer, A filosofia do iluminismo (Campinas, Editora da Unicamp, 1997), p. 427.53 Ibid., p. 417-418.54 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 153(182).
125
planejadamente e comunicá-las a outros em tais prescrições, que as ponham em
condição de produzir produtos homogêneos”55. Toda criação viria do “dom
natural”: quem age, quando o gênio cria, é a natureza por meio do artista, não o
artista a partir de si.
Por isso, para o romantismo de August Schlegel, é “sinal característico do
gênio poético saber muito mais do que sabe que sabe”56. Seu dizer artístico
sempre excede suas explicações. Friedrich Schlegel dizia que “assim como uma
criança é, na verdade, algo que quer se tornar um homem, assim também o poema
é somente algo natural que quer se tornar uma obra de arte”57. Este poema estaria
escrito potencialmente na natureza e o gênio permite a ele se tornar obra de arte.
Portanto, o artista exerce o papel de mediador, definido por Friedrich Schlegel
como “aquele que percebe em si o divino e, aniquilando-se, abandona a si mesmo
para anunciar, comunicar e expor, nos costumes e ações, em palavras e obras, esse
divino aos homens”58. Troque-se a palavra “divino” por “poesia”, em sentido
amplo, e temos a descrição da função desempenhada pelo gênio.
Ele abandona seus interesses pessoais e intenções determinadas para dar
lugar à poesia, que ao mesmo tempo é sua e não é. Logo, se o gênio é alçado às
alturas, o artista empírico do qual a genialidade se serve para criar não é. Pois a
condição de possibilidade para que a obra nasça é que o artista dê lugar para seu
gênio, e não para si. Não se trata, para Kant e para os primeiros românticos, da
inflação subjetiva, que, aliás, deve ser limitada, como observou Friedrich Schlegel
ao dizer que “em toda parte em que alguém não limita a si mesmo, é o mundo que
o limita, tornando-se, com isso, um escravo”, tanto que “só se pode limitar a si
próprio nos pontos e lados em que se tem força infinita, autocriação e auto-
aniquilamento”59. Só ao se aniquilar, o gênio pode criar.
Entretanto, apenas com a singularidade dessa passagem que começa na
natureza e, via artista, termina na obra, ocorre a genialidade. Por valorizar essa
singularidade, Friedrich Schlegel escreveu que “não são a arte e as obras que
fazem o artista, mas o sentido e o entusiasmo e o impulso”60. Parar por aqui,
55 Ibid., p. 153-154 (182).56 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 75 (Athenäum,Fr. 172).57 Ibid., p. 23 (Lyceum, Fr. 21).58 Ibid., p. 150 (Idéias, Fr. 44).59 Ibid., p. 25 (Lyceum, Fr. 37).60 Ibid., p. 30 (Lyceum, Fr. 62).
126
contudo, seria endossar o conceito vulgar de gênio. Por isso, Friedrich Schlegel
afirma também que, “para poder escrever bem sobre um objeto, é preciso já não se
interessar por ele; o pensamento que se deve exprimir com lucidez já tem de estar
totalmente afastado”, pois “enquanto o artista inventa e está entusiasmado, se
acha, ao menos para a comunicação, num estado iliberal”61.
No fim das contas, então, o artista deveria estar envolvido ou distante ao
criar, entusiasmado ou não? Schlegel busca a junção tensa das duas coisas ao
dizer que, “em todo bom poema, tudo tem de ser intenção e tudo tem de ser
instinto”62. Intenção é o plano, a consciência, o domínio. Instinto é a natureza, o
impulso, o entusiasmo. Tanto um lado quanto o outro devem estar presentes nas
grandes obras de arte. Schlegel afirma, ainda, que, se o escritor “é meramente
instinto, é infantil, pueril ou estulto; se é meramente intenção, surge a afetação”,
logo, “ainda que ele mesmo não tenha tido intenção alguma, sua poesia e a
verdadeira autora dela, a natureza, têm intenção”63.
*
Denis Diderot, no percurso de suas reflexões estéticas, antecipara o dilema
do conceito de gênio que se apresenta para os primeiros românticos alemães e
para Kant. Em princípio, ele parece estipular o esquema dualista que tantas vezes
dominou as discussões modernas: gênio ou gosto, liberdade ou regra, instinto ou
reflexão, entusiasmo ou pensamento, intuição ou estudo. Ele escreve que “o gosto
é assiduamente separado do gênio”, afirmando, ainda, que “o gênio é um puro
dom da natureza”64. Segundo Diderot, “para que uma coisa seja bela segundo as
regras de gosto, ela deve ser elegante, finita, trabalhada sem que o pareça; para ser
de gênio, é preciso, às vezes, que seja negligente; que tenha o ar irregular;
escarpado, selvagem”65. Tal negligência por parte do gênio diria respeito,
justamente, às regras do gosto, o que tornaria seus produtos, do ponto de vista da
norma classicista, irregulares, imperfeitos e até monstruosos. Esclarecendo sua
61 Ibid., p. 25 (Lyceum, Fr. 37).62 Ibid., p. 23 (Lyceum, Fr. 23).63 Ibid., p. 61 (Athenäum, Fr. 51).64 Denis Diderot, “Article Génie”, in Oeuvres esthétiques (Paris, P. Vernière, 1991), p. 11.65 Ibid., p. 11.
127
tese com exemplos, Diderot põe Shakespeare do lado do gênio e Racine do lado
do gosto.
Porém, Diderot abre o artigo com a tese acima afirmando: “o
entendimento do espírito, a força da imaginação e a atividade da alma, eis o
gênio”66. Ele sugere, aqui, que a força da imaginação intuitiva do gênio pode
casar com o entendimento reflexivo. Mais tarde, Diderot confirmaria essa
perspectiva de soma, e não de subtração, ao falar de “uma certa conformação da
cabeça e das vísceras”67 nos gênios. No “Paradoxo sobre o comediante”, ele situa
os “momentos totalmente inesperados” da criação como sendo os “tranqüilos e
frios”, ao invés de estarem concentrados no “furor do primeiro jato”, para, por
fim, concluir que “cabe ao sangue-frio temperar o delírio do entusiasmo”68.
Kant sabia disso. Ele afirmava que “a originalidade do talento constitui um
(mas não o único) aspecto essencial do caráter do gênio”69. Prevendo o destino de
sua teoria, comentava que “espíritos superficiais crêem que eles não podem
mostrar melhor que eles seriam gênios brilhantes do que quando renunciam à
coerção escolar de todas as regras, e crêem que se desfile melhor sobre um cavalo
desvairado do que sobre um cavalo treinado”70. Na metáfora, o cavalo é o gosto
cavalgado pelo gênio, “no qual o artista, depois de o ter exercitado e corrigido
através de diversos exemplos da arte ou da natureza, atém sua obra e para o qual
encontra, depois de muitas tentativas freqüentemente laboriosas para satisfazê-lo,
aquela forma que o contenta”, portanto, “esta não é como que uma questão de
inspiração ou de um elã livre das faculdades do ânimo, mas uma remodelação
lenta e até mesmo penosa”71.
Friedrich Schlegel fala de combinação próxima à de gênio e gosto, ao
declarar que o pensamento “surge sem a letra, se alguém tem meramente espírito;
ou, inversamente, sem o âmago, se tem meramente os materiais e formalidades, a
casca seca e dura”72. No primeiro caso, fica a vastidão sem limites perdida como
66 Ibid., p. 9.67 Denis Diderot, “Sur le Génie”, in Oeuvres esthétiques (Paris, P. Vernière, 1991), p. 19.68 Denis Diderot, “Paradoxo sobre o comediante”, in Obras II – Estética, poética e contos (SãoPaulo, Perspectiva, 2000), p. 34-35.69 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 156(186).70 Ibid., p. 156 (186).71 Ibid., p. 158 (190-191).72 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 31 (Lyceum, Fr.69).
128
“o azul do céu” em tendências sem força. No segundo, fica a trivialidade artística,
o exibicionismo virtuoso. Se a letra precisa do espírito para ter seu âmago, este
precisa daquela para que o ideal torne-se real. Parafraseando Kant, podemos dizer
que, para os primeiros românticos, o gênio sem gosto é cego e o gosto sem gênio
é vazio. Só quando ambos trabalham juntos, surge a obra.
Schelling, após participar no primeiro grupo romântico, definiu o gênio
pela junção da execução “com consciência, consideração e reflexão, que também
pode ser ensinada e aprendida”, ao “não-consciente”, que não pode ser aprendido
através de exercício mas “que pode ser inato através do favor livre da natureza”.
Para ele, “embora o que não se alcança pelo exercício, mas que nasceu conosco,
geralmente seja considerado o mais esplêndido, os deuses também ligaram com
tanta firmeza o exercício daquela força originária ao esforço honesto dos homens,
à diligência e à consideração”, afirma, “que a poesia, mesmo onde é inata, sem a
arte engendra apenas como que produtos mortos”73.
*
Pelo que foi dito, pode parecer que pouco mudou em relação à estética
neoclássica, pois Boileau, seu fervoroso defensor, já juntava a genialidade inata e
o aprendizado das regras. Para ele, aquele cuja “estrela não o formou poeta por
ocasião de seu nascimento”74 não atinge as alturas nos versos. Embora só com
regras fosse criada boa arte, a influência do céu era necessária para o talento. Mas
não é tão simples assim. Pois o “gosto” de Kant ou a “intenção” de Schlegel não
equivalem ao que Boileau entendia por regras. Nenhum deles concebe conjuntos
prescritivos aos quais o gênio submeta-se, como ocorre com Boileau. Tanto que
“as regras lá expostas vão tiranizar muitas gerações de autores, não apenas na
França, negando-lhes o direito do gênio: a liberdade na criação”75. Kant, pelo
contrário, afirmava que, se o dom natural do gênio dá regra à arte, esta “não pode
73 F. Schelling, “Trecho do Sistema do Idealismo Transcendental”, in Rodrigo Duarte (org.), Obelo autônomo (Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1997), p. 139-140.74 Nicolas Boileau, A arte poética (São Paulo, Perspectiva, 1979), p. 15.75 Célia Barrettini, “Prefácio”, in Nicolas Boileau, A arte poética (São Paulo, Perspectiva, 1979),p. 13.
129
ser captada em uma fórmula e servir como preceito; pois, do contrário, o juízo
sobre o belo seria determinável segundo conceitos”76. E ele não é.
Kant especifica a genialidade como forma de se relacionar com a natureza
na arte, não na ciência, onde governam o entendimento e seus conceitos. Na
estética, a faculdade da imaginação não se subordina àquele entendimento. Kant
comenta que ela “é mesmo muito poderosa na criação como que de uma segunda
natureza a partir da matéria que a natureza efetiva lhe dá”77. Na estética
neoclássica, como em Boileau, o modelo ainda era a ciência. Ernst Cassirer
observa que “a estética do século XVIII procura e exige um Newton da arte”,
completando que “essa exigência não parecia, de maneira nenhuma, oca ou
quimérica depois que Boileau se arvorara em ‘legislador do Parnaso’” e que
“parecia que sua obra tinha, enfim, elevado a estética ao nível de uma ciência
exata”78. Foi para se contrapor a esse quadro que os românticos, muitas vezes,
apoiaram a autonomia da arte.
É curioso perceber que, quando Kant descreve o que o gênio não é, suas
palavras parecem saídas da boca de Boileau dizendo como o artista deve criar.
Num e noutro caso, é o conceito da “ciência, a qual tem de ser precedida por
regras claramente conhecidas que têm de determinar o seu procedimento”79, que
está em jogo. Kant afasta daí sua estética. Boileau aproxima a sua. Em suma, a
estética do gênio aparta-se da prescritiva porque libera a criação da submissão a
critérios como no procedimento científico estrito, dando-lhe autonomia. Mas
como isso ocorria para os primeiros românticos?
Finalmente, chegamos ao xis da questão. Embora os primeiros românticos
alemães acompanhassem os pré-românticos no ataque às estéticas prescritivas do
neoclassicismo, não concordavam com a euforia da subjetividade ali às vezes
defendida, como vimos, pois a criação moderna da arte fundava-se, para eles, na
reflexão. Estamos longe da figura vulgar da exacerbação psicológica do “eu”
empírico. No lugar da aplicação de regras não estaria o sentimento exagerado, e
sim o pensamento sóbrio: “ali onde a sobriedade te abandona, ali se encontra o
76 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 155(185).77 Ibid., p. 159 (193).78 Ernst Cassirer, A filosofia do iluminismo (Campinas, Editora da Unicamp, 1997), p. 373.79 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 163(199).
130
limite de teu entusiasmo”80, afirma Hölderlin. Estamos longe do extravasar
voluntarista, e perto “de freio e espora para o espírito”81.
Kant, antes, já dissera que o gênio não era o esforço voluntário do artista.
Sua posição seria, nesse sentido, “não intencional”82. Este ponto é decisivo, pois
explica o sentido da originalidade para os primeiros românticos alemães. No
começo da Conversa sobre a poesia, Friedrich Schlegel afirma que a
originalidade “precisa ser preservada”83. Ela não deve ser intencionalmente
procurada, e sim protegida da violência das regras, conservada diante daquele
ataque. Não se trata de arroubo psicológico. August Schlegel diz que
“dificilmente uma outra literatura tem para mostrar tantas aberrações devidas à
mania de originalidade quanto a nossa”84. Essa mania voluntarista de ser original
não é o que os primeiros românticos desejam com o gênio.
Schelling viu aí o que chamou de princípio inconsciente da criação, que
justificaria tanto a observação de Kant sobre a eventual incapacidade que tem o
artista de explicar sua obra quanto a “afirmação de todos os artistas, de que são
involuntariamente impelidos para a feitura de suas obras, de que na produção das
mesmas satisfazem um impulso irresistível de sua natureza”85. Justamente porque
no gênio não predomina a intenção, o artista se vê submetido à criação, o que
Schelling compara ao sentimento diante do destino.
Do mesmo modo como o homem sob o efeito da fatalidade não realiza o que elequer ou intenciona, mas o que ele tem de realizar através de um destinoincompreensível, parece ao artista, porém, na observação daquilo que é opropriamente objetivo na sua produção, por mais cheio de intenção que esteja,estar sob o efeito de um poder que o separa de todos os outros homens e o coagea exprimir ou apresentar o que ele próprio não penetra inteiramente, e cujosentido é infinito.86
Falta ao artista o domínio completo do que faz, ao menos como pessoa
empírica. Sua obra sempre tem mais a dizer do que ele – e do que qualquer outro
80 F. Hölderlin, “Reflexão”, in Reflexões (Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994), p. 23-24.81 Ibid., p. 24.82 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 163(199).83 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 29.84 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 80 (Athenäum,Fr. 197).85 F. Schelling, “Trecho do Sistema do Idealismo Transcendental”, in Rodrigo Duarte (org.), Obelo autônomo (Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1997), p. 138.86 Ibid., p. 139.
131
que fale sobre ela. Daí deriva o “sentido infinito” das obras de arte, pois nem
mesmo seu autor pode findá-lo. E “assim ocorre com toda obra de arte verdadeira,
na medida em que ela é passível de uma interpretação infinita, como se houvesse
nela uma infinitude de intenções que nunca se pode dizer se estava posta no
próprio artista ou se antes repousava meramente na obra de arte”87, afirma
Schelling. Na doutrina do gênio como aquele através do qual, e não a partir do
qual, a arte acontece, justifica-se a pluralidade de leituras das obras, já que seu
sentido não é encerrado por qualquer intenção definida, ainda que ela possa estar
presente.
Por isso, Friedrich Schlegel afirma que, se o artista pode se orgulhar de
alguma coisa, é “da obra que ultrapassa divinamente toda intenção, e cuja
intenção ninguém aprenderá até o fim”88. Noutras palavras, o orgulho do artista
não deve ser de si mesmo, e sim da obra. Essa obra, por conta disso, deverá ter
algo que Kant dizia: “a arte somente pode ser denominada bela se temos
consciência de que ela é arte e de que ela apesar disso nos parece ser natureza”89.
Kant resumia, assim, a ambigüidade da arte como a pensam mesmo Schelling ou
Schlegel. Ela deve parecer natureza na medida em que não é fruto do simples
domínio intencional do artista. Mas, ao mesmo tempo, essa sensação deve se dar,
paradoxalmente, com a consciência de que se trata de arte, e não de natureza, já
que, especialmente com a modernidade, esta arte não pode abrir mão do caráter
reflexivo.
*
Por não abordar a ambiguidade do gênio, Schiller dizia, com palavras que
depois ecoariam em Hegel, que “todo verdadeiro gênio tem de ser ingênuo, ou
não é gênio”90. Estaria presente nele só o dom natural e, na medida em que a
formação moderna era artificial ou reflexiva, não poderíamos confiar ao gênio a
criação da arte. No caso dos primeiros românticos, o conceito de gênio, ao juntar a
espontaneidade e a reflexão, ganha espaço. Para eles, é como se o gênio, este sim, 87 Ibid., p. 141.88 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 162 (Idéias, Fr.136).89 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 152(179).90 F. Schiller, Poesia ingênua e sentimental (São Paulo, Iluminuras, 1991), p. 51.
132
pudesse realizar a pretensão daquilo que Schiller chamava de poesia sentimental,
ou seja, a conquista, através da liberdade, da condição que, até outrora, era apenas
a dádiva natural, como com os antigos gregos.
Por isso, August Schlegel critica Kant quando este enfatiza apenas o lado
natural do gênio, já que aí ele abdicaria da liberdade de pensar. Enquanto
“instrumento cego da natureza”, o gênio poderia ser o simples impulso criativo
dos animais, comenta Schlegel, que por sua vez achava que a arte não poderia
excluir a reflexão. Portanto, o conceito de gênio seria mais que dom natural. Este
“mais” é o que Kant dá ao gênio quando fala do gosto. Para Schlegel, porém, essa
divisão só ocorre porque Kant não compreendeu que o gênio já tem sempre o
gosto como parte de si, não como mera regra, mas como reflexão.
Metaforicamente, é como se Kant “primeiro arrancasse o olho do gênio e depois,
para consertar o problema, providenciasse para ele os óculos do gosto”91.
Schlegel, com palavras que lembram Hegel, aconselha então que nos
distanciemos dessa perspectiva unilateral sobre o gênio, alimentada pelos pré-
românticos alemães.
Parece-me que a loucura que foi cometida em conexão com o termo ‘gênio’durante certo período na Alemanha teve um impacto significativo na concepçãode Kant. Durante este período de anarquia poética ridícula, que ainda assimintroduziu uma guinada vantajosa e um renovado sentido de vitalidade, pareceuque o espírito, que há muito tempo era guiado por regras convencionais e pelojugo da autoridade, queria jogar fora todos os códigos internos de conformidadejunto com os constrangimentos externos. Logo, licenças indevidas e originalidadeexcêntrica tornaram-se a marca única e essencial do gênio.92
Novalis frisava, por isso, o alargamento do conceito de gênio com os
primeiros românticos. Para ele, o gênio “diz tão atrevida e seguramente o que vê
passar-se dentro de si porque não está embaraçado em sua exposição e, portanto,
tampouco a exposição embaraçada nele, mas sua consideração e o considerado
parecem consoar livremente, unificar-se livremente numa obra única”93. É como
se a criação genial vencesse o abismo entre sujeito (consideração) e objeto
(considerado): a obra é sua solução desembaraçada na exposição da arte. Se
parássemos por aqui, ficaríamos próximos da definição de Schiller, tanto que este
91 August Schlegel, Kritische Ausgabe der Vorlesungen, v. I (Paderborn, Schöningh, 1989), p. 243.92 Ibid., p. 242-243.93 Novalis, “Observações entremescladas”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 49 (Fr. 22).
133
afirma que “o gênio tem de solucionar as tarefas mais complexas com
despretensiosa simplicidade e desembaraço”94. Só que Novalis segue adiante.
Para ele, até aí a capacidade genial é presente em geral na vida: “quando
falamos do mundo exterior, quando descrevemos objetos efetivos, então
procedemos como o gênio”, afirma Novalis, completando que “assim é, portanto,
o gênio, a faculdade de tratar de objetos imaginados como se se tratasse de objetos
efetivos, e também de tratá-los como a estes”95. Seguindo a argumentação,
Novalis afirma, então, que “gênio é necessário para tudo”, mas só para, depois,
acrescentar: “aquilo, porém, que de costume se denomina gênio – é gênio do
gênio”96. Ecoa, aqui, a fórmula de Schlegel: é a poesia da poesia que constitui a
arte moderna. Não é acaso. Em ambos, está em jogo a penetração reflexiva que a
duplicidade das palavras carrega. Não é só fazer poesia, mas poetizar a própria
poesia. Não é só criar genialmente, mas aplicar a genialidade sobre essa criação
genial.
Por isso, a despeito da óbvia filiação do gênio à ausência de domínio da
criação pelo sujeito, Novalis chega a lamentar ali “onde reinou involuntário o
gênio”97. Mais ainda, ele afirma que o “ganho genuíno com Fichte e Kant reside
no método – regularização do gênio”98. Essas declarações evidenciam que o gênio
era adotado pelos primeiros românticos como centro da criação da arte apenas na
medida em que seu conceito era ampliado a partir das filosofias modernas de
Fichte e Kant. Márcio Suzuki observa que Novalis opera em dois níveis ao falar
do gênio. Primeiro, ocorre a “reflexão originária”, aquela em que, como vimos, o
poder da imaginação de aproximar o que está distante e distanciar o que está
próximo fica presente na vida em geral. Segundo, ocorre a “reflexão artificial”.
Nela, como afirma Novalis, conta “o talento para expor, observar com precisão,
descrever finalisticamente a observação”99. Márcio Suzuki conclui que os dois
níveis “diferem entre si, mas que são complementos de um todo”100.
94 F. Schiller, Poesia ingênua e sentimental (São Paulo, Iluminura, 1991), p. 51.95 Novalis, “Observações entremescladas”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 49 (Fr. 22).96 Ibid., p. 49 (Fr. 22).97 Ibid., p. 89 (Fr. 92).98 Novalis, “Das Allgemeine Brouillon”, in Schriften, v. III (Stuttgart, Kohlhammer, 1981), p. 445(n. 921).99 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 48 (Fr. 21).100 Márcio Suzuki, O gênio romântico (São Paulo, Iluminuras, 1998), p. 97.
134
Por conta disso, Novalis comenta que “quase todo gênio foi até agora
unilateral”101, ou seja, não encontrou a composição precisa entre a reflexão
originária (típica dos antigos) e a artificial (típica dos modernos). Sem esta última,
diz Novalis, “sem esse talento vê-se somente pela metade – e se é somente um
meio gênio”102. Ele critica, assim, a situação em que “uma classe tinha demasiado
sentido externo, a outra demasiado interno”103. Em sua configuração romântica, o
gênio superaria essa dualidade na figura da reflexão. Ele precisa agir e observar
sua ação ao mesmo tempo, criar e pensar sua criação simultaneamente. Por fim,
poderíamos dizer que, se o gênio precisasse ser ingênuo, como queria Schiller,
não poderíamos confiar a ele, então, a criação da arte moderna. Talvez ao gênio,
não. Mas ao gênio do gênio, sim.
Em suma, o conceito de gênio, para os primeiros românticos, busca
substituir a subordinação da criação às regras pelo exercício da liberdade. Esta
liberdade, porém, não se encontra no simples instinto do artista, onde ele pode
trocar seu senhor, que deixa de ser a prescrição da cultura, apenas para
permanecer escravo, agora das inclinações naturais. Esta liberdade só ocorre
quando o pensamento entra em jogo104. Por isso, a própria criação de arte
aproxima-se da reflexão filosófica. E esta, por sua vez, pode chegar perto daquela.
Friedrich Schlegel chegou a escrever: “em inconsciência genial os filósofos, me
parece, podem muito bem disputar a primazia com os poetas”105.
101 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 88 (Fr. 94).102 Novalis, “Observações entremescladas”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 49 (Fr. 22).103 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 88 (Fr. 94).104 Por isso, Márcia Gonçalves* afirma que “a recusa da teoria da mímesis por parte dos idealistase jovens românticos alemães tem como última conseqüência não a garantia de uma liberdade plenada arte em relação a toda e qualquer funcionalidade, mas sim a afirmação de uma nova função paraa arte: uma função não mais de reprodução do natural, enquanto realidade previamente dada, masde produção e reprodução do espírito, enquanto ele mesmo é uma realidade processual, histórica ecultural”.* Márcia C. F. Gonçalves, “A recusa da teoria da mímesis pelas teorias estéticas na virada dosséculos XVIII e XIX e suas conseqüências”, in Rodrigo Duarte e Virginia Figueiredo (orgs.),Mímesis e expressão (Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2001), p. 289.105 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 100 (Athenäum,Fr. 299).
8
Do juiz ao crítico de arte:
a reflexão da obra
Existem regras fixas que possam dirigir a criação e a compreensão da arte?
Essa pergunta cindiu a aurora do pensamento estético moderno. De um lado, o
neoclassicismo francês dizia que sim: deveríamos ter em vista leis que pautassem
as produções artísticas e sua avaliação, à semelhança do que ocorreria no
procedimento científico, cujos exemplos principais eram a prática da física de
Newton diante da natureza e a teoria de Descartes na filosofia. De outro lado, o
romantismo alemão afirmava que não, opondo-se ao rigor das regras em nome da
liberdade na criação e, com isso, defendendo a autonomia da arte face ao
conhecimento científico estrito, tendo como exemplo central Shakespeare.
No centro da discórdia, estavam as diferentes interpretações de uma obra
antiga que permanecera mal conhecida durante a época medieval: a Poética, de
Aristóteles. Segundo Peter Szondi, “a poética da época moderna baseia-se
essencialmente na obra de Aristóteles; sua história é a história da recepção dessa
obra”, completando ainda que “tal história pode ser compreendida como adoção,
ampliação e sistematização da Poética, ou até como compreensão equivocada ou
como crítica”1. Se o neoclassicismo adotou, ampliou e sistematizou as lições
poéticas aristotélicas, o romantismo, em geral, criticou-as e, quando não o fez, foi
porque considerou equivocada a compreensão neoclássica das mesmas,
esforçando-se por reinterpretá-las de maneira nova.
Logo nas primeiras linhas dessas reflexões antigas que chegaram até nós
de modo incompleto, o filósofo grego anunciava as direções principais de sua
investigação. Ele dizia: “falemos da natureza e espécies da poesia, do condão de
cada uma, de como se hão de compor as fábulas para o bom êxito do poema”2.
Estão presentes aí duas pretensões: primeiro, investigar a “natureza” da poesia, o
1 Peter Szondi, Ensaio sobre o trágico (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004), p. 23.2 Aristóteles, “Arte poética”, in Aristóteles, Horácio, Longino, A poética clássica (São Paulo,Cultrix, 2005), p. 19.
136
que ela é e como ela é; segundo, orientar o melhor modo de composição dos
poemas. Em outras palavras, as lições aristotélicas sobre a poesia trariam duas
direções: uma mais descritiva e outra mais prescritiva. Dependendo de qual desses
pólos é privilegiado na obra, surgem compreensões diversas sobre ela e, por
extensão, sobre o que são a teoria e a criação da arte. No modo pelo qual os
ensinamentos aristotélicos foram compreendidos, elogiados e criticados, é
possível acompanhar, nesse sentido, o desenvolvimento dos principais problemas
estéticos do início da modernidade.
*
No século XVI, a arqueologia e a investigação dos textos gregos e
romanos pelos renascentistas italianos trouxeram à tona a centralidade dos
ensinamentos aristotélicos sobre a poesia, às vezes estendidos para a arte em
geral. Não seria preciso ir longe para adivinhar que, como era o espírito da época,
tal centralidade estava submetida ao ideal de um novo nascimento da cultura
clássica grega. Foi privilegiada, assim, a extração, a partir das lições aristotélicas,
de preceitos modelares para a arte. Desse modo, “a tradição que se firmará será a
do rigor preceptístico, a que o próprio Aristóteles será submetido”3.
Na recepção renascentista de homens como Valla, Robortello, Scaligero e
Castelvetro, a Poética foi interpretada como lugar privilegiado em que estariam as
regras perfeitas e eternas para nortear tanto a prática artística quanto o julgamento
de seus produtos. Na filosofia clássica aristotélica sobre a poesia, era encontrada a
chave teórica para que a própria cultura clássica em sua beleza pudesse reviver.
Isso significou certo deslocamento da leitura do filósofo grego, certa “diferença
de horizonte em que se dará a recepção da Poética”, cuja conseqüência foi que “o
Aristóteles moderno é antes um normativo do que um pensador”4, como observou
Luiz Costa Lima.
Esta compreensão renascentista foi retomada na França com o
neoclassicismo. Também aí entrava em jogo a convicção de que a Poética de
Aristóteles pudesse oferecer o cânone normativo da boa arte. Se eram as obras
3 Luiz Costa Lima, “A questão dos gêneros”, in Teoria da literatura e suas fontes (Rio de Janeiro,Civilização Brasileira, 2002), p. 260.4 Luiz Costa Lima, Vida e mimesis (Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995), p. 82.
137
clássicas gregas que deveríamos admirar e tomar como modelos, nada melhor do
que seguir também as orientações teóricas sobre os princípios de organização
dessas obras. Foi à procura de decifrar os segredos que produziram a beleza da
cultura grega que o neoclassicismo francês voltou-se para a Poética aristotélica.
Ela foi lida, portanto, como o manancial de parâmetros necessários para as
melhores criações estéticas, assim como para sua mais pertinente compreensão.
Nesse sentido, o século XVII na França continuava a tradição
interpretativa do século XVI na Itália. Tanto um quanto outro sofreram a
influência latina de Horácio, que fortaleceu a visão prescritiva em relação à arte.
Mas era Aristóteles a principal referência, como se tivesse fornecido a
fundamentação definitiva sobre a arte, em relação à qual todo talento devia se
curvar. É que o talento individual, certamente muito importante para esta tradição,
estava submetido ao ideal de perfeição clássica. Ele deveria ser o instrumento para
que fossem alcançadas as mais belas criações, cujo modelo havia sido
determinado pelos antigos gregos. Tão mais próxima deste ideal fosse a obra de
arte, melhor ela seria.
Toda inspiração criativa era submetida às leis inexoráveis que ditavam o
que era a boa arte. Ela deveria ser controlada, para que não fugisse ao padrão de
gosto oriundo do mundo clássico. Desse modo, as obras de arte singulares
ficavam subordinadas a critérios gerais exteriores a elas. Nesta situação, “o poeta
está, por assim dizer, condenado a ver sempre o seu trabalho individual à sombra
da tradição: entre a expressão pessoal e o trabalho de arte, instala-se, como
elemento de emulação e limite da personalidade, o passado, aquilo que é
anterior”5. Em suma, o passado clássico era tomado como medida ideal de
julgamento para toda arte, submetendo-a, no presente, à adesão à tradição.
Nicolas Boileau foi o teórico francês crucial a defender essa tradição que,
tirada do mundo clássico, pretendia ser eterna e universal. Ele sabia da
importância da genialidade individual. Dizia que a “vocação”6 era a condição para
que qualquer homem se tornasse poeta. Porém, embora fosse necessário esse
talento inato, só com as regras seria possível criar boa arte depois. Tais regras,
como observou Ernst Cassirer, não desejavam “ensinar diretamente a verdade
5 João Alexandre Barbosa, “Introdução”, in J. Guinsburg (org.), O Classicismo (São Paulo,Perspectiva, 1999), p. 13.6 Nicolas Boileau, A arte poética (São Paulo, Perspectiva, 1979), p. 66.
138
artística” e sim “preservar do erro”, o que mostra “seu parentesco com a doutrina
cartesiana do conhecimento, ao reger-se pelo princípio metódico segundo o qual
só podemos atingir a certeza (…) inspecionando as diversas fontes de erro, a fim
de superá-las”7. Mas como, aqui, tratava-se de estética, a aplicação desse
procedimento significava estreitar os limites de criação e apreciação da beleza. “É
nesse sentido que, para Boileau, a beleza da expressão poética coincide com a sua
‘exatidão’”8, aponta ainda Cassirer.
Partindo da avaliação de grandes obras, Boileau oferece conselhos sobre o
fazer poético. Por trás de seus imperativos, está a convicção em parâmetros
absolutos para a arte, que o permitem colocar-se, por fim, no lugar de “censor um
pouco impertinente, porém sempre necessário”9. Pretendendo-se herdeiro da
tradição aristotélica, ele considera a inspiração fundamental, desde que governada
pela razão. Daí deriva direções mais retas: evitar excessos, o preciosismo, a
prolixidade, a monotonia, o burlesco. Essa arte poética marcou a história da
estética, pois suas regras dominaram várias gerações de autores, controlando o
poder criativo do gênio, sua liberdade sem medidas prévias.
Portanto, a associação da reflexão à criação no neoclassicismo
representou, muitas vezes, o asfixiamento da última pelas imposições da primeira.
Embora pensasse seus critérios a partir de grandes obras, a reflexão não se
contentava com isso, buscando fornecer normas sólidas para a criação, que a
amarravam, bem mais do que a estimulavam. Mesmo em grandes dramaturgos,
como Racine ou Corneille, que sabiam se apropriar das regras de modo
independente, esta submissão era forte. Paul Valéry comentou que “havia um
Boileau em Racine, ou uma imagem de Boileau”10.
Neste contexto, em 1687, ocorreu a famosa querela entre antigos e
modernos na França. Boileau estava do lado dos antigos, enquanto homens como
Charles Perrault e Bernard de Fontebelle estavam do lado dos modernos. Estes
últimos protestavam contra a superioridade incontestável concedida à antiguidade
como modelo atemporal fixado para os modernos. Perguntavam se não seria o
contrário, já que a acumulação de experiências no tempo poderia privilegiar o
7 Ernst Cassirer, A filosofia do iluminismo (Campinas, Editora da Unicamp, 1997), p. 380.8 Ibid., p. 380.9 Nicolas Boileau, A arte poética (São Paulo, Perspectiva, 1979), p. 72.10 Paul Valéry, “Situação de Baudelaire”, in Variedades (São Paulo, Iluminuras, 1999), p. 25.
139
presente sobre o passado, tornando possível ver os antigos sem dobrar os joelhos,
como diziam. Era o despontar da crítica à tradição neoclássica.
*
Entre os alemães, os ecos da querela entre antigos e modernos foram
ouvidos como o primeiro acorde para a tomada de posição na questão. Se não se
identificavam completamente com o que o lado moderno defendia na disputa
francesa, os intelectuais alemães da época partilhavam aquilo que era aí atacado:
os parâmetros classicistas do passado enquanto imperativos para o presente. Esses
parâmetros eram defendidos, entre os alemães, por Johann C. Gottsched. Ele
buscava estabelecer, no incipiente teatro alemão da época, a ordem racional e
rigorosa formulada pelo neoclassicismo de Boileau na França.
Lessing foi pioneiro no combate contra tal vertente. Entre 1767 e 1769, ele
escreve a “Dramaturgia de Hamburgo”, na qual ataca Gottsched, mas com mira
filosófica no neoclassicismo francês. Era estrategicamente fundamental, nesse
contexto, dar nova interpretação à Poética aristotélica, já que era nela que se
fundava a autoridade da tradição neoclássica. Por isso, Lessing procede, em seu
texto, desmascarando a acuidade da tradução de Boileau ou Gottsched dos
ensinamentos aristotélicos. Ele denuncia como os heróis do neoclassicismo
Corneille e Racine, em suas peças, não estariam afinados com o sentido que o
filósofo grego pretendia dar às suas investigações. Na sua reinterpretação de
Aristóteles, Lessing tira a ênfase da imitação mecânica através de certas regras e a
coloca na busca do efeito suscitado pela arte, o que, no caso da Poética,
corresponde à catarse. Seu esforço insere-se, assim, na busca de liberdade face às
regras clássicas, que não dizia respeito apenas ao talento individual subjetivo. Em
jogo estava a abertura para que a criação artística pudesse ser diferente
dependendo do tempo e do lugar em que estivesse situada. Tratava-se, assim, da
liberdade para que a criação moderna e alemã, no caso, pudesse ser diferente do
modelo antigo grego, por mais louvável que ele fosse.
Não é coincidência, nesse sentido, que esta disputa pela liberdade da
criação tenha sido levada a cabo com tanta força entre os alemães, cuja produção
cultural ainda hesitante e tímida na época podia ser sufocada pela influência
francesa, que se fazia não em nome de si própria, mas em nome do cânone
140
universal e atemporal consolidado na tradição greco-romana. Herder dizia, com
todas as letras, que “na Grécia surgiu o drama de um modo que não poderia ser o
do norte”, logo, esta era a “razão por que no norte não é nem pode ser o que foi na
Grécia”11. Era o mundo nórdico que aguardava pelo seu Sófocles.
Para tanto, seria preciso o poder do gênio, que cria sem modelos a serem
copiados. Goethe, ao escrever em 1792 sobre arquitetura alemã, deixa isso claro.
Perante certa catedral gótica, ele confessa: “fiquei apavorado diante da visão de
um monstro disforme e encrespado”12. Esse julgamento advém da aplicação dos
critérios da tradição, aos quais a catedral não atende. Mas a apreciação logo muda,
ascendendo ao patamar genial: “então se me revelava, em silenciosos
pressentimentos, o gênio do grande mestre construtor”13. Historicamente,
portanto, a ascensão do gênio era, ao mesmo tempo, o modo pelo qual os alemães
buscavam fundamentar sua criação estética singular. Goethe afirma que “isso é
arquitetura alemã, da qual o italiano não pode gabar-se e muito menos o
francês”14, opondo-se, respectivamente, ao renascimento e ao neoclassicismo,
movimentos de preservação do gosto greco-romano. Já o gótico alemão oferecia
outra matriz criativa.
Neste cenário, a valorização sem precedentes de Shakespeare por Goethe e
pelos alemães é compreensível. Herder reclamava que mesmo seus defensores
concediam-lhe apenas, “como ao réu, o absolvo, endeusavam sua grandeza quanto
mais se viam forçados a alçar os ombros por causa dos erros”15. Por fim,
exclamava: “ah, se Aristóteles tornasse à vida e visse o uso falso e paradoxal de
suas regras aplicadas a peças completamente diversas”16, sugerindo a deturpação
no emprego das lições aristotélicas para atacar Shakespeare. “Mais que ao grego,
sinto-me próximo a Shakespeare”17, confessa Herder.
Descontada sua qualidade, Shakespeare era inglês e livre de preceitos
classicistas. Reconhecê-lo era dar crédito a um autor não francês e moderno.
Lessing, lendo a Poética na contramão do neoclassicismo, afirma que, “mesmo a
decidir a questão segundo o modelo dos antigos, é Shakespeare um poeta trágico 11 J. G. Herder, “Shakespeare”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU, 1991), p. 39.12 J. W. Goethe, “Sobre a arquitetura alemã”, in Escritos sobre arte (São Paulo, Humanitas;Imprensa Oficial, 2008), p. 43.13 Ibid., p. 44.14 Ibid., p. 45.15 J. G. Herder, “Shakespeare”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU, 1991), p. 38.16 Ibid., p. 50.17 Ibid., p. 50.
141
infinitamente superior a Corneille, embora este conhecesse muito bem os antigos
e aquele não os conhecesse em quase nada”, concluindo que “Corneille se lhes
aproxima pelo arranjo mecânico e Shakespeare pelo essencial”18. Shakespeare
trazia o desafio da invenção fora dos parâmetros tradicionais.
Não era mais a obediência à Poética aristotélica que determinaria as
grandes obras. J. M. R. Lenz escreve, com humor: “dedico grande respeito a
Aristóteles, menos às suas barbas”19. Racine e Corneille não eram os maiores da
época. Em seu lugar, estava Shakespeare, “o deus poético de uma literatura sem
antecedentes clássicos”20, como disse Otto Maria Carpeaux. Era deixado de lado o
critério da realização enquanto cópia de um modelo fixado para que fosse
privilegiada a liberdade da criação singular. Eis a revolução na direção que
tomaria a estética moderna.
Por trás desta revolução, estava Kant. Ele não explicita sua estética através
do confronto entre românticos e neoclássicos, mas contribui, a despeito de seu
gosto pessoal, a favor dos primeiros. Do lado da criação, privilegia o gênio por
estar alheio a regras prévias que orientem a criação. Do lado da recepção,
desvaloriza a correção normativa.
Diz-se de certos produtos, dos quais se esperaria que devessem pelo menos emparte mostrar-se como arte bela, que eles são sem espírito, embora no queconcerne ao gosto não se encontre neles nada de censurável. Uma poesia pode serverdadeiramente graciosa e elegante, mas é sem espírito. Uma história é precisa eordenada, mas sem espírito. Um discurso festivo é profundo e requintado, massem espírito (…); até de uma mulher diz-se: ela é bonita, comunicável e correta,mas sem espírito.21
Do mesmo modo que Lessing acusava Corneille de se assemelhar aos
antigos apenas mecanicamente enquanto Shakespeare o fazia no essencial, Kant
afirma que certa obra pode ser correta mas sem espírito. Espírito é este essencial,
que não é garantido porque certa obra nada tem de censurável. Daí a insuficiência
da postura de censor em que Boileau se colocava. Tanto criar quanto apreciar arte
18 G. E. Lessing, “Cartas”, in De teatro e literatura (São Paulo, EPU, 1991), p. 110.19 J. M. R. Lenz, “Anotações sobre o teatro”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU,1991), p. 100.20 Otto Maria Carpeaux, História da literatura ocidental (Rio de Janeiro, Edições O Cruzeiro, s/d),p. 1473.21 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 158-159(192).
142
dizem respeito menos à correção e mais à invenção. Importa o espírito, o
“princípio vivificante da alma”22, como diz Kant.
*
Foi a teoria do gênio de Kant que abriu caminho para a concepção
romântica da criação, assim como determinou seu modo de pensar a crítica. Se o
artista, ao criar, não obedece a prescrições, a crítica, ao mesmo tempo, não
procede como avaliação da obra, já que ela não teria parâmetros prévios de
julgamento. Tampouco poderia ela apelar para a explicação do artista sobre a
criação, pois, avisava Kant, o gênio “não pode descrever ou indicar
cientificamente como ele realiza sua produção”23. Logo, a emergência do gênio na
criação trouxe consigo a transformação da crítica de arte. Ela precisaria levar em
conta que, como já dizia o pré-romântico Hamann, “quem não faz nenhuma
exceção não pode produzir obra-prima”24, ou seja, quem não foge às regras jamais
faria grande arte.
É este sentido que vai predominar na leitura feita pelos primeiros
românticos das lições poéticas aristotélicas. Se elas foram, às vezes, rechaçadas,
isso fica na conta, sobretudo, da tradição interpretativa renascentista e neoclássica.
Pois o problema era a sua identificação com as regras normativas. Por isso, aqui e
ali, encontramos violentas considerações dos românticos em relação ao filósofo
grego. “F. Schlegel considera que Aristóteles não vale nada como teórico, o irmão
August julga-o privado de sensibilidade em relação à arte (…): em geral a Poética
é considerada como doutrina meramente empírica, incapaz de servir para uma
autêntica filosofia da arte”25.
Entretanto, nem todas as considerações românticas sobre as lições
aristotélicas foram assim tão peremptórias. Tanto que August Schlegel, em suas
preleções sobre arte dramática e literatura, feitas nos primeiros anos do século
XIX, mostra que seu alvo, ao falar do filósofo grego, é a autoridade que ele
empresta para a doutrina francesa da imitação dos antigos clássicos. Para ele, se
22 Ibid., p. 159 (192).23 Ibid., p. 153 (182).24 J. G. Hamann, “De Escritos e Cartas”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU,1991), p. 27.25 Paolo d’Angelo, A estética romântica (Lisboa, Editorial Estampa, 1998), p. 142.
143
obras tão diferentes em espírito e forma quanto as tragédias gregas e as de
Corneille podem ser igualmente fiéis aos preceitos aristotélicos, isso significa que
estes são elásticos e indeterminados.
August Schlegel relê a Poética de modo distinto da tradição italiana e
francesa. Ele se impressiona, por exemplo, que o nome de Aristóteles seja usado
para falar das três unidades da dramaturgia: de ação, de tempo e de lugar. Elas
deram ensejo para Boileau afirmar que as peças teatrais desejam “que a ação se
desenvolva com arte: em um lugar, em um dia, um único fato, acabado”26. Para
Schlegel, o filósofo grego só fala de modo completo da unidade de ação, restando
vagos comentários sobre a de tempo e nada sobre a de lugar. Tampouco existiam
ali medidas empíricas determinadas para cada unidade. Seria a de tempo um dia,
uma semana, um ano? E a de lugar, seria um aposento, uma cidade ou um país?
Mais: no que diz respeito à unidade de ação, Schlegel, recuperando o sentido
filosófico e menos normativo dos escritos aristotélicos, critica que se trate tal
noção como se ela fosse auto-evidente, sem que se faça a mais importante
pergunta: o que é a ação? Boileau teria tornado empíricas as medidas que, em
Aristóteles, eram, em certo sentido, conceituais, mas continuou querendo
preservar seu valor eterno, sem reconhecer, agora, sua determinação histórica, que
sempre marca aquilo que é empírico.
De acordo com sua análise da Poética, August Schlegel chega a declarar:
“eu não me encontro, portanto, numa relação polêmica com Aristóteles”27. Isso
mostra, com clareza, que o ponto decisivo reside em como a obra do filósofo é
interpretada. Se for como mera doutrina empírica prescritiva, os românticos a
atacam. Se, no entanto, puder ser lida de modo mais descritivo e, até, reflexivo,
então os românticos a acolhem como contribuição para a formulação da moderna
filosofia da arte. Por isso, August Schlegel não critica apenas a Poética. Ele
também tenta demonstrar que suas palavras foram, não raro, deturpadas para
estruturar um conjunto de regras muito mais estreito do que de fato se encontra na
obra original. Interpretando as palavras aristotélicas de modo menos estreito, ele
chega a sugerir que as composições de Shakespeare se ajustariam a elas. E mais:
26 Nicolas Boileau, A arte poética (São Paulo, Perspectiva, 1979), p. 42.27 August Schlegel, Vorlesungen über dramatische Kunst und Literatur (Bonn, K. Schroeder,1923), Vorlesung XVII.
144
as obras dos poetas românticos também. Era a completa reversão da interpretação
tradicional das lições poéticas aristotélicas.
*
Se os primeiros românticos alemães questionaram a apropriação
neoclássica das lições poéticas aristotélicas, foi porque faziam parte já da saída
histórica da poética de natureza prescritiva e da entrada na poética de natureza
filosófica, a qual, segundo Peter Szondi, “não busca regras para aplicar na prática
nem busca diferenças para serem levadas em conta ao escrever, e sim um
conhecimento que se basta a si mesmo”, sendo que “a poética neste sentido
constitui uma esfera particular da estética em geral, como filosofia da arte”28.
Hegel seria o grande consumador desse processo no século XIX. Ele afirma que
naquelas poéticas antigas “as determinações universais que eram abstraídas
tinham de valer especialmente como preceitos e regras, segundo os quais se
deveria produzir obras de arte principalmente em épocas de deterioração da poesia
e da arte”29. Não bastasse a nota nas entrelinhas que liga as poéticas normativas
aos momentos em que a arte declina, Hegel completa: “tais médicos da arte
prescreviam para a cura da arte receitas ainda menos seguras do que os médicos
para o restabelecimento da saúde”30.
Mas, antes de Hegel, os primeiros românticos, no fim do século XVIII, já
faziam esse movimento. “Não é preciso que alguém se empenhe em obter e
reproduzir a poesia através de discursos e doutrinas racionais, ou mesmo produzi-
la, inventá-la, estabelecê-la e fornecer-lhe leis punitivas, como seria do agrado da
arte poética”31, assevera Friedrich Schlegel. Por trás do seu comentário, estava o
sentimento moderno de falta de amparo em valores antigos, já que, com isso,
perdia-se a confiança na continuidade entre o passado e o presente. Essa diferença
descoberta entre antigos e modernos levantou a necessidade do exame crítico da
arte, e não apenas avaliativo, pela simples razão de que os parâmetros de
julgamento, cuja autoridade vinha da antiguidade clássica, não pareciam dar conta
28 Peter Szondi, “Antigüedad clásica y modernidad en la estética de la época de Goethe”, inPoética y filosofia de la historia I (Madrid, La balsa de la Medusa, 1992), p. 16.29 G. W. F. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 39.30 Ibid., p. 39.31 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 30.
145
da experiência contemporânea. Luiz Costa Lima sublinha que “o crítico, no
sentido próprio do termo, supõe a intervenção teórica e não a mera aplicação de
normas preexistentes”, portanto, é porque os primeiros românticos “se encontram
em uma situação de crise que são impulsionados para o exercício crítico”32.
Essa situação de crise foi enfrentada, logo antes, pelos autores pré-
românticos do Sturm und Drang, onde recebeu solução diversa. Descartando os
homogêneos preceitos das poéticas classicistas, sobravam, para eles, as tradições
locais específicas nórdicas e, sobretudo, a singularidade do “eu” subjetivo. Esse
caminho predomina, ainda, em grande parte da poesia romântica de língua
inglesa. Daí a tese, levantada por M. H. Abrams, de que, em geral, a arte antiga é
concebida como “espelho”, enquanto a arte romântica como “lâmpada”: se a
primeira gostaria de refletir a natureza, a segunda queria criar a partir do próprio
artista enquanto gênio33. Esse esquema não funciona para os primeiros românticos
alemães, mas foi responsável por boa parte dos mal-entendidos em torno deles.
Mesmo Hegel, cujos ataques aos primeiros românticos são famosos,
reconhecia o fosso que os separava dos pré-românticos, ainda que apontando suas
carências.
Na vizinhança do reavivamento da Idéia filosófica (…) August Wilhelm eFriderich von Schlegel, desejosos do novo, na busca ávida de distinção e dosurpreendente, se apropriaram da Idéia filosófica tanto quanto eram capazes suasnaturezas que, aliás, não eram filosóficas, mas essencialmente críticas. Poisnenhum dos dois pode reivindicar a vocação do pensamento especulativo. Mas,com seu talento crítico, eles se situaram próximos ao ponto de vista da Idéia e,com grande fecundidade e ousadia na renovação, ainda que com ingredientesfilosóficos escassos, se voltaram contra os pontos de vista até então vigentes,numa polêmica cheia de espírito e, assim, introduziram em diversos ramos da arteum novo parâmetro de julgamento e pontos de vista que se situavam acima dosque eram atacados.34
Hegel teve o mérito de sublinhar o avanço da posição dos irmãos Schlegel
no que diz respeito ao estatuto filosófico da consideração sobre a arte. Eles,
porém, teriam ficado a meio caminho, porque eram críticos e não pensadores
especulativos, ou seja, filósofos. Do ponto de vista dos próprios primeiros
românticos, contudo, o que Hegel não percebera é que a crítica podia ser
32 Luiz Costa Lima, Limites da voz: Montaigne, Schlegel (Rio de Janeiro, Rocco, 1993), p. 193-194.33 M. H. Abrams, The Mirror and the Lamp (New York; London, Oxford University Press, 1971).34 G. W. F. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 80.
146
filosófica e a filosofia ser crítica, já que “toda resenha filosófica deveria ser ao
mesmo tempo filosofia das resenhas”35, como afirma Friedrich Schlegel. Se a
crítica assume, para os primeiros românticos alemães, papel tão decisivo, é porque
a própria filosofia encontra seu espaço privilegiado de exercício na forma da
crítica.
*
Benjamin foi quem decifrou o conceito de crítica de arte do romantismo
alemão. Ele justifica o emprego da palavra “crítica” pelo seu significado na
filosofia de Kant, onde ela devia escapar, de um lado, da pretensão do
dogmatismo e, de outro, do perigo do ceticismo. Por sua vez, os primeiros
românticos transportam tal solução filosófica geral para o dilema particular da arte
entre neoclássicos e pré-românticos: “aquela tendência poderia ser considerada
como dogmática, esta, em suas conseqüências, cética; então era totalmente natural
ambas consumarem a superação na teoria da arte sob o mesmo nome com que
Kant, na sua teoria do conhecimento, aplainou aquela oposição”36. Na medida em
que o neoclassicismo acreditava na verdade absoluta de suas regras para a arte,
válidas para qualquer tempo e lugar, ele se tornava dogmático. Já o pré-
romantismo, descrente daquela possibilidade, refugiava-se ceticamente nas
particularidades do sujeito. Benjamin conclui, sobre a teoria do primeiro
romantismo, que, “com respeito ao primeiro ponto, ele venceu as tendências do
racionalismo; com respeito ao segundo, os momentos destrutivos do Sturm und
Drang”37. É provável, portanto, que Friedrich Schlegel tivesse em mente,
respectivamente, o neoclassicismo e o pré-romantismo do Sturm und Drang ao
reclamar que “quase todos os juízos artísticos são universais demais ou
específicos demais”38.
Nem prescrições universais e, tampouco, a subjetividade específica: qual
é, enfim, o centro do conceito de crítica de arte do romantismo alemão? É a obra.
35 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 53 (Athenäum,Fr. 44).36 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 60.37 Ibid., p. 79.38 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 74 (Athenäum,Fr. 167).
147
Essa resposta deriva, necessariamente, da concepção da criação genial, já que esta
não se faria pela intenção subjetiva do autor empírico. Não é ele que fala. “Tudo
deve ser poetizado, de modo algum como intenção dos poetas, mas como
tendência histórica das obras”39, afirmava Friedrich Schlegel. Portanto, quem fala
é a obra. Foi o que percebeu Benjamin.
Pois o conceito de crítica de Schlegel não conquistou apenas a liberdade comrelação às doutrinas estéticas heterônimas – antes, ele possibilitou isto, pelo fatode ter posto um outro critério de obra de arte que não a regra: o critério de umadeterminada construção imanente da obra mesma. (…) Desta maneira, eleassegurou, do lado do objeto ou da conformação, aquela autonomia no campo daarte que Kant, na crítica desta, havia conferido ao juízo.40
Nesse sentido específico, os românticos desdobraram o pensamento
estético de Kant. Ele firmara a autonomia do sentimento estético em geral, desde
então protegido quanto ao julgamento prévio a partir de critérios extrínsecos como
o cognitivo, o moral, o político, o pragmático ou o ideológico. Friedrich Schlegel
acentuava a aplicação do mesmo preceito especificamente para a arte. Nesse
sentido, continuava o legado de Kant mas, ao mesmo tempo, transformava-o.
Saía-se, assim, do âmbito do juízo estético entendido apenas como sentimento,
que não faz distinção entre o belo natural e o belo artificial, para entrar na
filosofia da arte e, no caso dos primeiros românticos, mais especificamente na
crítica de arte compreendida filosoficamente. Benjamin afirma que “neste
contexto pode-se indicar sem dificuldade uma diferença entre o conceito kantiano
de juízo e o romântico de reflexão: a reflexão não é, como o juízo, um
procedimento subjetivo reflexivo, mas, antes, ela está compreendida na forma-de-
exposição da obra”41.
Nesse aspecto, os primeiros românticos adiantam o problema que, depois,
Hegel atribuíria diretamente à estética de Kant, a saber, seu subjetivismo. Tanto a
obra deve ser compreendida na sua objetividade efetiva quanto, por conseqüência,
seu acolhimento deve ser crítico, e não apenas no sentimento, para os primeiros
românticos. Friedrich Schlegel escreveu, com ironia, que, “se muitos amantes
místicos da arte, que consideram toda crítica como desmembramento e todo
39 Ibid., p. 89 (Athenäum, Fr. 239).40 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 79-80.41 Ibid., p. 94.
148
desmembramento como destruição da fruição, pensassem conseqüentemente,
então ‘oh!’ seria o melhor juízo artístico sobre a obra de arte mais apreciável”42.
Ele defende, portanto, que a arte suscite algo mais do que a admiração estupefata.
Para servir à obra, a crítica não pode ser servil a ela. Por isso, se “sempre se fala
da perturbação que a dissecação do belo artístico provoca na fruição do amante”, é
bom lembrar que “o verdadeiro amante não se deixa perturbar assim”43.
Nessa medida, os primeiros românticos avançam da contemplação
desinteressada da estética de Kant para a produtividade da reflexão crítica,
acentuando, como o próprio Kant já anotara, que essa experiência não precisa
fechar cada sujeito sobre si mesmo, mas pode, pelo contrário, fundar sua
comunicação. Interesses privados suspensos, sentimo-nos à vontade para discutir,
pois supomos poder partilhar a experiência estética em algum tipo de sentido
comum com os outros. Essa partilha, podemos arriscar, é o que se efetiva na
crítica, desde que aí os fenômenos estéticos “nos surpreendem e nos fazem
falar”44, como observou Luiz Camillo Osório. Kant estava na base do conceito
romântico de crítica.
Benjamin, em suas cartas, observou que “somente desde o romantismo, a
seguinte visão tornou-se predominante: que uma obra de arte em si e para si, sem
referência à teoria ou à moral, poderia ser compreendida apenas pela
contemplação, e que a pessoa que a contempla pode lhe fazer justiça”,
confessando: “eu teria que provar que, a este respeito, a estética de Kant constitui
a premissa fundamental da crítica de arte romântica”45. Embora o sentimento
estético não esteja mais no centro com os primeiros românticos, e sim a obra de
arte propriamente dita, foi só com o legado de Kant que eles puderam tratá-la fora
dos marcos que buscavam compreendê-la a partir de regras externas. Friedrich
Schlegel, na esteira de Kant, afirma que a poesia “é um discurso que é sua própria
lei”46.
Não seriam admissíveis leis fixadas a priori para julgar as obras de arte. É
a lei da própria obra que deve dirigir os esforços críticos, na sua singularidade. 42 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 29 (Lyceum, Fr.57).43 Ibid., p. 57 (Athenäum, Fr. 71).44 Luiz Camillo Osório, Razões da crítica (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005), p. 23.45 Walter Benjamin, The Correspondence of Walter Benjamin, 1910-1940 (Chicago, TheUniversity of Chicago Press, 1994), p. 119.46 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 30 (Lyceum, Fr.65).
149
Noutras palavras, não se trata de julgar as obras tendo como parâmetro o ideal
geral ao qual todas devem obedecer, e sim de criticá-las tendo em vista o ideal
que cada uma, em si e para si, formula individualmente. Por isso, Benjamin
afirma que “apenas com os românticos se estabelece de uma vez por todas a
expressão ‘crítico de arte’ em oposição à expressão mais antiga ‘juiz de arte’”, já
que, agora, “evita-se a representação de um tribunal constituído diante da obra de
arte, de um veredicto fixado de antemão”47. Era o que dizia August Schlegel.
Costumam chamar a si mesmos de crítica. Escrevem de modo frio, superficial,altaneiro e (…) insípido. Natureza, sentimento, nobreza e grandeza de espíritoabsolutamente não existem para eles e, no entanto, procedem como se pudessemconvocar tais coisas perante seus tribunaizinhos. Imitações da antiga mania deversificação do mundo elegante francês são a meta suprema de sua tépidaadmiração. Correção é para eles sinônimo de virtude.48
Nem juiz e nem tribunal poderiam compreender as obras de arte, já que
não é a sua correção que está em jogo, ao menos não no sentido estreito que supõe
que ela possa ser verificada por algum código exterior de regras. Pois “no sentido
mais nobre e original da palavra correção, visto que significa cultivo intencional e
desenvolvimento complementar do que há de mais íntimo e ínfimo na obra
conforme o espírito do todo, reflexão prática do artista, nenhum poeta moderno
seria mais correto do que Shakespeare”49, comenta Friedrich Schlegel.
Shakespeare estava errado de acordo com o cânone classicista, mas correto tendo
em vista a construção endógena de sua obra. Com isso, Schlegel falava de outro
tipo de correção, cujo critério é estabelecido pela própria obra, e não de fora dela
por algum suposto tribunal absoluto capaz de julgá-la.
Para tanto, era fundamental a autonomia da estética formulada por Kant e
aplicada à arte, pois a operação do conhecimento, por exemplo, era descrita pelo
próprio Kant com a metáfora do tribunal, da qual os primeiros românticos buscam
se afastar. Segundo ele, “é mister que a razão enfrente a natureza (…) a fim de
instruir-se por ela, não como um aluno que aceita docilmente tudo o que o
professor lhe dita, mas como um juiz que, no exercício de sua função, compele as
47 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 60.48 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 81 (Athenäum,Fr. 205).49 Ibid., p. 92 (Athenäum, Fr. 253).
150
testemunhas a responder às perguntas propostas por ele”50. Porque buscavam na
arte a exatidão da ciência, os neoclássicos aplicavam a ela os critérios expostos
por Kant sobre o conhecimento, compelindo as obras singulares como se fossem
réus julgados por certa legislação fixada previamente com validade genérica.
Tal procedimento era o que Kant chamava de juízo determinante. Nele, o
princípio ou a lei é dado para subsumir o particular na categoria universal. De
posse das regras, apenas as aplicamos aos casos que aparecem, que no âmbito da
arte seriam as obras. “Porém, se só o particular for dado”, diz Kant, para o qual se
“deve encontrar o universal”, então temos a faculdade “reflexiva”51. Este segundo
procedimento é o que caracteriza a estética de Kant, formulando a situação na
qual certa singularidade nos obriga a pensar a partir dela mesma, sem o amparo de
categorias gerais fixadas de antemão. É a este tipo de reflexão que se filia a crítica
de arte dos primeiros românticos alemães, já que as obras, para eles, eram sempre
singulares. Sua crítica é reflexão sobre a obra, não determinação da obra. Ela não
pode ser preconceituosa, pois não possui conceitos prévios.
Essa postura crítica era decisiva para compreender algo que a modernidade
passou a prezar: o novo. Se as obras pretendem originalidade, a crítica não pode
julgá-las com os parâmetros que já conhece, ou perderia o que trazem de novo.
Foi por isso que, muito tempo depois, Gilles Deleuze buscou dar fim ao “juízo
que supõe critérios preexistentes (valores superiores), e preexistentes desde
sempre (no infinito do tempo), de tal maneira que não consegue apreender o que
há de novo num existente, nem sequer pressentir a criação de um modo de
existência”52. É claro que os primeiros românticos já suspeitavam que o novo
podia ser banalizado, mas a discussão não se encerrava aí. “É novo ou não é: eis a
questão que, diante de uma obra, se faz do ponto de vista mais alto e do mais
baixo, do ponto de vista da história e do da curiosidade”53. Do ponto de vista da
história, caberia à crítica assimilar a novidade das obras, para que diferentes
sentidos pudessem nascer daí.
50 I. Kant, “Prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura”, in Textos seletos (Petrópolis,Vozes, 1985), p. 34 (B XIII).51 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 23(XXVI).52 Gilles Deleuze, “Para dar um fim ao juízo”, in Crítica e clínica (São Paulo, Ed. 34, 1997), p.153.53 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 54 (Athenäum,Fr. 46).
151
*
Toda a tarefa de reflexão crítica sobre as obras surge da ausência da escala
de valores prontos para julgá-las. Resta fazer certo “experimento na obra de arte,
através do qual a reflexão desta é despertada e ela é levada à consciência e ao
conhecimento de si mesma”54, afirma Benjamin. Então, a crítica não se situa fora
da obra. Ela desdobra aquilo que a própria obra põe. Ela continua a obra. Tal
continuação, porém, não é somente o acréscimo da opinião subjetiva deste ou
daquele crítico de arte. Se as opiniões forem de fato críticas, elas serão o
desenvolvimento da obra conhecendo-se a si mesma. “Na medida em que a crítica
é conhecimento da obra de arte, ela é o autoconhecimento desta; na medida em
que ela a julga, isto ocorre no autojulgamento da obra”55, diz Benjamin.
Nesse sentido, o conceito de crítica de arte do romantismo alemão
distancia-se da prática corrente. Ele não tem qualquer preocupação corporativa
com a divisão entre artistas e críticos, pois ambos devem estar a serviço da obra.
Sendo assim, o crítico não descobre o sentido último da obra, pois este, que
jamais é último, já é efetuado pela própria produtividade reflexiva da crítica
praticada. No fim das contas, como observa Benjamin, “este processo só pode ser
representado de maneira coerente através de uma pluralidade de críticos que se
substituem, se estes forem não intelectos empíricos, mas graus de reflexão
personificados”56. Não é certa pessoa ou subjetividade que vai cumprir tal
processo. É o processo de reflexão que se cumpre através da crítica e dos críticos.
Logo, “não é o crítico que pronuncia este juízo sobre a obra, mas a arte mesma, na
medida em que ela ou aceita em si a obra no medium da crítica ou a recusa”57, diz
Benjamin.
Se a obra de arte não puder ser criticada, nesse sentido especificamente
romântico, não se trataria de arte. Mas é preciso sublinhar que a afirmação só é
válida porque falamos aqui do “fundamento de uma crítica totalmente outra”58,
observa Benjamin. Esta “crítica é, então, de modo totalmente oposto à concepção
atual de sua essência, em sua intenção central, não julgamento, mas antes, por um 54 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 74.55 Ibid., p. 74.56 Ibid., p. 76.57 Ibid., p. 87.58 Ibid., p. 85.
152
lado, acabamento, complemento, sistematização da obra, e, por outro, sua
dissolução no absoluto”59. Ela é o acabamento da obra pois seu fito não é elogiar
ou condenar, já que ela não visa determinar. Seu objetivo é intensificar ou
desdobrar, ou seja, refletir. Fazendo assim, a crítica complementa a obra.
Benjamin, porém, disse ainda que a crítica dissolve a obra no absoluto. Ele
quer dizer, com isso, que a crítica liga a obra finita (que enquanto coisa concreta é
particular) ao âmbito infinito da arte (que enquanto idéia é absoluto). Toda obra
específica só é em geral de arte porque pertence ao âmbito no qual se situam todas
as obras enquanto participam da (idéia de) arte. Cabe à crítica, para os primeiros
românticos, explicitar o pertencimento da obra particular relativamente ao
absoluto da arte. Deve-se acrescentar que aquele acabamento da obra e esta sua
dissolução no absoluto feitos pela crítica não são operações diferentes: “ambos
processos coincidem”60, diz Benjamin. Eles coincidem porque o absoluto da arte
não existe completamente fora das obras. Ele é constituído pelo tecido
entremeado do conjunto das obras. Por isso, para a crítica dos primeiros
românticos, o “centro de gravidade está não na estimação da obra singular mas na
exposição de suas relações com todas as demais obras”61. Por trás dessa
explicação de Benjamin, está a concepção romântica de que todas as obras
comunicam-se entre si no âmbito da arte.
Este âmbito é o que Benjamin chama de idéia de arte ou, às vezes, de
“medium-de-reflexão”, pois é neste “medium” que as obras entram em contato
umas com as outras em certo “continuum das formas”, no qual, “por exemplo, a
tragédia se relacionaria, para o espectador, de maneira contínua com o soneto”62.
Está aí a explicação para a valorização romântica do gênero do romance como
aquele no qual todos os outros poderiam entrar em comunhão no “absoluto
literário”. Em certo sentido, os primeiros românticos concebiam a própria idéia da
arte enquanto obra. É a obra das obras, a obra que não é senão a conjunção de
todas as outras, o Livro dos livros, como se disse depois com Mallarmé.
Nesse contexto, entende-se que “o valor da obra depende única e
exclusivamente do fato de ela em geral tornar ou não possível sua crítica
imanente”, como diz Benjamin, concluindo: “se ela é possível, se existe portanto
59 Ibid., p. 85.60 Ibid., p. 85.61 Ibid., p. 85.62 Ibid., p. 94.
153
na obra uma reflexão que se deixa desdobrar, absolutizar e dissolver-se no
medium da arte, então ela é uma obra de arte”63. Em outras palavras, a crítica da
obra só é possível se esta pertence, por si mesma, à arte. Só assim a crítica pode
tomar a obra singular e torná-la absoluta ao desdobrar sua reflexão no medium
que é a arte. Por isso, essa crítica “nada mais deve fazer do que descobrir os
planos ocultos da obra mesma, executar suas intenções veladas”, pois, “no sentido
da obra mesma, isto é, em sua reflexão, deve ir além dela mesma, torná-la
absoluta”64.
*
Reconhece-se, assim, que “a obra é incompleta”65, como afirma Benjamin,
já que, por si mesma, não é absoluta. Só que a falta é positiva para os primeiros
românticos, já que “só o incompleto (…) pode levar-nos mais adiante”, enquanto
“o completo é apenas fruído”66, afirma Novalis. Daí a centralidade da crítica. Não
é a fruição estética da obra que está em primeiro plano, e sim a correspondência a
ela na linguagem crítica, que só ocorre porque a obra ainda não é completa por si.
É a crítica que a completa. É a própria obra que exige ser criticada, como
possibilidade de dissolução de si no absoluto da arte.
Desse modo, a obra liga sua finitude particular à infinitude de seu
pertencimento à arte. “Esta intensificação de consciência na crítica é, a princípio,
infinita”, atesta Benjamin, pois “a crítica é, então, o medium no qual a limitação
da obra singular liga-se metodicamente à infinitude da arte e, finalmente, é
transportada para ela, pois a arte é, como já está claro, infinita enquanto medium-
de-reflexão”67. Num fragmento, Schlegel já deixara dito que “uma obra está
formada quando está, em toda parte, nitidamente delimitada, mas é, dentro dos
limites, ilimitada e inesgotável; quando é de todo fiel, em toda parte igual a si
63 Ibid., p. 86.64 Ibid., p. 77.65 Ibid., p. 78.66 Novalis, “Fragmentos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 155.67 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 76.
154
mesma e, no entanto, sublime acima de si mesma”68. Só quando é fiel apenas a si
mesma, a obra pode estar, simultaneamente, acima de si mesma: sublime.
Essas palavras provam que à abolição das regras neoclássicas no campo da
arte não corresponde, para os primeiros românticos, o elogio de subjetividades
desenfreadas. É verdade que, diante do artista, “nenhuma crítica pode ou deve
roubar-lhe sua essência mais própria, sua mais íntima força, para refiná-lo e
purificá-lo até uma imagem comum, sem espírito e sem sentido, como se
esforçam os tolos”69. Longe, porém, de atacar a crítica em geral, discrimina-se
outro papel para ela, até diante do artista: “a elevada ciência da crítica genuína
deve-lhe ensinar de como precisa formar e educar a si mesmo, em si mesmo, e
antes de tudo a compreender toda outra manifestação autônoma da poesia em sua
clássica força e plenitude”, observa Schlegel, “para que as flores e os grãos de
espíritos alheios se tornem alimento e semente de sua própria fantasia”70. Se a
crítica pode ajudar o artista, ainda que não dependa disso para se legitimar, é
evidenciando que sua obra, por mais que enverede por caminhos distintos da de
outros, pertence ao “grande oceano universal” no qual “todas as correntes da
poesia deságuam”71. Ela pertence à arte.
Por sua vez, a crítica, enquanto acabamento da obra, situa-se, ela mesma,
dentro do campo da arte, ainda que não exatamente da mesma forma que a obra
primeira. Ela carrega a obra adiante, eleva sua reflexão, potencializa, desdobra.
Não está lá e a obra cá. Ela continua a obra. Para cumprir tal função, a crítica
experimenta transformação decisiva: a partir de agora, “de poesia, também, só se
pode falar em poesia”72, afirma Friedrich Schlegel. Segundo Benjamin, os
primeiros românticos “fomentaram a crítica poética”73. Só assim poderíamos
encontrar o dizer que corresponde ao que a arte é, sem engolfá-la em conceitos
prontos: se a poesia moderna era crítica, a crítica moderna era poética.
Seria possível escutar, aqui, ecos da concepção de Kant do que seria a
idéia estética, presente por exemplo na arte: a “representação da faculdade da
imaginação que dá muito a pensar, sem que contudo qualquer pensamento 68 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 100 (Athenäum,Fr. 297).69 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 29.70 Ibid., p. 29.71 Ibid., p. 30.72 Ibid., p. 30.73 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 77.
155
determinado, isto é, conceito, possa ser-lhe adequado, que consequentemente
nenhuma linguagem alcança inteiramente nem pode tornar compreensível”74. Não
é difícil enxergar no conceito e na prática da crítica de arte romântica a tentativa
de construção dessa linguagem que não se fecha em conceitos determinados e
acolhe a ausência da transparência compreensiva completa, para assim
corresponder ao que a idéia estética da obra de arte dá a pensar. “Pode existir um
falar de poesia que, não só lhe esteja adequado, mas que ela até exija”, diria
Heidegger tempos depois, alertando que “talvez se possa falar da poesia
poeticamente, o que, todavia, não quer dizer em versos e rimas”75. Não se trata,
portanto, de colocar o crítico para escrever em verso. Pelo contrário, seu elemento
costuma ser a prosa. Mas esta prosa, enquanto tal, é ela mesma literatura. Situa-se
dentro da arte, não fora. Também o crítico é escritor. Ele escreve crítica. Essa
valorização da dimensão da materialidade da escrita na forma de expressão é que
dá o caráter poético da crítica, cujo exercício, então, está menos distante da obra
sobre a qual fala do que, em geral, supomos. “Tanto a poesia como o pensamento
se movimentam no elemento do dizer”76, observaria Heidegger anos depois.
74 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 159(193).75 Martin Heidegger, Hinos de Hölderlin (Lisboa, Instituto Piaget, 2004), p. 13.76 Martin Heidegger, “A essência da linguagem”, in A caminho da linguagem (Petrópolis, Vozes,2003), p. 146.
9
Neo, pós ou anticlassicismo:
a imitação da antiguidade na formação moderna
De que modo podemos nos relacionar com o passado? Essa pergunta
ganha força sempre que o presente desafia a tradição precedente. Tematizar,
conscientemente, a forma pela qual estamos situados na história é, nessa medida,
já o sinal de que não pertencemos a ela de modo natural. Nesse sentido, o
nascimento daquilo que chamamos de modernidade, os “novos tempos”, ocorre
simultaneamente ao nascimento da antiguidade, já que esta, antes daquela, não
podia ser exatamente antiga. Noutras palavras: o que torna antiga a antiguidade é
a modernidade, que, ao mesmo tempo, só é moderna pois coloca outro tempo
como distinto de si mesma. Novalis gostava de dizer que, à sua época, a
antiguidade não existia, mas começava apenas a surgir, que precisava ser
produzida.
Em seu alvorecer, a consciência histórica veio à tona, sobretudo, pelo
paulatino enfrentamento do passado clássico. Seria o presente neo, pós ou
anticlássico? No sentido cronológico, só colocar em questão a relação com o
classicismo denuncia o contexto pós-clássico: não se está mais dentro dele
organicamente. Entretanto, este pós pode ser neo ou anticlássico diante do
passado. Essa dualidade balizou a famosa “querela de antigos e modernos”, que
só foi possível porque ambos situavam-se após o classicismo, quando se pergunta
por ele. Mesmo quando os franceses, seguindo os renascentistas italianos,
propõem, no século XVII, o neoclassicismo, já reconhecem estarem fora do
classicismo original. São “neo”. Podem desejar manterem-se fiéis à tradição
greco-romana, mas só por se tratar de um desejo, e não de uma certeza, já estão
fora daquele pertencimento original. Nesse sentido, são modernos, a despeito de
quererem ser como os antigos.
Foi comum, de outro lado, encarar os românticos, no século XVIII, como
se fossem o anticlassicismo, por conta de sua reabilitação da Idade Média bem
157
como de diversas culturas orientais e, sobretudo, de sua aparente oposição aos
valores clássicos. Fazendo o elogio do exagero e não da contenção, do subjetivo e
não do objetivo, do caos e não da ordem, do extravasar e não da sobriedade, da
transgressão e não da manutenção, da noite e não do dia, os românticos teriam
aberto guerra ao clima apolíneo da cultura grega. Na verdade, eles já estavam,
antes de Nietzsche, sugerindo que os gregos eram, além de apolíneos, também
dionisíacos. Mas esta é outra história, à qual voltaremos depois.
Na realidade, o maior problema de opor o romantismo ao classicismo é
que, assim, não se consegue explicar como os gregos permaneceram centrais para
o pensamento romântico, saudados como a fonte original para qual a cultura devia
voltar os olhos. Não por acaso, no que diz respeito ao cunho classicista da
maturidade de Schiller e Goethe vivida na cidade de Weimar, existem mais
convergências com seus contemporâneos românticos situados em Iena do que
discordâncias: “os paralelos entre os dois grupos de autores, classicistas e
românticos, parecem óbvios”1. Tanto que é comum acusar os românticos de
nostálgicos2 ou de estarem sob a tirania da cultura grega3, o que, a rigor, não é o
caso. É verdade, contudo, que os primeiros românticos buscavam, nas palavras de
Friedrich Schlegel, “a perspectiva de um classicismo crescendo sem limites”4.
*
Não é possível compreender a profundidade da relação dos românticos
com o classicismo apenas no nível descritivo. Não adianta listar elementos que
caracterizariam um e outro lado, sem refletir sobre o fundo filosófico que os
explica. Este fundo diz respeito ao problema da história, resumido por Goethe ao
afirmar que “fazemos a experiência do que está ausente, à qual pertence a
experiência do passado, através de uma autoridade alheia; a experiência do que
está presente deveríamos fazer por autoridade própria”5. Porém, essa dialética
histórica, de acordo com ele, não é feliz: “a natureza do indivíduo é 1 Ernst Behler, German Romantic Literary Theory (Cambridge, Cambridge University Press,1993), p. 2.2 Jacques Taminiaux, La nostalgie de la Grèce à l’Aube de l’Idealisme Allemand (Haia, MartinusNijhoff, 1967).3 E. M. Butler, The Tyranny of Greece over Germany (Boston, Beaon Press, 1935).4 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum, Fr.116).5 J. W. Goethe, Máximas e reflexões (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003), p. 31.
158
completamente insuficiente para fazer ao mesmo tempo as duas coisas como
convém”6. Ela não relaciona, com facilidade, presente e passado. No caso aqui, a
questão é, como diz Hölderlin, “o ponto de vista segundo o qual devemos encarar
a antiguidade”.
Sonhamos com formação, piedade, etc., mas não possuímos nenhuma. Sãoapenas pretensão – sonhamos com originalidade e autonomia, acreditamosenunciar o novo em alto e bom tom, mas tudo isso não passa de reação, de umaespécie de vingança suave contra a escravidão que norteia o nossorelacionamento com a antiguidade. Parece que, realmente, quase não se ofereceuma outra escolha senão deixar-se soterrar pelo já assumido, pelo positivo ou,com a mais violenta soberba, contrapor a vida de nossas forças a tudo o que foidado, aprendido, a todo o positivo.7
Sonhamos com a construção da cultura própria do nosso tempo, com nossa
formação. Desejamos autonomia, ou seja, dar a nós a nossa própria lei, de nossa
época, ao invés de tomá-la emprestada. Porém, esta pretensão esbarra na solidez
do “já assumido”, da positividade do dado, que eclipsa a abertura da negatividade
daquilo que ainda não é. Mesmo buscando o novo, os modernos são dominados
pela reação, tornando-se, ainda, escravos da antiguidade que querem negar, pois
no esforço para vencê-la, acabam por mantê-la como o ponto de orientação
contrastante para o presente.
Eis a bifurcação histórica em que estava a modernidade: afirmar o presente
sobre o passado ou deixá-lo a ele subordinado, contrapor com “violenta soberba”
a força do atual a tudo o que foi feito ou “deixar-se soterrar” pelo que já está
formado? Este “tudo ou nada” foi recusado pelos primeiros pensadores
românticos, assim como por Hölderlin. Friedrich Schlegel, por exemplo, diluía a
oposição do romantismo moderno à antiguidade clássica, ao afirmar que “somente
quando forem encontrados o ponto de vista e as condições da identidade absoluta
que existiu, existe ou existirá entre antigo e moderno, se poderá dizer que ao
menos o contorno da ciência está pronto”8.
Logo, não é estranho que abundem, no romantismo, elogios aos gregos.
Tanto que, ao formularem algum cânone, os românticos concedem a eles o
primeiro posto. Falando sobre “épocas da arte poética”, por exemplo, louvam 6 Ibid., p. 31.7 F. Hölderlin, “O ponto de vista segundo o qual devemos encarar a antiguidade”, in Reflexões(Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994), p. 21.8 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 71 (Athenäum, Fr.149).
159
Homero. “Na planta homérica vemos também o surgimento de toda poesia; mas
as raízes se subtraem ao olhar, e as flores e os ramos da planta brotam
inconcebivelmente belos da noite da antiguidade”9. Passagens assim suscitaram a
acusação de “grecomania”, embora seja claro, para Friedrich Schlegel, que
“jamais se deveria evocar o espírito da antiguidade como uma autoridade”10.
É que o elogio aos gregos não fez com que os românticos buscassem fazer
renascer a cultura antiga. Não se tratava de voltar aos gregos, mas de voltar os
olhos para eles. É aí que as coisas começam a se complicar, ao mesmo tempo que
ficam interessantes. Embora admirassem a arte grega, os românticos não foram
soterrados pela antiguidade, graças à pioneira importância que concederam à
história. Segundo Friedrich Schlegel, “a ciência da arte é sua história”11. Esta
perspicácia histórica impediu que os primeiros românticos, mesmo venerando os
gregos, os colocassem como modelo fora do tempo a ser copiado.
Se o elogio à antiguidade não deixa conceber o romantismo como
anticlassicismo, o sentido histórico os coloca longe do neoclassicismo. Nenhuma
recriação da cultura grega, para eles, seria possível ou mesmo recomendável, já
que roubaria, de antemão, a possibilidade do simples nascimento da cultura
moderna, ainda que ela deva ser considerada através da referência à antiguidade.
É nesta fronteira entre a identidade e a diferença com a antiguidade clássica que se
constrói o pensamento romântico alemão.
*
No pré-romantismo, a discussão entre modernos e antigos já estava posta.
Seu apego Shakespeare, por exemplo, estava atrelado ao fato de que o dramaturgo
inglês era sinônimo de modernidade, pois sua obra livrara-se das regras clássicas.
Em torno dele, os pré-românticos juntavam-se para afirmar a criação artística
original do presente, enfrentando a “maldição de ser-nos difícil pensar como os
antigos, uma vez que se deseja apanhar o pensamento sem expressão”12.
Buscando regras antigas para realizar artisticamente a modernidade, por confiar 9 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 35.10 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 27 (Lyceum, Fr.44).11 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 35.12 J. G. Herder, “Da terceira coleção de fragmentos”, in Autores pré-românticos alemães (SãoPaulo, EPU, 1991), p. 31.
160
serem elas universais e atemporais, esquece-se que, por mais elevadas que sejam,
foram criadas numa época específica, a ela pertencendo. Seria preciso, assim,
achar a forma originalmente moderna para tratar dos temas modernos, longe do
“palavrório estético no qual o pensamento é tratado em separado da expressão”13,
para falar ainda com Herder. Líder do pré-romantismo, ele foi severo crítico das
Luzes, pois contestava “que a natureza humana era fundamentalmente a mesma
em todos os tempos e lugares”. Ele “não era nacionalista; supunha que diferentes
culturas podiam e deviam florescer proveitosamente lado a lado como tantas
flores pacíficas no grande jardim humano”, atacando só os “cosmopolitismo e
universalismo ocos”14, como atesta Isaiah Berlin. Para Herder, cada cultura
possuía seu próprio centro de gravidade, logo, a modernidade não poderia girar
em torno do centro antigo.
Para Friedrich Schlegel, que compartilha o problema de Herder mas não
sua solução, trata-se da “estranha predileção que poetas modernos têm pela
terminologia grega para designar seus produtos”15. Por isso, os pré-românticos
voltaram-se, muitas vezes, para tradições locais, buscando a inspiração para a
produção de uma arte original. Para Herder, por exemplo, “o poeta que queira
reinar sobre a expressão deverá permanecer fiel à sua terra; nela poderá plantar
palavras poderosas, pois que conhece o país; aqui poderá colher flores, pois que a
terra lhe pertence”, de onde conclui que “a disposição verdadeira só se estampa na
língua materna”16. Essa aproximação metafórica entre a exploração da linguagem
na escrita e a do país na geografia, cara à retórica pré-romântica, tinha por
objetivo apontar outro ponto de referência para a poesia que não os antigos
gregos, bem como outras tradições formuladas não universal, mas localmente. Daí
que muitos contos ficcionais do romantismo alemão sejam incursões mágicas ou
fantásticas no folclore.
*
13 Ibid., p. 31.14 Isaiah Berlin, “O Contra-Iluminismo”, in Estudos sobre a humanidade (São Paulo, Companhiadas Letras, 2002), p. 273 e 284.15 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 27 (Athenäum,Fr. 45).16 J. G. Herder, “Da terceira coleção de fragmentos”, in Autores pré-românticos alemães (SãoPaulo, EPU, 1991), p. 33.
161
No caso dos primeiros românticos, a antiguidade grega não foi renegada
como, às vezes, o fizeram os pré-românticos. É verdade que eles abriram o leque
de influências e fontes para a criação moderna, desvendando alternativas à
tradição greco-romana. Mas não a abandonaram. Pelo contrário, como vimos, os
primeiros românticos tinham em alta conta a antiguidade e jamais deixariam para
trás sua riqueza poética. Tampouco, contudo, deixariam de submetê-la ao crivo da
história. Já em 1794, Friedrich Schlegel expunha esses dois lados da questão, em
seu ensaio Sobre o estudo da poesia grega.
Não faltam, neste texto, louvores à antiguidade, na qual poderíamos “fruir
a pura beleza” ou encontrar a “perfeição despretensiosa”17. Segundo Schlegel, “a
poesia grega verdadeiramente atingiu o limite último da formação natural da arte e
do gosto, o mais alto cume da livre beleza”18. Muitas vezes, esses comentários
resvalam mesmo na sensação de superioridade dos antigos sobre os modernos,
carentes da firme solidez cultural grega.
“Este estado é chamado de época de ouro”19, escreve Schlegel. Porém, ele
segue afirmando que “o prazer que as obras da época de ouro grega proporcionam
admite, certamente, acréscimo”20. De que modo obras perfeitas poderiam sofrer
ampliação ou aumento? Poucos anos depois, junto do irmão August Schlegel,
Friedrich descartaria os gregos como época de ouro da cultura. Eles falam, então,
da “imagem enganosa de uma época de ouro passada”, porque, dizem, “se houve
a época de ouro, não foi exatamente dourada”, afinal, “ouro não pode enferrujar
ou ser corroído”21. Entra em jogo, aqui, a questão da história. Se fosse de ouro, a
época escaparia do tempo, pois o ouro, seguindo a metáfora, não corrói, ficando a
salvo do movimento da história. Logo, o fato de não sermos mais clássicos prova
que os próprios clássicos não são de ouro.
Essa perspectiva, exposta pelo primeiro grupo romântico fixado em Iena
no ano de 1799, já aparecia, mesmo que mais tímida, no texto de Friedrich
Schlegel de 1794. Seu título é sintomático desta tomada de sentido histórico face
à antiguidade: Sobre o estudo da poesia grega. Embora sua redação sugira a
17 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 184 (298).18 Ibid., p. 175 (287).19 Ibid., p. 175 (287).20 Ibid., p. 175 (287).21 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 90 (Athenäum,Fr. 243).
162
inclinação clássica do autor, favorável à arte grega, sua abordagem parte da
situação moderna e espera contribuir para seu aprimoramento. Não é à toa que o
texto abre com as seguintes palavras: “é óbvio que a poesia moderna ou ainda não
alcançou o objetivo em direção ao qual se esforça, ou que seu esforço não possui
objetivo estabelecido, sua formação nenhuma direção específica”22. É a questão
da formação cultural moderna que comanda a reflexão sobre a antiguidade, por
sua vez ponto de referência crucial em tal empreitada. Deve-se, pois, sublinhar, no
título do texto, a palavra “estudo”. É a discussão sobre como a arte grega será
encarada ou estudada que importa – para compreender os desafios do presente.
*
De que modo deveria ser estudada a poesia grega? Esta pergunta é chave
para compreender a relação do romantismo com a antiguidade, que não se resume
à oposição. Existe, porém, oposição ao estudo neoclássico do classicismo, que o
transformara em padrão eterno e, lançando mão das lições poéticas aristotélicas,
pretendia decifrar os segredos da boa produção e correta avaliação de toda arte.
Era isso que August Schlegel tinha em mente ao declarar que “o estudo dos
antigos foi pervertido fatalmente”23. Mesmo Goethe, tantas vezes crítico dos
românticos, juntava-se a eles nisso, ao afirmar que “fragmentos do tratado sobre a
arte poética fornecem uma estranha visão de Aristóteles”, pois “se precisaria antes
de todas as coisas tomar contato com o modo de pensar filosófico deste homem
para compreender como ele considerou esta manifestação artística”24.
Foi essa apropriação neoclássica das lições aristotélicas que fez com que,
algumas vezes, os primeiros românticos se voltassem para Platão. Pois, ao
contrário do que Boileau e outros neoclássicos fizeram com o pensamento de
Aristóteles, em Platão a reflexão sobre a arte não se manifestava na forma de
regras ou determinações concretas sobre o fazer poético. Não era doutrina
empírica prescritiva, mas reflexão filosófica especulativa.
22 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 113 (217).23 August Schlegel, Vorlesungen über dramatische Kunst und Literatur (Bonn, K. Schroeder,1923), Vorlesung I.24 J. W. Goethe, Máximas e reflexões (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003), p. 142-143.
163
Esta reavaliação também trouxe uma mudança decisiva na relação prevalecentecom a antiguidade clássica, que pode ser descrita como uma saída da influênciaromana e aristotélica, dominante sobre a crítica européia, em troca de um laçomais forte com os gregos e especialmente com a tradição platônica.Anteriormente, os gregos haviam mantido seu impacto na história da estéticasobretudo através dos romanos, bem como através das várias adaptações daPoética, de Aristóteles. Seguindo Winckelmann e a tradição do humanismogermânico, os Schlegel tentaram acabar com esta forma de classicismo através doestabelecimento de uma conexão mais próxima com o mundo estético dos gregose se referindo diretamente às declarações sobre poesia de Platão…25
Embora Platão tivesse expulsado os poetas da república ideal que
imaginou, sua doutrina, para os românticos, parecia mais filosófica do que a
tradição aristotélica que lera as lições poéticas do mestre de modo parcial, sem
levar em conta o seu pensamento. Fora isso, os românticos sentiam-se atraídos
pela reflexão platônica acerca da natureza não empírica do belo, que dava asas
para os vôos de sua própria filosofia da arte. No que nos interessa aqui, cabe
destacar que contestar a poética aristotélica visava desautorizar a estética
neoclássica e, assim, tirar da antiguidade o valor de modelo a ser obedecido.
Nesse sentido, Winckelmann foi um discreto precursor do romantismo, a
despeito de sua crença clássica no ideal apolíneo fixo de beleza grega na “nobre
simplicidade e calma grandeza”26. É que, como mostrou Gerd Bornheim, “sua
importância histórica não repousa apenas no fato de defender entusiasticamente os
antigos, mas sobretudo em saber problematizá-los, em perguntar o que se deve
entender por ‘antigo’”27. Foi este último ponto que o fez especialmente relevante
para os românticos em geral.
No caso do “humanismo germânico”, a influência de Lessing, a despeito
dos valores iluministas que o afastavam do romantismo, foi sentida pelos
Schlegel, por conta da contestação pioneira do neoclassicismo no teatro.
Nós, alemães, reconhecemos com bastante sinceridade que ainda não possuímosum teatro. O que muitos de nossos críticos de arte, que concordam com essaconfissão e são grandes admiradores do teatro francês, pensam ao dizer tal coisaeis algo que não posso realmente saber. Mas sei bem o que penso disso. Pensoefetivamente que não só nós, alemães, mas os que se gabam de ter há cem anos
25 Ernst Behler, “The Impact of Classical Antiquity on the Formation of the Romantic LiteraryTheory of the Schlegel Brothers”, in Zoran Konstantinovic, Warren Anderson e Walter Dietze,Classical Models in Literature (Innsbruck, Amoe, 1981), p. 139.26 J.-J. Winckelmann, Réflexions sur l’imitation des oevres grecques en peinture et en sculpture(Paris, Aubier, s/d), p. 142-143.27 Gerd Bornheim, Páginas de filosofia da arte (Rio de Janeiro, Uapê, 1998), p. 79.
164
um teatro, que se jactam até de ter o melhor teatro de toda a Europa, que tambémos franceses ainda não têm um teatro.28
Por trás da provocação nacionalista de Lessing, estava o drama da
“imitação de segundo grau”29, como a chamaram Philippe Lacoue-Labarthe e
Jean-Luc Nancy: os alemães viam-se forçados a imitar a imitação dos antigos que
França e Itália exportavam, ficando não só privados de sua identidade, mas até
dos seus próprios meios de imitação. Reeditar aquele classicismo, portanto, não
seria suficiente para o teatro. Era preciso contestar o predomínio de Molière,
Corneille e Racine, para valorizar o gênio poético inglês de Shakespeare, exemplo
de liberdade face às regras antigas objetivas, já que ele não dependera da tragédia
grega como modelo empírico para sua criação própria.
*
Todo o modo romântico de olhar a antiguidade está amparado no sentido
histórico de que a “arte é infinitamente perfectível”30, conforme escreveu
Friedrich Schlegel. Shakespeare era a prova de tal perfectibilidade, levando a arte
até alturas que mesmo os gregos não poderiam imaginar. Esta é a cifra do sentido
histórico da arte, ao qual está submetida inclusive a antiguidade, pois “um
máximo absoluto em sua contínua evolução não é possível: porém, um máximo
relativo, condicionado, uma aproximação permanente, insuperável, é possível”31.
Logo, a antiguidade não é o máximo absoluto, mas apenas o máximo
relativamente condicionado ao seu tempo. Não criaram os antigos “simplesmente
uma beleza sobre a qual nada mais belo poderia ser pensado”32. Tanto poderia que
os modernos voltam os olhos para os gregos para criar sua beleza sobre a deles.
Desse modo, embora destituída do valor modelar eterno, a arte grega faz parte da
aproximação, jamais superável, do absoluto. Ela conta, segundo Schlegel, como
28 Lessing, “Dramaturgia de Hamburgo”, in De teatro e literatura (São Paulo, EPU, 1991), p. 82.29 Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, O mito nazista (São Paulo, Iluminuras, 2002), p.36.30 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 176 (288).31 Ibid., p. 176 (288).32 Ibid., p. 175 (288).
165
“exemplo que compreende a idéia inalcançável, que se torna aqui, essencialmente,
completamente visível”33.
Embora o ensaio Sobre o estudo da poesia grega ainda traga, em seu bojo,
certo respeito às regras e leis de construção poética oriundas dos gregos, Friedrich
Schlegel já lança aí sua revolucionária consideração sobre a antiguidade, mesmo
que de modo ambíguo. É o preço que, em geral, pagam os pioneiros: são menos
resolutos e livres de contradições que seus epígonos. Essa ambiguidade, contudo,
não diminui o quanto sua reflexão transformou o modo de pensar a relação dos
modernos com os antigos, que agora tinham reconhecida sua qualidade estética
sem que, para isso, fosse necessário destituí-la de sua natureza histórica e forçá-la
ao patamar atemporal.
Este é o ponto de vista segundo o qual devemos encarar a antiguidade,
como diria Hölderlin. Porém, ao mudar a forma de olhar a antiguidade, os
românticos, ao mesmo tempo, descobriram, por assim dizer, outra paisagem,
diferente daquela imagem forjada pelo neoclassicismo. De súbito, os gregos
apareciam não mais como o povo solar do dia, mas como a cultura cuja fonte
escondida era a noite escura. Lá deitavam as raízes de sua arte e, aliás, a
relevância da forma dramática da tragédia. “Igualmente misturados na mente de
Sófocles estavam a divina intoxicação de Dionísio, a profunda inventividade de
Atena e a calma prudência de Apolo”34, escreveu Friedrich Schlegel.
É aí que reside a importância da descoberta romântica da ambivalência da
cultura grega como apolínea e dionisíaca, depois retomada pela filosofia de
Nietzsche. Na medida em que não era mais concebida unilateralmente através do
princípio apolíneo solar da ordem harmônica, a antiguidade não fornecia,
objetivamente falando, a luz que desse orientação precisa. Seu princípio
dionisíaco, de desmesura, retirava dela a precisão e o equilíbrio das medidas, pois
a noite antiga era a fonte de onde brotava sua beleza. Esta ambivalência corrompia
a solidez necessária a qualquer imagem que se queira modelar ou prescritiva.
“Este caos formado de maneira estimulante é a semente a partir da qual se
organizou o mundo da poesia antiga”, escreveu Friedrich Schlegel já no coração
do grupo romântico de Iena, revelando que, “assim como os sábios procuram na
33 Ibid., p. 175 (288).34 Ibid., p. 184 (298).
166
água o começo da natureza, a poesia mais antiga também se mostra em fluídas
feições”35.
Nesse sentido, acompanha a mudança de relacionamento que os
românticos têm com a antiguidade certa alteração no que significa a própria
antiguidade. Longe de ser modelo estável, ela é fluída, logo, não pode ser copiada.
É apenas certa formação cultural exemplar, que não pode ser repetida, mas pode
ser observada e, assim, tem muito a ensinar – pois ali os gregos souberam dar
forma ao informe, mantendo-se na linha fina que separa e une a ordem e o caos, o
ser e o nada. Suas produções artísticas “podem ser um insuperável exemplo no
qual todo o propósito da arte torna-se tão manifesto quanto é possível em uma
obra de arte efetiva”36, sugere Schlegel. Elas não devem ser copiadas na
objetividade empírica, mas imitadas no seu gesto diante do mundo. Logo, a
antiguidade não precisa nos soterrar e nós não precisamos fazer oposição a ela
com violenta soberba.
*
No romantismo alemão, era apontada a renovação da relação que a
modernidade podia entreter com a antiguidade, ou seja, que o presente podia
estabelecer com o passado. Para se alcançar a grandeza propriamente clássica, não
seria preciso ser tutorado pela sua autoridade transformada em cânone normativo.
Não era só o que, nas obras modernas, lembrasse as obras antigas que deveria ser
estimado. Nos artistas capazes de produzir algo próprio, o entusiasmo pelos
antigos não os tornava modelos, mas estímulo e alimento. Por isso, suas obras não
resultariam em exercícios escolares eventualmente corretos mas sem espírito,
capazes no máximo de suscitar, como gostava de dizer August Schlegel,
“admiração frígida”. Essas obras, por mais embebidas que fossem dos clássicos,
trariam impresso o selo da genialidade original, ao contrário da monotonia da
cópia. Se Shakespeare era o caso paradigmático dessa situação, os primeiros
românticos não cessaram, contudo, de dar outros exemplos. Já era este o caso de
Dante, segundo August Schlegel: reconhecendo Virgílio como seu mestre, ele
35 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 35.36 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 180 (293).
167
produziu uma obra que difere radicalmente da Eneida. E ele não era um caso
isolado.
O que preserva os poemas heróicos de um Tasso e de um Camões vivos até osdias de hoje nos corações e nos lábios de seus compatriotas não é, de modoalgum, sua semelhança imperfeita a Virgílio, ou mesmo a Homero, mas, emTasso, o sentimento delicado de amor cortês e honra, e, em Camões, a inspiraçãoincandescente de patriotismo heróico.37
Todos esses exemplos são mobilizados para que seja sublinhado o mesmo
ponto: a qualidade das obras de arte não está na imitação dos clássicos antigos,
mas na sua própria originalidade. Daí o papel do gênio do artista, tal como foi
teorizado na estética de Kant. Segundo ele, “o gênio opõe-se totalmente ao
espírito de imitação”38. Imitar, aqui, significa copiar apenas. Porém, o próprio
Kant sinaliza que, ainda assim, os produtos do gênio são “exemplares”39. Imitar,
agora, ganha outro sentido. Todo artista pode seguir o exemplo do outro, desde
que não simplifique tal operação na forma da cópia fiel. Kant admite que “é difícil
explicar como isto seja possível”, mas não abre mão de afirmar que tais produtos
geniais são “os únicos meios de orientação para conduzir a arte à posteridade”40.
Imitar, portanto, é a base da historicidade da arte, graças à qual ela ganha sua
posteridade, mas apenas na medida em que essa continuidade se dá pelas
sucessivas originalidades que não tomam o modelo como norma, mas sim como
exemplo que inspira.
Retomando Kant, os primeiros românticos afirmam, com August Schlegel,
que a “mera imitação é sempre estéril; mesmo quando pegamos algo emprestado
de outros, para que assuma forma verdadeiramente poética, deve nascer
novamente conosco”41. Na arte antiga, os românticos não procuravam modelos
que pudessem ser seguidos, do mesmo modo que, nas lições poéticas aristotélicas,
não queriam achar prescrições práticas. Não se deveria reproduzir os gregos, mas
imitar seu exemplo, que era, para os românticos, ele mesmo original: “a
37 August Schlegel, Vorlesungen über dramatische Kunst und Literatur (Bonn, K. Schroeder,1923), Vorlesung I.38 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 154(183).39 Ibid., p. 153 (182).40 Ibid., p. 155 (186).41 August Schlegel, Vorlesungen über dramatische Kunst und Literatur (Bonn, K. Schroeder,1923), Vorlesung I.
168
antiguidade inteira é um gênio”42, escreveu Friedrich Schlegel. Imitar os gregos
seria, ao mesmo tempo, não imitá-los, já que eles não imitaram ninguém.
Não é à toa, então, que J. Winckelmann foi decisivo para os românticos.
Embora anterior a eles, Winckelmann fora pioneiro ao colocar a paixão pelo
mundo clássico antigo sob a exigência de contribuir para a formação específica e
original do mundo moderno. Em suas Reflexões sobre a imitação das obras
gregas na pintura e na escultura, de 1755, ele afirmava: “o único meio de nos
tornarmos grandes e, se possível, inimitáveis é imitar os antigos”43. Recuperava,
assim, a definição clássica da poesia como imitação, mas só para torcê-la, já que o
objetivo é oposto: tornar-se inimitável. Nesta fórmula paradoxal, os primeiros
românticos acharam o apontamento que, a despeito do caráter clássico do autor,
prenunciava seus ideais. Ela impunha, para eles, o desafio de serem inimitáveis
em sua modernidade mas, ao mesmo tempo, afirmava que necessariamente só se
poderia alcançar isto através da imitação dos antigos. Em jogo estava, como disse
Friedrich Schlegel, a “percepção da diferença absoluta entre antigo e moderno”44,
que implicava acatar os riscos da criação artística fora da continuidade serena da
tradição hegemônica, já que o presente não seria mais o mero prolongamento do
passado.
Em suma, o perfil histórico do romantismo é desenhado a partir do
contraste entre o passado antigo e o presente moderno, ao mesmo tempo em que,
a rigor, é assim que se define também o perfil da história de acordo com o
romantismo. Reconhecida, então, a diferença absoluta entre o passado e o
presente, aquele não pode mais servir de modelo para este, pois se instala um
fosso entre ambos. Sendo assim, a idéia de imitação dos antigos, como notara
Winckelmann, tornava-se problemática, já que devia estar sob a égide do presente
distinto do passado. Mudava-se o conceito de “mímesis”, de imitação.
“Este é o caráter da verdadeira imitação”, afirmou Friedrich Schlegel,
completando ainda que “o modelo, para o artista, é apenas estímulo e meio para
individualizar os pensamentos daquilo que pretende criar”45. Ele sugeria certa
42 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 91 (Athenäum,Fr. 248).43 J.-J. Winckelmann, Réflexions sur l’imitation des oevres grecques en peinture et en sculpture(Paris, Aubier, s/d), p. 94-95.44 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 71 (Athenäum,Fr. 149).45 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 75.
169
comunicação não excludente entre o velho e o novo, já que a “afetação não surge
tanto do esforço em ser novo, quanto do temor de ser antigo”46. Nesse sentido, a
arte clássica grega é estimada no romantismo enquanto fonte de onde pode jorrar
inspiração poética exemplar para a própria modernidade. “Para nós, modernos,
para a Europa, esta fonte se encontra na Grécia”, dizia Friedrich Schlegel. E
mais: “lá havia uma fonte incessante de poesia oniplasmável, um poderoso caudal
de representação em que cada onda da vida se derrama sobre a outra”47.
Transformar todo este poderoso mar de vida da poesia grega em normas e
regras seria, no limite, traí-la. Seria fazer do seu belo arabesco que combinava
figuras diversas a partir do caos da fantasia criativa apenas a diretriz de alguma
ordem geral fixa e sem vida. Eis o perigo da interpretação neoclássica oriunda das
lições poéticas aristotélicas: secar a fonte de criação, ao torná-la legislação. Por
isso que, embora tendo em alta conta a arte grega clássica, Friedrich Schlegel não
podia aceitar que dela se derivasse a normatividade pretendida pelo
neoclassicismo.
A mais infeliz idéia que já se teve – e muitos dos traços de sua prevalência geralainda persistem – foi esta: atribuir à crítica e à teoria da arte gregas umaautoridade que, no reino da ciência teórica, é completamente inaceitável.Acreditava-se ter achado a efetiva pedra filosofal da estética; regras isoladas deAristóteles e epigramas de Horácio foram usados como talismãs poderosos contrao demônio mal da modernidade.48
Não por acaso, Friedrich Schlegel, ao escrever isso, falava “sobre o estudo
da poesia grega”, não sobre a poesia grega propriamente dita. Ele recusa o estudo
tradicional das lições poéticas aristotélicas, que, de afirmativas e comentários
isolados, teriam passado a conjunto normativo estruturado, fundando a sabedoria
teórica sobre como fazer, na prática, boa arte. Tal conjunto normativo, sob o
guarda-chuva da autoridade do filósofo antigo, teria garantido a proteção contra a
tempestade moderna.
Seguindo com a metáfora, poderíamos dizer que, para os românticos,
“quem está na chuva é para se molhar”. Eles não querem se proteger da
modernidade, mas nela mergulhar. Não querem fugir do tempo pelo subterfúgio
46 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 35 (Lyceum, Fr.101).47 Ibid., p. 35.48 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 218.
170
de eternizar como absolutas regras que são históricas. Para eles, o absoluto não
pertence à antiguidade, mas a antiguidade faz parte do absoluto. Por isso, embora
não forneça regras universais acima da história, ela deve ser olhada com toda a
atenção, já que aí se expressa o absoluto. “Se o absoluto se externaliza no
empírico, então não é adequado ver esta externalização como um ato
essencialmente repetitivo e atemporal”, logo, “era necessário examinar esta
articulação do absoluto como um processo histórico”49, como reparou Suart
Barnett.
*
“Hegel é, para mim, o pai da história da arte”50, afirmou Ernst Gombrich.
Poder-se-ia deslocar, na sua sentença, apenas a filiação paternal de Hegel. Ele é
mais a mãe da história da arte, que gera e entrega para o mundo, já pronta, a
criança nascente – na nossa metáfora, a historicização da arte. No lugar de pai,
daquele que insemina pela primeira vez, estão os primeiros românticos, que
exigiam, ao lado da “mais profunda especulação”, também “a história da arte mais
erudita”51, de acordo com Friedrich Schlegel.
Eles despertaram para o sentido histórico da arte, que seria, depois,
apropriado, com maior força, por Hegel, para quem o absoluto não fica fora da
história, mas se realiza na história e como história – o que vale inclusive para a
exposição do absoluto na arte. “Tratamos da arte nascendo da própria idéia
absoluta e até mesmo indicando a exposição sensível do próprio absoluto como
sua finalidade, devemos proceder junto a esta visão panorâmica”52, afirma Hegel.
Nos seus cursos de estética, essa visão panorâmica deve ser a história que “mostre
como as partes singulares se originam do conceito de belo artístico em geral
enquanto exposição do absoluto”53.
49 Stuart Barnett, “Critical Introduction: The Age of Romanticism: Schlegel from Antiquity toModernity”, in Friedrich Schlegel, On the Study of Greek Poetry (New York, State University ofNew York Press, 2001), p. 13.50 Ernst Gombrich, “Hegel e a História da Arte”, in Revista Gávea, n. 5 (Rio de Janeiro, PUC-Rio,1988), p. 57.51 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 90 (Lyceum, Fr.121).52 F. W. G. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 86.53 Ibid., p. 86.
171
Porém, a despeito da proximidade de Hegel, as diferenças entre ele e os
românticos são grandes. Pois o modo romântico de pensar a história não possuía o
sentido teleológico que Hegel lhe emprestava, ou seja, não tinha norte fixo algum
para o qual, a priori, tendesse. Menos ainda achavam os românticos, como Hegel,
que o caminhar do tempo tivesse fim, lugar no qual, chegando lá, cessasse o
caminho. Daí a perspectiva de Friedrich Schlegel da “infinita perfectibilidade” da
arte, que lhe abre a possibilidade de crescer para sempre, fora de qualquer marco
finalista. Entende-se, agora, porque Schlegel podia enunciar, paradoxalmente, um
“classicismo crescendo sem limites”.
Portanto, a presença da história na compreensão da arte, com os
românticos, não foi totalizante como em Hegel. Mesmo assim, mudara o modo de
pensar a relação do presente moderno com o passado clássico, que deixava de ser
a norma atemporal para a arte, já que, para os românticos, “os antigos (…) não
possuem o monopólio da poesia”54, como afirmou Friedrich Schlegel. Só por isso,
o próprio Hegel pôde reconhecer que “o mérito de ter dado forma clássica à
beleza sensual foi sem dúvida para os gregos, mas o classicismo representa apenas
uma fase da arte”55, como afirmou Gombrich.
De Hegel em diante, a compreensão da arte pela história tornou-se
preponderante, até sufocante às vezes. Porém, naquele momento, o sentimento era
o oposto. Historicizar a arte era dar a ela o ar que lhe faltava por conta da
subordinação ao classicismo enquanto modelo eterno a ser obedecido. Foi isso
que fizeram os românticos, liberando a arte de tais compromissos e, ao mesmo
tempo, sem enclausurá-la numa estrutura sistemática rígida. Para August
Schlegel, o combate era contra os que “reclamavam para os antigos uma
autoridade ilimitada, e com grande aparência de razão, desde que eles são
modelos a sua própria maneira”56. Modelos a sua própria maneira quer dizer: a
arte antiga é absoluta dentro de seu próprio jeito, é o máximo condicionado ao seu
tempo, não o incondicionado fora da história que serviria de lei para qualquer
época.
54 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 34 (Lyceum, Fr.91).55 Ernst Gombrich, “Hegel e a História da Arte”, in Revista Gávea, n. 5 (Rio de Janeiro, PUC-Rio,1988), p. 58.56 August Schlegel, Vorlesungen über dramatische Kunst und Literatur (Bonn, K. Schroeder,1923), Vorlesung I.
172
Pode-se dizer que os românticos tiraram o absoluto dos antigos e
colocaram os antigos no absoluto. Por isso, classificá-los como anticlassicismo
não é adequado, embora menos ainda realocá-los como neoclássicos. “Schlegel
não procura opor a Grécia e a literatura moderna; antes, procura construir uma
reflexão produtiva, crítica”57, afirmou Franz Mannemeier. No contexto pós-
clássico, os românticos refundam a relação da modernidade com a antiguidade –
aquela não se atrasa por olhar para esta. “Sob esta premissa, poder-se-ia afirmar,
paradoxalmente, que o mais avançado tipo de modernidade consiste naquela
mentalidade que possui a mais viva relação com os gregos”, notou Ernst Behler,
para quem a singularidade da posição romântica alemã foi que nela “classicismo e
modernidade entram em uma relação de forte interação, uma comunicação
ausente na França, na Inglaterra e em todos os outros tratamentos da querela entre
os antigos e os modernos”58. Não seria pelo grau de recusa ou endosso da
antiguidade que seria medido o vigor da modernidade, mas pela capacidade de
com ela interagir.
*
Goethe foi sagaz ao afirmar que “classicismo e romantismo, impulso
corporativo e liberdade profissional, manutenção e esfacelamento do solo
fundamental: é sempre o mesmo conflito, que sempre gera, por fim, um novo”,
portanto, “o procedimento mais sensato do regente seria moderar de tal modo esta
luta que, sem declínio de um dos lados, ele pudesse se equilibrar”59. Esta deve ter
sido a esperança de Hegel ao buscar a síntese feliz dos opostos dialéticos.
“Todavia, isto não é dado ao homem, e Deus também parece não desejá-lo”60,
afirma Goethe, aqui mais próximo dos românticos. Para estes, entretanto, o
romantismo não é apenas um dos termos do conflito, e sim o nome de sua
aceitação. Se eles, às vezes, tentaram ser o regente que moderaria a luta até o
equilíbrio, sabiam que o esforço não evitava o restabelecimento, a cada vez, do
conflito. Entretanto, Goethe, em geral, não os entendia assim, como prova a 57 Franz Norbert Mannemeier, Friedrich Schlegels Poesiebegriff Dargestellt anhand derLiteraturkritischen Schriften (München, Fink, 1971), p. 22-23.58 Ernst Behler, German Romantic Literary Theory (Cambridge, Cambridge University Press,1993), p. 4.59 J. W. Goethe, Máximas e reflexões (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003), p. 21.60 Ibid., p. 21.
173
passagem abaixo, em que ele postula que a origem da oposição entre classicismo
e romantismo vinha de suas discussões e obra.
O conceito de poesia clássica e de poesia romântica, que hoje corre o mundo etantas discussões provoca, veio originalmente de mim e de Schiller. Eu seguia napoesia a máxima objetividade e não queria aceitar nenhuma outra. Mas Schiller,que via tudo subjetivamente, considerava a sua atitude a única justa e, para sedefender contra mim, escreveu o ensaio acerca da poesia ingênua e da poesiasentimental. Demonstrava que eu, contra a minha própria vontade, continuava aser romântico, e que a minha Ifigênia, por causa do predomínio que nela tem osentimento, não era de modo algum clássica, ao gosto antigo, como se poderiasupor. Os Schlegel se apoderaram da idéia e a lançaram, a ponto que hoje toda agente fala de Classicismo e de Romantismo, quando há cinqüenta anos ninguémse lembrava de tal.61
Essas palavras de Goethe fazem suspeitar que ele não via que, para os
primeiros românticos, não resolveríamos a relação com os antigos por afirmação
ou negação. Fadados ao contato com eles, porém, poderíamos abandonar o que
Ernst Behler chamou de “versão pobre da modernidade”, que é a “mera separação
do classicismo”, em prol da “modernidade genuína”, que “possui um
relacionamento igual com o classicismo e é uma posição dinâmica em relação
àquele mundo”62. Sem essa proposital ambivalência de sua posição histórica,
dificilmente entendemos os primeiros românticos alemães. Sua ausência de
alguma negação mais contundente do classicismo63, aliás, “explica a talvez
confusa presença de um anseio quase neoclássico pela antiguidade junto com a
firme convicção de que a cultura contemporânea é irrevogavelmente distinta da
antiguidade”64, conforme comentou Stuart Barnett. Só aparentemente, contudo, há
aí contradição. Pois “os grandes poetas e artistas”, observou August Schlegel,
“seja qual for a força de seu entusiasmo pelos antigos e seja qual for a
61 J. W. Goethe, Conversações de Goethe com Eckermann (Lisboa , Vega, 1990), p. 240-241.62 Ernst Behler, German Romantic Literary Theory (Cambridge, Cambridge University Press,1993), p. 105.63 Neste cenário, é possível que os primeiros românticos concordassem com o que, muitos anosdepois, pensaria Benedetto Croce, ao escrever que “quando se começa a experimentar o cansaçoda infecunda defesa de um ou outro ponto de vista parcial; quando,s obretudo, das obras de artecomuns, que são produto da escola romântica e da clássica, das obras convulsionadas pela paixão edas friamente decorosas, se desvia o olhar não dos discípulos, mas dos mestres, não dosmedíocres, mas dos grandes; vê-se então que o contraste se afasta para longe, e deixa-se de ter apossibilidade de usar uma ou outra palavra de ordem das escolas: os grandes artistas, as grandesobras, ou as partes grandes daquelas obras, não podem chamar-se nem românticas nem clássicas,nem passionais nem representativas, porque são a um só tempo clássocas e românticas”. BenedettoCroce, Breviário de Estética / Aesthetica in nuce (São Paulo, Ática, 1997), p. 49.64 Stuart Barnett, “Critical Introduction: The Age of Romanticism: Schlegel from Antiquity toModernity”, in Friedrich Schlegel, On the Study of Greek Poetry (New York, State University ofNew York Press, 2001, p. 9.
174
determinação de seu propósito de entrar em competição com eles, são compelidos
por sua independência e originalidade mental a desbravar seu caminho próprio”65.
Era o que a modernidade precisava.
Nesse contexto, poderíamos dizer que os primeiros românticos saem
daquele paradigma que já foi chamado, na esteira de Philippe Lacoue-Labarthe,
de (simples) “imitação dos antigos” para entrar no (mais complexo) da “imitação
dos modernos”, que é “ordenada a partir de uma perspectiva de ‘superar’ os
antigos, não segundo uma simples inversão do problema, do tipo: a cópia é
melhor do que o original, que permanece em realidade submissa à mesma
ordenação”, e sim segundo “uma repetição dos antigos, na qual se repete o que
eles em realidade nunca foram”66. Imitar os antigos seria, assim, retomá-los, mas
esta retomada jamais reproduz apenas o que foi. Ela traz o que ali não foi.
Eis aí a originalidade da descoberta da antiguidade feita pelos primeiros
românticos. Esta descoberta era, ela mesma, a produção da antiguidade. Repetido,
portanto, era aquilo que os antigos não foram, alojando a diferença no seio mesmo
da imitação que, ao contrário do conceito tradicional, não seria só cópia. Somente
assim, acreditavam os românticos, “a antiguidade encanecida tornar-se-á de novo
viva”67, como diz Schlegel. Novalis, por sua vez, escreve, com todas as letras, que
“através do estudo assíduo e espirituoso dos antigos surge apenas agora uma
literatura clássica para nós – a qual os antigos mesmos não possuíam”68.
Simultaneamente à criação de sua modernidade, os primeiros românticos criavam
também a sua antiguidade.
Imitar deixava de se opor à formação singular de si próprio. Imitar a
antiguidade, pelo contrário, seria parte constitutiva da construção própria, não só
copiada, da época moderna. Márcio Seligmann-Silva, em ensaio sobre o assunto,
afirmou que “esse modelo de formação do próprio por meio da imitação é
evidentemente uma atualização da antiga lei retórico-poética da imitação como
princípio da criação”69. Imitar seria, portanto, criar, já que, como dissemos, o que
65 August Schlegel, Vorlesungen über dramatische Kunst und Literatur (Bonn, K. Schroeder,1923), Vorlesung I.66 Virginia de Araujo Figueiredo e João Camilo Penna, “Introdução”, in Philippe Lacoue-Labarthe,A imitação dos modernos (São Paulo, Paz e Terra, 2000), p. 10-11.67 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 52.68 Novalis, apud Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (SãoPaulo, Iluminuras, 1999), p. 120.69 Márcio Seligmann-Silva, “A formação da Alemanha a partir da Grécia: Winckelmann e F.Schlegel”, in O local da diferença (São Paulo, Ed. 34, 2005), p. 292.
175
é repetido é o que não foi, já que a antiguidade é, ela mesma, criada pela
modernidade, como queria Novalis. Seu amigo Friedrich Schlegel afirma que
para pode traduzir perfeitamente dos antigos para o moderno, o tradutor teria dedominar tanto este último que, se necessário, poderia fazer todo o moderno, masao mesmo tempo entender tanto o antigo que, se necessário, não poderia apenasimitá-lo, mas também criá-lo de novo.70
Imitação não seria só o que parece. Seria tradução e esta, por sua vez, é
criação. Nenhuma experiência foi tão aguda, neste aspecto, quanto as traduções
propriamente ditas de Hölderlin para o alemão das tragédias gregas. Tal contato
em geral com os gregos teria sido apontado filosoficamente, por exemplo, pelo
pensador holandês Hemsterhuis, que “soube delimitar belamente um âmbito
moderno pela simplicidade antiga”71, segundo August Schlegel. Hemsterhuis já
observava, é verdade, “que os gregos jamais copiaram as obras dos egípcios, e
que se pode considerar que as artes nasceram de fato entre eles”72. Nada poderia
atrair mais os primeiros românticos alemães do que isso.
Não é, portanto, no conteúdo para o qual os primeiros românticos olham
que compreendemos sua posição diante do classicismo, se é de afirmação ou de
negação. Pois, nesse caso, está claro: é de afirmação, já que eles não cessam de
olhar para o classicismo. Mais que isso. Eles gostariam, em certo sentido, de ser
clássicos, já que, segundo Friedrich Schlegel, “um escrito clássico jamais tem de
poder ser totalmente entendido” e “aqueles que são cultos e se cultivam têm, no
entanto, de querer aprender sempre mais com ele”73. Este é exatamente o objetivo
da própria escrita dos primeiros românticos alemães. Porém, o que muda, e os
distingue de seus contemporâneos neoclássicos, é a forma pela qual olham para
isso que olham, a antiguidade. Esta forma não é a da obediência cega que copia o
modelo passado, mas a da apropriação criativa da fonte que inspira o futuro. Era o
anúncio do primeiro nascimento da modernidade estética de vanguarda.
70 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 126 (Athenäum,Fr. 393).71 Ibid., p. 95 (Athenäum, Fr. 271).72 Franz Hemsterhuis, “Carta sobre a escultura”, in Sobre o homem e suas relações (São Paulo,Iluminuras, 2000), p. 33.73 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 23 (Lyceum, Fr.20).
176
“Daquilo que os modernos querem é preciso aprender o que a poesia deve
vir a ser; daquilo que os antigos fazem, o que ela tem de ser”74, escreveu Friedrich
Schlegel. Futuro (como vir a ser) entra em contato com o passado (como o que
tem de ser) no presente (como o que fica entre ambos). Nesse sentido, a relação
dos antigos com os modernos, de acordo com os primeiros românticos, seria
aquela em que, afirma ainda Schlegel, “o mestre disciplinasse a sério o discípulo,
mas também lhe deixasse, no suor de seu rosto, uma base sólida como herança,
sobre a qual o seguidor devesse então avançar sempre mais, com grandeza e
audácia, para finalmente movimentar-se com liberdade e habilidade nas mais
orgulhosas alturas”75. Goethe, a despeito de suas críticas aos românticos, parecia
afinado com eles ao escrever os seguintes versos no Fausto.
O que hás herdado de teus pais,Adquire, para que o possuas,O que não se usa, um fardo é, nada mais,Pode o momento usar tão só criações suas.76
74 Ibid., p. 33 (Lyceum, Fr. 84).75 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 35.76 J. W. Goethe, Fausto: uma tragédia – Primeira parte (São Paulo, Ed. 34, 2004), p. 85.
10
Fragmentos de vanguarda:
a consciência do instante
Sabemos que a palavra “vanguarda” possui origem no vocabulário militar.
Designa aquelas tropas que, na situação de combate, vão à frente, abrem caminho.
Literalmente, portanto, vanguarda diz respeito ao espaço, à ocupação do lugar
adiantado no terreno. Metaforicamente, contudo, a expressão foi deslocada e
passou a dizer respeito ao tempo. Mais especificamente, por analogia ao
significado original, vanguarda passou a designar, no âmbito da cultura e
especialmente no da arte, os que estão à frente do seu tempo, ou seja, que, embora
situados no presente, de alguma forma apresentam, dentro dele, o futuro,
colocando sob nova perspectiva até mesmo o passado. Não é preciso, portanto,
colar às vanguardas o valor da pura ruptura, como tantas vezes se fez tendo em
vista operações poéticas de movimentos artísticos do começo do século XX. Pelo
menos, não precisamos pensá-las como simples corte com o passado. Basta
lembrar a apropriação que os modernos primeiros românticos alemães faziam dos
clássicos gregos, sem negá-los. Se as vanguardas rompem, elas o fazem no
sentido de que abrem algo. Rompem o tempo como as tropas no espaço, abrem
algum âmbito que, antes, não conhecíamos. Elas vão à frente neste sentido. Para
tal, muitas vezes entram em choque com os soldados que preferem, tomados pelo
medo, não se movimentar, protegendo o homem da passagem, do tempo.
Nem sempre as vanguardas quiseram, contudo, avançar dentro da lógica
estrita do progresso, pois este envolve melhoria: o que é posterior seria também
superior. Muitas vezes, o caráter crítico da modernidade tinha a função de colocar
em marcha esta lógica. Era o motor que, negando o passado, nos carregaria até o
futuro sonhado. Se, entretanto, a modernidade é a época da crítica, como dizia
Friedrich Schlegel1, as vanguardas foram, em geral, tão modernas que fizeram
1 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, Carl HanserVerlag, 1970), p. 532.
178
crítica da crítica, opondo-se ao tempo exclusivamente linear e progressivo. Esta
ambivalência foi observada por Octavio Paz, para quem “a relação do romantismo
com a modernidade é ao mesmo tempo filial e polêmica”, já que, “filho da idade
crítica, seu fundamento, sua certidão de nascimento e sua definição são a
mudança”2. Ser de vanguarda, então, não seria necessariamente progredir em
linha reta pré-determinada seguindo o mandamento moderno mais óbvio, e sim,
como o avanço em algum campo desconhecido, mudança, movimento,
descoberta.
Não que as vanguardas desejassem a mudança por si mesma. Mas é que só
com ela novas descobertas poderiam ser feitas. Por isso, “a vanguarda se move”3,
como pontuou Clement Greenberg. Só com ela poderíamos fugir às convenções
que aprisionam a arte, a filosofia e a vida em formas pretensamente corretas e,
assim, arriscarmo-nos no tempo, ou seja, nas transformações em geral. Naturalizar
essas formas seria negar a história. É dentro deste contexto que compreendemos a
famosa tematização feita por Octavio Paz sobre a conexão entre romantismo e
vanguarda. Para ele, “os futuristas, os dadaístas, os ultraístas, os surrealistas, todos
sabiam que sua negação do romantismo era um ato romântico que se inscrevia na
tradição inaugurada pelo romantismo: a tradição que nega a si mesma para
continuar-se, a tradição da ruptura”4.
Rupturas vanguardistas, portanto, não se fazem, como dizíamos, por
simples gosto. São feitas em prol da liberação daquilo que está em jogo, seja a
arte, a filosofia ou a vida. Por isso, as vanguardas surgem do sentimento de
aprisionamento em algum cárcere que desviava a arte, a filosofia e a vida de sua
potência. Para os primeiros românticos alemães, por exemplo, devia parecer que o
neoclassicismo em relação à arte, a forma exclusiva do sistema em relação à
filosofia e a burguesia em relação à vida eram prisões assim. Seria preciso,
portanto, liberá-las, apontando outro caminho através da vanguarda. Trilhar este
caminho significava encarar o desafio de aproximar arte e vida, gesto primordial
quando tratamos do vínculo entre romantismo e vanguardas. Em seu mais famoso
fragmento, Friedrich Schlegel declarara que o romantismo queria “tornar viva e
2 Octavio Paz, A outra voz (São Paulo, Siciliano, 1993), p. 37.3 Clement Greenberg, “Vanguarda e kitsch”, in Arte e cultura (São Paulo, Ática, 2001), p. 26-27.4 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 133.
179
sociável a poesia, e poéticas a vida e a sociedade”5. Esta divisa faz com que
possamos falar dos primeiros românticos alemães como antecipação do caráter
vanguardista dos movimentos artísticos do século XX. Também fez com que eles
adiantassem dilemas que viriam a ser, depois, o de outras vanguardas, como o da
autonomia da arte. Pensemos nele.
Para discutir a polêmica questão da autonomia da arte, partiremos da
tematização tardia feita pela teoria da vanguarda de Peter Bürger. De um lado, foi
a autonomia que concedeu à arte liberdade de pesquisa estética sem precedentes,
afinal, a arte, agora autônoma, não estava subordinada a outras esferas que
controlassem suas experiências. De outro lado, esta autonomia ameaçava redundar
em simples isolamento, afastando a arte da vida e esta daquela. Por isso, “os
movimentos europeus de vanguarda podem ser definidos como um ataque ao
status da arte na sociedade burguesa”, já que aí “é negada não uma forma anterior
de manifestação da arte (um estilo), mas a instituição da arte como instituição
descolada da práxis das pessoas”6. Já era este o problema que, anos antes das
vanguardas do século XX, enfrentavam os primeiros românticos alemães.
Friedrich Schlegel afirmava que a filosofia da arte deveria começar “com a
autonomia do belo, com a proposição segundo a qual está e deve estar separado
daquilo que é verdadeiro e daquilo que é moral, e tem os mesmos direitos que
estes”7. Ele segue, assim, exatamente o ensinamento da autonomia da estética
estabelecida por Kant, já que seu assunto, o belo, deve ser apartado do verdadeiro,
que é o assunto do conhecimento, e do bem, que é assunto da moral. Somente
assim, a beleza poderia ganhar sua liberdade e, por conseqüência, a arte exercitar
suas experimentações livre de coerções. Entretanto, logo após afirmar essa tese,
Friedrich Schlegel completa que, se aquele é o fundamento da filosofia da arte,
ela, contudo, “terminaria com a unificação total”8.
Peter Bürger observou que há aí a presença de certa contradição. “Pois a
(relativa) liberdade da arte frente à práxis vital é, ao mesmo tempo, a condição de
possibilidade do conhecimento crítico da realidade”, diz ele, completando ainda
que “uma arte não mais segregada da práxis vital, mas que é inteiramente 5 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum, Fr.116).6 Peter Bürger, Teoria da vanguarda (São Paulo, Cosac Naify, 2008), p. 105.7 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 92 (Athenäum, Fr.252).8 Ibid., p. 92 (Athenäum, Fr. 252).
180
absorvida por esta, perde – juntamente com a distância – a capacidade de criticá-
la”9. Sem absolver a contradição que aí existe, é preciso ter em vista que, para os
primeiros românticos, a própria vida devia ser digna do experimentalismo que a
arte, com sua autonomia, torna possível. Inventar a vida significa levar a arte até
ela. Por isso, Friedrich Schlegel afirmou que “todo homem que é culto e se cultiva
também contém um romance em seu interior” – e acrescentou que “não é, porém,
necessário que o exteriorize e escreva”10. Nós poderíamos ainda dizer: bastaria
que este homem o vivesse de fato, e a arte estaria na sua vida.
Para Schlegel, a descoberta de que a arte extrapola para a vida
supostamente fora dela fizera o personagem Wilhelm Meister, no romance
homônimo de Goethe, abandonar o teatro. Percebera que a arte não estava só no
palco, e sim na sua formação como pessoa. Soma-se a este acontecimento no
conteúdo do enredo, a forma em que ele é contado, empregando o contato da
prosa vital com a poesia artística. “Mediante o diálogo entre a prosa e a poesia,
perseguia-se, de um lado, vitalizar-se a primeira por sua imersão na linguagem
comum e, de outro, idealizar a prosa, dissolver a lógica do discurso na lógica da
imagem”11, como sublinhou Octavio Paz. Foi ele, ainda, a chamar atenção para
que, diferentemente do neoclassicismo ou do barroco, “o romantismo apagou as
fronteiras entre a arte e a vida: o poema foi uma experiência vital e a vida adquiriu
a intensidade da poesia”12. Dorothea Schlegel dizia que, se a sociedade burguesa
tornava difícil carregar a arte até a vida, podíamos, ao menos, colocar vida na arte.
Partindo da autonomia da arte, os primeiros românticos a conectaram com
a vida. Pretendia-se, com ela, preservar a vida que é da arte. Pois a arte possui sua
própria força vital, é tão viva quanto o resto do que chamamos de vida. Logo, não
precisa subordinar-se a outras esferas do real. Nesse sentido, a autonomia da arte
era a chance de proteger a sua vida, pois a defendia dos critérios petrificados da
tradição neoclássica que, pretendendo-se atemporal, não acolhia as
transformações da época moderna. Essa autonomia da arte é sustentada pelo que
há de vital na própria arte. Ela, assim, abre o caminho de comunicação com a vida
– pelo reconhecimento do que há de vida na arte e do que há de arte na vida.
9 Peter Bürger, Teoria da vanguarda (São Paulo, Cosac Naify, 2008), p. 197.10 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 32 (Lyceum, Fr.78).11 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 83-84.12 Ibid., p. 86.
181
Este objetivo estava em jogo na própria exposição propositalmente
fragmentária do pensamento dos primeiros românticos. Segundo Friedrich
Schlegel, “um fragmento tem que ser como uma pequena obra de arte, totalmente
separado do mundo circundante e perfeito e acabado em si mesmo como um
porco-espinho”13. Esta separação do mundo circundante e este acabamento em si
mesmo fazem com que o fragmento seja comparável à obra de arte. Ele possui
autonomia. Esta, porém, é estranhamente comparada ao porco-espinho. É que,
como este animal, o fragmento defende-se das pretensões de predadores que,
vindos de fora, desejam abocanhá-lo. São os espinhos do fragmento que não
deixam que ele, como obra de arte, seja explicado por categorias externas. Ele
defende-se, assim, da aplicação de conceitos definitivos sobre si. Sempre que
atacassem os fragmentos, seus predadores acabariam cheios de espinhos enfiados
no rosto. Simultaneamente, está aí a comunicação desta autonomia com a vida.
Predadores como os preconceitos estéticos, as categorias filosóficas prontas ou
instituições da sociedade burguesa acabam com espinhos encravados em si, ou
seja, são contaminados por algo que, antes, pertencia apenas às obras ou aos
fragmentos, cujo acabamento, então, não se basta. Fechando-se em si mesmo, o
fragmento, como o porco-espinho, projeta-se para fora. Ele é o projeto dos
românticos. Sendo assim, a arte de escrever em fragmentos pretendia, ao mesmo
tempo, proteger-se do mundo circundante e comunicar-se com ele, embora esta
comunicação, como fica claro pela metáfora, não fosse serena ou tranqüila, mas
violenta, tensa – espinhosa.
Por isso, ainda que exercitando a autonomia em seus próprios escritos
filosóficos, os primeiros românticos os publicavam em revistas. Já se mostra, aí, a
pretensão de participar ativamente da vida social da época, ou seja, de penetrar
nela com a arte. Intervir pontualmente nesse sentido é sintomático do objetivo de
poetizar a sociedade através da crítica de seu estado dado. Esta crítica começava
já no próprio modo de produção dessas publicações, que punha em jogo
exercícios nada habituais para a organização burguesa cristalizada, como a
formação de grupo com vínculos afetivos fora do padrão. Resultado: o coração do
primeiro grupo romântico alemão foi a revista Athenäum.
13 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 82 (Athenäum,Fr. 206).
182
*
Sabemos que, quase sempre, as vanguardas suscitam polêmica. Esse
efeito, porém, não é circunstancial. Suas polêmicas, programadas ou não, são
conseqüências do que é a própria vanguarda. Na medida em que, de certo modo,
projeta-se à frente de seu tempo, a vanguarda tende a entrar em conflito com o seu
próprio presente, afinal, ela está no futuro. Ela é o futuro penetrando no presente.
Suas obras e seus escritos, por isso, pretendiam operar certa temporalidade
distinta da cronologia óbvia. Deviam ser pedaços do próprio futuro lançados no
presente. Daí, aliás, a tendência a publicar revistas, ou seja, de fazer circular a
presença deste futuro no próprio presente concreto em que as vanguardas estavam
situadas. Em nada disso as poucas edições da revista publicada pelos primeiros
românticos fogem à regra, aliás, nem mesmo no fato de terem sido poucas
edições, outra marca das vanguardas. Suas melhores revistas costumam perecer
rapidamente. Friedrich Schlegel, certa feita, tentou responder algumas das
polêmicas que envolveram este órgão de publicação do grupo. Seus argumentos aí
presentes são sintomáticos. Para ele, a culpa pela ausência de capacidade
compreensiva do que o grupo dizia não estava necessariamente em seus escritos,
mas possivelmente nos leitores. Eram eles que, situados apenas no presente,
talvez não tivessem como entender o futuro que tinham diante de si.
Se os pré-românticos alemães quiseram, tantas vezes, desbancar o passado
em prol dos direitos do presente, os primeiros românticos ousaram algo além. Eles
queriam alojar fragmentos do futuro no próprio presente, como gesto de
transformação na história. Podemos chamá-lo, empregando a palavra que depois
seria do gosto de Nietzsche, de intempestivo, “ou seja, contra o tempo, e com isso,
no tempo e, esperemos, em favor de um tempo vindouro”14. Trata-se da
perspectiva descontínua de história, que busca, na contramão do que defendia
Hegel, pensar o presente não só como ponto cronológico no progresso permanente
da história. É o que justifica a tensão suscitada pelas publicações dos primeiros
românticos em seu ambiente cultural. Para Peter Bürger, “nos movimentos
históricos de vanguarda, o choque do receptor se transforma no mais elevado
14 Friedrich Nietzsche, Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem dahistória para a vida (Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2003), p. 7.
183
princípio da intenção artística”15. Embora seja exagerada sua observação, este
choque, derivado do estranhamento provocado pela produção de algo novo, de
fato era conseqüência típica das vanguardas. Mas apenas conseqüência, e não o
fator proposital tencionado acima dos outros. Ele era o efeito daquela situação de
dissonância no tempo, em que o ainda não conhecido do futuro penetrava no já
sabido do presente, forçando este em direção ainda não experimentada.
Ironicamente, como era seu gosto, Friedrich Schlegel explicou que a falta de
compreensão de seus escritos devia-se a que eles falavam de “tendências”,
colocando a presença do futuro no presente. Daí o “escândalo” que provocaram.
Já quanto a ser ou não da opinião de que todas essas tendências serão resolvidas ecorrigidas por mim, ou por meu irmão ou por Tieck, ou por alguém mais donosso grupo, ou apenas por filhos nossos, ou netos, ou bisnetos, netos vinte e setegerações distantes, ou apenas no Juízo Final, ou nunca: isso eu deixo à sabedoriado leitor, a quem esta questão realmente pertence.16
Repare-se no deslizamento semântico das palavras de Schlegel, que
sutilmente enfatizam que a compreensão ou não dos escritos dos primeiros
românticos alemães era questão de tempo, do tempo. No futuro, quem sabe, eles
seriam melhor entendidos. Schlegel afirma que a questão pertence aos leitores,
mas, ao mesmo tempo, sugere que estes ainda estão por vir, já que os atuais
podem não ser contemporâneos daquilo que as vanguardas dizem: uns estão no
presente, outros no futuro. Escrevendo no final do século XVIII, Schlegel afirma
que no século seguinte “o pequeno enigma de incompreensão da Athenäum será
também resolvido”, já que “então existirão leitores que saberão como ler”17. Ele
completa, ainda, que “no século XIX todos serão capazes de saborear os
fragmentos com tanta satisfação e prazer nas horas depois do jantar”18.
Fragmentos foram o gênero da vanguarda dos primeiros românticos
alemães. Muitas vezes, eles soavam como aforismos, mas sua aparência empírica
não dá conta do que eram. Tanto que, para Schlegel, “um diálogo é uma cadeia ou
coroa de fragmentos”, assim como “um epistolário é um diálogo em escala
15 Peter Bürger, Teoria da vanguarda (São Paulo, Cosac Naify, 2008), p. 51.16 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 535.17 Ibid., p. 539.18 Ibid., p. 539.
184
ampliada e memórias, um sistema de fragmentos…”19. Lembremos de sua
Conversa sobre a poesia. Ela seria fragmentária. Importa que “no dialeto dos
fragmentos a palavra significa que tudo agora é apenas uma tendência”20. Esses
fragmentos apontam tendências, não estados dados. São, por isso, vanguardistas.
Seus fragmentos não são póstumos ou auxiliares às suas obras centrais. Pelo
contrário, são a forma predileta de exposição romântica porque descentralizam a
ordem dada, porque a fragmentam. Eles expõem, assim, sua própria modernidade.
Se “muitas obras dos antigos se tornaram fragmentos”, afirma Friedrich
Schlegel, “muitas obras dos modernos já o são ao surgir”21. Por conta dos
percalços e destruições da história, escritos pré-socráticos, aristotélicos e outros
transformaram-se em fragmentos e assim chegaram até nós. Seu caráter
fragmentário foi efeito de causas externas às obras. Por sua vez, as obras
modernas, diferentemente das clássicas, já nascem fragmentadas. São frutos de
percalços e destruições do pensamento, que ao refletir constantemente sobre si
não entretém contatos perfeitos com o mundo. São problemáticos desde sua
origem. Fazem parte daquele contexto moderno descrito com fortes cores por
Lukács, quando
uma totalidade simplesmente aceita não é mais dada às formas: eis porque elastêm ou de estreitar e volatilizar aquilo que configuram, a ponto de podersustentá-lo, ou são compelidas a demonstrar polemicamente a impossibilidadede realizar seu objeto necessário e a nulidade intrínseca do único objetopossível, introduzindo assim no mundo das formas a fragmentariedade daestrutura do mundo.22
Escrever em fragmentos responde à crise do pensamento como a
compreenderam os românticos, proveniente, de um lado, da descoberta da
diferença absoluta entre modernidade e antiguidade através de Winckelmann e, de
outro lado, do abalo que Kant promovera na filosofia, descartando o realismo
tradicional e fundando a filosofia crítica. Nos dois casos, a objetividade nos
critérios para o belo na arte e para a verdade na filosofia era francamente
19 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 58 (Athenäum,Fr. 77).20 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 535.21 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 51 (Athenäum,Fr. 24).22 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 36.
185
questionada. Foi no descrédito desta objetividade que se fundamentou o trabalho
romântico da forma na filosofia, na linguagem dos fragmentos.
“Neste sentido, os românticos aludiram ao mesmo tempo sob o nome da
crítica ao reconhecimento da insuficiência inevitável de seus esforços, procuraram
mostrá-la necessária”23, observou Benjamin. Seus fragmentos seriam críticos e,
como vimos, apenas tendências, já que não se completavam em si mesmos. Nesse
sentido, opunham-se ao predomínio do sistema como forma completa e totalizante
de expressão filosófica.
*
Em seus fragmentos, os primeiros românticos carregavam e
transformavam certo gênero de escrita que os precedia. Eles mesmos citam
Chamfort e Le Rochefoucauld, com suas máximas. Poderíamos falar dos
moralistas franceses e ingleses, de Pascal, ou do pré-romântico alemão Hamann.
Há o precedente dos ensaios de Montaigne. Nenhum desses textos é tal e qual os
fragmentos dos primeiros românticos, mas partilham algumas de suas
características: a ausência de acabamento de que falamos, a estruturação de escrita
que não segue apenas cadeias de deduções e argumentações mas buscam pontuar
pensamentos e, ainda, a capacidade de tratar de diversos assuntos de natureza
distinta no mesmo escopo.
Daí surge a polêmica da expressão fragmentária do pensamento dentro do
contexto da filosofia moderna, que, a despeito das exceções, apegava-se à forma
sistemática, cuja consumação viria com Hegel. Sem apaziguar a diferença que
separa fragmento e sistema, o pensamento contraditório dos primeiros românticos
alemães não buscou só abandonar o segundo pelo primeiro. Para Friedrich
Schlegel, “é igualmente mortal para o espírito ter um sistema e não ter nenhum”,
de onde conclui: “ele terá portanto de se decidir a vincular as duas coisas”24. Esta
percepção quanto à filosofia aplicava-se também à poesia, que não deveria ser
“pura e simplesmente dividida” nem “permanecer una e indivisível”, mas sim
23 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 59.24 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 55 (Athenäum,Fr. 53).
186
“alternar entre separação e vínculo”25. Foi o que Schlegel fez, suportando esse
paradoxo.
Tal paradoxo foi explicado por Maurice Blanchot. Segundo ele, os
românticos estavam “ao mesmo tempo afirmando o absoluto e o fragmentário, a
totalidade, mas de uma forma que, sendo todas as formas, ou seja, no limite sendo
nenhuma, não realiza o todo mas o significa ao suspendê-lo, até o quebrando”26. É
que o próprio todo absoluto, para os românticos, era quebrado. Para chegar até
ele, então, só pelo fragmento. Esta forma era, assim, o contato com o absoluto
desde que ele, toda vez que nos aproximamos, ausenta-se. Se fragmento é sempre
fragmento de alguma coisa, ou seja, de um todo, este todo, contudo, é sempre já
perdido para os primeiros românticos alemães. Seus fragmentos testemunham e
explicitam a ausência daquele todo de que eles são fragmentos.
Essa perspectiva relativizava as expectativas de perfeição das obras em
geral, já que, para os primeiros românticos, nenhuma delas poderia encerrar a
completude de si mesma quando colocadas sob o pano de fundo do absoluto. Em
suma, o acabamento das obras deixava de ser o critério fundamental de seu valor,
já que sua falta de completude seria essencial, e não circunstancial. Por isso,
Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy escreveram que “o fragmento
designa a exposição que não pretende à exaustividade, e corresponde à idéia, sem
dúvida propriamente moderna, de que o inacabado pode, ou mesmo deve, ser
publicado (ou ainda à idéia de que o publicado não é nunca acabado)”27.
Por isso, o fragmento jamais vem sozinho. Sua forma é plural. Estamos
sempre diante de fragmentos, já que aquilo que cada um deles procura não pode
ser atingido. Ele, então, aponta para outro. Entretanto, neste tampouco
encontramos o que procuramos: a solução, a resposta. Incompleto por excelência,
o fragmento nos envia para outro, em busca da completude que jamais vem.
Montando e desmontando simultaneamente o seu próprio conjunto
constantemente, os fragmentos não cessam. Eles colocam o sentido daquilo que
dizem em movimento. Sendo “animal gregário”, conforme observou Victor-Pierre
Stirnimann, o fragmento pontua, mostra, observa, repete, lança, complementa,
25 Ibid., p. 139 (Athenäum, Fr. 435).26 Maurice Blanchot, “L’Athenaeum”, in L’Entretien infini (Paris, Gallimard, 1969), p. 518.27 Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, “A exigência fragmentária”, in Terceira Margem:revista do programa de pós-graduação em ciência da literatura da UFRJ, n. 10 (Rio de Janeiro,UFRJ, 2004), p. 73.
187
suplementa, contradiz, opõe, relaciona e, assim, forja sua “sintaxe sem
controle”28.
Pouco a pouco, percebemos que a exigência fragmentária romântica não
significa seu afastamento do problema do absoluto ou do todo. Pelo contrário, os
fragmentos fazem mais agudo o caráter propriamente problemático do absoluto, já
que apontam para ele como quem aponta para algo que lá não está e que, ainda
assim, precisa ser apontado. Justamente aquilo que não está é aquilo para onde se
precisa apontar. Só que, sendo isto para o que se aponta o que não está presente, o
próprio apontar transforma-se. Interromper passa a ser seu jeito de operar. Só a
forma de escrita descontínua atenderia à exigência de chegar ao todo quando este,
por si mesmo, já não é apenas o que completa, mas também o que quebra. Por
isso, como observaram Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy,
que a totalidade esteja presente como tal em cada parte, e que o todo seja não asoma mas a co-presença das partes enquanto co-presença, finalmente, do todo a simesmo (já que o todo é também separação e acabamento da parte), tal é anecessidade da essência que se desdobra a partir da individualidade dofragmento.29
Nesse contexto, entendemos que a forma fragmentária não era, para os
primeiros românticos alemães, simples oposição ao sistema, mas sim à forma
sistemática de exposição. Esta não daria conta do sistema do absoluto, que não era
apenas contínuo, mas descontínuo. Benjamin escreveu que Schlegel “não buscou
compreender sistematicamente este absoluto; antes, ao contrário, tentou
compreender de maneira absoluta o sistema”30. Essa maneira era fragmentária.
Schlegel chega a falar de um “sistema de fragmentos”31. Sua expressão aponta o
paradoxo aí presente: enquanto o sistema quer concluir e fechar, os fragmentos
multiplicam e abrem. E ele quer o sistema de fragmentos.
Esse paradoxo faz com que, da perspectiva tradicional, o projeto dos
primeiros românticos seja facilmente considerado fracassado. Eles não concluem,
28 Victor-Pierre Stirnimann, “Schlegel, carícias de um martelo”, in Friedrich Schlegel, Conversasobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 17.29 Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, “A exigência fragmentária”, in Terceira Margem:revista do programa de pós-graduação em ciência da literatura da UFRJ, n. 10 (Rio de Janeiro,UFRJ, 2004), p. 75.30 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 53.31 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 58 (Athenäum,Fr. 77).
188
portanto, não têm sucesso. Buscam encontrar aquilo que, segundo eles mesmos,
jamais se encontra: o todo, o absoluto. Lançam-se, assim, na tarefa filosófica de
dizer o que não pode ser dito.
O romantismo, é verdade, acaba mal, mas porque é essencialmente o que começae o que só pode acabar mal, fim que pode ser chamado de suicídio, loucura,perda, esquecimento. E, certamente, ele fica com freqüência sem obra, masporque é a obra da ausência da obra; uma poesia afirmada na pureza do atopoético, uma afirmação sem duração, uma liberdade sem realização, umapotência que se exalta desaparecendo.32
Essas palavras de Blanchot explicam que, se os primeiros românticos
costumam acabar mal até biograficamente, é porque aquilo que são não tem no
acabamento, isto é, no fim, sua medida. Inacabamento é seu ser. Seus fragmentos,
que seriam sua obra, são a ausência de obra no sentido tradicional: encerram a
falta de encerramento, completam-se quando não concluem. Novalis, em seu
romance Heinrich von Ofterdingen, não escreve, justamente, a parte que se
chamaria “o acabamento”, ausência emblemática do primeiro romantismo alemão.
“Inacabado, o fragmento aponta para o Livro que nunca se acaba de escrever; que,
por isso, sempre se retoma e sempre se adia”33, observou Luiz Costa Lima.
*
Inacabados, os fragmentos exibem seu caráter de tendência. Sendo assim,
“o sentido para projetos que poderiam ser chamados de fragmentos do futuro”34
caracteriza a os primeiros românticos alemães. Projetos foram o traço típico das
vanguardas, apontando para o que, na configuração espiritual do tempo, já não se
satisfazia com o presente. Ir além dele seria preciso. Foi assim que o futuro
tornou-se o tempo privilegiado para os modernos, e não apenas para os primeiros
românticos alemães que temos aqui em vista.
Todo o surgimento das modernas filosofias da história carregou esta
valorização do futuro. Kant, por exemplo, expunha sua “perspectiva consoladora
para o futuro, na qual a espécie humana será representada num porvir distante em
32 Maurice Blanchot, “L’Athenaeum”, in L’Entretien infini (Paris, Gallimard, 1969), p. 517.33 Luiz Costa Lima, Limites da voz: Montaigne, Schlegel (Rio de Janeiro, Rocco, 1993), p. 202.34 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 50 (Athenäum,Fr. 22).
189
que ela se elevará finalmente por seu trabalho a um estado no qual todos os
germes que a natureza nela colocou poderão desenvolver-se plenamente”35.
Seguindo algum plano secreto da natureza, a humanidade estaria destinada a
realizar sua racionalidade – no futuro. Daí o consolo para os dilemas do presente,
que seriam solucionados depois. Por trás deste argumento, estava a doutrina
teleológica aplicada à história, ou seja, de que seu movimento ganhava significado
a partir da descoberta de sua direção, de seu fim, de seu objetivo – do futuro para
o qual nos encaminharíamos. Estaria garantido para a humanidade, portanto, o
“desenvolvimento continuamente progressivo, embora lento, das suas disposições
originais”36.
Hegel eleva esta filosofia da história esboçada com Kant a seu cume. Nele,
aquele “porvir distante” pensado por Kant deixa de estar tão distante. Nele, o
desenvolvimento “progressivo, embora lento”, torna-se veloz e resoluto. Em
suma, o caminho para o futuro não é gradual e hesitante. É uma marcha firme,
cujo motor tem o nome de dialética, onde o “progresso está intimamente ligado à
destruição e à dissolução da forma precedente do real”37. Hegel, assim, acolhia as
transformações como sinal saudável do movimento dialético da história na
direção do futuro, cumprindo sua finalidade. Por conta disso, ele escreve que os
grandes homens, ou seja, os heróis, “não colheram os seus fins e a sua vocação no
curso das coisas consagradas pelo sistema pacífico e ordenado do regime”, já que
“a sua justificação não está na ordem existente, mas provém de outra fonte”38.
Estaríamos, então, próximos aqui do caráter vanguardista dos primeiros
românticos alemães? Eles, afinal, também achavam que as grandes obras colhiam
sua justificação em outra fonte que não a do presente dado e estabelecido. Se
fosse só assim, porém, como explicar as críticas de Hegel aos românticos? É que a
aparente proximidade esconde diferenças cruciais. Segundo Hegel, a fonte que
justifica as ações estranhas ao presente dado “é o espírito oculto, ainda
subterrâneo, que ainda não alcançou uma existência actual”, portanto, “os
indivíduos históricos são aqueles que quiseram e concretizaram não uma coisa
imaginária e presumida, mas uma coisa justa e necessária, e que eles
35 I. Kant, Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (São Paulo, MartinsFontes, 2004), p. 1.36 Ibid., p. 2137 G. W. F. Hegel, “Extractos”, in Jacques d’Hondt, Hegel (Lisboa, Edições 70, 1984), p. 101.38 Ibid., p. 107.
190
compreenderam porque receberam interiormente a revelação do que é
necessário”39. Provavelmente, Hegel achava que os primeiros românticos alemães
estavam entre aqueles cujas obras, no caso, foram levadas a cabo como coisas
imaginadas, e não necessárias. Ele talvez estivesse certo. Pois o pressuposto da
necessidade histórica dependia da aceitação daquela teleologia que determinaria, a
priori, o sentido da história como um todo. E os primeiros românticos alemães não
partilharam desta convicção teórica.
Se suas obras, portanto, tornavam-se compreensíveis a partir de outra
fonte distinta dos códigos já estabelecidos do presente, assim como as grandes
ações segundo Hegel, esta outra fonte não era a mesma nos dois casos. No caso de
Hegel, era a presumida condução do mundo ao conhecimento de si mesmo, de
acordo com a compreensão da totalidade de seu movimento histórico teleológico.
No caso dos primeiros românticos alemães, o que está em jogo não é a
consciência do processo histórico, e sim o que Maurice Blanchot chamou de
“consciência do instante”40. Por aí, compreendemos a exposição fragmentária, e
não só fragmentada, de seu pensamento, ao contrário da completude sistemática
de Hegel. É que a consciência por eles exposta não busca totalizar o movimento
do processo histórico, mas pode, por outro lado, pontuar o futuro no presente sem
orientação teleológica ou finalista. Sistematizar esta consciência só seria possível,
paradoxalmente, de modo fragmentado. Foi o que fizeram os primeiros
românticos.
Portanto, se Friedrich Schlegel afirma que “a poesia romântica é uma
poesia universal progressiva”41, o sentido da palavra “progresso” aí não é aquele
presente em Hegel ou até em Kant. Tal progresso não possui pré-determinação.
Tal progresso não é teleológico, ou seja, não tem direção dada previamente. É o
que esclarece o resto daquele mesmo fragmento de Schlegel, quando ele diz que
“o gênero poético romântico está em devir; sua verdadeira essência é mesmo a de
que só pode vir a ser, jamais ser de maneira perfeita e acabada”42. Permanece,
39 Ibid., p. 107.40 Maurice Blanchot, “L’Athenaeum”, in L’Entretien infini (Paris, Gallimard, 1969), p. 517.41 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum,Fr. 116).42 Ibid., p. 65 (Athenäum, Fr. 116).
191
assim, o romantismo sem acabamento, em devir, ou seja, aberto, o que o
diferencia da perspectiva hegeliana. “Ele é infinito”43, diz Schlegel.
Esta infinitude que jamais se realiza, no sentido de que não se fecha, era
considerada por Hegel má. Ele gostava de atacá-la já em Kant ou Fichte. E não
menos em Schlegel. Ernst Behler frisou que “o tipo de conhecimento hegeliano
reclama uma compreensão total da interpretação do finito e do infinito”, enquanto
“Schlegel insiste que esta relação nunca pode ser reduzida a uma estrutura ou uma
compreensão dialética pelo entendimento finito, mas constitui um processo
infinito que só alcança alguns aspectos”44. Em suma, a apresentação do absoluto
infinito na finitude humana é sempre fragmentada, problemática e inacabada para
os primeiros românticos alemães.
Inacabamento este que, como vimos, separa também os primeiros
românticos alemães de Hegel do ponto de vista da forma de expressão. Hegel
acreditava que “a verdadeira figura, em que a verdade existe, só pode ser o seu
sistema científico”45, já que somente ele proporcionaria o fechamento ou o fim no
qual o saber encontra a si mesmo. Já os primeiros românticos procuravam, antes,
certa forma de exposição que não finalizasse aquilo que, por si mesmo, não tem
fim: o absoluto, a verdade. Esta era a forma aberta dos fragmentos. “Neste
sentido, todo fragmento é projeto: o fragmento-projeto não vale como programa
ou prospecto, mas como projeção imediata daquilo que, no entanto, ele
inacaba”46, conforme observaram Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy.
Nos fragmentos, a relação entre a parte e o todo não se resolve dialeticamente,
mas permanece tensionada sem ser solucionada, alternando ironicamente de um a
outro.
*
Benjamin, em sua tese sobre o drama barroco, já destacara o lugar do
fragmento, antes do surgimento do romantismo. Para ele, “o que jaz em ruínas, o
43 Ibid., p. 65 (Athenäum, Fr. 116).44 Ernst Behler, Irony and the Discourse of Modernity (Seattle, University of Washington Press,1990), p. 89.45 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 23.46 Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, “A exigência fragmentária”, in Terceira Margem:revista do programa de pós-graduação em ciência da literatura da UFRJ, n. 10 (Rio de Janeiro,UFRJ, 2004), p. 73.
192
fragmento altamente significativo, a ruína: é esta a mais nobre matéria da criação
barroca”47. Já ali, portanto, o “poeta não pode disfarçar a sua arte combinatória,
porque o que ele pretende mostrar não é tanto o todo como a sua construção posta
à vista”, onde se destaca a “ostentação dos processos construtivos”, como na obra
de Calderón, que “se mostra como a parede de alvenaria num edifício a que caíu o
reboco”48. Esse jeito de apresentação da arte, ocorrido durante o barroco alemão
como efeito de seu momento histórico singular, foi procurado programaticamente
pelos primeiros românticos alemães, que admitiam a situação histórica moderna e
buscavam fundar seu relacionamento com ela. Nesse sentido, “antes de ser
dissolvido na absolutez do sistema, os fragmentos insistem em expor a totalidade
dentro de sua fratura material”49, como observou Michel Chaouli.
Tentando fazer suas obras e, ao mesmo tempo, apontar como elas eram
feitas, os primeiros românticos davam prosseguimento àquela exposição da arte
combinatória em que figura a construção da obra, que tinha lugar já no barroco.
Estaria aí a origem do que chamamos de vanguarda? Em certo sentido, talvez sim.
Pois o que está em jogo é “a especialização da vanguarda nela mesma, o fato de
que seus melhores artistas são artistas de artistas, seus melhores poetas, poetas de
poetas”50, como pontuou Clement Greenberg. Enfim, está aí a origem da
reflexividade moderna. Ela, conforme observou o mesmo autor, “afastou uma
grande quantidade daqueles que anteriormente eram capazes de desfrutar e
apreciar a arte e a literatura ambiciosas, mas que agora não desejam ou são
incapazes de adquirir uma iniciação aos segredos de seu ofício”51.
Essa dificuldade com as obras de vanguarda, portanto, estava em que elas
pediam ao seu espectador que participasse de seu “ofício”, que trabalhasse junto.
Fazendo “poesia da poesia”, como dizia Friedrich Schlegel, o artista moderno
colocava em pauta, para que se aproveitasse sua obra, a reflexão, ou seja, a flexão
sobre si, sobre seu modo de ser e de se fazer. Era o que os primeiros românticos
alemães buscavam ao escrever em fragmentos, não por acaso comparados a
pequenas obras de arte. Eles convocavam seu leitor a refletir.
47 Walter Benjamin, Origem do drama trágico alemão (Lisboa, Assírio & Alvim, 2004), p. 193.48 Ibid., p. 194.49 Michel Chaouli, The laboratory of poetry (Baltimore, The Johns Hopkins University Press,2002), p. 69.50 Clement Greenberg, “Vanguarda e kitsch”, in Arte e cultura (São Paulo, Ática, 2001), p. 27.51 Ibid., p. 27.
193
Inacabado, o fragmento não o é apenas porque jamais completa o todo,
porque aponta sempre para outro fragmento. Essa operação significava, além
disso, admitir que seu sentido jamais está completamente dado, pronto e acabado,
quer dizer, fechado. Por conseqüência, a escrita aí em jogo transforma-se
decisivamente. Não se escreve para o público existente. Fazê-lo seria conformar-
se a códigos conhecidos, mas, como observou Reinhardt Koselleck, na
modernidade alemã “a arte entra em cena como antípoda da ordem
estabelecida”52. Escrevem os primeiros românticos para leitores que não existem e
que, quem sabe, podem vir a existir quando se deixarem afetar e construir por
aqueles textos participando da elaboração de seu sentido, atendendo às suas
exigências que se tornam, assim, vanguardistas. Ler seria, em certo sentido,
escrever junto o texto que se lê.
Nesse contexto, compreendemos a distinção que Friedrich Schlegel faz
entre o “escritor analítico” e o “escritor sintético”. Enquanto o primeiro “observa
o leitor tal como é; de acordo com isso, faz seus cálculos e aciona suas máquinas
para nele produzir o efeito adequado”, o segundo “constrói e cria para si um leitor
tal como deve ser”, portanto, “faz com que lhe surja, passo a passo, diante dos
olhos aquilo que inventou, ou o induz a que o invente por si mesmo”53. É claro
que os primeiros românticos pretendiam ser sintéticos. Não queriam escrever para
leitores prontos, mas fazer com que seus escritos construíssem outro jeito de ler.
Daí a dificuldade com sua compreensão. Escrevendo em fragmentos, eles exigiam
que os lêssemos de modo distinto do habitual. Não se contentavam, nesse sentido,
com os leitores presentes. Pretendiam criar seus próprios leitores futuros.
Podemos, nesse sentido, compreender porque Schlegel escreveu que “mais
difícil que falar bem é dar aos outros o ensejo de falar bem”54. Este ensejo era
parte do projeto dos primeiros românticos alemães, já que ele visava construir
seus leitores. Logo, sua forma de escrever precisava acalentar esta criação de
sentido por parte daquele que acolhe a obra. Subtraindo desta obra a totalidade,
exige-se que o leitor participe ativamente da construção de seu sentido. Philippe
Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy afirmaram que “a fragmentação não é
portanto uma disseminação, mas a dispersão que convém à semeadura e às futuras
52 Reinhardt Koselleck, Crítica e crise (Rio de Janeiro, Contraponto/Eduerj, 1999), p. 89.53 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 38 (Lyceum, Fr.112).54 Ibid., p. 52 (Athenäum, Fr. 33).
194
colheitas”, concluindo que “o gênero do fragmento é o gênero da geração”55. Eles
tinham em mente o título da coleção de fragmentos de Novalis, Pólen. Para ele, “o
chão está pobre”, portanto, “precisamos espalhar ricas sementes”56. Fragmentos
seriam sementes que os primeiros românticos plantavam em seu solo histórico, na
esperança de que algumas delas se criassem e se desenvolvessem no encontro
com sua leitura.
Esta criação, ao contrário da caracterização ordinária do objetivo das
vanguardas, não era determinada, não visava sobrepujar outras ou esquecer as do
passado. É verdade que as vanguardas, em seu movimento, pretendiam apontar o
caminho adiante que, aliás, deveria ser seguido pelos que ficaram na retaguarda.
Elas gostariam de dizer para onde devíamos ir. Só que, no pensamento dos
primeiros românticos, o lugar assim apontado não é qualquer lugar definido. Para
Friedrich Schlegel, “o gênero poético romântico é o único que é mais que gênero
e é, por assim dizer, a própria poesia: pois, num certo sentido, toda poesia é ou
deve ser romântica”57. Por trás da aparência pretensiosa, este fragmento nos diz
que a escrita romântica não deve ser entendida por oposição à clássica ou a
qualquer outra. Ela deseja angariar as outras, misturá-las, exercitar suas
possibilidades, fazer delas estímulo, ao que se prestaria exemplarmente a forma
literária do romance, aliás.
Por isso, apenas “num certo sentido” toda poesia é ou deve ser romântica.
É que, para sê-lo, as outras poesias não precisariam deixar de ser o que eram.
Nesse sentido, o que os primeiros românticos gostariam de conquistar sob o nome
de romantismo era a possibilidade de emprego dos mais variados estilos e modos
de criação, sem pré-determinações. Segundo Friedrich Schlegel, “um homem
verdadeiramente livre e culto teria de poder se afinar a seu bel-prazer ao tom
filosófico ou filológico, crítico ou poético, histórico ou retórico, antigo ou
moderno, de modo inteiramente arbitrário, como se afina um instrumento, em
qualquer tempo e em qualquer escala”58.
55 Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, “A exigência fragmentária”, in Terceira Margem:revista do programa de pós-graduação em ciência da literatura da UFRJ, n. 10 (Rio de Janeiro,UFRJ, 2004), p. 81.56 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 36 (Fr. 1).57 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum,Fr. 116).58 Ibid., p. 29 (Lyceum, Fr. 55).
195
Isso significa que os primeiros românticos não quiseram deixar para trás o
passado para se afirmarem. Sinal claro disso é o jeito pelo qual, olhando para a
história, eles buscam desvelar fundamentos românticos em autores que os
precederam, como Dante59 ou Shakespeare. Eles fariam parte, pura e
simplesmente, da poesia criadora60. Diríamos, por fim, que o movimento de
vanguarda do primeiro romantismo alemão apontava para um lugar ou um tempo
aberto, não fechado, em que a própria poesia descobriria que, ao invés de optar
por este ou aquele caminho, possuía todos os caminhos à sua disposição, para que
fossem livremente experimentados. Foi o que escreveu poeticamente Friedrich
Schlegel.
Todos os seres que amam a poesia são por ela unidos e aparentados em laçosindissolúveis. Pois mesmo que possam em sua vida buscar as coisas maisdiferentes, um desdenhando completamente o que outro considera sagrado,desconhecendo-se, incompreendidos e para sempre estranhos, permanecemunidos e em acordo nesta esfera, graças a um encantamento de ordem superior.Toda musa procura e encontra a outra; todas as correntes da poesia deságuamjuntas no grande oceano universal.61
59 Conferir Erich Auerbach, “A descoberta de Dante no Romantismo”, in Ensaios de literaturaocidental (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2007), p. 289-302.60 Nesse sentido, Antonio Cícero* observou que “o verdadeiro sentido da vanguarda não foi arenúncia, mas a desprovincianização e a cosmopolitização da poesia”, completando que, “aomostrar novas possibilidades, o que a vanguarda fez foi relativizar as possibilidades antigas; masrelativizar uma coisa não é destruí-la”.* Antonio Cícero, “Poesia e paisagens urbanas”, in Finalidades sem fim (São Paulo, Companhiadas Letras, 2005), p. 23.61 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 29.
11
Ironia, pátria da arte e da filosofia:
a representação alegórica
Ironia é assunto difícil. Não só porque a expressão traz consigo longa
história de determinações, desde Sócrates até Kierkegaard e depois. É difícil
porque, se pensarmos bem, você, que agora põe os olhos sobre essas palavras, não
deveria saber se o que elas dizem é sério. Basta suspeitar que são irônicas. Eis o
poder da ironia. Ela desestabiliza o sentido do discurso. Está presente quando,
sem querer enganar e sem estarmos errando, empregamos palavras cujo sentido é
oposto ao da verdade que pretendemos dizer. Esse é o emprego da ironia como
figura de linguagem, que aparece na retórica latina de Cícero ou Quintiliano.
Supomos assim que o caráter irônico define-se pela intenção do autor, que
depende do que ele quis ou não dizer. Mas, e se isso for pouco? Não pretendo,
aqui, ser irônico. Mas será que basta esta confissão para que o sentido do que vem
aqui escrito seja estável? Maurice Merleau-Ponty, o filósofo francês
contemporâneo, disse que “o sentido é sempre irônico”1, já que não é fixado, mas
se move. Essa hipótese, talvez assustadora, foi a que defenderam, várias décadas
antes, os primeiros românticos alemães.
No começo, eles destacaram a ironia própria da arte moderna, responsável
pela autoconsciência das novas obras, exibida quando elas falavam de si. Foi o
que ocorreu, decisivamente, no Dom Quixote de Cervantes, no qual “predominam
a espirituosidade fantástica e uma pródiga abundância de audaciosa invenção”2,
afirma Friedrich Schlegel. São diversas as passagens nas quais o romance, ao
fazer referência a si mesmo enquanto texto, expõe seu caráter ficcional, ao invés
de escondê-lo3. Dorotea, por exemplo, chega a comentar a certa altura com outro
personagem: “falta pouco ao nosso hospedeiro para fazer a segunda parte de Dom
1 Maurice Merleau-Ponty, A prosa do mundo (São Paulo, Cosac & Naify, 2002), p. 522 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 42.3 Conferir Bernardo Barros Coelho de Oliveira, “A necessária ironia da ficção: algumasconsiderações sobre o dom Quixote”, in Aisthe: revista de estética, n.1 (Rio de Janeiro, UFRJ-PPGF, 1997), p. 19-33.
197
Quixote”4. Reflexões assim trazem uma descontinuidade reflexiva para a
continuidade narrativa, pela qual o enredo é quebrado ao acolher em si palavras
que expõem seu caráter de obra. Ironicamente, Cervantes, que aparentemente nos
oferecia a ficção como se fosse realidade, expõe a realidade daquela ficção.
Era ainda esta operação que, para os primeiros românticos, estava em
Laurence Sterne. Tanto que, comenta Friedrich Schlegel, o “deleite com Sterne
era puro e de uma natureza completamente diversa da sede de curiosidade, que
muitas vezes um livro inteiramente ruim pode saciar”5. Seu Tristram Shandy
fundaria a vertente na qual estaria situado também Jacques, o fatalista, de
Diderot. Ironia, nessas obras, não seria brincadeira circunstancial, mas capacidade
de fundar sua autoconsciência. É o que vemos, ainda, em um escritor influenciado
por Sterne como Machado de Assis6. Seu narrador, por exemplo, conversa com os
leitores, comentando o que se passa no enredo. Retira-nos do pretenso realismo do
jogo ficcional. Este artifício faz com que a obra, de dentro de si, mostre que se
sabe como obra, ganhando autoconsciência. Ironizando a estória que conta, a obra
desloca seu sentido, que passa a se situar na sua forma de apresentação enquanto
arte. Fiel à sua condição moderna, a força deste tipo de obra vem da reflexividade,
que provoca o leitor pelo pensamento, ao colocar em questão o estatuto daquilo
que está diante dele.
Em suma, a ironia é o gesto pelo qual as obras de arte desestabilizam seu
sentido. Marca da modernidade, essa ironia, contudo, já se manifestava, sem a
mesma abrangência, na antiguidade, como nos comentários do coro e do corifeu
para o público nas comédias gregas, chamado de parábase. Pensávamos que o
sentido estava no que era contado, mas de súbito somos deslocados para o lugar
onde aquilo que é contado está: a própria obra. Só que a obra singular faz parte da
arte em geral. Somos, assim, deslocados pela segunda vez. Primeiro, fomos do
conteúdo da obra para sua forma. E, agora, vamos de sua forma específica a seu
pertencimento à forma da arte em geral. Ironizando esta sua forma determinada, a
obra expõe que, se não está na vida empírica naturalista, pertence porém à vida
das formas em geral, na qual todas as obras comunicam-se umas com as outras, 4 Miguel de Cervantes, Dom Quijote de la Mancha (São Paulo, Real Academia Española, 2004), p.324.5 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 62.6 Mesmo porque, é possível vincular a natureza da ironia machadiana àquela dos primeirosromânticos, como apontou Patrick Pessoa, A segunda vida de Brás Cubas (Rio de Janeiro, Rocco,2008), p. 157-250.
198
como astros de um universo fantástico. Eis a ambiguidade de sentido trazida por
esta ironia que não é mais somente uma figura de linguagem ou um tropo do
mundo clássico, empregada estrategicamente aqui ou ali. Sua parábase, diria
Friedrich Schlegel, é permanente.
Nas obras em que sentimos “o divino sopro da ironia”, afirma Schlegel,
“vive uma bufonaria realmente transcendental”7. Bufão, sabemos, era o bobo da
corte, aquele que se apresentava nos palácios e, enquanto aparentemente elogiava
seu rei, na verdade destilava, pela ambiguidade de suas palavras, críticas a seu
governo. Ironia era a marca forte do bufão. Schlegel, porém, acrescenta que esta
bufonaria, nas obras de arte, é transcendental. Kant dizia que a abordagem
transcendental não se preocupa com as coisas, mas com as condições de
possibilidade para que nós as experimentemos. Não se preocupa com o
condicionado, mas com as condições em que ele se dá. Entendemos, assim, que
Schlegel complete aquele fragmento dizendo que a ironia é, “no interior, a
disposição que tudo supervisiona e se eleva infinitamente acima de todo
condicionado, inclusive a própria arte, virtude ou genialidade; no exterior, na
execução, a maneira mímica de um bom bufão italiano comum”8. Extravasada
como simples gracejo de um bufão, a ironia, porém, diz respeito à relação da
forma condicionada da obra específica com a condição geral à qual ela pertence,
ou seja, ao seu sentido como parte da arte em geral, do absoluto da arte.
Ironização da forma foi como Benjamin chamou essa operação sublinhada
pelos primeiros românticos alemães e presente, é claro, também na literatura de
Goethe. Nela, surge a “ligação com o incondicionado, trata-se não de
subjetivismo e jogo, mas, antes, da assimilação da obra limitada ao absoluto, de
sua completa objetivação que paga com sua eliminação9. Eliminando a exposição
singular em que se dava, a obra, ao mesmo tempo, adentra o absoluto da arte,
onde pode se comunicar com todas as outras obras – na vida das formas. Ela abre
mão de sua forma específica, abandona sua totalidade própria e fechada em si,
para agregar-se à abertura infinita da forma da arte em geral. Torna-se, por isso,
mais forte, e não menos. Se a forma determinada da obra singular “torna-se a
7 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 26 (Lyceum, Fr.42).8 Ibid., 26 (Lyceum, Fr. 42).9 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 92.
199
vítima da destruição irônica”, como disse Benjamin, “sobre ela, no entanto, a
ironia rasga um céu da forma eterna”, portanto, “atesta a sobrevida da obra que
extrai desta esfera sua existência indestrutível”10. Sua sobrevida deve-se a seu
pertencimento à arte.
Essa densa argumentação de Benjamin visava a salvar a ironia, como foi
tematizada pelos primeiros românticos alemães, das ferrenhas críticas de Hegel.
Seus ataques eram ao caráter subjetivo da ironia, enquanto Benjamin sublinha que
ela está na objetividade da obra, e não nas decisões de seu autor. Nesse sentido, a
ironia da obra não faz dela produto particular do artista envolvido só consigo
mesmo. Segundo Lukács, “o auto-reconhecimento, ou seja, a auto-superação da
subjetividade, foi chamado de ironia pelos primeiros teóricos do romance, os
estetas do primeiro romantismo”11.
*
Hegel atacou, com violência, a teoria romântica da ironia. Kierkegaard,
escrevendo pouco após Hegel e o seguindo, achou que devia pontuar esta
violência, pois ela podia até atrapalhar o ataque que, para ele, era justo. “Sempre
que se lhe oferece a oportunidade Hegel fala desses irônicos, sempre tratados da
maneira mais altiva, sim, Hegel olha para eles de cima para baixo, com enorme
desdém”, afirma Kierkegaard, completando que aí “nem sempre ele utilizou os
meios mais suaves”12. Este testemunho é de alto valor porque Kierkegaard
concordava com Hegel, abominando a ironia romântica. Mesmo assim, ele atesta
que, com Hegel, “não ganhamos uma verdadeira análise, mas em compensação
Schlegel sempre ganha uma boa sova”13. Não entraremos, aqui, na teoria de
Kierkegaard, mas queremos compreender a sova de Hegel sobre Schlegel, para
saber de onde ela vem.
Se a grande violência dos ataques de Hegel explica-se por sua conhecida
antipatia com o grupo de Iena, liderado por Friedrich Schlegel, já os ataques
propriamente ditos são perfeitamente coerentes com aquilo que sua filosofia
10 Ibid., p. 93.11 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 74.12 S. A. Kierkegaard, O conceito de ironia (Bragança Paulista, Editora Universitária SãoFrancisco, 2006), p. 230.13 Ibid., p. 230.
200
pretendia. Eles diziam respeito à superação da centralidade do “eu” presente no
sistema do saber de Fichte, já que a ironia romântica seria, em certo sentido, sua
versão aplicada à estética. Segundo Hegel,
o irônico, como individualidade genial, consiste na autoaniquilação doesplêndido, grandioso e primoroso e, assim, as configurações artísticas objetivastambém somente necessitam expor o princípio da subjetividade absoluta por si,na medida em que mostram como nulo e em sua autodestruição o que para oshomens têm valor e dignidade.14
Para Hegel, a ironia era o poder do intelecto que, ao voltar-se apenas para
si, fazia do mundo exterior simples brincadeira, perdendo toda a seriedade e
legitimidade. Nesse sentido, a ironia, ao contrário da dialética que ele prezava,
não conciliava os opostos, no caso, a subjetividade e a objetividade. Presa na
autoria do sujeito que faria do objeto o que quisesse, a ironia não daria o passo até
a junção daquela oposição, como faria a dialética ao concretizar a síntese final do
conhecimento. “Este é o significado universal da genial ironia divina, como
concentração do eu em si mesmo, para quem todos os elos foram quebrados e que
somente pode viver na beatitude do gozo próprio”15, afirma Hegel.
Nada parece mais distante do sentido que os primeiros românticos deram à
ironia, sobretudo o “senhor Friedrich Schlegel”, ao qual Hegel, debochadamente,
refere-se. Para ele, a ironia não quebrava os “elos”. Ela era um elo, embora não ao
modo que Hegel gostaria. É que a ironia não trata, como afirma Hegel, só de
“concentração”, mas, junto, de desconcentração a partir de ambigüidades. Essas
ambigüidades tornam a ironia o elo entre o que é e o que não é, entre a presença e
a ausência de sentido. Seu humor, por isso, “tem a ver com ser e não-ser, e sua
essência própria é a reflexão”16, afirma Schlegel. Ironia é o que junta e separa os
opostos ao mesmo tempo, forçando-os a entrarem em contato. Entram em
contato, por exemplo, o conteúdo de algum enredo com a forma na qual ele é
contado, já que a obra, ao refletir ironicamente sobre si mesma, expõe a conexão
de ambos. Por sua vez, toda obra relativamente condicionada em sua forma
particular expõe seu pertencimento ao incondicionado absoluto que é a arte em
geral enquanto idéia.
14 G. W. F. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 84.15 Ibid., p. 83.16 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 102 (Athenäum,Fr. 305).
201
Idéia é o absoluto no qual estão os particulares, como as obras que
participam da arte. Para Friedrich Schlegel, “uma idéia é um conceito perfeito e
acabado até a ironia, uma síntese absoluta de antíteses absolutas, alternância de
dois pensamentos conflitantes que engendra continuamente a si mesma”17. Idéia
não é a solução do problema do sentido, mas o acolhimento do conflito que a ele
pertence. Sua perfeição e seu acabamento o são ao ponto da ironia, ou seja, do que
não permite ao sentido ser de fato perfeito e acabado. Pode-se ver porque Hegel
discordava dos primeiros românticos. Ironia era o que fazia com que a síntese
absoluta, por ele buscada, fosse quebrada paradoxalmente pelas antíteses, elas
mesmas, absolutas. Em sua alternância, as antíteses não se acalmariam.
Engendrariam constantemente sua própria alternância, que assim jamais
encontraria solução final.
Era a permanência do conflito que Hegel não endossava. Ele criticou, por
vezes, a falta de “seriedade” que a ironia romântica imputaria ao seu objeto, já que
ele seria um mero produto do “eu”18. Pecou, contudo, por não ver que, segundo
Friedrich Schlegel, na ironia “tudo deve ser gracejo e tudo deve ser sério” 19. Mais
uma vez, era a ausência de solução para um lado, o do gracejo, ou para outro, o da
seriedade, que estava em jogo na ironia. É provável que, para Hegel, esta
manutenção ambígua fosse pior do que a simples falta de seriedade, o que talvez
justifique a força de seus ataques. É que a presença do problema das antíteses e da
síntese, assim como dos opostos e de como situá-los, colocava a ironia dos
primeiros românticos alemães em perigosa proximidade de sua dialética, cuja
pretensão, entretanto, era completamente outra. Isso explica a violência dos
ataques de Hegel: quanto mais próximo o oponente, mais intenso é o embate para
dele se distinguir.
Essa proximidade, aliás, pode facilmente enganar, pois toma várias
formas. Entre elas, está aquela que, embora admitindo a diferença, só a toma
como parcial, buscando compreender a ironia como “ainda não” da dialética, ou
seja, como forma que a anteciparia, mas sem a mesma eficiência. Peter Szondi,
em famoso ensaio sobre Friedrich Schlegel e a ironia romântica, escreveu que, do
ponto de vista da “história intelectual, poder-se-ia dizer que Schlegel preparou o
17 Ibid., p. 66 (Athenäum, Fr. 121).18 G. W. F. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 82.19 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 37 (Lyceum, Fr.108).
202
caminho para a dialética hegeliana”20. Note-se, porém, que a abordagem de Peter
Szondi soa, desde já, hegeliana, pois pensar que autores que vieram antes
preparam o caminho progressivo para os que vêm depois constituía o pressuposto
de todo o pensamento histórico de Hegel. Julga-se o que veio antes a partir do que
veio depois, portanto, o critério erguido por este último é que prevalece.
Para Peter Szondi, poderíamos enxergar a filosofia da história
esquematizada por Friedrich Schlegel em três tempos: o passado clássico da
antiguidade, o presente moderno angustiado pelo abismo que o separa da época
anterior e o futuro escatológico no qual se aloja a crença no Reino de Deus por
vir. Estaríamos situados entre o “não mais” e o “ainda não”, entre a tese do
passado e a síntese do futuro. Ironia, nesse raciocínio, seria a forma achada por
Schlegel para suportar a situação conflituosa do presente, apontando, contudo,
para sua solução no futuro. Ironia seria o emblema da transição que a época
moderna era, sendo depois superada por Hegel, em favor da dialética. Se a
modernidade romântica “não pode superar a negatividade da sua situação através
de uma ação que levasse à reconciliação do contingente e do necessário”, poderia
ao menos, para Peter Szondi, “ao antecipar a unidade futura na qual acredita,
declarar esta negatividade temporária”21.
Paul de Man contestou, com pertinência, a tese de Szondi. Para ele, a
ironia dos primeiros românticos alemães não antecipa o esquema dialético de
Hegel sobre a história, porque ela persiste na ausência de possibilidade da síntese
final. Portanto, “o ato da ironia (…) revela a existência de uma temporalidade (…)
que se relaciona com sua fonte só em termos de distância e diferença, não permite
nem fim e nem totalidade”22. Ironia, para ele, não é apenas a estratégia romântica
para suportar a situação momentânea que depois se resolveria. Ela veio para ficar:
“ao contrário da asserção de Szondi, a ironia não é temporária, mas repetitiva” 23.
Não se acenaria, portanto, com a extinção futura da ironia.
Essa compreensão é coerente com o deslocamento sutil, porém decisivo,
que os primeiros românticos alemães fizeram da filosofia de Fichte. Eles tomaram
20 Peter Szondi, “Friedrich Schlegel and Romantic Irony, with Some Remarks on Tieck’sComedies”, in On textual understanding and other essays (Minneapolis, University of MinnesotaPress, 1986), p. 57.21 Ibid., p. 68.22 Paul de Man, “The Rhetoric of Temporality”, in Blindness and Insight (Minneapolis, Universityof Minnesota Press, 1992), p. 222.23 Ibid., p. 220.
203
o processo de reflexão descrito por Fichte e deram a ele, no entanto, o caráter
infinito antes ausente, proibindo que aí fosse montada alguma história teleológica,
isto é, com fim. Segundo esta infinitude, o devir não devém qualquer futuro que
pudesse, então, dar cabo da situação presente, já que isto significaria colocar fim
naquilo que é infinito. Esta irônica permanência do tempo, que não aponta para
uma época em que ele pudesse ser abolido, é o sentido da definição da poesia
romântica como “universal progressiva”24.
Friedrich Schlegel escreveu que “ironia é consciência clara de eterna
agilidade, do caos infinitamente pleno”25. Ironia é a consciência de que ela mesma
não é temporária. É a consciência de que sua própria agilidade é eterna, de que o
caos é fonte da qual vem a possibilidade de criação e, neste sentido, ele é
infinitamente pleno, jamais podendo ser completamente ordenado. Não há
esclarecimento final para o problema do sentido, que jamais será totalmente
compreendido. Essa ironia não aponta a resolução do caos, da divisão, da
fragmentação, do presente. Essa “negatividade irônica é vista por Hegel como um
bloqueio”, conforme observou Vladimir Safatle, pois sua dialética não pode
“acomodar-se com o jogo infinito de paradoxos e de passagens”26 que aí está em
jogo.
Ironia é a “alternância constante de autocriação e auto-aniquilamento”27,
afirma Schlegel. Tanto autocriação quanto auto-aniquilamento estão presentes na
dialética de Hegel. São o sim e o não. Eis aqui, porém, a grande diferença.
Enquanto na dialética a alternância entre criação e destruição estava destinada a
encontrar seu acabamento na síntese entre tese e antítese, na ironia esta
alternância é constante, ou seja, ela não dá lugar senão a seu próprio
desdobramento, que jamais encontra conciliação final. Ficamos oscilando, aqui,
entre o sim e o não, a tese e a antítese, o finito e o infinito, a ordem e o caos, a
ficção e a realidade, o enredo e a obra, a obra e a arte, a vida e a morte.
*
24 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum,Fr. 116).25 Ibid., p. 153 (Idéias, Fr. 69).26 Vladimir Safatle, “Dialética, ironia, cinismo”, in Cinismo e falência da crítica (São Paulo,Boitempo, 2008), p. 41.27 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 54 (Athenäum,Fr. 51).
204
Ironia era a forma subjacente aos escritos dos primeiros românticos
alemães. Não surpreende, portanto, que eles tenham causado tanta polêmica na
época de sua publicação. Seu sentido permanecia perigosamente próximo da
ausência de entendimento, já que a ironia corrói a clareza. Por isso, na última
edição da Athenäum, Friedrich Schlegel publica seu opúsculo sobre o problema da
compreensão e daquilo que não é compreensível, sob a desculpa de defender seus
escritos dos ataques que vinham sofrendo. Esperaríamos que, no opúsculo,
Schlegel, então, esclarecesse o que queria dizer. Só que nada assim ocorre. “Eu já
fui forçado a admitir indiretamente que a Athenäum é incompreensível, e como
isso aconteceu no calor da ironia, mal posso desfazê-lo sem que no processo faça
violência a esta ironia”28. Schlegel não fará violência à sua ironia porque ela não é
sua. Ela é do texto. É a ironia da própria linguagem, e não algum adorno
circunstancial. Ironia é a admissão, por parte da linguagem, de que o sentido não
pode ser completamente compreensível. Redobrando o problema, ao invés de
solucioná-lo, Schlegel adota, no seu opúsculo, o espírito irônico que fizera seus
outros escritos causarem escândalo. Ironia de novo.
Explica-se, assim, que Schlegel proponha aí o sistema total da ironia.
Teríamos a ironia crassa, encontrada na natureza das coisas e que se sente em casa
na história da humanidade; a ironia fina ou delicada, assim como a extrafina,
comum entre os poetas, também chegados à ironia direta; a ironia dramática,
“quando um autor que escreve três atos, surpreendentemente, torna-se outro
homem e agora precisa escrever os dois últimos atos”29; e a dupla ironia, quando
duas linhas irônicas correm paralelamente. Schlegel elenca todos esses tipos de
ironia em ritmo vertiginoso, mal conseguimos acompanhá-lo.
Quais deuses nos salvarão de todas essas ironias? A única solução é achar umaironia que seria capaz de engolir todas essas grandes e pequenas ironias e nãodeixar traço algum delas. Devo confessar que, precisamente nesse momento,sinto que minha ironia tem urgência de fazer justamente isso.30
Será que encontraremos, finalmente, o esclarecimento da ironia? Não. Em
todo seu texto, Schlegel explicita que não temos como parar o efeito corrosivo da 28 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 538.29 Ibid., p. 537.30 Ibid., p. 538.
205
ironia. É como se quiséssemos achar o conceito da ironia, porém, o próprio
conceito é irônico, negando sua pretensão original. Desejamos a síntese final do
sentido que nos colocaria acima da ironia. Só que, sempre que lá chegamos, nos
vemos ainda dentro da ironia. Portanto, o próprio sistema de ironia proposto por
Schlegel é irônico. Sua consumação é o que ele chama de “ironia da ironia”, cujos
exemplos complicam mais do que explicam. Ela ocorre
se alguém fala da ironia sem a empregar, como acabei de fazer; se alguém falaironicamente da ironia sem no processo estar consciente de que caiu em umaironia muito mais intensa; se alguém não consegue mais se destacar da ironia,como parece estar acontecendo neste ensaio sobre a incompreensibilidade; se aironia transforma-se em maneirismo e torna-se, de novo, irônica com o autor…31
Essa suposta classificação não faz sentido. Seus exemplos se contradizem.
Sua reflexividade, que faz com que o texto onde é exposta apareça como exemplo
seu, situa-nos em posição contrária àquela em que precisamos estar para
classificar alguma coisa: dentro. Este traço do escrito de Schlegel foi chamado de
“performático”32, já que ele não declara apenas a ironia, mas é irônico consigo
mesmo, colocando em prática o que diz. Ele só nos deixa com a “ironia tornada
selvagem e que não pode mais ser controlada”33.
Para empregar a terminologia do estudioso da ironia Wayne Booth34, os
escritos dos primeiros românticos não se enquadrariam na “ironia estável”, em
que a dissonância entre sentido literal e real pode ser descoberta e, assim, desfeita.
Instrumentalmente empregada, essa ironia forneceria não só a possibilidade, mas
as dicas para quem está diante dela poder detectá-la e entender o que se queria
dizer. Pelo contrário, o romantismo seria marcado pela “ironia instável”, que
desestabiliza o sentido definitivamente porque não pode ser desfeita. Ela nos
envolve por completo, sem deixar que saiamos para onde contemplaríamos o
sentido sério e verdadeiro. Mais agudo ainda, Paul de Man critica os esquemas
que pretendem parar a ironia pela sua compreensão, como se pudessem, assim, se
desvencilhar de sua cadeia infinita. Para ele, “a ironia é sempre do entendimento”,
ou seja, “o que está em jogo na ironia é sempre a questão de se é possível
31 Ibid., p. 537-538.32 Wilma Maas, “Ironia e performance no Primeiro Romantismo Alemão”, in Revista Artefilosofia,n. 4 (Ouro Preto, IFAC, 2008), p. 171.33 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 538.34 Wayne Booth, A rhetoric of Irony (Chicago, The University of Chicago Press, 1974).
206
entender ou não”35. Seguindo Friedrich Schlegel, Paul de Man afirma que, se a
ironia está enlaçada com a impossibilidade do entendimento, a empreitada de
entendê-la é falida desde o começo. Por isso, Schlegel comenta suas ironias justo
no opúsculo em que trata da falta de completude da compreensão. Mas essa tese
“não significa que devamos parar de lutar com isso, pois é tudo que podemos
fazer, mas isto será sempre interrompido, sempre rompido, sempre desfeito pela
dimensão irônica que irá necessariamente conter”36, afirmou Paul de Man.
*
Somos acostumados, em arte e filosofia, à continuidade. Na arte,
pretendemos que o enredo seja contado com verossimilhança, fazendo-nos
esquecer que aquilo é ficção e o apresentando como verdade empírica. Na
filosofia, esperamos cadeias de deduções, argumentações e demonstrações que
formem totalidade e solidez teórica. No pensamento dos primeiros românticos
alemães são frustradas tais expectativas. Ironia é como chamam essa frustração.
Interrompendo o fechamento da continuidade, esses autores explicitavam a
modernidade como época para a qual o sentido pleno estava sempre perdido.
“Todos os abismos e fissuras inerentes à situação histórica têm de ser
incorporados à configuração e não podem nem devem ser encobertos por meios
composicionais”37, observou Lukács sobre o romance. Este princípio governa as
criações românticas, na arte e na filosofia.
Ironia, para Friedrich Schlegel, é a alma dessas criações, pois “contém e
excita um sentimento do conflito insolúvel entre incondicionado e condicionado,
da impossibilidade e necessidade de uma comunicação total”38. Impossível, a
comunicação total, contudo, é necessária. São as obras condicionadas por toda a
situação histórica em que se encontram que buscam, ainda assim, o sentido sem
condições: a verdade. Insolúvel é este conflito, ao contrário de seu acolhimento na
dialética de Hegel, por exemplo. Escrever em fragmentos, como fazem os
primeiros românticos alemães, é admitir a ausência de continuidade no 35 Paul de Man, “The concept of irony”, in Aesthetic Ideology (Minneapolis, University ofMinnesota Press, 1996), p. 174.36 Ibid., p. 179.37 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 60.38 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 37 (Lyceum, Fr.108).
207
pensamento filosófico, sem sistematização completa e fechada da sua
compreensão. Interromper tornou-se, assim, o gesto de escrita preferido desses
autores. Reconheceram que o sentido sempre escapa, mas não vai embora
definitivamente. Jamais o possuímos, mas também jamais estamos completamente
desprovidos dele. Resta-nos procurá-lo.
Novalis escreveu que “procuramos por toda parte o incondicionado, e
encontramos sempre apenas coisas”39. Ironia foi como seu amigo Friedrich
Schlegel acolheu esta situação. Filosoficamente, diríamos: procuramos por toda
parte o ser, e encontramos sempre apenas os entes. Linguisticamente: procuramos
por toda parte o significado, e encontramos sempre apenas os significantes. É que,
“subjetivamente considerada, a filosofia sempre começa no meio”40, escreve
Schlegel. Não começamos nem do final e nem da origem. Já estamos sempre no
meio e, com isso, jamais totalizamos o sentido da situação na qual nos
encontramos. Daí Schlegel afirmar que “a filosofia é a verdadeira pátria da
ironia”41. Incondicionado é o que ela procura, ou seja, o sentido da verdade e a
verdade do sentido. Nesta procura sem fim, a filosofia conta, porém, somente com
as palavras, sempre condicionadas. “Ironia é a forma do paradoxo” 42, afirma
Schlegel.
Ironia é a reflexão da obra, com o que ela pode estar acima de si mesma.
“Essa ironia é autocorreção da fragmentariedade: as relações inadequadas podem
transformar-se numa ciranda fantástica e bem-ordenada de mal-entendidos e
desencontros mútuos, na qual tudo é visto sob vários prismas: como isolado e
vinculado, como suporte de valor e como nulidade”43, observou Lukács. Essa
autocorreção, contudo, jamais é completa, já que os fragmentos, como os escritos
pelos românticos, continuam fragmentos. Só que eles sugerem o todo, ainda que
este se subtraia sempre que queremos pegá-lo. Ironicamente, a exposição
fragmentária vale-se de sua ambiguidade: é parte e é todo, isola e vincula.
Benjamin observou que “a infinitude da reflexão é, para Schlegel e
Novalis, antes de tudo não uma infinitude da continuidade, mas uma infinitude da
39 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo Iluminuras, 2001), p. 36 (Fr. 1).40 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 60 (Athenäum,Fr. 84).41 Ibid., p. 26 (Lyceum, Fr. 42).42 Ibid., p. 28 (Lyceum, Fr. 48).43 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 76.
208
conexão”44. É esta, e não aquela, a dos fragmentos. Podem comunicar-se entre si,
mas não forçam continuidade. Esse procedimento seria tanto o da filosofia quanto
o da arte: “onde quer que se filosofe em conversas faladas ou escritas, e apenas
não de todo sistematicamente, se deve obter e exigir ironia”, afirma Friedrich
Schlegel, completando que, “nesse aspecto, somente a poesia pode também se
elevar à altura da filosofia”45. Ironia, pátria da arte e da filosofia.
Encontramos esta operação no polêmico romance de Friedrich Schlegel,
Lucinda. Seu erotismo provocou escândalo na sua época, até porque o enredo
emprega a ironia para satirizar costumes burgueses, em especial o casamento
tradicional. Kierkegaard admitiu a dignidade do problema que a estória
enfrentava, pois havia, na época, “uma rigidez moral, uma camisa de força, dentro
da qual nenhum homem razoável consegue mover-se”.
Se olharmos mais de perto aquilo que Schlegel combate com sua ironia,certamente ninguém há de negar que havia e que há muita coisa (…) da vidaconjugal que merece uma tal correção e que leva o sujeito naturalmente a selibertar de tais coisas. Existe aí uma seriedade bitolada demais, uma ênfase naconveniência ou utilidade, uma miserável teleologia idolatrada por tantoshomens…46
Nem assim, porém, Kierkegaard valorizou Lucinda. Para ele, “não é uma
saída o que Fr. Schlegel encontrou, mas sim um desvio em que ele se
desencaminhou”, pois “o que Lucinde pretende é superar toda eticidade, não só no
sentido de usos e costumes, mas sim, toda aquela eticidade que é a validade do
espírito, a dominação do espírito sobre a carne”47. Tal tratamento obsceno do
amor trazia ambiguidade, saindo do âmbito apenas espiritual para o carnal. Mas,
Kierkegaard sabia que o problema era que esta ambiguidade refletia outra, mais
grave: a do sentido. Esta era presente na composição da obra: “a confusão e a
desordem que Lucinde quer introduzir no mundo estabelecido, o romance tenta
ilustrar plasticamente com a mais completa confusão na estrutura”48. Kierkegaard
condenava o romance de Schlegel moralmente, mas também poeticamente. Não
44 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 36.45 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 26 (Lyceum, Fr.42).46 S. A. Kierkegaard, O conceito de ironia (Bragança Paulista, Editora Universitária SãoFrancisco, 2006), p. 248.47 Ibid., p. 248, 251.48 Ibid., p. 252.
209
só ele. Dilthey o considerava “um pequeno monstro do ponto de vista estético”49.
Rudolph Haym o ataca moral e esteticamente50. Hegel assevera que “não deve
acontecer de algum modo o desleixo com a santidade e com a excelência suprema,
como na época da Lucinde de Friedrich von Schlegel”51. No conteúdo e na forma,
a obra ofendia. Ela confundia.
“Para mim e para este escrito, para o meu amor por ele e para a sua forma
em si, não há propósito mais propositado do que anular desde começo o que
chamamos ordem, de afastá-la para muito longe de nós, de reclamar claramente o
direito à confusão encantadora”52, enuncia Lucinda. Podemos então atacar a
confusão da escrita de Schlegel, mas não por desleixo, pois este era seu propósito.
Não “ser demasiado rigoroso quanto à verossimilhança e à significação geral de
uma simples alegoria”, aconselha o “narrador inábil”53. Ele sabe que a
significação é fragmentada. Suas treze partes não são ordenadas linearmente54.
Lucinda contraria a expectativa dos romances de formação da época, sem
apresentar o progresso conclusivo do caráter de Julio, seu personagem. “Schlegel
não escreveu uma narrativa com começo, meio e fim”, como percebeu Karin
Volobuef, mas sim uma “que mescla livremente a descrição e o diálogo; que troca
repetidas vezes de narrador e de foco narrativo; enfim, que louva a transgressão
dos tabus”55.
Ironia é o que estava em jogo. Não só aquela pontual, que satiriza
costumes sociais burgueses. Schlegel não funda o romance “em passagens
irônicas, como a retórica”56, para empregar seus termos. Irônica é sua forma
descontínua, sem fixar o sentido: “as alegorias de Lucinde resistem à interpretação
não porque são proibitivamente esotéricas, mas por seu sabor ligeiramente
49 Wilhelm Dilthey, Leben Schleiermachers (Berlin, G. Reimer, 1870), p. 492.50 Rudolph Haym, Die romantische Schule (Berlin, Weidmannsche Buchhandllung, 1906), p. 501.51 G. W. F. Hegel, Cursos de estética II (São Paulo, Edusp, 2000), p. 240.52 Friedrich Schlegel, Lucinda (Portugal, Guimarães & C. Editores, 1979), p.15.53 Ibid., p. 31.54 “Schlegel não trabalha com uma unidade de efeito, a obra não apresenta um conflito, portantonão há desenlace”, observou Angelita Maria Bogado*.* Angelita Maria Bogado, O romance-projeto: um estudo de Lucinde (1799), de FriedrichSchlegel – Dissertação de Mestrado (São Paulo; Araraquara, Unesp, 2007), p. 17.55 Karin Volobuef, Frestas e arestas: a prosa de ficção do Romantismo na Alemanha e no Brasil(São Paulo, Edunesp, 1999), p. 47.56 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 27 (Lyceum, Fr.42).
210
absurdo e irônico”57, observa Marc Redfield. Não só a diferença entre gêneros
sexuais (masculino e feminino) e entre amor e sexo resiste a interpretações
definitivas, como sugere Lucinda. Ironicamente, o romance está na mesma
situação, com seus sonhos, cartas, diários e outras formas que se entrecruzam na
confusão narrativa de Schlegel. Erotiza-se o enredo. Erotiza-se a linguagem. Tudo
aqui é ambíguo. É alegoria.
*
Na alegoria, os primeiros românticos alemães encontraram o procedimento
estético a ser empregado nas suas criações artísticas e filosóficas: “quero que pelo
menos entendas nestas divinas alegorias tudo quanto não posso diretamente
exprimir”58, pede Lucinda. Esta passagem aponta a alegoria como expressão que
não pode dizer diretamente. Mediar é o que ela faz, como signo que traz consigo a
fratura do sentido que não se dá por completo. Não é acaso, portanto, que a
alegoria surja junto com a ironia no primeiro romantismo. Há, como diz Paul de
Man, “uma estrutura partilhada por ironia e alegoria na medida em que, em ambos
os casos, a relação entre o signo e o sentido é descontínua”, ou seja, “em ambos os
casos, o signo aponta para algo que difere de seu sentido literal e tem por sua
função a tematização desta diferença”59. Em alegorias, o signo aponta não só a
descontinuidade com seu sentido. Ele tematiza a descontinuidade, dá a ver esta
diferença. “Enquanto o símbolo postula a possibilidade de uma identidade ou
identificação, a alegoria designa primordialmente uma distância em relação à sua
própria origem”60, explica Paul de Man. Ele sugere, ainda, que a falta de final
feliz das estórias românticas de amor está nesse teor alegórico: os amantes
“jamais podem entrar em contato completo” e, “quando podem se ver um ao
outro, estão separados por uma distância inalcançável”61.
Portanto, a alegoria estaria em oposição ao símbolo, que pertence ao
classicismo estético. Representar perfeitamente o significado no significante, com
57 Marc Redfield, “Lucinde’s Obscenity”, in The politics of aesthetics: Nationalism, Gender,Romanticism (Stanford University Press, California, 2003), p. 126.58 Friedrich Schlegel, Lucinda (Portugal, Guimarães & C. Editores, 1979), p. 132.59 Paul de Man, “The Rhetoric of Temporality”, in Blindness and Insight (Minneapolis, Universityof Minnesota Press, 1992), p. 209.60 Ibid., p. 207.61 Ibid., p. 228.
211
totalidade orgânica, é o fito do símbolo. Por sua vez, a alegoria quebra esta
harmonia. Expõe “a representação e seus descontentamentos”62, como disse
Azade Seyhan. Ela seria, então, a forma poética da modernidade como época que
perdera a harmonia clássica antiga: “as alegorias são no reino dos pensamentos o
que são as ruínas no meio das coisas”63, disse Walter Benjamin. Escrever
alegoricamente era trazer para dentro da forma de composição das obras aquelas
ruínas que constituíam a paisagem moderna, como foram tematicamente
representadas tantas vezes pelo maior pintor romântico alemão, Caspar David
Friedrich. Não espanta que os primeiros românticos escrevessem em fragmentos.
“É sob a forma de fragmentos que as coisas olham o mundo, através de sua
estrutura alegórica”64, afirma Benjamin.
Este exercício da alegoria teria começado sobretudo com o drama barroco
alemão, de acordo com Benjamin. Sua força, contudo, “foi encoberta pelo
veredicto do preconceito classicista”, que consistia “em denunciar a alegoria,
vendo nela um modo de ilustração, e não uma forma de expressão”, como talvez
tenha feito Goethe, sem perceber que a alegoria é “expressão, como a linguagem,
e como a escrita”65. Se o romantismo tardio costumou prolongar o preconceito
classicista, os primeiros românticos alemães, porém, foram herdeiros da intuição
do drama barroco. “Por isso, é digno de nota que Novalis, que tinha muito mais
consciência do que o separava dos ideais clássicos que os românticos posteriores,
revele uma profunda compreensão da essência da alegoria”66.
Neste contexto, a beleza clássica, que supunha a representação simbólica,
tornava-se problemática. Benjamin explica que, com a alegoria, a “beleza
simbólica evapora-se” e “o falso brilho da totalidade extingue-se”, trazendo “uma
profunda intuição do caráter problemático da arte”67. Efeito disso foi a valorização
da categoria do sublime, que estaria vinculada à alegoria, por oposição à beleza
simbólica: “a alegoria é essencialmente fragmentária, distante de qualquer
perspectiva harmônica, totalizante do símbolo, ou de uma estética do belo”68,
62 Azade Seyhan, Representation and its discontents (Los Angeles, University of California Press,1992).63 Walter Benjamin, A origem do drama barroco alemão (São Paulo, Brasiliense, 1988), p. 200.64 Ibid., p. 208.65 Ibid., p. 184.66 Ibid., p. 209.67 Walter Benjamin, Origem do drama trágico alemão (Lisboa, Assírio & Alvim, 2004), p. 191.68 Katia Muricy, “O sublime e a alegoria”, in Revista O que nos faz pensar, n. 21 (Rio de Janeiro,PUC-Rio, 2007), p. 48.
212
como apontou Katia Muricy. Era o conflito sublime que ganhava lugar na
modernidade, embora seu germe já estivesse no antigo escrito de Longino.
Quando, pois, uma passagem, escutada muitas vezes por um homem sensato eversado em literatura, não dispõe a sua alma a sentimentos elevados, nem deixano seu pensamento matéria para reflexões além do que dizem as palavras, e, bemexaminada sem interrupção, perde em apreço, já não haverá um verdadeirosublime, pois dura apenas o tempo em que é ouvida. Verdadeiramente grande é otexto com muita matéria para reflexão, de árdua ou, antes, impossível resistênciae forte lembrança, difícil de apagar.69
Muitos traços do sublime moderno são antecipados nas teses atribuídas a
Longino, cuja autoria, porém, era controversa. Sua pretensão, seja como for,
focava-se na oratória. Ele queria fornecer boa orientação retórica. Seu escrito, por
isso, foi apropriado depois por Boileau e o neoclassicismo francês, em busca de
regras para a formulação de discursos e obras. “Todavia, a economia do texto é
afectada por uma incerteza, como se o seu tema, o sublime, o indeterminado,
desestabilizasse o seu projeto didáctico”, observou Jean-François Lyotard,
concluindo: “a noção de sublime desregra esta harmonia” 70, a saber, a harmonia
pretendida pelo classicismo. Foi o que apontou, com precisão, Ernst Cassirer.
Os mais profundos movimentos da alma, as experiências artísticas mais intensasnão são despertadas em nós pela contemplação da “beleza” como proporçãoserena e construção rigorosa. Uma excitação mais viva manifesta-se quandoestamos em presença não da exata delimitação da forma mas, pelo contrário, desua discordância, inclusive de sua dissolução completa. (…) Esse fenômeno, quedestrói o quadro conceptual da estética de então, recebeu de Burke a designaçãode sublime.71
É em Burke, mas sobretudo em Kant, que achamos a teoria moderna do
sublime. Este afirma que, ao contrário do que sentimos diante da beleza, “o
sentimento do sublime, na verdade pode, quanto à forma, aparecer como contrário
a fins para nossa faculdade de juízo, inconveniente à nossa faculdade de
apresentação e, por assim dizer, violento para a faculdade da imaginação”72. Kant
expunha o caráter conflituoso do sublime, no qual aquilo que se pretende
representado jamais cabe na própria representação, tornada, assim, falha. No
69 Longino, “Do sublime”, in Aristóteles, Horácio, Longino, A poética clássica (São Paulo,Cultrix, 2005), p. 76 (VII.3).70 Jean-François Lyotard, “O sublime e a vanguarda”, in O inumano: considerações sobre o tempo(Lisboa, Editorial Estampa, 1990), p. 99-101.71 Ernst Cassirer, A filosofia do iluminismo (Campinas, Editora da Unicamp, 1997), p. 430.72 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 91 (76).
213
sublime, que por isso pode ser visto como alegórico, não há conveniência entre a
representação e o representado, o que ocorria no símbolo. Essa bela aparência é
quebrada porque o sublime excede o que a aparência pode ser, violentando a
imaginação.
Para Kant, o “sublime não pode estar contido em nenhuma forma sensível,
mas concerne somente a idéias da razão, que, embora não possibilitem nenhuma
representação adequada a elas, são ativadas e evocadas ao ânimo precisamente por
essa inadequação, que se deixa apresentar sensivelmente”73. Idéias da razão são
idéias como a de infinito ou de absoluto, quer dizer, tudo aquilo que justamente
não cabe em qualquer representação sensível determinada, já que esta é sempre
finita. Tais idéias só são ativadas indiretamente, pelo que aqui estamos chamando
de alegoria. Representa-se a própria inadequação da representação, que portanto
exibe o fracasso de si mesma como seu modo de ser.
Fracassando na representação daquilo que desejava representar, porém, o
sublime desperta, através deste fracasso, o pensamento. Sem conseguir abarcar na
forma sensível aparente o que é representado, somos forçados para outro lugar
que não é o dos sentidos: o pensamento. “Sublime é o que somente pelo fato de
poder também pensá-lo prova uma faculdade de ânimo que ultrapassa todo padrão
de medida dos sentidos”74. Deve ser assim porque o sublime “é absolutamente
grande”, ou seja, grande fora de toda comparação e medida. Não há representação
para ele. Mas é possível representar esta impossibilidade, o que traz, então, não só
o prazer estético do belo. Traz dor. É a dor de não conseguir formar imagens
sensíveis. É o prazer de ativar, por outro lado, a faculdade do pensar. Isto ocorre
pela própria inadequação de nossa faculdade de imaginação na tentativa de avaliar
a grandeza de um objeto, de onde decorre aquele “desprazer que ativa em nós o
sentimento de nossa destinação supra-sensível”75, ou seja, pensante – que pode aí
ser prazerosa.
Neste ponto, surge o que “Kant chama apresentação negativa, ou mesmo,
uma não-apresentação”76, aponta Jean-François Lyotard. Seria preciso, então,
“fazer alusão a algo que não pode ser mostrado”, gesto adotado em geral pelas
73 Ibid., p. 91 (77).74 Ibid., p. 96 (85).75 Ibid., p. 104 (98).76 Jean-François Lyotard, “O sublime e a vanguarda”, in O inumano: considerações sobre o tempo(Lisboa, Editorial Estampa, 1990), p. 103.
214
vanguardas: “o sublime será talvez o modo da sensibilidade artística que
caracteriza o modernismo”77, sugere Lyotard. Já que o sublime soa alegórico, e
não simbólico como o belo, as vanguardas, cujo espírito foi antecipado pelos
primeiros românticos alemães, deveriam ser alegóricas. É a teoria, por exemplo,
de Peter Bürger sobre os movimentos artísticos do começo do século XX. “Na
obra de arte orgânica (simbólica), a unidade do geral e do particular é estabelecida
sem mediação; na obra não-orgânica (alegórica), ao contrário – é o caso das obras
de vanguarda –, trata-se de uma unidade mediada”, afirma ele, pois, “aqui, o
momento da unidade é, por assim dizer, afastado para infinitamente longe”78.
Retornemos aos primeiros românticos alemães. “Belo é aquilo que é ao
mesmo tempo atraente e sublime”79, escreve Friedrich Schlegel, confirmando o
predomínio deste sobre aquele. “Toda beleza é alegoria”80, acrescenta. Em outras
palavras, toda beleza é, no fundo, sublime, já que a alegoria quebra a harmonia do
símbolo como sustentação da beleza clássica tradicional. “Do mais elevado, por
ser inexprimível, só se pode falar de maneira alegórica”81, confirma ainda
Schlegel. Noutras palavras: do absoluto, do infinito e do ilimitado só podemos
falar indiretamente, já que as obras são relativas, finitas e limitadas – mas podem
despertar o sublime, apresentando a impossibilidade de apresentar. Tanto que
“uma obra está formada quando está”, afirma Schlegel, “sublime acima de si
mesma”82. Deste conflito sem solução vem a tristeza do sublime, semelhante à
melancolia que às vezes paira sobre a alegoria: ambos são a apresentação do que
não se apresenta jamais. Fazem presente a ausência ao mesmo tempo em que
ausentam a presença.
Era já esta a operação alegórica que os primeiros românticos pretendiam
com a ironia, por isso qualificada de “sublime”83. Se, “na sua configuração
simbólica, o belo formaria com o divino um todo contínuo”84, como observou
Benjamin, a ironia, por sua vez, “é capaz de vislumbrar a plenitude divina do
77 Ibid., p. 95-99.78 Peter Bürger, Teoria da vanguarda (São Paulo, Cosac Naify, 2008), p. 118.79 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 63 (Athenäum,Fr. 108).80 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 58.81 Ibid., p. 58.82 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 100 (Athenäum,Fr. 297).83 Ibid., p. 26 (Lyceum, Fr. 42).84 Walter Benjamin, Origem do drama trágico alemão (Lisboa, Assírio & Alvim, 2004), p. 174.
215
mundo abandonado por deus”85, como apontou Lukács. Ironia aproxima-se,
portanto, do sublime e da alegoria. Deus apresenta-se, aqui, apenas como aquele
que se ausenta, assim como a plenitude de sentido do ser.
*
Lemos, nos escritos de Walter Benjamin, que “o fragmento e a ironia
constituem metamorfoses do alegórico”86. Todos os três, fragmento, ironia e
alegoria, apresentam o sentido como problema, a partir da perspectiva
descontínua que lhes é própria. Em todos os três, falta a totalidade orgânica. Foi
Octavio Paz quem explicou que a centralidade da ironia para os românticos estava
em que ela “revela a dualidade daquilo que parecia uno, a cisão do idêntico”87. No
caso da apresentação do pensamento na linguagem, sublinha-se que o signo e o
significado não coincidem, como gostaria a estética clássica da beleza simbólica.
Este gesto detonava o processo moderno que “tem dissolvido criticamente a idéia
da obra redonda e compacta”88, para empregar o vocabulário adorniano mais
contemporâneo. Marca-se, assim, a perda moderna da possibilidade de plena
significação.
Encontramos o anúncio desta perda na filosofia da arte de Schelling, de
1802. Sua explicação é simples: “na alegoria, o particular somente significa o
universal, na mitologia ele próprio é ao mesmo tempo universal”89. Em outras
palavras, o signo (particular), para os antigos gregos, era já o sentido (universal),
em plena harmonia conjunta. Esta era sua mitologia. Não havia o abismo que a
época moderna conheceu sob o nome de alegoria, quebrando a continuidade entre
o signo e o sentido. “Não há ironia nos deuses gregos”90, como observou Rubens
Rodrigues Torres Filho em ensaio sobre o simbólico em Schelling. Embora o
contexto exposto pelo filósofo alemão evidencie sua participação no primeiro
grupo romântico que acabara poucos anos antes, seu elogio do símbolo contra a
alegoria o afasta daquele pensamento, como ocorreu com outros integrantes
85 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 95.86 Ibid., p. 210.87 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 68.88 Theodor Adorno, Filosofia da nova música (São Paulo, Perspectiva, 1989), p. 33.89 F. Schelling, Filosofia da arte (São Paulo, Edusp, 2001), p. 71 (409).90 Rubens Rodrigues Torres Filho, “O simbólico em Schelling”, in Ensaios de filosofia ilustrada(São Paulo, Iluminuras, 2004), p. 117.
216
depois.
Enquanto o grupo estava junto, porém, a concepção alegórica prevalecia.
Lemos, na Conversa sobre poesia, que “a linguagem, entendida originariamente
como idêntica à alegoria, é a primeira ferramenta espontânea da magia”91. Magia
esta que ocorre sempre que aquilo que é finito pode, ainda que precariamente,
significar o absoluto, que é sem fim. Ironia é outro nome para esta operação
mágica que faz a linguagem. Importa, como afirma Beda Allemann, o que “na
obra de arte parece saltar ironicamente”, pois, junto àquilo que é dito e formulado,
há “o que é inexprimível e permanece obscuro sob o fundo, mas que constitui o
terreno onde se afundam as raízes da linguagem”92. Essa tensão entre o que é
expresso e a profundidade sem fundo de onde provém é o que faz a poesia da
linguagem, seja em verso ou prosa. Linguagem esta cujos signos finitos podem
combinar-se em processos sem fim, para falar do sem fim que é a própria questão
do sentido.
Ironia, compreendida com esta envergadura, foi “a grande invenção
romântica”, como “amor pela contradição que cada um de nós é e consciência
dessa contradição”, observou Octavio Paz, o que, para ele, “define
admiravelmente o paradoxo do romantismo alemão”93. Irônica é a situação
paradoxal da existência do homem, caminhando pela vida sem fim do ser, mas à
beira do abismo que é a sua morte. “Para Schlegel, a situação básica
metafisicamente irônica do homem é que ele é um ser finito que luta para
compreender uma realidade infinita, portanto incompreensível”94, escreveu D. C.
Muecke.
Ironia, portanto, define a tensa combinação do desejo (hegeliano) de
conciliação entre a finitude humana e a infinitude da realidade com a crítica
(kantiana) em relação à possibilidade de tal conciliação. Kierkeggard comentara
que “a discrepância, que a ironia estabelece com a realidade, já está
suficientemente indicada quando se diz que a orientação irônica é essencialmente
crítica”, completando ainda que “tanto o seu filósofo (Schlegel) como o seu poeta
91 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 78.92 Beda Allemann, Ironia e Poesia (Milano, Mursia, 1971), p. 185.93 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 63.94 D. C. Muecke, Ironia e o irônico (São Paulo, Perspectiva, 1995), p. 39.
217
(Tieck) são críticos”95. Ironia, assim compreendida, é pátria da filosofia: ama o
saber, mas sabe que o saber não é completamente sabido. Pode-se, então,
“somente vir a ser, não ser filósofo”, já que “tão logo se acredita sê-lo, se deixa de
o vir a ser”96, escreve Friedrich Schlegel.
Novalis dizia, precisamente nesse sentido, que “quem procura,
duvidará”97. Ignorância e conhecimento estão, aqui, próximos: “quanto mais já se
sabe, tanto mais ainda se tem de aprender”, pois “não saber, ou antes, saber que
não se sabe, aumenta no mesmo grau que o saber”98, afirmava socraticamente
Friedrich Schlegel. É que o saber é como o círculo fora do qual está o
desconhecido: quanto mais conhecemos, mais este círculo cresce e, junto com ele,
cresce a superfície de contato que temos com o que está fora dele, que não é senão
aquilo que ignoramos. Por isso, quanto mais conhecemos, mais conhecemos
também o quanto desconhecemos.
Essa constatação não deve causar surpresa, pois Sócrates, na origem da
filosofia, já era considerado irônico. Platão fala da “amostra da conhecida ironia
de Sócrates”, quando certo personagem em um de seus diálogos o ataca
afirmando: “eu sabia, e disso mesmo tinha avisado os presentes, que ele não
haveria de dialogar, pois preferes recorrer à ironia e a toda sorte de estratagemas,
a responder ao que eu te perguntasse”99. Irônico era afirmar: só sei que nada sei.
Recusando soluções prontas às perguntas feitas, Sócrates era condenado; afinal,
como percebeu contemporaneamente Richard Rorty, “o oposto da ironia é o senso
comum”100. Sócrates opunha-se ao senso comum. Ironia era seu problema, pois
esta não o deixava satisfazer a ansiedade geral pelo conhecimento. Por isso,
Friedrich Schlegel gosta de citar a “ironia socrática”101, às vezes chamada de
“musa socrática”102. Longe de ser apenas dissimulação, a ironia de Sócrates era já
crítica, apontando para a ausência de fim do processo compreensivo que ama o
95 S. A. Kierkegaard, O conceito de ironia (Bragança Paulista, Editora Universitária SãoFrancisco, 2006), p. 238.96 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 55 (Athenäum,Fr. 54).97 Novalis, “Observações entremescladas”, in Pólen (São Paulo Iluminuras, 2001), p. 49 (Fr. 22).98 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 95 (Athenäum,Fr. 267).99 Platão, A república (Belém, EDUFPA, 2000), p. 64 (337a).100 Richard Rorty, Contingência, ironia e solidariedade (São Paulo, Martins Fontes, 2007), p. 134.101 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 37 (Lyceum, Fr.108).102 Ibid., p. 26 (Lyceum, Fr. 42).
218
saber, a filosofia.
Reconhecer este caráter sem fim da filosofia colocava os primeiros
românticos na extrema oposição ao pensamento de Hegel, que gostaria justamente
de consumar a história em seu sistema do saber. Ironia, nesse sentido, não era o
“quase” ou o “ainda não” da dialética, como dissemos anteriormente. “Schlegel
não empregou a metáfora do ‘ainda não’ para designar um estágio transitório a ser
superado por uma forma completa de conhecimento e escrita literária, mas via aí a
forma humana apropriada de compreensão e comunicação”103, como atentou Ernst
Behler. Essa situação não deixava de ser, em algum sentido, trágica: a condição
de possibilidade de sua procura era trazer, junto consigo e simultaneamente, a
corrosão daquilo que era procurado. Se esta época da cultura alemã esteve muito
interessada em geral no sentido da tragédia104, a ironia, para os primeiros
românticos alemães, era, por sua vez, a tragédia do sentido.
103 Ernst Behler, German Romantic Literary Theory (Cambridge, Cambridge University Press,1993), p. 152.104 Interesse este que não era apenas curiosidade pelo mundo grego e sua arte, mas preocupaçãocom a possível constituição ontológica trágica da própria modernidade, como mostrou o trabalhode fôlego de Roberto Machado*.* Roberto Machado, O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche (Rio de Janeiro, JorgeZahar, 2006).
12
Ler o universo, viver o poema:
a linguagem como diluição do autor
“Palavras geralmente compreendem a si mesmas melhor do que aqueles
que as usam”1. Esta frase de Friedrich Schlegel soa estranhamente familiar,
deslocando a faculdade do entendimento, pela qual em geral definimos a
humanidade do homem, para as palavras. Elas compreenderiam a si mesmas
melhor do que nós, que as empregamos. Muitas vezes, o controle subjetivo que
nossa vontade pretende possuir sobre as palavras seria menos poderoso do que
achamos. Nem sempre conseguimos sujeitar as palavras a nossos desígnios.
Estamos freqüentemente sujeitos a elas, que frustram, assim, nossas tentativas de
pleno esclarecimento do significado que encerrariam. Entretanto, trazem à tona
então, e só então, outra dimensão da linguagem para o homem.
Linguagem, portanto, não poderia ser algo que os primeiros românticos
alemães apenas usariam instrumentalmente para comunicar o que queriam.
Submeter as palavras aos planos e cálculos de significados como se elas fossem
significantes à disposição seria, ainda, entrar em contato com elas dentro do
paradigma pragmático que confia no poder do sujeito consciente sobre elas.
Tratava-se, então, de buscar alguma aproximação acolhedora da arte combinatória
de sentido que as próprias palavras trariam consigo. Sendo assim, o primeiro
grupo romântico alemão, no final do século XVIII, colocará em atividade certo
processo de produção de escrita completamente diferente do que até então era
conhecido e do que, até hoje, estamos acostumados. Eles o chamaram de
sinfilosofia e simpoesia.
Esta proposta consistia na possibilidade de filosofar ou poetar
conjuntamente. Nas palavras “sinfilosofia” e “simpoesia”, o prefixo “sim” aponta
para o mesmo significado presente em “simpatia”, ou seja, afinidade que junta,
1 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, Carl HanserVerlag, 1970), p. 531.
220
patos comum. Tal proposta justifica que grande parte das publicações do grupo
romântico de Iena tenha sido veiculada sem assinatura dos seus integrantes.
Escritos produzidos dentro de uma troca tão intensa de pensamentos não poderiam
ter sua autoria atribuída a algum sujeito determinado. Eles eram o coroamento
final da dança de palavras que havia se dado nos encontros do grupo. Não seria
possível decidir quem sugeriu cada passo. Mas a dança estava lá. É o que, aliás,
encontramos até hoje em tais escritos: a dança anônima do sentido.
Posteriormente, vários estudos foram feitos para atribuir autoria àquilo
que, em sua origem e sentido, não tinha autor. Hoje, os primeiros escritos
românticos são classificados cuidadosamente, para podermos distinguir quais
pertencem a quem. Dissolvemos, assim, a proposta do grupo e, pior, corremos o
risco de esquecer que ela estava fundada em sua filosofia da linguagem. Mesmo
quando assinavam textos, os membros do grupo, ao menos enquanto este
perdurou, pretendiam estar dentro do âmbito desta filosofia, para a qual a autoria
era conceito altamente problemático. Eles pensavam que “uma época inteiramente
nova das ciências e artes começaria talvez quando sinfilosofia e simpoesia
tivessem se tornado tão universais e tão interiores, que já não seria nada raro se
algumas naturezas que se complementam reciprocamente constituíssem obras em
conjunto”, já que “muitas vezes não se pode evitar o pensamento de que dois
espíritos poderiam no fundo pertencer um ao outro, como metades separadas, e só
juntos ser tudo o que pudessem ser”2.
Entendemos, assim, por que os primeiros românticos alemães precisaram
formar o grupo amoroso que testemunhou tanto a troca intelectual quanto a troca
afetiva entre seus integrantes. Só com amor, enquanto possibilidade de encontros,
poderiam acontecer a sinfilosofia e a simpoesia. Reciprocidade era a chave para
abrir essa produção conjunta, potencializando partes que, separadas, talvez fossem
privadas do que juntas são capazes. “Filosofar significa buscar onisciência em
conjunto”3, escreveu Friedrich Schlegel. Esta frase serve tanto para explicarmos
que a filosofia do primeiro romantismo alemão tenha sido feita em grupo quanto
para compreender sua escrita propositalmente fragmentária. Dentro do texto, os
fragmentos, que por isso devem sempre vir no plural, são a busca da onisciência
2 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 67 (Athenäum, Fr.125).3 Ibid., p. 113 (Athenäum, Fr. 344).
221
em conjunto, o que já define admiravelmente seu paradoxo, pois a onisciência não
possui aí a totalidade que supomos, devendo ser buscada, então, na pluralidade do
conjunto: de pessoas ou de fragmentos.
Resta, ainda, outro alargamento das noções de “sinfilosofia” e
“simpoesia”, feito pelos primeiros românticos alemães. É que, se o sentido das
palavras não é completamente controlado pelo seu autor, então este entra, através
daquelas, em contato com seu leitor de forma diferente da que estamos
habituados. Leitor é aquele que participa da construção do sentido que é posto
pelas próprias palavras. Por sua vez, o escritor “não quer produzir nenhum efeito
determinado sobre ele, mas com ele entra na sagrada relação da mais íntima
sinfilosofia ou simpoesia”4. Por isso justamente, “não se deve querer sinfilosofar
com todos”5, afirma Friedrich Schlegel, afinal, são as afinidades fora de nosso
controle voluntário que constroem os elos onde esta atividade pode se dar.
Linguagem é aquilo dentro do qual os homens encontram-se, portanto, aí eles
podem se encontrar uns com os outros também. Leitor e escritor são pólos
produzidos pelo evento da linguagem.
*
Este princípio de organização fora das determinações subjetivas
conscientes foi chamado pelos primeiros românticos alemães de chiste. Friedrich
Schlegel definiu o chiste como “explosão do espírito estabilizado”6. Encadeamos
sempre palavra atrás de palavra, forjando explicações coerentes e, subitamente,
somos surpreendidos por aquela palavra que não era para estar ali, que não
queríamos. Eis o chiste. Ele explode a estabilidade que o espírito supunha poder
manter. Faz surgir, a despeito de nossa vontade, alguma outra coisa: na fala, no
papel, na vida. Lembra-nos, com isso, o quanto não somos senhores da linguagem
e, até, de nós mesmos. Precursor do que Freud, décadas depois, chamaria de
chiste na psicanálise, o conceito romântico aponta já para o valor do inconsciente.
Nele, as palavras poderiam achar-se sem o domínio dos homens, mas
através deles. Derrubava-se o voluntarismo diante das palavras. “No chiste, querer
4 Ibid., p. 38 (Lyceum, Fr. 112).5 Ibid., p. 94 (Athenäum, Fr. 264).6 Ibid., p. 34 (Lyceum, Fr. 90).
222
só pode consistir em suprimir as barreiras convencionais e em deixar o espírito
livre”7, afirmou August Schlegel. Ficava restrito o papel da vontade à
contribuição para chegar até o terreno no qual o chiste pode se dar. Mas ela não
entra neste terreno. Em geral, aliás, ela sequer ajuda a chegar lá. Tanto que “o
mais chistoso seria, contudo, quem o fosse não apenas sem querer, mas também
contra sua vontade”8. Ironia é a amiga do chiste. São lugares onde a linguagem
quebra sua clareza. Nossa vontade quer continuidade, é pautada por regras de
raciocínio convencionadas, que seguimos sem pensar. Interrompê-las é o que faz
o chiste.
Desagregador, o chiste, como a alegoria que os primeiros românticos
alemães por vezes opuseram ao símbolo classicista, apresenta a descontinuidade
na construção do sentido que se queria completo e total. Friedrich Schlegel chega
a falar que os chistes “provocam uma pausa desagradável na conversa”9, afinal,
surgem como obstáculos na sua trajetória ordenada. Eles quebram a cadeia de
causas e conseqüências tão bem organizada pelo entendimento humano.
Evidenciam, para o homem, que aí corre junto outro entendimento, do qual em
geral nem sequer suspeitamos. Esse chiste, portanto, cria encontros sem pré-visão
pelos quais nós, homens, aprendemos que as próprias palavras têm sua arte
combinatória, com a qual podemos entrar em contato e que pode até surgir através
de nós, mas que não temos como fabricar quando e como queremos.
Um achado chistoso é uma desagregação de elementos espirituais, que, portanto,tinham de estar intimamente misturados antes da súbita separação. A imaginaçãotem de estar primeiro provida, até a saturação, de toda espécie de vida, para quepossa chegar o tempo de a eletrizar de tal modo pela fricção da livresociabilidade, que a excitação do mais leve contato amigo ou inimigo possa lhearrancar faíscas fulgurantes e raios luminosos ou choques estridentes.10
Imaginação costuma ser a faculdade chistosa: suas conexões têm maior
liberdade para articular sentidos não estabelecidos. Para Friedrich Schlegel, o
“chiste é sociabilidade lógica”11. Lógica fala, aqui, a partir da origem grega da
palavra “logos”, que diz não só razão, mas também discurso. É a razão da
linguagem que está em jogo no chiste, de modo mais fundamental que a razão
7 Ibid., p. 62 (Athenäum, Fr. 106).8 Ibid., p. 62 (Athenäum, Fr. 106).9 Ibid., p. 126 (Athenäum, Fr. 394).10 Ibid., p. 24 (Lyceum, Fr. 34).11 Ibid., p. 29 (Lyceum, Fr. 56).
223
subjetiva. Irracional, portanto, é tudo que o chiste não é. Ele é a razão presente,
por exemplo, nos sonhos. Tanto que Friedrich Schlegel escreve que “há também
uma razão espessa e ígnea, que faz o chiste propriamente chiste, e dá elasticidade
e eletricidade ao estilo sólido”12. Esse chiste, portanto, tem a sua racionalidade, só
não no sentido estreito “daquilo que habitualmente se chama razão”13.
Sociabilidade do chiste, então, não depende daquilo que queremos ou
escolhemos: “achados chistosos são como o surpreendente reencontro de dois
pensamentos amigos após uma longa separação”14. Palavras, aqui, podem, a toda
hora, conectarem-se entre si sem que as controlemos. Perdemos a cadeia
sistemática do conhecimento, mas ganhamos caminhos que não prevíamos, fora
da continuidade linear. Raios luminosos, faíscas fulgurantes, choques estridentes,
fricção: é assim que age o chiste. Ele não abole o contato entre as palavras, mas
somente a ordem que julgávamos estruturar este contato, fazendo surgir, a cada
vez, outra, diferente da que achávamos saber.
Nesse sentido, o chiste afasta-se da moral e de suas regras. Intenção
voluntarista é o que domina a moralidade. Na arte, ocorre o contrário disso. Não
adianta, por exemplo, querer gostar desta ou daquela obra, pois nosso gosto ignora
nossa vontade de gostar, como já dizia Kant. Não decidimos do que gostamos;.
apenas gostamos. Por isso, August Schlegel afirma que “a apreciação moral é
inteiramente oposta à apreciação estética”, pois, “lá, a boa vontade é o valor de
tudo; aqui, de absolutamente nada”15. Não é no que o autor quer dizer que se
decide o sentido de sua obra, mas sim no que ela, a obra, diz. Este dizer é tão
amplo que não pode ser controlado por qualquer vontade consciente.
Se as palavras compreendem a si mesmas melhor do que os homens que as
usam, então o sentido da obra pertence à linguagem. Esta linguagem não deseja
saber a vontade de quem criou a obra, e sim o que ela, em si mesma, mostra. É o
que aparece nos achados chistosos, onde as palavras encontram umas às outras,
até à revelia do que pretendia quem as colocou no papel. Tanto que “uma única
palavra analítica, mesmo como elogio, pode apagar imediatamente o mais notável
achado chistoso, cuja chama só iria aquecer depois que tivesse brilhado”16, disse
12 Ibid., p. 36 (Lyceum, Fr. 104).13 Ibid., p. 36 (Lyceum, Fr. 104).14 Ibid., p. 53 (Athenäum, Fr. 37).15 Ibid., p. 62 (Athenäum, Fr. 106).16 Ibid., p. 23 (Lyceum, Fr. 22).
224
Friedrich Schlegel. “Deve-se ter chiste, sem o querer ter”17, portanto. Com ele, a
linguagem toma conta do suposto autor, tornando-se ela a autora do que ali vai
escrito. Neste contexto, se o artista pode orgulhar-se de alguma coisa, é “da obra
que ultrapassa divinamente toda intenção, e cuja intenção ninguém aprenderá até
o fim”18, assevera Schlegel, deduzindo por aí o caráter sem fim das interpretações
das obras de arte. Intenção é o que fica para trás na criação, que assim supera a
particularidade subjetiva empírica e pode fundar a comunicação na arte, até
mesmo nas expressões líricas.
Nesse sentido, os românticos aproximaram o chiste da genialidade que, ao
invés de falar a partir de si, deixa a fala ocorrer através de si. Friedrich Schlegel
afirma que chiste é “genialidade fragmentária”19. Ela é fragmentária porque
justamente não compõe qualquer totalidade orgânica ordenada conscientemente,
mas deixa surgirem, aqui e ali, os encontros entre as palavras que podem forjar
algum sentido não sabido previamente sequer pelo autor empírico – que por isso é
um gênio. Novalis, às vezes, falava, sob este aspecto, de gênio da língua. Nessa
medida, o gênio não expressaria particularidades individuais. Pelo contrário, o
autor genial apaga-se, para que a linguagem apareça. Friedrich Schlegel escreve
que “o artista que não renuncia a todo o seu si mesmo é um servo inútil”20.
Inverte-se o esquema habitual: o poeta é objeto da criação, que se torna, ela, o
sujeito; atividade é deixar-se ser afetado e tomado pela poesia que aí se exerce.
*
Tanto a centralidade do chiste quanto a proposta de simpoesia e de
sinfilosofia na origem do romantismo alemão anteciparam questionamentos
contemporâneos decisivos, a partir da filosofia da linguagem, sobre a noção de
autoria. Esta era, então, destituída do caráter individual. “Nas suas manifestações
mais extremas, a vanguarda contrapõe a esse caráter não apenas o coletivo, como
sujeito da criação, mas a negação radical da categoria da produção individual”21,
observou Peter Bürger, pensando nos movimentos artísticos do começo do século
17 Ibid., p. 52 (Athenäum, Fr. 32).18 Ibid., p. 162 (Idéias, Fr. 136).19 Ibid., p. 22 (Lyceum, Fr. 9).20 Ibid., p. 158 (Idéias, Fr. 113).21 Peter Bürger, Teoria da vanguarda (São Paulo, Cosac Naify, 2008), p. 109
225
XX, como aquele dos surrealistas. Eram os primeiros românticos alemães,
contudo, que já eram vanguarda no final do século XVIII.
Enquanto a época moderna buscava estabelecer a solidez da figura do
autor, os primeiros românticos, simultaneamente, já a diluíam. Essa figura do
autor “faz parte da evidência de um novo modo de produção de sentido, que é
habitualmente referido pela noção de ‘subjetividade moderna’”, explica Hans
Ulrich Gumbrecht, na qual “o homem concebe-se como a instância que confere
seu sentido aos fenômenos, por oposição à cosmologia medieval, fundada, em
razão do ato divino da criação, na imanência do sentido”22. Sem Deus como fonte
segura e referência de estabilização do sentido entre as palavras e as coisas, os
modernos buscaram colocá-la no sujeito autor.
Mas se a intervenção do sujeito criou assim as condições propícias aoaparecimento do papel de autor, foi a invenção da imprensa que o tornou umanecessidade concreta. Foi, com efeito, o livro impresso que transformou em casoexcepcional o que até então era a situação normal da comunicação humana, asaber, a copresença física dos participantes. Esta implicava a possibilidade deproduzir significações consensuais entre quem falava e quem escutava. Com odesaparecimento da situação de interação direta, os leitores tiveram necessidadede uma nova orientação para dominar o risco de uma plurivocidade, ou mesmo deuma confusão, de sentido. O papel de autor encontrava aí a sua formaçãoespecífica e sua razão de ser históricas.23
Nesse contexto, podemos dizer que os primeiros românticos alemães
destituíam a autoria justamente porque queriam acolher, ao invés de expulsar, a
confusão do sentido que dominava a época moderna, enxergando na sua
plurivocidade o risco que jamais pode ser dominado quando estamos na
linguagem. Tal confusão, aliás, exigiria que o leitor entrasse em relação ativa e
criativa com a obra, pois o sentido não poderia ser estabilizado pela remissão à
figura do autor. Intenção autoral era a estratégia moderna para acobertar o
problema do sentido. Era o que os primeiros românticos alemães não endossavam,
já que o chiste tirava da subjetividade sua autoridade. Descentrava-se a questão do
sentido.
Nada disso, teoricamente, é distante de nós. Michel Foucault, em 1969,
afirmava que “o apagamento do autor tornou-se desde então, para a crítica, um
22 Han Ulrich Gumbrecht, Modernização dos sentidos (São Paulo, Ed. 34, 1998), p. 104.23 Ibid., p. 104.
226
tema cotidiano”24. Ele já problematizava, aliás, essa assertiva, embora
confirmasse que na escrita “não se trata da amarração de um sujeito em uma
linguagem: trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não pára
de desaparecer”25. Foucault, porém, alertava que este desaparecimento não é
suficiente para compreendermos o que aí entra em jogo. Pergunta-se: “essa noção
não transporta, em um anonimato transcendental, as características empíricas do
autor”26? Para evitar ficar aí, portanto, “não basta, evidentemente, repetir como
afirmação vazia que o autor desapareceu”, observa Foucault, completando: “o que
seria preciso fazer é localizar o espaço assim deixado vago pela desaparição do
autor”27. No caso dos primeiros românticos alemães, o espaço que surge com a
diluição do autor é o da própria linguagem, centro de sua filosofia.
*
Novalis escreveu aquela que é, provavelmente, a mais decisiva passagem
de todo o pensamento dos primeiros românticos sobre a linguagem, chamada
“Monólogo”. Em 1954, Martin Heidegger explicou que este “título acena para o
mistério da linguagem: a linguagem fala unicamente e solitariamente consigo
mesma”28. Monólogo é o que se passa com ela, já que exprime a si mesma.
Novalis escreve que “exatamente o específico da linguagem, que ela se aflige
apenas consigo mesma, ninguém sabe” e que “por isso ela é um mistério tão
prodigioso e fecundo – de que quando alguém fala apenas por falar pronuncia
exatamente as verdades mais esplêndidas, mais originais”29.
É quando falamos por falar ou escrevemos por escrever que as verdades
são, então, pronunciadas. Não é quando queremos dizer alguma coisa, mas
quando deixamos que as coisas sejam ditas, que encontramos o esplendor da
linguagem. Sua especificidade ocorre aí, ao afligir-se consigo mesma. Sua
singularidade está em sua autonomia, naquilo que ela é por si mesma. Esta
autonomia da linguagem face ao controle humano é que traz à tona a sua 24 Michel Foucault, “O que é um autor?”, in Estética: literatura, música e cinema (Rio de Janeiro,Forense Universitária, 2001), p. 264.25 Ibid., p. 268.26 Ibid., p. 270.27 Ibid., p. 271.28 Martin Heidegger, “O caminho para a linguagem”, in A caminho da linguagem (Petrópolis,Vozes, 2003), p. 191.29 Novalis, “Monólogo”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 195.
227
fecundidade para além do que podemos prever. É sua capacidade de germinar e
fazer nascer a si própria. Mistério, aqui, é o que, ao estimular o desvendamento e
ao mesmo tempo não o fazer, torna a linguagem este âmbito que jamais é
esgotado pelo homem.
No lugar das verdades esplêndidas ditas quando o homem fala apenas por
falar, surge o que há de pobre na linguagem quando ele quer domá-la pela
vontade. “Se quiser falar de algo determinado, a linguagem caprichosa o faz dizer
o que há de mais ridículo e arrevesado”30, comenta Novalis. Para os padrões
habituais, essa constatação é estranha. Inverte o que costumamos achar. Falar por
falar seria superior a falar para expressar adequadamente as coisas fora da
linguagem. Estranhamento familiar este, contudo, pois conhecemos bem o quanto,
aqui e ali, a linguagem nos surpreende e revela alguma coisa justamente no
instante em que, distraídos, deixamos ela ser o que é e falar o que quer.
Novalis estava especialmente preocupado com a linguagem no âmbito da
filosofia e da poesia, onde o emprego pragmático das palavras ameaçava deturpar
sua possibilidade de dizer aquilo que ainda não sabemos, já que a reduziria a um
conjunto previamente dado de significantes e significados que a eles
correspondem precisamente. Mas “o que se passa com o falar e escrever é
propriamente uma coisa maluca”31, afirma Novalis. Maluquice que estaria em
experimentarmos certa autonomia da linguagem em relação a nós.
Se com isso acredito ter indicado com a máxima clareza a essência e função dapoesia, sei no entanto que nenhum ser humano é capaz de entendê-lo e disse algototalmente palerma, porque quis dizê-lo, e assim nenhuma poesia resulta. Mas, ese eu fosse obrigado a falar? e esse impulso a falar fosse o sinal da instigação dalinguagem, da eficácia da linguagem em mim? e minha vontade só quisessetambém tudo a que eu fosse obrigado, então isto, no fim, sem meu querer e crer,poderia sim ser poesia e tornar inteligível um mistério da linguagem? e entãoseria eu um escritor por vocação, pois um escritor é bem, somente, um arrebatadoda linguagem?32
Novalis antecipa-se à possível acusação de que, contraditoriamente,
empregaria a linguagem como quer para fazer o elogio da linguagem como evento
que foge ao que queremos dizer. Teria, neste caso, dito algo “palerma”, já que
assim, pelo querer dizer, a poesia não é dita. Ele, porém, explica que não é este o
30 Ibid., p. 195.31 Ibid., p. 195.32 Ibid., p. 196.
228
caso. Levanta então outra hipótese. E se esta sua fala fosse algo a que ele se sentiu
obrigado? Então, suas palavras seriam o efeito da eficácia da linguagem agindo
sobre ele, e não o contrário, ou seja, da sua eficácia agindo sobre a linguagem. Foi
a própria linguagem que instigou a fala. Surge, assim, outra perspectiva sobre o
problema da vontade, que sai das determinações conscientes presentes na moral,
por exemplo. Esta vontade, ao invés de ser o livre-arbítrio do sujeito, é aquilo para
o qual o sujeito sente-se obrigatoriamente atraído. Logo, o homem não é sujeito
da escrita, mas está sujeito a ela. Neste caso, as palavras de Novalis poderiam ser
poesia, sim. Foi o próprio mistério da linguagem que, então, pôde dizer-se a si
mesmo através de Novalis. Define-se, por fim, o que é ser escritor: estar
arrebatado, mas não por sua subjetividade particular e suas emoções específicas,
mas pela linguagem na qual tudo isso é o que é e como é. “Por isso essa força
estranha”. É ela que leva a falar.
Linguagem, aqui, possui para os primeiros românticos alemães a
centralidade que fez Benjamin, cem anos depois, tomar suas publicações como
exemplos do que desejava. Em 1916, Martin Buber pedia que ele contribuísse
para a revista que editava, Der Jude. Benjamin declina o convite, justificando em
carta a razão. Não colocaria a linguagem a serviço de fins políticos, como a causa
sionista. Mobilizar os homens para a ação seria corromper a ação que a própria
linguagem é. “Benjamin considera devastador o equívoco que cinde palavra e
ação”, observou Katia Muricy, “porque o ato não é, nestes domínios, o que está
no fim de um processo, mas a própria linguagem em seu exercício”33. No fim da
carta, Benjamin admite a dificuldade de fazer justiça a esta autonomia da
linguagem em revistas. “Mas estou pensando na Athenäum”34, confessa,
mencionando o órgão de publicação principal dos primeiros românticos alemães.
Logo depois, em sua tese de doutorado, Benjamin diria que o pensamento de
Schlegel é “lingual”35.
Escrever, portanto, não seria a tentativa de comunicar conteúdos
específicos ou, ao menos, este não seria o sentido pelo qual se escreve. Muito
antes de Nietzsche chamar seu Assim falou Zaratustra de “um livro para todos e 33 Katia Muricy, Alegorias da dialética: imagem e pensamento em Walter Benjamin (Rio deJaneiro, Relume Dumará, 1998), p. 90.34 Walter Benjamin, The Correspondence of Walter Benjamin, 1910-1940 (Chicago, TheUniversity of Chicago Press, 1994), p. 81.35 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 55.
229
para ninguém”, Friedrich Schlegel já dissera que “todo autor legítimo escreve
para ninguém, ou para todos” e que “quem escreve para que estes ou aqueles o
possam ler, merece não ser lido”36. Escreve-se para todos e para ninguém porque
caso haja algum “público-alvo”, como se diz hoje em dia, a linguagem aí
envolvida degrada-se em meio de comunicação direcionado para certo fim prévio.
Limita-se seu poder criativo. Planeja-se seu propósito. Justamente porque tão sem
sentido quanto escrever para ninguém é pretender escrever para todos, ambas as
atitudes liberam a linguagem dos compromissos comunicacionais. Escreve-se,
agora, apenas para escrever. Escreve-se para ninguém, para todos, para Deus, para
a própria linguagem.
Escrever é verbo, ato, gesto. É a ação de escrever. Escrever comunica o
que é a própria escrita, já que, como disse Novalis, a singularidade da linguagem é
afligir-se consigo mesma. Maurice Blanchot, que como Benjamin tinha a
Athenäum em alta conta, afirmou que os primeiros românticos introduziram um
novo modo de escrita: “o poder da obra ser e não mais representar”37. Novalis
explicou, no seu “Monólogo”, que as palavras
constituem um mundo por si – Jogam apenas consigo mesmas, nada exprimem anão ser sua prodigiosa natureza, e justamente por isso são tão expressivas –justamente por isso espelha-se nelas o estranho jogo das proporções das coisas.Somente por sua liberdade são membros da natureza e somente em seus livresmovimentos a alma cósmica se exterioriza e faz delas um delicado metro ecompêndio das coisas.38
Em princípio, as palavras não teriam relação com seu exterior. Elas
constituiriam um mundo por si, jogando somente consigo mesmas. Não poderiam
exprimir nada a não ser a sua própria essência. Nesse sentido, palavras falariam
apenas da própria linguagem, nunca de coisas. Não serviriam, então, como
significantes que empregamos para transmitir significados. Porém, subitamente,
ocorre certa reviravolta. Exatamente porque é assim, encontramos na linguagem,
por espelhamento, o jogo que se dá entre as próprias coisas. Não se trata, contudo,
de conferir a cada palavra seu sentido correto, por precisão e transparência diante
das coisas. Novalis defendia, ao contrário, que “quanto mais peculiar, mais
36 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 33 (Lyceum, Fr.85).37 Maurice Blanchot, “L’Athenaeum”, in L’Entretien infini (Paris, Gallimard, 1969), p. 518.38 Novalis, “Monólogo”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 195.
230
abstrata poderíamos dizer, é a representação, designação, reprodução, quanto mais
dessemelhante ao objeto, ao estímulo, tanto mais independente, autônomo é o
sentido”39. Na abstração do caráter representacional da linguagem, esta aparece
pelo que é em si mesma, ao invés de se esconder sob o que significa. Para o
sentido surgir na linguagem, ele não dependeria do alicerce óbvio da designação
reprodutiva das coisas, podendo ser autônomo nesse aspecto. “Se não precisasse
nem sequer de uma ocasião externa, deixaria de ser um sentido, e seria um ser
correspondente”40. Melhor ainda. Neste caso, ao invés significar o mundo externo,
a linguagem corresponderia à sua configuração por sua própria criação. Nela,
ouviríamos a música do universo tocar pelo ritmo das palavras e veríamos a dança
das coisas nos deslocamentos da sintaxe. Linguagem é fala poética.
“Poderiam ser suas configurações mais ou menos semelhantes e
correspondentes a configurações de outros seres”, afirmava Novalis, para ainda
completar que se “fossem suas configurações e a seqüência de figuras delas
perfeitamente iguais e semelhantes às seqüências de figuras de um outro ser –
haveria a mais pura consonância entre ambos”41. Este outro ser era o próprio
mundo, por exemplo. É que as coisas, para os românticos, não eram somente
objetos. Eram poesia. Nomeá-las, portanto, era trazer à linguagem este caráter
poético. Logo, se as palavras devem fazer o compêndio das coisas, não podem
pretender apenas designá-las fixamente. Devem entrar em consonância com seu
próprio ritmo, pois seus movimentos exteriorizam a alma cósmica do mundo:
cadência, música, analogia, combinação, sentido, beleza, criação, produção,
movimento.
*
Sentimos, nesta teoria da linguagem, a forte presença do pensador pré-
romântico Hamann. Religioso, Hamann dizia que “Deus se revela”, para
completar que “o Criador é um escritor”42. Sua escrita é o próprio mundo que,
então, ganha a feição de um texto que o homem pode ler. Deus escrevera o livro
39 Novalis, “Fragmentos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 146.40 Ibid., p. 146.41 Ibid., p. 146.42 J. G. Hamann, “De Escritos e Cartas”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU,1991), p. 25.
231
do mundo. Naquilo que chamamos de coisas, e que assim pretendemos designar
com as palavras, já está a linguagem. Portanto, não podemos nos comportar como
se fossem apenas objetos e empregar a linguagem do ponto de vista
epistemológico como meio instrumental. Não conhecemos o mundo através da
linguagem, mas na linguagem. É a própria linguagem, em si e por si mesma, que
já é conhecimento, e não aquilo por intermédio do que chegamos a conhecer
alguma coisa.
No entanto, não é qualquer linguagem que oferece esta possibilidade, mas
apenas a linguagem poética, que pode ser encontrada sobretudo nas artes e na
filosofia. Desde que não coloque o mundo apenas como objeto diante do homem
como sujeito, a linguagem aproxima-se da poesia, pois não é tratada como
simples meio de manipulação das coisas. Na poesia, quem é sujeito e quem é
objeto são determinações relativas. Somos nós que fazemos a poesia ou é a poesia
que nos faz? Schleiermacher, ao contribuir para a Athenäum, afirmou: “sem
poesia, não há nenhuma realidade”43. Hamann, por sua vez, dizia que “a poesia é a
língua materna da espécie humana”44.
Dentro desse contexto, “Hamann sustenta que nem as coordenadas
cartesianas do racionalismo dedutivo em geral nem o mentalismo de Kant podem
dar conta dos processos criadores”45, como observa George Steiner. Em suma, a
subjetividade como sede absoluta da verdade não seria suficiente para explicar o
caráter poético fundante entre homem e ser. “Para Hamann, o abismo consiste em
que razão é linguagem”46, notou Heidegger. Razão não seria o sujeito pensado
pela modernidade enquanto aquilo que subjaz e é fundamento, como era em
Descartes ou Kant. Este sujeito pretendia controlar a linguagem como sua
ferramenta cognitiva, fazendo a era moderna afastar-se, neste ponto, da dimensão
poética de sua existência histórica. Lamentava Herder a perda de “toda a vida da
arte poética – já amortecida”47. Para ele, “o homem está organizado para ser uma
43 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 114 (Athenäum,Fr. 350).44 Ibid., p. 28.45 George Steiner, Depois de Babel (Lisboa, Relógio D’Água, 2003), p. 107.46 Martin Heidegger, “A linguagem”, in A caminho da linguagem (Petrópolis, Vozes, 2003), p.191.47 J. G. Herder, “Da terceira coleção de fragmentos”, in Autores pré-românticos alemães (SãoPaulo, EPU, 1991), p. 31.
232
criatura de linguagem, pois sem linguagem o homem não possui razão e sem
razão não tem linguagem”48.
Herder e Hamann deslocavam a ênfase da época moderna do sujeito para o
âmbito da linguagem, abrindo caminho para os primeiros românticos alemães
superarem o que Benjamin chamou depois de “concepção burguesa da
linguagem”49. Percebemos, nesse contexto, que “a concepção romântica da
linguagem comporta, portanto, um conflito interno: se a linguagem é vista –
enquanto decaída – como simples signo funcional e meio de comunicação”,
conforme observou Márcio Seligmann Silva, “ela também comporta um âmbito
irredutível, não-conceitual – reflexos daquela linguagem original perdida que dão
a ela um caráter mágico, mais nobre”50. Reflexos da linguagem original estão na
poesia, mas não porque ela chega à correspondência exata e unívoca entre
palavras e coisas. Pois o original da linguagem não é a exatidão. É a criação.
Na origem da linguagem não está a operação dentro de ligações
estabelecidas entre significantes e significados, mas a criação de tais relações que,
sem ela, não existiriam. Seu caráter mágico está aí. Ela é divina porque, ao criar,
repete, a seu modo, o que foi o gesto do começo do mundo. Sendo assim, na fala
poética é o próprio mundo que começa, a cada vez de novo. Experimentamos este
mundo não através da linguagem, mas dentro da própria linguagem, quando nos
abandonamos para sermos junto a ela.
Friedrich Schlegel sempre sublinhou esta proximidade entre o caráter
criador da poesia e o caráter criador da própria natureza. “Imenso e inesgotável é
o mundo da poesia, como o reino da viva natureza o é em animais, plantas e
criações de toda espécie, forma e cor”51. Por isso, o romantismo, afirma Schlegel,
“abrange tudo que seja poético, desde o sistema supremo da arte, que por sua vez
contém em si muitos sistemas, até o suspiro, o beijo que a criança poetizante exala
em canção sem artifício”52. Em suma, a poesia não está somente na arte, ou seja,
no artifício. Ela está também nas próprias coisas.
48 J. G. Herder, Ensaio sobre a origem da linguagem (Lisboa, Antígona, 1987), p. 49.49 Walter Benjamin, “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana”, in Sobre arte,técnica, linguagem e política (Lisboa, Relógio Dágua, 1992), p. 181.50 Márcio Selligamn-Silva, Ler o livro do mundo (São Paulo, Iluminuras, 1999), p. 28.51 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 29.52 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum,Fr. 116).
233
Assim como o coração da terra se reveste de plantas e formas, assim como a vidabrotou por si mesma das profundezas e tudo tornou-se pleno de criaturas quealegremente se multiplicavam, assim também brota espontânea a poesia da forçaprimeva e invisível da humanidade, quando o cálido raio de sol divino a atinge efecunda.53
Em ambas as passagens de Friedrich Schlegel, há uma palavra crucial que,
porém, passa discretamente. É a palavra “como”: o mundo da poesia é como o
reino da natureza e o coração da terra se reveste de formas como a vida brotou.
Era o princípio da analogia que estava aí presente, já que “a analogia é o reino da
palavra como, essa ponte verbal que, sem suprimir, reconcilia as diferenças e as
oposições”, conforme observou Octavio Paz, completando que “a analogia
concebe o mundo como ritmo: tudo se corresponde porque tudo ritma e rima”54.
Por analogia à criação natural, a arte cria. Nela, a linguagem, até quando e
especialmente quando faz valer sua autonomia poética, não deixa de refletir a
alma cósmica de tudo o que é. Não o faz porque é empregada com a devida
precisão, e sim porque, ao criar, segue analogamente o jogo das próprias coisas.
Reviravolta, afirma Octavio Paz: “se a analogia faz do universo um poema, um
texto feito de oposições que se resolvem em consonâncias, também faz do poema
um doble do universo”, o que resulta numa “dupla conseqüência: podemos ler o
universo, podemos viver o poema”55.
Percebemos, aqui, que o homem não está colocado em oposição à
natureza, como se esta fosse o objeto e ele, o sujeito. Pelo contrário, o homem está
dentro da natureza. Situa-se, aliás, em lugar especial dentro dela, pois “o homem é
um olhar retrospectivo criador da natureza para si mesma”56, afirma Friedrich
Schlegel. Só por isso, o homem faz poesia. Ele respira a poesia bruta do mundo.
Nesse sentido, buscar a origem da linguagem não significaria achar seu começo
cronológico, e sim aquilo que faz com que a linguagem dê origem: ontem, hoje ou
amanhã. Portanto, a pergunta pela origem da linguagem transforma-se na
pergunta pela linguagem da origem enquanto aquela que, sendo criadora, origina,
assim como fizera o verbo divino, se quisermos. Toda vez que o poeta tomasse a
palavra, acenderia, com ela, a fagulha que fizera Deus, como criador, ser escritor.
53 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 30.54 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 93, 88.55 Ibid., p. 79.56 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 148 (Idéias, Fr.116).
234
Encontramos, aqui, ecos do “livro do mundo” pensado por neoplatônicos,
medievais e renascentistas. Ler o real como texto é sua conseqüência. Para
Schelling, por exemplo,
o que chamamos de natureza é um poema que se encontra fechado emmaravilhoso e secreto escrito. Mas se o enigma pudesse se desvelarreconheceríamos aí a odisséia do espírito, que, maravilhosamente enganado,procurando-se a si mesmo escapa de si; pois através do mundo sensível o sentidobrilha apenas como através de palavras, e a terra da fantasia, que ambicionamos,apenas como através de neblina semitransparente.57
Novalis abre sua novela Os aprendizes de Sais explorando este potencial
significante da natureza. Ele fala das “figuras que parecem pertencer a esta grande
cifra que reconhecemos escrita em todo lugar, nas asas, cascas de ovo, nuvens e
neve, em cristais e nas formações das pedras, nas águas cobertas pelo gelo, no
interior e exterior das montanhas, das plantas, animais e homens, na luz do céu”,
onde “pressentimos uma chave para a escrita mágica, até mesmo uma
gramática”58. Entretanto, esse “pressentimento se recusa a tomar formas definidas,
e não parece que deva nos dar a chave dos mistérios”59: as cifras que fazem das
coisas o grande livro do mundo a ser lido por nós teriam perdido, na modernidade,
o código referencial que as tornava compreensíveis.
Em seus fragmentos, Novalis dizia que “outrora era tudo aparição de
espíritos”, mas “agora não vemos nada, senão morta repetição, que não
entendemos”, concluindo que “a significação do hieróglifo falta”60. Hieróglifo
quer dizer, aqui, justamente a escrita na qual o significado dos significantes
deixou de ser facilmente decifrável. Este seria o âmbito, portanto, em que se daria
a atividade da arte. “No estilo do poeta genuíno nada é ornamento, tudo é
hieróglifo necessário”61, escreve August Schlegel. Este poeta procura a “bela
mitologia” enquanto “expressão hieroglífica da natureza circundante”62. “Para o
verdadeiro poeta tudo isso é apenas tão intimamente quanto sua alma o possa
abarcar, alusão ao mais elevado e infinito, hieróglifos de um amor eterno e da 57 F. Schelling, “Trecho do Sistema do Idealismo Transcendental”, in Rodrigo Duarte (org.), Obelo autônomo (Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1997), p. 147.58 Novalis, “Die Lehrlinge zu Sais”, in Novalis Werke (München, Verlag C. H. Beck, 1969), p. 95,59 Ibid., p. 95.60 Novalis, “Fragmentos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 141 (104).61 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 75 (Athenäum,Fr. 173).62 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 54.
235
sagrada plenitude de vida da natureza plasmadora”63. Nesses casos, é como se
escutássemos os ecos do sentido cuja voz original, porém, está sempre já perdida.
Friedrich Schlegel afirmava que “nos antigos se vê a letra perfeita e
acabada de toda a poesia; nos modernos se pressente o espírito em devir”64. Se os
antigos, fundando na mitologia sua arte, possuíam essa segurança de perfeição
para o sentido, já os modernos apenas o buscam, querem, perseguem – pois não
têm. Restaurar a harmonia completa, se é que ela houve, entre palavras e coisas
não é possível, para os primeiros românticos. Não há parâmetro objetivo que
proporcione a leitura da língua em que o livro do mundo está escrito. Ironia,
alegoria, chiste, fragmento, reflexão e contradição são formas pelas quais a poesia
entraria em contato com o sentido da escrita do mundo tornado opaco ao sentido.
*
Pouco a pouco, a concepção de linguagem dos primeiros românticos
alemães, em sua abrangência, ganhava caráter religioso, através do qual a sua
experiência poderia ser salva dos estreitos limites impostos pela época. Era o
confronto moderno entre fé e saber que se colocava, como observou Novalis.
Dentre os iluministas, “procurava-se ver na fé o fundamento da estagnação geral,
e esperava-se que esta pudesse ser eliminada pela perspicácia do saber”65. Esta
eliminação, para Novalis, transformou-se, progressivamente, no ódio contra a
Bíblia e a religião em geral. Mas não parou por aí. Este ódio, dizia ele, “estendeu-
se muito natural e consequentemente a todos os objetos do entusiasmo, passou a
condenar a fantasia e o sentimento, a moral e o amor à arte, o futuro e o
passado”66.
Na contramão do estreitamento feito pelo pensamento iluminista e da
concepção mais tradicional de religião, os primeiros românticos alemães vão
colher em Spinoza sua visão de Deus, especialmente através da interpretação de
sua obra feita por F. H. Jacobi67. Era decisivo, para eles, que, na ontologia de
63 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 66.64 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 34 (Lyceum, Fr.93).65 Novalis, A cristandade ou a Europa (Lisboa, Antígona, 2006), p. 42.66 Ibid., p. 42.67 F. H. Jacobi, “Briefe über die Lehre von Spinoza”, in Werke (Leipzig, Fleischer, 1812).
236
Spinoza, Deus fosse substância primordial, “ente absolutamente infinito”68. Tudo
o que é, para Spinoza, é em Deus, inclusive nós. Deus é a natureza. Esta, porém,
não é pensada só como natureza naturada, ou seja, como as coisas existentes que
encontramos já dadas na existência do mundo. Ela é também natureza naturante,
ou seja, a “causa livre”69 produtora de tudo o que é.
“Este Deus-natureza come-nos, dá-nos à luz, fala conosco, educa-nos,
dorme a nosso lado, deixa que dele nos alimentemos, que o geremos e que o
demos à luz; abreviando, ele é a matéria infinita de nossa atividade, e do nosso
sofrer”, afirmou Novalis, submetendo a religião ao erotismo sensual de seu
pensamento, para o qual “só há um templo no mundo e esse é o corpo humano”,
pois “nada é mais sagrado do que essa alta configuração”70. Segundo Novalis,
“toca-se o céu quando se tacteia um corpo humano”71. É só porque nós já somos
em Deus, como queria Spinoza, que se torna possível, como quer Novalis,
encontrar sua revelação na própria carne, pois ela, a carne, não está fora dele,
Deus. Ela traz, em si mesma, seu quinhão divino.
“É entre os homens que é preciso procurar Deus”, dizia Novalis,
completando que “nos acontecimentos humanos, nos pensamentos e nas
sensações humanos revela-se com a maior claridade o espírito celestial”72. Por
isso, o simples exercício do amor já seria religioso: “se fizermos da nossa amada
um Deus assim, isso é religião aplicada”, o que significa que “o coração parece
ser, por assim dizer, o órgão religioso”73. Mais ainda, é a própria religião que se
assenta no amor, já que, ao amar as coisas deste mundo, não estamos senão
amando a Deus. Por trás da reviravolta, estava o pioneiro Spinoza, que, segundo
Novalis declarou certa vez, era “um homem embriagado com Deus”74. Mas não
foi só ele que destacou a relevância de Spinoza na origem do romantismo. “Mal
consigo conceber como se possa ser poeta sem venerar Spinoza, amá-lo e se
tornar completamente um dos seus”75, afirmou Friedrich Schlegel.
68 Spinoza, Ética (Belo Horizonte, Autêntica, 2007), p. 13.69 Ibid., p. 53.70 Novalis, “Seleção dos fragmentos e estudos”, in A cristandade ou a Europa (Lisboa, Antígona,2006), p. 71, 75.71 Ibid., p. 72.72 Ibid., p. 70.73 Ibid., p. 75, 74.74 Ibid., p. 93.75 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 53.
237
Partindo da ontologia de Spinoza, segundo a qual nós, seres finitos, somos
parte da substância infinita, os primeiros românticos conceberam que a criação
artística só existe na medida em que nela age a mesma força divina que
testemunhamos pela natureza naturante, que cria a todo o tempo as coisas que
constituem a natureza naturada. Deus é suas obras (natureza naturada) e a
atividade produtiva que as cria (natureza naturante). Por analogia, a arte é suas
obras e a atividade produtiva que as cria, assim como “o poema único da
divindade”76. Somos criadores porque a natureza da qual fazemos parte e que fala
em nós é criadora: “o homem – metáfora”77, escreveu Novalis. Metáfora de Deus,
da criação divina. Eis o homem. Se for assim, vale dizer, até a relação entre
homem e Deus, para os românticos, ocorre como linguagem, em forma
metafórica.
Esta aproximação entre religião e arte foi reforçada ainda por Novalis
quando ele afirmou que “Schleiermacher veio anunciar um tipo de amor, de
religião – uma religião-arte – quase uma religião como a do artista, que venera a
beleza e o ideal”78. Tal aproximação, então, era de mão-dupla. Não estava em
jogo apenas o caráter religioso da arte, mas também o caráter artístico da religião.
Por isso, Novalis afirmou que “a história de Cristo é sem dúvida tanto um poema
quanto é uma história, e em geral só é história a história que também consegue ser
fábula”79. Tanto assim que, para ele, cabia ler a Bíblia como os românticos
pretendiam ler arte, “continuando em crescimento”, afinal, “o relato bíblico é
infinitamente variegado – história, poesia, tudo interpenetrando-se”80. Irônico,
Friedrich Schlegel chega a comparar a situação do monarca que “teria sido um
homem bem amável como pessoa privada, só não servia para rei”, com a da
Bíblia, que seria “também apenas um amável livro de uso privado, que só não
deveria ser Bíblia”81.
Explica-se, aqui, a atração dos primeiros românticos alemães pelo
protestantismo, a despeito das conversões posteriores de alguns de seus membros
ao catolicismo, que atestam, aliás, sua virada conservadora após a diluição do 76 Ibid., p. 30.77 Novalis, “Fragmentos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 157.78 Novalis, “Seleção dos fragmentos e estudos”, in A cristandade ou a Europa (Lisboa, Antígona,2006), p. 68.79 Ibid., p. 72.80 Ibid., p. 74.81 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 48 (Athenäum,Fr. 13).
238
grupo original. Era a atração pelo direito de cada homem interpretar os textos (no
caso, os sagrados) por si mesmo. Para Novalis, “os insurrectos, com razão,
apelidaram-se de protestantes, pois que protestavam solenemente contra toda a
arrogância que um poder incômodo e aparentemente ilegítimo sobrepunha à
consciência”82. Este poder era a Igreja de Roma. Por oposição, a Reforma
Protestante enfatizava a revelação íntima e pessoal de Deus. Por conseqüência, a
própria Bíblia devia ser lida como fonte espiritual, não subordinada à autoridade
papal. Desse modo, os protestantes “reapropriaram-se do seu direito, de que
haviam prescindido tacitamente, de examinar, definir e eleger em matéria de
religião”83, observou Novalis.
Essa força do contato singular de cada fiel, por si mesmo, com as Sagradas
Escrituras possuía, no âmbito religioso, o mesmo espírito que movia o modo pelo
qual os românticos pensavam que os leitores em geral deviam se relacionar com
os textos e com a linguagem, especialmente no caso da arte. Octavio Paz dizia que
“o romantismo continua a ruptura protestante”84. Nos dois casos, os preceitos
normativos deveriam dar lugar ao confronto pessoal, direto e livre com a matéria
a ser compreendida. Em outras palavras, a “liberdade do cristão”85, anunciada por
Martinho Lutero, confrontava as prescrições de interpretação da Bíblia de forma
análoga à contestação que os primeiros românticos, sobre o mesmo solo histórico
e geográfico, faziam dos preceitos classicistas no tocante à criação e à
compreensão da arte. Em ambos os casos, protestava-se contra as imposições de
regras objetivas exteriores para a interpretação do que estava em causa.
Friedrich Schlegel afirmava que “catolicismo é cristianismo ingênuo,
protestantismo é cristianismo sentimental e, além do mérito polêmico e
revolucionário, tem ainda, pela adoração da Escritura, o mérito positivo de ter
propiciado a filologia, que também é essencial a uma religião universal e
progressiva”86. Essa passagem emprega, duas vezes, qualificações que
originalmente diziam respeito à poesia para falar da religião. Primeiro, temos as
categorias de “ingênuo” e “sentimental”, provenientes de Schiller, sendo que
aquela caracterizaria, em geral, a poesia antiga, enquanto esta predominaria na 82 Novalis, A cristandade ou a Europa (Lisboa, Antígona, 2006), p. 34.83 Ibid., p. 34.84 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 69.85 Martinho Lutero, Da liberdade do cristão (São Paulo, Unesp, 1998).86 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 87 (Athenäum,Fr. 231).
239
moderna, por conta de seu caráter reflexivo. Segundo, e ainda mais importante,
“universal e progressiva” eram os adjetivos empregados para falar da própria
poesia romântica buscada por Schlegel. Fica claro, então, que a importância do
protestantismo, para os românticos, estava em que ele se aproximava, em seu
modo der ser, dos desafios colocados à própria poesia, especialmente a de seu
tempo.
Neste sentido, vemos que a religião aproxima-se, para os românticos, da
arte. Mas não só. Ela aproxima-se também da filosofia. Para Novalis, “orar é na
religião o mesmo que o pensar é na filosofia”87. Não por acaso, ele dizia que “o
espinosismo é um excesso de saciedade com a divindade”88. Sugeria, ainda, que
“também a filosofia fichteana não será (…) senão cristianismo aplicado”89.
Spinoza e Fichte, a despeito das diferenças, são aproximados pelos românticos por
tentarem contornar, respectivamente, os dualismos das filosofias de Descartes e
de Kant. Buscavam o âmbito ontológico não cindido entre sujeito e objeto, que
seriam assim religados um ao outro no absoluto. Religação é o que faz a religião.
Só que, vale destacar, a valorização de Spinoza e Fichte já evidencia, pelos
acontecimentos biográficos na trajetória dos dois filósofos, o caráter atípico da
religião de que tratam os românticos: o primeiro foi excomungado da comunidade
judaica e o segundo demitido de seu cargo de professor envolvido em pesadas
acusações de ateísmo.
Essa aproximação da religião em relação à poesia e à filosofia não se
devia, claro, só às influências deste ou daquele autor. É bem mais que isso: “quem
tiver religião, falará poesia” e “o órgão para a procurar e descobrir é a filosofia”90,
afirma Schlegel. Para ele, “dependendo de como são consideradas, poesia e
filosofia são esferas diferentes, formas diferentes ou também fatores da religião”,
uma vez que, “se vocês tentarem vincular efetivamente a ambas, não obterão outra
coisa que religião”91. Religião, em suma, ocorre pelo vínculo entre arte e filosofia,
que, porém, não daria qualquer perfeição estável. Portanto, “a religião é pura e
87 Novalis, “Seleção dos fragmentos e estudos”, in A cristandade ou a Europa (Lisboa, Antígona,2006), p. 75.88 Ibid., p. 91.89 Ibid., p. 75.90 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 148 (Idéias, Fr.34).91 Ibid., p. 150 (Idéias, Fr. 46).
240
simplesmente insondável”, sendo que “nela em toda parte se pode cavar, cada vez
mais profundamente, ao infinito”92, afirma Friedrich Schlegel.
Nem de longe, porém, isso reduz sua centralidade. Pelo contrário, para
Friedrich Schlegel, a religião “não é apenas uma parte da formação, um membro
da humanidade, mas o centro de todo o resto, em toda parte o primeiro e mais
alto, o pura e simplesmente originário”93. Gianni Vattimo observou que o projeto
de secularização da modernidade, embora trouxesse consigo a autonomia da arte,
fazia dela a mais central postulante ao lugar perdido da religião. “O
desenvolvimento da arte como fenômeno específico (e da estética como teoria)
aparece ligado à emancipação da arte da religião”, afirma ele, “porém o
significado da experiência estética, uma vez que se queira apreendê-lo na sua
especificidade, remete, uma vez mais, a um âmbito que não se deixa definir senão
em referência à experiência da religião e do mito”94. Friedrich Schlegel afirmava
que “só pode ser um artista aquele que tem uma religião própria, uma visão
original do infinito”95. Religião própria enquanto criação singular, e não geral, é o
que marca o romantismo.
*
Ninguém parece ter compreendido melhor o caráter paradoxal da religião
para o romantismo do que Octavio Paz, pois ele enxergava que esta, aqui, era o
contrário de sua acepção tradicional estabilizadora. Revelava ausência, e não
presença. Era desejada, e não dada. Deus apresentava-se como aquele que falta.
Esta falta foi cantada por vários poetas românticos. É que “o tema da morte de
Deus é uma tema romântico” e
a morte de Deus abre as portas da contingência e da sem-razão. A resposta édupla: a ironia, o humor, o paradoxo intelectual; também a angústia, o paradoxopoético, a imagem. Ambas as atitudes aparecem em todos os românticos: suapredileção pelo grotesco, o horrível, o estranho, o sublime irregular, a estética doscontrastes, a aliança entre riso e pranto, prosa e poesia, incredulidade e fé, asmudanças repentinas, as cabriolas, tudo, enfim, que transforma cada poetaromântico num Ícaro, num Satanás e num palhaço, não é nada mais que uma
92 Ibid., p. 148 (Idéias, Fr. 30).93 Ibid., p. 146 (Idéias, Fr. 14).94 Gianni Vattimo, Para além da interpretação (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1999), p. 99.95 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 146 (Idéias, Fr.13).
241
resposta ao absurdo: angústia e ironia. Ainda que a origem de todas essas atitudesseja religiosa, é uma religiosidade singular e contraditória, pois se resume naconsciência de que a religião está vazia. A religiosidade romântica é falta dereligião: ironia; a falta de religião romântica é religiosa: angústia.96
Religião como falta e falta como religião, eis o paradoxo dos românticos.
Exilados da plenitude divina, não deixavam de buscá-la: “cumpre outrossim que
exista alguém / capaz de o sagrado interpretar”97, dizia Hölderlin. Este alguém é o
poeta em contato com a linguagem como aquilo que, embora familiar, permanece
estranho a nós: “quão pouco de nós sabemos, nós / em cujas almas um deus
impera”98, sentencia ainda Hölderlin. Poderíamos parafraseá-lo: quão pouco de
nós sabemos, nós / em cujas almas a linguagem impera. Por isso, ela está sempre
a nos ensinar, não só sobre o mundo, mas sobre nós mesmos, sobre o sinal sem
interpretação que somos. É o que faz o chiste, como vimos. “Não acontece que
saibamos, um momento antes, que chiste vamos fazer, necessitando, apenas, vesti-
lo em palavras”, observou Freud, “temos, antes, um indefinível sentimento, cuja
melhor comparação é com uma ‘absence’, um repentino relaxamento da tensão
intelectual, e então, imediatamente, lá está o chiste – em regra, já vestido em
palavras”99. Linguagem: o chiste já vem vestido de palavras, deslocando e
condensando sentidos, ao invés de ser ordenado previamente por nossa
consciência voluntarista. Friedrich Schlegel escreve que “a poesia romântica é,
entre as artes, aquilo que o chiste é para a filosofia, e sociedade, relacionamento,
amizade e amor são na vida”100.
Para Octavio Paz, “no fundo desta idéia vive ainda a antiga crença no
poder das palavras: a poesia pensada e vivida como uma operação mágica,
destinada a transmutar a realidade”, completando que, aqui, “o poema não é
apenas uma realidade verbal: é também um ato”101. Este ato era o que fazia da
linguagem o âmbito crucial de todo o pensamento do primeiro romantismo
alemão. Religar-nos ao mundo cuja história trouxera a fratura que arde no coração
96 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 69.97 F. Hölderlin, “A voz do povo”, in Poemas (São Paulo, Companhia das Letras, 1991), p. 141.98 F. Hölderlin, “O adeus”, in Poemas (São Paulo, Companhia das Letras, 1991), p. 123.99 Sigmund Freud, “Os chistes e sua relação com o inconsciente”, in Edição Standard Brasileiradas obras psicológicas completas – v. VIII (Rio de Janeiro, Imago, 1975), p. 192.100 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 65 (Athenäum,Fr. 116).101 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 85.
242
moderno era o que poderiam fazer as palavras, desde que não ficassem fixadas em
fórmulas precisas porém sem graça – e a graça é sempre divina.
No começo do secular “desencantamento do mundo”, os primeiros
românticos alemães não persistiam dizendo que Deus garantia o sentido pleno da
vida. Entretanto, acreditavam que, se não fôssemos capazes sequer de dizer
poeticamente a sua ausência, provavelmente não teríamos nem como habitar o
espaço aberto que aí surgia, não perceberíamos, como disse Heidegger, que
“também esta fatalidade da ausência do deus constitui um modo como o mundo
mundifica”102. Religião, neste contexto, seria a ação sem fim pela qual o homem
busca a completude que, porém, jamais é dada a ele. Por isso, Novalis afirmou
que a religião “é trágica e, contudo, infinitamente doce”103. Resistiam, assim, os
primeiros românticos alemães à estreiteza da concepção científica moderna de
linguagem, acreditando, como Freud observou depois, que “o mundo inteiro era
animado, e a ciência, que surgiu tão mais tarde, muito teve de fazer para mais uma
vez despir parte do mundo de sua alma; na verdade, mesmo nos dias de hoje, ela
não completou essa tarefa”104. Diriam os românticos: ainda bem, pois então há
poesia entre nós.
102 Martin Heidegger, A origem da obra de arte (Lisboa, Edições 70, 1989), p. 35.103 Novalis, “Seleção dos fragmentos e estudos”, in A cristandade ou a Europa (Lisboa, Antígona,2006), p. 93.104 Sigmund Freud, “Moisés e o monoteísmo”, in Edição Standard Brasileira das obraspsicológicas completas – v. XXIII (Rio de Janeiro, Imago, 1975), p. 137.
13
Fúria apaixonada:
arte e filosofia na contramão da tradição
Podem arte e filosofia entrar em uma relação amorosa? Se julgarmos pela
tradição ocidental de pensamento, provavelmente diremos que não. Mesmo
“naquilo que se chama filosofia da arte falta habitualmente uma das duas: ou a
filosofia, ou a arte”1, observou Friedrich Schlegel. Este diagnóstico é decisivo
para compreender o que estava em causa para os primeiros românticos alemães.
Eles buscavam construir uma linguagem em que o caráter criativo da arte e o
reflexivo da filosofia estivessem juntos, fosse em harmonia ou em combate.
“Toda a história da poesia moderna é um comentário contínuo ao seguinte breve
texto da filosofia: toda arte deve se tornar ciência e toda ciência, arte; poesia e
filosofia devem ser unificadas”2, escreveu Friedrich Schlegel.
Já aparece, aqui, a compreensão histórica que os primeiros românticos
tinham de si mesmos. Eram modernos. Confirmam, assim, o diagnóstico
contemporâneo de Habermas, para o qual “é no domínio da crítica estética que,
pela primeira vez, se toma consciência do problema de uma fundamentação da
modernidade a partir de si mesma”3. Sem o Deus tradicional para fundamentar o
sentido das coisas, sobrava para a época moderna achar a si própria e por si
própria. Segundo Habermas, ainda, “a modernidade não pode e não quer tomar
dos modelos de outra época os seus critérios de orientação”, ou seja, “vê-se
referida a si mesma, sem a possibilidade de apelar para subterfúgios”4. Fazer-se a
si mesma era a tarefa moderna que, particularmente para os primeiros românticos
alemães, só poderia se dar no âmbito da linguagem, onde o próprio homem se faz
e se desfaz. Esta linguagem, como vimos, viria da junção entre arte e filosofia.
1 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 22 (Lyceum, Fr.12).2 Ibid., p. 38 (Lyceum, Fr. 115).3 Jürgen Habermas, O discurso filosófico da modernidade (São Paulo, Martins Fontes, 2000), p.13.4 Ibid., p. 12.
244
Nesse sentido, não encontramos, na origem do romantismo alemão, a
tentativa de purificar a arte da filosofia e a filosofia da arte. Nas obras de arte em
que exclamamos o quanto há de filosofia e nos escritos filosóficos em que somos
tomados pelo tom poético, não estariam, para os românticos, momentos casuais
ou desvios desafortunados nos quais se confundiria o que é arte com o que é
filosofia. Para eles, pelo contrário, tais momentos tornavam patente o que, em
geral, fica latente nos outros, a saber, que filosofia e poesia partilham o espaço da
linguagem em que se inventam a si mesmas e que, portanto, jamais está definido
de antemão, no sentido ontológico, onde fica uma e onde fica outra. São as
próprias filosofia e poesia que criam sua separação dentro de sua origem comum,
que é a linguagem. Podem, portanto, também tentar permanecer na proximidade
desta origem.
Tal operação, contudo, colocava-se na contramão do que ensinara toda a
tradição do pensamento ocidental, que sempre separara, cuidadosamente, a
filosofia de um lado e a arte de outro. Para compreender a singularidade do
primeiro movimento romântico em sua exigência de que a arte fosse filosófica e a
filosofia artística, portanto, seria preciso ter a dimensão da cisão entre elas que
vigorava até então. Embora existam exceções, filosofia e arte foram em geral, de
Platão a Hegel, mantidas pretensamente à distância uma da outra, ao contrário do
que fizeram os primeiros românticos alemães.
*
No começo de nossa tradição ocidental, Platão já falava da “antiga
inimizade” entre arte e filosofia. Para ele, “vem de longa data a querela entre
poesia e filosofia”5. Sua contribuição, aliás, em nada ajudou para desfazer a
querela. Pelo contrário, acirrou a oposição, condenando a arte em nome da
filosofia e, por fim, expulsando os poetas da república ideal aí imaginada. Esta
condenação era crucial para Platão, o que mostra que, se censurava a poesia, não
era por considerá-la sem importância mas, ao contrário, porque reconhecia seu
poder e, por isso, seu perigo. Para ele, a disputa entre arte e filosofia aparece com
5 Platão, A república (Belém, EDUFPA, 2000), p. 451 (607b-607c).
245
cores vivas neste momento histórico diante da força da poesia de Homero, que se
torna o inimigo a ser combatido, ainda que admirado. É o problema da formação
que está em jogo, por conta do papel do aedo Homero como pedagogo entre os
gregos. Para Platão, a poesia corrompia o entendimento dos homens, prejudicando
a educação, a não ser daqueles que conhecessem sua verdadeira natureza, ou seja,
dos filósofos. Esta natureza da poesia é que justificaria sua condenação. Poesia é,
para Platão, imitação.
Só por isso, o artista “pode fazer tudo quanto faz particularmente cada
obreiro”6. Por exemplo: o pintor faz sapatos, mesas, bolos, vasos. Pois tudo que
ele faz é imitação, ou seja, o faz ao modo de quem carrega um espelho: “num
abrir e fechar de olhos, farás o sol e tudo o que há no céu; num segundo, a terra;
rapidamente farás a ti mesmo e os outros animais, os móveis, as plantas e tudo o
mais”. Só que “tudo isso não passa de aparência; carece de existência real”7. Esta
carência de realidade da arte leva à sua desqualificação. Ela seria radical pois a
arte, ao imitar as coisas que vemos, estaria imitando, na verdade, coisas que já
são, elas mesmas, imitações. É que, para Platão, os fenômenos sensíveis aos quais
temos acesso pelo nosso corpo são cópias derivadas das essências supra-sensíveis
às quais temos acesso pelo nosso pensamento. Em outras palavras, as coisas que a
arte imita não são as originais, mas já são cópias do que Platão chama de idéias,
estas sim a verdadeira realidade, cuja localização é metafísica, ou seja, além do
mundo físico.
Por isso, a arte é cópia da cópia. Se Deus cria as idéias universais, elas
fornecem os modelos que o obreiro tem em mente ao fabricar as coisas singulares.
Por sua vez, o artista imita tais coisas. Do mais alto para o mais baixo, teríamos:
criador, fabricador e imitador. Em suma, a arte nem sequer imitaria a realidade,
mas apenas sua aparência. “Logo, a arte de imitar está muito afastada da verdade,
sendo que por isso mesmo dá a impressão de fazer tudo”8. Esta crítica de Platão à
capacidade de “fazer tudo” aproxima os artistas daqueles que eram seu alvo
preferido: os sofistas. É como se os artistas, não mais no plano retórico em que
agiam os sofistas, reproduzissem o mesmo mal que eles, pairando sobre ambos a
6 Ibid., p. 434 (697c).7 Ibid., p. 434-435 (697d-597e).8 Ibid., p. 438 (598b).
246
suspeita de charlatanismo. “Só criam fantasmas, não o verdadeiro ser”9, afirma
Platão. Eles fazem o não-ser se passar por ser, o falso se passar por verdadeiro.
Enganam.
Provavelmente, esta preocupação de Platão deriva, historicamente, de que
ele foi contemporâneo da descoberta de técnicas realistas de representação nas
artes, especialmente na pintura de retratos e na construção de cenários com efeitos
de perspectiva (trompe l’oeil). Tais técnicas eram capazes de reproduzir, na
superfície bidimensional, os objetos tridimensionais. Ficou famosa, a este
respeito, a anedota segundo a qual Platão quando criança, dirigindo-se certa vez a
uma mesa com maçãs no intuito de comer uma delas, teria enfiado os dedos numa
pintura, enganado então pela reprodução pictórica naturalista.
Por ser significativa, a anedota vale mais como sinal da consideração de
Platão sobre a arte do que pela curiosidade biográfica. Ela revela que a arte é
condenada por seu efeito ilusionista, já que, enquanto imitação, engana. Pois a
arte não apenas abandona a reprodução da realidade verdadeira, que é metafísica e
supra-sensível, como, pior ainda, nos distancia mais dela, ao multiplicar, como
cópia da cópia, as coisas sensíveis em suas aparências fugidias. Para Platão, a
grande tarefa filosófica e educacional do homem é “a ascensão da alma para a
região inteligível”10, ou seja, ir além do “domicílio carcerário” que é o mundo
aparente percebido pela visão do corpo para alcançar, pela contemplação
espiritual, a compreensão conceitual do que as coisas são em seu ser verdadeiro.
Mas a arte agiria no sentido oposto. Ela estimularia o arraigamento nas sensações,
atrapalhando a pedagogia que deve operar a conversão da alma na direção do
mundo supra-sensível.
É que as artes da imitação, segundo Platão, “são companheiras, amigas e
associadas da porção do nosso íntimo mais afastada da razão e em que nada se
encontra de são e verdadeiro”11. Para ele, a arte incita a parte inferior da alma, de
menor valia, passional e maldosa, que se opõe justamente à parte racional. Por
conseqüência, acusa a poesia “de poder estragar as pessoas sérias”12. Na arte, sob
o pretexto de estarem sendo tratadas as vidas alheias, “a porção melhor de nossa
natureza, por não estar suficientemente educada pela razão e pelo hábito, relaxa a
9 Ibid., p. 438 (599a).10 Ibid., p. 322 (517b).11 Ibid., p. 445 (603b).12 Ibid., p. 449 (605c).
247
vigilância”. Neste caso, a “parte choramingas” predomina, nos fazendo aplaudir e
prestigiar até aquilo que condenaríamos no caso de as vidas tematizadas serem as
nossas próprias. Só que “depois de alimentar e fortificar nossa sensibilidade no
sofrimento dos outros, não é fácil conter a nossa em limites razoáveis”13. Logo, a
arte é danosa para a alma.
Em resumo, Platão condena a arte em nome da filosofia duas vezes:
primeiro através do referencial do conhecimento, já que, por ser imitação, ela não
nos leva até a verdade; e depois através do referencial da moral, já que ela
estimula a parte inferior da alma, que é irracional. Em outras palavras: do lado da
ontologia, fica firmado que “todos os poetas, a começar por Homero, não passam
de imitadores de simulacros da virtude e de tudo o mais que constitui objeto de
suas composições, sem nunca atingirem a verdade”, enquanto, do lado da ética, a
arte “não é coisa séria, mas simples brincadeira”14, é leviana.
*
No começo de nossa tradição, Platão separou arte e filosofia, deixando a
primeira sob o signo do charlatanismo e a segunda sob o da pedagogia. Concluiu
que seria melhor tirar o direito de cidadania da arte. Na ponta final de nossa
tradição, pelo contrário, Hegel aproximou a arte da filosofia, ao colocar ambas
junto com a religião dentro da mais alta expressão da realidade, aquela que ele
chamava de espírito absoluto. Se Platão achava que a arte nos afastava da
verdade, para Hegel a verdade podia ser representada na arte.
De acordo com Platão, a arte era a versão copiada e decaída do mundo
sensível. Para Hegel, pelo contrário, a arte é o lugar justamente onde a
sensibilidade é redimida do caos, da casualidade e da atrofia em que se vê metida
na maioria das vezes. Para ele, “a arte arranca a aparência e a ilusão inerentes a
este mundo mau e passageiro (…) e lhe imprime uma efetividade superior nascida
do espírito”, de onde conclui: “deve-se atribuir aos fenômenos da arte a realidade
superior e a existência verdadeira, que não se pode atribuir à efetividade
cotidiana”. Por isso, Hegel prossegue afirmando que a arte pode
13 Ibid., p. 450 (606b).14 Ibid., p. 441 (600e), p. 444 (602b).
248
exprimir o divino, os interesses mais profundos da humanidade, as verdades maisabrangentes do espírito. Os povos depositaram nas obras de arte as suas intuiçõesinteriores e representações mais substanciais, sendo que para a compreensão dasabedoria e da religião a bela arte é muitas vezes a chave – para muitos povosinclusive a única. Esta determinação a arte possui em comum com a religião e afilosofia, mas de um modo peculiar, pois expõe sensivelmente o que é superior.15
Na medida em que a arte envolve não apenas os elementos naturais, como
o mármore ou as cores, mas também o espírito humano que dá forma a esses
elementos, ela oferece a sensibilidade “libertada do esqueleto de sua mera
materialidade”. Nas obras de arte, a necessidade que marca a natureza sensível
entraria em contato com a liberdade que marca o homem pensante. Sendo assim,
então, “a obra de arte se situa no meio, entre a sensibilidade imediata e o
pensamento ideal”16. Mediação é o que ela faz. Resultado: “ela ainda não é puro
pensamento, mas apesar de sua sensibilidade, também não é mais mera existência
material, como pedras, plantas e vida orgânica”17.
Hegel concede à arte, portanto, lugar importante no seu sistema filosófico.
No entanto, reeditando aquela “antiga inimizade” de que falava Platão, avisa que a
arte “ainda não é puro pensamento”. Por isso, adverte: “ao atribuirmos à arte esta
alta posição, devemos, entretanto, lembrar que ela não é (…) o modo mais alto e
absoluto de tornar conscientes os verdadeiros interesses do espírito”18. É que, na
arte, a verdade precisaria ainda poder transitar para o âmbito da sensibilidade e
nele se adequar, já que ela necessita da apresentação material como obra. Esta
forma da arte a limita a certos conteúdos determinados, já que ela não poderia
expressar a versão mais profunda da verdade, que não é nem aparentada e nem
simpática ao sensível. Se os deuses gregos são exemplos de verdade da arte, este
já não era o caso do Deus cristão, pois ele não pode ser bem recebido e nem
expresso no elemento material. Menos ainda é este o caso da filosofia racional
moderna, em seu exercício do puro pensamento conceitual.
Filosofia, religião e arte, portanto, constituem as expressões máximas do
espírito. Mas não em pé de igualdade. Elas estão claramente hierarquizadas, da
mais para a menos importante, respectivamente. Desse modo, Hegel abraça a arte
na história que constitui a formação do espírito absoluto, mas a coloca no passado,
15 F. W. G. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 33.16 Ibid., p. 59.17 Ibid., p. 59.18 Ibid., p. 34.
249
como expressão da verdade já não mais essencial para sua modernidade. Elogiada
e venerada, a arte, porém, já teria cedido lugar, como expressão mais importante
do espírito absoluto, para a religião e, depois, para a filosofia. Era atrasada. Hegel
acolhe a arte no sistema de seu pensamento, mas para colocá-la, ainda uma vez,
numa dimensão periférica. Se a filosofia seria capaz de compreender a arte, a arte
não seria capaz de compreender a filosofia. Esta inferioridade da arte deixa de ser
entendida só espacialmente, como em Platão, para ser vista também
temporalmente: a arte, por estar abaixo da filosofia, está antes dela – fadada a
ficar para trás. Por mais fundamental que seja na constituição passada da história
do espírito da humanidade, a arte permanece, para Hegel, sob o signo do “ainda
não”: ainda não é o ponto mais alto, no qual o espírito sabe a si mesmo
absolutamente – ainda não é filosofia.
*
Tendo escrito antes de Hegel, os primeiros românticos alemães
concordariam com ele, em parte, quanto ao contato da arte com o sensível, que
não o copia, mas o enforma. Só que essa operação é diferente para eles, pois ela
não busca salvar as coisas sensíveis de sua pobre materialidade, já que esta não
seria assim tão pobre. Todos os produtos da arte são, para os românticos, poemas
escritos sobre a poesia primeira do mundo.
E que são eles ante a poesia sem forma e consciência que se faz sentir nasplantas, que irradia na luz, que sorri na criança, cintila na flor da juventude, ardeno peito amoroso das mulheres? Esta contudo é a originária, a primeira, sem aqual certamente não haveria nenhuma poesia das palavras. Nós todos, humanos,não temos nenhum outro objeto e nenhuma outra matéria de toda ação e alegria,sempre e eternamente, que não o poema único da divindade, de que somostambém parte e flor – a terra.19
Essas palavras de Friedrich Schlegel expõem o olhar romântico para as
coisas sensíveis sem forma ou consciência, exuberantes em seu colorido e na sua
multiplicidade abundante. Não caberia à arte, portanto, socorrer esse mundo,
como queria Hegel. Nem, contudo, restaria a ela apenas copiá-lo, como acusara
Platão. Seu papel seria o de fazê-lo ressurgir com forma e consciência, adentrando
19 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 30.
250
a cultura do homem em sua relação com o que a cerca. “É essencialmente próprio
a toda arte associar-se ao cultivado”20, afirmou Schlegel. Já que somos parte da
natureza e ela mesma é criadora, também fazemos poemas e os lemos –
cultivamos. É graças a ela, e não em seu socorro, que fazemos arte. “Somos
capazes de perceber a música do infinito mecanismo, de compreender a beleza do
poema, porque em nosso íntimo também vive uma parte do poeta, uma fagulha de
seu espírito criador, que (…) nunca cessa de arder com secreta violência”21.
Podemos sentir, aqui, ecos do ensinamento aristotélico muitas vezes
esquecido de que “a arte, por um lado, completa aquilo que a natureza não é capaz
de elaborar, e, por outro, imita as coisas naturais”22. Hemsterhuis, filósofo
holandês bastante admirado no romantismo, quase copia essa sentença. Para ele,
“o primeiro fim de todas as artes é imitar a natureza, e o segundo é acrescentar à
natureza produzindo efeitos que ela geralmente não produz, ou não é capaz de
produzir”23. Esses dois lados ou fins da arte, para os primeiros românticos
alemães, explicavam-se no mesmo princípio. Imita-se não o produto natural já
acabado na matéria sensível do mundo, e sim o fulgor que pulsa nesta natureza
para que ela crie constantemente este mundo. Já que esta criação divina é sem
forma e consciência, a arte completa o que a natureza não sabe elaborar: a forma e
a consciência. Mas não sabe apenas em parte, pois, enquanto vida, ela o elabora
no próprio homem, que a ela pertence.
Modelo e cópia deixavam de ser o par explicativo do contato entre a
verdade e a arte. Esta faz parte, antes, do próprio movimento pelo qual a verdade
cumpre seu ciclo de vida enquanto criação, natural e humana. Se a natureza é, por
vezes, divinizada pelos românticos, é justamente porque, assim, eles tentam
pensá-la para além da objetividade científica empobrecedora, que se colocaria
fora do homem enquanto sujeito – “é este suave reflexo da divindade no homem a
própria alma, a faísca de toda poesia”24.
Tanto os românticos como Hegel compartilham a valorização ontológica
da arte, em contraposição à sua desqualificação por Platão. Só que os românticos
vão ainda mais longe, pois nem sequer colocam, como Hegel, a arte abaixo da 20 Ibid., p. 35.21 Ibid., p. 30.22 Aristóteles, Física – Livros I e II (São Paulo, IFCH/Unicamp, s/d), p. 93 (199a).23 Franz Hemsterhuis, “Carta sobre a escultura”, in Sobre o homem e suas relações (São Paulo,Iluminuras, 2000), p. 23.24 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 54.
251
filosofia. Eles querem “pôr a poesia em contato com a filosofia”25. Buscam
relacionar amorosamente arte e filosofia. Porém, a despeito dessa singularidade,
seu anseio básico ainda é pela verdade e pelo absoluto, como era para Platão e
para Hegel. Mas acrescentam: “uma vez que se tenha predileção pelo absoluto e
não se possa deixar disso, então não resta outra saída senão se contradizer sempre
e vincular extremos opostos”26. Se levarmos em conta que, para Friedrich
Schlegel, “poesia e filosofia são apenas extremos”27, então fica claro que vinculá-
las é a aproximação romântica do absoluto, mesmo que seja contraditória.
Trata-se de “aproximação” porque, para os românticos, não se alcança o
absoluto absolutamente, mas só relativamente ou, ainda, pela via da contradição, o
que não seria tolerável para Hegel, cuja dialética foi a estratégia para assegurar o
respeito pelo princípio da não-contradição, resolvendo na figura da síntese do
saber absoluto a oposição de tese e antítese. Heidegger dizia que “o pensamento
de Hegel pretende colocar as contradições, enquanto absoluto, numa fluidez geral
e obrigá-las assim a resolverem-se”28. No caso dos românticos, a contradição não
vai embora, permanece “sempre”. Bem ao contrário da soberba confiança de
Hegel quanto às nossas chances de alcançar o absoluto, ou seja, de descobrir as
grandes verdades, para Friedrich Schlegel “elas nunca podem ser expressas em
sua totalidade”29. Toda compreensão do absoluto jamais seria, ela mesma,
absoluta.
Poderíamos sentir, aqui, a influência de Kant, por conta de sua interdição
feita ao conhecimento das coisas em si mesmas pelos homens. Não resta dúvida
de que sua crítica às pretensões do saber humano foi decisiva para os primeiros
românticos, bem como o ceticismo. Porém, o acesso ao absoluto, para eles, não é
totalmente interditado. Sua posição é mais complexa do que a simples dualidade
entre ser ou não ser possível chegar à verdade. É neste contexto que podemos
entender a seguinte declaração de Schlegel: “na árvore genealógica dos conceitos
primordiais de Kant sinto com desagrado a falta da categoria
25 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum,Fr. 116).26 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 52 (Fr. 26).27 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 156 (Idéias, Fr.96).28 Marrtin Heidegger, Hinos de Hölderlin (Lisboa, Instituto Piaget, 2004), p. 127.29 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 534.
252
‘aproximadamente’”30. Nossa relação com o absoluto, para os românticos, não
seria nem de desistência e nem de alcance, mas da ordem da aproximação.
Por isso, Schlegel frisava que só há compreensão junto com falta de
compreensão, ou não haveria o que ser compreendido. Elas dependem uma da
outra, só são o que são uma pela outra, em especial quando se trata do absoluto.
Não há entendimento total.
Sim, mesmo a posse mais deliciosa dos homens, sua própria satisfação interior,depende, em última análise, como qualquer um pode facilmente verificar, dealgum ponto de força que deve ser deixado na obscuridade, mas que, emcontrapartida, suporta e sustenta o todo. Esta força se perderia no instante em quefosse sujeita à compreensão. De fato, seria muito ruim para você se, como vocêquer, o mundo todo devesse se tornar inteiramente seriamente compreensível. Enão é este mundo inteiro, sem fim, construído pelo entendimento a partir daincompreensão e do caos?31
Dessa perspectiva, aquilo que, para Hegel, era o defeito da arte não
consegue ser superado pela filosofia, já que esta também não alcança a
compreensão completa e nem é perfeitamente adequada para acolher o conteúdo
mais elevado do absoluto. Günter Figal chegou a dizer que “a defesa mais eficaz
no interior da discussão hermenêutica do incompreensível remonta a Friedrich
Schlegel”32. Filosofia não é só a ordem suprema do entendimento, para os
românticos, mas também caos. “Para os primeiros românticos, sistemas cuja auto-
referência não sofra constantemente uma interrupção caótica não permitem
quaisquer vida, variedade e abundância de fenômenos”, sublinha Menninghaus,
acrescentando que, “em oposição à ordem rígida na política, na filosofia e na
literatura, Friedrich Schlegel e Novalis exigem uma nova mistura de caos e
ordem”33. No âmbito da linguagem, a ironia, a fragmentação, o chiste ou a
alegoria eram formas desta interrupção caótica na ordem da filosofia e da arte. Era
o processo reflexivo e compreensivo que, assim, incluía em si mesmo a nomeação
de sua impossibilidade de se completar.
Para os românticos, “quando na comunicação dos pensamentos alternamo-
nos entre absoluto entendimento e absoluto não-entendimento, isso já pode ser 30 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 32 (Lyceum, Fr.80).31 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 539.32 Günter Figal, Oposicionalidade (Petrópolis, Vozes, 2007), p. 130.33 Winfried Menninghaus, “Mitologia do caos no romantismo e na modernidade”, in Estudosavançados [online] (v. 10, n. 27, 1996), p. 128.
253
chamado uma amizade filosófica”34. Essa fórmula contraditória torce nossa
compreensão habitual, pois o absoluto é partido entre entendimento e não-
entendimento, sem que possamos fixá-lo em algum dos dois pólos. Na
comunicação, portanto, não há clareza completa, mas sim alternância – entre a
ordem e o caos. Eis o que é a filosofia: permanecer nesta alternância. Sua força
não está em tudo compreender, mas em suportar que toda compreensão é parcial
e, portanto, deixa algo fora de si ainda a ser compreendido. Deve pressentir o
caos, pois
quem ainda não chegou ao claro conhecimento de que, inteiramente fora de suaprópria esfera, ainda pode haver uma grandeza para a qual lhe faltacompletamente o sentido; quem nem ao menos tem pressentimentos obscuros daregião cósmica do espírito humano onde essa grandeza pode aproximadamenteser localizada: este é ou sem gênio em sua esfera, ou ainda não chegou, em suaformação, até aquilo que é clássico.35
Para os primeiros românticos, o caos não era só oposição à ordem, mas
também o que a acompanha e sem o qual ela não seria o que é. “Faz parte da
pluralidade não apenas um sistema abrangente, mas também sentido para o caos
fora dele”36, afirma Friedrich Schlegel. Logo, caos não é sinônimo de desordem.
“Somente é um caos aquela confusão da qual pode surgir um mundo”37. Se caos é
confusão, é porque, nele, há fusão conjunta de tudo o que é em sua diversidade
sem fim. Nele, age a ordem que, porém, jamais o desfaz para sempre. Por
conseqüência, a ordem é esforço que, a cada vez, volta. Daí surge o mundo. Daí
surgem os mundos. Pois “a mais elevada beleza, a mais elevada ordem, é,
justamente, a do caos, um caos que só espera o contato do amor para se desdobrar
em um mundo harmônico”38. Não seria com este espírito que Nietzsche, depois,
diria que “é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela
dançante”39?
*
34 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 44 (Fr. 20).35 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 25 (Lyceum, Fr.36).36 Ibid., p. 152 (Idéias, Fr. 55).37 Ibid., p. 153 (Idéias, Fr. 71).38 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 51.39 Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000), p. 41.
254
Entre a ordem e o caos, o entendimento e a ausência de entendimento, os
primeiros românticos alemães fizeram da alternância e da contradição seu jeito de
pensar. Nada mais coerente, portanto, que constituíssem este jeito de pensar na
fronteira das classificações habituais dos discursos da tradição, especialmente
entre a arte e a filosofia. Seus escritos têm forma híbrida. Se precisarem deixar a
arte para serem filosofia ou deixar a filosofia para serem arte, simplesmente
deixarão de ser o que são: arte e filosofia. Não se tratava, é claro, de qualquer
organização corporativa, como se poetas e filósofos devessem se juntar – mesmo
que isso pudesse acontecer. Importava que o caráter filosófico da arte e o artístico
da filosofia fossem exercitados. Se, ao contrário de Platão, os primeiros
românticos não achavam a arte mera brincadeira infantil, mas sim reflexão,
tampouco acreditavam, com Hegel, que a filosofia não tivesse sua própria dose de
criação poética.
Esta dupla distância, da ponta inicial e da final de nossa tradição ocidental,
define o modo pelo qual o primeiro romantismo alemão compreende a relação
entre arte e filosofia. Se a arte, como a filosofia, reflete; por sua vez a filosofia,
como a arte, cria. São ambas solidárias, não inimigas, na busca, por dentro da
linguagem, da verdade ou do absoluto. Nem a arte seria ingênua e nem a filosofia
abstrata: a arte, como a filosofia, pensa e a filosofia, como a arte, escreve. Essa foi
a grande novidade do romantismo. De Platão a Hegel, a superioridade da filosofia
sobre a arte trazia consigo o motivo de que, enquanto a primeira era capaz de nos
levar além da linguagem, a segunda nos mantinha presos a ela. Toda arte viria
maculada com a materialidade sensível do mundo. Não seria, assim, pura o
suficiente para dar acesso ao reino da idéia ou do espírito. Tanto em Platão como
em Hegel, a despeito da diferença entre os dois, o rebaixamento ontológico da arte
em relação à filosofia está fundamentado no sentido metafísico do pensamento,
pelo qual ele devia nos levar além do mundo físico sensível, fosse para superá-lo
ou suprassumi-lo.
No caso da estética de Hegel, podemos notar o exato momento em que
esse critério metafísico determina o abandono da arte e a entrada na filosofia. Para
ele, “a arte poética é a arte universal do espírito tornado livre em si mesmo e que
não está preso ao material exterior e sensível para a sua realização”40. No sistema
40 F. W. G. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 102.
255
das artes, portanto, a poesia ocupa o lugar superior já por ser a mais metafísica de
todas, mais desprendida do sensível e do material. “Mas, exatamente neste estágio
supremo, a arte também ultrapassa a si mesma, na medida em que abandona o
elemento da sensibilização reconciliada do espírito, e da poesia da representação
passa para a prosa do pensamento”41. Essa prosa do pensamento seria a filosofia,
livre de qualquer resíduo mundano, pura na sua adequação à verdade.
Porém, como poderia a filosofia ser pura, se ela já é prosa? Enquanto
linguagem e enquanto escrita, não estaria a filosofia, como a arte, presa ao
sensível? Foram essas as perguntas dos primeiros românticos alemães. Daí sua
valorização da retórica, da gramática e da filologia. Eram modos de
aprofundamento no que chamavam de “doutrina do espírito e da letra”42, sem
detrimento da segunda pelo primeiro. Para os românticos, filosofia e linguagem
não se separam. Podemos pensar a favor da linguagem ou contra a linguagem,
mas não sem a linguagem. Então, a questão é como despertar na linguagem o seu
fundo sem fundo, no qual ela deixa de ser apenas o código já familiar ao nosso
conhecimento para se tornar a experiência de estranheza em que a criação de
alguma diferença ocorre.
É comum, neste contexto, destacar a centralidade da tradução para os
primeiros românticos, embora, enquanto estivessem juntos no grupo de Iena,
tenham escrito pouca coisa de vulto sobre o assunto. Importava, porém, que a
tradução tinha a capacidade de tornar o estrangeiro familiar e o familiar
estrangeiro. Era ainda o princípio da alternância que estava em jogo, já que a
tradução despertaria, em nossa língua, outra e, na outra língua, a nossa.
Deslocamentos assim eram a essência do romantismo, segundo Novalis.
O mundo precisa ser romantizado. Assim reencontra-se o sentido originário.Romantizar nada é, senão uma potenciação qualitativa. O si-mesmo inferior éidentificado com um si-mesmo melhor nessa operação. Assim como nós mesmossomos uma tal série qualitativa. Essa operação é ainda totalmente desconhecida.Na medida em que dou ao comum um sentido elevado, ao costumeiro um aspectomisterioso, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito um brilhoinfinito, eu o romantizo – Inversa é a operação para o superior, desconhecido,místico, infinito…43
41 Ibid., p. 102.42 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 61 (Athenäum,Fr. 93).43 Novalis, “Fragmentos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 142 (fr. 105).
256
Romantizar é traduzir, desde que compreendamos a palavra em sentido
amplo. É traduzir o pequeno no grande e o grande no pequeno, o superior no
inferior e o inferior no superior, o conhecido no desconhecido e o desconhecido
no conhecido, a arte na filosofia e a filosofia na arte, o homem no mundo e o
mundo no homem. Foi o que Antoine Berman chamou de “versabilidade
infinita”44 da tradução no romantismo. Novalis gostava de dizer que tudo podia
ser traduzido, não apenas livros. É claro que as traduções românticas
especificamente de livros foram marcos culturais definitivos na cultura ocidental,
como as que August Schlegel fez de Shakespeare, mas compreendemos, agora,
que não é apenas neste sentido que este grupo de autores prezava tal atividade.
Traduzir era, em certo sentido, a ação da filosofia romântica: “elevação e
rebaixamento recíprocos”45.
Este significado amplo da tradução transformou também seu sentido
estrito: a obra original à qual a tradução para outra língua deveria ser fiel já não é
considerada bem original. Ela já é tradução do poema da própria vida. É comum
tradutores comentarem a dificuldade e até impossibilidade de verter uma língua
em outra. Tal dificuldade, porém, já começa antes. Ela começa na tradução que a
obra original faz da linguagem das coisas para a linguagem humana. Eis a
primeira tradução. Ela não está apenas por trás de todas as outras mas, em certo
sentido, ocorre novamente em todas as outras. Toda tradução tomaria contato,
assim, com a tradução primeira que em geral chamamos de original.
Nosso problema é achar que “a tradução pretende servir ao leitor”46,
equívoco que Benjamin apontou ao explicar que nem a obra de arte original devia
ter o público em vista. Escreve-se porque a linguagem das coisas torna possível a
tradução na linguagem humana. Traduz-se porque a obra em certa língua torna
possível sua tradução em outra. Nem a obra original alcança completamente as
coisas e nem a tradução aquilo que a original era. Não por acaso, os românticos
falavam do “gosto sublime em sempre preferir coisas à segunda potência”, como
“cópias de imitações, juízos sobre resenhas, adendos a suplementos, comentários
44 Antoine Berman, “Revolução romântica e versabilidade infinita”, in A prova do estrangeiro:cultura e tradução na Alemanha romântica (Bauru, Edusc, 2002), p. 125-156.45 Novalis, “Fragmentos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 142 *Fr. 105).46 Walter Benjamin, A tarefa do tradutor (Rio de Janeiro, UERJ, 1994), p. 8.
257
a notas”47. São operações sublimes, e não belas, alegóricas e não simbólicas,
porque apontam para o que não se completa, e mesmo assim se faz. Por isso,
“aquilo que se perde em traduções de hábito boas ou excelentes é o melhor”48: a
estranheza.
Nesse sentido, a situação da tradução é semelhante à da arte, porque a da
arte é semelhante à da tradução. Tradução é criação. Por isso, Friedrich Schlegel
afirmou que, na sua época, “a tradução dos poetas e a reconstituição de seus
ritmos tornaram-se arte”49. Nada mais coerente, já que a própria arte, para os
primeiros românticos, não era, enquanto concretização de obras, possível. Seus
escritos costumam ser críticas, cartas, fragmentos, diálogos ou, ainda, traduções,
sendo que, como apontou Antoine Berman, “têm todos em comum o fato de
remeter a um outro ausente: a tradução ao original, os fragmentos a um todo, as
cartas e os diálogos a um referente externo do qual eles tratam, a crítica ao texto
literário ou à totalidade do sistema literário”50. Há falta, pois a origem é, por
definição, aquilo que sempre falta. Só aparece como ausência. Esta origem falta,
portanto, já na obra “original”, que partilha então a precariedade que, em geral,
concedemos só à tradução.
Toda a precariedade da obra ou de sua tradução, porém, não se devem a
elas não satisfazerem certa experiência de totalidade ou precisão a que estariam
dispostas. Novalis explicou que as boas traduções “não nos dão a obra de arte
efetiva, mas o ideal dela”51. Tradução é potencialização crítica do projeto que a
obra primeira já colocara em jogo. Eis o âmbito da tradução: a crítica. Novalis
afirma que este tradutor “tem de ser o poeta do poeta e assim poder fazê-lo falar
segundo sua própria idéia e a do poeta ao mesmo tempo”52. Intensificar e
desdobrar a obra original é o que faz a tradução, assim como a obra original faz
com a vida. Só que “é preciso para isso uma cabeça, onde espírito poético e
espírito filosófico se interpenetraram em sua inteira plenitude”53, observa Novalis.
47 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 63 (Athenäum,Fr. 110).48 Ibid., p. 31 (Lyceum, Fr. 73).49 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 45.50 Antoine Berman, A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica (Bauru,Edusc, 2002), p. 128-129.51 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 72 (Fr. 68).52 Ibid., p. 72 (Fr. 68).53 Ibid., p. 72 (Fr. 68).
258
Traduzir, como dizíamos, é alternar. Filosofia e poesia foram a alternância
dentro da qual foi construído todo o pensamento do primeiro romantismo alemão.
Nesse sentido, quando Hölderlin, possivelmente acompanhado de seus então
jovens colegas seminaristas Schelling e Hegel, escreve, no esboço conhecido
como “o mais antigo programa de sistema do idealismo alemão”, que “a filosofia
do espírito é uma filosofia estética”54, está em sintonia com os primeiros
românticos. Ele afirma que “os homens desprovidos de sentido estético são nossos
pseudo-filósofos”55. No romantismo, então, não se tratava apenas de elaborar uma
filosofia da arte. Estava em jogo compreender a arte de filosofar.
Em que sentido, porém, filosofia é arte? Primeiro, ela não pode ser
abarcada em classificações exteriores a si mesma. Segundo, ela não diz respeito à
“representação interior”56 subjetiva, seja emocional (pré-romantismo) ou racional
(Descartes, Kant). Terceiro, assim como “o expor, o apresentar, é a função da
arte”57, segundo Friedrich Schlegel, também a filosofia tem aí seu âmbito: na
apresentação da linguagem e não na representação da mente. Essa filosofia
dependeria, como a arte, de sentido estético. É como se os românticos tomassem a
sério, na formulação de Hegel de que a filosofia é a prosa do pensamento, tanto
seu caráter pensante quanto seu caráter literário de prosa.
*
Levar a sério o caráter de escrita da filosofia jamais foi a característica
forte dos filósofos da tradição, o que talvez ajude a compreender a singularidade
que, até hoje, complica a aceitação do pensamento dos primeiros românticos
alemães neste âmbito disciplinar. É famoso, por exemplo, o caso de Platão, com
seu repúdio à escrita e, por conseqüência, sua desvalorização do caráter concreto
de prosa da filosofia. Para ele, “quando vemos alguma composição escrita, ou seja
de um legislador, a respeito de leis, ou de outro indivíduo sobre assunto diferente,
é certeza não ter o autor levado muito a sério o seu trabalho”58, conforme aponta
em carta do próprio punho. Nesse sentido, seu mestre, Sócrates, seria o modelo 54 F. Hölderlin, “Esboço (O mais antigo programa de sistema do idealismo alemão)”, in KathrinRosenfield (org.), Filosofia & Literatura: o trágico (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001), p. 173.55 Ibid., p. 173.56 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 48.57 Ibid., p. 48.58 Platão, “Sétima carta”, in Diálogos: Fedro, Cartas… (Belém, EDUFPA, 2008), p. 185 (344c).
259
ideal de filósofo, dado que nada deixou escrito e se contentava com o caráter
etéreo do vento do pensamento. “Por conseguinte, quem julgasse transmitir na
escrita uma arte e quem por sua vez a recebesse, como se dessas letras escritas
pudesse derivar algo de certo e seguro, mostraria muita ingenuidade”59, afirma
Platão.
Nesse mesmo sentido, porém, Platão, que tanto escreveu, poderia ser pego
na sua própria rede, por assim dizer. Mas, ao mesmo tempo, podemos observar
seu cuidado, por conta disso, com sua escrita. É possível, por exemplo, que a
escolha da forma do diálogo como apresentação de sua filosofia busque minorar e,
ao mesmo tempo, explicitar a deficiência dos textos escritos, que consiste,
segundo Platão, em que, “se, movido pelo desejo de aprender, os interrogares
sobre o que acabam de dizer, revelam-te uma única coisa e sempre a mesma”60.
Em certo sentido, a exposição dialógica tenta, contra a natureza fixa da própria
escrita, dar-lhe algo da mobilidade da fala. Não são pequenas as conseqüências de
ler Platão, ou qualquer outro filósofo, levando em conta esta dimensão literária
formal para compreender o conteúdo exposto.
Tendo isso em mente, o caso de Platão, de fato, é bastante complexo. E
não apenas porque, aqui e ali, são feitos elogios à arte, como à “superioridade da
educação musical, por calarem fundo na alma o ritmo e a harmonia”61. É mais
curioso, por exemplo, perceber que ele define a palavra poética como invenção
das musas62, tema recorrente na cultura grega, e que a verdadeira musa, afirma, é
a filosofia63. Estaria aí marcado o secreto encontro entre arte e filosofia no
pensamento de Platão? E o que dizer sobre ele afirmar ser “a filosofia a música
mais nobre”64? Não custa lembrar, com Nietzsche, “que o jovem poeta trágico
chamado Platão queimou, antes de tudo, os seus poemas, a fim de poder tornar-se
discípulo de Sócrates”65. Este passado de poeta, que Platão pretendeu apagar de
forma tão violenta para se tornar filósofo, reaparece, contudo, na grande
quantidade de mitos, alegorias e narrativas que ele expõe durante seu pensamento,
59 Platão, Fedro (Lisboa, Edições 70, 1997), p. 121 (275c).60 Ibid., p. 122 (275d).61 Platão, A república (Belém, EDUFPA, 2000), p. 160 (401d).62 Platão, Íon (Porto Alegre, L&PM, 2007), p. 33-34 (534a-534d).63 Platão, A república (Belém, EDUFPA, 2000), p. 365 (548b).64 Platão, Fedão (Belém, EDUFPA, 2002), p. 253 (61a)65 F. Nietzsche, O nascimento da tragédia (São Paulo, Companhia das Letras, 1992), p. 87-88.
260
testemunhando, a despeito de sua posição doutrinária, a proximidade entre arte e
filosofia.
Mais que tudo, no entanto, é sua simples opção pela forma de exposição
do diálogo que já indica o zelo formal do grande poeta, cuja realização impecável
só confirma e que talvez seja tão responsável pelo vigor deste pensamento quanto
os conteúdos da doutrina, se é que estes poderiam ser o que são sem aquela. Não é
sem razão, portanto, que Friedrich Schlegel, em texto escrito na forma de uma
“conversa sobre a poesia”, coloque o personagem Lothario reagindo assim ao que
ouvira de um interlocutor: “ao mencionar a passagem da poesia à filosofia e da
filosofia à poesia, você citou Platão como poeta – pelo que a musa lhe
recompensará”66.
Por essas e por outras, Giorgio Agamben comentou que o confronto que
vem de longa data entre poesia e filosofia é “bem diverso de uma simples
rivalidade; ambas tentam apreender aquele inacessível lugar original da palavra,
em relação ao qual se vêem ameaçados, no homem falante, seu próprio
fundamento e sua própria salvação”67. Malgrado o objetivo declarado de Platão,
ele também deixou acontecer, junto com a tradição de confronto entre poesia e
filosofia, uma espécie de história subterrânea, certamente mais rara, em que uma e
outra encontram-se aqui e ali, como se estivessem, por caminhos inesperados,
enlaçadas na aproximação do misterioso lugar da criação e da reflexão. Nessa
história, os primeiros românticos alemães têm lugar de honra.
Talvez eles tenham lido Platão melhor do que muitos. Pois, mesmo
expulsando os poetas de sua república ideal, Platão frisa: “não obstante,
declaremos desde agora que se a poesia imitativa e serva do prazer puder aduzir
um argumento, ao menos, a favor da tese de que ela é indispensável em toda
cidade bem constituída, com a maior satisfação a receberemos na nossa”68. É
curioso, pois Platão não apenas abre esta brecha. Ele insiste nela, ao sublinhar,
pela boca de Sócrates, que a arte pode “vir a falar em defesa própria numa
composição lírica ou em qualquer outro metro”69. Seu interlocutor concorda:
“perfeitamente”, diz. Mas Sócrates não se satisfaz e reitera que “permitiremos,
até, que seus protetores – não há necessidade de serem poetas: simples amigos da
66 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 46.67 Giorgio Agamben, A linguagem e a morte (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2006), p. 107-108.68 Platão, A república (Belém, EDUFPA, 2000), p. 451-452 (607c).69 Ibid., p. 452 (607d).
261
poesia – falem em prosa a seu favor para demonstrar-nos que ela não é apenas
agradável mas também de vantagem para as cidades e a vida humana em geral”70.
Parece até que Platão gostaria muito de acolher a arte, a ponto de torcer para que
alguém trouxesse boas razões para que mudasse de idéia quanto a seu banimento.
“De muito bom grado os ouviremos, pois só teríamos a ganhar se se provasse que
além de deleitável é proveitosa”71. Poucas vezes se dá importância a este convite
que Platão faz. Pois bem: os românticos o aceitaram.
*
Sem dúvida, a tradição ocidental firmou, para si, a querela entre arte e
filosofia que já Platão dizia ser antiga e que, por sua vez, perpetuou. Somos,
ainda, testemunhas disso: “até no próprio meio filosófico, por exemplo na
academia, reina certa desconfiança em relação aos aspectos formais mais
apurados de uma palestra oral ou de um texto filosófico”72, observou criticamente
Jeanne Marie Gagnebin. Não é raro, mesmo quando se tenta relacionar filosofia e
arte, vermos que se concebe a primeira como saber sério, profundo e complexo,
embora sua dificuldade deva-se, também, à inabilidade de expressar ou comunicar
aquilo que pensa, enquanto a segunda, por sua vez, é alijada da posse de tais
pensamentos próprios, mas dotada de enorme técnica e talento para falar ou
escrever bem.
Nesses casos, relacionar arte e filosofia torna-se, muitas vezes, preencher
com conteúdos filosóficos graves a forma literária bela. Nem é preciso dizer que
relacionar desse jeito significa manter e até acirrar a identidade pura de cada um
dos termos relacionados, arte e filosofia. Enquanto tipos ideais, essas identidades
podem até funcionar. Mas na prática não é bem assim. Pois, como notou Martha
Nussbaum, “a forma literária não é separável do conteúdo filosófico, mas é, em si
mesma, uma parte do conteúdo – uma parte integral, portanto, da procura pela
verdade e sua afirmação”73.
Esta poderia ser a suma do projeto do primeiro romantismo alemão. Por
isso, não bastava, nele, relacionar arte e filosofia. Esta relação precisava ser de
70 Ibid., p. 452 (607d).71 Ibid., p. 452 (607e).72 Jeanne Marie Gagnebin, Lembrar escrever esquecer (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 202.73 Martha C. Nussbaum, Love’s Knowledge (New York, Oxford University Press, 1990), p. 3.
262
natureza amorosa, para que, no encontro, os termos encontrados transformassem
um ao outro, ao invés de saírem dali tal como entraram. É que, como afirmou
Friedrich Schlegel, “no amor, em primeiro lugar vem o sentido de um para o
outro, e o mais elevado é a crença de um no outro”74. É neste contexto amoroso,
no qual a figura da alteridade entre arte e filosofia vem à tona justamente no seu
encontro, que os românticos as colocaram. Por isso também, disseram que “divino
é aquilo que jorra do amor pelo puro ser e devir eterno, amor que é mais alto do
que toda poesia e filosofia”75.
Muitas vezes, quando amamos, não sabemos bem onde acaba nossa
identidade e onde começa a do outro. Elas se confundem pois, a rigor, o que
somos não se dá senão nos contatos que entretemos, e o amor é o mais radical
deles, colocando nossa identidade num constante processo de formação no interior
da relação. Nosso anseio, às vezes, seria o de sair dela para ver quem realmente
somos, sem nos darmos conta de que, aí, já não seríamos aqueles que queríamos
descobrir, pois já estaríamos em outra situação e, assim, já seríamos outros e não
mais aqueles. É o mesmo que se dá com o que são arte e filosofia no primeiro
romantismo alemão. Nenhuma fronteira nítida consegue separar, aí, onde começa
uma e onde termina outra. Elas estão juntas.
Daí a dificuldade, ainda hoje, de classificação dos primeiros textos
românticos. Neles, o pensamento filosófico vem sempre exposto numa forma
literária sem a qual não seria o que é. Seriam eles poesia ou filosofia? Não é
possível dar boa resposta para esta pergunta pois, desde que adentram a
experiência amorosa, arte e filosofia passam a ser o que são apenas uma pela
outra, nas múltiplas relações que entretém. Não adianta muito, portanto, perguntar
de fora o que são a arte e a filosofia para os primeiros românticos alemães e nem
se eles são mais poetas ou mais pensadores. Pois o que são arte e filosofia ou
poesia e pensamento que só se mostram na própria experiência que fazemos com
elas?
Essa valorização da arte e, sobretudo, do caráter literário da própria
filosofia feita pelos românticos corria na contramão da tradição ocidental, fundada
por Platão. Mesmo a visão aristotélica da arte, segundo a qual “a poesia é mais
74 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 60 (Athenäum,Fr. 87).75 Ibid., p. 132 (Athenäum, Fr. 419).
263
filosófica e de caráter mais elevado que a história, porque a poesia permanece no
universal e a história estuda apenas o particular”76, jamais ameaça o lugar superior
da ciência teórica que é a própria filosofia. Porém, quando andamos na
contramão, não apenas vamos na direção oposta dos outros. Nós também
passamos a vê-los por outro ângulo, bem diferente. Nesse momento, é possível até
que enxerguemos coisas que antes não víamos. Em nosso caso, aqui, talvez
enxerguemos em Platão um poeta, já que, segundo os primeiros românticos
alemães, ele “considerava a filosofia o ditirambo mais audacioso e a música mais
harmoniosa”77.
Nesse contexto, então, a origem do romantismo alemão, ainda que muito
breve, representa a exceção que confirma a regra da querela que predominou entre
arte e filosofia em nossa tradição. Experimentaram os românticos, por alguns
poucos instantes mas com grande intensidade, o amor entre arte e filosofia.
Ninguém expressou melhor esta situação do que María Zambrano: “no
romantismo, poesia e filosofia abraçam-se, chegando a fundir-se em alguns
momentos com fúria apaixonada; como amantes separados durante longo tempo e,
que ao encontrarem-se, pressentem que a sua união não será duradoura; fundem-
se com a paixão que precede a morte”78.
76 Aristóteles, “Arte Poética”, in Arte Retórica e Arte Poética (Rio de Janeiro, Ediouro, 2005), p.252 (IX).77 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 142 (Athenäum,Fr. 450).78 María Zambrano, A metáfora do coração e outros escritos (Lisboa, Assírio & Alvim, 2000), p.107.
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