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Pedro Duarte de Andrade Estio do tempo: o amor entre arte e filosofia na origem do romantismo alemão Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Prof. Eduardo Jardim de Moraes Rio de Janeiro, agosto de 2009

Tese Pedro Duarte

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Pedro Duarte de Andrade

Estio do tempo:

o amor entre arte e filosofia

na origem do romantismo alemão

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof. Eduardo Jardim de Moraes

Rio de Janeiro, agosto de 2009

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Pedro Duarte de Andrade

Estio do tempo: o amor entre arte e filosofia na origem do romantismo alemão

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Eduardo Jardim de Moraes

Orientador Departamento de Filosofia da PUC-Rio

Profa. Katia Rodrigues Muricy

Departamento de Filosofia da PUC-Rio

Prof. Luiz Camillo Osório Departamento de Filosofia da PUC-Rio

Prof. Bernardo Barros Coelho de Oliveira

Universidade Federal do Espírito Santo

Prof. Pedro Süssekind Viveiros de Castro Universidade Federal Fluminense

Prof. Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa

Universidade Federal Fluminense

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro

de Teologia e Ciências Humanas - PUC-Rio

Rio de Janeiro, 14 de agosto de 2009

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da Universidade.

Pedro Duarte de Andrade

Graduou-se em Comunicação Social na PUC-Rio em 2002. Mestre em Filosofia pela PUC-Rio em 2005.

Ficha catalográfica

CDD: 100

Andrade. Pedro Duarte de Estio do tempo: o amor entre arte e filosofia na origem do romantismo alemão / Pedro Duarte de Andrade; orientador: Eduardo Jardim de Moraes. – Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Filosofia, 2009.

277 f.; 30 cm Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia. Inclui referências bibliográficas 1. Filosofia – Teses. 2. Arte. 3. Romantismo. I. Moraes, Eduardo Jardim de. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.

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Agradecimentos

ao Eduardo Jardim de Moraes, pela amizade e pela sabedoria de orientar, desde cedo, para que eu buscasse algum caminho próprio; à Katia Muricy, cujo pensamento ofereceu diálogos, falados ou não, que estiveram sempre presentes comigo neste trabalho; à Irley Franco, cujo convite para dar aulas sobre o romantismo alemão no curso de pós-graduação que coordena esteve no começo deste trajeto; ao Luiz Fernando Valente e a todos os professores e amigos que estiveram por perto no período em que fui professor visitante na Brown University, nos Estados Unidos; à Marcela Oliveira, que, além do amor e da paciência, ofereceu também para mim a leitura minuciosa de cada página (e pé de página) deste trabalho; à Letícia Warner, alegria de mãe que tenho, e ao Peter Warner, que, além de tudo, deram o teto sob o qual o fim desta tese foi escrito; aos professores que, de vários jeitos, ajudaram a formar a escuta que tento exercer até hoje para a filosofia e para o mundo; aos tantos alunos que, por anos, ouviram falar das descobertas que eu fazia sobre a filosofia e o romantismo, até quando os cursos não eram sobre o assunto; aos poucos mas tão queridos amigos que fiz graças ao convívio começado pelo acaso de estarmos juntos na pós-graduação de filosofia; aos meus amigos e familiares que acolheram pacientemente várias ausências que foram exigidas para a execução deste trabalho; ao Departamento de Filosofia da PUC-Rio, que durante tantos anos, desde bem antes deste doutorado, foi o espaço em que grande parte da filosofia aconteceu para mim;

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à Edna Sampaio e à Diná Lucia, pelo trabalho de todos os dias; ao CNPq e à PUC-Rio, pelo apoio financeiro concedido para este trabalho acadêmico; ao Antonio Abranches, porque o princípio é como um deus que, enquanto permanece entre nós, tudo salva.

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Resumo

Andrade, Pedro Duarte de; Moraes, Eduardo Jardim de. Estio do tempo: o

amor entre arte e filosofia na origem do romantismo alemão. Rio de Janeiro, 2009. 277p. Tese de Doutorado – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Esta tese estuda a tensão que caracteriza o pensamento dos primeiros

autores do romantismo alemão, situados entre a consciência crítica (kantiana), que

proibia nosso acesso à verdade absoluta, e o desejo de síntese (hegeliano) que

pretendia alcançá-la. Nesse contexto, a arte apareceu como forma de dizer o

absoluto justamente pela oposição à clareza objetiva pretendida pelo sujeito do

conhecimento. Fora do quadro tradicional do classicismo, e trazendo consigo o

traço moderno da reflexão, a arte seria genial: sua criação não dependeria da

obediência a regras prévias. Por sua vez, a crítica saía do paradigma avaliativo

pautado em normas, tornando-se filosófica. Forçava-se, então, a transformação do

contato com a antiguidade clássica, que seria agora fragmentado, ao apontar para

o caráter vanguardista que abre mão da totalidade. Ironia e alegoria seriam

emblemas dessa quebra, evidenciando a descontinuidade entre signo e sentido na

época moderna. Habitar a linguagem era experimentar o amor entre arte e

filosofia, contrariando a querela que permanecera entre ambas desde Platão. Este

“estio do tempo” ocorreu, na virada do século XVIII para o XIX, com a escrita do

grupo de jovens capitaneado por Friedrich Schlegel na origem do romantismo,

forjando uma filosofia da arte que foi também uma arte do filosofar.

Palavras-chave

Romantismo; arte; filosofia.

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Abstract

Andrade, Pedro Duarte de; Moraes, Eduardo Jardim de (Advisor). Time of

Quietness: The Love Between Art and Philosophy in the Origin of German Romanticism. Rio de Janeiro, 2009. 277p. Doctoral Thesis – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

This thesis examines the tension that characterizes the thinking of the first

German Romantic authors situated between (kantian) critical consciousness,

which prohibits our access to absolute truth, and the (hegelian) desire for

synthesis which presumes to lead us there. In this context, art emerges as a way of

expressing the absolute precisely in opposition to the objective clarity intended by

the subject of knowledge. Outside the traditional form of classicism and bringing

with it the trace of modern reflection, art is genial in that its creation does not

depend upon obedience to pre-existing rules. In turn, criticism leaves its

evaluative paradigm, based on norms, and becomes philosophical. It therefore

forces the transformation of the contact with classical antiquity, now fragmented,

and points to the new vanguard, which surrenders the concept of totality. Irony

and allegory are emblematic of this break, which shows the discontinuity of sign

and sense in the modern era. Using this language means experiencing the love

between art and philosophy, in contrast to the separation that has existed between

them since Plato. This “quietness in time” occurred at the turn of the XVIII to the

XIX Century in the works of a group of young writers led by Friedrich Schlegel at

the origin of Romanticism, forging a philosophy of art that is also an art of

philosophy.

Keywords

Romanticism; art; philosophy.

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Sumário

1. Introdução – Dos extremos ao meio: arte, filosofia e vida 10

2. Breve momento de escrita: quem foram os primeiros românticos 24

3. Seres anfíbios: entre a crítica de Kant e a síntese de Hegel 46

4. Dizer o absoluto: a emergência filosófica da arte 66

5. Modernidade na arte: poesia transcendental e nova mitologia 79

6. Filosofia do romance: o gênero dos gêneros 94

7. Entre a regra e a liberdade: a criação do gênio 113

8. Do juiz ao crítico de arte: a reflexão da obra 135

9. Neo, pós ou anticlassicismo: a imitação da antiguidade na formação moderna 156

10. Fragmentos de vanguarda: a consciência do instante 177

11. Ironia, pátria da arte e da filosofia: a representação alegórica 196

12. Ler o universo, viver o poema: a linguagem como diluição do autor 219

13. Fúria apaixonada: arte e filosofia na contramão da tradição 243

14. Referências bibliográficas 264

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O que se pode fazer, enquanto filosofia

e poesia estão separadas, está feito,

perfeito e acabado. Portanto é tempo

de unificar as duas.

Friedrich Schlegel

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Introdução

Dos extremos ao meio: arte, filosofia e vida

“De todos faz covardes a consciência”, afirma Hamlet em seu famoso

solilóquio, completando ainda que “o natural frescor de nossa resolução definha

sob a máscara do pensamento, e empresas momentosas se desviam da meta diante

dessas reflexões, e até o nome de ação perdem”1. Shakespeare, através das

palavras de seu personagem, expunha a aflição que está na origem da

modernidade: a ascendência do poder pensante do homem ameaçava acuar sua

capacidade de agir. Reflexiva, a era moderna jogava o homem sobre si mesmo e o

cindia. Hamlet pensa. Mas não age. Internaliza subjetivamente todas as

considerações possíveis sobre a vingança que gostaria de perpetrar pela morte de

seu pai e, com isso, não a consuma. Nós acompanhamos, na peça, menos o que

Hamlet faz do que suas reflexões sobre o que fazer. Desde que o espectro do pai

falecido surge e acusa o tio de Hamlet de ser seu assassino, o filho não acredita

completamente na aparição, embora não consiga esquecê-la. Ele só suspeita.

Imagina poder tirar a dúvida, porém, através da arte. Encena uma peça cujo

enredo estaria baseado nas correspondências com os possíveis fatos que o

espectro do pai contara, para poder então observar as reações do tio, que

supostamente denunciariam sua culpa ou sua inocência. Recorre Hamlet ao pouco

provável âmbito da arte para procurar a verdade, e não à ciência, como se poderia

esperar.

Esse enredo de Shakespeare poderia servir de epígrafe para a época

moderna, de acordo com os primeiros românticos alemães no final do século

XVIII. Friedrich Schlegel afirma que, no caráter de Hamlet, tudo “é concentrado

no entendimento; a força ativa, porém, é completamente destruída”, já que “sua

mente puxa a si mesma em diferentes direções como se estivesse em uma

1 W. Shakespeare, “Hamlet”, in Tragédias: teatro completo (Rio de Janeiro, Agir, 2008), p. 572.

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máquina de tortura”2. Hamlet vivia a dilaceração do homem moderno. Schlegel a

explica como “máximo de desespero”, “dissonância colossal” e “desarmonia sem

solução que é o objeto atual da tragédia filosófica”3. Nessa época, a cultura alemã

criava o que veio a ser chamado de filosofia do trágico. Não eram, contudo,

análises empíricas das tragédias gregas que estavam em primeiro plano aí. No

conflito trágico entre deuses e homens, o que chamava a atenção, agora, era a

oposição que constituía ontologicamente o ser, especialmente na época moderna –

que deixava de fazer tragédias como as antigas para se tornar, ela mesma, a época

trágica por excelência.

Sua pré-história estaria em Descartes, com a dúvida sobre nosso acesso à

verdade. Sua consolidação aconteceria na doutrina de Kant, com a crítica à

possibilidade de conhecermos as coisas como elas são em si mesmas. Esta crítica

era delimitação do espaço da verdade absoluta, agora separado de nós. “Entre os

modernos se fala sempre deste e do outro mundo, como se houvesse mais de um”,

escreve Friedrich Schlegel, “mas com certeza entre eles a maioria das coisas

também é tão isolada e dividida quanto este seu mundo e o outro”4. Eram as

palavras dos primeiros românticos sobre sua conflituosa época. Separavam-se

sujeito e objeto, homem e mundo, mortais e deuses, Estado e Igreja, antiguidade e

modernidade. Por onde procurar, neste contexto, o âmbito sem cisão da verdade

absoluta para que pudéssemos nos sentir em casa no mundo?

Seguindo o exemplo de Hamlet, os primeiros românticos alemães foram

até a arte. Encontraram na arte, contudo, situação parecida com a da sua época em

geral. Ela não era o oásis cheio de vida no deserto moderno: a criação e a fruição

estéticas estavam também afetadas pela perda do contato direto e certo com a

experiência. Não é, portanto, Hamlet o herói romântico. É Shakespeare, que

pensou essa modernidade em sua peça. De todos os artistas, escreve Friedrich

Schlegel, “Shakespeare é o que mais completa e precisamente caracteriza o

espírito da poesia moderna em geral”5. Ironicamente, Shakespeare colocara a arte

dentro da arte. Destacava-se, na sua obra, “a mais profunda e mais compreensiva

2 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 144-145.3 Ibid., p. 144-145.4 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 55 (Athenäum, Fr.55).5 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 145.

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filosofia poética”6. Refletia ele sobre a arte e a fazia ao mesmo tempo, como

Cervantes e, depois, Goethe. Ingenuidade deixava de ser algo possível. Estava

perdida, e perdidos estavam os artistas que ainda confiassem nela para criar com

suposta perfeição suas obras.

“Desde que comemos da árvore do conhecimento”, como disse Kleist,

deixaram de ser evitáveis os erros: “o paraíso está trancado”, afirma; portanto

“precisamos dar a volta ao mundo, e ver se não há talvez, do outro lado, uma

abertura em algum lugar”7. Foi a viagem que empreenderam os primeiros

românticos alemães. Diz o ditado: “se não pode vencê-lo, junte-se a ele”. Era o

que a arte deveria fazer com o pensamento. É certo que a arte já pensava antes,

porém, pensar a si mesma não era condição de sua atividade; agora era. “Se a

poesia deve se tornar arte, se o artista deve ter profundo discernimento e ciência

dos seus meios e fins, e dos obstáculos e objetos dela, o poeta tem de filosofar

sobre sua arte”8, afirma Schlegel. Justo onde a arte parecia perder a simples

centralidade histórica que tinha por exemplo com os antigos gregos, surgia a

transformação que a faria moderna. Razão pela qual Baudelaire sentenciou:

“quem diz romantismo diz arte moderna”9.

Refletir deixava de ser só o entrave para a ação de criar. Tornava-se outro

jeito de criar: o jeito moderno. Nesse sentido, a arte aproximava-se da filosofia.

Romantismo, na origem, é esta aproximação. Surpreendentemente, o que achamos

aí “não é a glorificação do instinto ou a exaltação do delírio, mas, bem ao

contrário, a paixão do pensamento e a exigência quase abstrata posta pela poesia

para que refletisse sobre si e se fizesse através desta reflexão”, como observou

Maurice Blanchot, para quem “o romantismo é excessivo, mas seu primeiro

excesso é um excesso de pensamento”10. Se, depois, o movimento caiu várias

vezes no emocionalismo exagerado que conhecemos, foi porque abandonou, em

outras vertentes, aquilo que buscaram – e como o buscaram – os primeiros

românticos.

6 Ibid., p. 145.7 Heinrich von Kleist, Sobre o teatro de marionetes (Rio de Janeiro, 7Letras, 2005), p. 21.8 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 93 (Athenäum, Fr.255).9 Charles Baudelaire, “Salão de 1846”, in Poesia e prosa (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995), p.675.10 Maurice Blanchot, “L’Athenaeum”, in L’Entretien infini (Paris, Gallimard, 1969), p. 518.

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Seu caminho da arte para a filosofia, contudo, não possuía só esta direção,

mas também a oposta: “pois na filosofia o único caminho que leva à ciência passa

pela arte, assim como, ao contrário, só por meio da ciência o poeta se torna

artista”11, sublinhou Friedrich Schlegel. Se a arte passa pela filosofia, a filosofia

passa pela arte. Nesse trânsito, a modernidade poderia achar a força de ação no

seu excesso de pensamento. Para tanto, a “poesia só pode ser criticada por poesia”

e o “juízo artístico que não é ele mesmo uma obra de arte (…) não tem

absolutamente direito de cidadania no reino da arte”12. Se a arte deve ser

filosófica, a filosofia tem que ser poética. Ser ou não ser arte? Ser ou não ser

filosofia? Eis as questões dos primeiros românticos.

*

Segundo a antiga tradição do pensamento ocidental, para ser alguma coisa

não se pode ser outra. Identidade é ser o que se é sem ser outro, senão estaríamos

em contradição. Mas “o princípio de contradição está mesmo irremediavelmente

perdido, e se tem somente a escolha entre querer comportar-se passivamente em

relação a isso ou querer elevar a necessidade, pelo reconhecimento, à fidalguia de

ação livre”13, constatavam os primeiros românticos. Liberdade de ação do que é

contraditório foi o que eles buscaram fazer em seu pensamento. Identidade clara

do que seria a arte e do que seria a filosofia foi o que precisaram abandonar para

tanto. Este abandono era da ordem do amor, estado em que, como sabemos, as

fronteiras que separam os elementos envolvidos tornam-se porosas.

Tratamos aqui, portanto, do amor entre arte e filosofia na origem do

romantismo alemão, experiência que contrariava a duradoura tradição ocidental

que as colocara em oposição desde Platão. Só que esse “amor original jamais

aparece puro, mas em diversos invólucros e figuras, como confiança, humildade,

devoção, júbilo, fidelidade, vergonha e gratidão; acima de tudo, porém, como

nostalgia e serena melancolia”14. São várias, então, as formas de amor entre arte e

filosofia. “Segundo a origem, o verdadeiro amor deveria ser ao mesmo tempo 11 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 101 (Athenäum,Fr. 302).12 Ibid., p. 38 (Lyceum, Fr. 38).13 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 52 (Fr. 26).14 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 157 (Idéias, Fr.104).

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inteiramente arbitrário e inteiramente casual, e parecer ao mesmo tempo

necessário e livre; mas, segundo o caráter, deveria ser ao mesmo tempo

destinação e virtude, e parecer um mistério e um milagre”15. Não seria diferente

com arte e filosofia em seus encontros tematizados e experimentados durante o

romantismo.

Esse princípio de alternância amorosa entre a arte e a filosofia entraria em

colisão também, pouco depois, com o sistema de Hegel, que procurava consumar

a tradição ocidental começada por Platão. Tal colisão é fruto, sobretudo, da

pretensão de Hegel. Ele queria tudo compreender: as contradições só seriam

aceitas como etapas do que chamou de dialética, cuja essência era, ao fim,

solucioná-las na figura da síntese. Limitação finita do homem diante do todo do

ser, como firmara Kant, era o que ficava para trás. Nenhuma separação poderia

perdurar diante do poder dessa especulação. Tal qual Édipo, o “senhor

onipotente”16, Hegel encarnava a desmedida trágica da época moderna, burlando

todas as proibições concernentes ao caráter finito do homem. Para tanto, a

filosofia deveria deixar a prática da arte para trás, fazendo dela apenas objeto

compreendido no saber absoluto.

Para trás, aliás, deviam ficar também os primeiros românticos alemães, de

acordo com Hegel. Ele buscava, em seu sistema, a totalidade do conhecimento

forjado na e pela história do espírito absoluto, cujo âmbito de exercício seria a

própria humanidade. Nessa empreitada, fizera de tudo o que veio antes dele, na

história em geral e na história da filosofia em particular, etapas do processo que

trouxera o mundo progressivamente até a era moderna. Romantismo e arte seriam

etapas deste tipo, devidamente superadas pelo próprio Hegel e por sua filosofia.

Muito diferente, claro, era a concepção dos primeiros românticos, a começar pelo

sentido que davam à história da filosofia.

Ir cada vez mais fundo, subir cada vez mais alto, é a inclinação predileta dosfilósofos. O que conseguem, caso se creia na palavra deles, com admirávelrapidez. (….) Sobretudo com relação à altura superam regularmente uns aosoutros, como quando duas pessoas têm a recomendação expressa de fazer amesma compra num leilão. Mas toda filosofia que é filosófica talvez seja

15 Ibid., p. 54 (Athenäum, Fr. 50).16 Sófocles, “Édipo Rei”, in A trilogia tebana (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006), p. 20 (v53).

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infinitamente elevada e infinitamente profunda. Ou Platão está abaixo dosfilósofos atuais?17

Ironizando a pretensão progressiva de alguns filósofos, antes mesmo de

Hegel ter feito sua obra, os primeiros românticos alemães não se alinhavam dentro

de qualquer processo histórico teleologicamente orientado para algum futuro pré-

determinado. Eles defendiam, antes, o estado de tensão em que se encontravam.

Lutavam contra ele, por vezes. Entretanto, consideravam que a batalha não traria

qualquer vitória que não fosse seu próprio exercício. Mesmo porque, “a felicidade

não se amontoa como dinheiro e outras matérias, mediante comportamento

conseqüente”, conforme escreveu Friedrich Schlegel: “a felicidade surpreende-

nos, como a música nascida do éter aparece para logo desaparecer”18. Era esta

felicidade efêmera que buscavam os primeiros românticos.

Não podiam, portanto, antecipar aquele fechamento sistemático que Hegel

depois executou. Tampouco, porém, contentavam-se com a proibição crítica feita

por Kant quanto à verdade. Eles não abandonavam a pretensão ao absoluto,

embora sabendo paradoxalmente que esta jamais seria completada. Segundo

Friedrich Schlegel, “o salto até aquilo que é perfeito e acabado permanecerá

sempre infinito”19, ou seja, aberto. Só que, ainda assim, o salto é o que tentam, a

cada vez e de novo, os primeiros românticos alemães, pois “o jogo do comunicar

e do aproximar-se é a ocupação e a força da vida, uma vez que a completude só

existe na morte”20, afirma ainda Schlegel.

Era sugerido, aqui, outro caminho para a modernidade ocidental, que não

se jogava na sanha hegeliana pelo saber absoluto sem despertá-la, toda vez, pela

consciência crítica kantiana – e que não se contentava com esta sem sonhar com

aquela. Foi neste contexto que Hölderlin, embora amigo de Hegel, afirmou

romanticamente que “a unificação ilimitada se purifica por meio de uma

separação ilimitada”21. Diante da desmesura do desejo de acasalamento completo

entre homens e deuses, só há purificação pela separação, o que seria apresentado

17 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 101 (Athenäum,Fr. 303).18 Friedrich Schlegel, Lucinda (Portugal, Guimarães & C. Editores, 1979), p. 72.19 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 139 (Athenäum,Fr. 432).20 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 30.21 F. Hölderlin, “Observações sobre Édipo”, in Observações sobre Édipo; Observações sobreAntígona (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008), p. 78.

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nas tragédias. Seu significado, por isso, seria melhor concebido no paradoxo.

“Nesse momento, o homem esquece de si e de deus, e se afasta, certamente de

modo sagrado”22. Suportar o afastamento dos deuses que caracteriza a época

moderna torna-se, paradoxalmente, o que há de sagrado para o homem. Início e

fim, ao contrário do que gostaria Hegel, não mais rimam. Talvez porque a vida

seja sempre o que fica no meio.

Nesse sentido, o amor entre arte e filosofia, para os primeiros românticos

alemães, não alcança qualquer completude final que pudesse salvar a

modernidade de todos os seus conflitos e sanar as ausências e vazios que a

atormentavam. “Poesia e filosofia são apenas extremos”23, afirma Friedrich

Schlegel. Só que ele mesmo aconselha: “vinculem os extremos, e terão o

verdadeiro meio”24. Mas o que fica no meio? Responde Schlegel: “o que está no

meio tem o caráter da vida”25. São a comunicação e a aproximação entre os

extremos da arte e da filosofia que dão a vida. Não se tratava de aniquilar ou

pacificar a diferença entre elas, então. Pelo contrário. Só quando não podemos

separar completamente alguma coisa de outra e tampouco juntá-las como se

fossem a mesma, aparece o exercício da alteridade. No caso dos primeiros

românticos alemães, este exercício ocorria entre a arte e a filosofia. Eles assim o

teorizaram e assim o praticaram. Meu objetivo, nesta tese, foi estudar esta teoria e

esta prática do amor entre arte e filosofia experimentadas pelos primeiros

românticos alemães. Seu percurso está sucintamente antecipado abaixo.

*

No primeiro capítulo desta tese, apresento quem foram os primeiros

românticos alemães, tarefa árdua por alguns elementos específicos de sua

situação. Primeiro, porque ainda não é comum conhecermos esses autores por si

mesmos: quando já ouvimos falar de alguns deles, o que é exceção, em geral foi

de segunda-mão através de outros pensadores ou só pontualmente a partir de

questões colocadas por outros mas que os tangenciam. Segundo, porque a

22 Ibid., p. 79.23 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 156 (Idéias, Fr.96).24 Ibid., p. 153 (Idéias, Fr. 74).25 Ibid., p. 162 (Idéias, Fr. 137).

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efervescência da produção filosófica e artística daquele período da história alemã

entre o final do século XVIII e o começo do XIX torna este contexto bastante

emaranhado. Busquei, diante disso, descrever o clima dentro do qual se forma o

primeiro grupo romântico, assim como seus personagens e sua situação histórica,

definida a partir do acontecimento da Revolução Francesa. Junto, aproveitei para

apresentar os temas e as questões principais que, no decorrer da tese, são tratados,

e que esclareço a partir de agora, anunciando os pontos de parada da viagem que

este texto empreendeu.

No segundo capítulo, explicito o que me parece ser a situação não só

cronológica, mas também filosófica dos primeiros românticos alemães. Estavam

entre Kant e Hegel. Seu caráter era kantiano, ou seja, crítico quanto às

possibilidades de alcance da verdade absoluta. Seu desejo, porém, era hegeliano:

queriam o absoluto. Tal situação foi explorada dentro do cenário filosófico da

época. Idealismo era a doutrina em voga, sobretudo com Fichte. Bem cedo,

porém, Novalis e Hölderlin estabelecem suas diferenças quanto a ele, abrindo o

horizonte singular do que viria a ser o primeiro romantismo alemão. Isso ocorria

com sutileza, pois a proximidade teórica e afetiva entre todos esses pensadores era

grande. Hölderlin, por exemplo, era amigo de Hegel. “Mas esta proximidade é

problemática”, como observou Martin Heidegger: “o poeta, já nesta época, e a

despeito de toda aparência dialética que seus ensaios podiam mostrar, já tinha

ultrapassado e quebrado a dialética especulativa – enquanto Hegel estava no

processo de estabelecê-la”26. Parece-me que o mesmo vale para os primeiros

românticos alemães, embora Hölderlin não tenha pertencido ao grupo por eles

formado. Interdita-se, em ambos os casos, a síntese dialética como solução plena

para o desamparo da situação moderna. Intuição intelectual, como veremos, foi o

conceito central nessa discussão em torno do acesso ao absoluto, cabendo saber se

ela poderia superar a dicotomia entre sujeito e objeto no âmbito da doutrina da

ciência (Fichte) ou não (Hölderlin e Novalis). Era a tensão, e não a solução, que aí

aparecia.

No terceiro capítulo, em continuidade com o segundo, explico como a

emergência filosófica da arte no começo da época moderna surge justamente

diante da frustração de concretizar, no âmbito estrito do saber, o absoluto.

26 Martin Heidegger, Vier Seminare (Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1977), p. 25.

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“Filosofia é na verdade nostalgia, o impulso de sentir-se em casa em toda parte”27,

dizia Novalis. Nostalgia esta que só poderia ser sanada com a superação da cisão

que apartava o homem, enquanto sujeito, do mundo, enquanto objeto. Só que o

conhecimento é sempre de algum objeto e para algum sujeito: aí o ser de tudo o

que é fica cindido. Não é absoluto. Não seria aí que nos sentiríamos em casa,

portanto. Era a arte, então, a dimensão na qual este absoluto poderia ser buscado,

porque seu jeito de dizê-lo dispensava a clareza objetiva da ciência. Neste ponto,

o jovem Schelling e Hölderlin parecem concordar. Dizer o absoluto, mesmo na

filosofia, exigiria sentido estético, para falar daquilo que não se evidencia, de algo

que só se apresenta como o que se ausenta. Já se anunciava, aí, o deslocamento da

filosofia para a arte e da arte para a filosofia que tomaria conta do primeiro

romantismo alemão.

No quarto capítulo, explico qual era esta arte moderna de que falavam os

primeiros românticos alemães. Enquanto Hegel enxergava a ascensão do caráter

espiritual pensante do homem moderno como sinal do fim dos dias da grande arte

atrelada à sensibilidade da matéria, os primeiros românticos alemães, neste

aspecto mais próximos de Schiller, viam aí apenas a transformação do caráter da

arte. Reflexão passava a ser sua marca. Foi o que pretenderam chamar de “poesia

transcendental”. Por analogia com o vocabulário de Kant, este caráter

transcendental significava que a arte não deveria apenas poetizar as coisas fora de

si, mas explicitar as condições de possibilidade do próprio ato artístico. Em suma,

a arte não deveria apenas ser, mas saber que era. Por isso, caberia a construção,

nesse contexto, do que os primeiros românticos compreendiam por “nova

mitologia”, em oposição à tradicional. Sua novidade estava em acolher a perda da

antiga mitologia naturalmente dada, em prol da artificial elaboração

autoconsciente de outra, moderna.

No quinto capítulo, trato da valorização sem precedentes do romance

como forma literária. Sua centralidade, para os primeiros românticos, estava em

que era o espaço privilegiado da construção de sentido na arte quando esta perdera

a segurança do amparo divino antes presente na mitologia tradicional. Misturando

os gêneros, ao invés de ser apenas mais um gênero, o romance seria prosa e poesia

juntas, permitindo a penetração da própria filosofia dentro da mesma obra.

27 Novalis, “Das Allgemeine Brouillon”, in Werke, Tagebücher und Brief, v. II (München, CarlHanser, 1978), p. 675 (n. 857).

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Refletindo sobre si mesmo, o romance era a forma de arte destinada a dar sentido,

por precário que fosse, à falta de sentido em que o desamparo moderno deixara o

homem. Seu exemplo principal seria Goethe, com Os anos de aprendizado de

Wilhelm Meister, obra exaustivamente discutida no romantismo.

No sexto capítulo, estudo a complexa gênese da noção de gênio na

modernidade. Ele deveria criar sem se fiar em regras prévias (como dizia Kant),

até para que obras como os romances pudessem ser arte, pois seu gênero não se

enquadrava na divisão tradicional. Liberdade tornava-se o centro da criação, por

oposição às regras que a pautavam durante o neoclassicismo francês. No teatro, os

exemplos de Racine e Corneille saíam de cena. Entrava Shakespeare. Sem deter

sua genialidade por conta de exigências exteriores à sua obra, ele criara a grande

poesia da era moderna. No lugar das regras fixas, os primeiros românticos, porém,

não colocavam o gênio como pura força subjetiva e pessoal, o que às vezes

ocorreu com os pré-românticos. Eles colocavam o pensamento. Toda criação

pensa a si mesma na sua singularidade, por isso não segue normas definidas antes

de si. Paradoxalmente, o gênio seria, ao mesmo tempo, espontâneo e reflexivo.

Ingenuidade, portanto, não seria característica necessária sua, mas sim o

pensamento criativo original.

No sétimo capítulo, mostro que, para compreender obras criadas

genialmente, a crítica transformava-se. Ela não poderia contar com parâmetros

prévios para falar da arte produzida fora de determinações tradicionais. Esta arte,

como observou Georg Lukács, “não é mais uma cópia, pois todos os modelos

desapareceram; é uma totalidade criada, pois a unidade natural das esferas

metafísicas foi rompida para sempre”28. Tal arte exigia que sua compreensão

abandonasse a simples verificação da adequação ou não a modelos, já que estes

deixavam de ser obedecidos. Por conta disso, os primeiros românticos alemães

contestavam a apropriação da Poética de Aristóteles pelos neoclassicistas

franceses, que sobre ela construíam a poética prescritiva que deveria orientar a

criação e pautar o julgamento da arte. Julgar, para os primeiros românticos, era o

contrário de criticar, pois supunha alguma legislação geral que absolve ou

condena a obra, ao invés de pensá-la na sua singularidade. Walter Benjamin

destacou que o conceito de crítica de arte do romantismo alemão era

28 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 34.

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potencialização da obra e intensificação de sua reflexão. Ela continua o que a obra

fez. Por isso, a própria crítica, aliás, deveria ser poética.

No oitavo capítulo, explicito a questão que já se delineava nos anteriores:

a criação de outro contato do presente moderno com o passado clássico. Imitar a

antiguidade não seria a diretriz para a arte, ao menos não enquanto cópia. Ela

estaria submetida à formação da cultura moderna, devendo ser apropriada

criativamente. “Esta grande combinação”, para Friedrich Schlegel, “inaugura uma

perspectiva inteiramente nova e ilimitada daquela que parece ser a mais alta tarefa

de toda arte poética – a harmonia do clássico e do romântico”29. Não se tratava de

subserviência aos antigos como se fossem modelos e tampouco da sua negação

para dar luz ao novo. Era, antes, a formação do próprio (moderno) através do

diferente (antigo) que os primeiros românticos buscavam na criação exemplar do

gênio e na reflexão da crítica. Essa consciência de seu momento no tempo,

segundo Dilthey, foi a “primeira fundação da estética sobre a base da história da

arte”30.

Já o nono capítulo enfatiza menos o contato romântico com o passado e

mais com o futuro. “Estamos em relações com todas as partes do universo, assim

como com o futuro e a antiguidade”31, diz Novalis. Essas relações, porém, seriam

todas fragmentadas, pois os românticos não conseguem totalizá-las. “Eis o que faz

a abundância de esboços, estudos, fragmentos, tendências, ruínas e materiais

poéticos”32, para Friedrich Schlegel. Seu caráter de vanguarda opunha-se às

grandes filosofias da história, como a de Hegel. Essa situação era acolhida já na

própria fragmentação da escrita dos primeiros românticos, na qual se buscava a

consciência do instante, e não a consciência do processo histórico.

Retrospectivamente, Habermas diria que, em todo este contexto, “o conceito

profano de tempos modernos expressa a convicção de que o futuro já começou:

indica a época orientada para o futuro, que está aberta ao novo que há de vir”33.

No décimo capítulo, enfoco a fragmentação da escrita dos primeiros

românticos a partir de sua problematização da produção de sentido na linguagem.

29 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 76.30 Wilhelm Dilthey, Historia de la filosofia (México, Fondo de Cultura Econômica, 1996), p. 19931 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 86 (Fr. 92).32 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 21 (Lyceum, Fr.4).33 Jürgen Habermas, O discurso filosófico da modernidade (São Paulo, Martins Fontes, 2000), p.9.

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Ironia e alegoria, para eles, evidenciavam, de dentro da própria linguagem, sua

falta de completude. Exploravam o paradoxo de que, se o sentido jamais é de todo

esclarecido, tampouco é de todo ausente. Estariam fortemente presentes na arte

moderna e na filosofia, o que suscitou duras críticas de Hegel, que desejava a

completude do saber. Priorizava-se, aqui, menos a beleza, como ideal clássico de

perfeição, do que o sublime, como forma alegórica descontínua de frisar a

impossibilidade da representação e, junto, apresentar esta impossibilidade.

No décimo primeiro capítulo, estudo a concepção de linguagem dos

primeiros românticos alemães. Para eles, palavras entendem-se melhor do que

aqueles que as usam, ou seja, a compreensão possui sua sede menos nos sujeitos

do que na própria linguagem. Este horizonte determinou seu exercício da escrita

coletiva, chamado de sinfilosofia e simpoesia, e dos chistes, entendidos como

achados na arte combinatória das próprias palavras para além do domínio da

consciência subjetiva. Nos dois casos, a figura do autor, prezada pela

modernidade como fonte de autoridade do sentido, diluía-se, dando espaço para a

linguagem poética em sua autonomia, fora do contexto pragmático. Nela, as

palavras não se ordenariam como significantes diante das coisas que teriam valor

de significados. Palavras e coisas teriam seu contato por espelhamentos fundados

em analogias e correspondências. Ritmo e cadência das palavras entre si trariam,

consigo, o caráter poético das próprias coisas, que não seriam apenas objetos

petrificados. Essa linguagem teria certo caráter divino, porém bastante atípico.

Pois a religião romântica costumava se apresentar através da falta, embora a falta

de religião, por sua vez, fosse vivida religiosamente. Exilados estavam os deuses,

como cantava Hölderlin.

No décimo segundo capítulo, encaminho palavras com caráter conclusivo.

Situo o contato entre arte e filosofia como forma de habitar o mundo moderno na

ausência dos deuses, fazendo a experiência desta ausência. Este gesto dos

primeiros românticos, porém, corria na contramão da tradição ocidental que, de

Platão a Hegel, separara a filosofia da arte. Esta separação fundava-se na

exigência do princípio de não-contradição e na sede pela compreensão total do

ser. Só que os primeiros românticos alemães acolhem tanto a contradição quanto a

ausência de compreensão completa do sentido das coisas. Pensam, aliás, que é aí

que se faz a vida, nas traduções que tornam o estranho familiar e o familiar

estranho: “não achar nada mais estranho que o comum, e ter sentido para o

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estranho, procurar e pressentir muito nele”34, dizem. Romantizar é este gesto, que

nos desafia, portanto, a olhar a filosofia de outro jeito, a partir da exigência de que

ela seja poética.

Espero que, com o caminhar deste percurso aqui apenas anunciado, fique

claro que o caráter fragmentado dos escritos dos primeiros românticos alemães

não os torna apenas aleatórios ou avessos a toda tentativa de compreensão.

Interpretação é o que eles exigem. Não permitem que esperemos o sentido já

pronto. Devemos construí-lo junto com os textos. “Somente mostro que entendi

um escritor quando sou capaz de agir dentro de seu espírito, quando sou capaz de,

sem estreitar sua individualidade, traduzi-lo e alterá-lo multiplamente”35, afirma

Novalis. Nesse sentido, busquei, nesta tese, traduzir aquilo que os primeiros

românticos alemães pensaram, sabendo que este gesto traz necessariamente

alguma alteração, permanecendo aberta a possibilidade, portanto, de ouras

traduções, é claro. Interpretar é o gesto que jamais deixa seu objeto exatamente

como o encontrou, mas sem o qual este objeto não poderia produzir qualquer

sentido. Foi o que tentei fazer aqui.

Devo dizer, ainda, que os ecos contemporâneos das questões expostas

antes pelos primeiros românticos alemães às vezes precederam o meu contato com

eles mesmos, o que certamente determina algumas abordagens desta tese. Destaco

a idéia de linguagem do Heidegger tardio, o conceito de crítica de arte do jovem

Benjamin, a reflexão de Octavio Paz sobre a poesia e sua história moderna, a

crítica literária de Maurice Blanchot, a teoria do romance de Lukács, as teses de

Paul de Man, as observações sobre história da filosofia da arte de Peter Szondi e o

estudo de Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy sobre o próprio primeiro

romantismo. Em todos esses casos, explicita ou discretamente, o pensamento de

homens como Novalis e Friedrich Schlegel apontou caminhos que provavelmente

não teriam sido possíveis sem ele. Esses caminhos de outros autores, tantas vezes

brilhantes e originais, evidenciam a vivacidade do primeiro romantismo alemão.

Eles foram também decisivos para que esta tese fosse escrita do jeito que foi.

Por fim, gostaria de sublinhar que busquei escrever este texto dando aos

seus capítulos alguma autonomia. Lê-los separadamente é possível, embora o

34 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 56 (Fr. 31).35 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 98 (Athenäum,Fr. 287).

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conjunto ajude a dar mais sentido às partes, já que elas oferecem constantemente

sugestões para assuntos tratados nas outras. Múltiplos são os contatos entre as

questões postas em todos os capítulos. Procurei apontá-los sempre que possível,

mas certamente não os esgotei. Percorrer os capítulos fora da ordem em que estão

expostos também é possível. Sua seqüência aqui apresentada foi a que me pareceu

mais coerente, contudo, sem dúvida há outros percursos possíveis. Fica, assim,

algum espaço desta tese que só ganha vida quando chega ao outro; e o escritor

“não o concebe parado e morto, mas vivo e reagindo”36, como dizia Friedrich

Schlegel. Leitor é este outro que escreve também o texto ao acolhê-lo, já que,

afirmam os primeiros românticos, o autor não consegue controlar completamente

o sentido daquilo que diz. Este pertence à linguagem.

36 Ibid., p. 38 (Lyceum, Fr. 112).

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Breve momento de escrita:

quem foram os primeiros românticos

“Hoje, poucas pessoas vão querer dar a esta palavra um sentido real e

positivo”1. Essas linhas de Baudelaire, escritas em 1846, comentavam a palavra

“romantismo”. De lá para cá, a fortuna do termo não mudou muito, talvez tenha

até decaído. É comum empregarmos o adjetivo “romântico” para falar da ingênua

nostalgia do passado ou da sonhadora esperança do futuro. Tais sentimentos

podem até ter raízes, de fato, românticas, mas de modo nenhum dão conta, em sua

simplicidade, do que foi o romantismo ou daquilo que, em seus melhores

momentos, ele pretendeu. Menos ainda nos trazem o que permanece pulsando no

pensamento romântico quando lemos os seus primeiros autores.

Não é novidade a dificuldade de definir o escopo de movimentos

literários, escolas filosóficas ou períodos históricos. Nem é diferente com o

romantismo, especialmente se lembramos que ele “foi um movimento literário,

mas também foi uma moral, uma erótica e uma política”, como observou o poeta

Octavio Paz, completando ainda que, “se não foi uma religião, foi algo mais que

uma estética e uma filosofia: um modo de pensar, sentir, enamorar-se, combater,

viajar” – “um modo de viver e um modo de morrer”2.

Esse amplo raio de ação do romantismo explicita pelo menos dois fatores

que dificultam a tarefa de defini-lo. Primeiro, os românticos, em geral, buscaram

mais borrar demarcações do que desenhá-las, apagar fronteiras do que fixá-las,

misturar gêneros do que conceituá-los. Segundo, seu caráter transgressor os fazia

atacar cada fundamento conquistado e cada caracterização mais sólida, que eram

rapidamente derrubados pelo poder corrosivo da sua própria crítica. Em suma:

1 Charles Baudelaire, “Salão de 1846”, in Poesia e prosa (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995), p.674.2 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 83.

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como definir algo que já foi chamado de “revolução permanente”3, que se quer

essencialmente inquieto, irônico e contraditório?

Não é difícil, portanto, concordar com Arthur O. Lovejoy, para quem

nenhuma visão do homem ou do mundo e nenhuma forma filosófica ou estética

específicas caracterizariam de modo pertinente tudo aquilo que chamamos de

romântico4. Ele achava que definir o romantismo seria impossível, por conta das

diversas matrizes envolvidas neste fenômeno cultural ocidental entre 1780 e 1848.

Para além das divergências nacionais e das diferenças ideológicas, até essa

suposta limitação cronológica parecia extremamente flexível. Resumindo, a

dificuldade de compreender o romantismo não advém da escassez de definições

sobre ele, mas sim do excesso.

Não pretendo desmentir essa tese, como tentou fazer, por exemplo, René

Welleck, ao caracterizar o romantismo pela predominância da imaginação, da

natureza, do símbolo, do mito e, sobretudo, pela união de sujeito e objeto5. Mas

caberia questionar se a resistência a definições que exibe o romantismo não é, por

si mesma, fator decisivo para compreender o que ele é. Se for assim, é como se o

romantismo, por si mesmo, já nos forçasse a pensar para além do modo

classificatório habitual que ele tanto criticou.

Mesmo porque, como notou Charles Larmore, “sem dúvida, os temas

românticos formaram nosso pensamento e nossa experiência de muitas maneiras,

mas nós ainda precisamos ver claramente qual sua verdadeira promessa”6. Bem

antes dele, Baudelaire já pedia: “que nos lembremos das inquietudes destes

últimos tempos, e veremos que, se restaram poucos românticos, foi porque poucos

dentre eles encontraram o romantismo”7. Dentre os poucos, estavam aqueles nos

quais nos deteremos, aqui, particularmente: os primeiros românticos, assim

chamados por terem, pela primeira vez, assumido a palavra “romântico” como

ponto central de seu pensamento e a empregado positivamente.

3 Charles Rosen e Henri Zerner, Romanticism and Realism: The Mythology of Nineteenth-CenturyArt (New York, The Viking Press, 1984), p. 7-48.4 Arthur O. Lovejoy, “On the Discrimination of Romanticisms”, in Essays in the History of Ideas(Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1948), p. 228-253.5 René Welleck, “The concept of Romanticism in Literary History” e “Romanticism Re-examined”, in Concepts of Criticism (New Haven, Yale University Press, 1963), p. 161 e 218.6 Charles Larmore, The Romantic legacy (New York, Columbia University Press, 1996), p. xv.7 Charles Baudelaire, “Salão de 1846”, in Poesia e prosa (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995), p.674.

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*

É claro que, assim, privilegio a abordagem “histórica” singular que situa

no tempo e no espaço o romantismo, ainda que seus efeitos não fiquem aí

circunscritos. Dou menor ênfase à abordagem “psicológica”, que dilata o adjetivo

romântico para diversos lugares e épocas, sem preocupação com sua situação

específica. Parece-me que esta abordagem, embora tenha seu papel, pode trair a

historicidade exigida pelos próprios primeiros românticos e corre o risco de, em

meio à vulgata do “sentimento do sentimento”, perder, mais uma vez, o que ficou

prometido na sua origem. Mesmo porque, os primeiros românticos, como notou

Frederick Beiser, são parte do “esforço contra o subjetivismo” da filosofia alemã

no final do século XVIII: “bem antes de consistir no triunfo progressivo do

subjetivismo, na gradual expansão do círculo da consciência, o desenvolvimento

do idealismo alemão é mais a história da crescente reação contra o subjetivismo”8.

É comum situar “a emergência do romantismo”9 entre os ingleses e,

sobretudo, os alemães. Muitas foram as razões aventadas para justificar “a

primazia da vertente alemã (de 1796 em diante), a primeira a empregar, numa

conotação crítica e histórica, a palavra romântico, e que selaria a fortuna teórica

desse termo”10. É certo que a Reforma Protestante, ao defender que a

interpretação da Bíblia não era exclusiva da Igreja mas dependia da revelação

pessoal, contribuiu, com seu exemplo, para a liberdade que os românticos queriam

na leitura de todo e qualquer texto. “Lutero conquistou a liberdade espiritual (…),

estabelecendo vitoriosamente que aquilo que seria a eterna determinação do

homem deveria acontecer nele mesmo”11, como notou Hegel. Também não há

dúvida de que o atraso cultural alemão frente à Itália e à França estimulava a

tentativa de criação intelectual independente da tradição clássica que reinava

nesses países, que se colocavam como herdeiros da antiguidade grega. Foi isso

que alimentara já o pré-romantismo alemão.

8 Frederick C. Beiser, German idealism: the struggle against subjectivism, 1781-1801 (Cambridge,Harvard University Press, 2002), p. 2.9 Nicholas V. Riasanovsky, The Emergence of Romanticism (New York, Oxford University Press,1992).10 Benedito Nunes, “A visão romântica”, in J. Guinsburg, O romantismo (São Paulo, Perspectiva,2002), p. 52.11 G. W. F. Hegel, Filosofia da história (Brasília, Editora UnB, 1999), p. 362.

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Mas, além de tudo isso, havia o clima comum, na Europa, de excitação por

conta do evento político capital que foi a Revolução Francesa, em 1789, bem

como de seus efeitos: a queda da monarquia em 1792, a fundação da República, a

decapitação de Luiz XVI, a ditadura jacobina. Seu impacto entre os alemães não

tem como ser superestimado. Kant, como se sabe, percebia nos espectadores da

Revolução Francesa certa simpatia de aspirações que chegava ao entusiasmo12.

Segundo famosa anedota, seu passeio diário pela cidade de Köningsberg,

realizado religiosamente na mesma hora durante toda a vida, só foi interrompido

uma vez, para conseguir notícias da Revolução Francesa.

Entretanto, uma “revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo

pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, porém nunca produzirá a

verdadeira reforma do modo de pensar”13, dizia Kant. Essa foi a direção forte

tomada pela cultura alemã: pensar as transformações que ocorriam no âmbito

mundano da história. Heine falava aos franceses: “nós tivemos revoltas no mundo

intelectual assim como vocês no mundo material, e ficamos tão excitados com a

demolição do dogmatismo antigo quanto vocês com a queda da Bastilha”14. Marx

encontrava entre os alemães a consciência teórica do que as outras nações estavam

fazendo naquela mesma época15.

Essa direção, para Marcuse, deveu-se ao fato de que os alemães não

encontravam as condições econômicas e políticas para seguir o exemplo francês e

perpetrar a revolução concreta. Nesta altura, o território alemão estava

fragmentado em inúmeros principados e sua população era sobretudo agrária, sem

a formação da classe média que poderia se opor ao governo. Por aí, Marcuse

explica o caráter idealista da filosofia alemã: “enquanto a Revolução Francesa

começava por assegurar a realização da liberdade, ao idealismo alemão cabia

apenas se ocupar com a idéia de liberdade”16. Lukács caminha em compreensão

semelhante, ao falar sobre o jovem Hegel, contemporâneo dos românticos.

12 I. Kant, O conflito das faculdades (Lisboa, Edições 70, 1993).13 I. Kant, “Resposta à pergunta: que é ‘Esclarecimento’?”, in Textos seletos (Petrópolis, Vozes,1985), p. 104.14 Heinrich Heine, “Concerning the History of Religion and Philosophy in Germany”, in TheRomantic School and Other Essays (New York, Continuum, 1985), p. 212.15 Karl Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel (São Paulo, Boitempo, 2005).16 Herbert Marcuse, Razão e Revolução: Hegel e o advento da teoria social (São Paulo, Paz eTerra, 2004), p. 16.

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Estamos no início de um novo período histórico: é o que Hegel nos diz noscursos ministrados em Iena. A evolução da humanidade – que conheceu umacrise na época do iluminismo e, em particular, com a Revolução Francesa –atingiu agora uma nova forma, recebeu uma nova figura no período napoleônico;e a tarefa da Alemanha é encontrar em sua literatura, em sua filosofia, a ideologiae o espírito deste novo período.17

É conhecido o repúdio de Hegel à Revolução Francesa e, sobretudo, ao

período do Terror que se seguiu, pois esta liberdade solta se opunha à exigência

de um Estado, crucial para ele. Porém, o impacto prolongado por Napoleão, a

quem Hegel saudara como a “alma do mundo a cavalo”, refletia o sentimento de

que o espírito rompeu com o mundo “que até hoje durou; está a ponto de

submergi-lo no passado, e se entrega à tarefa de sua transformação”, portanto,

esse desmoronar-se gradual “é interrompido pelo sol nascente, que revela num

clarão a imagem do novo mundo”18.

Embora os primeiros românticos sejam muito diferentes de Hegel,

provavelmente eles concordariam, vagamente, “que nosso tempo é um tempo de

nascimento e trânsito para uma nova época”19. Não por acaso, Friedrich Schlegel,

líder do primeiro grupo romântico, afirma que “a Revolução Francesa, a doutrina-

da-ciência de Fichte e o Meister de Goethe são as maiores tendências da época”20.

Nessa passagem, é preciso frisar a palavra “tendência”, pois ela dá o sentido de

trânsito e nascimento a que se referia Hegel, ou seja, de que a época não está

pronta, mas, antes, em devir. Só que, diferentemente de Hegel, Friedrich Schlegel

não supunha que tal transformação cessaria e alcançaria um fim, pois, assim como

“o gênero poético romântico”, poderíamos dizer: “sua verdadeira essência é

mesmo a de que só pode vir a ser, jamais ser de maneira perfeita e acabada”21.

Revolução Francesa na política, Fichte na filosofia e Goethe nas artes

seriam as grandes tendências da época. Diante da aparente disparidade de

gravidade do âmbito político perante o filosófico e o artístico, Friedrich Schlegel

adverte: “alguém que se choca com essa combinação, alguém ao qual nenhuma

revolução pode parecer importante, a não ser que seja ruidosa e material, alguém

17 György Lukács, O jovem Marx e outros escritos de filosofia (Rio de Janeiro, Editora UFRJ,2007), p. 100-101.18 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 26.19 Ibid., p. 26.20 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 83 (Athenäum,Fr. 216).21 Ibid., p. 65 (Athenäum, Fr. 116).

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assim ainda não se alçou ao alto e amplo ponto de vista da história da

humanidade”22. Mas ele não pára por aí, e destaca que “alguns livrinhos, nos

quais na época a plebe não prestou muita atenção, desempenham um papel maior

do que tudo o que esta produziu”23.

Esse tipo de declaração motivou, mais tarde, o ataque ao “romantismo

político” por Carl Schmitt. Para ele, estaria presente aí certa absolutização da arte,

e “nem decisões religiosas, morais ou políticas e nem conceitos científicos são

possíveis no domínio daquilo que é exclusivamente estético”24. Ele situa o

romantismo na linhagem da filosofia moderna que, por sua vez, “é governada por

um cisma entre pensamento e ser, conceito e realidade, mente e natureza, sujeito e

objeto”25. No caso romântico, esses conflitos seriam solucionados, segundo ele,

pela arte: “todas as oposições e diferenças, bem e mal, amigo e inimigo, Cristo e

Anticristo, podem se tornar contrastes estéticos e meios de compor um romance, e

podem ser esteticamente incorporadas no efeito total de uma obra de arte”26.

Schmitt, contudo, engana-se ao generalizar que a reação estética do

romantismo ao racionalismo moderno “transforma as oposições em balanceada

harmonia estética”27. Tal afirmação não é válida para todas as vertentes

românticas e, a meu ver, certamente não para a primeira, já que ela não acreditava,

a rigor, em solução final para os conflitos com que lidava. É verdade que, pelo

menos em seu sentido estrito, os primeiros românticos não primam pela ação

política, como aponta Schmitt. Mas isso não faz deles escapistas ou conformistas,

pois a arte, pensavam, tem caráter eventualmente revolucionário, embora sem os

ruídos da ação política e por outras vias.

Por isso, a acolhida romântica da Revolução Francesa não foi total. Se os

ideais de liberdade e fraternidade pareciam ir ao encontro do romantismo, já a

igualdade parecia ir de encontro a ele, por conta de sua valorização da diferença,

entre indivíduos ou nações mas também filosoficamente. Foi este mesmo motivo

que levou os românticos a reagirem diante do racionalismo do iluminismo, cujo

caráter universalista trazia, segundo eles, a pretensão de tornar homogêneo o que é

22 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 83 (Athenäum,Fr. 216).23 Ibid., p. 83 (Athenäum, Fr. 216).24 Carl Schmitt, Political Romanticism (Cambridge, MIT, Press, 1986), p. 16.25 Ibid., p. 52.26 Ibid., p. 16.27 Ibid., p. 55.

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heterogêneo: os homens, os países, a própria vida. Isso os levava a desconfiar

bastante da Revolução Francesa, não apenas pelo terror por ela desencadeado com

Robespierre e os jacobinos, mas também porque, especialmente com Napoleão,

revelava-se um ímpeto imperialista temerário, que ameaçava impor violentamente

os padrões franceses sobre a Europa.

A Revolução Francesa pode ser considerada o maior e mais notável fenômeno dahistória dos Estados, um terremoto quase universal, um imenso dilúvio no mundopolítico; ou o protótipo das revoluções, a revolução pura e simples. Estes são ospontos de vista habituais. Mas também pode ser considerada como centro eapogeu do caráter nacional francês, onde estão concentrados todos os paradoxosdele, como o mais temível grotesco da época, onde seus preconceitos maisarraigados e pressentimentos mais fortes se mesclam num caos pavoroso, seenredam da maneira mais bizarra numa colossal tragicomédia da humanidade.28

Esta ambivalência pela qual os primeiros românticos, como Friedrich

Schlegel, relacionaram-se com a Revolução Francesa, às vezes louvada, às vezes

renegada, enraíza-se na disputa franco-alemã que remonta ao pré-romantismo

germânico, pois ali se formou certa consciência pela qual não apenas se buscava o

caráter individual da nação mas, além disso, recusava-se, sobretudo, a perpetuação

francesa dos “preconceitos arraigados” provenientes da continuação impensada da

antiguidade. Recusar a Revolução Francesa era recusar o possível expansionismo

do neoclassicismo francês e de sua estreita interpretação do classicismo

propriamente grego.

Se os primeiros românticos, portanto, queriam uma revolução, ela não era

política, mas artística e filosófica. “Para a Alemanha, havia apenas um caminho

para a cultura: o interno, o da revolução do espírito”29, comenta Lukács. Friedrich

Schlegel afirmava que “a poesia e o idealismo são os centros da arte e cultura

alemãs”30. Se, das três tendências da época, a política possuía cunho francês, a

artística e a filosófica caberiam aos alemães. São elas que os próprios românticos,

portanto, buscaram levar adiante.

*

28 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 134 (Athenäum,Fr. 424).29 Georg Lukács, Die Seele und die Formen. Essays (Darmstadt e Neuwied, Luchterhand, 1971), p.65.30 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 534.

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Pouco a pouco, se não definimos o romantismo, pelo menos nos

aproximamos da sua origem. Situá-lo perto da filosofia idealista alemã pareceu

ser, até aqui, o melhor caminho, como notou Rudolf Haym ao falar da “escola

romântica”31 ainda no século XIX. Mas ele pode trazer a tentação de fazer do

primeiro romantismo alemão a mera versão literária da filosofia de Fichte,

Schelling e até de Hegel. Tão certo quanto o estreito vínculo entre românticos e

idealistas é que uns não foram só a tradução poética dos conceitos dos outros.

Existe, nesta hipótese, o básico problema biográfico: Fichte logo desvinculou suas

idéias daquelas dos românticos, Schelling participa do grupo romântico mas

depois se afasta deles pela maior parte da vida e Hegel os atacava

veementemente32.

Mas o maior problema desta cômoda compreensão dos românticos como

versão abrandada das teorias idealistas é que ela passa por cima, em sua distinção,

justamente do que está em jogo. Tende-se a sugerir, então, a figura caricata do

romantismo sentimental, subjetivo, irracional, impulsivo, caótico e dispersivo,

julgando-o segundo as alternativas duais que, ao menos na sua primeira

expressão, ele questionava, nas quais, do lado oposto, estariam a frieza, o

objetivo, o racional, a sobriedade, a ordem e o centro. Em geral, essas dualidades

são trazidas à tona para situar a origem do romantismo alemão no extremo inferior

das hierarquias de valor assim estabelecidas – extremo no qual se enquadrariam

muitas manifestações românticas outras, tardias ou anteriores, mas não as do

próprio primeiro romantismo. Dentre as dualidades, está a alternativa entre

filosofia ou poesia. Mas, no primeiro romantismo, trata-se de filosofia e poesia, da

relação amorosa entre elas.

Do ponto de vista tradicional, porém, essa relação feita pelos românticos

em geral foi vista como mútuo empobrecimento. Nicolai Hartmann afirmava que

só assim entende-se “que de fato a filosofia se torne para eles simbolicamente

vaga e a poesia transborde intelectualidade metafísica”33. Sua visão parece não

31 Rudolf Haym, Die romantische Schule (Berlin, Gaertner, 1870).32 “É, de fato, no esforço de pensamento para superar o ‘romantismo’ de sua juventude,romantismo que foi de toda a sua geração, que consiste a grandeza de Hegel”. Alexandre Koyré,“Hegel em Iena”, in Estudos de história do pensamento filosófico (Rio de Janeiro, ForenseUniversitária, 1991), p. 140.33 Nicolai Hartmann, A filosofia do idealismo alemão (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,s/d), p.192.

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comportar justamente a duplicidade do pensamento filosófico e poético dos

românticos, empurrando-o só para o lado da arte: “o romantismo puro é tudo

menos filosofia; mais próximo dele se encontra a poesia”34.

Este é, ainda hoje, o desafio que os primeiros românticos impõem e a

razão pela qual permanecem, em geral, discretamente mencionados, seja na arte

ou na filosofia, pois cada lado os vê como impuros demais para si e, portanto,

prefere jogá-los para o outro. No caso mais agudo da filosofia, os primeiros

românticos são vítimas de grande preconceito por conta da forma fragmentária na

qual apresentaram seu pensamento, em especial na sua época, na qual reinava a

forma do sistema. Nicolai Hartmann os acusou da falta de um “sistema de

conceitos”35. Nesses casos, julga-se o sintoma, ou seja, a aparência do pensar na

forma de fragmentos, sem, contudo, olhar a sua causa, pois tal escolha, no caso

romântico, longe de ter sido feita pela carência de filosofia, foi feita por razões

filosóficas.

Tentou-se, às vezes, dizer que se trataria, então, de crítica de arte. Mas

como ignorar os poemas, romances, peças, contos e demais experimentações de

linguagem que os primeiros românticos fizeram e que dificilmente se

enquadrariam no conceito corrente de crítica, aliás tão diferente do deles? Não

bastasse isso, é possível que assim apenas redobrássemos o problema, pois faltaria

compreender a natureza filosófica que assume a crítica de arte romântica. Mesmo

que isso fosse possível, restaria a questão crucial de que, como notou Benjamin,

os românticos “superaram a diferença entre a crítica e a poesia”36.

Permanece, assim, o problema do sentido do romantismo na sua origem.

Mas isto pode não ser mau, já que é sinal de que ele continua a desafiar nossas

maneiras habituais de pensar, mesmo passados mais de dois séculos. Pode valer,

por fim, lembrar que, segundo os próprios primeiros românticos, “o sentido

somente entende algo quando o acolhe em si como germe, o alimenta e deixa

crescer até a flor e o fruto”37. Sendo assim, melhor do que definir o primeiro

romantismo, é acolhê-lo e aguardar a flor e o fruto que podem advir do seu

crescimento. 34 Ibid., p. 189.35 Ibid., p. 189.36 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 77.37 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 145 (Idéias, Fr.5).

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33

*

Diante da gritante dificuldade de classificar o sentido do pensamento do

primeiro romantismo alemão, seja como filosofia, arte ou crítica de arte, já que ele

inclui tudo isso mas segundo relações sempre novas para a nossa tradição,

Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, por exemplo, preferem defini-lo

segundo critérios bastante empíricos.

Todo o “projeto” romântico está nisso: este momento de escrita breve, intenso ebrilhante (cerca de dois anos e algumas centenas de páginas), que por si só abretoda uma era, mas se exaure na sua inabilidade de alcançar sua própria essência eobjetivo, e que, em última instância, não encontra nenhuma outra definição senãoum lugar (Iena) e uma revista (a Athenäum).38

Pode até ser que, além de Iena, tenha havido mais alguma cidade, como

Dresdem. Pode ser que não tenha sido só uma revista, mas tenham sido três. Pode

ser que não tenham sido dois anos, mas cinco. Mesmo que se alargue a definição,

porém, o núcleo do primeiro romantismo alemão continua sendo Iena, a

Athenäum e os anos de 1798 a 1800. Seu pequeno raio no espaço e sua rápida

presença no tempo são, no entanto, inversamente proporcionais à sua energia, ao

seu empenho e à verdadeira revolução que fizeram no pensamento diante dos

marcos tradicionais, especialmente no campo da teoria da arte.

Situados, portanto, na parte mais ao norte do território alemão, os jovens

primeiros românticos puderam usufruir da paz que reinava ali em Iena com o

armistício que veio em 1795 depois da derrota da Prússia e de seus aliados na

guerra contra a França, bem como de uma universidade com grande liberdade

acadêmica devido a diversos fatores históricos39, na qual lecionaram Reinhold,

Schiller, Fichte, Schelling e Hegel. No meio do furacão que varria a época, eles

buscaram responder, pelo pensamento, ao que então ainda nascia: a modernidade.

Parece razoável datar em 1796 o início dessa estória. No verão deste ano,

Friedrich Schlegel juntou-se a seu irmão mais velho, August, na cidade de Iena,

onde este lecionava. Naquela altura, Friedrich já escrevera, mas não publicara, o

38 Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, The litarary absolute: the theory of literature inGerman romanticism (New York, State University of New York Press, 1988), p. 7.39 Foi o que notou Theodore Ziolkowski, German Romanticism and its Institutions (New Jersey,Princeton University Press, 1990).

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ensaio Sobre o estudo da poesia grega, texto que adianta muitos temas e posições

românticas sobre a relação com a antiguidade clássica, embora num estilo tímido

e pouco resolvido. Seu irmão já era, então, respeitado crítico literário, tendo

valorizado autores como Dante e Shakespeare, que seriam centrais para o cânone

estético romântico.

Em 1797, Friedrich vai a Berlim. Lá, torna-se amigo de Schleiermacher,

teólogo cujo pensamento formulou as bases da hermenêutica moderna, e de

Ludwig Tieck, conhecido autor de peças, romances e alguns ensaios. Desde que

fora estudante em Leipzig, ele também fizera laços de amizade bem próximos

com Friedrich von Hardenberg, mais conhecido pelo pseudônimo Novalis, figura

central da poesia ocidental e decisiva na filosofia romântica. Todas essas relações,

entre outras, teciam os fios que serviriam de rede para que se formasse o

movimento romântico.

Seus primeiros encontros grupais ocorreram no verão de 1798, em

Dresdem, por convite dos irmãos Schlegel. Estavam lá Caroline Schlegel, esposa

de August, e Novalis, além de Fichte, professor de muitos deles, e de seu

discípulo Schelling. Parte desses encontros era no museu da cidade. Temos

alguma noção de seu conteúdo pois nessa altura a Athenäum já havia sido fundada

pelos irmãos Schlegel, que a comandavam. Nela, August e Caroline publicaram o

texto As pinturas, que, em forma de diálogo, dava conta das “conversações no

Museu de Dresdem”. Esse texto adianta a discussão central dos primeiros

românticos sobre a linguagem, pois gira em torno da sua relação com as artes

plásticas em geral. “Para todas as artes, como quer que se chamem, o único órgão

de comunicação comum é a linguagem”40, chegam a afirmar.

É possível que 1799 tenha sido o ano em que a interação do grupo atingiu

o cume. Entre 11 e 15 de novembro, ocorreu a mais famosa reunião dos primeiros

românticos em Iena, nas quais estavam presentes os irmãos Schlegel e Tieck com

suas respectivas companheiras, Schelling, o físico Johann Wilhelm Ritter e

Novalis junto com seu irmão. Novalis, aliás, lê seu texto A cristandade ou a

Europa para o grupo, que no entanto não o acolhe como esperava seu autor e,

assim, é recusado para publicação na Athenäum.

40 Caroline y August Schlegel, Las pinturas (Buenos Aires, Biblos, 2007), p. 37.

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Embora tenha sido recusado pelo grupo, este texto serve, até hoje, para

alimentar a polêmica que tenta, retrospectivamente, enxergar certo

“conservadorismo romântico” que, por sua vez, colocaria o movimento na

“origem do totalitarismo”41 político que vicejou entre os alemães mais de um

século depois. Lidas assim, as teses religiosas de Novalis, desde a defesa do

cristianismo, conteriam contornos reacionários. Esta leitura, porém, costuma

esquecer a forte ambiguidade do texto, que não permite simplesmente alojá-lo no

começo desta linhagem conservadora. Sua singularidade gritante suscitara

divergência de opiniões desde sua origem, quando foi lido entre os primeiros

românticos alemães, revelando, aliás, como era concretamente a dinâmica de seus

encontros.

Neste caso, por exemplo, Schelling escreveu um poema satírico contra

Novalis e o entusiasmo religioso do texto. Friedrich Schlegel, então, sugeriu a

publicação conjunta do escrito de Novalis e do poema de Schelling.

Retrospectivamente, Dorothea Veit e Tieck deram depoimentos contraditórios

sobre o tema: a primeira dizia apenas ela ter sido contra a publicação, enquanto o

segundo falava de rejeição geral ao texto de Novalis. Schleiermacher, embora não

estivesse no encontro, tomou conhecimento do escrito e não gostou, sobretudo da

visão exposta sobre o papado romano. August Schlegel sugeriu pedir a opinião de

Goethe, que desaconselhou a publicação do texto, tendo em vista as polêmicas

reações que a Athenäum já vinha suscitando42.

No ano de 1800, o último de grande vigor do grupo, Friedrich Schlegel

publica aquele que talvez seja o mais fundamental documento do primeiro

pensamento romântico, a Conversa sobre a poesia. Sua centralidade aumenta pelo

fato de que a dita conversa envolve personagens que correspondem ao retrato do

núcleo do grupo de Iena: “Antonio” é o próprio Friedrich, “Camila” é sua

companheira e futura esposa Dorothea, “Andrea” é o irmão August Wilhelm

Schlegel, “Amalia” é sua mulher Caroline, “Lothario” é Novalis, “Marcus” é

Tieck e “Ludoviko” é Schelling. Logo no início do texto, Friedrich Schlegel, em

tom que confunde o biográfico e o ficcional, explica o seu teor.

41 Roberto Romano, Conservadorismo romântico. Origem do Totalitarismo (São Paulo, Unesp,1997).42 Essas informações podem ser achadas em José Miranda Justo, “As articulações do pensamento ea questão da história”, in Novalis, A cristandade ou a Europa (Lisboa, Antígona, 2006), p. 7.

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Tem-me sido sempre estimulante falar de poesia com poetas e pessoas deinclinação poética. De muitas conversações deste gênero jamais me esqueci,enquanto de outras já não sei ao certo o que pertence à fantasia e o que pertence àlembrança; muita coisa efetivamente ocorreu, e o resto terei inventado. Como naconversa que se segue, que deve apresentar em oposição pontos de vistacompletamente diferentes, cada qual podendo apontar o espírito infinito da poesiasob uma nova luz, e todos eles se esforçando, mais ou menos, às vezes de umângulo, às vezes de outro, para alcançar o âmago da questão. O interesse destavariedade de abordagens fez-me decidir por partilhar o que havia observadonuma roda de amigos, e inicialmente pensado apenas em referência a estes…43

Tal partilha é a escritura do primeiro romantismo alemão. Na explicação

da estrutura de “conversa” de seu texto, Friedrich Schlegel, ao mesmo tempo,

situa a razão de ser da forma do “fragmento”, provavelmente a mais central

daquelas empregadas por ele e seus amigos. Fragmento, para os românticos, não

era algo póstumo ou circunstancialmente incompleto, mas o modo, por

excelência, de abordar a verdade ou, como eles chamavam, o absoluto. Este modo

era justamente o da combinação de diferentes perspectivas, como, por exemplo, as

diversas opiniões de um diálogo, de sorte que cada uma delas pudesse lançar foco

de luz sobre este ou aquele aspecto da questão.

É claro, ainda pela passagem citada, o quão decisivas eram as relações

fraternais do grupo, o que fora anunciado, aliás, desde o início do projeto da

Athenäum. Seus laços iam além dos objetivos artísticos ou filosóficos. Eram laços

amorosos, tanto de amizade quanto eróticos. Não apenas os irmãos Schlegel

estavam lá com suas companheiras. Schelling, por exemplo, parece ter tido

especial interesse por Caroline, mulher de August com quem ele se casaria mais

tarde, em 1803. Ela, aliás, recebeu, por parte de Schiller, a alcunha de “Madame

Lucífer”44, por conta da atração sexual e intelectual que exercia sobre os homens

nos círculos sociais da época. Romanticamente, o convívio no grupo encorajava a

interação que fugisse dos padrões tradicionais de relacionamento social e buscava

exercitar o lado mais liberal da ascendente classe burguesa.

Liberal, para os românticos, era “aquele que é, como que por si mesmo,

livre de todos os lados e em todas as direções, e atua em toda a sua humanidade;

que venera, na medida de sua força, tudo aquilo que age, é ou será, e participa de

toda vida sem se deixar desviar, por visões limitadas, ao ódio ou desprezo por ela”

43 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 31.44 É o que nos conta Gisela Dischner, Caroline und der Jenaer Kreis (Berlin, Verlag KlausWagenback, 1979), p. 81.

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45. É a disposição de conversar, de não se limitar, de comunicar. E os amores eram

as experiências mais felizes nesse sentido. Friedrich Schlegel, que defendera

abertamente o amor livre no seu romance Lucinda, de 1799, não hesitou em

deixar isto claro em um dos fragmentos da Athenäum.

Quase todos os matrimônios são apenas concubinato, casamento morganático ou,antes, tentativas provisórias e aproximações longínquas de um casamento efetivo,cuja essência própria (…) consiste em que muitas pessoas devem se tornar umasó. Pensamento primoroso, cuja realização parece no entanto envolver muitas egrandes dificuldades. Por isso mesmo, aqui se deveria limitar o menos possível oarbítrio, que também deve ter direito à palavra quando o que está em questão é sealguém quer ser um indivíduo por si ou apenas parte integrante de umapersonalidade coletiva; e não se pode prever o que de profundo se poderia objetarcontra um casamento à quatre. Se, não obstante, o Estado quiser manter à forçaessas tentativas frustradas de matrimônio, impedirá com isso a possibilidade dopróprio matrimônio, que poderia ser estimulado por tentativas novas e talvezmais felizes.46

Em seus momentos mais audaciosos, alguns dos membros do círculo

romântico, na esteira das sugestões de Friedrich Schlegel, iriam até imaginar que

ali podia se formar algo como uma sociedade secreta, marginal. Para além das

curiosidades biográficas, isto é coerente, a despeito da possível ingenuidade, com

a crítica romântica à crescente atomização da sociedade moderna e com o seu

repúdio à cultura filistéia que, prezando a erudição vazia, tirava da arte sua

ligação com a vida e da vida sua ligação com a arte.

Essa interação afetiva e criativa estimulava todo o grupo. Estudando

juntos, indo a aulas juntos, em contato com as maiores figuras da época, como

Goethe, Schiller e Fichte, discutindo exaustivamente a filosofia e a arte de seu

tempo, mas também a política e a sociedade, os primeiros românticos deram luz a

uma comunidade intelectual única. Sua intensa convivência vinha de par com a

importância que a amizade e o amor tinham no seu pensamento. Friedrich

Schlegel afirma que “seria melhor não escrever obras cujo ideal não tem para o

poeta realidade tão viva e, por assim dizer, tanta personalidade quanto a amada ou

o amigo”, ou que “ao menos é certo que não se tornarão obras de arte”47.

Essa convivência tornava possível, na prática, a subversão do princípio

autoral na arte e na filosofia. Muitas vezes, os primeiros românticos escreveram

45 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 140 (Athenäum,Fr. 441).46 Ibid., p. 52 (Athenäum, Fr. 34).47 Ibid., p. 65 (Athenäum, Fr. 117).

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textos anonimamente, que seriam produções coletivas, nas quais não haveria uma

só pessoa como autor, questionando a idéia de uma subjetividade empírica

responsável por uma obra. Boa parte da Athenäum foi assim oferecida ao público,

o que não deixa de ser mais uma versão da rebelião tipicamente romântica contra

os cânones normativos, ou seja, contra a figura da autoridade. Foi o que eles

chamaram de “simpoesia” e “sinfilosofia”, onde o prefixo “sin” significa

“mesmo”, “junto”. Seria possível, então, estar numa mesma sintonia e, assim,

poetizar ou filosofar junto, o que ressoa na formação concreta de uma comunidade

filial.

*

Por conta da produção conjunta, que poderíamos mesmo chamar de escrita

coletiva, é por vezes difícil discernir o “patrimônio intelectual” de cada um dos

integrantes do primeiro grupo romântico, o quanto de originalidade pertence a

cada um, o quanto um influenciou o outro. Mesmo antes da formação deste

primeiro grupo em Iena, o trânsito de idéias era forte o suficiente para fomentar

sobre si, hoje em dia, “um projeto de pesquisa substancial, ao qual Dieter Henrich,

iniciador e líder deste trabalho, deu o nome de ‘pesquisa-da-constelação’”48, como

lembrou Manfred Frank, ele mesmo expoente decisivo dos estudos filosóficos

sobre o romantismo. Não faltavam estrelas naquele céu histórico. Sabemos que

“a fermentação era tão intensa que uma cronologia teria que ser calibrada não em

anos, mas em dias; pretensões de prioridade e demonstrações de influências

teriam que se erguer e cair na velocidade do correio”49, como observou Marshall

Brown.

Tarefa ainda mais árdua quando lembramos da importância que, no

romantismo, tiveram, por exemplo, Goethe e Schiller. Primeiro, eles fizeram parte

do movimento pré-romântico conhecido como “Tempestade e Ímpeto”, o Sturm

und Drang, que teve em Herder o grande líder intelectual, mas que também se

inspirava nas idéias de Hamann, pensador místico conhecido como “Mago do

Norte”. Depois, através de certa mudança de rumo marcada pela viagem de

48 Manfred Frank, The philosophical foundations of early German romanticism (New York, StateUniversity of New York Press, 2004), p. 177-189.49 Marshall Brown, The Shape of German Romanticism (Ithaca, Cornell University Press, 1979), p.13.

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Goethe para a Itália entre 1786 e 1788, onde toma contato íntimo com as obras

antigas, ele e Schiller constituíram em Weimar certo classicismo, aparentemente

em oposição aos românticos. Mas Weimar, que fica separada de Iena por não mais

do que trinta quilômetros, entretinha grande contato com esta, seja por afinidade

ou por embates que, em última análise, justificavam-se pelas questões em comum.

Essa confusão aumenta porque Lessing e, sobretudo, Winckelmann, pertencentes

à geração anterior à dos românticos, foram grandes influências em seu

pensamento, a despeito de seu pendor clássico, o que problematiza, aliás, a

oposição entre clássicos e românticos.

Na dimensão mais estritamente filosófica, os primeiro românticos situam-

se no que ficou conhecido como pós-kantismo. E de fato o enfrentamento com a

filosofia de Kant torna-se, em certo sentido, o enfrentamento da própria

modernidade, para eles. Neste contexto, prepondera a influência pessoal e

intelectual de Fichte, professor de muitos e inspirador de toda geração. Seu mais

conhecido aluno, Schelling, participa do primeiro grupo romântico, como vimos,

e depois desenvolve, dentro de sua linha própria e mais puramente filosófica,

muitas das intuições gestadas ali. De quebra, embora mais distante em termos

pessoais, o poeta Friedrich Hölderlin, em suas idéias, esteve próximo, muitas

vezes, dos primeiros românticos. Hegel também fazia parte dessa geração, tendo

sido companheiro de Schelling e Hölderlin no seminário de Tübingen. Sua

juventude é muito marcada pelo romantismo, mas sua avassaladora consolidação

filosófica madura não apenas deixa para trás o lastro romântico como o critica

com violência. Embora mais distante, Humboldt, com suas reflexões sobre a

linguagem, pertence ainda a esta cena.

Não faltaram, além disso, influxos tardios de outros grupos românticos

que se seguiram ao primeiro baseado em Iena, como o de Heidelberg, em torno de

1806 até 1808, do qual participaram Clemens Brentano, Achim von Arnim,

Bettine von Arnim, Joseph Görres e Eichendorff, sendo que a ele também foram

ligados os irmãos Grimm. Entre 1808 e 1809, houve um grupo romântico em

Dresdem, centrado em Adam Müller e Heinrich von Kleist. Pouco mais tarde,

surgia o romantismo de Berlim, que recebeu integrantes de Heidelberg e de

Dresdem, contando com figuras como Arnim, Brentano, Adelbert von Chamisso,

Friedrich de La Motte Fouqué, E. T. A. Hoffmann e, num certo período, Kleist.

Existiram, ainda, outros centros românticos, mas de menor projeção.

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No meio dessa miríade de envolvimentos intelectuais, “o próprio fervilhar

do período frustra toda tentativa de derivar uma ‘escola romântica’ do movimento

romântico”, o que torna “infrutífero procurar grupos fixos onde autores

individuais estão incessantemente experimentando e onde nenhum pode ser

seguro numa posição fixa”50. Por isso, não apenas no romantismo, mas em todo

esse período da cultura alemã, “não é possível compreender a evolução dum

filósofo sem referir à dum outro”51.

Existe, porém, certo círculo que se forma especificamente em Iena. E não

apenas no sentido do grupo, mas no de um certo modo de pensar no qual, não por

acaso ou por deficiência, nenhuma “posição fixa” pode ser segura. Trata-se de

circular, de se movimentar num círculo do qual, talvez, não haja saída, pois pensar

não é achar a saída, mas ganhar, na circulação, o movimento. Friedrich Schlegel

achava que a “filosofia ainda caminha demasiadamente em linha reta, e ainda não

é suficientemente cíclica”52. Por isso, podemos empregar as expressões “grupo”

ou “escola”, no caso dos primeiros românticos, com os significados rigorosos de

“círculo” e de “movimento” num sentido filosófico.

Mas não é só isso. Tem mais, pois fazer a distinção entre os integrantes do

grupo romântico e os que, mesmo situados no clima da estética romântica, não

fizeram parte dele não é apenas um artifício historiográfico de rigor

eventualmente desnecessário. É que, como vimos, os primeiros românticos

constituíram um grupo em sentido literal. “Foram os próprios românticos de Iena,

e isto assinala logo uma novidade digna da máxima atenção, a sentir-se e a querer

apresentar-se como um grupo ao mesmo tempo compacto no seu interior e

orientado polemicamente para o exterior”53, conforme apontou Paolo d’Angelo.

Em outras palavras, não é de fora que classificamos os primeiros românticos

como grupo. Foram eles mesmos que assim se compreenderam e assim se

apresentaram.

Eles não chamavam a si próprios, que fique claro, de românticos, nem

foram os primeiros a usar a palavra. No sentido literário, o termo surge na

Inglaterra, no século XVII, referindo-se ao modo dos velhos romances, mas não 50 Ibid., p. 14.51 Nicolai Hartmann, A filosofia do idealismo alemão (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,s/d), p.13.52 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 53 (Athenäum,Fr. 43).53 Paolo d’Angelo, A estética romântica (Lisboa, Editorial Estampa, 1998), p. 18.

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definia o gênero literário como forma moderna típica, e sim a narrativa de aspecto

fantástico com cunho cavaleiresco e amoroso, em geral proveniente de culturas

românicas neolatinas, como a portuguesa ou a espanhola. Sua marca era a

desobediência ao que seria o ideal clássico de equilíbrio e proporção, tendo, por

isso, conotação pejorativa. Pouco a pouco, porém, seus personagens ganham

apelo perante os leitores, justamente por seu caráter livre e conflituoso. Daí que,

ainda hoje, associemos o romântico ao avatar das emoções e à subjetividade

desenfreada. Essa associação, contudo, faz bem mais sentido em relação ao pré-

romantismo. Lembremos, por exemplo, da onda de suicídios desencadeada entre

os alemães pela publicação, por Goethe, de Os sofrimentos do jovem Werther.

Porém, com o grupo de Iena, o significado da palavra “romântico” muda

bastante. Refere-se, às vezes, ao cânone que passa por Dante, Cervantes e

Shakespeare. Pode ser aplicada para falar da tradição medieval. Em outros

momentos, seu sentido aproxima-se daquilo que é simplesmente moderno. Mas,

em geral, predomina o significado daquilo que ainda precisa ser feito, da poesia

que deve ser produzida. Só que, como anunciou Friedrich Schlegel, essa poesia

romântica, longe de estar restrita à forma literária, “abrange tudo o que seja

poético, desde o sistema supremo da arte, que por sua vez contém em si muitos

sistemas, até o suspiro, o beijo que a criança poetizante exala em canção sem

artifício”54. É em torno desse ideal amplo de poesia que se juntam aqueles que

incluímos no ciclo do primeiro romantismo alemão, orientados ao mesmo tempo

para o passado e para o futuro.

Este traço exige a autoconsciência que caracteriza o grupo e, em especial,

Friedrich Schlegel. Portanto, “aquilo que conta não é tanto a homogeneidade

efetiva do grupo (cujos participantes manifestam, aliás, desde o início grandes

diferenças entre si), mas o projeto explícito de actuar na cena literário-filosófica”,

como mostrou ainda Paolo d’Angelo, para concluir que foi, assim, “o primeiro

movimento estético-literário em sentido moderno”55. Por isso, Philippe Lacoue-

Labarthe e Jean-Luc Nancy afirmaram, constantemente, que o primeiro

romantismo “claramente antecipa a estrutura coletiva que artistas e intelectuais do

54 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum,Fr. 116).55 Paolo d’Angelo, A estética romântica (Lisboa, Editorial Estampa, 1998), p. 18-19.

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século XIX até o presente irão adotar”, completando que, “de fato, e sem qualquer

exagero, foi o primeiro grupo ‘avan-garde’ da história”56.

*

No grupo de vanguarda do primeiro romantismo, Friedrich Schlegel era a

figura de proa, o pensador mais ousado. Por outro lado, a presença de Novalis foi

decisiva, pois, além da cultura vasta, trazia a veia artística mais acentuada dentro

do grupo. Também August Schlegel foi importante, em especial pela visão da

teoria da arte como história da arte, bem como outros autores que compõem a

cena intrincada de um momento raro no pensamento ocidental, quando num

período de tempo muito curto e num espaço geográfico muito pequeno

floresceram, de modo impressionante, a produção artística e a criação filosófica.

Nenhum grupo romântico foi tão radical quanto este primeiro, reunido na cidade

de Iena. Nem seus integrantes, seguindo cada um o seu caminho após a dissolução

do círculo, mantiveram a radicalidade experimentada nesses poucos anos da

virada do século XVIII para o XIX. Já em 1800, cessa a publicação da Athenäum.

Novalis morre em 1801, marcando o enfraquecimento do grupo.

Schleiermacher aceita o cargo de pregador numa pequena cidade e abandona

Berlim. Seus interesses mudam e mesmo quando volta suas reflexões para a

estética, anos mais tarde, pouco resta da visão romântica. August Schlegel dedica-

se à divulgação da estética romântica em cursos que foram decisivos na difusão

das idéias do grupo, mas pouco acrescentaram a elas e, às vezes, simplificavam-

nas. Se a Revolução Francesa, em 1789, impulsionara os jovens alemães ao

frescor renovador, eles não passaram incólumes pela maré conservadora que se

abateu sobre sua cultura a partir de 1815, com o fim das guerras de libertação face

à dominação de Napoleão.

Friedrich Schlegel é o caso mais emblemático, motivo pelo qual é difícil

pensar em evolução na sua obra57. É verdade que, a partir de então, ele ainda

escreve importantes ensaios sobre pintura italiana e arte gótica e cristã, além de

fazer seu estudo pioneiro sobre a cultura da Índia. Porém, sua guinada

56 Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, The literary absolute: the theory of literature inGerman romanticism (New York, State University of New York Press, 1988), p. 8.57 Esta é a perspectiva adotada pelo, ainda assim, ótimo livro de Claudio Ciancio, FriedrichSchlegel. Crisi della filosofia e rivelazione (Milão, Mursia, 1984).

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conservadora é clara, o que faz da nota biográfica de sua conversão ao catolicismo

fato simbólico. Resta pouco da impetuosidade que marcara sua reflexão juvenil.

Peter Szondi sugere que ele foi “um pensador pioneiro que cedo abandonou um

caminho promissor”58. E já se exclamou: “é naquele curtíssimo entretempo –

iniciado em 1797, com o aparecimento da primeira série dos fragmentos, e não vai

além de 1800! – que se elabora a assombrosa parcela da obra de Schlegel” 59.

Desconsiderar esse rápido abortar do que o romantismo foi na sua origem

pode levar à acusação, já comentada aqui, de que ele seria politicamente

conservador – embora seu apego quase exclusivo ao estético possa explicar este

abortar, como sugeriu Lukács60. Sem fazer distinção, caímos na confusão, pois,

como notou Robert J. Richards, “ao considerar o caráter religioso e político do

romantismo (…), o que precisamos ter em mente é que seu fim difere

significativamente de seu começo”61. Daí o acerto de dizer que o momento de

escrita da origem do romantismo, embora intenso e brilhante, foi breve.

Se o próprio Friedrich Schlegel não conseguiu, portanto, estar

completamente à altura da reflexão produzida pelo primeiro grupo romântico de

que fez parte, é possível que nós também não estejamos. Só o fato de que

continuamos a imputar autoria a esta obra já é sinal de que nos falta algo para

chegar a ela, já que, em grande parte, ela foi oferecida sem autor, como criação da

própria linguagem a partir da escrita coletiva. Não demos conta, ainda, da

concentração inovadora de pensamento na origem do romantismo. E isso, em

certo sentido, não o deixa permanecer só no passado. Ele está no futuro, à espera

de leitores, ainda que este futuro seja algo como o futuro do pretérito.

Seu ímpeto juvenil, aliado ao fôlego erudito e crítico, levou à contestação

da hegemonia tanto do iluminismo quanto do neoclassicismo no interior da

modernidade. Nem por isso, contudo, os primeiros românticos fizeram o simples

elogio do novo como pretensão de começar tudo do zero, como alguns

modernistas. Pelo contrário, a força da palavra crítica, para eles, estava

relacionada justamente à capacidade de criar pela apropriação daquilo que já

58 Peter Szondi, “Schlegel’s theory of poetical genres”, in On textual understanding and otheressays (Minneapolis, University of Minnesota Press, 1986), p. 57.59 Luiz Costa Lima, Os limites da voz: Montaigne, Schlegel (Rio de Janeiro, Rocco, 1993), p. 226.60 Georg Lukács, Die Seele und die Formen. Essays (Darmstadt e Neuwied, Luchterhand, 1971), p.65-72.61 Robert J. Richards, The romantic conception of life (Chicago, The University of Chicago Press,2002), p. 59.

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existe, sem descartar, assim, o passado. Por isso, “Friedrich Schlegel e Novalis

não apenas se encontram entre os fundadores da modernidade, mas, no ato mesmo

da sua fundação, superam-na”62, como observou Márcio Seligmann-Silva. É que

eles participam daquilo que Habermas chamou de “crítica estética da

modernidade”63. Foi Octavio Paz, por fim, quem descreveu melhor esta situação

moderna do romantismo.

O Romantismo é a grande negação da modernidade tal como fora concebida peloséculo XVIII e pela razão crítica, utópica e revolucionária. Mas é uma negaçãomoderna, quero dizer: uma negação dentro da modernidade. Só a idade críticapodia gerar uma negação assim tão radical. O Romantismo convive com amodernidade e a ela se funde só para, uma e outra vez, transgredi-la.64

Embora modernos, os primeiros românticos experimentaram certa

estiagem no tempo moderno. “Estava a murchar o horto deleitoso da jovem

estirpe”65, explicou Novalis. Para ele, “só e sem vida a Natureza estava”, pois,

acrescenta, “cingiram-na o árido número e a exigente medida, com cadeias de

ferro”66. Essa crítica romântica visava limitar o poder que a ciência moderna das

Luzes gostaria de exercer, pois o intelecto, ao mensurar tudo através de cálculos,

poderia matar a própria vida das coisas, motivo pelo qual deveria estar sempre

acompanhado da imaginação estética – da poesia.

*

Não seria de bom tom, portanto, submeter os primeiros românticos ao

critério de mensuração numérica que eles mesmos atacaram. Deveríamos, antes,

lê-los criticamente, sabendo que, como disse Friedrich Schlegel, “crítico é um

leitor que rumina” e que, “por isso, deveria ter mais de um estômago”67. Essa

tarefa não é simples, pois vai contra a pressa da técnica moderna que nos faz

correr com as leituras, ao invés de remastigá-las ou remoê-las. “É certo que, a

62 Marcio Seligmann-Silva, Ler o livro do mundo (São Paulo, Iluminuras, 1999), p. 76.63 Jürgen Habermas, O Discurso filosófico da modernidade (São Paulo, Martins Fontes, 2000), p.66.64 Octavio Paz, A outra voz (São Paulo, Siciliano, 1993), p. 37.65 Novalis, Os hinos à noite (Lisboa, Assírio & Alvim, 1998), p. 41.66 Ibid., p. 41.67 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 23 (Lyceum, Fr.27).

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praticar desse modo a leitura como arte, faz-se preciso algo que precisamente em

nossos dias está bem esquecido (…), para o qual é imprescindível ser quase uma

vaca, e não um ‘homem moderno’: ruminar”68, escreveu Nietzsche em passagem

claramente inspirada na dos românticos. Mais do que classificar o romantismo e

isto ou aquilo como romântico, podemos tentar corresponder a ele, sem defini-lo,

ou seja, dar-lhe fim. Mesmo porque, como Friedrich Schlegel disse, “há

classificações que são bastante ruins como classificações, mas dominam nações e

épocas inteiras”69. Melhor seria acompanhar aquilo que o ritmo romântico sugere

para nós, como acontece na música de Schumann: “ela inicia como se continuasse

um processo que já estava em movimento, e termina, sem resolução, em uma

dissonância”70, observou Charles Rosen.

Prefiro, assim, encerrar – ou começar – por aqui com as belas palavras da

poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner, que, ao definir o romantismo alemão,

termina, paradoxalmente, não com um “árido” ponto final, mas com um ponto de

interrogação. Suspeito que os românticos prefeririam assim.

A Alemanha romântica é um estio maravilhoso do tempo. Mas este estio nãoconsegue deter os caminhos da civilização ocidental, não consegue deter oshomens que trabalham incessantemente como as fúrias. Pois a Alemanharomântica não é uma época, é apenas alguns homens. E poderão alguns homenssalvar o mundo?71

68 Friedrich Nietzsche, Genealogia da moral (São Paulo, Companhia das Letras, 1998), p. 15.69 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 55 (Athenäum,Fr. 54).70 Charles Rosen, A Geração Romântica (São Paulo, Edusp, 2000), p. 79.71 Sophia de Mello Breyner, “Hölderlin ou o lugar do poeta”, in Sofia Maria de Souza Silva,Reparar brechas: a relação entre as artes poéticas de Sophia de Mello Breyner Andresen e AdíliaLopes e a tradição moderna – Tese de Doutorado (Rio de Janeiro, PUC-Rio Departamento deLetras, 2007), p. 127.

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Seres anfíbios:

entre a crítica de Kant e a síntese de Hegel

Fernando Pessoa escreveu, certa vez, “que no desenvolvimento da

metafísica, de Kant a Hegel, alguma coisa se perdeu”1. Seus versos expressam a

percepção de que a filosofia moderna foi compreendida como o caminho que vai

de Kant até Hegel, sendo que alguma coisa entre eles acabou sendo esquecida. Em

termos históricos, entre Kant e Hegel fica o curto período no qual se situam os

primeiros românticos e seus contemporâneos idealistas, como Fichte. Será que

com eles estava a “alguma coisa” perdida de que fala Fernando Pessoa? E, se sim,

o que seria esta coisa?

*

Foi o próprio Hegel quem se pronunciou sobre o desenvolvimento da

metafísica, destacando sua formação histórica. “Para tornar-se saber autêntico, ou

produzir o elemento da ciência que é o seu conceito puro, o saber tem de se

esfalfar através de um longo caminho”2, afirmou. Esse caminho seria a

constituição espiritual do mundo na história, sendo que Hegel pretendia dar a

contribuição definitiva para este saber se tornar absoluto. Desse modo, caberia à

filosofia, enquanto ciência, apresentar “esse movimento de formação cultural”,

cuja “meta final (…) é a intuição espiritual do que é o saber”3. Porém, essa

intuição espiritual tinha sido eliminada como capacidade humana pela filosofia de

Kant, poucos anos antes. Para ele, “não podemos conhecer objeto algum como

coisa em si, mas somente enquanto objeto da intuição sensível”4. Intuição teria

caráter só sensível, e não espiritual ou intelectual, portanto, nosso conhecimento

1 Fernando Pessoa, “Datilografia”, in Obra poética (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986), p. 335.2 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 35.3 Ibid., p. 36.4 I. Kant, “Prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura”, in Textos seletos (Petrópolis,Vozes, 1985), p. 48 (B XXVI).

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jamais chegaria às coisas em si mesmas ou ao saber absoluto, já que seria sempre

parcial. Na contramão da tradição ocidental de Platão a Descartes, Kant limitou o

acesso direto e imediato às coisas, conhecido como intuição, à nossa

sensibilidade. Por sua vez, nosso entendimento intelectual não seria capaz disso,

pois pensamos já sobre as intuições sensíveis dadas.

“Portanto, pela sensibilidade nos são dados objetos e apenas ela nos

fornece intuições”5. Nós não criamos aquilo que nos afeta, pois, como notou

Heidegger, “a par com o desenvolvimento crítico da essência do entendimento

caminha a limitação de seu uso, limitação que o restringe à determinação daquilo

que é dado através da intuição sensível”6. Esta sensibilidade e este entendimento

eram, para Kant, especificamente humanos, logo, jamais conhecemos as coisas

nelas mesmas, mas apenas o modo pelo qual se dão para nossa estrutura subjetiva

(cujo caráter transcendental salva a objetividade da experiência, já que

compartilhamos todos os mesmos traços dessa estrutura). Somente conhecemos os

fenômenos, que são as coisas tal como aparecem para nós de acordo com a

recepção intuitiva da sensibilidade combinada com a ação conceitual do

entendimento.

Restringindo a intuição à sensibilidade, Kant a proibia de ser intelectual e,

com isso, proibia o conhecimento da verdade absoluta. Esse é o sentido do projeto

crítico em sua origem. Kant fala da “distinção exigida pela nossa crítica, entre as

coisas como objetos da experiência e estas mesmas coisas como coisas em si

mesmas”7. Sua “crítica” significa distinção, discernimento, divisão. Se ela possui

sentido negativo, não é o de atacar o que critica ofensivamente. Ela nega só para

restringir. Nosso conhecimento fica restrito aos fenômenos, sem chegar às coisas

em si. É imposto a ele o “não” quando tenta passar deste limite. Esta limitação

crítica de Kant consolidou, para os modernos, seu contexto de cisão: fenômeno e

coisa em si, sensibilidade e entendimento, intuição e conceito, necessidade e

liberdade, conhecimento e moral, teoria e prática, finito e infinito, sujeito e objeto.

Esse dualismo foi sentido como problema pelo próprio Kant ao final de

sua vida, ao escrever a Crítica da faculdade do juízo, em 1791. Ela serviu de

5 I. Kant, Crítica da razão pura (São Paulo, Abril Cultural, 1980), p. 39 (B 33).6 Martin Heidegger, “A tese de Kant sobre o ser”, in Conferências e escritos filosóficos (SãoPaulo, Abril Cultural, 1979), p. 245.7 I. Kant, “Prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura”, in Textos seletos (Petrópolis,Vozes, 1985), p. 48 (B XXVII).

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provocação para muitos filósofos que vieram depois, chamados por isso de pós-

kantianos, nomenclatura cujo significado vai bem além da cronologia. Seguindo o

aceno do próprio Kant ao fim de seu projeto crítico, esses filósofos tinham por

objetivo responder à cisão que marcara tal projeto. Em suma, a filosofia de Kant,

ao colocar limites, foi sentida, na maioria das vezes, como aquilo que deveria ser

ultrapassado. Era o problema que exigia solução. Tudo que ficara separado devia

ser juntado numa síntese. Daí nasceu o que conhecemos como idealismo alemão.

Fichte e Schelling buscaram, cada um a seu modo, alguma espécie de superação,

mesmo que às vezes pensada como consumação, da filosofia de Kant.

Nenhum dos dois, contudo, foi tão resoluto neste propósito quanto Hegel.

Se Kant desconfiara da pretensão de saber como as coisas eram em si mesmas e a

trocou pela certeza de conhecê-las com segurança mesmo que apenas como

fenômenos para nós, Hegel retrucou ao perguntar “por que não cuidar de

introduzir uma desconfiança nessa desconfiança, e não temer que esse temor de

errar já seja o próprio erro”8. Se, para Kant, nós não teríamos como conhecer o

que fica por trás do fenômeno, ou seja, as coisas em si, já para Hegel, “por trás da

assim chamada cortina, que deve cobrir o interior, nada há para ver; a não ser que

nós entremos lá dentro”9. Hegel, é verdade, abandonou, no decorrer de seu

pensamento, a idéia de intuição transcendental ou intelectual enquanto união

imediata de opostos; “não obstante, a lógica de Hegel, como é um pensamento

não-empírico sobre pensamentos, assemelha-se um pouco à intuição intelectual no

sentido kantiano”10, observou Michael Inwood. Entretanto, no sentido kantiano, a

intuição intelectual jamais poderia ser humana, hipótese admitida apenas no caso

de Deus. É que, “diferentemente de Kant, Hegel não hesitava em assimilar o

homem a Deus”11.

É claro que Hegel não pretendeu restaurar o dogmatismo pré-crítico com a

pura positividade da verdade, colocando de fora toda falta e toda negatividade

crítica. Por isso, o espírito, para ele, “não é essa potência como o positivo que se

afasta do negativo – como ao dizer de alguma coisa que é nula ou falsa,

liquidamos com ela e passamos a outro assunto”12. Hegel não aniquila o negativo,

8 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 64.9 Ibid., p. 118.10 Michael Inwood, Dicionário Hegel (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997), p. 194.11 Ibid., p. 194.12 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 38.

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mas o coloca no que chamava de dialética. Ela o absorve enquanto antítese que,

ao invés de anular a tese a que se opõe, produz, a partir do choque com ela, outra

coisa, resultado das anteriores: a síntese final da tensão entes existente. Inclui-se o

negativo como motor do positivo: “o espírito encara diretamente o negativo e se

demora junto dele”, sendo que “esse demorar-se é o poder mágico que converte o

negativo em ser”13. Hegel, assim, reconhecia a relevância da crítica de Kant e, ao

mesmo tempo, a superava, pois “o que surge desse movimento, apreendido como

resultado, é o negativo determinado e portanto é igualmente um conteúdo

positivo”14. Todo “não” passava a ser apenas etapa preparatória para o “sim” final

e pleno do processo dialético. Portanto, a crítica era até necessária: ao cindir

negativamente, ela obrigava o pensamento a fazer seu movimento de re-união

positiva – de Kant a Hegel.

*

Para os primeiros românticos alemães, situados antes de Hegel, a ênfase

no sentido negativo da crítica era também problemática. Para eles, se “Kant

introduziu na filosofia o conceito de negativo”, talvez fosse “uma tentativa útil

introduzir agora na filosofia também o conceito do positivo”15. Desde cedo,

Friedrich Schlegel já encarava a dualidade moderna de dois princípios opostos: o

impulso da alma a partir de dentro e os decretos da natureza a partir de fora. Esta

divisão entre a interioridade subjetiva e a exterioridade objetiva aparecia como o

grande problema da modernidade. Logo, seria preciso juntá-las. Esta unidade era

buscada tão mais ardentemente pela dualidade que a movia. Nessa medida, os

românticos reconheciam, com Hegel, que a “formação recente” levou “ao topo da

mais dura contradição”, já que “o entendimento moderno produz no homem esta

contraposição que o torna anfíbio, pois ele precisa viver em dois mundos que se

contradizem, de tal sorte que a consciência, nesta contradição, também se dirige

para lá e para cá e, jogada de um lado para o outro, é incapaz de satisfazer-se”16.

13 Ibid., p. 38.14 Ibid., p. 54.15 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 47 (Athenäum,Fr. 3). Se há, neste fragmento, referência ao Ensaio para introduzir o conceito de grandezanegativa na filosofia, da fase pré-crítica de Kant, sua relevância é mais ampla, pois ele expõe ummodo de olhar a herança kantiana.16 F. W. G. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 72.

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Se o diagnóstico da modernidade era bastante parecido nos primeiros

românticos e em Hegel, o prognóstico, porém, era bem diferente. Enquanto Hegel

queria a solução plena e definitiva para aplacar este pêndulo que, entre os

extremos modernos, jamais se satisfazia, Friedrich Schlegel afirmava que “o

espírito que conhece as orgias da verdadeira musa nunca irá percorrer esse

caminho até o fim”17. Nesse sentido, ainda que sentissem a mesma necessidade

que Hegel de ir além de Kant, não acreditavam, como ele, que fosse possível, de

fato, o espírito alcançar por completo o saber absoluto. É que, a despeito da

tentativa de engendrar a positividade na filosofia como forma de chegar ao

absoluto, os primeiros românticos, como escreveu Novalis, consideravam que

“este absoluto que é dado a nós só pode ser conhecido negativamente”18. Pela

própria pretensão positiva, tão anti-kantiana, da conquista da verdade absoluta, os

românticos experimentaram a sua resistência negativa. No seu pensamento, o

negativo não consegue ser totalmente absorvido pelo positivo, nem mesmo

através da dialética.

Para Friedrich Schlegel, o espírito “nunca pode saciar uma ânsia que

renasce da própria plenitude da satisfação, eternamente renovada”19. Para ele, não

havia como aplacar completamente o desejo de união que, no entanto, pulsava aí

tanto quanto nos demais pensadores pós-kantianos. É que, a cada solução,

surgiriam novos problemas e, a cada satisfação, renasceria o desejo. No lugar da

“eternidade” como substantivo, os primeiros românticos a transformaram em

advérbio aplicado à renovação – “eternamente”. Desse modo, atentavam contra o

mais caro preceito metafísico tradicional, a saber, de que a verdade absoluta se

define pela ausência de tempo, cuja concretização é a eternidade. Novalis

escreveu que “a eternidade é realizada temporalmente, a despeito do fato de que o

tempo contradiz a eternidade”20. Esta contradição explica-se porque nada é eterno

senão a própria busca pela eternidade, que se dá eternamente pois o objeto que ela

almeja lhe diz “não”, recusa sua apropriação absoluta, tem caráter negativo,

portanto. Nada que está no tempo é eterno, mas o próprio tempo é. Só o tempo é

para sempre: a dinâmica infinita pela qual, a cada falta, nova resposta é dada, mas 17 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 29.18 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), #566.19 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 29.20 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), #566.

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ela não é senão o início de outra falta – e assim em diante, sem ponto final, saber

absoluto ou eternidade.

Nesse sentido, os românticos tinham seu desejo definido por Hegel, mas

sua natureza marcada por Kant. Eles queriam a síntese, mas sabiam, criticamente,

que ela não era possível. Situados nessa tensão, os primeiros românticos

esboçaram o pensamento tantas vezes contraditório que, até hoje, gera

desconfiança acerca de sua consistência. Ela não é, como vemos, casual. Pelo

contrário, é resultado do lugar onde a reflexão romântica original se instalou, que

fica entre a crítica de Kant e a síntese de Hegel.

Mesmo quando o diagnóstico sobre o caráter conflitante de sua época era

muito severo, os primeiros românticos não chegavam a compactuar com a solução

de Hegel. Friedrich Schlegel, por exemplo, escreveu, certa feita, que “o pecado

original da cultura moderna é a separação completa e o desmembramento das

forças humanas, que, contudo, só poderiam permanecer saudáveis numa

combinação livre”21. Muitas vezes, o próprio Schlegel não considerou esta

separação um pecado. Mas, até quando o fez, não apelou para a síntese final do

saber absoluto, ao modo de Hegel. Ele falou, ao invés disso, de livre combinação,

de conjugação ou de vinculação, o que não significa, necessariamente, abolir os

termos conflitantes em prol do seu resultado dialético.

É provável que o romantismo, para Hegel, fosse figura daquilo que ele

chamava de “consciência infeliz”: embora consciente de sua cisão, ela não

consegue resolvê-la, “é desalojada imediatamente (…) quando pensa ter chegado

à vitória e à quietude da unidade”22. É isso que constitui, para os primeiros

românticos, o movimento do espírito: ele é, a cada vez que pensa ter chegado à

unidade, novamente desalojado, e assim ocorre eternamente. Nessa medida, de

acordo com o critério de Hegel, tal consciência jamais chega à felicidade, pois não

supera sua própria dualidade. Desse modo, “a consciência infeliz é a subjetividade

que aspira ao repouso da unidade, é a consciência de si como consciência da vida

e daquilo que supera a vida, mas não pode senão oscilar entre os dois

momentos”23, como explicou Jean Hyppolyte. Esta oscilação é o movimento

21 Friedrich Schlegel, “Jacobis Woldemar”, in Kritische Schriften (München, Carl Hanser Verlag,1970), p. 260.22 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 140.23 Jean Hyppolyte, Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel (São Paulo,Discurso Editorial, 2003), p. 210.

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romântico. Ele não acha a feliz reconciliação que Hegel pretende – aliás, “que tal

reconciliação, que tal síntese (…) seja possível, é precisamente o que não admite a

maior parte de nossos contemporâneos, aí residindo a crítica por eles feita ao

sistema hegeliano como sistema”24. Nessa medida, o pensamento romântico, em

sua origem, antecipava a problematização contemporânea do sistema de Hegel, já

que, mesmo antes de seu surgimento, já experimentava a ausência de

reconciliação absoluta para a situação do homem no mundo.

Se o romantismo prenunciava a resistência contemporânea em aceitar a

conclusão do pensamento de Hegel, ao mesmo tempo mantinha a filosofia

segundo sua mais antiga determinação etimológica, a de amor pelo saber. Nisso,

estava, novamente, na contramão de Hegel, que declarou abertamente: “colaborar

para que a filosofia se aproxime da forma da ciência – da meta em que deixe de

chamar-se amor ao saber para ser saber efetivo – é isto o que me proponho”25.

Pelo contrário, os românticos experimentaram o amor como seu elemento

justamente porque não conseguiam chegar à concretização do saber efetivo,

permanecendo este sempre apenas o vislumbre que os levava a filosofar e a viver.

Essa singular posição romântica, como veremos adiante, foi aberta pela

crítica que Novalis e Hölderlin fizeram, já em 1795, a seu professor Fichte,

primeiro grande pensador a tentar consumar o projeto de Kant. Eles contestavam a

“egoidade” de Fichte. Negavam a primazia do “eu” sobre o “não-eu”, valorizando,

ao invés, a “determinação recíproca” entre ambos, tematizada pelo mesmo Fichte,

mas que nem sempre ocupara lugar de primazia no seu sistema em comparação

com a síntese por ele pretendida.

Nesse diálogo com Fichte, nascia a matriz filosófica do primeiro

romantismo alemão. Biograficamente, tal diálogo pode ter ocorrido quando, em

maio de 1795, Novalis e Hölderlin conheceram-se, sob a presença de Fichte, em

Iena, na casa de Immanuel Niethammer, amigo comum aos três. Esse encontro,

metaforicamente, desenha a pirâmide que define o preâmbulo filosófico do

romantismo alemão. Na ponta de cima, estava Fichte e, nas de baixo, Novalis e

Hölderlin, cuja vida, àquela altura, voltava-se para a filosofia – o que significava

abordar a pretensão de Fichte. Por fim, a base da pirâmide buscaria desbancar o

topo, iniciando a reviravolta filosófica que ganhou corpo no romantismo.

24 Ibid., p. 219.25 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 23.

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*

Fichte está entre os pensadores que, após Kant, responderam aos desafios

por ele colocados, no sentido de completar seu projeto crítico ou de apontar falhas

e corrigi-lo. Reinhold, Schulze, Maimon, Beck, Jacobi e Bardili compõem essa

cena de recepção da filosofia de Kant. Seu principal desafio era resolver a

oposição entre o mundo objetivo da natureza e o mundo subjetivo do espírito.

Deste ambiente surge Fichte, superando seus companheiros por não se deter

apenas em problemas pontuais da filosofia de Kant, mas por apreendê-la na sua

totalidade e, ainda assim, levá-la além do que seu autor podia prever. É que Kant

contentara-se em realizar, nas suas próprias palavras, “um tratado do método, e

não um sistema da ciência em si”26. Sob a inspiração de Reinhold, Fichte fazia, na

forma idealista da doutrina da ciência, o sistema da razão que Kant não

concretizara.

Seu objetivo era encontrar o princípio elementar fundamental por trás da

crítica de Kant, explicitando a unidade da razão para além do dualismo entre “eu”

e “não-eu”. Esse dualismo tornara-se agudo, em Kant, pois o “eu” subjetivo não

alcançava o “não-eu” objetivo das coisas em si. Nossa apreensão da realidade,

para Kant, viria da subordinação da recepção intuitiva direta daquilo que eu não

sou (as coisas) à atividade conceitual indireta (minha) – indireta pois, enquanto

entendimento, não entra em contato imediato com as coisas, mas apenas através

da sensibilidade. Logo, para ele, nós jamais teríamos qualquer intuição intelectual,

pois a atividade do entendimento não é direta (intuitiva).

Fichte precisou, então, reabilitar a noção de intuição intelectual, para

encontrar o princípio aquém da divisão entre “eu” e “não-eu”. Sua estratégia,

porém, não foi a de enfrentar Kant, mas de evitá-lo. Pois “o que Kant chamava de

intuição intelectual, e com razão recusava, é desde o começo para Fichte um

absurdo ‘indigno do nome’ – exatamente como o seu suposto objeto”27, notou

Nicolai Hartmann. Fichte, ao invés de direcionar a intuição intelectual para fora,

como modo de alcançar as coisas em si no mundo exterior, a remeteu para o

26 I. Kant, “Prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura”, in Textos seletos (Petrópolis,Vozes, 1985), p. 48 (B XXIII).27 Nicolai Hartmann, A filosofia do idealismo alemão (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,s/d), p. 63.

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interior. “Precavido do sentido da intuição intelectual proibido por Kant, fica

outra vez livre o conceito desta”28. Ela se torna auto-intuição, auto-apreensão da

atividade do “eu”. Portanto, diz Fichte, “a inteligência intui a si mesma (…) como

inteligência pura, e nessa auto-intuição consiste seu ser”, logo, “essa intuição será

denominada, com razão, intuição intelectual”29.

Só que, afirma Fichte, “em vez da palavra inteligência prefiro empregar a

denominação: egoidade; pois esta designa da maneira mais imediata (…) esse

retorno da atividade para dentro de si mesma”30. Porém, como pode o sujeito que

é “eu”, ao se voltar para dentro de si, alcançar o objeto que é “não-eu”? Não

ficaria ele, assim, ainda mais apartado do mundo? Para Fichte, não, porque,

quando penso a mim mesmo, sou tanto o sujeito que pensa quanto o objeto

pensado, estou cá e lá sem sair do lugar. Para ele,

ao pensares tua mesa ou tua parede (…), tens consciência da atividade em teupensar, era para ti mesmo, nesse pensar, o pensante; mas o pensado não era, parati, tu mesmo, e sim algo a ser distinguido de ti. Em suma, em todos os conceitoscomo este (…), o pensante e o pensado são dois. Mas, ao te pensares, não és parati apenas o pensante: és também, ao mesmo tempo, o pensado; nesse caso,pensante e pensado devem ser um só.31

Esse raciocínio permite a Fichte conceber o engolfamento do “não-eu”

pelo “eu” como modo de trazer ambos para seu fundamento comum, sem divisão.

Nesse “eu”, “a autoconsciência é imediata; nela, subjetivo e objetivo estão

inseparavelmente unificados e são absolutamente um”32, diz ele. Esta metafísica

da autoconsciência achava no “eu” a superação decisiva do dualismo de Kant,

pois sua constante atividade seria a produtora responsável, inclusive, pelo “não-

eu”: “o conceito ou o pensamento do eu consiste no agir sobre si do próprio eu; e,

inversamente, um tal agir sobre si mesmo dá o pensamento do eu, e pura e

simplesmente nenhum outro pensamento”33.

*

28 Ibid., p. 63.29 J. G. Fichte, “O Princípio da Doutrina-da-Ciência”, in Escritos filosóficos (São Paulo, AbrilCultural, 1973), p. 45.30 Ibid., p. 45.31 Ibid., p. 41-42.32 Ibid., p. 44.33 Ibid., p. 42.

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55

São bastante conhecidos os elogios dos primeiros românticos a Fichte, que

foi considerado por eles, no âmbito da filosofia, a grande tendência da época34.

“Encontraram em Fichte um romantismo pré-figurado, uma antecipação do que

vinha definir as suas próprias aspirações”35. Menos conhecidas, entretanto, são as

críticas que fizeram a Fichte, embora elas sejam tão ou mais importantes do que

os elogios. Elas representam aquele movimento, tão familiar na história da

filosofia, pelo qual certo pensamento precisa abrir seu caminho dentro da estrada

na qual se situa. Esta estrada é Fichte. Por isso mesmo, a separação dele define o

caminho singular dos primeiros românticos, ainda que este, por sua vez, siga a

tendência já sugerida por Fichte. Por ser aquele de quem eles se sentem mais

próximos, o confronto aí é pela conquista de sua própria identidade filosófica.

Novalis dedicou-se, em 1795, aos seus estudos sobre Fichte. Ele

posicionava-se próximo ao elogio fichtiano da intuição intelectual, mas apenas na

medida em que seu estatuto fosse o daquilo que Kant chamava de “idéia

reguladora”36. Embora Fichte chegue a sugerir esse caráter apenas regulador, ele

não prevalece sempre no seu pensamento, ao contrário da força que assume com

Novalis. Todo primeiro princípio fundamental que explicaria o ser possuía, para

ele, estatuto somente regulativo: norteia a direção mas não se concretiza,

determinando que dele nos aproximemos sempre, mas que, por este “sempre”,

jamais nele cheguemos. Novalis suspeitou que “Fichte muito arbitrariamente

colocou tudo dentro do eu”37, já que ele, ao afirmar a intuição intelectual,

concebia que criamos até o que nos afeta, pois mesmo o “não-eu” seria posto pelo

próprio “eu”. Novalis, no entanto, afirmava: “eu nunca acho a intuição porque eu

devo procurá-la através da reflexão e vice-versa”38. Ele, com isso, marcava o

desencontro constante entre intuição e reflexão. É verdade que Fichte não temia as

contradições e desencontros. Ele “pode admitir o contraditório como realmente

existente na razão, porque está, ao mesmo tempo, na posse do meio de lhes

34 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 83 (Athenäum,Fr. 216).35 Gerd Bornheim, “A filosofia do romantismo”, in J. Guinsburg (org.), O Romantismo (São Paulo,Perspectiva, 2002), p. 84.36 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), #502.37 Ibid., # 5.38 Ibid., # 566.

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restituir a unidade numa síntese superior”39, afirmou Nicolai Hartmann. Esse meio

é o “eu” enquanto pura atividade da autoconsciência, como vimos. Mas estaria tal

síntese a salvo de toda crítica? Novalis achava que não.

Por isso, Novalis vê Fichte obliquamente. Ele valoriza os momentos em

que Fichte sublinha o caráter contraditório do absoluto, como quando afirma que

“o centro e o ponto-de-inflexão do saber absoluto é um oscilar entre ser e não-ser

do saber” ou que “não há unidade a não ser dos separados, e não há separados a

não ser da unidade”, portanto o saber “oscila entre ambos”40. Novalis quase repete

tais frases, ao dizer que se “fosse para haver a esfera mais alta, teria quer ser a

esfera entre ser e não-ser” e que na “oscilação entre os dois” fica “o conceito da

vida”41. Esse “entre” é a tensão do romantismo alemão em sua origem, na qual

Fichte, porém, não permaneceu. Depois de falar da oscilação entre ser e não-ser,

ele anunciava: “voltemos ao ponto de vista da síntese completa”42. Sua meta é o

“captar-se do saber, como aqui chegado a seu término e absolutamente fixado”:

no fim, há a conclusão do saber absoluto com “o cunho de sua própria

perfeição”43.

Tudo isso era estranho a Novalis, pois ele compreendia o fundamento do

ser como princípio negativo, como vimos. Não considerava possível a absorção

positiva do não-ser. Nesta situação, afirmava, “a filosofia fica paralisada e deve

permanecer assim – pois a vida consiste precisamente nisso, em não poder ser

possuída”44. Na contramão do movimento que caracterizaria, mais tarde, a

dialética de Hegel, Novalis defendeu que a filosofia devia paralisar a tensão entre

ser e não-ser: quando o negativo (o não-ser) entra em oposição com o positivo (o

ser), eles não constituem o processo de síntese da nova positividade, pois a vida

não pode ser possuída. Para Novalis, a “vida é alguma coisa composta de síntese,

tese e antítese, e, ainda assim, de nenhuma das três”45, porque a dialética não

esgota ou totaliza o ser da vida como busca infinita. Novalis chega a dizer que a

39 Nicolai Hartmann, A filosofia do idealismo alemão (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,s/d), p. 67.40 J. G. Fichte, “A Doutrina-da-ciência e o saber absoluto”, in Escritos filosóficos (São Paulo,Abril Cultural, 1973), p. 142, 126.41 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), # 3.42 J. G. Fichte, “A Doutrina-da-ciência e o saber absoluto”, in Escritos filosóficos (São Paulo,Abril Cultural, 1973), p. 144.43 Ibid., p. 140, 155.44 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), # 3.45 Ibid., # 3.

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“filosofia, o resultado do filosofar, surge em conformidade através da interrupção

do esforço na direção do conhecimento do fundamento”46. Filosofia não é

continuidade progressiva, pois seu fundamento não pode ser possuído

completamente, como quer aquele conhecimento. Interrompe então ela, frisando a

falta do que Fichte desejava com o “captar-se do saber absolutamente fixado”. Por

isso, Novalis o critica, contestando a perfeição do balanço da equação que acharia

a igualdade entre sujeito e objeto.

Fichte a traduzira no princípio lógico “a = a”. Pense-se que cada termo é o

“eu”. Temos, então, “eu = eu”. Parece óbvio. Mas a astúcia está em que tal

equação permanece válida na atividade da autoconsciência, ou seja, que o “eu”

que pensa é igual ao “eu” pensado, ou ainda, que o “eu” que é sujeito, ao pensar a

si, é também objeto. Só por isso, o princípio “a = a” pode simbolizar a

fundamentação comum da dualidade entre “eu” e “não-eu”, já que o “eu”, ao

refletir sobre si, pode se colocar na posição do “não-eu” sem deixar de ser o “eu”.

Fichte interessava-se, então, pela igualdade da equação “a = a”.

Novalis enxerga mais: “o que o fascina é a simultaneidade do mesmo e do

outro expresso pela fórmula a = a”, como observou Géza von Molnár, pois ela

“não pode afirmar a identidade a não ser através da duplicidade”47. Para Novalis,

o princípio de identidade, ao invés de sustentar a perfeita fundamentação do ser

consigo mesmo, instaura a dessemelhança, já que, na sua apresentação, ele só

consegue ser ao fazer-se dois, e não um: “a = a”. Logo, “a identidade aparece

apenas dentro do medium da não-identidade”48. É o próprio “um” que, ao se

querer igual a si, precisa ser “dois”, rompendo sua unidade.

Na busca pela síntese das oposições, como na fórmula de Fichte, os

românticos esbarravam na análise como quebra daquela unidade e, daí, irrompia o

poder da diferença no meio do mesmo. Novalis afirmava que a filosofia “nada

pode gerar” e que “algo precisa lhe ser dado”. No estilo truncado de seus estudos

sobre Fichte, ele, após isso, põe, entre barras, a palavra “análise”49. Sua idéia,

aqui, é oposta à de Fichte: o “eu” não põe o “não-eu” somente, pois a filosofia não

gera, ela precisa que algo lhe seja dado. Seu signo não é o da síntese, como quis 46 Ibid., # 566.47 Géza von Molnár, Romantic vision, Ethical Context: Novalis and Artistic Autonomy(Minneapolis, University of Minnesota Press, 1987), p. 30.48 Ibid., p. 30.49 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), #15.

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Hegel mais tarde, já que ela está presa, ao mesmo tempo, na análise, na quebra, na

divisão. Para Novalis, o “eu” não é só ativo, mas tem certa passividade que não é

eliminável. “Este é o motivo decisivo para seu realismo ontológico: ser é anterior

à nossa consciência; nós o sentimos, mas não o produzimos ou mesmo o

constituímos”, logo, neste caso, “poder-se-ia falar de um retorno a Kant ainda

antes de o idealismo absoluto ter tido tempo de abrir suas asas”50, observou

Manfred Frank.

Nesse lugar entre a crítica de Kant e a síntese dos idealistas, surge o

conceito romântico de filosofia, cuja expressão lapidar foi dada pelas palavras do

próprio Novalis.

O que eu faço quando filosofo? Eu reflito sobre um fundamento. O fundamentodo filosofar é, então, o esforço da procura do pensamento de um fundamento.(…) Todo filosofar deve, portanto, acabar em um fundamento absoluto. Mas, seele não é dado, se este conceito contém uma impossibilidade – então o impulsopara filosofar seria uma atividade infinita – e sem fim porque haveria uma eternaurgência por um fundamento absoluto que só pode ser satisfeita relativamente – eque, portanto, jamais cessaria.51

Essa foi a revisão a que Novalis submeteu a filosofia de Fichte, já em

1795. Seus estudos abrem, de modo pioneiro, a singularidade do primeiro

movimento romântico. Diversos comentadores, por isso, enfatizam que este é o

ponto decisivo não apenas na carreira de Novalis, mas na história do romantismo

alemão, já que aí surge a separação entre ele e a filosofia idealista, abrindo seu

caminho próprio52. Novalis descobria, assim, o horizonte específico da visão

filosófica romântica, ao abandonar o idealismo de Fichte53.

*

Por volta de 1795, Fichte era a figura chave da filosofia alemã. Hölderlin

não o deixa mentir, ao exclamar em carta de 1794: “Fichte é agora a alma de

Iena”. Ele declara: “não conheço homem algum com tamanha profundidade e

50 Manfred Frank, The philosophical foundations of early German romanticism (New York, StateUniversity of New York Press, 2004), p. 169.51 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), #566.52 Wm. A. O’Brien, Novalis: Signs of Revolution (Durham, Duke University Press, 1994), p. 78.53 Jane Kneller, “Introduction”, in Fichte Studies (Cambridge, Cambridge University Press, 2003),p. xvi.

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energia espiritual”54. Logo, não só para Novalis, mas também para Hölderlin, o

engajamento com seu pensamento tornava-se crucial. Porém, este engajamento

não levou apenas ao elogio. Mesmo porque, Iena era então o posto avançado da

filosofia alemã, e não apenas por causa de Fichte, já que seu predecessor na

cadeira de filosofia, Karl Reinhold, havia introduzido o programa para a filosofia

pós-kantiana que Fichte continuava. Mais ainda, observou Charles Larmore,

“alguns membros da audiência de Reinhold já tinham descoberto razões

importantes para rejeitar este programa” e, sendo assim, “quando Fichte chegou

em Iena na primavera de 1794, seu pensamento parecia para muitos ali passé”55.

Sobretudo para Hölderlin, a continuidade com Reinhold devia soar suspeita, pois

aquele a quem ele chamava de seu “mentor filosófico”56, Niethammer, mesmo

fazendo parte da audiência de Reinhold, já o contestava com argumentos céticos.

Portanto, como explicou Jean-François Courtine,

Hölderlin se lança, durante o inverno de 1794-95, quando segue os cursos deFichte, num primeiro grande confronto com o nascente idealismo pós-kantiano –à custa, é claro, de simplificações ou contra-sensos, que, no entanto, serãoprodutivos e revelam, sobretudo, uma virada decisiva no pós-kantismo. (…) Éum período no qual Hölderlin, que desde o início dá evidências bastante fortes deseu entusiasmo por Fichte, apropria-se cada vez mais profundamente de seupensamento, elaborando uma crítica cada vez mais radical.57

Essa crítica encontra sua formulação básica no curto texto intitulado

“Juízo e Ser”, de 1795. Hölderlin admitia que, “através do fato de que me oponho

a mim próprio, separo-me de mim” e que, “independentemente dessa separação,

reconheço-me como o mesmo no oposto”58. Embora me separe de mim na

autoconsciência, porque sou eu que penso e eu aquilo que é pensado, é o mesmo

“eu” que está pensando e sendo pensado, como queria Fichte. Mas qual o sentido

deste “mesmo”? “Posso, devo perguntá-lo; pois, por outro ponto de vista, ele é

oposto a si”59. Hölderlin notou que, na atividade pela qual me torno objeto de meu

pensamento, sou e não sou o mesmo. Pois quando o sujeito toma a si como objeto,

ele é, de um lado, sujeito e, de outro, objeto – experimenta certa diferenciação. 54 F. Hölderlin, Correspondencia completa (Madrid, Hipérion, 1990), p. 214.55 Charles Larmore, “Hölderlin and Novalis”, in Karl Ameriks (ed.), The Cambridge Companionto German Idealism (Cambridge, Cambridge University Press, 2005), p. 145.56 F. Hölderlin, Correspondencia completa (Madrid, Hipérion, 1990), p. 288.57 Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 71, 4858 F. Hölderlin, “Juízo e Ser”, apud Antonio Cícero, “O destino do homem”, in Adauto Novaes(org.), Poetas que pensaram o mundo (São Paulo, Companhia das Letras, 2005), p. 235.59 Ibid., p. 235.

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Em suma, o movimento da autoconsciência, que devia mostrar a unidade

de sujeito e objeto, só se realiza pela divisão do sujeito em dois. Nas palavras de

Hölderlin, “quando digo: eu sou eu, o sujeito (eu) e o objeto (eu) não estão tão

unidos que nenhuma separação possa ser pretendida (…); ao contrário: o eu só é

possível através dessa separação entre eu e eu”60. Este “eu sou eu” é o signo da

autoconsciência para Fichte, pois coloca o “eu”, pela própria sentença gramatical,

tanto no lugar, primeiro, de sujeito quanto, depois, de objeto, tendo o verbo “ser”

no meio, evidenciando a identidade entre os dois lados da equação. Mas, para

Hölderlin, a sentença, ao mesmo tempo, separa o “eu” em sujeito e objeto.

Tal separação mostraria que a autoconsciência não nos dá o absoluto, pois,

para Hölderlin, este só é “onde sujeito e objeto é unido de modo absoluto, e não

apenas parcial, unido de tal maneira que nenhuma separação pode ser pretendida

sem ferir a essência daquilo que se pretendia separar”61. Se o absoluto é o “ser”,

“juízo” é a separação, onde há o sujeito que julga e o objeto julgado, até quando

este último é o próprio sujeito que ali se põe. “Logo, a identidade não é uma união

de objeto e sujeito que se encontre de modo absoluto, logo a identidade não é =

ser absoluto”62, afirma ele.

Essa ruptura com Fichte pode ser verificada na correspondência de

Hölderlin. Em 1795, escrevendo ao irmão que não era versado em filosofia, ele

adotava postura didática, destacando a relevância de Fichte e justificando sua

proximidade em relação a ele.

Eu gostaria de te contar (…) uma importante característica da filosofia de Fichte.Existe no homem uma aspiração pelo infinito, existe uma atividade que o impedede aceitar barreiras permanentes e não lhe permite nenhum momento de repouso,e que, pelo contrário, tende a se tornar cada vez maior, mais livre e independente;esta atividade, infinita por impulso próprio, é limitada; a atividade infinita eilimitada segundo seu próprio impulso é necessária à natureza de um ser comconsciência (um “eu”, como diz Fichte), mas a limitação desta atividade tambémé necessária à natureza de um ser com consciência, pois se a atividade não fosselimitada, insuficiente, seria tudo, e não haveria nada fora dela.63

Porém, diante de um interlocutor que entende filosofia, Hölderlin critica

Fichte, vendo, na sua egoidade, o desrespeito à limitação da atividade da

consciência, que põe tudo dentro de si – ao contrário do que narrara ao irmão. 60 Ibid., p. 235.61 Ibid., p. 235.62 Ibid., p. 235.63 F. Hölderlin, Correspondencia completa (Madrid, Hipérion, 1990), p. 242.

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Escrevendo a Hegel, ainda em 1795, suspeita que Fichte fosse dogmático, “ainda

mais manifestamente transcendente do que a aspiração dos metafísicos

anteriores”. Para Hölderlin, aí, o “eu” de Fichte

contém toda realidade: ele é tudo e, fora dele, nada há; portanto, não há objetoalgum para este eu absoluto, pois do contrário não encerraria toda realidade; masuma consciência sem objeto não é concebível, e, se sou eu mesmo esse objeto,sou, como tal, necessariamente limitado (…), logo, não sou absoluto.64

Nessa carta, Hölderlin descreve o raciocínio de Fichte: a autoconsciência

seria a solução para o problema de que, na oposição entre a consciência e seu

objeto, não há absoluto, já que uma coisa limitaria a outra, afinal, se todo “eu”

supõe consciência, toda consciência supõe o objeto de que ela é consciente. Logo,

a unificação absoluta só seria possível com o “eu” dobrando-se sobre si, pois aí o

objeto de minha consciência sou eu mesmo. Mas, para Hölderlin, esta operação

importa a separação anterior para dentro do próprio “eu”, que deixa de ser apenas

sujeito para ser também objeto: funda-se a limitação de um diante do outro. Na

medida em que o absoluto não pode ser limitado, ele não pode ter objeto que se

lhe contraponha, logo, o “eu” não pode ser absoluto. Hölderlin evoca a estrutura

reflexiva da consciência apenas para evidenciar que, se não há consciência sem

objeto, também não há consciência-de-si sem objetivação ou autoconsciência sem

limitação. Para ele, por fim, seria uma contradição em termos o conceito de “eu

absoluto”, já que aquele substantivo jamais pode ser qualificado por este adjetivo.

Não é difícil notar, aqui, o afastamento da filosofia de Fichte como certo

recuo na direção de Kant. Em maio de 1794, Hölderlin já confidenciara ao irmão

que Kant era quase sua única leitura65. Mas seu movimento não se reduz à

aproximação de Kant. Pois a nova questão que então desponta é saber se a

limitação do juízo subjetivo de identidade formulado por Fichte “não obriga a dar

mais um passo, aquele que conduz a se elevar até o próprio ser”66, como aponta

Jean-François Courtine. Hölderlin opõe, ao juízo que marca o absoluto em Fichte,

o ser, pois o “ser exprime a ligação do sujeito e do objeto”67. É claro que, na

tradição aristotélica, juízo era tanto “diaíresis” como “synthesis”: dissociação e

64 Ibid., p. 232.65 F. Hölderlin, Correspondencia completa (Madrid, Hipérion, 1990), p. 189.66 Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 82.67 F. Hölderlin, “Juízo e Ser”, apud Antonio Cícero, “O destino do homem”, in Adauto Novaes(org.), Poetas que pensaram o mundo (São Paulo, Companhia das Letras, 2005), p. 235.

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associação. Só que, ao fazer a ponte que associa os elementos separados, o juízo

já admite que são diferentes. Manfred Frank reparou que, nesse sentido, aparece

uma contradição entre conteúdo e forma: “o que é expresso no e pelo juízo é

precisamente a indistinção dos relacionados; a forma do juízo consiste, porém, em

distinguir estes termos indistintos”68.

Hölderlin conclui que “no conceito de separação já se encontra o conceito

da relação recíproca de objeto e sujeito um com o outro e a pressuposição

necessária de um todo do qual objeto e sujeito são as partes”69. Só porque há ser,

há a “separação através da qual tornam-se em primeiro lugar possíveis objeto e

sujeito”70. Para Terry Pinkard,

subjetividade e objetividade emergem juntas; seriam só formas diferentes dedogmatismo (…) a explicação de uma a partir do outra. Em Fichte, a“subjetividade” veio primeiro, e ele ficou atolado na tarefa (impossível) demostrar como a “objetividade” surgia (…). Devemos sempre começar com osentido de nós mesmos “no” mundo (como parte do “ser”), e este é mais básicoque qualquer articulação de nós como “sujeitos” e “objetos”.71

Por conta disso, “se não estamos preparados para derivar o termo ‘eu’ de

alguma coisa que o precede, não seremos capazes de transcender a correlação

original entre o eu e o eu como objeto”72, observou Dieter Henrich. Este termo é o

ser, aquém do juízo. Para serem sujeito e objeto, sujeito e objeto, antes, precisam

ser. Nesse sentido, o ser é “anterior a toda posição, a toda oposição, bem como a

toda síntese”73, como mostrou Jean-François Courtine. Ele não se define porque

põe ou está posto como sujeito ou objeto, e nem pela síntese dialética dos dois.

Toda posição só põe ou é posta porque é. No âmbito da filosofia moderna,

Hölderlin, com isso, compreende o ser diferentemente de Kant, Fichte e Hegel,

que o definiram, respectivamente, levando em conta a posição74, a oposição e a

síntese.

68 Manfred Frank, The philosophical foundations of early German romanticism (New York, StateUniversity of New York Press, 2004), p. 124.69 F. Hölderlin, “Juízo e Ser”, apud Antonio Cícero, “O destino do homem”, in Adauto Novaes(org.), Poetas que pensaram o mundo (São Paulo, Companhia das Letras, 2005), p. 235.70 Ibid., p. 235.71 Terry Pinkard, German Philosophy 1760-1860: the legacy of Idealism (Cambridge, CambridgeUniversity Press, 2002), p. 142.72 Dieter Henrich, Between Kant and Hegel (Cambridge, Harvard University Press, 2003), p. 292.73 Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 62.74 Cf. Martin Heidegger, “A tese de Kant sobre o ser”, in Conferências e escritos filosóficos (SãoPaulo, Abril Cultural, 1979).

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63

*

Entre Kant e Hegel, o que teria sido perdido? Era essa a pergunta de

Fernando Pessoa. Teria sido perdido, quem sabe, o lugar entre a precaução crítica

que separava o homem da verdade das coisas e a pretensão da posse positiva

plena dessa mesma verdade na figura da síntese. Porém, poucas vezes percebemos

esse lugar de tensão não resolvida na qual se situam os primeiros românticos.

Somos seduzidos pela versão coerente e progressiva da história do pensamento

contada por Hegel, através da qual todos os que se situaram antes dele, se não

estavam propriamente errados, foi apenas porque contribuíram, cada um a seu

modo, para que a filosofia culminasse em seu próprio sistema. Ele atacava a

opinião que “não concebe a diversidade dos sistemas filosóficos como

desenvolvimento progressivo da verdade, mas só vê na diversidade a

contradição”75. É claro que, assim, Hegel coloca os mais diferentes filósofos

dentro do desenvolvimento da verdade. Mas o preço que eles pagam por esta

inclusão é que são submetidos, retrospectivamente, ao ponto de referência que é o

próprio Hegel. Sua diversidade, portanto, é acolhida mas, no mesmo lance,

reduzida ao critério do progresso cujo ponto ótimo é o sistema que a acolhe.

Entre Kant e Hegel, portanto, ficara perdido aquilo que, entre os dois, não

levasse de um a outro necessariamente, mas que sugerisse alternativas diferentes

de pensamento. Roubava-se, assim, a possibilidade de que, por exemplo, os

primeiros românticos não estivessem tentando dizer o mesmo que Hegel e não

conseguindo, mas sim dizendo algo, propositalmente, distinto. Portanto, o efeito

dessa concepção de história é que tudo o que fica entre Kant e Hegel passa a ser

considerado como degrau numa escada que vai de um a outro. Foi o próprio

Hegel, então, o primeiro a sugerir que lêssemos a história que vai de Kant até ele

como linha espiral mas sem desvios, fazendo com que os pensadores pós-

kantianos representassem esforços, mais ou menos bem sucedidos, de resolver os

problemas que, no entanto, só ele foi capaz de solucionar.

No caso dos primeiros românticos, é comum pensar que eles buscavam a

síntese geral que Hegel logo mais tarde proporcionara, mas que não tiveram o

talento filosófico para tanto. Pode até ser. Porém, não deixemos de lembrar que,

75 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 22.

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para eles, a ausência de superação completa dos limites críticos de Kant na síntese

do saber devia-se menos aos seus recursos filosóficos, ou à falta deles, do que à

condição do próprio homem diante do absoluto. É que a vida, para eles, era

marcada pela falta, pela incompletude e pela diferença, motivo pelo qual

ficaríamos correndo atrás do preenchimento e da completude, num movimento

que, ao contrário do que ocorre no sistema de Hegel, não cessa jamais.

Já no enfrentamento prematuro que Novalis e Hölderlin têm com a

filosofia de Fichte, percebe-se essa dissonância com o projeto do idealismo

alemão que culminou com Hegel. Mesmo Schelling, que chegou a participar do

primeiro grupo romântico na juventude, segue, por fim, o destino idealista,

acreditando que, pelo menos através da arte, “todas as contradições são

suprimidas, todos os enigmas são resolvidos”76. Por mais que a arte ganhe

relevância para os primeiros românticos, ela não seria capaz, como nada seria, de

apaziguar definitivamente as cisões da existência (trágica) do homem.

Tudo “isso implica, sem dúvida, deslocar a ênfase, no estudo do idealismo

alemão, para os primeiros anos de sua elaboração (1794-1800); mas não se trata

tanto de buscar circunscrever aquilo que em Hölderlin pode haver contribuído

para a gênese desse idealismo”, afirmou Jean-François Courtine, “quanto de tentar

avaliar a originalidade e a pertinência da crítica hölderliniana, tal como se

manifesta desde o início”77. Podemos dizer o mesmo para os primeiros

românticos. Sua conexão com “a metafísica em vias de acabamento é, por isso,

fundamentalmente ambígua”, como observou Courtine sobre Hölderlin, pois sua

situação “em relação a esse horizonte, muito grosseiramente esboçado, da

metafísica absoluta no limiar de seu acabamento só pode ser determinada de

maneira rigorosa como uma situação de exterioridade ou, em todo caso, de

crescente estranheza”78. Hölderlin não fez parte do primeiro grupo romântico que

se reunia em Iena, mas o que ele escreveu naquela cidade abriu, junto com as

reflexões de Novalis, o horizonte para tal pensamento. Não seria difícil aplicar aos

primeiros românticos o que Heidegger diz ao comparar Hölderlin com Hegel:

76 F. Schelling, “Trecho do Sistema do Idealismo Transcendental”, in Rodrigo Duarte (org.), Obelo autônomo (Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1997), p. 137.77 Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 42,78 Ibid., p. 44, 39.

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estão muito próximos, “com a diferença, porém, de Hegel olhar para trás e fechar

um ciclo, Hölderlin olhar para a frente e abrir outro ciclo”79.

79 Martin Heidegger, Introdução à metafísica (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978), p. 151.

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Dizer o absoluto:

a emergência filosófica da arte

Desde Platão, a arte foi tema caro à filosofia. Nem por isso, contudo, sua

fortuna crítica foi das melhores. Não raro, a filosofia rebaixou a arte, por submetê-

la à exigência cognitiva à qual ela não atendia bem, se comparada à ciência.

Recanto da beleza, mas não da verdade, a arte ficaria, na melhor das hipóteses, em

segundo plano. Kant alterou, já na modernidade, essa história, ao fundar

filosoficamente a autonomia da estética, liberando-a da subordinação à verdade

cognitiva. Mas, Kant pensava antes na beleza natural do que na artificial, ou seja,

antes na estética em sentido amplo do que particularmente na arte. Mesmo assim,

sua contribuição foi decisiva para que, depois, a arte experimentasse valorização

filosófica sem precedentes. Era a época dos românticos e idealistas alemães.

Embora esses fossem próximos uns dos outros, Novalis e Hölderlin, já nas

suas pioneiras reflexões em 1795, expuseram o quanto não desempenharam papel

apenas formador no idealismo, lançando as notas dissonantes que seriam o

preâmbulo do romantismo alemão. Essa situação é complicada porque o léxico do

qual dispunham os primeiros românticos era muito semelhante ao dos idealistas, o

que não ajudou a perceber que sua contribuição, nesse contexto, foi mais crítica

do que afirmativa. É o que ocorre com o conceito central de intuição intelectual.

Hölderlin desejava compreender o fundo da “separação original do objeto e

sujeito”, que é “mais intimamente unido na intuição intelectual”1. Esse fundo é o

ser absoluto sempre buscado pela filosofia e “porque é unidade originária do

sujeito e do objeto, ele não pode ser caracterizado senão com o auxílio desse

conceito-limite de todo conhecimento, no pós-kantismo, o conceito de intuição

intelectual”2, notou Jean-François Courtine. Mas o que é a intuição intelectual?

1 F. Hölderlin, “Juízo e Ser”, apud Antonio Cícero, “O destino do homem”, in Adauto Novaes(org.), Poetas que pensaram o mundo (São Paulo, Companhia das Letras, 2005) p. 235.2 Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 86.

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No idealismo de Fichte, “eu sou essa intuição, e pura e simplesmente mais

nada, e essa intuição mesma sou eu”3. Sua estratégia era fazer com que o “eu”, ao

pensar a si mesmo, experimentasse estar tanto no lugar do sujeito, já que está

pensando, quanto no lugar do objeto, já que o que ele pensa é ele mesmo – assim

chegaríamos ao ser absoluto e sem divisão. Para Hölderlin, porém, com essa

atividade da autoconsciência ficamos presos na separação dicotômica, já que o

suposto mesmo “eu” que pensa e é pensado, na verdade, não é o mesmo: ele é, de

um lado, o sujeito que pensa e, de outro lado, o objeto pensado, como convém à

forma do juízo cognitivo, na qual a intuição do absoluto não seria viável. Dieter

Henrich notou que não é possível “alcançar a completa reunificação daquilo que

foi separado”, já que não há “caminho de retorno ao ‘ser’ indiferenciado desde

que a mente se originou”, pois “isso significaria a mente superar sua própria

natureza”4. Não adiantaria, então, a “egoidade” que Fichte buscara. Estaria, assim,

o ser absoluto fora de alcance, completamente interditado? Não, pois, para

Hölderlin, “pode falar-se de um ser de modo absoluto, como é o caso ao se dar a

intuição intelectual”5. Este ser, porém, não seria dado no “eu” e sim, como

veremos, no âmbito da arte, exigindo sentido estético.

*

É provável que a noção de intuição intelectual empregada por Hölderlin

tenha surgido nas conversas com seu amigo Schelling, o mais importante

discípulo de Fichte. Já em 1795, no âmbito da filosofia pós-kantiana, Schelling

dizia: “somente por termos saído do absoluto surge o conflito com ele, e somente

por esse conflito originário do próprio espírito humano surge a controvérsia dos

filósofos”6. Se não estivéssemos exilados do absoluto, não haveria discordâncias

sobre ele. É só porque não o temos, que o buscamos. Logo, “se alguma vez (…) o

homem lograsse deixar esse domínio ao qual foi conduzido pelo exílio do

3 J. G. Fichte, “O Princípio da Doutrina-da-Ciência”, in Escritos filosóficos (São Paulo, AbrilCultural, 1973), p. 45.4 Dieter Henrich, Between Kant and Hegel (Cambridge, Harvard University Press, 2003), p. 293.5 F. Hölderlin, “Juízo e Ser”, apud Antonio Cícero, “O destino do homem”, in Adauto Novaes(org.), Poetas que pensaram o mundo (São Paulo, Companhia das Letras, 2005), p. 235.6 F. Schelling, “Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo”, in Escritos filosóficos (SãoPaulo, Abril Cultural, 1973), p. 184.

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absoluto, cessaria toda filosofia e aquele domínio”, afirma Schelling, “pois ele só

surge por aquele conflito e só tem realidade enquanto ele perdura”7.

Porém, o fito do idealismo, em geral, foi conciliar essas controvérsias e

produzir o saber do absoluto. Sua esperança de síntese, contudo, dependia da

cisão, para que tivesse o que sintetizar: “a condição da síntese é o conflito em

geral, e aliás, precisamente o conflito entre o sujeito e o objeto”8, disse Schelling.

Este conflito aparecia já que, segundo Kant, não teríamos intuição intelectual,

logo, nossa relação com o mundo estaria mediada por conceitos do entendimento

que estruturariam os dados recebidos na sensibilidade, interditando o aceso às

coisas em si mesmas, que só chegariam a nós filtradas por nossa estrutura

subjetiva geral. Nossa comunhão com o mundo, portanto, ficara proibida.

Quanto mais afastado de mim está o mundo, quanto mais intermediários eucoloco entre ele e mim, tanto mais limitada é minha intuição dele, tanto maisimpossível aquele abandono ao mundo, aquela aproximação mútua, aquelesucumbir em luta de ambos os lados (o princípio da beleza). A verdadeira arte, ouantes o theion, o que é divino na arte, é um princípio interior (…). Perdemos esseprincípio interior quando perdemos a intuição intelectual do mundo, que surgepela unificação instantânea dos dois princípios conflitantes em nós.9

Schelling coloca a hipótese de que, se a intuição intelectual no

conhecimento não ocorre, como já dizia Kant, ela poderia se dar esteticamente, na

beleza, pois aí não é mais necessária a objetividade cognitiva. Fora da relação

entre sujeito e objeto, que estrutura o conhecimento, o absoluto deixa de estar

proibido, pois abandona a cisão dessa relação dicotômica, logo, dividida – não

absoluta. “Essa intuição intelectual se introduz, então, quando deixamos de ser

objeto para nós mesmos”10, afirmou Schelling, contrapondo-se à esperança de

Fichte de que, ao me tornar objeto para mim mesmo no pensamento, pudesse

alcançar a reconciliação absoluta pelo saber da autoconsciência. É nessa fissura

que entra a estética. “Segundo Schelling, a arte entra em ação quando o saber

desampara os homens”11, afirmou depois Adorno. Era a emergência filosófica da

arte. Ela aparece como forma de buscar o absoluto na lida com a tensão de forças

contraditórias e, aparentemente, sem conciliação. Sujeito e objeto, liberdade e

7 Ibid., p. 184.8 Ibid., p. 186.9 Ibid., p. 180.10 Ibid., p. 198.11 Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento (Rio de Janeiro, Jorge Zahar,1985), p. 32.

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necessidade, espírito e natureza ou consciência e inconsciência foram alguns dos

modos de falar dessas forças em combate.

Por isso, Peter Szondi afirmou: “desde Aristóteles há uma poética da

tragédia; apenas desde Schelling, uma filosofia do trágico”12. Schelling

encontrava, nessa clássica forma de arte grega, o exemplo emblemático do

“conflito da liberdade humana com a potência do mundo objetivo”13 que marcava

a modernidade. Porém, “liberdade e submissão, mesmo a tragédia grega não podia

harmonizar”14, diz ele. Essa imagem do conflito trágico que não se soluciona

aproxima o jovem Schelling dos primeiros românticos, como Friedrich Schlegel, e

o mantém, nesta altura, ligado a Hölderlin.

Só que, como mostrou Artuto Leyte Coello, Schelling, ao contrário de

Hölderlin, abandona esta filosofia ligada ao papel da tragédia, ainda que não para

recusar a arte, mas sim para lhe atribuir papel mais acorde com a tradição da

filosofia moderna, que não pode em geral ficar detida em sua mera constituição

como tragédia. Essa tradição filosófica moderna, insiste o comentador, precisa

entrar na solução desse antagonismo para alcançar uma noção de absoluto que não

só se encontre além do antagonismo, mas que o explique. “E que, no fim das

contas, desative-o”15. Durante sua maturidade, Schelling parece abandonar,

progressivamente, a concepção filosofia e da arte na chave da tragédia, em prol da

reconciliação harmônica. Mesmo na sua juventude, ainda em 1795, os sinais dessa

perspectiva já existiam. Em sua tentativa de resolver a duplicação do “eu” na

atividade da autoconsciência em sujeito que pensa e objeto pensado, como

descrevera Fichte, Schelling conclui, falando sobre a intuição intelectual na arte,

que, assim, “retirado em si mesmo, o eu que intui é idêntico ao eu intuído”16. É

por isso que “o propósito de Hölderlin é precisamente distinguir, contra Fichte e

contra Schelling, o ser no sentido próprio e a identidade pretensamente i-

mediata”, como mostrou Jean-François Courtine, concluindo que “o ser está

portanto, ousamos dizer, para além da identidade”17.

12 Peter Szondi, Ensaio sobre o trágico (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004), p. 23.13 F. Schelling, “Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo”, in Escritos filosóficos (SãoPaulo, Abril Cultural, 1973), p. 208.14 Ibid., p. 208.15 Arturo Leyte Coello, “Arte e sistema”, in As filosofias de Schelling (Belo Horizonte, Ed.UFMG, 2005), p. 29.16 F. Schelling, “Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo”, in Escritos filosóficos (SãoPaulo, Abril Cultural, 1973), p. 198.17 Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 62, 86.

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Mesmo assim, importa que Schelling deslocara a intuição intelectual para

o âmbito estético, pois, como frisou Benjamin, “no sentido primeiro romântico, o

ponto central da reflexão é a arte e não o Eu”18. Saía-se, então, do caráter egóico

da reflexão proposta por Fichte, como Schelling deixa claro mais tarde, em 1801,

ao pensar a arte como “órgão da filosofia”. É a obra de arte, enquanto produto

concreto no mundo, a realização da intuição intelectual. “Esta objetividade da

intuição intelectual (…) é a própria arte”, diz Schelling, “pois a intuição estética é

justamente a intuição intelectual que se tornou objetiva”19. Nessa altura, vale

dizer, ele já abandonara a manutenção da tensão da tragédia, o que o afasta dos

primeiros românticos. Supõe encontrar o “absoluto que contém o fundamento

geral da harmonia pré-estabelecida entre o consciente e o não-consciente”20.

Porém, como permanece a convicção de que “a arte é a única e eterna revelação

que existe, e o milagre que, mesmo que só tivesse existido uma vez, teria de

convencer-nos da realidade daquele supremo”21, não se pode falar de

distanciamento completo dos primeiros românticos.

*

Em carta a Schiller de 1795, Hölderlin escrevia que, através dos juízos

filosóficos, não alcançaríamos a intuição intelectual e, portanto, o ser absoluto,

ficando presos na separação entre sujeito e objeto. No âmbito da teoria, nossa

relação com o ser “só é possível por meio de uma aproximação infinita tal como a

aproximação do quadrado ao círculo”22, afirma Hölderlin. Novalis escreveu quase

o mesmo na mesma época: “toda procura por um princípio único seria como a

tentativa de enquadrar o círculo”23. Nos dois casos, a teoria tradicional com a

pureza de sua prosa conceitual, por si só, não seria capaz de chegar ao ser

absoluto, pois tanto um quanto outro consideravam a natureza deste ser dotada de

18 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 48.19 F. Schelling, “Trecho do Sistema do Idealismo Transcendental”, in Rodrigo Duarte (org.), Obelo autônomo (Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1997), p. 145.20 Ibid., p. 138.21 Ibid., p. 139.22 F. Höldelrin, “Cartas”, in Reflexões (Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994), p. 112.23 Novalis, “Fichte Studien”, in Novalis Schriften, v. 2. (Stuttgart, Kohlhammer Verlag, 1960), #566.

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certa opacidade frente à pretensão de esclarecimento filosófico completo que, em

geral, eles testemunhavam no âmbito do conhecimento.

Mas, ainda na carta a Schiller, Hölderlin dá certa pista decisiva sobre o

que pensava ser a possibilidade de contato com o ser. Ele dizia que esse contato

“só é possível, esteticamente, na intuição intelectual”24. Somente pelo caráter

estético da intuição, ela poderia ser intelectual. Somente pelo caráter estético do

intelecto, ele poderia ser intuitivo. Todas as indicações são claras: a filosofia,

enquanto simples teoria, não basta para chegar ao ser. Seria preciso mais. Seria

preciso sentido estético, como antecipara Schelling. É o que afirma outra carta de

Hölderlin, já de 1796.

Busco encontrar o princípio esclarecedor das separações pelas quais pensamos eexistimos e permita o desaparecimento do antagonismo entre sujeito e objeto,entre o nosso si mesmo e o mundo, sim, entre razão e revelação, teoricamente, naintuição intelectual (…). Para tanto, necessitamos de sentido estético.25

Numa carta do ano anterior, Hölderlin já confessara a Hegel o que lhe

interessava em Kant: “tento, especialmente, familiarizar-me com a parte estética

da filosofia crítica”26. Era a estética que emergia como dimensão privilegiada de

acesso ao ser na modernidade romântica, que seguia assim a sugestão de Kant,

pois ele já buscara, na estética, o fundamento comum das dualidades que seu

projeto crítico consolidara. Só no sentido estético, sem a dicotomia de sujeito e

objeto dos juízos de conhecimento, poderia se dar a intuição intelectual do ser.

Para falar sobre ele, seria preciso certo tipo de discurso fora do âmbito cognitivo

estrito, já que este se dá na dualidade estabelecida por sujeito (que conhece) e

objeto (conhecido). Foi o que atraiu desde Schelling e os primeiros românticos até

Kant na Crítica da faculdade do juízo para a estética. Parecia que ali surgia

alguma esfera na qual o que não pode ser provado como fato verificável pode ser,

entretanto, articulado. Foi a tarefa de dizer o absoluto, portanto, que provocou a

emergência filosófica da arte. É que o próprio absoluto, para os primeiros autores

fundamentais do romantismo alemão, não poderia ser, a rigor, provado, já que

precisar de prova já aponta para a necessidade de alguma condição e o absoluto,

24 F. Höldelrin, “Cartas”, in Reflexões (Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994), p. 111-112.25 Ibid., p. 113.26 F. Hölderlin, Correspondencia completa (Madrid, Hipérion, 1990), p. 199.

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por sua vez, deve ser incondicionado, “independentemente de toda causalidade

objetiva”27, como escreveu Schelling.

Novalis definira a filosofia como busca infinita: o fundamento que procura

não lhe é dado por completo. Hölderlin, em carta a Schiller na mesma época,

dizia: “busco desenvolver a idéia de um progresso infinito da filosofia”28. Mais

tarde, no coração do romantismo alemão, Friedrich Schlegel afirmou que “a

intuição intelectual é o imperativo categórico da teoria”29. Ironicamente,

deslocava, com isso, o que Kant colocara no centro de sua moral, a saber, o

imperativo categórico, para a teoria, fazendo com que o conhecimento do ser

ficasse sob a égide do dever ser, como tarefa infinita. “Desde que esta apreensão,

este modo de ‘intuição intelectual’, não pode, em si, ser articulada judicativa ou

proposicionalmente, ela só pode ser aludida indiretamente”30, afirmou Terry

Pinkard. Foi a arte, em geral, o modo de dizer com caráter alusivo que se prestou,

então, a esta aproximação, via intuição intelectual estética, do absoluto, motivo

pelo qual ela se tornou o centro do pensamento romântico. Entretanto, como se

trava apenas de alusão e de aproximação, esse contato com o absoluto ficaria, no

máximo, dentro do âmbito do que Kant concebera como “progresso que avança ao

infinito”31, por oposição à pretensão de Hegel da consumação final deste processo

no saber absoluto.

*

Por ser refratário à absorção pelo homem, o absoluto o joga no progresso

infinito da filosofia, sem termo final. Para trilhá-lo, a filosofia precisa angariar

modos de falar capazes de aludir àquilo que, por si, não se deixa conceituar. Logo,

a natureza do discurso da filosofia tradicional não atenderia às exigências de

consideração do absoluto. Foi dessa dificuldade que surgiu o primeiro romantismo

alemão, bem como sua necessidade de relacionar a arte à filosofia, mais do que de

apenas ter na arte seu objeto preferencial. “Existe, portanto, uma tensão essencial 27 F. Schelling, “Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo”, in Escritos filosóficos (SãoPaulo, Abril Cultural, 1973), p. 198.28 F. Höldelrin, “Cartas”, in Reflexões (Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994), p. 111.29 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 58 (Athenäum,Fr. 76).30 Terry Pinkard, German Philosophy 1760-1860: the legacy of Idealism (Cambridge, CambridgeUniversity Press, 2002), p. 140.31 I. Kant, Crítica da razão prática (São Paulo, Martins Fontes, 2002), p. 198 (A 221).

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no pensamento idealista e romântico que reside na nada fácil coexistência do

desejo (idealista) de poder dizer o que está pensando que é ilimitado, com um

sentido (romântico) que o acompanha de impossibilidade de dizê-lo”32, comentou

Andrew Bowie. Esta ausência de possibilidade tornava questionável, então, a

empreitada filosófica de alcançar o absoluto pela forma já conhecida. E esta seria

a explicação para a fixação romântica à arte, que derivaria, assim, da necessidade

de responder àquela tensão. Portanto, o caráter não objetivo, mas também não

subjetivo, do ser absoluto deixava a pretendida linguagem puramente conceitual

da filosofia em apuros.

Na medida em que o problema surgira, para os românticos, no diálogo

com o projeto idealista, não é demais dizer que, embora Fichte tenha escrito

pouco sobre arte, o significado de sua filosofia para a estética posterior

dificilmente pode ser superestimado. Mesmo que Fichte não tenha concretamente

aberto sua filosofia à arte, os problemas por ele colocados contribuíram nessa

direção. Portanto, “ao propor uma nova equiparação entre reflexão filosófica e

reflexão originária, entre forma e matéria, sujeito e objeto da filosofia, o

romantismo está na verdade tentando contornar algumas das dificuldades

inerentes à exposição da doutrina-da-ciência, aliás já previstas pelo seu autor”33,

asseverou Márcio Suzuki, referindo-se à grande obra de Fichte. Não desejavam,

enfim, os românticos, nas palavras de Novalis, “fichtizar”34? Porém, ao fazerem

isso, descobriram mais do que o próprio Fichte. Foi o que percebeu Benjamin,

quando estudou a influência de Fichte no romantismo.

Aqui vem ao caso notar exatamente até onde os primeiros românticos seguemFichte, para identificar com clareza onde eles se separam dele. Tal local deseparação deixa-se fixar filosoficamente, não pode ser pura e simplesmentedesignado e fundamentado pelo afastamento que o artista toma com relação aopensador científico. Pois também nos românticos encontram-se na base destaseparação motivos filosóficos.35

Por isso, ainda segundo Benjamin, a arte, para os românticos, não é o

contato intuitivo sem intelecção, já que “a reflexão se expressa de modo supremo

32 Andrew Bowie, Aesthetics and subjectivity: from Kant to Nietzsche (Manchester, ManchesterUniversity Press, 2003), p. 81.33 Márcio Suzuki, O gênio romântico (São Paulo, Iluminuras, 1998), p. 100-101.34 Novalis, “Fragmentos logológicos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 111.35 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 30.

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enquanto princípio da arte”36. É daí que emerge o peso da arte para a filosofia.

“Do mesmo modo que Hölderlin, Novalis achou na poesia uma capacidade

expressiva maior do que a filosofia pode reunir”, pois “a poesia é capaz de

mostrar a intangibilidade do absoluto”37, notou Charles Larmore. Talvez isso

explique que ambos tenham se dedicado a poetar, como se aquela fosse a

linguagem mais adequada à natureza do absoluto que perseguiam. Friedrich

Schlegel, por sua vez, considerava “a arte como o cerne da humanidade”38. Em

suma, a emergência ontológica da arte deveu-se ao desafio de dizer o absoluto.

Entretanto, a migração da filosofia à poesia não alcança o sentido do

primeiro romantismo, e provavelmente obscurece a compreensão até de seus

poemas. Por isso, Hölderlin falava de “sentido estético”: ele poderia estar presente

inclusive na filosofia. Logo, não seria preciso abandoná-la, como não fizeram

Hölderlin e Novalis. Seria preciso, antes, encará-la de outra maneira, com o

sentido estético que, em geral, a tradição lhe negou. É que “com essa mudança de

registro, pensam os românticos, a própria filosofia só teria a ganhar, pois poderia

então se desfazer de seu aparato técnico e readquirir as cores de uma apresentação

realmente ‘viva’”39, observou Márcio Suzuki. Essa filosofia voltava-se para a arte

não só como tema de pesquisa, mas como aquilo de que deveria impregnar-se.

Seria preciso que a filosofia fosse também poética, o que não quer dizer escrever

em versos ou coisa que o valha, mas apenas levar em conta a sua forma, enquanto

escrita.

*

No seminal e hoje famoso texto de 1796 conhecido como “Mais antigo

programa de sistema do idealismo alemão”, está escrito que “a poesia recebe

assim uma dignidade maior, torna-se ao final o que era no início: educadora da

humanidade, pois não há mais filosofia”40. Nessas idéias envoltas em ar

romântico, de autoria dos jovens seminaristas Hölderlin, Schelling e Hegel, 36 Ibid., p. 108.37 Charles Larmore, “Hölderlin and Novalis”, in Karl Ameriks (ed.), The Cambridge Companionto German Idealism (Cambridge, Cambridge University Press, 2005), p. 155.38 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 534.39 Marcio Suzuki, O gênio romântico (São Paulo, Iluminuras, 1998), p. 100-101.40 F. Hölderlin, “Esboço (O mais antigo programa de sistema do idealismo alemão)”, in KathrinRosenfield (org.), Filosofia & Literatura: o trágico (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001), p. 173.

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costuma-se ver a apologia da poesia sobre a filosofia. Esquece-se, porém, que

antes dessa afirmação estava escrito: “o filósofo deve ter a mesma potência

estética que o poeta”41. Só nessa medida a poesia pode ser mestra da humanidade,

não porque a filosofia acabe, mas porque ela mesma torna-se poética. Por isso, o

caráter poético dos textos filosóficos do romantismo não se explica pelo luxo

retórico ou pela falta de vocação para a rigidez sistemática, ainda que,

biograficamente, esta existisse, como confessou Friedrich Schlegel. Trata-se,

antes, da atenção ao modo de acesso requerido pelo ser do absoluto.

Essa atenção complicara-se porque a ânsia de liberdade absoluta pedia ao

homem que ele se colocasse acima de todas as coisas, já que estas poderiam

limitar tal liberdade ao se imporem sobre ele. Só que, fazendo assim, perdia-se, ao

mesmo tempo, a comunhão absoluta com estas mesmas coisas, forçando à

situação de divisão que, por definição, não é absoluta. Portanto, como afirmar a

liberdade sem exilar-se da sensibilidade? Kant, ao tratar do problema da moral,

agravou a pergunta, visto que exigia a superação, pela vontade livre, dos desejos,

das compaixões, das inclinações. Mesmo ao tratar do problema do conhecimento,

Kant já subordinara a passividade receptiva da sensibilidade à atividade do

entendimento e de seus conceitos. Legara, assim, o rigoroso dualismo ao qual a

geração seguinte, e não apenas os românticos, buscou responder.

Essa resposta foi dada, sobretudo, através da arte. Schiller, por exemplo,

achava que “liberdade no fenômeno é o mesmo que beleza”42. Buscava, com isso,

não atrelar as sensações fenomênicas exclusivamente às necessidades naturais que

castram a liberdade do homem. Esteticamente, esses dois domínios não

precisariam estar em luta mortal um com o outro, pois a liberdade poderia se dar

sem prejuízo da sensibilidade, ao contrário do dualismo de Kant. Na estética,

como vira o próprio Kant, a sensibilidade não precisaria ser negada para afirmar a

liberdade, a imaginação não se subordina ao intelecto. Pode, aqui, haver “livre

jogo”, dizia a estética de Kant, com caráter “lúdico”, como explica Schiller.

Também no amor, a liberdade não nos tira das coisas, mas nos deixa nelas

estar. “Hölderlin acredita que a possibilidade de interpretar o amor é uma das

maiores conquistas de seu novo sistema – amor como manifestação e realização

da liberdade”, afirma Dieter Henrich, completando que, para ele, “a liberdade

41 Ibid., p. 173.42 F. Schiller, Kallias ou sobre a beleza (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002), p. 82.

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pode legitimamente se render à beleza”43. Tanto no amor quanto na estética, a

liberdade subjetiva da razão humana não toma a necessidade objetiva da natureza

sensível como sua inimiga.

Por isso, o poeta português Luís de Camões, admirado e traduzido pelos

primeiros românticos alemães, afirmava que amor “é um cuidar que ganha em se

perder; é querer estar preso por vontade”44. Estar preso, no amor, não nega a

liberdade da vontade, mas, pelo contrário, é seu ato. Estar submetido, ao outro ou

ao mundo, não aparece, então, como aniquilamento da liberdade, mas como prova

de que ela pode não apenas se impor, mas também acolher. No amor, a dualidade

entre sujeito e objeto, entre a razão e a sensibilidade ou entre o espírito e a carne

pode achar no conflito a maneira de certa aproximação, e não só de

distanciamento – assim como com a filosofia e a arte. Não se trata de resolver a

contradição, como queria Hegel, mas de aceitá-la na sua tensão, pois os primeiros

românticos, seguindo as trilhas abertas por Hölderlin e Novalis, fizeram o “elogio

de um procedimento e de um pensamento mais pacientes, abertos à possível

correlação entre a plenitude a indigência”45, conforme certa vez disse Jean-

François Courtine. Tendo isso em vista, os primeiros românticos não precisaram

optar pela filosofia ou pela arte, podendo colocá-las, amorosamente, em relação.

Sendo assim, o amor, que promove a junção do que ficara separado e nos

deixara no exílio, não nos devolve o absoluto em sua perfeição. Porém, nos salva

de apenas padecer neste exílio sem mais. Sim, pois “deveríamos perecer no

conflito dessas pulsões antagônicas”, comenta Hölderlin. “Mas o amor as reúne”,

afirma, pois “tende infinitamente ao que há de mais elevado e melhor, pois seu pai

é a plenitude, mas ele não renega sua mãe, a indigência”46. É clara, aqui, a

influência de Platão, para quem Eros “descende de um pai sábio e rico em

expedientes, e de mãe nada inteligente e de acanhados recursos”47. Por conta

disso, o amor, segundo Hölderlin, apenas tende ao infinito: seu pai é a plenitude,

mas sua mãe não o abandona e o joga, novamente, na indigência. Segundo

Platão, “o que adquire hoje, perde amanhã, de forma que Eros nunca é rico nem

43 Dieter Henrich, Between Kant and Hegel (Cambridge, Harvard University Press, 2003), p. 294.44 Luis de Camões, Obra completa (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2005), p. 270.45 Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 78.46 F. Hölderlin, apud Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34,2006), p. 81.47 Platão, “O Banquete”, in O Banquete – Apologia de Sócrates (Belém, EDUFPA, 2001), p. 66(204b).

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pobre e se encontra sempre a meio caminho da sabedoria e da ignorância”48. Para

Hölderlin, “amar assim é humano”49.

Filosofar assim também. “E a razão é a seguinte: nenhum dos deuses se

dedica à filosofia nem deseja ficar sábio – pois isso ele já é”50, explicava

antecipadamente Platão. Filosofia é amor, “filos”, amor pelo saber, pelo absoluto.

Mas aqueles que filosofam não são, eles mesmos, sábios, ou nem desejariam o

saber. Portanto, se “aquilo que amamos é, realmente, belo, delicado, perfeito e

bem-aventurado”, continua Platão51, “porém o amante é de natureza muito

diferente”52. Friedrich Schlegel, sublinhado a negatividade dessa relação, dizia:

“pode-se amar intimamente algo, justamente porque a gente não o possui”53. Ele

tinha em mente, como Hölderlin, a filosofia de Platão, já que, “como o eros

platônico, esse sentido negativo é, portanto, filho da abundância e da penúria”54.

Essa relação entre o absoluto e o homem que, ao buscá-lo esteticamente

porque o ama, está dele desprovido foi exposta por Hölderlin no prefácio à

penúltima edição do Hipérion. Ela define o que David Farrell Krell, comentando

autores como Novalis e o próprio Hölderlin, chamou de “absoluto trágico”55, o

que se aplicaria, provavelmente, a todo o primeiro grupo romântico alemão.

A unidade da alma, o ser no único sentido da palavra, está perdida para nós, e seera para desejá-la, conquistá-la, tínhamos de perdê-la. Subtraímo-nos ao pacíficoHen kai Pan [Tudo é um] do mundo para restabelecê-lo por nós mesmos.Rompemos com a Natureza, e o que era há pouco, ao que se pode crer, Uno,agora se faz contradição; soberania e servidão alternam-se de ambos os lados.Com freqüência, parece-nos que o mundo é tudo e que não somos nada, mas comfreqüência também que somos tudo, e o mundo nada… Pôr fim a esse combateentre nós e o mundo, restabelecer a mais pura paz, que ultrapassa toda razão,unirmo-nos à Natureza em um Todo infinito, tal é a meta de todas as nossasaspirações, quer nos entendamos ou não sobre isso. – Mas nem nosso saber nemnossa ação alcançarão em qualquer período da existência esse ponto em que éabolida toda contradição, em que tudo é uno: a linha definida não se confunde

48 Ibid., p. 66 (204a).49 F. Hölderlin, apud Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34,2006), p. 81.50 Platão, “O Banquete”, in O Banquete – Apologia de Sócrates (Belém, EDUFPA, 2001), p. 66(204c).51 É claro que, aqui, não se tratava da famosa expulsão dos artistas que Platão descreveu naRepública, mas da suprema posição que a beleza ocupa em tantos outros diálogos, como noBanquete e no Fedro.52 Platão, “O Banquete”, in O Banquete – Apologia de Sócrates (Belém, EDUFPA, 2001), p. 66-67(204c).53 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 31 (Lyceum, Fr.68).54 Ibid., p. 31 (Lyceum, Fr. 68).55 David Farrell Krell, The tragic absolute (Indianapolis, Indiana University Press, 2005).

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com a linha indefinida senão numa infinita aproximação. – Não teríamosnenhuma idéia dessa paz infinita, desse ser único no sentido da palavra, nãoaspiraríamos de modo algum a nos unirmos à natureza, não pensaríamos nemagiríamos, não haveria absolutamente nada (para nós), não seríamos nós mesmosnada (para nós), se essa união infinita, se esse ser único no sentido da palavra,não existisse. Ele existe – como Beleza; para falar com Hipérion, um novo reinonos espera, no qual a Beleza será rainha. – Creio que no fim exclamaremos todos:Santo Platão, perdoa-nos! pecamos gravemente contra ti!56

56 F. Hölderlin, apud Jean-François Courtine, A tragédia e o tempo da história (São Paulo, Ed. 34,2006), p. 89-90.

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Modernidade na arte:

poesia transcendental e nova mitologia

“Seja como for, o fato é que a arte não mais proporciona aquela satisfação

das necessidades espirituais que épocas e povos do passado nela procuravam e só

nela encontraram”1. Essas palavras de Hegel delimitaram o que, até hoje, chama-

se de morte da arte. Escrevendo no início do século XIX, Hegel não achava que

novas obras de arte não fossem ser produzidas. Mas achava, sim, que elas não

seriam a expressão privilegiada da verdade do espírito na época moderna. Seu

diagnóstico é essencialmente histórico: “os belos dias da arte grega assim como a

época de ouro da Baixa Idade Média passaram”2. Hegel não tem em vista,

primordialmente, dizer que a arte do passado é superior à do presente. Seu

objetivo é mostrar que o presente moderno não lida com a arte do mesmo jeito

que a antiguidade clássica. “Hoje, além da fruição imediata, as obras de arte

também suscitam em nós o juízo, na medida em que submetemos à nossa

consideração pensante o conteúdo e o meio de exposição da obra de arte”3. É esta

submissão que Hegel destaca, pois a beleza da arte não passaria mais às nossas

vidas sem o crivo da reflexão. Ele conclui, então, que “a ciência da arte é, pois,

em nossa época muito mais necessária do que em épocas na qual a arte por si só,

enquanto arte, proporcionava plena satisfação”4. Não é, a rigor, a arte que

preocupa Hegel, mas sim a filosofia da arte, pois a arte, como determinação

superior da verdade, pertence ao passado, enquanto a filosofia da arte, esta sim,

pertence ao presente: “o pensamento e a reflexão sobrepujaram a bela arte”5.

Hegel, como a maioria de seus contemporâneos, enxergava a modernidade

nascente como a emergência do poder do pensamento reflexivo no homem. E a

arte, apegada à beleza sensível, não faria parte deste progresso, ficando para trás.

1 F. W. G. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 35.2 Ibid., p. 35.3 Ibid., p. 35.4 Ibid., p. 35.5 Ibid., p. 34.

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Diríamos que as condições de recepção não mais permitiam que as obras de arte

desempenhassem o papel de outrora.

Hegel, porém, não subestimava a arte. Pelo contrário, parecia ter

verdadeira estima por ela. Só que, por isso mesmo, não se contentava em afirmar

sua presença secundária no mundo e assistir seu declínio como centro da vida

coletiva do homem. Se a arte “perdeu para nós a autêntica verdade e vitalidade”6,

como ele achava, o melhor seria compreender este processo. Pois as obras de arte

modernas, diz ele, não despertam o efeito das antigas: “a impressão que elas

provocam é de natureza reflexiva e o que suscitam em nós necessita ainda de uma

pedra de toque superior”7. Esta pedra de toque superior era a filosofia. Mas ela

não poderia conviver com a arte. Deveria, antes, compreendê-la conceitualmente

e, assim, superá-la, ainda que a conservando no processo reflexivo que leva a

cabo a retrospecção de toda a história do espírito do mundo. Para Hegel, a

modernidade é a época da filosofia, enquanto a antiguidade foi a época da arte.

Daí seu famoso veredicto: “a arte é e permanecerá para nós, do ponto de vista de

sua destinação suprema, algo do passado”8.

Nem todos, porém, pensavam como Hegel. Basta lembrar do caso de

Schiller. Ele, no final do século XVIII, já expunha a transformação da situação da

arte na modernidade em termos parecidos com os que Hegel empregaria depois,

mas com conclusões bem diferentes. Schiller comparava os poetas antigos e

modernos, afirmando que “aqueles nos comovem pela natureza, pela verdade

sensível, pela presença viva; estes nos comovem pelas idéias”9. Ele dizia que,

entre os primeiros, predominava o estilo “ingênuo”, enquanto, entre os segundos,

o estilo “sentimental”. Enquanto os ingênuos podem sê-lo porque desfrutam da

comunhão direta com a natureza à sua volta, os sentimentais o são pois a reflexão

media sua relação com o ser em geral. Embora os sentimentais comovam, não o

fazem acolhendo com tranqüilidade, simplicidade ou desenvoltura e expondo, do

mesmo modo, aquilo que foi acolhido. Neles, “involuntariamente, a fantasia se

antecipa à intuição, o pensamento à sensação, e fecham-se olhos e ouvidos para se

imergir completamente em si”, pois aí “a mente não pode suportar nenhuma

impressão sem ao mesmo tempo assistir a seu próprio jogo e pôr diante e fora de

6 Ibid., p. 35.7 Ibid., p. 34.8 Ibid., p. 35.9 F. Schiller, Poesia ingênua e sentimental (São Paulo, Iluminuras, 1991), p. 61.

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si, mediante reflexão, aquilo que tem em si”10. Essa situação define o problema da

criação poética moderna. Nela, “jamais alcançamos o objeto, mas apenas o que o

entendimento reflexionante do poeta fez do objeto, e mesmo quando o próprio

poeta é esse objeto, quando quer nos exprimir suas sensações”, completa Schiller,

“não experimentamos imediatamente e em primeira mão o seu estado, mas como

se reflete em sua mente, aquilo que pensou sobre tal estado como espectador de si

mesmo”11. Era a arte que se tornava crítica de si mesma.

Marca a criação moderna a autocrítica de suas obras, que não mais

usufruem diretamente da natureza. Em suma, os modernos separaram-se da

“chama que alimenta o espírito poético”: a natureza. “Entre nós, a natureza

desapareceu da humanidade”12, afirma Schiller. Tornamo-nos, assim, a cultura

separada da natureza. Schiller pergunta-se, então, “o que teriam por si mesmos de

tão aprazível para nós uma flor singela, uma fonte, uma rocha musgosa, o gorjeio

dos pássaros, o zumbidos das abelhas”, a princípio sem saber o que “poderia dar-

lhes um direito ao nosso amor”. Mas ele responde: “neles amamos a vida

silenciosamente geradora, o tranqüilo atuar por si mesmos, o ser segundo leis

próprias, a necessidade interna, a eterna unidade consigo mesmos”13. Estaríamos,

então, diante da suposta perfeição passada da “idade de ouro” dos gregos? Não,

pois “essa perfeição não é mérito seu, porque não é obra de sua escolha”14. Estes

poetas ingênuos o foram natural e necessariamente. “Nossa cultura deve nos

reconduzir à natureza pelo caminho da razão e da liberdade”15, diz Schiller. Não é

pelo retorno ao passado que o problema da poesia moderna se resolveria, e sim

pela perseguição do ideal no futuro. Este seria, como notou Peter Szondi16, a

síntese dialética na qual o sentimental conquista, através da reflexão livre, aquilo

que o ingênuo tinha apenas pela necessidade natural. Schiller chega a dizer que “a

disposição sentimental é o resultado do empenho em restabelecer a sensibilidade

ingênua segundo o conteúdo, mesmo sob as condições da reflexão”17. Schiller,

ainda que destaque o caráter reflexivo da cultura moderna, não fez disso, como

10 Ibid., p. 72.11 Ibid., p. 72.12 Ibid., p. 55.13 Ibid., p. 44.14 Ibid., p. 44.15 Ibid., p. 44.16 Peter Szondi, “Das Naive ist das Sentimentalische”, in Schriften II (Frankfurt, SuhrkampVerlag, 1978), p. 75-76.17 F. Schiller, Poesia ingênua e sentimental (São Paulo, Iluminuras, 1991), p. 88.

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Hegel, a cova da arte como expressão digna do espírito de seu tempo; ao

contrário, enxergava a possibilidade de que a arte, ao se transformar, fornecesse a

verdadeira “educação estética do homem”18.

Essa perspectiva foi decisiva para o primeiro grupo romântico alemão.

Friedrich Schlegel, no prefácio de seu ensaio Sobre o estudo da poesia grega,

sublinha que poderia melhorá-lo se tivesse tido tempo de alterá-lo após ler as

reflexões de Schiller19. Não pôde. Ficou esta observação, que é significativa

porque Schlegel, nesse ensaio escrito antes da formação do grupo romântico,

apresenta a arte moderna, em geral, de forma pejorativa, ao contrário de Schiller.

Faltariam a esta arte, pensa Schlegel, a objetividade e a coesão no todo que

possuía a antiguidade. Em seu lugar, havia a dispersão fragmentada do tipo

subjetivo “interessante”. É possível, como sugeriu Hans-Robert Jauss20, que a

leitura de Schiller tenha dirigido o olhar de Schlegel para a caráter reflexivo da

arte moderna não só como problema mas, paradoxalmente, como oportunidade

para pensar diferentemente os dilemas da criação neste momento histórico. Tanto

que, a partir de então, Schlegel acompanha Schiller, contra o que Hegel diria mais

tarde, na tese de que, se a reflexão é a marca específica da época moderna, ela não

implica a superação da arte pela filosofia.

Na Conversa sobre a poesia, Schlegel afirma que “romântico é justamente

o que nos apresenta um conteúdo sentimental em uma forma da fantasia”21. Seu

vocabulário neste texto, já escrito a partir da experiência no grupo de amigos

formado com o primeiro romantismo alemão, evidencia o quanto Schiller

determinou a virada no seu pensamento. Romântico e sentimental chegam até a

funcionar como sinônimos às vezes. Para tanto, contudo, é preciso, diz ele,

esquecer “o significado corriqueiro e pejorativo da palavra sentimental, em que

por esta denominação se entende quase tudo o que comove de modo trivial, é

lacrimoso e cheio daquele familiar sentimento de honradez”22. Eis a definição de

Schlegel para o termo sentimental: é “o que nos agrada, onde o sentimento

18 F. Schiller, A educação estética do homem (São Paulo, Iluminuras, 1990).19 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 116.20 Hans-Robert Jauss, “Schlegels und Schillers Replik auf die ‘Querelle des anciens et desmodernes’”, in Literaturgeschichte als Provokation (Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1970), p. 160.21 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 65.22 Ibid., p. 65.

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domina, mas aquele sentimento espiritual, não o que provém dos sentidos”23.

Enquanto os sentidos dizem respeito ao contato direto e, portanto, mais objetivo

com as coisas, o espírito, por sua vez, diz respeito à presença do pensamento

reflexivo no acesso ao ser. Espírito é o sentido que vê a si mesmo. Tal situação

marca indelevelmente a arte moderna pelo caráter reflexivo. Hegel achava que,

com isso, a arte já não possuía o esplendor de antes e devia, assim, dar lugar à

filosofia. Segundo Schlegel, a conseqüência da situação é, antes, a aproximação

entre ambas – tese que será a do primeiro romantismo.

*

Para Friedrich Schlegel, a transformação da arte na modernidade

significava seu contato mais próximo com a filosofia. Já o próprio nome que os

primeiros românticos dão a ela evidencia isso. “Há uma poesia cujo um e tudo é a

proporção entre ideal e real e que, portanto, por analogia com a linguagem técnica

filosófica, teria de se chamar poesia transcendental”24. É o termo “transcendental”

que, tomado à filosofia, caracteriza a arte moderna. Precisamos, então,

compreender seu sentido através da discussão colocada por Schlegel da relação

entre o ideal e o real. No tradicional realismo filosófico, supõe-se que o homem

tem acesso ao ser de tudo o que é tal como é, ou seja, a realidade apresenta-se a

ele como é, mesmo que esta apresentação faça-se ao pensamento, e não aos

sentidos. Na modernidade, porém, o ceticismo de Hume colocou sérias suspeitas

sobre essa pretensão, pondo a dúvida no coração da filosofia. Não à toa, Kant

dizia que foi despertado de seu sonho dogmático, ou seja, realista, graças a Hume.

Ele, a partir daí, formulou sua filosofia crítica. Sugeriu que se experimentasse o

contrário do realismo objetivo, mas sem o refúgio cético. Tal crítica consistia em

fazer com que o aparecer dos objetos obedecesse não ao seu puro ser interior, mas

às estruturas daquele para quem o aparecer aparece: o sujeito que todos somos.

Eis o caráter ideal que sustenta a apreensão do real nessa filosofia.

Nesse contexto, o termo “transcendental”, para Kant, designa o recuo

filosófico que não se preocupa tanto com o real como coisa objetiva quanto com

23 Ibid., p. 65.24 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 88 (Athenäum,Fr. 238).

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as condições de possibilidade desse real, com seu fundamento que, no caso,

aparece como sujeito. Nesse sentido específico, a filosofia transcendental

precisava ser crítica ou, melhor, autocrítica, já que se questiona sobre o

fundamento de sua própria compreensão do real, e não apenas sobre o real em si.

Seu movimento é a reflexão, é flexionar-se sobre si mesma. Por isso, os primeiros

românticos apontam a proximidade de Fichte, sua principal referência filosófica, e

Kant: “apenas assim se pode ver e compreender a identidade de sua filosofia com

a kantiana”, afirma Friedrich Schlegel, completando que “principalmente a nova

exposição da doutrina-da-ciência é sempre ao mesmo tempo filosofia e filosofia

da filosofia”25.

Fichte teria seu mérito principal no teor crítico. É filosofia da filosofia. Ela

é reflexiva, coloca em questão antes a forma de conhecer do que o próprio

conhecimento, já que este só é o que é naquela. Segundo Schlegel, “crítico

também é algo que jamais se pode ser o bastante”26. Daí o elogio da radicalização

desse procedimento na filosofia madura de Fichte, “um Kant elevado à segunda

potência”27. Transcendental, então, seria a crítica como autocrítica, segundo os

primeiros românticos, acarretando a centralidade da reflexão. Eles acompanham,

até aí, Kant e, sobretudo, Fichte. Mas, a partir daí, separam-se de ambos, já que

essa reflexão, pensavam, não diz respeito, em primeiro lugar, ao sujeito, e sim à

linguagem. Este será o deslocamento que devemos ter sempre em vista.

Kant afirmava: “chamo de transcendental todo conhecimento que se ocupa

não tanto dos objetos quanto do modo de conhecê-los”28. Se Schlegel o tivesse

parafraseado, provavelmente diria assim: “chamo de transcendental toda poesia

que se ocupa não tanto dos objetos quanto do modo de poetizá-los”. Eis a

transformação da natureza da poesia na época reflexiva que é a modernidade. Seu

centro não é mais o objeto de que trata, e sim a forma como o trata, mesmo que

isso nem sempre apareça explicitamente, como acontece na filosofia de Fichte,

que “não fala muito da forma, porque dela é mestre”29.

25 Ibid., p. 97 (Athenäum, Fr. 281).26 Ibid., p. 97 (Athenäum, Fr. 281).27 Ibid., p. 97 (Athenäum, Fr. 281).28 I. Kant, Crítica da razão pura (São Paulo, Abril Cultural, 1980), p. 33 (B 25). Trad. modificadaa partir de J. Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia (São Paulo, Edições Loyola, 2001), p. 2918.29 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 97 (Athenäum,Fr. 281).

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É claro que o caráter reflexivo não é privilégio absoluto da modernidade,

embora predomine nela. Por isso, o esforço romântico é destacar, a partir do

presente, o passado que estimula a nova poesia, fundando sua própria linha de

descendência na tradição, selecionando experiências poéticas que anteciparam o

caráter moderno, como em Homero, Dante, Petrarca, Boccaccio, Ariosto,

Cervantes ou Shakespeare. Mesmo porque,

assim como se daria pouco valor a uma filosofia transcendental que não fossecrítica, não expusesse o producente com o produto e contivesse ao mesmo tempo,no sistema de pensamentos transcendentais, uma caracterização do pensamentotranscendental: assim também aquela poesia deveria unir, aos materiaistranscendentais e aos exercícios preliminares para uma teoria poética dafaculdade criadora, uns e outros não raros nos poetas modernos, a reflexãoartística e o belo auto-espelhamento que se encontram em Píndaro, nosfragmentos líricos dos gregos e na elegia antiga, mas, entre os modernos, emGoethe, e expor também a si mesma em cada uma de suas exposições e em todaparte ser, ao mesmo tempo, poesia e poesia da poesia.30

Poesia transcendental é a que poetiza a própria poesia, que reflete sobre si.

Logo, ao invés de dar lugar à filosofia, como gostaria Hegel, a arte transforma-se

para agregar a si o caráter que define a época moderna: a reflexão. Ela se dobra

sobre si mesma e, por isso, não expõe apenas o produto, mas também o próprio

processo de produção, que passa a fazer parte do produto. “E no entanto ainda não

há uma forma tão feita para exprimir completamente o espírito do autor: foi assim

que muitos artistas, que também só queriam escrever um romance, expuseram por

acaso a si mesmos”31. Seguindo o exemplo da filosofia transcendental, que deve

tornar-se filosofia da filosofia, a poesia torna-se, ela mesma, poesia da poesia. Em

tudo o que faz, o homem moderno coloca, junto, a consciência que tem de estar

fazendo. Daí a recorrente metáfora romântica do espelho. É como se o artista

moderno, ao escrever ou pintar, ao compor ou construir, enfim, ao fazer sua

atividade, estivesse sempre diante do espelho no qual vê o reflexo do que está

fazendo. Ele, com isso, não pode senão trazer para o que cria este fato: sua

consciência de estar criando. Por isso, o produtor entra no produto, o criador na

obra, o sujeito no objeto. Não se trata de pôr o artista empírico vaidosamente

retratado na obra feita, mas sim de deixar que esta obra carregue consigo a

consciência que ela tem de sua criação, ou seja, seu caráter reflexivo, cuja

30 Ibid., p. 88-89 (Athenäum, Fr. 238).31 Ibid., p. 64 (Athenäum, Fr. 116).

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metáfora é o espelho. Essa poesia, às vezes chamada simplesmente de romântica,

“pode se tornar, como a epopéia, um espelho de todo o mundo circundante, uma

imagem da época” ou, ainda, “oscilar, livre de todo interesse real e ideal, nas asas

da reflexão poética, sempre de novo potenciando e multiplicando essa reflexão,

como numa série infinita de espelhos”32.

*

Fazem parte os primeiros românticos da conquista histórica da

autoconsciência reflexiva e, com isso, da perda da suposta ingenuidade antiga, já

que, como sustentou Gumbrecht, “há um processo de modernização, abrangendo

as décadas em volta de 1800, que gerou um papel de observador que é incapaz de

deixar de se observar ao mesmo tempo em que observa o mundo”33. Essa

transformação epistemológica abarca o poeta moderno. Ele não só faz, mas sabe

que faz. Não apenas cria, sabe que cria. E, com isso, precisa colocar tal saber na

própria criação, já que ele faz parte dela. Essa situação diagnosticada na origem

do romantismo antecipa “a não-ingenuidade a que já, segundo Hegel, não mais se

pode esquivar”34, como disse Adorno mais tarde. Tal processo, em suma, foi a

perda da naturalidade da atitude criativa, que, desde então, tornou-se atividade

crítica de si. Por isso, mesmo quando propostas dos primeiros românticos parecem

querer, de algum modo, resgatar a ingenuidade passada, seu sentido é irônico.

É o caso daquilo que, em especial na esteira da participação de Schelling

no grupo, eles chamaram de “nova mitologia”. Nessa expressão, deve-se sublinhar

a palavra “nova”, talvez até mais do que a palavra “mitologia”, a fim de não

corrermos o risco de, justamente, entendê-la como proposta restauracionista, o

que ela não é. Não se trata de recuperar a velha mitologia, mas de construir a

nova, que, por isso mesmo, não é natural, como a antiga, mas requer certo esforço

consciente de elaboração.

Pois ela nos virá através do caminho inverso da de outrora, que por toda partesurgiu como a primeira floração da fantasia juvenil, diretamente unida e formadacom o mais vivo e mais próximo do mundo dos sentidos. A nova mitologiadeverá, ao contrário, ser elaborada a partir do mais profundo do espírito; terá de

32 Ibid., p. 64 (Athenäum, Fr. 116).33 Hans Ulrich Gumbrecht, Modernização dos sentidos (São Paulo, Ed. 34, 1998), p. 13.34 Theodor Adorno, Teoria estética (Lisboa, Edições 70, 1993), p. 11.

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ser a mais artificial de todas as obras de arte, pois deve abarcar todo o resto, umnovo leito e recipiente para a velha e eterna fonte primordial da poesia; ao mesmotempo, o poema infinito, que em si oculta o embrião de todos os poemas.35

Nessas linhas, o diagnóstico da arte antiga de Schlegel parece com o que

ele esboçara antes no ensaio Sobre o estudo da poesia grega. Fundada na religião,

a mitologia fornece a solidez sobre a qual assenta a coesão da poesia grega, sua

força que não se dispersa: “os poemas da antiguidade unem-se todos, um com o

outro, até se constituírem em partes e membros sempre maiores do todo; um se

engrena no outro e, por todas as partes, é sempre um e o mesmo espírito

diversamente expresso”36. No ensaio juvenil, esta perfeita completude grega

servia como contraste para a precária incompletude moderna desorientada.

Naquela altura, Schlegel considerava que a beleza, na modernidade, “não seria

tanto experimentada com alegria serena quanto com anseio insatisfeito”37.

No primeiro grupo romântico, Schlegel, através do personagem Ludoviko,

na Conversa sobre a poesia, ainda se dirige aos amigos e afirma: “vocês já

poetaram e com freqüência devem ter sentido, ao fazê-lo, que lhes faltava um

firme apoio para sua ação, um seio materno, céu e vento vivo”, completando que

“o poeta moderno tem de arrebatar tudo isso de dentro”38. E por quê? É o próprio

Ludoviko quem afirma que “falta a nossa poesia um centro, como a mitologia o

foi para os antigos, e tudo de essencial em que a arte poética fica a dever à antiga

reside nestas palavras: nós não temos uma mitologia”39.

Mas sua argumentação, a partir daí, descola-se da posição de Schlegel no

ensaio Sobre o estudo da poesia grega, testemunhando sua mudança. Justamente

aquele anseio insatisfeito, antes lamentado, torna-se o motor para a criação da

nova poesia, diferente da velha. Ela será construída, não dada. Lodoviko explica:

“estamos próximos de possuir uma, ou melhor: é chegado o momento em que

devemos colaborar seriamente para produzi-la”40. Mitologia produzida, eis a

paradoxal pretensão dos primeiros românticos.

35 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 51.36 Ibid., p. 51.37 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 123.38 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 51.39 Ibid., p. 51.40 Ibid., p. 51.

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Por que não deveria acontecer de novo o que antes já aconteceu? De uma outramaneira, bem entendido. E por que não maior, mais bela? (…) A ela cabe, naatual situação, renovar-se ou entrar em declínio. O que é o mais provável e o quenão se poderia esperar de tal época de rejuvenescimento? A antiguidadeencanecida torna-se-á de novo viva, e o futuro mais distante já se apresenta empresságios.41

Todos os elementos modernos que Schlegel destacara em Sobre o estudo

da poesia grega tornam-se, agora, positivos. São presságios da nova mitologia,

como o fato de que “as fronteiras da ciência e da arte, da verdade e da beleza, são

tão confundidas que até a convicção de que essas fronteiras eternas são

permanentes tem, geralmente, começado a esmorecer”42. No ensaio juvenil, esse

contágio de áreas era mal visto. Para deixar isso claro, Schlegel, ao reeditá-lo,

substituiu a frase em que, originalmente, dizia “a filosofia poetiza e a poesia

filosofa” pela seguinte: “a filosofia perde-se de si na incerteza poética e a poesia

tende na direção de uma profundidade taciturna”43. Longe de corrigir o texto para

afiná-lo com seu pensamento posterior, Schlegel, com isso, sublinha o quanto sua

disposição ali era diferente. Não o deixa mentir o fato de que, depois, a “nova

mitologia” para a arte vem, sobretudo, da filosofia. “Se é apenas das mais íntimas

profundezas do espírito que uma nova mitologia pode elaborar-se como se através

de si mesma, há uma indicação muito significativa, uma notável confirmação

disto que procuramos no grande fenômeno de nossos dias – no idealismo”44. Essa

presença da filosofia idealista mostra o quanto a situação da arte, no contexto da

nova mitologia, entrava no registro moderno reflexivo. Neste contexto, os

primeiros românticos chegam a empregar a palavra “revolução” para designar

aquilo que têm diante dos olhos na sua época: “a grande revolução irá arrebatar

todas as artes e ciências”45. Eram os alemães sendo tomados pelo clima político

da Revolução Francesa e o aplicando ao mundo da cultura e do espírito. Sua ponta

de lança era a filosofia: “assim o idealismo será não só um exemplo, em seu modo

de surgimento, para a nova mitologia; será até mesmo, de maneira indireta, sua

fonte”46.

41 Ibid., p. 51-52.42 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 123.43 Friedrich Schlegel, On the Study of Greek Poetry (New York, State University of New YorkPress, 2001), p. 18 e 110. (Conferir a nota do tradutor para a referida passagem).44 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 51.45 Ibid., p. 52.46 Ibid., p. 53.

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*

Idealismo, para os primeiros românticos, precisa acolher o movimento que

vai ao realismo. É claro que, aqui, não se trata do realismo dogmático tradicional,

mas apenas de situar o caráter transcendental da reflexão fora do casulo da

subjetividade. Desse modo, “o idealismo precisa, em todas as suas formas, sair de

si mesmo, de um modo ou de outro, para que possa retornar a si mesmo e

permanecer aquilo que é”, logo, “é preciso e certo que se erga de seu seio um

novo e igualmente ilimitado realismo”47, afirmavam.

Não se tratava, assim, da proposta de “egoidade” da primeira filosofia de

Fichte, e sim de algo mais próximo de seu pensamento tardio, na “nova exposição

da doutrina-da-ciência”, como dizia Friedrich Schlegel. Tanto que “para o Fichte

da última fase (…) fica o idealismo fundamentalmente eliminado”, explica

Nicolai Hartmann, observando ainda que, assim, se “chega de novo ao

realismo”48. Este novo realismo, distinto do antigo, foi o que buscou, sobretudo, o

jovem Schelling, afastando-se de seu professor Fichte e valorizando a concretude

efetiva que a arte oferecia através das suas obras. Lembremos que, na Conversa

sobre a poesia, o discurso sobre a nova mitologia é feito por Ludoviko,

personagem criado por Friedrich Schlegel mas claramente inspirado em Schelling.

Ludoviko confessa: “há muito que trago em mim o ideal de um realismo

como esse, e se isto, até agora, não foi compartilhado, foi apenas porque ainda

procuro o órgão, o meio que me permitirá fazê-lo”49. E confessa: “sei no entanto

que somente na poesia posso encontrá-lo”50. Se lemos o título da conclusão do

Sistema do idealismo transcendental, de Schelling, escrito quase simultaneamente

à Conversa sobre a poesia, ele diz o mesmo que Ludoviko: “dedução de um órgão

geral da filosofia ou proposições principais da filosofia da arte segundo os

princípios do idealismo transcendental”51. Em jogo está a dedução, isto é, a

demonstração da existência do órgão ou ferramenta capaz de concretizar os

47 Ibid., p. 53.48 Nicolai Hartmann, A filosofia do idealismo alemão (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,s/d), p. 95.49 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 53.50 Ibid., p. 53.51 F. Schelling, “Trecho do Sistema do Idealismo Transcendental”, in Rodrigo Duarte (org.), Obelo autônomo (Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1997), p. 135.

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princípios gerais da filosofia, que no caso é a idealista. Este órgão deve ser

buscado na filosofia da arte pelo simples motivo de que ele é a arte, sendo que a

nova mitologia surge como o entreposto de tal realização. Mas vejamos ainda

como isso ocorre, resumidamente, na argumentação de Schelling.

Ele pretende, aí, mostrar que o absoluto procurado pela filosofia apenas

pode ser encontrado, fora do subjetivismo, através da arte. Enquanto a filosofia só

permitiria pensar em teoria o absoluto, ou seja, a dimensão do ser na qual a cisão

entre sujeito e objeto ou idealismo e realismo ainda não se operou, a arte, por sua

vez, faria com que ele acontecesse concretamente na realidade, enquanto obra. Se

a beleza é, segundo Schelling, “o infinito apresentado finitamente”52, a filosofia

não poderia fazê-la, já que não se expressaria na finitude, ou seja, no realismo

concreto como obra, mas apenas nas idéias.

É a síntese ocorrida no produto que Schelling tem em vista, ou seja, a

junção da liberdade da consciência idealista humana com a necessidade sem

consciência realista da natureza, o que acontece na obra de arte porque nela a

matéria natural ganha a forma livre que o homem, na criação estética, lhe dá. Por

isso, Schelling afirma que “a intuição estética é justamente a intuição intelectual

que se tornou objetiva”53, ou seja, é a efetivação realista da síntese entre a intuição

sensível e o intelecto pensante que, na filosofia, só ocorria abstratamente enquanto

atividade subjetiva, como seria o caso do jovem Fichte, por exemplo, mestre de

quem Schelling buscava se distanciar.

Portanto, continua Schelling, “a arte é o único órgão verdadeiro e eterno

da filosofia, e ao mesmo tempo seu documento, que reconhece sempre e

continuamente o que a filosofia não pode apresentar externamente”54. Em seu

horizonte, aparece, assim, a possibilidade de que a filosofia acabe por ser

engolfada pela poesia. “É de se esperar que a filosofia, assim como na infância da

ciência nasceu da poesia e foi nutrida por ela (…), após o seu acabamento reflua

como muitas correntes singulares ao oceano universal da poesia, de onde

partiram”55. É que, desse modo, a própria filosofia, já devolvida à poesia, poderia

também passar do idealismo ao realismo, tornando-se obra efetiva no mundo.

52 Ibid., p. 141.53 Ibid., p. 145.54 Ibid., p. 146-147.55 Ibid., p. 147-148.

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Por fim, Schelling pensa em qual seria o “membro intermediário” para

este retorno da filosofia à poesia. E diz que não deve haver mistério sobre isso, já

que ele existiu no passado: como mitologia. “Mas como pode surgir uma nova

mitologia, que não pode ser invenção do poeta singular, mas de uma nova geração

que (…) representa apenas um único poeta, é um problema cuja solução só deve

ser esperada dos destinos posteriores do mundo e do curso mais afastado da

história”56. Reencontramos, portanto, a proposta apresentada pelo personagem de

Ludoviko nas palavras de Schelling: a nova mitologia.

*

Essa nova mitologia proposta pelos primeiros românticos, vale dizer,

permanece, como vemos, com contornos bastante vagos, lançados até para o

futuro. Temos, contudo, algumas pistas mais concretas sobre ela. Ludoviko, por

exemplo, a aproxima do próprio conceito de poesia romântica: “aqui encontro

muita semelhança com aquela grande espirituosidade da poesia romântica, que

não se mostra em lampejos isolados mas na construção do todo (…) quanto às

obras de Cervantes e Shakespeare”57. Essas duas referências, como fontes já da

construção da nova mitologia, fazem com que não a possamos pensar como o

fundamento que, só depois de pronto completamente, sustentaria a arte moderna.

Parece, antes, que a construção da nova mitologia já é a nova mitologia, como nos

autores que souberam agregar à sua produção literária o caráter reflexivo da época

moderna, casos de Cervantes, Shakespeare ou Goethe.

“Esta confusão artificialmente ordenada, esta excitante simetria de

contradições, este maravilhoso e eterno jogo alternado de entusiasmo e ironia,

vivo até mesmo nos melhores segmentos do todo, já me parecem uma mitologia

indireta”58, diz Ludoviko. Todos os componentes, portanto, da melhor poesia

moderna fazem parte da formulação da nova mitologia, cuja fome é tão generosa

que abarca os mais diversos alimentos culturais. “Também as outras mitologias

precisam ser novamente despertadas (…), para acelerar o surgimento da nova

56 Ibid., p. 148.57 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 55.58 Ibid., p. 55.

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mitologia”59. Este foi o peculiar movimento romântico que buscou alternativas à

tradição clássica hegemônica. “Se ao menos os tesouros do oriente nos fossem tão

acessíveis quanto os da antiguidade”60, exclama Ludoviko. Pergunta-se, ainda, se

“novas fontes de poesia não poderiam fluir da Índia”61, por exemplo.

Nesse sentido, a dispersão moderna poderia se revelar não apenas como

problema, mas como oportunidade. “É preciso, em geral, que se possa chegar ao

objetivo por mais de um caminho”, ou seja, “cada um por aquele que é todo seu,

com alegre confiança, da maneira mais individual”62. Portanto, a nova mitologia

não é o programa fixo e totalitário para a arte que pode parecer. Pelo contrário, ela

só se faz a partir das buscas diversas de cada caminho singular que, no seu próprio

caminhar, a constituem. Mitologia esta, portanto, completamente distinta da

antiga, cuja solidez dada sustentava o sentido de totalidade que justamente falta ao

mundo moderno fragmentado.

Friedrich Schlegel, com o personagem Ludoviko, adverte que “poderiam

rir desse místico poema, da quase desordem que resultaria da abundância e do

congestionamento de tantos versos”63. Ele parece, com isso, quase suspeitar da

recepção que, anos antes, talvez tivesse de sua própria proposta, já que, ao

escrever Sobre o estudo da poesia grega, ainda abominava a “anarquia” moderna,

sem caráter definido e confusa. Mas, já naquele contexto, Schlegel, ao falar da

“falta de propósito e de lei do mundo da poesia moderna” e mencionar que tais

fragmentos da arte se moviam numa “mistura lúgubre”, considerava que se

“poderia chamar isso de caos de tudo o que é sublime, belo e encantador que –

justo como o caos antigo a partir do qual, segundo a lenda, emergiu o mundo –

aguarda um amor e um ódio para separar as partes diferentes e unificar as partes

semelhantes”64.

Reencontramos passagem parecida, mais uma vez, nas palavras de

Ludoviko, o personagem criado por Schlegel. Ele afirma que “a mais elevada

beleza, a mais elevada ordem é, justamente, a do caos, um caos que só espera o

59 Ibid., p. 55.60 Ibid., p. 55.61 Ibid., p. 55.62 Ibid., p. 56.63 Ibid., p. 51.64 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 126.

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contato do amor para se desdobrar em um mundo”65. Por isso, a poesia deveria

“transplantar-nos de novo para a bonita confusão da fantasia, o caos originário da

natureza humana, para os quais”, afirma, “não conheço, até agora, símbolo mais

belo que a multidão colorida dos antigos deuses”66, ou seja, do que a mitologia.

Essa capacidade associativa do amor ganhava significação histórica decisiva na

situação fragmentada da modernidade. Por isso, Friedrich Schlegel se pergunta,

retoricamente, “o que é toda mitologia senão uma expressão hieroglífica da

natureza circundante nesta transfiguração de fantasia e amor”67. É a transfiguração

amorosa que dá sentido ao caos, dirigindo a construção da nova mitologia.

Deve a arte, em geral, nos levar à beira do caos porque é justamente ali

que, com o toque do amor, as coisas se organizam originariamente, é ali que o

mundo pode formar-se, juntar-se e se erguer. Portanto, o amor, para os primeiros

românticos, não era apenas o sentimento que enlaça dois seres humanos no afeto

sexual e espiritual. Ele só pode ser isso porque, antes, possui o valor ontológico

geral de ligar, relacionar, conectar: “um claro aroma paira quase imperceptível

sobre o todo, por toda parte a eterna nostalgia encontra uma ressonância das

profundezas da obra pura, que em tranqüila grandeza exala o espírito do amor

original”68.

65 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 51.66 Ibid., p. 55.67 Ibid., p. 54.68 Ibid., p. 54.

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Filosofia do romance:

o gênero dos gêneros

Falar de romantismo é falar de romance. Não se trata apenas da

coincidência etimológica. Tanto que os primeiros românticos alemães a

aproveitaram conscientemente. Eles o fizeram porque o romance era a expressão

privilegiada da poesia que procuravam. Mesmo a proposta romântica de

construção da mitologia da época moderna, distinta da mitologia natural grega,

encarnava-se no romance. Na Conversa sobre a poesia, Friedrich Schlegel faz o

“Discurso sobre a mitologia” ser sucedido pela “Carta sobre o romance”. Surge a

forma do romance como resposta aos problemas colocados para a criação artística

na ausência da base religiosa tradicional. Esta nova mitologia precisava de outro

espaço de elaboração, diferente do antigo, contendo a reflexão moderna. Este

espaço era o romance.

Lukács, retrospectivamente, chamou a atenção para tal espaço, ao declarar

que “o romance é a epopéia do mundo abandonado por deus”, pois sabe que “o

sentido jamais é capaz de penetrar inteiramente a realidade, mas que, sem ele, esta

sucumbiria ao nada da inessencialidade”1. É a busca artística pelo sentido não

dado completamente na vida que forja o romance. Daí seu caráter irônico. É que

“a ironia do escritor é a mística negativa dos tempos sem deus: uma docta

ignorantia em relação ao sentido”2, observa Lukács. Trata-se de construir o

sentido perdido na modernidade desencantada, mesmo sabendo que a antiga

totalidade não será atingida, pois “nosso mundo tornou-se infinitamente grande e,

em cada recanto, mais rico em dádivas e perigos que o grego, mas essa riqueza

suprime o sentido positivo e depositário de suas vidas: a totalidade”3. Daí a aposta

dos românticos no romance como nova forma da construção da mitologia, já que

ele, como disse Lukács, “é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva

1 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 88.2 Ibid., p. 92.3 Ibid., p. 31.

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da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à

vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”4

– ainda que precária. Esta é a era moderna. Como expressão sua, “o romantismo

alemão, embora nem sempre esclareça em detalhes, estabeleceu uma estreita

relação entre o conceito de romance e o de romântico”5.

Por isso, os primeiros românticos chegam a afirmar que “um romance é

um livro romântico”6. Mas é preciso compreender o conceito de romance aí

envolvido. “Detesto o romance, na medida em que ele se pretenda um gênero

específico”, dizia Friedrich Schlegel, para completar declarando, contra a

classificação tradicional, que “entre o drama e o romance há tão pouco lugar para

uma oposição que, pelo contrário, o drama tratado e tomado tão profunda e

historicamente como o faz Shakespeare, por exemplo, é o verdadeiro fundamento

do romance”7. Levantar, portanto, a questão do romance no primeiro romantismo

alemão é, junto, discutir o problema dos gêneros poéticos, já que ele só é a forma

privilegiada de expressão da época moderna porque não é apenas mais um dentre

diversos gêneros, e sim o gênero que abrange os outros, o gênero dos gêneros.

Sabemos que a divisão de gêneros começa com Platão. Na República8,

Sócrates distingue a poesia em que as ações são apresentadas apenas com as falas

dos personagens daquela em que o próprio poeta é quem narra as ações e, ainda, a

poesia em que ambos os processos são combinados. No primeiro caso, estão as

tragédias e as comédias. No segundo, estão os ditirambos. Por fim, na terceira

modalidade, fica a epopéia. Não é muito diferente a visão aristotélica sobre o

assunto, que mantém ainda que “é possível imitar os mesmo objetos nas mesmas

situações, numa simples narrativa, ou pela introdução de um terceiro, como faz

Homero”9. Nós viemos a conhecer esta mesma classificação oriunda dos gregos,

em geral, sob os nomes de poesia dramática, lírica ou épica.

Essa organização tradicional dos gêneros, para os primeiros românticos

alemães, não mais se sustenta com a modernidade, o que fica patente na forma do

romance. “Já se têm muitas teorias dos gêneros poéticos”, afirma Friedrich

4 Ibid., p. 55.5 Ibid., p. 37.6 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 67.7 Ibid., p. 67.8 Platão, A república (Belém, EDUFPA, 2000), p. 148 (394c).9 Aristóteles, “Arte poética”, in Arte retórica e Arte poética (Rio de Janeiro, Ediouro, 2005), p.243.

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Schlegel, para, a seguir, perguntar “por que não se tem ainda nenhum conceito de

gênero poético” e concluir que “então teríamos talvez de nos contentar com uma

única teoria do gêneros poéticos”10. Parte-se, assim, da constatação de que

existem muitas teorias dos gêneros poéticos, mas, a despeito disso, não existe

conceito de gênero poético. Logo, é preciso não tanto aplicar certa classificação

genérica às obras, de acordo com o procedimento empírico, quanto explicar

filosoficamente a condição de possibilidade transcendental dos gêneros.

Essa condição de possibilidade, para Schlegel, tem sentido histórico.

Desde o ensaio Sobre o estudo da poesia grega, ele já discernia entre a “formação

natural” grega e a “formação artificial” moderna. Peter Szondi, tendo em vista

seus escritos póstumos, afirmou que “os gêneros poéticos, se eles são

verdadeiramente poesia da natureza, são válidos apenas para a poesia clássica e

não para a poesia moderna”, concluindo, ainda, que o “conceito de poesia

moderna não deve conter a divisão em gêneros (…), deve coincidir com o

conceito de um só gênero que unifica todos os outros em si”11.

É verdade que mesmo autores modernos quiseram manter estaticamente

válida para todas as épocas a antiga doutrina dos gêneros. “No próprio universo

da poesia, porém, nada está em repouso, tudo vem a ser, se transforma e move”12,

afirma Schlegel. Esse movimento é o da própria história, dentro da qual “nossa

arte poética começa no romance”13. Essa historicidade da arte quebrava a

pretensão da classificação tradicional dos gêneros de dar conta da nova situação

moderna. Schlegel preferia, se fosse o caso, falar de gêneros que predominam em

cada época: a tragédia para os gregos, a sátira para os romanos e o romance para

os modernos, por exemplo.

Essa predominância não quer dizer só que os livros considerados como

romances superavam outras formas literárias modernas. Pois o ponto é que

mesmo essas acabam respirando o ar de romance. Para Schlegel, “o romance tinge

toda a poesia moderna”14, ou seja, ele contagia mesmo aquelas expressões que, a

10 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 30 (Lyceum, Fr.62).11 Peter Szondi, “Schlegel’s theory of poetical genres”, in On textual understanding and otheressays (Minneapolis, University of Minnesota Press, 1986), p. 77.12 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 139 (Athenäum,Fr. 434).13 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 67.14 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 70 (Athenäum,Fr. 146).

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rigor, não são classificadas como romance. Ele “dá o tom”. É que os efeitos do

romance espraiam-se para além do que seria a fronteira definida dele mesmo

como gênero, deixando seu selo marcado na poesia moderna em geral. Tal

situação explica-se porque “o romântico não é tanto um gênero quanto um

elemento da poesia, que nela predomina em maior ou menor grau, mas nunca

deve faltar completamente”15, diz Schlegel.

Somente assim, o romance pode pôr em ação seu jeito próprio de articular

as partes no todo, fora dos marcos de composição de cada gênero específico. Sua

continuidade é forjada artificialmente pela heterogeneidade. Pode catar seus

componentes em diversos gêneros. Segundo Novalis, deveria “o romance incluir

toda a sorte de estilos, ligados entre si em ordem variada, e animados por um

espírito comum”16. Impureza marca o romance, como observou depois Octavio

Paz, atribuindo a ele a ambiguidade da modernidade: “ritmo e exame da

consciência, crítica e imagem”17. Para Schlegel, “em sua rigorosa pureza, todos os

gêneros poéticos clássicos são agora ridículos”18, confirmando que, com o

movimento da história, a organização antiga se desfaz. Nem o presente possuía

sua configuração definitiva, tanto que “o gênero romântico ainda está em devir;

sua verdadeira essência é mesmo a de que só pode vir a ser, jamais ser de maneira

perfeita e acabada”19.

Partindo dessa tese, Schlegel faz a ponte entre a poesia romântica em geral

e sua manifestação particular privilegiada na forma do romance. Ele diz: “o

gênero romântico é o único que é mais do que gênero e é, por assim dizer, a

própria poesia: pois, num certo sentido, toda poesia é ou deve ser romântica”20.

Não se tratava, aí, de afirmar a poesia romântica em detrimento das outras.

Schlegel pensava, antes, na capacidade do romance de agregar diferentes

discursos: filosofia e poesia, épico e dramático, canção e narração, clássico e

barroco. Por esta característica geral, o romance quebrava a possibilidade de ser

classificado por uma ou outra característica específica. “Não posso conceber um

15 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 67.16 Novalis, “Das Allgemeine Brouillon”, in Werke, Tagebücher und Brief, v. II (München, CarlHanser, 1978), p. 504 (n. 169).17 Octavio Paz, “A ambiguidade do romance”, in Signos em rotação (São Paulo, Perspectiva,1996), p. 69.18 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 30 (Lyceum, Fr.60).19 Ibid., p. 65 (Athenäum, Fr. 116).20 Ibid., p. 65 (Athenäum, Fr. 116).

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romance que não seja uma mistura de narrativa, canção e outras formas”21, afirma

Schlegel.

Restringindo a divisão de gêneros à antiguidade, Schlegel enxergou no

romance moderno não apenas mais um elemento que pertencia a ela. Tampouco

pretendeu enquadrá-lo em algum gênero anterior apenas adaptado à modernidade,

como, em certo sentido, faria Hegel posteriormente, para quem o romance é a

forma moderna da antiga epopéia. Kathrin Rosenfield observou, com precisão

pontual, que “vinte a trinta anos após a publicação dos grandes romances de

Goethe, Hegel continua desconhecendo a especificidade da forma romanesca

enquanto forma mista”22. Se tivesse levado a sério os escritos de Friedrich

Schlegel, Hegel possivelmente teria farejado a singularidade que se enunciava na

nova forma de literatura encabeçada por Goethe: o romance. Pois os primeiros

românticos já o compreendiam exatamente como mistura. Era o gênero que

englobava os outros.

Essa descoberta fundou o que hoje aparece para nós, mesmo em suas

transformações, como tradição do romance, empregando desde discussões

filosóficas, como na Montanha mágica de Thomas Mann, até imagens

entremeadas ao texto, como em Austerlitz de W. G. Sebald. Para Schlegel,

Goethe, na sua época, realizara o romance essencial. Por isso, “aquele que

caracterizasse devidamente o Meister de Goethe diria, na verdade, de que será

época agora na poesia” e, “no que concerne à crítica poética, não precisaria fazer

mais nada”23. Bem, o próprio Schlegel escreveu tal crítica.

*

Muitos romancistas foram celebrados pelos primeiros românticos alemães.

Sterne e Swift são citados por conta do humor. Se Diderot teria “abundância de

espirituosidade”, sendo Jacques, o fatalista “um livro organizado pelo intelecto e

realizado com mão segura”, Jean Paul seria dotado de fantasia “extravagante e

21 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 68.22 Kathrin Rosenfield, “Uma falha na Estética de Hegel: a propósito de um silêncio sobre oromance de Goethe”, in A linguagem liberada (São Paulo, Perspectiva, 1989), p. 33.23 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 39 (Lyceum, Fr.120).

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fantástica”24. Nenhum, porém, alcançou as alturas de Cervantes, no passado, ou

de Goethe, no presente. Nada a estranhar, portanto, que, depois da “Carta sobre o

romance”, a Conversa sobre a poesia dê lugar ao discurso que trata de Goethe. É

que, se o romance é a diversidade dos gêneros juntada, “o Meister permanece a

mais compreensível suma para abranger, com os olhos, toda a extensão desta

diversidade como que reunida, unificada em um ponto central”25.

Mas a decisiva reflexão romântica sobre Os anos de aprendizado de

Wilhelm Meister não foi feita na Conversa sobre a poesia, e sim na antológica

crítica de Friedrich Schlegel sobre o livro. Sua abordagem enxergou a novidade

da obra, em parte, por conta de sua problematização dos gêneros. Em geral, a

crítica literária alemã compreendia o romance moderno a partir da mesma raiz que

a épica antiga: a narrativa clássica. Seriam como duas plantas brotadas do mesmo

solo. Schlegel considerava essa perspectiva estreita para dar conta da fluidez do

romance, que passava de gênero para gênero no mesmo livro. Nem mesmo seu

caráter narrativo, portanto, podia ser a diretriz que traçava seu ser geral.

Por esta razão, Schlegel, ao contrário de Schelling ou de Hegel, não

lamentava a falta de capacidade de sua época para produzir o verdadeiro épico.

Esperar outro Homero era não se dar conta da transformação histórica que

conduzia à nova arte. “Nada é mais oposto ao estilo épico do que as influências da

própria disposição pessoal que se tornam, de algum modo, visíveis; para não falar

do abandono ao próprio humor, de jogar com ele, como acontece nos melhores

romances”26, dizia Schlegel. Toda a ironia e a reflexividade dos romances

modernos não deixava que eles fossem derivados dos gêneros clássicos.

Dentro do Wilhelm Meister, Goethe explicita esse debate quando os

personagens começam “certa tarde a discutir qual dos gêneros seria superior: o

drama ou o romance”, e logo aparece alguém que afirma “tratar-se de uma

discussão inútil, equivocada”, pois “tanto um quanto outro poderiam ser

excelentes a seu modo, contanto que se mantivessem nos limites de seu gênero”.

Mas Wilhelm contrapõe-se: “eu mesmo ainda não tenho uma opinião totalmente

24 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 63.25 Ibid., p. 71.26 Ibid., p. 68.

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clara a esse respeito”27. Se tomarmos a fala como pista compreensiva, devemos

olhar para a obra sem preconceitos sobre à qual classificação ela atenderia.

Daí o esforço de Schlegel, na crítica ao Meister, de fazer justiça à

singularidade da obra. Para ele, “este livro é absolutamente novo e único” e “nós

só podemos aprender a entendê-lo em seus próprios termos”, longe das tentativas

de “julgamento acadêmico ortodoxo deste organismo divino”28. Porém, ao mesmo

tempo que é singular, o livro, por sua qualidade moderna reflexiva, fornece sua

própria medida crítica. “Talvez, devêssemos julgá-lo e, ao mesmo tempo,

abstermo-nos de julgá-lo; o que não parece ser, de modo algum, tarefa fácil”,

afirma Schlegel, para completar que, “por sorte, este é um daqueles livros que

acaba por carregar seu próprio julgamento consigo e dispensa o crítico de seu

trabalho”29. Tal tarefa não é fácil pois não consiste em classificar a obra na tabela

dos gêneros, o que seria, segundo Schlegel, como a criança que quer pegar a lua e

os astros com a mão e guardá-los em sua caixa. Trata-se, antes, de compreender

os critérios críticos da obra a partir da própria obra, e é só nesse sentido que ela

dispensa o trabalho do crítico.

“Sem qualquer presunção, sem som e fúria, como o quieto desdobramento

do espírito que anseia, como o mundo recém-criado erguendo-se suavemente a

partir de dentro, o conto lúcido começa”30. Foram essas as palavras que Schlegel

achou para descrever a abertura do romance de Goethe. Elas buscavam, ao

salientar a construção da obra a partir de si, situar sua organização, na qual “os

contornos são leves e gerais, mas nítidos, precisos e seguros”, ao mesmo tempo

que “o menor detalhe é significativo, a cada toque uma leve pista; e tudo é

reforçado por contrastes claros e vivos”31.

Essas descrições de Schlegel tinham por objetivo desvendar como, em

meio à presença de prosa e poesia ou de reflexões estéticas e cenas soltas, surgira

a coesão da organização do romance de Goethe. Em outras palavras, tratava-se de

explicitar o cerne do princípio do romance a despeito de seu desencaixe nos

princípios clássicos dos gêneros. Tal tarefa era crucial pois envolvia,

metaforicamente, a própria situação histórica geral da modernidade. Schlegel 27 J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 300.28 Friedrich Schlegel, “Über Goethes Meister”, in Kritische Schriften (München, Carl HanserVerlag, 1970), p. 459-460.29 Ibid., p. 459-460.30 Ibid., p. 452.31 Ibid., p. 452.

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afirma que é necessário, então, visar a obra “como um todo, até mesmo nas suas

partes mais escondidas e fazer conexões entre os mais remotos cantos”.

Por que não podemos tanto respirar o perfume de uma flor quanto, ao mesmotempo, inteiramente absorvidos na observação, contemplar nas suas infinitasramificações o sistema de veias de uma única folha? (…) Tanto a maior quanto amenor massa revelam o impulso inato da obra, tão organizada e organizadora atéseus mais finos detalhes para formar o todo. Nenhum intervalo é acidental ouinsignificante; e neste romance, no qual tudo é, ao mesmo tempo, tanto meioquanto fim, não seria errado considerar a primeira parte, a despeito de sua relaçãocom o todo, como um romance em si mesma.32

Schlegel encontra, no romance de Goethe, a articulação da mais antiga

questão filosófica, a da relação entre o particular e o geral. Ele observa que

“nossas expectativas de unidade e coerência são frustradas por este romance tanto

quanto são satisfeitas”33. Seu objetivo é provar que, a despeito da liberdade

individual que as partes contêm, a obra sabe juntá-las com precisão. Schlegel fala

de “homogeneidade não-intencional” e de “unidade original” que se fazem pelo

emprego de variados meios, porém sempre poéticos. “E, desse modo, cada parte

essencial do romance singular e indivisível torna-se um sistema em si mesma”34.

Nos seus fragmentos, Schlegel já dissera, aliás, que só “mirando do modo mais

certeiro num único ponto um achado isolado pode atingir uma espécie de

totalidade”35.

*

É no encontro entre a prosa e a poesia que se situa Os anos de aprendizado

de Wilhelm Meister, de Goethe, para Friedrich Schlegel. Nós, que já vivemos hoje

a completa diluição dos gêneros tradicionais, mal nos damos conta da revolução

dessa apreensão crítica. Em geral, o romance era veementemente desvalorizado

por sua escrita prosaica. Segundo o classicismo, ele não era gênero poético, justo

o que Schlegel detecta no Meister. Sua crítica considera que ali “tudo é poesia –

alta, pura poesia”. Reconhecia-se, assim, a prosa poética moderna. Tal fato

tornou-se possível apenas porque Schlegel já abandonara a aplicação empírica da 32 Ibid., p. 457.33 Ibid., p. 460.34 Ibid., p. 460-461.35 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 37 (Lyceum, Fr.109).

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classificação em gêneros sobre a obra que tinha em vista para, em seu lugar,

construir o que chegou a chamar de “filosofia do romance”36.

“Essa maravilhosa prosa é prosa, e, no entanto, é poesia”, afirma Schlegel

sobre o Meister, completando que “sua riqueza é graciosa, sua simplicidade,

significativa e profunda, e seu nobre e delicado desenvolvimento sem rigor

desnecessário”37. Portanto, “mesmo que as linhas mestras deste estilo sejam, no

todo, tiradas do discurso social culto da vida, ele também toma parte em

metáforas raras e estranhas que possuem como objetivo estabelecer uma relação

entre o mais alto e puro, de um lado”, continua Schlegel, “e alguns aspectos

peculiares a este ou aquele jeito de falar cotidiano, ou aquelas esferas que, de

acordo com o senso-comum, são muito distantes da poesia”38.

Por trás dessa análise da linguagem do romance, estava em jogo a

transformação histórica da modernidade. Para Lukács, “a nova poesia da vida,

impetuosamente almejada por Goethe, a poesia do ser humano harmonioso, que

domina ativamente a vida, já está ameaçada pela prosa do capitalismo”39.

Portanto, tomar o discurso social culto da vida ou do senso comum cotidiano e

transformá-lo em alta poesia é o caminho, para o romance, de mediar tal conflito

moderno, que Hegel expressou ao falar da “prosa das relações” e da “poesia do

coração”. No fio da narrativa, a “prosa das relações” destina Wilhelm para o

trabalho burguês, para ganhar dinheiro e logo assumir sua profissão. Mas a

“poesia do coração” não o deixa abandonar a pretensão de aprimoramento

espiritual e moral. Essa resistência poética do coração às relações prosaicas fica

evidente na carta que Wilhelm escreve ao tio, após a morte do pai. Nesta carta,

estão resumidos os conflitos do personagem com o mundo no qual se situa, assim

como sua motivação diante dele.

De que me serve fabricar um bom ferro, se meu próprio interior está cheio deescórias? De que me serve também colocar em ordem uma propriedade rural, secomigo me desavim? Para dizer-te em uma palavra: instruir-me a mim mesmo,tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde ainfância.40

36 Ibid., p. 92 (Athenäum, Fr. 252).37 Friedrich Schlegel, “Über Goethes Meister”, in Kritische Schriften (München, Carl HanserVerlag, 1970), ps. 459.38 Ibid., p. 459.39 Georg Lukács, “Posfácio”, in J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (SãoPaulo, Ed. 34, 2006), p. 591.40 J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 284.

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É o cumprimento desse desejo de instrução do personagem durante o livro

que fez com que ele fundasse o gênero do “romance de formação”. Mas Wilhelm

não é Werther, o protagonista do famoso romance da juventude de Goethe. Em Os

sofrimentos do jovem Werther, a poesia do coração dirige o personagem para

dentro de si, ou seja, para a exploração de sua subjetividade como fuga da

objetividade social prosaica. Tanto que ele confessa: não tratará seu

“coraçãozinho” senão “como uma criança doente, satisfazendo-lhe todas as

vontades”41. Roland Barthes observou que é o “monólogo”42 do sujeito que está

aí. Não é assim no Meister, onde a formação do personagem acontece justamente

no diálogo com o mundo – diálogo da poesia com a prosa. Não por acaso, ainda

na carta ao tio, Wilhelm afirma: “tenho visto mais mundo que tu crês, e dele me

tenho servido melhor que tu imaginas”43. No Meister, a formação do personagem

depende de seu contato com a sociedade. É no meio das relações prosaicas que

fica o coração poético.

Em romances de formação, como mostrou Mikhail Bakhtin, a formação do

homem apresenta-se em indissolúvel relação com a formação histórica”. Sua

análise mostra que os romances tradicionais colocavam o personagem estático,

como “grandeza constante”, e deixavam como “grandeza variável” o seu entorno:

“o movimento do destino e da vida dessa personagem pronta é o que constitui o

conteúdo do enredo; mas o próprio caráter do homem, sua mudança e sua

formação não se tornam enredo”44. É o oposto que ocorre no romance de

formação, pois aqui o herói e seu caráter são “grandezas variáveis”, afirma

Bakhtin, portanto “a mudança do próprio herói ganha significado de enredo”. Foi

esta a novidade de Goethe no M e i s t e r , onde “o homem se forma

concomitantemente com o mundo” e, assim, “é obrigado a tornar-se um novo tipo

de homem, ainda inédito”45.

*

41 J. W. Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther (Porto Alegre, L&PM, 2001), p. 17.42 Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso (Rio de Janeiro, Francisco Alves, 2001),p. 64.43 J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 284.44 Mikhail Bakhtin, Estética da criação verbal (São Paulo, Martins Fontes, 2003), p. 219.45 Ibid., p. 222.

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Nada poderia ser mais condizente com o nascimento da época moderna do

que a procura da formação do novo homem, já que os próprios tempos eram

novos e não davam a este homem seu lugar definido pela ordem do cosmos.

Goethe fazia isso na literatura. Foi o que chamou a atenção de seus

contemporâneos românticos alemães. Novalis chegou a declarar, sobre o Meister,

que “a filosofia e a moral do romance são românticas”46. Não demorou, porém,

para que sua primeira admiração fosse transformada em crítica severa, mas ainda

amorosa. Schlegel, embora depois também fizesse algumas poucas reservas à

obra, jamais voltou-se contra ela como Novalis. Foi essa rejeição que levou este a

escrever seu próprio romance, Heinrich von Ofterdingen, que permaneceu sem

finalização.

Para Novalis, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister “são, de certa

maneira, completamente prosaicos e modernos”47. Ele, ao contrário de Schlegel,

não observa no romance de Goethe o casamento de poesia e prosa, mas sim a

prevalência da segunda, ou seja, do comum e ordinário das relações sociais.

Ficava para trás a poesia do coração e, assim, “o elemento romântico vai embora,

e, junto, a poesia da natureza, o maravilhoso”48, argumenta Novalis. Ele afirma,

ainda, que o Meister foca “apenas em coisas triviais, humanas, são inteiramente

esquecidos o misticismo e a natureza”, portanto, a história é burguesa. Por fim,

Novalis afirma que “ateísmo artístico é o espírito do livro”49. Temos, aqui, a

principal pista que explica a crítica de Novalis. Ele afirma que o livro é “sem

poesia ao máximo grau, por mais que sua exposição seja poética”50. Se o

problema não está na apresentação, que é poética, está no espírito, que é prosaico.

Poderíamos dizer, nesse sentido, que a forma do romance de Goethe, para

Novalis, é boa, mas o conteúdo não é. Embora a linguagem respire profunda

poesia, a estória permanece presa à prosa das relações sociais, sem conseguir

romantizar a realidade de que fala. Para compreender a questão, contudo,

precisamos lembrar em que consiste o enredo nesse aspecto.

46 Novalis, “Das Allgemeine Brouillon”, in Werke, Tagebücher und Brief, v. II (München, CarlHanser, 1978), p. 561 (n. 445).47 Novalis, “Fragmente und Studien II, 1799-1800”, in Werke, Tagebücher und Brief, v. II(München, Carl Hanser, 1978), p. 800-806 (n. 290-320).48 Ibid., p. 800-806 (n. 290-320).49 Ibid., p. 800-806 (n. 290-320).50 Ibid., p. 800-806 (n. 290-320).

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Desde o começo, o personagem Wilhelm resiste ao mundo burguês por

conta de seu desejo pelo teatro. São as artes que o puxam para o coração e, até

certa altura, a estória transcorre assim. Só que, depois, Wilhelm desiste do teatro.

Não porque não conseguira sucesso, já que o fato ocorre após a ótima montagem

de Hamlet, que ele almejava. É que, conforme observou Lukács, “Wilhelm

Meister não deixa jamais de sentir o quanto Shakespeare se estende para além dos

limites daquele palco”, e é por isso que a apresentação de Hamlet “converte-se

numa clara configuração do fato de que teatro e drama, e mesmo a arte poética,

não são senão um aspecto, uma parte do extenso complexo problemático da

educação”51. Não é mais só a arte, portanto, a solução de sua formação. Na

dialética do romance, essa direção do enredo significa a vitória da chamada

Sociedade da Torre sobre personagens como Mignon e o harpista. Mignon, com

toda sua singeleza infantil, abomina a crueldade da razão e prefere ficar só com o

coração. Já a Sociedade da Torre, por sua vez, possui papel decisivo no

deslocamento da formação que o personagem compreendia como individual até

ali para outra, em contato com o mundo.

Em suma, o enredo do Meister de Goethe, a despeito da forma poética, faz

com que o personagem forme-se na prosa das relações sociais. E este parece ser o

problema para Novalis. Por isso, o romance que ele mesmo pretende escrever,

Heinrich von Ofterdingen, caminha na direção do conto de fadas, a fim de salvar-

se completamente do prosaico. Todo seu projeto aparece concentrado já nas

primeiras linhas do livro.

“Não foram os tesouros que despertaram em mim tal ânsia inexprimível”, eledisse para si. “Não há cobiça no meu coração; mas eu desejo vislumbrar a florazul. Ela está perpetuamente em meu pensamento, e eu não posso mais escreverou pensar em outra coisa. Nunca me senti assim antes; é como se só então eutivesse um sonho, ou como se o sono tivesse me carregado para outro mundo.Pois no mundo onde eu sempre vivi, quem alguma vez se preocupou com flores?Além disso, tal estranha paixão por flores é alguma coisa da qual nunca ouvi falarantes”.52

Essa flor azul, cuja imagem provavelmente Novalis colheu em Jacob

Böhme, concentra, para ele, toda poesia do mundo. Seu personagem, Heinrich, faz

51 Georg Lukács, “Posfácio”, in J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (SãoPaulo, Ed. 34, 2006), p. 583.52 Novalis, “Henry von Ofterdingen”, in Novalis Werke (München, Verlag C. H. beck, 1969), p.130.

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questão de logo avisar que a ânsia por ela não veio por conta de tesouros, ou seja,

de riquezas como aquelas das atividades burguesas. Pelo contrário, é pela entrada

em outro mundo, já onírico, que se dá a possibilidade de vislumbre da flor azul,

mesmo porque, constata o personagem, no mundo concreto em que vive ninguém

se preocupa com flores. Enquanto a jornada de Wilhelm Meister supunha o

encontro com outras pessoas da sociedade, a viagem de Heinrich é, antes, pela

natureza e pelo sonho.

Não é diferente a viagem empreendida por Jacinto em Os discípulos em

Sais, outro romance não finalizado de Novalis. Jacinto abandona seus pais e seu

amor, Rosinha, com as seguintes palavras: “queria dizer-lhes aonde irei, mas eu

mesmo não sei, vou para onde mora a mãe de todas as coisas, a virgem encoberta

de véus: é por ela que anseia o meu espírito”53. Seu caminho passa por elementos

da natureza, que se mostram com caráter mágico: camundongos riem, gansos

narram contos, pedras dão cambalhotas, violetas e morangos conversam.

Procurando pelo que chama de “deusa sagrada”, Jacinto, ao fim, aproxima-se

dela. “Imerso em aromas celestiais deliciosos, ele adormeceu, pois apenas seria

permitido entrar no mais sagrado recinto caso fosse dirigido pelo sonho”54.

Tanto no Heinrich von Ofterdingen quanto em Os discípulos em Sais, os

enredos de Novalis podem permanecer na poesia do coração apenas porque

evitam a prosa da relações, ou seja, o mundo capitalista da burguesia nascente

com sua sanha industrial. Não é aí que se encontram a flor azul ou então a deusa

sagrada. Pelo contrário, só pelo distanciamento face à racionalidade da vigília é

que se abraça, pelo sonho, a poesia. Está explicada a crítica de Novalis ao

Meister, de Goethe, que não saberia preservar a poesia diante da prosa social

burguesa, o que fica patente pelo abandono do personagem em relação à vida da

arte no teatro como centro absoluto de sua formação.

Por outro lado, é justamente aí que aparece, ao mesmo tempo, a

fragilidade do projeto ficcional de Novalis. Ele dependia da negação da realidade

prosaica que se anunciava historicamente dominante. “Goethe condena, porém,

não só essa prosa, mas também a revolta contra ela”, afirma Lukács, já que esta

revolta “é somente sedutora, contudo infrutífera; não é uma subjugação da prosa,

53 Novalis, “Die Lehrlinge zu Sais”, in Novalis Werke (München, Verlag C. H. beck, 1969), p.110-111.54 Ibid., p. 112.

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mas um não reparar nela, um descuidado deixar de lado seus autênticos problemas

– com o qual essa prosa pode continuar florescendo intacta”55. Por fim, Lukács,

na Teoria do romance, afirma que

a fissura artística que Novalis detecta com argúcia em Goethe torna-se aindamaior e absolutamente intransponível em sua obra: a vitória da poesia, o seudomínio transfigurador e redentor sobre todo o universo, não possui a forçaconstitutiva para arrastar consigo a esse paraíso tudo o que, de resto, é mundano eprosaico (…). Por isso, a estilização de Novalis permanece puramente reflexiva;embora recubra na superfície o perigo, na essência apenas o agrava.56

*

Friedrich Schlegel não enxergava em Goethe, como Novalis, a derrota do

espírito poético para o prosaico das relações sociais burguesas. Basta ler o

romance Lucinda, de Schlegel, para perceber sua distância de Novalis. Não se

trata de comparar os méritos literários de um e de outro, que provavelmente

favorecem Novalis, mas de compreender, a partir da efetivação concreta de seus

romances, o projeto de cada um. No belo Heinrich von Ofterdingen, Novalis

encaminha-se para o conto de fadas mágico, buscando dar conta da “fantasia

geognóstica ou da paisagem”57 que considerava faltar a Goethe. Schlegel, por sua

vez, faz a suma da transição entre gêneros e estilos, indo da confissão à carta, do

idílio ao sexo. Novalis preza a pura poesia do coração, voltando-se para a

natureza, enquanto Schlegel está mais preocupado com a construção irônica e

reflexiva de sua obra.

Se, no enredo do Wilhelm Meister, o personagem central desiste da vida

no teatro, Schlegel concebe tal virada como ganho de amplitude de sua

perspectiva. Goethe, originalmente, planejara a primeira versão do romance toda

centrada no que chamava de “missão teatral” do personagem. Em grande parte por

conta de sugestões de Schiller, ele acabou transformando aquele enredo, de onde

surgiu Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Essa transformação pode

esclarecer a diferença de opiniões de Novalis e Schlegel sobre a obra. Enquanto o

55 Georg Lukács, “Posfácio”, in J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (SãoPaulo, Ed. 34, 2006), p. 583.56 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 147.57 Novalis, “Fragmentos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 155.

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primeiro encontra aí seu problema, por conta da perda de centralidade da arte para

a conclusão da formação do personagem, o segundo acha aí seu encanto, pois fica

explicitado que o valor da arte pode extravasar para a vida, sendo não apenas

dramatizado no palco especificamente teatral. Schlegel enfatiza que a obra foi

“feita duas vezes, em dois momentos criadores, a partir de duas idéias”, já que “a

primeira era apenas a de fazer um romance de artista; mas então, subitamente, a

obra tornou-se, surpreendida pela tendência de seu gênero, muito maior que seu

propósito inicial”, e aí “imiscuiu-se nela a doutrina do cultivo da arte de viver,

que se tornou o gênio todo”58.

Para Schlegel, portanto, “a obra pretende abraçar não apenas o que

chamamos de teatro ou poesia, mas o grande espetáculo da própria humanidade, e

a arte de todas as artes, a arte de viver”59. Meister, ao desistir do teatro, não o faz

porque desiste da arte, mas porque percebe que seu problema é a vida enquanto

arte. No romance, o personagem chamado de “desconhecido” diz a Meister que

“cada um tem a felicidade em suas mãos, assim como o artista tem a matéria

bruta, com a qual ele há de modelar uma figura”60. Traça, assim, o paralelo entre a

felicidade buscada na vida e a obra buscada na arte, aproximadas pelo problema

da formação, que o “desconhecido” explica ao dizer que “ocorre com essa arte

como em todas: só a capacidade nos é inata; faz-se necessário, pois, aprendê-la e

exercitá-la cuidadosamente”61.

Esse desafio geral da formação, como nota Lukács, “objetiva-se como

psicologia dos heróis romanescos: eles buscam algo”62. É como se a forma do

romance fosse o espelho da própria modernidade, à diferença da narrativa antiga.

Por isso, “a primeira é consagrada a um herói, uma peregrinação, um combate; a

segunda, a muitos fatos difusos”63, como observou Benjamin. Tanto o Meister, de

Goethe, quanto o Heinrich, de Novalis, são personagens que estão a sós em busca

de sua formação, a despeito do caminho distinto que esta toma para um e para

outro. Para nenhum deles está em jogo o destino da comunidade, mas o destino

individual, ao contrário do que ocorria com o herói da epopéia antiga, “pois a 58 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 76.59 Friedrich Schlegel, “Über Goethes Meister”, in Kritische Schriften (München, Carl HanserVerlag, 1970), p. 469.60 J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 83.61 Ibid., p. 83.62 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 60.63 Walter Benjamin, “O narrador”, in Magia e técnica, arte e política (São Paulo, Brasiliense,1994), p. 211.

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perfeição e completude do sistema de valores que determina o cosmos épico cria

um todo demasiado orgânico para que uma de suas partes possa tornar-se tão

isolada em si mesma, tão fortemente voltada a si mesma, a ponto de descobrir-se

como interioridade”64, o que já ocorre no romance, conforme mostrou Lukács.

Essa formação, contudo, não era, segundo Schlegel, o desenvolvimento

teleológico para certo fim determinado. Tal opinião pode soar estranha, já que o

Meister termina com as seguintes palavras: “sei que alcancei uma felicidade que

não mereço e que não trocaria por nada no mundo”65. Meister alcança a

felicidade, o enredo se fecha e chegamos à sua conclusão. Estaria completada a

educação. Mas, a despeito daquelas palavras que situam o sentimento da vida do

personagem, como explicar que, no que diz respeito à vida da obra, seu fim não

deixe de ser algo abrupto, como se as coisas subitamente se resolvessem?

Quão decepcionado o leitor desse romance deve ficar ao fim, pois nada resulta detodos aqueles arranjos educacionais, a não ser um singelo encanto; e por trás detodos aqueles oportunos acontecimentos incríveis, das insinuações proféticas eaparições misteriosas, não há nada a não ser a mais lúcida poesia.66

Essas palavras de Schlegel buscavam sublinhar que o Meister era poesia,

embora escrita em prosa e não em verso, portanto, os conteúdos dos episódios

contados ao longo do enredo valem pela forma poética na qual aparecem e pela

qual se conjugam entre si. É por isso que os “críticos são, em geral, unânimes ao

elogiar o entendimento de Friedrich Schlegel das mais finas tonalidades da

estrutura do romance”, observa Ernst Behler, “mas ficam, simultaneamente,

decepcionados com sua aparente incapacidade completa para compreender a meta

final e concretização do aprendizado de Wilhelm”67. É que, para Schlegel, não é a

continuidade prosaica e progressiva da formação do personagem que faria da obra

de Goethe o epicentro da teoria romântica da literatura em sua própria época.

Seria, antes, sua construção formal reflexiva cuja essência é poética.

64 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 67.65 J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 575.66 Friedrich Schlegel, “Über Goethes Meister”, in Kritische Schriften (München, Carl HanserVerlag, 1970), p. 470.67 Ernst Behler, German Romantic Literary Theory (Cambridge, Cambridge University Press,1993), p. 176.

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Por isso, Schlegel afirma que “a poesia puramente poética de Goethe é a

mais completa poesia da poesia”68, ou seja, ela pratica a “poesia transcendental”

almejada pelos primeiros românticos alemães. É chamada de transcendental

porque não se preocupa tanto com seus objetos quanto com o modo de poetizá-

los. No caso do Meister, essa abordagem explica o que Schlegel dizia. Não é tanto

o conteúdo da vida do personagem que está em questão, mas sim a forma literária

pela qual ela é organizada enquanto obra de arte no livro do Goethe. Este é o

desafio da arte moderna. Lukács comenta que se trata, então, da “tentativa

desesperada, puramente artística, de produzir pelos meios da composição, com

organização e estrutura, uma unidade que não é mais dada de maneira

espontânea”, completando, ainda, que é “uma tentativa desesperada e um fracasso

heróico”, já que “uma unidade pode perfeitamente vir à tona, mas nunca uma

verdadeira totalidade”69. No caso do Meister, de Goethe, essa tentativa aparece

sob a forma de poesia da poesia, segundo Schlegel, pois é poesia que se sabe

enquanto poesia.

Tal operação acontece pelo emprego da ironia presente no texto, segundo

Schlegel. Ela funciona como consciência da obra em relação a si mesma. Luiz

Costa Lima notou que, nesse contexto, “sem o emprego de uma técnica

distanciadora, a presença do tão-só humano ameaçaria comprometer o sentido da

cena, dando a entender que a meta visada fossem os tipos que as personagens

encarnam e não o texto que compõem”, acrescentando ainda que “ao mesmo

tempo que assegura o contato com o humano, a ironia impede que o humano

usurpe o lugar do texto”70. É que a totalidade da obra literária não vem da

totalidade realista das estórias dos personagens, mas da construção poética na

linguagem.

Por conta disso, Schlegel enfatiza o caráter poético de Goethe, mais do

que o desfecho da narrativa. E, quando não o faz, critica Goethe pela ausência da

relação com o infinito em sua obra, ou seja, pelo fechamento que o enredo

encerra. Num fragmento, Schlegel já deixara dito que “uma obra está formada

quando está, em toda parte, nitidamente delimitada, mas é, dentro dos limites,

ilimitada e inesgotável; quando é de todo fiel, em toda parte igual a si mesma e,

68 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 91 (Athenäum,Fr. 247).69 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 54.70 Luiz Costa Lima, Limites da voz: Montaigne, Schlegel (Rio de Janeiro, Rocco, 1993), p. 212.

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no entanto, sublime acima de si mesma”71. É de acordo com essa tese que ele

pretende ler Goethe. Está em jogo, antes da formação de Meister, a formação da

obra da qual ele é protagonista. E aquela, ao contrário deste, acaba, mas não

termina, ou seja, é lançada ao infinito.

*

Se Friedrich Schlegel, mesmo dando a Goethe o estatuto da poesia e da

reflexão espiritual, às vezes não considera que ele realizou o romance em sua

essência, a razão não está em falhas do autor, mas no horizonte amplo de quem

considera, como vimos, que o gênero romântico “só pode vir a ser, jamais ser de

maneira perfeita e acabada”, logo, “não pode ser esgotado por nenhuma teoria”72.

Se “o consumo de romances nos séculos XVII e XVIII era enorme, como o

entusiasmo que eles despertavam; mas só um ou outro crítico os considerava algo

mais que um divertimento fácil”73, como apontou Antonio Candido, certamente o

horizonte dos primeiros românticos estava dentro deste seleto grupo de críticos.

Justo porque os romances “não tinham a nobreza conferida pela tradição teórica

nem a chancela das formas poéticas definidas”74, eles não apenas somavam mais

um gênero à classificação antiga, mas fundiam o dramático, o lírico e o épico,

abrindo a possibilidade de pensar a literatura como absoluto em que todos os

textos comunicam-se entre si, como o grande Livro de todos os livros, tese que,

depois, ressoaria em Mallarmé.

“Eu me animaria a tentar uma teoria do romance”75, afirma Antonio,

personagem criado por Schlegel na Conversa sobre a poesia, contrariando o que

dissera seu autor. “Semelhante teoria do romance teria de ser, ela mesma, um

romance que reproduzisse fantasticamente cada nota eterna da fantasia”76,

completa. Em suma, a teoria do romance precisava ser ela mesma romance porque

a derrubada da tradicional divisão de gêneros atinge seu ponto culminante ao

conceber que a própria crítica faz parte da literatura, não se situa fora dela. 71 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 100 (Athenäum,Fr. 297).72 Ibid., p. 65 (Athenäum, Fr. 116).73 Antonio Candido, “O patriarca”, in A educação pela noite (Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul,2006), p. 87.74 Ibid., p. 87.75 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 68.76 Ibid., p. 68.

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Realizar esta teoria crítica é fazer filosofia, até porque “os romances são os

diálogos socráticos de nossa época”, já que, “nessa forma liberal, a sabedoria da

vida se refugiou da sabedoria escolar”77. Essa filosofia do romance como gênero

dos gêneros é o “livro por vir” romântico, no qual “viveriam os velhos seres em

novas feições; ali a sombra sagrada de Dante se ergueria de seu inferno, Laura

passearia de modo celestial ante nossos olhos, e Shakespeare conversaria em

intimidade com Cervantes – lá Sancho poderia gracejar novamente com Dom

Quixote”78.

77 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 23 (Athenäum,Fr. 26).78 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 68.

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Entre a regra e a liberdade:

a criação do gênio

Em seus cursos de estética, Hegel afirma que, antes dele, no fim do século

XVIII, surgira a “época do assim chamado período do gênio, período que foi

instituído pelas primeiras produções poéticas de Goethe e, então, pelas de

Schiller”1. Referindo-se ao momento em que os dois escritores, ainda jovens,

participaram do pré-romantismo alemão, Hegel os destacava como figuras de proa

do que então nascia: a estética do gênio. Por esta palavra, ele buscava denotar a

quebra com a obediência às ordens classicistas para a arte. Em seu lugar estava,

agora, a liberdade da criação, que se encarnara em obras como o Götz von

Berlichingen, de Goethe, e Os salteadores, de Schiller, nas quais as normas

tradicionais de composição eram desrespeitadas. Segundo Hegel, as “regras

práticas foram então na Alemanha violentamente descartadas”, sendo que “o

direito do gênio, as suas obras e os efeitos delas foram afirmados contra as

pretensões presunçosas daquelas legislações e vastas torrentes de teorias”2.

Sabemos que a noção de gênio ganha força com a busca romântica pela

autonomia da criação na arte face às pretensões que tornavam algumas estéticas

classicistas anteriores legislações para orientar obras como se fossem réus.

Embora admita essa conquista, Hegel esclarece que, ao fim, não simpatiza com o

que seria o gênio, que é “em parte inflamado por um objeto, em parte pode

colocar-se neste estado voluntariamente, sem esquecer o bom serviço da garrafa

de champanhe”3. Em sua provocação, Hegel fala da garrafa de champanhe para

destacar a participação de forças não transparentes para aquele que cria durante a

criação. Ela não seria, portanto, controlada. Seria fruto apenas do “entusiasmo”.

Logo, essa teoria do gênio, para Hegel, “considera não só supérfluo, mas também

prejudicial para a produção artística toda consciência sobre sua própria

1 G. W. F. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 49.2 Ibid., p. 43.3 Ibid., p. 49.

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atividade”4. É essa ausência absoluta da consciência no processo criativo que

Hegel não pode tolerar e, por isso, precisa sublinhar sua discordância com o

elogio ao gênio.

Entretanto, o próprio Hegel comenta “as confusões que imperam sobre o

conceito de entusiasmo e de gênio”5. Dele até nossos dias, as confusões, ao invés

de diminuírem, aumentaram. Poucas palavras, ao longo da modernidade,

envolveram tantas definições quanto “gênio”. Sabemos, claro, que o romantismo

foi a época privilegiada de elaboração do conceito. Nem podia ser diferente, já

que os primeiros românticos contestavam, por exemplo, a tradicional divisão dos

gêneros poéticos, que para eles se misturavam na forma do romance, espécie de

literatura que aglomerava discursos das mais diversas naturezas. Para criar a

literatura romântica, então, exigia-se o gênio que não se submete cegamente aos

parâmetros classicistas do passado, formulando a produção moderna da arte. Esta

arte precisaria de reflexão, contrariando o veredicto de Hegel sobre a total

ausência de consciência do gênio. Nas próximas linhas, buscaremos compreender

a gênese do conceito de gênio até a sua formulação romântica, para mostrar que

ela é mais complexa do que pretende a acusação de Hegel e só por isso pode estar

na base da criação da arte moderna.

*

Ecoam, na origem da criação moderna do gênio, as antigas palavras de

Platão: “quem chegar às portas da poesia sem a inspiração das Musas, convencido

de que pela habilidade se tornará um poeta capaz, revela-se um poeta falho”.

Tratava-se, para ele, “de possessão divina e de loucura”6. É provável que Hegel

tivesse essa passagem do Fedro em mente ao criticar o gênio como aquele que

abdica da consciência e do esmero no processo criativo para se disponibilizar a

sair de seu estado normal e criar divinamente. Inspiração, não transpiração, seria a

marca do gênio. Nessa linha, até teóricos franceses admiradores de Descartes,

4 Ibid., p. 49.5 Ibid., p. 49.6 Platão, Fedro (Lisboa, Edições 70, 1997), p. 59 (245a).

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como Jean-Baptiste Dubos7 e Charles Batteux8, rendem-se aos poderes do gênio

na arte durante o século XVIII, a despeito de seu racionalismo.

Entre os ingleses, desde cedo Shaftesbury afirma que era comum “para

poetas, na entrada de suas obras, dirigirem-se para alguma Musa, e esta prática

dos antigos ganhou tanta reputação que até em nossos dias a achamos

constantemente copiada”9. Esta cópia, porém, seria feita pelos modernos só pelo

hábito de seguir o senso-comum e a moda da tradição, lamenta Shaftesbury. Ele

denuncia a diferença entre o “ar do entusiasmo, que se assenta tão graciosamente

nos antigos”, e o que é “sem espírito e inábil num moderno”10. Epígonos dos

antigos, os artistas modernos, em sua maioria, não seriam geniais, ainda que

pudessem agradecer às Musas. Gênios, porém, nunca são maioria. Foi o que

sublinharam Robert Wood11 e Edward Young12 com o conceito de originalidade.

Em 1759, Young escreve após o contato com o Paraíso perdido, de Milton, e as

tragédias de Shakespeare, obras que não se deixariam explicar pelos critérios das

poéticas antigas. Eram geniais. Nada copiavam, logo, não ofereciam modelos a

partir dos quais poderiam ser julgadas.

Esse começo da teoria do gênio moderno atinge o cume entre os alemães,

para os quais a originalidade de Shakespeare continua crucial13. Lessing desejava

colocá-lo no lugar ocupado por Corneille e Racine, símbolos da criação pautada

pelas regras da estética neoclássica francesa. Preocupado com o teatro nacional,

ele queria deslocar o referencial da dramaturgia alemã na direção de Shakespeare,

pois “um gênio só pode ser inflamado por outro gênio, e com maior facilidade por

um que pareça dever tudo à natureza e que não intimide pelas árduas perfeições da

arte”14. Goethe, em 1771, confessa, no estilo exaltado que o fez aderir ao pré-

romantismo alemão na juventude, o quanto o gênio de Shakespeare determinara

seu próprio, confirmando a previsão de Lessing. Foi preciso colocar Shakespeare

como referência para que surgisse o gênio alemão: Goethe.

7 Jean-Baptiste Dubos, Réflexions critiques sur la poésie et sur la peinture (Paris, Pissot, 1770).8 Charles Batteux, Les beaux arts réduits à un même principe (Paris, Chez Durand, 1747).9 Earl of Shaftesbury, “A letter concerning enthusiasm to my Lord”, in Characteristics of men,manners, opinions, times (New York, Cambridge University Press, 1999), p. 4.10 Ibid., p. 5.11 Robert Wood, An essay on the original genius and writings of Homer (London, H. Hughs,1775).12 Edward Young, Conjectures on original composition (Ithaca, Cornell University Library, 2009).13 Conferir o livro de Pedro Süssekind, Shakespeare: o gênio original (Rio de Janeiro, JorgeZahar, 2008).14 G. E. Lessing, “Cartas”, in De teatro e literatura (São Paulo, EPU, 1991), p. 110.

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Ao ler sua primeira página tornei-me seu adepto para toda a vida, e ao terminar aprimeira peça, senti-me como um cego de nascimento a quem fora dado derepente a vista por uma mão milagrosa. Reconheci, senti vivamente que toda aminha existência se alargara infinitamente, tudo era novo, desconhecido, e a luz aque não estava acostumado doía-me nos olhos. Aos poucos aprendi a enxergar etenho de dar graças ao meu gênio reconhecido, se ainda hoje sinto vivamente oque ganhei.15

Goethe deixa claro o laço fraternal que o liga a Shakespeare: a partir dali,

afirma, “não tive a menor dúvida de renunciar ao teatro regular”16. Por teatro

regular, Goethe tem em vista o que respeita as unidades de lugar, tempo e ação na

composição das peças, conforme as prescrições classicistas oriundas das lições

poéticas aristotélicas. Elas soavam como “cadeados maçantes para nossa

imaginação”17. Shakespeare aparecia, então, como possibilidade de criação

dramatúrgica fora de tais marcos. Era a partir dele que Goethe entendia seu

projeto literário: “quando via quanta injustiça havia sofridos dos Senhores das

Regras dentro de seus cárceres e quantas almas livres ainda lá se torciam

aprisionadas, meu coração teria arrebentado, se não lhes houvesse declarado

guerra”18.

Durante o pré-romantismo, Goethe estendeu o significado do gênio para

além do campo da arte. É o que lemos em Os sofrimentos do jovem Werther. Fiel

à sensibilidade aflorada de então, o personagem exige a singularidade do gênio na

conduta da vida em geral, que não devia ser submetida aos padrões sociais

tradicionais.

Um coração juvenil pende inteira e unicamente de uma moça, passa a seu ladotodas as horas do dia, oferece-lhe todas as suas forças, tudo o que possui para lhedeixar claro a todo instante que se entregou a ela por inteiro. E eis que vem umfilisteu, um homem de boa posição, com cargo público, e lhe diz: “Meu bomrapaz! Isso de amar é próprio do homem; porém tendes de amar como homem!Dividi bem o vosso tempo, dedicando parte dele ao trabalho, e as horas de folga àvossa namorada. Calculai vossa fortuna e, com o que sobrar depois de atendidasvossas necessidades, não vos proíbo de dar a ela de vez em quando, mas não commuita freqüência – talvez no aniversário e no dia do seu santo –, umpresentinho…” Se o nosso rapaz seguir esses conselhos, se tornará uma pessoabastante útil, e eu até mesmo o recomendaria a qualquer príncipe, a fim de lhe darum emprego em sua chancelaria; mas quanto ao amor, adeus… E se for artista,

15 J. W. Goethe, “Para o dia de Shakespeare”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo,EPU, 1991), p. 66.16 Ibid., p. 66.17 Ibid., p. 66.18 Ibid., p. 67.

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adeus talento. Ó meus amigos! Por que é que a torrente do gênio transborda tãopoucas vezes e tão poucas vezes chega a ferver, em encrespadas ondas, sacudindovossas almas letárgicas?19

Não apenas na arte, mas também no amor, seria preciso gênio, segundo

Werther. Em suma, o pré-romantismo fez do gênio a arma de sua luta contra as

regras, na arte e na sociedade. Individualidade genial era oposição às normas

gerais. “Pode-se dizer muito a favor das regras, mais ou menos tanto quanto se

pode dizer para louvar as etiquetas da sociedade burguesa”, comenta Werther, já

que “um homem que se forme seguindo-as, jamais produzirá algo falto de gosto

ou ruim”; ele o faz, porém, só para arrematar que, “em compensação, as regras,

por mais que se diga algo em favor delas, destroem o verdadeiro sentimento da

natureza e sua genuína expressão”20. Essas palavras explicitam o esquema

compreensivo de Werher: de um lado a mediocridade das normas construídas pela

cultura e de outro a natureza não maculada por elas. É a esta que o gênio filia-se,

pois sua expressão é genuína: aí fica a singularidade. Ela serve à arte como

inspiração que prescinde de modelos. Werther quer se “prender apenas à

natureza”, pois “só ela é infinitamente rica e só ela é que forma os grandes

artistas”; para ele, “a cidade em si é desagradável, mas nos arrabaldes a natureza é

de uma beleza indizível”21.

Tal natureza podia ser exterior ou interior, desde que não corrompida. Na

natureza interior da subjetividade, as regras não teriam poder e a singularidade do

“eu” estaria viva. No que diz respeito a Werther, “sua desigualdade se fundará

também interiormente”22, como notou Irley Franco23. Roland Barthes considera a

amada de Werther, Carlota, “a personagem medíocre de uma encenação forte,

atormentada, armada pelo sujeito Werther”24. Embora narre este amor, o livro,

19 J. W. Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther (Porto Alegre, L&PM, 2001), p. 25-26.20 Ibid., ps. 24-25.21 Ibid., ps. 14.22 Irley Franco, “Eros Platônico e Moderno”, in Revista O que nos faz pensar, n. 01 (Rio deJaneiro, PUC-Rio, 1989), p. 78.23 E, ainda aí, há o dedo de Shakespeare. Em Romeu e Julieta, por exemplo, o homem étematizado como “ser psicológico que obedece a linhas de ação independentes das regras queorganizam a vida social em termos de grupos, papéis, posições”, como notaram Eduardo V. deCastro e Ricardo Benzaquem. Embora proibido pelas famílias rivais, o amor dos personagens évivido. E a peça, através dele, fala da “origem do indivíduo moderno”, de “sua dimensão interna”.E. B. Viveiros de Castro e Ricardo Benzaquen de Araújo, “Romeu e Julieta e a origem do Estado”,in Arte e sociedade (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1978), p. 142.24 Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso (Rio de Janeiro, Francisco Alves, 2001),p. 45.

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escrito na forma epistolar, só tem as cartas do remetente. Ele apresenta apenas os

sentimentos do personagem, que, como vimos, admite: não tratará seu

“coraçãozinho” senão “como uma criança doente, satisfazendo-lhe todas as

vontades”25. Segundo Hannah Arendt, “o indivíduo moderno e seus intermináveis

conflitos, sua incapacidade de sentir-se à vontade na sociedade ou de viver

completamente fora dela, seus estados de espírito em constante mutação e o

radical subjetivismo de sua vida emocional nasceram dessa rebelião do coração”,

sendo que esta “reação rebelde contra a sociedade, no decorrer da qual Rousseau e

os românticos descobriram a intimidade, foi dirigida, em primeiro lugar, contra as

exigências niveladoras do social, contra o que hoje chamaríamos de conformismo

inerente a toda sociedade”26.

“Já nos últimos anos do século”, porém, como nota Anatol Rosenfeld,

“inicia-se o movimento romântico propriamente dito, separado do pré-romantismo

por uma imensa ampliação de horizontes”27. Era o fim do século XVII com os

primeiros românticos, para quem, “quanto ao mais elevado, não devemos confiar

de modo tão exclusivo em nosso coração”28, como disse Friedrich Schlegel. Se é

verdade que “em quem esta fonte secou nenhuma outra jorrará”, também

“devemos, aonde quer que seja, nos associar ao cultivado, ao que já tomou

forma”29. Eis o delocamento face aos pré-românticos.

*

Entramos, assim, na separação dos primeiros românticos em relação ao

movimento pré-romântico Sturm und Drang, “Tempestade e Ímpeto”, assim

nomeado por conta da peça homônima de F. M. Klinger. Este fizera da

subjetividade a expressão natural que constituiria a criação na arte e na vida.

Ímpeto, ousadia e petulância fariam a tempestade violenta para acabar com a

clareza solar classicista. Essa caricatura esteve presente algumas vezes com os

pré-românticos, mas raramente nos primeiros românticos, de quem jamais

ouviríamos as seguintes palavras, declaradas por Werther no romance de Goethe. 25 J. W. Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther (Porto Alegre, L&PM, 2001), p. 17.26 Hannah Arendt, A condição humana (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999), p. 49.27 Anatol Rosenfeld, “Introdução: da Ilustração ao Romantismo”, in Autores pré-românticosalemães (São Paulo, EPU, 1991), p. 8.28 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 54.29 Ibid., p. 54.

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Mais de uma vez me embebedei, minhas paixões nunca estiveram longe dademência, e não me arrependi de nenhuma das coisas que fiz, pois graças a elaspude compreender, por excelência própria, como todos os homensextraordinários que levaram a cabo alguma coisa grande, alguma coisa reputadaimpossível, desde sempre foram declarados ébrios e dementes…30

Entendemos agora a acusação de Hegel sobre o emprego da garrafa de

champanhe pelos gênios: a aproximação do estado do louco e do bêbado servia

como fonte não apenas simbólica, mas efetiva, para que eles criassem sem a

vigilância autoconsciente orientada pelas regras. Toda a antipatia de Hegel com o

conceito de gênio fica ainda mais clara quando lembramos que ele tinha em

mente, ao dizer isso, exatamente obras dos jovens Schiller e Goethe, como Os

sofrimentos do jovem Werther. “Em suas primeiras obras estes poetas partiram do

zero ao pôr de lado todas as regras que na época foram fabricadas e ao agir

intencionalmente contra elas”31. Essa observação vale, ao menos em parte, para o

que pensaram os pré-românticos. Mas não para os primeiros românticos.

Prova disso é que a avaliação de Hegel sobre Goethe concorda com a que

Friedrich Schlegel fizera na Conversa sobre a poesia. Ele critica as obras que

abrem a trajetória de Goethe, levando em conta o mesmo critério que Hegel

aplicaria depois. “Não encontrarão com facilidade outro autor cujas primeiras e

últimas obras sejam tão notavelmente diferentes quanto neste caso”, diz Schlegel:

“trata-se da mais aguda oposição entre todo o ímpeto do entusiasmo juvenil e a

madurez de uma formação plenamente acabada”. Sua conclusão é que, do ímpeto

à formação, ocorreu “a progressão de um desenvolvimento ascendente”32. Para

Schlegel, “Goethe purificou-se, em seu longo percurso, das efusões do ímpeto

inicial”33. Tal desenvolvimento, porém, não fez dele menos gênio, e sim mais,

pois o gênio, para os primeiros românticos, não precisa deixar de refletir ou se

cultivar.

Tanto é assim que o diagnóstico que os primeiros românticos fazem da

trajetória de Shakespeare tem o mesmo feitio. Suas primeiras obras, embora

“profundas, grandiosas e cheias de engenho”, seriam “incompletas e sem

perspectiva”. Só depois aparece o “lindo e doce cultivo do belo espírito”, graças à

30 J. W. Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther (Porto Alegre, L&PM, 2001), p. 72.31 G. W. F. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 49.32 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 72.33 Ibid., p. 76.

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“maturação” em seu percurso, com peças, agora, dotadas de “mais plenitude,

encanto e espirituosidade”. Nem por isso, contudo, são menos geniais. São tão

geniais que os primeiros românticos desejam qualificá-las de românticas para

poderem se filiar a elas. São “todos os seus dramas insuflados pelo espírito

romântico que, unido à grande profundidade, os marca da forma mais

característica, deles fazendo um fundamento romântico do drama moderno que

durará por toda a eternidade”34.

Retornando a Goethe, ele, após sua fase juvenil, persiste dando

importância ao conceito de gênio, como lemos no livro mais admirado pelos

primeiros românticos, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Nele, o teatro

tem papel decisivo na fromação do personagem, sendo sua descoberta do gênio de

Shakespeare crucial. Mas ele só chega lá após abandonar o preconceituoso

privilégio que concedia ao teatro francês, como veremos agora. Era isto que

importava aos primeiros românticos.

“Haviam dito a Wilhelm que em tais ocasiões deveria elogiar o favorito do

príncipe, Racine, o que causaria boa impressão”35. Nesta altura, o personagem

está em uma corte. Ele segue o conselho e, na primeira oportunidade, disserta para

o príncipe sobre as maravilhas do teatro neoclássico de Racine e Corneille. Não

percebe, na ânsia de agradar, que, embora o príncipe lhe tivesse perguntado se lia

a grande dramaturgia francesa, já perdera o interesse e se dirigia a outras pessoas.

No meio das loas que tecia, Wilhelm é então interrompido pelo nobre Jarno, que

pergunta se ele já assistira a alguma peça de Shakespeare. Wilhelm responde que

não, justificando: “tudo que ouvi dizer dessas peças não me despertou a

curiosidade de conhecer mais a fundo esses monstros estranhos, que parecem

ultrapassar qualquer verossimilhança, quaisquer conveniências”36.

Essas palavras não são casuais e tampouco são fruto de alguma

particularidade do personagem. Pelo contrário, elas refletem boa parte das críticas

da época. Shakespeare era reprovável porque, a despeito do talento, não

conseguira domá-lo com a razão na obediência às regras do classicismo,

desrespeitando a verossimilhança e as conveniências. É o que diz, por exemplo,

Voltaire, com palavras parecidas às do personagem de Goethe. Para ele,

34 Ibid., p. 43-44.35 J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 182.36 Ibid., p. 183.

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Shakespeare faz “farsas monstruosas, chamadas tragédias”, e suas peças são

“desprovidas de conveniência”37. Essa recorrência da referência à monstruosidade

advém do fato de que, do ponto de vista da composição tradicional, as peças de

Shakespeare pareciam deformadas, já que não seguiam as unidades de tempo, de

lugar e de ação.

No caso do romance de Goethe, porém, a apreciação de Wilhelm será

alterada. Jarno empresta livros de Shakespeare a ele, dizendo: “em nada poderá

empregar melhor seu tempo do que, ao se livrar imediatamente de tudo, ver na

solidão do seu velho quarto a lanterna mágica desse mundo desconhecido”. E

completa: “só uma coisa exijo: que não se escandalize com a forma; o resto, deixo

aos cuidados do seu justo sentimento”38. Essa ressalva sublinha que mesmo os

admiradores de Shakespeare sabiam que a forma de suas composições não estava

de acordo com o que o senso-comum estético da época esperava.

Wilhelm, então, “recebeu os livros prometidos e em pouco tempo, como

se pode presumir, arrebatou-o a torrente daquele grande gênio, conduzindo-o a um

mar sem fim, no qual rapidamente se esqueceu de tudo e se perdeu”39. Inúmeras

passagens se seguem no livro sobre a experiência que produz em Wilhelm a

leitura do gênio inglês. “Ele vivia e se movia no universo shakespeariano”, afirma

o narrador. “Sentado, e com movimento ignorado agitavam-se nele mil sensações

e faculdades, das quais não havia tido nenhuma noção, nenhuma idéia”40. Depois,

ao encontrar Jarno, agradece confessando: “não lembro de nenhum outro livro, ser

humano nem de qualquer acontecimento da vida que tanta impressão me tenha

causado quanto essas peças magníficas, que graças à sua bondade pude conhecer”.

Por fim, Wilhelm decreta: “parecem obra de um gênio celestial”41.

*

Nas declarações de Goethe sobre Shakespeare, em ensaios ou romances,

as obras criadas pelo gênio transformam os que entram em contato com elas. Não

37 Voltaire, “Cartas inglesas”, in Os pensadores, v. XXIII (São Paulo, Abril Cultural, 1973), p. 39e 41.38 J. W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 183-194.39 Ibid., p. 183-194.40 Ibid., p. 183-194.41 Ibid., p. 183-194.

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se submetem às regras tradicionais, logo, abrem novos caminhos de sensibilidade.

Essa visão de Goethe era influenciada pelo líder do movimento pré-romântico

alemão, seu mestre na juventude: Johann Gottfried Herder. Para ele, “os

adversários de Shakespeare inculpam-no e dele escarnecem porque, embora um

grande bardo, não chegaria a ser um bom dramaturgo, e, sendo-o, não chegaria a

ser na verdade um autor trágico tão clássico como Sófocles, Eurípedes, Corneille

e Voltaire”, enquanto seus amigos “vêm-se contentando em, nisso, apenas

desculpá-lo e salvá-lo; ponderando e compensando as belezas de sua obra sempre

em relação às regras violadas” 42. Para Herder, tanto aquele ataque quanto esta

defesa de Shakespeare não dão conta de seu gênio. Enaltecer seu talento e a

beleza de sua obra a despeito dos erros na desobediência aos parâmetros

classicistas era, ainda, reconhecer tais erros, embora lhes conferindo menor

relevância. Só que Shakespeare não é genial apesar de seus erros, mas por causa

deles. É porque infringe a legislação estética tradicional que pode trazer ao mundo

obras diferentes. Seus erros são seus maiores acertos.

Essa apreensão de Herder pôde ocorrer graças à sua filosofia da história,

coisa não tão comum àquela época. Dado que Shakespeare criava em solo e em

tempo distintos dos gregos antigos, não poderia simplesmente copiá-los. Mesmo

para chegar no patamar da arte grega, o artista moderno precisaria ser diferente, já

que seu habitat é outro. Logo, conclui Herder, “Shakespeare irmana-se a Sófocles

justamente onde lhe é na aparência tão dessemelhante, para ser no fundo de todo

igual a ele”43. Tal fato explica-se pela produção do gênio. Ele é “dotado de força

divina para justamente de matéria contrária e através de uma elaboração

totalmente diversa, produzir o mesmo efeito”44. Nesse sentido, o gênio só cria

obras que se situam no âmbito de excelência da arte grega antiga porque não a

copia.

Herder pensa na chance de que, “nesta época feliz ou infelizmente

modificada existisse um gênio, que de sua matéria extraísse uma criação

dramática tão natural, grande e original como os gregos o fizeram com a sua, e

essa criação, justamente pelos mais diversos caminhos, alcançasse o mesmo

42 J. G. Herder, “Shakespeare”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU, 1991), p. 66.43 Ibid., p. 58.44 Ibid., p. 49.

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objetivo”45. Destaque-se, aqui, a emergência do valor da originalidade do

presente, que só ocorreria com a criação natural, pois ela não se fia a regras do

passado. Ninguém deveria criticar a “segunda criação”, como a chama Herder, por

não ser a “primeira”, pois “toda a sua essência, virtude e perfeição está em que

não é a primeira”46. Novo solo, outra planta. Não se deveria criticar Shakespeare

por não obedecer aos princípios formais clássicos, já que ele floresceu em outro

ambiente.

J. M. R. Lenz, em suas notas sobre o teatro, tomava o mesmo caminho do

elogio ao gênio. Mas aguçava, em tom provocador, seu traço de espontaneidade,

por oposição ao do estudo acadêmico das regras. “Chamamos de gênios aos

cérebros que penetram imediatamente em tudo que lhe vêm à frente, que tudo

enxergam nitidamente até o fundo, de tal modo que seu conhecimento tem o

mesmo valor, volume e clareza como se for adquirido pela intuição”47.

Estabelece-se, aqui, a oposição que caracteriza boa parte da difusão do conceito

de gênio até hoje. Intuição contra reflexão. Todo gênio não deve carecer de

mediações reflexivas, pois tem acesso direto pelos sentidos àquilo que cria.

Seria olhando direto para a natureza, e não para como os clássicos a

apreenderam, que nos juntaríamos a eles, que também teriam procedido assim.

“Nisso Shakespeare é o grande mestre, justamente por ser sempre e unicamente

servo da natureza”48, diz Herder. No lugar da apropriação neoclássica das lições

poéticas aristotélicas como referência para a criação, surge o gênio natural.

Hamann afirma que o gênio “substitui em Homero o desconhecimento das regras

artísticas, depois dele pensadas por Aristóteles”, assim como “substitui em

Shakespeare o desconhecimento ou o desprezo das próprias leis críticas”49.

Ironicamente, Lenz chega a perguntar se “a natureza pediu conselhos a

Aristóteles, para ser genial”50. Se ela não precisou, os artistas modernos também

não. Eles devem olhar para a natureza, seja interior ou exterior, se querem criar

originalmente as suas obras.

45 Ibid., p. 48.46 Ibid., p. 48-49.47 J. M. R. Lenz, “Anotações sobre o teatro”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU,1991), p. 102.48 J. G. Herder, “Shakespeare”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU, 1991), p. 54.49 J. G. Hamann, “De Escritos e Cartas”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU,1991), p. 27.50 Ibid., p. 110.

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Essa fuga do homem moderno de seu mundo social conformista procurava

abrigo na natureza ou no coração. Mas, se houve uma rebelião romântica, ela não

parou aí. Esta não é a única face que ela tem, assim como o conceito de gênio não

é só o da potência subjetiva espontânea prevalecendo sobre tudo o mais. Essas

não foram, por exemplo, as idéias de Kant, que produziu a mais importante

reflexão filosófica sobre o gênio até hoje e que determinou o modo pelo qual os

primeiros românticos alemães o pensaram.

*

Em 1789, Kant escrevia “que o gênio é um favorito da natureza”51,

aproximando-se dos que apelavam para a natureza como referencial para a criação

na arte, ao invés de deixar este lugar para as regras classicistas. Juntava-se, assim,

à reviravolta histórica na determinação platônica e aristotélica da arte como

imitação (“mimésis”). “É na criação, não na imitação, que se atingirá a ‘verdade’

da natureza”, disse Ernst Cassirer, já que “o íntimo acordo com a natureza que é

exigido da arte não significa que ela esteja envolvida na realidade das coisas

empíricas e que deva contentar-se em copiá-las”52. Ele tinha em vista, sobretudo,

a filosofia de Shaftesbury, que nesse ponto prenuncia a estética de Kant. No

gênio, a arte “não imita simplesmente o produto mas o ato de produção, não o que

é engendrado mas a própria gênese”, explicou Cassirer: “mergulhar diretamente

nessa gênese e participar nela intuitivamente, eis a verdadeira natureza e o

mistério do gênio”53.

Fiando-se na natureza, o gênio é o “talento para produzir aquilo para o

qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada”, logo, “originalidade tem

de ser sua primeira propriedade”54, afirma Kant. Pela singularidade, e não pela

semelhança a modelos, nasce a obra. Mas nem por isso o gênio depende da

subjetividade aflorada, pois a criação não é fruto seu, e sim da genialidade, que

não lhe pertence. Kant dizia que o gênio “não sabe como as idéias para tanto

encontram-se nele e tampouco tem em seu poder imaginá-las arbitrária ou 51 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 164(200).52 Ernst Cassirer, A filosofia do iluminismo (Campinas, Editora da Unicamp, 1997), p. 427.53 Ibid., p. 417-418.54 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 153(182).

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planejadamente e comunicá-las a outros em tais prescrições, que as ponham em

condição de produzir produtos homogêneos”55. Toda criação viria do “dom

natural”: quem age, quando o gênio cria, é a natureza por meio do artista, não o

artista a partir de si.

Por isso, para o romantismo de August Schlegel, é “sinal característico do

gênio poético saber muito mais do que sabe que sabe”56. Seu dizer artístico

sempre excede suas explicações. Friedrich Schlegel dizia que “assim como uma

criança é, na verdade, algo que quer se tornar um homem, assim também o poema

é somente algo natural que quer se tornar uma obra de arte”57. Este poema estaria

escrito potencialmente na natureza e o gênio permite a ele se tornar obra de arte.

Portanto, o artista exerce o papel de mediador, definido por Friedrich Schlegel

como “aquele que percebe em si o divino e, aniquilando-se, abandona a si mesmo

para anunciar, comunicar e expor, nos costumes e ações, em palavras e obras, esse

divino aos homens”58. Troque-se a palavra “divino” por “poesia”, em sentido

amplo, e temos a descrição da função desempenhada pelo gênio.

Ele abandona seus interesses pessoais e intenções determinadas para dar

lugar à poesia, que ao mesmo tempo é sua e não é. Logo, se o gênio é alçado às

alturas, o artista empírico do qual a genialidade se serve para criar não é. Pois a

condição de possibilidade para que a obra nasça é que o artista dê lugar para seu

gênio, e não para si. Não se trata, para Kant e para os primeiros românticos, da

inflação subjetiva, que, aliás, deve ser limitada, como observou Friedrich Schlegel

ao dizer que “em toda parte em que alguém não limita a si mesmo, é o mundo que

o limita, tornando-se, com isso, um escravo”, tanto que “só se pode limitar a si

próprio nos pontos e lados em que se tem força infinita, autocriação e auto-

aniquilamento”59. Só ao se aniquilar, o gênio pode criar.

Entretanto, apenas com a singularidade dessa passagem que começa na

natureza e, via artista, termina na obra, ocorre a genialidade. Por valorizar essa

singularidade, Friedrich Schlegel escreveu que “não são a arte e as obras que

fazem o artista, mas o sentido e o entusiasmo e o impulso”60. Parar por aqui,

55 Ibid., p. 153-154 (182).56 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 75 (Athenäum,Fr. 172).57 Ibid., p. 23 (Lyceum, Fr. 21).58 Ibid., p. 150 (Idéias, Fr. 44).59 Ibid., p. 25 (Lyceum, Fr. 37).60 Ibid., p. 30 (Lyceum, Fr. 62).

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contudo, seria endossar o conceito vulgar de gênio. Por isso, Friedrich Schlegel

afirma também que, “para poder escrever bem sobre um objeto, é preciso já não se

interessar por ele; o pensamento que se deve exprimir com lucidez já tem de estar

totalmente afastado”, pois “enquanto o artista inventa e está entusiasmado, se

acha, ao menos para a comunicação, num estado iliberal”61.

No fim das contas, então, o artista deveria estar envolvido ou distante ao

criar, entusiasmado ou não? Schlegel busca a junção tensa das duas coisas ao

dizer que, “em todo bom poema, tudo tem de ser intenção e tudo tem de ser

instinto”62. Intenção é o plano, a consciência, o domínio. Instinto é a natureza, o

impulso, o entusiasmo. Tanto um lado quanto o outro devem estar presentes nas

grandes obras de arte. Schlegel afirma, ainda, que, se o escritor “é meramente

instinto, é infantil, pueril ou estulto; se é meramente intenção, surge a afetação”,

logo, “ainda que ele mesmo não tenha tido intenção alguma, sua poesia e a

verdadeira autora dela, a natureza, têm intenção”63.

*

Denis Diderot, no percurso de suas reflexões estéticas, antecipara o dilema

do conceito de gênio que se apresenta para os primeiros românticos alemães e

para Kant. Em princípio, ele parece estipular o esquema dualista que tantas vezes

dominou as discussões modernas: gênio ou gosto, liberdade ou regra, instinto ou

reflexão, entusiasmo ou pensamento, intuição ou estudo. Ele escreve que “o gosto

é assiduamente separado do gênio”, afirmando, ainda, que “o gênio é um puro

dom da natureza”64. Segundo Diderot, “para que uma coisa seja bela segundo as

regras de gosto, ela deve ser elegante, finita, trabalhada sem que o pareça; para ser

de gênio, é preciso, às vezes, que seja negligente; que tenha o ar irregular;

escarpado, selvagem”65. Tal negligência por parte do gênio diria respeito,

justamente, às regras do gosto, o que tornaria seus produtos, do ponto de vista da

norma classicista, irregulares, imperfeitos e até monstruosos. Esclarecendo sua

61 Ibid., p. 25 (Lyceum, Fr. 37).62 Ibid., p. 23 (Lyceum, Fr. 23).63 Ibid., p. 61 (Athenäum, Fr. 51).64 Denis Diderot, “Article Génie”, in Oeuvres esthétiques (Paris, P. Vernière, 1991), p. 11.65 Ibid., p. 11.

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tese com exemplos, Diderot põe Shakespeare do lado do gênio e Racine do lado

do gosto.

Porém, Diderot abre o artigo com a tese acima afirmando: “o

entendimento do espírito, a força da imaginação e a atividade da alma, eis o

gênio”66. Ele sugere, aqui, que a força da imaginação intuitiva do gênio pode

casar com o entendimento reflexivo. Mais tarde, Diderot confirmaria essa

perspectiva de soma, e não de subtração, ao falar de “uma certa conformação da

cabeça e das vísceras”67 nos gênios. No “Paradoxo sobre o comediante”, ele situa

os “momentos totalmente inesperados” da criação como sendo os “tranqüilos e

frios”, ao invés de estarem concentrados no “furor do primeiro jato”, para, por

fim, concluir que “cabe ao sangue-frio temperar o delírio do entusiasmo”68.

Kant sabia disso. Ele afirmava que “a originalidade do talento constitui um

(mas não o único) aspecto essencial do caráter do gênio”69. Prevendo o destino de

sua teoria, comentava que “espíritos superficiais crêem que eles não podem

mostrar melhor que eles seriam gênios brilhantes do que quando renunciam à

coerção escolar de todas as regras, e crêem que se desfile melhor sobre um cavalo

desvairado do que sobre um cavalo treinado”70. Na metáfora, o cavalo é o gosto

cavalgado pelo gênio, “no qual o artista, depois de o ter exercitado e corrigido

através de diversos exemplos da arte ou da natureza, atém sua obra e para o qual

encontra, depois de muitas tentativas freqüentemente laboriosas para satisfazê-lo,

aquela forma que o contenta”, portanto, “esta não é como que uma questão de

inspiração ou de um elã livre das faculdades do ânimo, mas uma remodelação

lenta e até mesmo penosa”71.

Friedrich Schlegel fala de combinação próxima à de gênio e gosto, ao

declarar que o pensamento “surge sem a letra, se alguém tem meramente espírito;

ou, inversamente, sem o âmago, se tem meramente os materiais e formalidades, a

casca seca e dura”72. No primeiro caso, fica a vastidão sem limites perdida como

66 Ibid., p. 9.67 Denis Diderot, “Sur le Génie”, in Oeuvres esthétiques (Paris, P. Vernière, 1991), p. 19.68 Denis Diderot, “Paradoxo sobre o comediante”, in Obras II – Estética, poética e contos (SãoPaulo, Perspectiva, 2000), p. 34-35.69 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 156(186).70 Ibid., p. 156 (186).71 Ibid., p. 158 (190-191).72 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 31 (Lyceum, Fr.69).

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“o azul do céu” em tendências sem força. No segundo, fica a trivialidade artística,

o exibicionismo virtuoso. Se a letra precisa do espírito para ter seu âmago, este

precisa daquela para que o ideal torne-se real. Parafraseando Kant, podemos dizer

que, para os primeiros românticos, o gênio sem gosto é cego e o gosto sem gênio

é vazio. Só quando ambos trabalham juntos, surge a obra.

Schelling, após participar no primeiro grupo romântico, definiu o gênio

pela junção da execução “com consciência, consideração e reflexão, que também

pode ser ensinada e aprendida”, ao “não-consciente”, que não pode ser aprendido

através de exercício mas “que pode ser inato através do favor livre da natureza”.

Para ele, “embora o que não se alcança pelo exercício, mas que nasceu conosco,

geralmente seja considerado o mais esplêndido, os deuses também ligaram com

tanta firmeza o exercício daquela força originária ao esforço honesto dos homens,

à diligência e à consideração”, afirma, “que a poesia, mesmo onde é inata, sem a

arte engendra apenas como que produtos mortos”73.

*

Pelo que foi dito, pode parecer que pouco mudou em relação à estética

neoclássica, pois Boileau, seu fervoroso defensor, já juntava a genialidade inata e

o aprendizado das regras. Para ele, aquele cuja “estrela não o formou poeta por

ocasião de seu nascimento”74 não atinge as alturas nos versos. Embora só com

regras fosse criada boa arte, a influência do céu era necessária para o talento. Mas

não é tão simples assim. Pois o “gosto” de Kant ou a “intenção” de Schlegel não

equivalem ao que Boileau entendia por regras. Nenhum deles concebe conjuntos

prescritivos aos quais o gênio submeta-se, como ocorre com Boileau. Tanto que

“as regras lá expostas vão tiranizar muitas gerações de autores, não apenas na

França, negando-lhes o direito do gênio: a liberdade na criação”75. Kant, pelo

contrário, afirmava que, se o dom natural do gênio dá regra à arte, esta “não pode

73 F. Schelling, “Trecho do Sistema do Idealismo Transcendental”, in Rodrigo Duarte (org.), Obelo autônomo (Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1997), p. 139-140.74 Nicolas Boileau, A arte poética (São Paulo, Perspectiva, 1979), p. 15.75 Célia Barrettini, “Prefácio”, in Nicolas Boileau, A arte poética (São Paulo, Perspectiva, 1979),p. 13.

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ser captada em uma fórmula e servir como preceito; pois, do contrário, o juízo

sobre o belo seria determinável segundo conceitos”76. E ele não é.

Kant especifica a genialidade como forma de se relacionar com a natureza

na arte, não na ciência, onde governam o entendimento e seus conceitos. Na

estética, a faculdade da imaginação não se subordina àquele entendimento. Kant

comenta que ela “é mesmo muito poderosa na criação como que de uma segunda

natureza a partir da matéria que a natureza efetiva lhe dá”77. Na estética

neoclássica, como em Boileau, o modelo ainda era a ciência. Ernst Cassirer

observa que “a estética do século XVIII procura e exige um Newton da arte”,

completando que “essa exigência não parecia, de maneira nenhuma, oca ou

quimérica depois que Boileau se arvorara em ‘legislador do Parnaso’” e que

“parecia que sua obra tinha, enfim, elevado a estética ao nível de uma ciência

exata”78. Foi para se contrapor a esse quadro que os românticos, muitas vezes,

apoiaram a autonomia da arte.

É curioso perceber que, quando Kant descreve o que o gênio não é, suas

palavras parecem saídas da boca de Boileau dizendo como o artista deve criar.

Num e noutro caso, é o conceito da “ciência, a qual tem de ser precedida por

regras claramente conhecidas que têm de determinar o seu procedimento”79, que

está em jogo. Kant afasta daí sua estética. Boileau aproxima a sua. Em suma, a

estética do gênio aparta-se da prescritiva porque libera a criação da submissão a

critérios como no procedimento científico estrito, dando-lhe autonomia. Mas

como isso ocorria para os primeiros românticos?

Finalmente, chegamos ao xis da questão. Embora os primeiros românticos

alemães acompanhassem os pré-românticos no ataque às estéticas prescritivas do

neoclassicismo, não concordavam com a euforia da subjetividade ali às vezes

defendida, como vimos, pois a criação moderna da arte fundava-se, para eles, na

reflexão. Estamos longe da figura vulgar da exacerbação psicológica do “eu”

empírico. No lugar da aplicação de regras não estaria o sentimento exagerado, e

sim o pensamento sóbrio: “ali onde a sobriedade te abandona, ali se encontra o

76 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 155(185).77 Ibid., p. 159 (193).78 Ernst Cassirer, A filosofia do iluminismo (Campinas, Editora da Unicamp, 1997), p. 373.79 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 163(199).

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limite de teu entusiasmo”80, afirma Hölderlin. Estamos longe do extravasar

voluntarista, e perto “de freio e espora para o espírito”81.

Kant, antes, já dissera que o gênio não era o esforço voluntário do artista.

Sua posição seria, nesse sentido, “não intencional”82. Este ponto é decisivo, pois

explica o sentido da originalidade para os primeiros românticos alemães. No

começo da Conversa sobre a poesia, Friedrich Schlegel afirma que a

originalidade “precisa ser preservada”83. Ela não deve ser intencionalmente

procurada, e sim protegida da violência das regras, conservada diante daquele

ataque. Não se trata de arroubo psicológico. August Schlegel diz que

“dificilmente uma outra literatura tem para mostrar tantas aberrações devidas à

mania de originalidade quanto a nossa”84. Essa mania voluntarista de ser original

não é o que os primeiros românticos desejam com o gênio.

Schelling viu aí o que chamou de princípio inconsciente da criação, que

justificaria tanto a observação de Kant sobre a eventual incapacidade que tem o

artista de explicar sua obra quanto a “afirmação de todos os artistas, de que são

involuntariamente impelidos para a feitura de suas obras, de que na produção das

mesmas satisfazem um impulso irresistível de sua natureza”85. Justamente porque

no gênio não predomina a intenção, o artista se vê submetido à criação, o que

Schelling compara ao sentimento diante do destino.

Do mesmo modo como o homem sob o efeito da fatalidade não realiza o que elequer ou intenciona, mas o que ele tem de realizar através de um destinoincompreensível, parece ao artista, porém, na observação daquilo que é opropriamente objetivo na sua produção, por mais cheio de intenção que esteja,estar sob o efeito de um poder que o separa de todos os outros homens e o coagea exprimir ou apresentar o que ele próprio não penetra inteiramente, e cujosentido é infinito.86

Falta ao artista o domínio completo do que faz, ao menos como pessoa

empírica. Sua obra sempre tem mais a dizer do que ele – e do que qualquer outro

80 F. Hölderlin, “Reflexão”, in Reflexões (Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994), p. 23-24.81 Ibid., p. 24.82 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 163(199).83 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 29.84 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 80 (Athenäum,Fr. 197).85 F. Schelling, “Trecho do Sistema do Idealismo Transcendental”, in Rodrigo Duarte (org.), Obelo autônomo (Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1997), p. 138.86 Ibid., p. 139.

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que fale sobre ela. Daí deriva o “sentido infinito” das obras de arte, pois nem

mesmo seu autor pode findá-lo. E “assim ocorre com toda obra de arte verdadeira,

na medida em que ela é passível de uma interpretação infinita, como se houvesse

nela uma infinitude de intenções que nunca se pode dizer se estava posta no

próprio artista ou se antes repousava meramente na obra de arte”87, afirma

Schelling. Na doutrina do gênio como aquele através do qual, e não a partir do

qual, a arte acontece, justifica-se a pluralidade de leituras das obras, já que seu

sentido não é encerrado por qualquer intenção definida, ainda que ela possa estar

presente.

Por isso, Friedrich Schlegel afirma que, se o artista pode se orgulhar de

alguma coisa, é “da obra que ultrapassa divinamente toda intenção, e cuja

intenção ninguém aprenderá até o fim”88. Noutras palavras, o orgulho do artista

não deve ser de si mesmo, e sim da obra. Essa obra, por conta disso, deverá ter

algo que Kant dizia: “a arte somente pode ser denominada bela se temos

consciência de que ela é arte e de que ela apesar disso nos parece ser natureza”89.

Kant resumia, assim, a ambigüidade da arte como a pensam mesmo Schelling ou

Schlegel. Ela deve parecer natureza na medida em que não é fruto do simples

domínio intencional do artista. Mas, ao mesmo tempo, essa sensação deve se dar,

paradoxalmente, com a consciência de que se trata de arte, e não de natureza, já

que, especialmente com a modernidade, esta arte não pode abrir mão do caráter

reflexivo.

*

Por não abordar a ambiguidade do gênio, Schiller dizia, com palavras que

depois ecoariam em Hegel, que “todo verdadeiro gênio tem de ser ingênuo, ou

não é gênio”90. Estaria presente nele só o dom natural e, na medida em que a

formação moderna era artificial ou reflexiva, não poderíamos confiar ao gênio a

criação da arte. No caso dos primeiros românticos, o conceito de gênio, ao juntar a

espontaneidade e a reflexão, ganha espaço. Para eles, é como se o gênio, este sim, 87 Ibid., p. 141.88 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 162 (Idéias, Fr.136).89 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 152(179).90 F. Schiller, Poesia ingênua e sentimental (São Paulo, Iluminuras, 1991), p. 51.

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pudesse realizar a pretensão daquilo que Schiller chamava de poesia sentimental,

ou seja, a conquista, através da liberdade, da condição que, até outrora, era apenas

a dádiva natural, como com os antigos gregos.

Por isso, August Schlegel critica Kant quando este enfatiza apenas o lado

natural do gênio, já que aí ele abdicaria da liberdade de pensar. Enquanto

“instrumento cego da natureza”, o gênio poderia ser o simples impulso criativo

dos animais, comenta Schlegel, que por sua vez achava que a arte não poderia

excluir a reflexão. Portanto, o conceito de gênio seria mais que dom natural. Este

“mais” é o que Kant dá ao gênio quando fala do gosto. Para Schlegel, porém, essa

divisão só ocorre porque Kant não compreendeu que o gênio já tem sempre o

gosto como parte de si, não como mera regra, mas como reflexão.

Metaforicamente, é como se Kant “primeiro arrancasse o olho do gênio e depois,

para consertar o problema, providenciasse para ele os óculos do gosto”91.

Schlegel, com palavras que lembram Hegel, aconselha então que nos

distanciemos dessa perspectiva unilateral sobre o gênio, alimentada pelos pré-

românticos alemães.

Parece-me que a loucura que foi cometida em conexão com o termo ‘gênio’durante certo período na Alemanha teve um impacto significativo na concepçãode Kant. Durante este período de anarquia poética ridícula, que ainda assimintroduziu uma guinada vantajosa e um renovado sentido de vitalidade, pareceuque o espírito, que há muito tempo era guiado por regras convencionais e pelojugo da autoridade, queria jogar fora todos os códigos internos de conformidadejunto com os constrangimentos externos. Logo, licenças indevidas e originalidadeexcêntrica tornaram-se a marca única e essencial do gênio.92

Novalis frisava, por isso, o alargamento do conceito de gênio com os

primeiros românticos. Para ele, o gênio “diz tão atrevida e seguramente o que vê

passar-se dentro de si porque não está embaraçado em sua exposição e, portanto,

tampouco a exposição embaraçada nele, mas sua consideração e o considerado

parecem consoar livremente, unificar-se livremente numa obra única”93. É como

se a criação genial vencesse o abismo entre sujeito (consideração) e objeto

(considerado): a obra é sua solução desembaraçada na exposição da arte. Se

parássemos por aqui, ficaríamos próximos da definição de Schiller, tanto que este

91 August Schlegel, Kritische Ausgabe der Vorlesungen, v. I (Paderborn, Schöningh, 1989), p. 243.92 Ibid., p. 242-243.93 Novalis, “Observações entremescladas”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 49 (Fr. 22).

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afirma que “o gênio tem de solucionar as tarefas mais complexas com

despretensiosa simplicidade e desembaraço”94. Só que Novalis segue adiante.

Para ele, até aí a capacidade genial é presente em geral na vida: “quando

falamos do mundo exterior, quando descrevemos objetos efetivos, então

procedemos como o gênio”, afirma Novalis, completando que “assim é, portanto,

o gênio, a faculdade de tratar de objetos imaginados como se se tratasse de objetos

efetivos, e também de tratá-los como a estes”95. Seguindo a argumentação,

Novalis afirma, então, que “gênio é necessário para tudo”, mas só para, depois,

acrescentar: “aquilo, porém, que de costume se denomina gênio – é gênio do

gênio”96. Ecoa, aqui, a fórmula de Schlegel: é a poesia da poesia que constitui a

arte moderna. Não é acaso. Em ambos, está em jogo a penetração reflexiva que a

duplicidade das palavras carrega. Não é só fazer poesia, mas poetizar a própria

poesia. Não é só criar genialmente, mas aplicar a genialidade sobre essa criação

genial.

Por isso, a despeito da óbvia filiação do gênio à ausência de domínio da

criação pelo sujeito, Novalis chega a lamentar ali “onde reinou involuntário o

gênio”97. Mais ainda, ele afirma que o “ganho genuíno com Fichte e Kant reside

no método – regularização do gênio”98. Essas declarações evidenciam que o gênio

era adotado pelos primeiros românticos como centro da criação da arte apenas na

medida em que seu conceito era ampliado a partir das filosofias modernas de

Fichte e Kant. Márcio Suzuki observa que Novalis opera em dois níveis ao falar

do gênio. Primeiro, ocorre a “reflexão originária”, aquela em que, como vimos, o

poder da imaginação de aproximar o que está distante e distanciar o que está

próximo fica presente na vida em geral. Segundo, ocorre a “reflexão artificial”.

Nela, como afirma Novalis, conta “o talento para expor, observar com precisão,

descrever finalisticamente a observação”99. Márcio Suzuki conclui que os dois

níveis “diferem entre si, mas que são complementos de um todo”100.

94 F. Schiller, Poesia ingênua e sentimental (São Paulo, Iluminura, 1991), p. 51.95 Novalis, “Observações entremescladas”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 49 (Fr. 22).96 Ibid., p. 49 (Fr. 22).97 Ibid., p. 89 (Fr. 92).98 Novalis, “Das Allgemeine Brouillon”, in Schriften, v. III (Stuttgart, Kohlhammer, 1981), p. 445(n. 921).99 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 48 (Fr. 21).100 Márcio Suzuki, O gênio romântico (São Paulo, Iluminuras, 1998), p. 97.

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Por conta disso, Novalis comenta que “quase todo gênio foi até agora

unilateral”101, ou seja, não encontrou a composição precisa entre a reflexão

originária (típica dos antigos) e a artificial (típica dos modernos). Sem esta última,

diz Novalis, “sem esse talento vê-se somente pela metade – e se é somente um

meio gênio”102. Ele critica, assim, a situação em que “uma classe tinha demasiado

sentido externo, a outra demasiado interno”103. Em sua configuração romântica, o

gênio superaria essa dualidade na figura da reflexão. Ele precisa agir e observar

sua ação ao mesmo tempo, criar e pensar sua criação simultaneamente. Por fim,

poderíamos dizer que, se o gênio precisasse ser ingênuo, como queria Schiller,

não poderíamos confiar a ele, então, a criação da arte moderna. Talvez ao gênio,

não. Mas ao gênio do gênio, sim.

Em suma, o conceito de gênio, para os primeiros românticos, busca

substituir a subordinação da criação às regras pelo exercício da liberdade. Esta

liberdade, porém, não se encontra no simples instinto do artista, onde ele pode

trocar seu senhor, que deixa de ser a prescrição da cultura, apenas para

permanecer escravo, agora das inclinações naturais. Esta liberdade só ocorre

quando o pensamento entra em jogo104. Por isso, a própria criação de arte

aproxima-se da reflexão filosófica. E esta, por sua vez, pode chegar perto daquela.

Friedrich Schlegel chegou a escrever: “em inconsciência genial os filósofos, me

parece, podem muito bem disputar a primazia com os poetas”105.

101 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 88 (Fr. 94).102 Novalis, “Observações entremescladas”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 49 (Fr. 22).103 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 88 (Fr. 94).104 Por isso, Márcia Gonçalves* afirma que “a recusa da teoria da mímesis por parte dos idealistase jovens românticos alemães tem como última conseqüência não a garantia de uma liberdade plenada arte em relação a toda e qualquer funcionalidade, mas sim a afirmação de uma nova função paraa arte: uma função não mais de reprodução do natural, enquanto realidade previamente dada, masde produção e reprodução do espírito, enquanto ele mesmo é uma realidade processual, histórica ecultural”.* Márcia C. F. Gonçalves, “A recusa da teoria da mímesis pelas teorias estéticas na virada dosséculos XVIII e XIX e suas conseqüências”, in Rodrigo Duarte e Virginia Figueiredo (orgs.),Mímesis e expressão (Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2001), p. 289.105 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 100 (Athenäum,Fr. 299).

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Do juiz ao crítico de arte:

a reflexão da obra

Existem regras fixas que possam dirigir a criação e a compreensão da arte?

Essa pergunta cindiu a aurora do pensamento estético moderno. De um lado, o

neoclassicismo francês dizia que sim: deveríamos ter em vista leis que pautassem

as produções artísticas e sua avaliação, à semelhança do que ocorreria no

procedimento científico, cujos exemplos principais eram a prática da física de

Newton diante da natureza e a teoria de Descartes na filosofia. De outro lado, o

romantismo alemão afirmava que não, opondo-se ao rigor das regras em nome da

liberdade na criação e, com isso, defendendo a autonomia da arte face ao

conhecimento científico estrito, tendo como exemplo central Shakespeare.

No centro da discórdia, estavam as diferentes interpretações de uma obra

antiga que permanecera mal conhecida durante a época medieval: a Poética, de

Aristóteles. Segundo Peter Szondi, “a poética da época moderna baseia-se

essencialmente na obra de Aristóteles; sua história é a história da recepção dessa

obra”, completando ainda que “tal história pode ser compreendida como adoção,

ampliação e sistematização da Poética, ou até como compreensão equivocada ou

como crítica”1. Se o neoclassicismo adotou, ampliou e sistematizou as lições

poéticas aristotélicas, o romantismo, em geral, criticou-as e, quando não o fez, foi

porque considerou equivocada a compreensão neoclássica das mesmas,

esforçando-se por reinterpretá-las de maneira nova.

Logo nas primeiras linhas dessas reflexões antigas que chegaram até nós

de modo incompleto, o filósofo grego anunciava as direções principais de sua

investigação. Ele dizia: “falemos da natureza e espécies da poesia, do condão de

cada uma, de como se hão de compor as fábulas para o bom êxito do poema”2.

Estão presentes aí duas pretensões: primeiro, investigar a “natureza” da poesia, o

1 Peter Szondi, Ensaio sobre o trágico (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004), p. 23.2 Aristóteles, “Arte poética”, in Aristóteles, Horácio, Longino, A poética clássica (São Paulo,Cultrix, 2005), p. 19.

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que ela é e como ela é; segundo, orientar o melhor modo de composição dos

poemas. Em outras palavras, as lições aristotélicas sobre a poesia trariam duas

direções: uma mais descritiva e outra mais prescritiva. Dependendo de qual desses

pólos é privilegiado na obra, surgem compreensões diversas sobre ela e, por

extensão, sobre o que são a teoria e a criação da arte. No modo pelo qual os

ensinamentos aristotélicos foram compreendidos, elogiados e criticados, é

possível acompanhar, nesse sentido, o desenvolvimento dos principais problemas

estéticos do início da modernidade.

*

No século XVI, a arqueologia e a investigação dos textos gregos e

romanos pelos renascentistas italianos trouxeram à tona a centralidade dos

ensinamentos aristotélicos sobre a poesia, às vezes estendidos para a arte em

geral. Não seria preciso ir longe para adivinhar que, como era o espírito da época,

tal centralidade estava submetida ao ideal de um novo nascimento da cultura

clássica grega. Foi privilegiada, assim, a extração, a partir das lições aristotélicas,

de preceitos modelares para a arte. Desse modo, “a tradição que se firmará será a

do rigor preceptístico, a que o próprio Aristóteles será submetido”3.

Na recepção renascentista de homens como Valla, Robortello, Scaligero e

Castelvetro, a Poética foi interpretada como lugar privilegiado em que estariam as

regras perfeitas e eternas para nortear tanto a prática artística quanto o julgamento

de seus produtos. Na filosofia clássica aristotélica sobre a poesia, era encontrada a

chave teórica para que a própria cultura clássica em sua beleza pudesse reviver.

Isso significou certo deslocamento da leitura do filósofo grego, certa “diferença

de horizonte em que se dará a recepção da Poética”, cuja conseqüência foi que “o

Aristóteles moderno é antes um normativo do que um pensador”4, como observou

Luiz Costa Lima.

Esta compreensão renascentista foi retomada na França com o

neoclassicismo. Também aí entrava em jogo a convicção de que a Poética de

Aristóteles pudesse oferecer o cânone normativo da boa arte. Se eram as obras

3 Luiz Costa Lima, “A questão dos gêneros”, in Teoria da literatura e suas fontes (Rio de Janeiro,Civilização Brasileira, 2002), p. 260.4 Luiz Costa Lima, Vida e mimesis (Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995), p. 82.

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clássicas gregas que deveríamos admirar e tomar como modelos, nada melhor do

que seguir também as orientações teóricas sobre os princípios de organização

dessas obras. Foi à procura de decifrar os segredos que produziram a beleza da

cultura grega que o neoclassicismo francês voltou-se para a Poética aristotélica.

Ela foi lida, portanto, como o manancial de parâmetros necessários para as

melhores criações estéticas, assim como para sua mais pertinente compreensão.

Nesse sentido, o século XVII na França continuava a tradição

interpretativa do século XVI na Itália. Tanto um quanto outro sofreram a

influência latina de Horácio, que fortaleceu a visão prescritiva em relação à arte.

Mas era Aristóteles a principal referência, como se tivesse fornecido a

fundamentação definitiva sobre a arte, em relação à qual todo talento devia se

curvar. É que o talento individual, certamente muito importante para esta tradição,

estava submetido ao ideal de perfeição clássica. Ele deveria ser o instrumento para

que fossem alcançadas as mais belas criações, cujo modelo havia sido

determinado pelos antigos gregos. Tão mais próxima deste ideal fosse a obra de

arte, melhor ela seria.

Toda inspiração criativa era submetida às leis inexoráveis que ditavam o

que era a boa arte. Ela deveria ser controlada, para que não fugisse ao padrão de

gosto oriundo do mundo clássico. Desse modo, as obras de arte singulares

ficavam subordinadas a critérios gerais exteriores a elas. Nesta situação, “o poeta

está, por assim dizer, condenado a ver sempre o seu trabalho individual à sombra

da tradição: entre a expressão pessoal e o trabalho de arte, instala-se, como

elemento de emulação e limite da personalidade, o passado, aquilo que é

anterior”5. Em suma, o passado clássico era tomado como medida ideal de

julgamento para toda arte, submetendo-a, no presente, à adesão à tradição.

Nicolas Boileau foi o teórico francês crucial a defender essa tradição que,

tirada do mundo clássico, pretendia ser eterna e universal. Ele sabia da

importância da genialidade individual. Dizia que a “vocação”6 era a condição para

que qualquer homem se tornasse poeta. Porém, embora fosse necessário esse

talento inato, só com as regras seria possível criar boa arte depois. Tais regras,

como observou Ernst Cassirer, não desejavam “ensinar diretamente a verdade

5 João Alexandre Barbosa, “Introdução”, in J. Guinsburg (org.), O Classicismo (São Paulo,Perspectiva, 1999), p. 13.6 Nicolas Boileau, A arte poética (São Paulo, Perspectiva, 1979), p. 66.

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artística” e sim “preservar do erro”, o que mostra “seu parentesco com a doutrina

cartesiana do conhecimento, ao reger-se pelo princípio metódico segundo o qual

só podemos atingir a certeza (…) inspecionando as diversas fontes de erro, a fim

de superá-las”7. Mas como, aqui, tratava-se de estética, a aplicação desse

procedimento significava estreitar os limites de criação e apreciação da beleza. “É

nesse sentido que, para Boileau, a beleza da expressão poética coincide com a sua

‘exatidão’”8, aponta ainda Cassirer.

Partindo da avaliação de grandes obras, Boileau oferece conselhos sobre o

fazer poético. Por trás de seus imperativos, está a convicção em parâmetros

absolutos para a arte, que o permitem colocar-se, por fim, no lugar de “censor um

pouco impertinente, porém sempre necessário”9. Pretendendo-se herdeiro da

tradição aristotélica, ele considera a inspiração fundamental, desde que governada

pela razão. Daí deriva direções mais retas: evitar excessos, o preciosismo, a

prolixidade, a monotonia, o burlesco. Essa arte poética marcou a história da

estética, pois suas regras dominaram várias gerações de autores, controlando o

poder criativo do gênio, sua liberdade sem medidas prévias.

Portanto, a associação da reflexão à criação no neoclassicismo

representou, muitas vezes, o asfixiamento da última pelas imposições da primeira.

Embora pensasse seus critérios a partir de grandes obras, a reflexão não se

contentava com isso, buscando fornecer normas sólidas para a criação, que a

amarravam, bem mais do que a estimulavam. Mesmo em grandes dramaturgos,

como Racine ou Corneille, que sabiam se apropriar das regras de modo

independente, esta submissão era forte. Paul Valéry comentou que “havia um

Boileau em Racine, ou uma imagem de Boileau”10.

Neste contexto, em 1687, ocorreu a famosa querela entre antigos e

modernos na França. Boileau estava do lado dos antigos, enquanto homens como

Charles Perrault e Bernard de Fontebelle estavam do lado dos modernos. Estes

últimos protestavam contra a superioridade incontestável concedida à antiguidade

como modelo atemporal fixado para os modernos. Perguntavam se não seria o

contrário, já que a acumulação de experiências no tempo poderia privilegiar o

7 Ernst Cassirer, A filosofia do iluminismo (Campinas, Editora da Unicamp, 1997), p. 380.8 Ibid., p. 380.9 Nicolas Boileau, A arte poética (São Paulo, Perspectiva, 1979), p. 72.10 Paul Valéry, “Situação de Baudelaire”, in Variedades (São Paulo, Iluminuras, 1999), p. 25.

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presente sobre o passado, tornando possível ver os antigos sem dobrar os joelhos,

como diziam. Era o despontar da crítica à tradição neoclássica.

*

Entre os alemães, os ecos da querela entre antigos e modernos foram

ouvidos como o primeiro acorde para a tomada de posição na questão. Se não se

identificavam completamente com o que o lado moderno defendia na disputa

francesa, os intelectuais alemães da época partilhavam aquilo que era aí atacado:

os parâmetros classicistas do passado enquanto imperativos para o presente. Esses

parâmetros eram defendidos, entre os alemães, por Johann C. Gottsched. Ele

buscava estabelecer, no incipiente teatro alemão da época, a ordem racional e

rigorosa formulada pelo neoclassicismo de Boileau na França.

Lessing foi pioneiro no combate contra tal vertente. Entre 1767 e 1769, ele

escreve a “Dramaturgia de Hamburgo”, na qual ataca Gottsched, mas com mira

filosófica no neoclassicismo francês. Era estrategicamente fundamental, nesse

contexto, dar nova interpretação à Poética aristotélica, já que era nela que se

fundava a autoridade da tradição neoclássica. Por isso, Lessing procede, em seu

texto, desmascarando a acuidade da tradução de Boileau ou Gottsched dos

ensinamentos aristotélicos. Ele denuncia como os heróis do neoclassicismo

Corneille e Racine, em suas peças, não estariam afinados com o sentido que o

filósofo grego pretendia dar às suas investigações. Na sua reinterpretação de

Aristóteles, Lessing tira a ênfase da imitação mecânica através de certas regras e a

coloca na busca do efeito suscitado pela arte, o que, no caso da Poética,

corresponde à catarse. Seu esforço insere-se, assim, na busca de liberdade face às

regras clássicas, que não dizia respeito apenas ao talento individual subjetivo. Em

jogo estava a abertura para que a criação artística pudesse ser diferente

dependendo do tempo e do lugar em que estivesse situada. Tratava-se, assim, da

liberdade para que a criação moderna e alemã, no caso, pudesse ser diferente do

modelo antigo grego, por mais louvável que ele fosse.

Não é coincidência, nesse sentido, que esta disputa pela liberdade da

criação tenha sido levada a cabo com tanta força entre os alemães, cuja produção

cultural ainda hesitante e tímida na época podia ser sufocada pela influência

francesa, que se fazia não em nome de si própria, mas em nome do cânone

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universal e atemporal consolidado na tradição greco-romana. Herder dizia, com

todas as letras, que “na Grécia surgiu o drama de um modo que não poderia ser o

do norte”, logo, esta era a “razão por que no norte não é nem pode ser o que foi na

Grécia”11. Era o mundo nórdico que aguardava pelo seu Sófocles.

Para tanto, seria preciso o poder do gênio, que cria sem modelos a serem

copiados. Goethe, ao escrever em 1792 sobre arquitetura alemã, deixa isso claro.

Perante certa catedral gótica, ele confessa: “fiquei apavorado diante da visão de

um monstro disforme e encrespado”12. Esse julgamento advém da aplicação dos

critérios da tradição, aos quais a catedral não atende. Mas a apreciação logo muda,

ascendendo ao patamar genial: “então se me revelava, em silenciosos

pressentimentos, o gênio do grande mestre construtor”13. Historicamente,

portanto, a ascensão do gênio era, ao mesmo tempo, o modo pelo qual os alemães

buscavam fundamentar sua criação estética singular. Goethe afirma que “isso é

arquitetura alemã, da qual o italiano não pode gabar-se e muito menos o

francês”14, opondo-se, respectivamente, ao renascimento e ao neoclassicismo,

movimentos de preservação do gosto greco-romano. Já o gótico alemão oferecia

outra matriz criativa.

Neste cenário, a valorização sem precedentes de Shakespeare por Goethe e

pelos alemães é compreensível. Herder reclamava que mesmo seus defensores

concediam-lhe apenas, “como ao réu, o absolvo, endeusavam sua grandeza quanto

mais se viam forçados a alçar os ombros por causa dos erros”15. Por fim,

exclamava: “ah, se Aristóteles tornasse à vida e visse o uso falso e paradoxal de

suas regras aplicadas a peças completamente diversas”16, sugerindo a deturpação

no emprego das lições aristotélicas para atacar Shakespeare. “Mais que ao grego,

sinto-me próximo a Shakespeare”17, confessa Herder.

Descontada sua qualidade, Shakespeare era inglês e livre de preceitos

classicistas. Reconhecê-lo era dar crédito a um autor não francês e moderno.

Lessing, lendo a Poética na contramão do neoclassicismo, afirma que, “mesmo a

decidir a questão segundo o modelo dos antigos, é Shakespeare um poeta trágico 11 J. G. Herder, “Shakespeare”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU, 1991), p. 39.12 J. W. Goethe, “Sobre a arquitetura alemã”, in Escritos sobre arte (São Paulo, Humanitas;Imprensa Oficial, 2008), p. 43.13 Ibid., p. 44.14 Ibid., p. 45.15 J. G. Herder, “Shakespeare”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU, 1991), p. 38.16 Ibid., p. 50.17 Ibid., p. 50.

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infinitamente superior a Corneille, embora este conhecesse muito bem os antigos

e aquele não os conhecesse em quase nada”, concluindo que “Corneille se lhes

aproxima pelo arranjo mecânico e Shakespeare pelo essencial”18. Shakespeare

trazia o desafio da invenção fora dos parâmetros tradicionais.

Não era mais a obediência à Poética aristotélica que determinaria as

grandes obras. J. M. R. Lenz escreve, com humor: “dedico grande respeito a

Aristóteles, menos às suas barbas”19. Racine e Corneille não eram os maiores da

época. Em seu lugar, estava Shakespeare, “o deus poético de uma literatura sem

antecedentes clássicos”20, como disse Otto Maria Carpeaux. Era deixado de lado o

critério da realização enquanto cópia de um modelo fixado para que fosse

privilegiada a liberdade da criação singular. Eis a revolução na direção que

tomaria a estética moderna.

Por trás desta revolução, estava Kant. Ele não explicita sua estética através

do confronto entre românticos e neoclássicos, mas contribui, a despeito de seu

gosto pessoal, a favor dos primeiros. Do lado da criação, privilegia o gênio por

estar alheio a regras prévias que orientem a criação. Do lado da recepção,

desvaloriza a correção normativa.

Diz-se de certos produtos, dos quais se esperaria que devessem pelo menos emparte mostrar-se como arte bela, que eles são sem espírito, embora no queconcerne ao gosto não se encontre neles nada de censurável. Uma poesia pode serverdadeiramente graciosa e elegante, mas é sem espírito. Uma história é precisa eordenada, mas sem espírito. Um discurso festivo é profundo e requintado, massem espírito (…); até de uma mulher diz-se: ela é bonita, comunicável e correta,mas sem espírito.21

Do mesmo modo que Lessing acusava Corneille de se assemelhar aos

antigos apenas mecanicamente enquanto Shakespeare o fazia no essencial, Kant

afirma que certa obra pode ser correta mas sem espírito. Espírito é este essencial,

que não é garantido porque certa obra nada tem de censurável. Daí a insuficiência

da postura de censor em que Boileau se colocava. Tanto criar quanto apreciar arte

18 G. E. Lessing, “Cartas”, in De teatro e literatura (São Paulo, EPU, 1991), p. 110.19 J. M. R. Lenz, “Anotações sobre o teatro”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU,1991), p. 100.20 Otto Maria Carpeaux, História da literatura ocidental (Rio de Janeiro, Edições O Cruzeiro, s/d),p. 1473.21 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 158-159(192).

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dizem respeito menos à correção e mais à invenção. Importa o espírito, o

“princípio vivificante da alma”22, como diz Kant.

*

Foi a teoria do gênio de Kant que abriu caminho para a concepção

romântica da criação, assim como determinou seu modo de pensar a crítica. Se o

artista, ao criar, não obedece a prescrições, a crítica, ao mesmo tempo, não

procede como avaliação da obra, já que ela não teria parâmetros prévios de

julgamento. Tampouco poderia ela apelar para a explicação do artista sobre a

criação, pois, avisava Kant, o gênio “não pode descrever ou indicar

cientificamente como ele realiza sua produção”23. Logo, a emergência do gênio na

criação trouxe consigo a transformação da crítica de arte. Ela precisaria levar em

conta que, como já dizia o pré-romântico Hamann, “quem não faz nenhuma

exceção não pode produzir obra-prima”24, ou seja, quem não foge às regras jamais

faria grande arte.

É este sentido que vai predominar na leitura feita pelos primeiros

românticos das lições poéticas aristotélicas. Se elas foram, às vezes, rechaçadas,

isso fica na conta, sobretudo, da tradição interpretativa renascentista e neoclássica.

Pois o problema era a sua identificação com as regras normativas. Por isso, aqui e

ali, encontramos violentas considerações dos românticos em relação ao filósofo

grego. “F. Schlegel considera que Aristóteles não vale nada como teórico, o irmão

August julga-o privado de sensibilidade em relação à arte (…): em geral a Poética

é considerada como doutrina meramente empírica, incapaz de servir para uma

autêntica filosofia da arte”25.

Entretanto, nem todas as considerações românticas sobre as lições

aristotélicas foram assim tão peremptórias. Tanto que August Schlegel, em suas

preleções sobre arte dramática e literatura, feitas nos primeiros anos do século

XIX, mostra que seu alvo, ao falar do filósofo grego, é a autoridade que ele

empresta para a doutrina francesa da imitação dos antigos clássicos. Para ele, se

22 Ibid., p. 159 (192).23 Ibid., p. 153 (182).24 J. G. Hamann, “De Escritos e Cartas”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU,1991), p. 27.25 Paolo d’Angelo, A estética romântica (Lisboa, Editorial Estampa, 1998), p. 142.

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obras tão diferentes em espírito e forma quanto as tragédias gregas e as de

Corneille podem ser igualmente fiéis aos preceitos aristotélicos, isso significa que

estes são elásticos e indeterminados.

August Schlegel relê a Poética de modo distinto da tradição italiana e

francesa. Ele se impressiona, por exemplo, que o nome de Aristóteles seja usado

para falar das três unidades da dramaturgia: de ação, de tempo e de lugar. Elas

deram ensejo para Boileau afirmar que as peças teatrais desejam “que a ação se

desenvolva com arte: em um lugar, em um dia, um único fato, acabado”26. Para

Schlegel, o filósofo grego só fala de modo completo da unidade de ação, restando

vagos comentários sobre a de tempo e nada sobre a de lugar. Tampouco existiam

ali medidas empíricas determinadas para cada unidade. Seria a de tempo um dia,

uma semana, um ano? E a de lugar, seria um aposento, uma cidade ou um país?

Mais: no que diz respeito à unidade de ação, Schlegel, recuperando o sentido

filosófico e menos normativo dos escritos aristotélicos, critica que se trate tal

noção como se ela fosse auto-evidente, sem que se faça a mais importante

pergunta: o que é a ação? Boileau teria tornado empíricas as medidas que, em

Aristóteles, eram, em certo sentido, conceituais, mas continuou querendo

preservar seu valor eterno, sem reconhecer, agora, sua determinação histórica, que

sempre marca aquilo que é empírico.

De acordo com sua análise da Poética, August Schlegel chega a declarar:

“eu não me encontro, portanto, numa relação polêmica com Aristóteles”27. Isso

mostra, com clareza, que o ponto decisivo reside em como a obra do filósofo é

interpretada. Se for como mera doutrina empírica prescritiva, os românticos a

atacam. Se, no entanto, puder ser lida de modo mais descritivo e, até, reflexivo,

então os românticos a acolhem como contribuição para a formulação da moderna

filosofia da arte. Por isso, August Schlegel não critica apenas a Poética. Ele

também tenta demonstrar que suas palavras foram, não raro, deturpadas para

estruturar um conjunto de regras muito mais estreito do que de fato se encontra na

obra original. Interpretando as palavras aristotélicas de modo menos estreito, ele

chega a sugerir que as composições de Shakespeare se ajustariam a elas. E mais:

26 Nicolas Boileau, A arte poética (São Paulo, Perspectiva, 1979), p. 42.27 August Schlegel, Vorlesungen über dramatische Kunst und Literatur (Bonn, K. Schroeder,1923), Vorlesung XVII.

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as obras dos poetas românticos também. Era a completa reversão da interpretação

tradicional das lições poéticas aristotélicas.

*

Se os primeiros românticos alemães questionaram a apropriação

neoclássica das lições poéticas aristotélicas, foi porque faziam parte já da saída

histórica da poética de natureza prescritiva e da entrada na poética de natureza

filosófica, a qual, segundo Peter Szondi, “não busca regras para aplicar na prática

nem busca diferenças para serem levadas em conta ao escrever, e sim um

conhecimento que se basta a si mesmo”, sendo que “a poética neste sentido

constitui uma esfera particular da estética em geral, como filosofia da arte”28.

Hegel seria o grande consumador desse processo no século XIX. Ele afirma que

naquelas poéticas antigas “as determinações universais que eram abstraídas

tinham de valer especialmente como preceitos e regras, segundo os quais se

deveria produzir obras de arte principalmente em épocas de deterioração da poesia

e da arte”29. Não bastasse a nota nas entrelinhas que liga as poéticas normativas

aos momentos em que a arte declina, Hegel completa: “tais médicos da arte

prescreviam para a cura da arte receitas ainda menos seguras do que os médicos

para o restabelecimento da saúde”30.

Mas, antes de Hegel, os primeiros românticos, no fim do século XVIII, já

faziam esse movimento. “Não é preciso que alguém se empenhe em obter e

reproduzir a poesia através de discursos e doutrinas racionais, ou mesmo produzi-

la, inventá-la, estabelecê-la e fornecer-lhe leis punitivas, como seria do agrado da

arte poética”31, assevera Friedrich Schlegel. Por trás do seu comentário, estava o

sentimento moderno de falta de amparo em valores antigos, já que, com isso,

perdia-se a confiança na continuidade entre o passado e o presente. Essa diferença

descoberta entre antigos e modernos levantou a necessidade do exame crítico da

arte, e não apenas avaliativo, pela simples razão de que os parâmetros de

julgamento, cuja autoridade vinha da antiguidade clássica, não pareciam dar conta

28 Peter Szondi, “Antigüedad clásica y modernidad en la estética de la época de Goethe”, inPoética y filosofia de la historia I (Madrid, La balsa de la Medusa, 1992), p. 16.29 G. W. F. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 39.30 Ibid., p. 39.31 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 30.

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da experiência contemporânea. Luiz Costa Lima sublinha que “o crítico, no

sentido próprio do termo, supõe a intervenção teórica e não a mera aplicação de

normas preexistentes”, portanto, é porque os primeiros românticos “se encontram

em uma situação de crise que são impulsionados para o exercício crítico”32.

Essa situação de crise foi enfrentada, logo antes, pelos autores pré-

românticos do Sturm und Drang, onde recebeu solução diversa. Descartando os

homogêneos preceitos das poéticas classicistas, sobravam, para eles, as tradições

locais específicas nórdicas e, sobretudo, a singularidade do “eu” subjetivo. Esse

caminho predomina, ainda, em grande parte da poesia romântica de língua

inglesa. Daí a tese, levantada por M. H. Abrams, de que, em geral, a arte antiga é

concebida como “espelho”, enquanto a arte romântica como “lâmpada”: se a

primeira gostaria de refletir a natureza, a segunda queria criar a partir do próprio

artista enquanto gênio33. Esse esquema não funciona para os primeiros românticos

alemães, mas foi responsável por boa parte dos mal-entendidos em torno deles.

Mesmo Hegel, cujos ataques aos primeiros românticos são famosos,

reconhecia o fosso que os separava dos pré-românticos, ainda que apontando suas

carências.

Na vizinhança do reavivamento da Idéia filosófica (…) August Wilhelm eFriderich von Schlegel, desejosos do novo, na busca ávida de distinção e dosurpreendente, se apropriaram da Idéia filosófica tanto quanto eram capazes suasnaturezas que, aliás, não eram filosóficas, mas essencialmente críticas. Poisnenhum dos dois pode reivindicar a vocação do pensamento especulativo. Mas,com seu talento crítico, eles se situaram próximos ao ponto de vista da Idéia e,com grande fecundidade e ousadia na renovação, ainda que com ingredientesfilosóficos escassos, se voltaram contra os pontos de vista até então vigentes,numa polêmica cheia de espírito e, assim, introduziram em diversos ramos da arteum novo parâmetro de julgamento e pontos de vista que se situavam acima dosque eram atacados.34

Hegel teve o mérito de sublinhar o avanço da posição dos irmãos Schlegel

no que diz respeito ao estatuto filosófico da consideração sobre a arte. Eles,

porém, teriam ficado a meio caminho, porque eram críticos e não pensadores

especulativos, ou seja, filósofos. Do ponto de vista dos próprios primeiros

românticos, contudo, o que Hegel não percebera é que a crítica podia ser

32 Luiz Costa Lima, Limites da voz: Montaigne, Schlegel (Rio de Janeiro, Rocco, 1993), p. 193-194.33 M. H. Abrams, The Mirror and the Lamp (New York; London, Oxford University Press, 1971).34 G. W. F. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 80.

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filosófica e a filosofia ser crítica, já que “toda resenha filosófica deveria ser ao

mesmo tempo filosofia das resenhas”35, como afirma Friedrich Schlegel. Se a

crítica assume, para os primeiros românticos alemães, papel tão decisivo, é porque

a própria filosofia encontra seu espaço privilegiado de exercício na forma da

crítica.

*

Benjamin foi quem decifrou o conceito de crítica de arte do romantismo

alemão. Ele justifica o emprego da palavra “crítica” pelo seu significado na

filosofia de Kant, onde ela devia escapar, de um lado, da pretensão do

dogmatismo e, de outro, do perigo do ceticismo. Por sua vez, os primeiros

românticos transportam tal solução filosófica geral para o dilema particular da arte

entre neoclássicos e pré-românticos: “aquela tendência poderia ser considerada

como dogmática, esta, em suas conseqüências, cética; então era totalmente natural

ambas consumarem a superação na teoria da arte sob o mesmo nome com que

Kant, na sua teoria do conhecimento, aplainou aquela oposição”36. Na medida em

que o neoclassicismo acreditava na verdade absoluta de suas regras para a arte,

válidas para qualquer tempo e lugar, ele se tornava dogmático. Já o pré-

romantismo, descrente daquela possibilidade, refugiava-se ceticamente nas

particularidades do sujeito. Benjamin conclui, sobre a teoria do primeiro

romantismo, que, “com respeito ao primeiro ponto, ele venceu as tendências do

racionalismo; com respeito ao segundo, os momentos destrutivos do Sturm und

Drang”37. É provável, portanto, que Friedrich Schlegel tivesse em mente,

respectivamente, o neoclassicismo e o pré-romantismo do Sturm und Drang ao

reclamar que “quase todos os juízos artísticos são universais demais ou

específicos demais”38.

Nem prescrições universais e, tampouco, a subjetividade específica: qual

é, enfim, o centro do conceito de crítica de arte do romantismo alemão? É a obra.

35 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 53 (Athenäum,Fr. 44).36 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 60.37 Ibid., p. 79.38 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 74 (Athenäum,Fr. 167).

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Essa resposta deriva, necessariamente, da concepção da criação genial, já que esta

não se faria pela intenção subjetiva do autor empírico. Não é ele que fala. “Tudo

deve ser poetizado, de modo algum como intenção dos poetas, mas como

tendência histórica das obras”39, afirmava Friedrich Schlegel. Portanto, quem fala

é a obra. Foi o que percebeu Benjamin.

Pois o conceito de crítica de Schlegel não conquistou apenas a liberdade comrelação às doutrinas estéticas heterônimas – antes, ele possibilitou isto, pelo fatode ter posto um outro critério de obra de arte que não a regra: o critério de umadeterminada construção imanente da obra mesma. (…) Desta maneira, eleassegurou, do lado do objeto ou da conformação, aquela autonomia no campo daarte que Kant, na crítica desta, havia conferido ao juízo.40

Nesse sentido específico, os românticos desdobraram o pensamento

estético de Kant. Ele firmara a autonomia do sentimento estético em geral, desde

então protegido quanto ao julgamento prévio a partir de critérios extrínsecos como

o cognitivo, o moral, o político, o pragmático ou o ideológico. Friedrich Schlegel

acentuava a aplicação do mesmo preceito especificamente para a arte. Nesse

sentido, continuava o legado de Kant mas, ao mesmo tempo, transformava-o.

Saía-se, assim, do âmbito do juízo estético entendido apenas como sentimento,

que não faz distinção entre o belo natural e o belo artificial, para entrar na

filosofia da arte e, no caso dos primeiros românticos, mais especificamente na

crítica de arte compreendida filosoficamente. Benjamin afirma que “neste

contexto pode-se indicar sem dificuldade uma diferença entre o conceito kantiano

de juízo e o romântico de reflexão: a reflexão não é, como o juízo, um

procedimento subjetivo reflexivo, mas, antes, ela está compreendida na forma-de-

exposição da obra”41.

Nesse aspecto, os primeiros românticos adiantam o problema que, depois,

Hegel atribuíria diretamente à estética de Kant, a saber, seu subjetivismo. Tanto a

obra deve ser compreendida na sua objetividade efetiva quanto, por conseqüência,

seu acolhimento deve ser crítico, e não apenas no sentimento, para os primeiros

românticos. Friedrich Schlegel escreveu, com ironia, que, “se muitos amantes

místicos da arte, que consideram toda crítica como desmembramento e todo

39 Ibid., p. 89 (Athenäum, Fr. 239).40 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 79-80.41 Ibid., p. 94.

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desmembramento como destruição da fruição, pensassem conseqüentemente,

então ‘oh!’ seria o melhor juízo artístico sobre a obra de arte mais apreciável”42.

Ele defende, portanto, que a arte suscite algo mais do que a admiração estupefata.

Para servir à obra, a crítica não pode ser servil a ela. Por isso, se “sempre se fala

da perturbação que a dissecação do belo artístico provoca na fruição do amante”, é

bom lembrar que “o verdadeiro amante não se deixa perturbar assim”43.

Nessa medida, os primeiros românticos avançam da contemplação

desinteressada da estética de Kant para a produtividade da reflexão crítica,

acentuando, como o próprio Kant já anotara, que essa experiência não precisa

fechar cada sujeito sobre si mesmo, mas pode, pelo contrário, fundar sua

comunicação. Interesses privados suspensos, sentimo-nos à vontade para discutir,

pois supomos poder partilhar a experiência estética em algum tipo de sentido

comum com os outros. Essa partilha, podemos arriscar, é o que se efetiva na

crítica, desde que aí os fenômenos estéticos “nos surpreendem e nos fazem

falar”44, como observou Luiz Camillo Osório. Kant estava na base do conceito

romântico de crítica.

Benjamin, em suas cartas, observou que “somente desde o romantismo, a

seguinte visão tornou-se predominante: que uma obra de arte em si e para si, sem

referência à teoria ou à moral, poderia ser compreendida apenas pela

contemplação, e que a pessoa que a contempla pode lhe fazer justiça”,

confessando: “eu teria que provar que, a este respeito, a estética de Kant constitui

a premissa fundamental da crítica de arte romântica”45. Embora o sentimento

estético não esteja mais no centro com os primeiros românticos, e sim a obra de

arte propriamente dita, foi só com o legado de Kant que eles puderam tratá-la fora

dos marcos que buscavam compreendê-la a partir de regras externas. Friedrich

Schlegel, na esteira de Kant, afirma que a poesia “é um discurso que é sua própria

lei”46.

Não seriam admissíveis leis fixadas a priori para julgar as obras de arte. É

a lei da própria obra que deve dirigir os esforços críticos, na sua singularidade. 42 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 29 (Lyceum, Fr.57).43 Ibid., p. 57 (Athenäum, Fr. 71).44 Luiz Camillo Osório, Razões da crítica (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005), p. 23.45 Walter Benjamin, The Correspondence of Walter Benjamin, 1910-1940 (Chicago, TheUniversity of Chicago Press, 1994), p. 119.46 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 30 (Lyceum, Fr.65).

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Noutras palavras, não se trata de julgar as obras tendo como parâmetro o ideal

geral ao qual todas devem obedecer, e sim de criticá-las tendo em vista o ideal

que cada uma, em si e para si, formula individualmente. Por isso, Benjamin

afirma que “apenas com os românticos se estabelece de uma vez por todas a

expressão ‘crítico de arte’ em oposição à expressão mais antiga ‘juiz de arte’”, já

que, agora, “evita-se a representação de um tribunal constituído diante da obra de

arte, de um veredicto fixado de antemão”47. Era o que dizia August Schlegel.

Costumam chamar a si mesmos de crítica. Escrevem de modo frio, superficial,altaneiro e (…) insípido. Natureza, sentimento, nobreza e grandeza de espíritoabsolutamente não existem para eles e, no entanto, procedem como se pudessemconvocar tais coisas perante seus tribunaizinhos. Imitações da antiga mania deversificação do mundo elegante francês são a meta suprema de sua tépidaadmiração. Correção é para eles sinônimo de virtude.48

Nem juiz e nem tribunal poderiam compreender as obras de arte, já que

não é a sua correção que está em jogo, ao menos não no sentido estreito que supõe

que ela possa ser verificada por algum código exterior de regras. Pois “no sentido

mais nobre e original da palavra correção, visto que significa cultivo intencional e

desenvolvimento complementar do que há de mais íntimo e ínfimo na obra

conforme o espírito do todo, reflexão prática do artista, nenhum poeta moderno

seria mais correto do que Shakespeare”49, comenta Friedrich Schlegel.

Shakespeare estava errado de acordo com o cânone classicista, mas correto tendo

em vista a construção endógena de sua obra. Com isso, Schlegel falava de outro

tipo de correção, cujo critério é estabelecido pela própria obra, e não de fora dela

por algum suposto tribunal absoluto capaz de julgá-la.

Para tanto, era fundamental a autonomia da estética formulada por Kant e

aplicada à arte, pois a operação do conhecimento, por exemplo, era descrita pelo

próprio Kant com a metáfora do tribunal, da qual os primeiros românticos buscam

se afastar. Segundo ele, “é mister que a razão enfrente a natureza (…) a fim de

instruir-se por ela, não como um aluno que aceita docilmente tudo o que o

professor lhe dita, mas como um juiz que, no exercício de sua função, compele as

47 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 60.48 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 81 (Athenäum,Fr. 205).49 Ibid., p. 92 (Athenäum, Fr. 253).

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testemunhas a responder às perguntas propostas por ele”50. Porque buscavam na

arte a exatidão da ciência, os neoclássicos aplicavam a ela os critérios expostos

por Kant sobre o conhecimento, compelindo as obras singulares como se fossem

réus julgados por certa legislação fixada previamente com validade genérica.

Tal procedimento era o que Kant chamava de juízo determinante. Nele, o

princípio ou a lei é dado para subsumir o particular na categoria universal. De

posse das regras, apenas as aplicamos aos casos que aparecem, que no âmbito da

arte seriam as obras. “Porém, se só o particular for dado”, diz Kant, para o qual se

“deve encontrar o universal”, então temos a faculdade “reflexiva”51. Este segundo

procedimento é o que caracteriza a estética de Kant, formulando a situação na

qual certa singularidade nos obriga a pensar a partir dela mesma, sem o amparo de

categorias gerais fixadas de antemão. É a este tipo de reflexão que se filia a crítica

de arte dos primeiros românticos alemães, já que as obras, para eles, eram sempre

singulares. Sua crítica é reflexão sobre a obra, não determinação da obra. Ela não

pode ser preconceituosa, pois não possui conceitos prévios.

Essa postura crítica era decisiva para compreender algo que a modernidade

passou a prezar: o novo. Se as obras pretendem originalidade, a crítica não pode

julgá-las com os parâmetros que já conhece, ou perderia o que trazem de novo.

Foi por isso que, muito tempo depois, Gilles Deleuze buscou dar fim ao “juízo

que supõe critérios preexistentes (valores superiores), e preexistentes desde

sempre (no infinito do tempo), de tal maneira que não consegue apreender o que

há de novo num existente, nem sequer pressentir a criação de um modo de

existência”52. É claro que os primeiros românticos já suspeitavam que o novo

podia ser banalizado, mas a discussão não se encerrava aí. “É novo ou não é: eis a

questão que, diante de uma obra, se faz do ponto de vista mais alto e do mais

baixo, do ponto de vista da história e do da curiosidade”53. Do ponto de vista da

história, caberia à crítica assimilar a novidade das obras, para que diferentes

sentidos pudessem nascer daí.

50 I. Kant, “Prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura”, in Textos seletos (Petrópolis,Vozes, 1985), p. 34 (B XIII).51 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 23(XXVI).52 Gilles Deleuze, “Para dar um fim ao juízo”, in Crítica e clínica (São Paulo, Ed. 34, 1997), p.153.53 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 54 (Athenäum,Fr. 46).

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*

Toda a tarefa de reflexão crítica sobre as obras surge da ausência da escala

de valores prontos para julgá-las. Resta fazer certo “experimento na obra de arte,

através do qual a reflexão desta é despertada e ela é levada à consciência e ao

conhecimento de si mesma”54, afirma Benjamin. Então, a crítica não se situa fora

da obra. Ela desdobra aquilo que a própria obra põe. Ela continua a obra. Tal

continuação, porém, não é somente o acréscimo da opinião subjetiva deste ou

daquele crítico de arte. Se as opiniões forem de fato críticas, elas serão o

desenvolvimento da obra conhecendo-se a si mesma. “Na medida em que a crítica

é conhecimento da obra de arte, ela é o autoconhecimento desta; na medida em

que ela a julga, isto ocorre no autojulgamento da obra”55, diz Benjamin.

Nesse sentido, o conceito de crítica de arte do romantismo alemão

distancia-se da prática corrente. Ele não tem qualquer preocupação corporativa

com a divisão entre artistas e críticos, pois ambos devem estar a serviço da obra.

Sendo assim, o crítico não descobre o sentido último da obra, pois este, que

jamais é último, já é efetuado pela própria produtividade reflexiva da crítica

praticada. No fim das contas, como observa Benjamin, “este processo só pode ser

representado de maneira coerente através de uma pluralidade de críticos que se

substituem, se estes forem não intelectos empíricos, mas graus de reflexão

personificados”56. Não é certa pessoa ou subjetividade que vai cumprir tal

processo. É o processo de reflexão que se cumpre através da crítica e dos críticos.

Logo, “não é o crítico que pronuncia este juízo sobre a obra, mas a arte mesma, na

medida em que ela ou aceita em si a obra no medium da crítica ou a recusa”57, diz

Benjamin.

Se a obra de arte não puder ser criticada, nesse sentido especificamente

romântico, não se trataria de arte. Mas é preciso sublinhar que a afirmação só é

válida porque falamos aqui do “fundamento de uma crítica totalmente outra”58,

observa Benjamin. Esta “crítica é, então, de modo totalmente oposto à concepção

atual de sua essência, em sua intenção central, não julgamento, mas antes, por um 54 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 74.55 Ibid., p. 74.56 Ibid., p. 76.57 Ibid., p. 87.58 Ibid., p. 85.

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lado, acabamento, complemento, sistematização da obra, e, por outro, sua

dissolução no absoluto”59. Ela é o acabamento da obra pois seu fito não é elogiar

ou condenar, já que ela não visa determinar. Seu objetivo é intensificar ou

desdobrar, ou seja, refletir. Fazendo assim, a crítica complementa a obra.

Benjamin, porém, disse ainda que a crítica dissolve a obra no absoluto. Ele

quer dizer, com isso, que a crítica liga a obra finita (que enquanto coisa concreta é

particular) ao âmbito infinito da arte (que enquanto idéia é absoluto). Toda obra

específica só é em geral de arte porque pertence ao âmbito no qual se situam todas

as obras enquanto participam da (idéia de) arte. Cabe à crítica, para os primeiros

românticos, explicitar o pertencimento da obra particular relativamente ao

absoluto da arte. Deve-se acrescentar que aquele acabamento da obra e esta sua

dissolução no absoluto feitos pela crítica não são operações diferentes: “ambos

processos coincidem”60, diz Benjamin. Eles coincidem porque o absoluto da arte

não existe completamente fora das obras. Ele é constituído pelo tecido

entremeado do conjunto das obras. Por isso, para a crítica dos primeiros

românticos, o “centro de gravidade está não na estimação da obra singular mas na

exposição de suas relações com todas as demais obras”61. Por trás dessa

explicação de Benjamin, está a concepção romântica de que todas as obras

comunicam-se entre si no âmbito da arte.

Este âmbito é o que Benjamin chama de idéia de arte ou, às vezes, de

“medium-de-reflexão”, pois é neste “medium” que as obras entram em contato

umas com as outras em certo “continuum das formas”, no qual, “por exemplo, a

tragédia se relacionaria, para o espectador, de maneira contínua com o soneto”62.

Está aí a explicação para a valorização romântica do gênero do romance como

aquele no qual todos os outros poderiam entrar em comunhão no “absoluto

literário”. Em certo sentido, os primeiros românticos concebiam a própria idéia da

arte enquanto obra. É a obra das obras, a obra que não é senão a conjunção de

todas as outras, o Livro dos livros, como se disse depois com Mallarmé.

Nesse contexto, entende-se que “o valor da obra depende única e

exclusivamente do fato de ela em geral tornar ou não possível sua crítica

imanente”, como diz Benjamin, concluindo: “se ela é possível, se existe portanto

59 Ibid., p. 85.60 Ibid., p. 85.61 Ibid., p. 85.62 Ibid., p. 94.

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na obra uma reflexão que se deixa desdobrar, absolutizar e dissolver-se no

medium da arte, então ela é uma obra de arte”63. Em outras palavras, a crítica da

obra só é possível se esta pertence, por si mesma, à arte. Só assim a crítica pode

tomar a obra singular e torná-la absoluta ao desdobrar sua reflexão no medium

que é a arte. Por isso, essa crítica “nada mais deve fazer do que descobrir os

planos ocultos da obra mesma, executar suas intenções veladas”, pois, “no sentido

da obra mesma, isto é, em sua reflexão, deve ir além dela mesma, torná-la

absoluta”64.

*

Reconhece-se, assim, que “a obra é incompleta”65, como afirma Benjamin,

já que, por si mesma, não é absoluta. Só que a falta é positiva para os primeiros

românticos, já que “só o incompleto (…) pode levar-nos mais adiante”, enquanto

“o completo é apenas fruído”66, afirma Novalis. Daí a centralidade da crítica. Não

é a fruição estética da obra que está em primeiro plano, e sim a correspondência a

ela na linguagem crítica, que só ocorre porque a obra ainda não é completa por si.

É a crítica que a completa. É a própria obra que exige ser criticada, como

possibilidade de dissolução de si no absoluto da arte.

Desse modo, a obra liga sua finitude particular à infinitude de seu

pertencimento à arte. “Esta intensificação de consciência na crítica é, a princípio,

infinita”, atesta Benjamin, pois “a crítica é, então, o medium no qual a limitação

da obra singular liga-se metodicamente à infinitude da arte e, finalmente, é

transportada para ela, pois a arte é, como já está claro, infinita enquanto medium-

de-reflexão”67. Num fragmento, Schlegel já deixara dito que “uma obra está

formada quando está, em toda parte, nitidamente delimitada, mas é, dentro dos

limites, ilimitada e inesgotável; quando é de todo fiel, em toda parte igual a si

63 Ibid., p. 86.64 Ibid., p. 77.65 Ibid., p. 78.66 Novalis, “Fragmentos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 155.67 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 76.

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mesma e, no entanto, sublime acima de si mesma”68. Só quando é fiel apenas a si

mesma, a obra pode estar, simultaneamente, acima de si mesma: sublime.

Essas palavras provam que à abolição das regras neoclássicas no campo da

arte não corresponde, para os primeiros românticos, o elogio de subjetividades

desenfreadas. É verdade que, diante do artista, “nenhuma crítica pode ou deve

roubar-lhe sua essência mais própria, sua mais íntima força, para refiná-lo e

purificá-lo até uma imagem comum, sem espírito e sem sentido, como se

esforçam os tolos”69. Longe, porém, de atacar a crítica em geral, discrimina-se

outro papel para ela, até diante do artista: “a elevada ciência da crítica genuína

deve-lhe ensinar de como precisa formar e educar a si mesmo, em si mesmo, e

antes de tudo a compreender toda outra manifestação autônoma da poesia em sua

clássica força e plenitude”, observa Schlegel, “para que as flores e os grãos de

espíritos alheios se tornem alimento e semente de sua própria fantasia”70. Se a

crítica pode ajudar o artista, ainda que não dependa disso para se legitimar, é

evidenciando que sua obra, por mais que enverede por caminhos distintos da de

outros, pertence ao “grande oceano universal” no qual “todas as correntes da

poesia deságuam”71. Ela pertence à arte.

Por sua vez, a crítica, enquanto acabamento da obra, situa-se, ela mesma,

dentro do campo da arte, ainda que não exatamente da mesma forma que a obra

primeira. Ela carrega a obra adiante, eleva sua reflexão, potencializa, desdobra.

Não está lá e a obra cá. Ela continua a obra. Para cumprir tal função, a crítica

experimenta transformação decisiva: a partir de agora, “de poesia, também, só se

pode falar em poesia”72, afirma Friedrich Schlegel. Segundo Benjamin, os

primeiros românticos “fomentaram a crítica poética”73. Só assim poderíamos

encontrar o dizer que corresponde ao que a arte é, sem engolfá-la em conceitos

prontos: se a poesia moderna era crítica, a crítica moderna era poética.

Seria possível escutar, aqui, ecos da concepção de Kant do que seria a

idéia estética, presente por exemplo na arte: a “representação da faculdade da

imaginação que dá muito a pensar, sem que contudo qualquer pensamento 68 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 100 (Athenäum,Fr. 297).69 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 29.70 Ibid., p. 29.71 Ibid., p. 30.72 Ibid., p. 30.73 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 77.

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determinado, isto é, conceito, possa ser-lhe adequado, que consequentemente

nenhuma linguagem alcança inteiramente nem pode tornar compreensível”74. Não

é difícil enxergar no conceito e na prática da crítica de arte romântica a tentativa

de construção dessa linguagem que não se fecha em conceitos determinados e

acolhe a ausência da transparência compreensiva completa, para assim

corresponder ao que a idéia estética da obra de arte dá a pensar. “Pode existir um

falar de poesia que, não só lhe esteja adequado, mas que ela até exija”, diria

Heidegger tempos depois, alertando que “talvez se possa falar da poesia

poeticamente, o que, todavia, não quer dizer em versos e rimas”75. Não se trata,

portanto, de colocar o crítico para escrever em verso. Pelo contrário, seu elemento

costuma ser a prosa. Mas esta prosa, enquanto tal, é ela mesma literatura. Situa-se

dentro da arte, não fora. Também o crítico é escritor. Ele escreve crítica. Essa

valorização da dimensão da materialidade da escrita na forma de expressão é que

dá o caráter poético da crítica, cujo exercício, então, está menos distante da obra

sobre a qual fala do que, em geral, supomos. “Tanto a poesia como o pensamento

se movimentam no elemento do dizer”76, observaria Heidegger anos depois.

74 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 159(193).75 Martin Heidegger, Hinos de Hölderlin (Lisboa, Instituto Piaget, 2004), p. 13.76 Martin Heidegger, “A essência da linguagem”, in A caminho da linguagem (Petrópolis, Vozes,2003), p. 146.

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Neo, pós ou anticlassicismo:

a imitação da antiguidade na formação moderna

De que modo podemos nos relacionar com o passado? Essa pergunta

ganha força sempre que o presente desafia a tradição precedente. Tematizar,

conscientemente, a forma pela qual estamos situados na história é, nessa medida,

já o sinal de que não pertencemos a ela de modo natural. Nesse sentido, o

nascimento daquilo que chamamos de modernidade, os “novos tempos”, ocorre

simultaneamente ao nascimento da antiguidade, já que esta, antes daquela, não

podia ser exatamente antiga. Noutras palavras: o que torna antiga a antiguidade é

a modernidade, que, ao mesmo tempo, só é moderna pois coloca outro tempo

como distinto de si mesma. Novalis gostava de dizer que, à sua época, a

antiguidade não existia, mas começava apenas a surgir, que precisava ser

produzida.

Em seu alvorecer, a consciência histórica veio à tona, sobretudo, pelo

paulatino enfrentamento do passado clássico. Seria o presente neo, pós ou

anticlássico? No sentido cronológico, só colocar em questão a relação com o

classicismo denuncia o contexto pós-clássico: não se está mais dentro dele

organicamente. Entretanto, este pós pode ser neo ou anticlássico diante do

passado. Essa dualidade balizou a famosa “querela de antigos e modernos”, que

só foi possível porque ambos situavam-se após o classicismo, quando se pergunta

por ele. Mesmo quando os franceses, seguindo os renascentistas italianos,

propõem, no século XVII, o neoclassicismo, já reconhecem estarem fora do

classicismo original. São “neo”. Podem desejar manterem-se fiéis à tradição

greco-romana, mas só por se tratar de um desejo, e não de uma certeza, já estão

fora daquele pertencimento original. Nesse sentido, são modernos, a despeito de

quererem ser como os antigos.

Foi comum, de outro lado, encarar os românticos, no século XVIII, como

se fossem o anticlassicismo, por conta de sua reabilitação da Idade Média bem

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como de diversas culturas orientais e, sobretudo, de sua aparente oposição aos

valores clássicos. Fazendo o elogio do exagero e não da contenção, do subjetivo e

não do objetivo, do caos e não da ordem, do extravasar e não da sobriedade, da

transgressão e não da manutenção, da noite e não do dia, os românticos teriam

aberto guerra ao clima apolíneo da cultura grega. Na verdade, eles já estavam,

antes de Nietzsche, sugerindo que os gregos eram, além de apolíneos, também

dionisíacos. Mas esta é outra história, à qual voltaremos depois.

Na realidade, o maior problema de opor o romantismo ao classicismo é

que, assim, não se consegue explicar como os gregos permaneceram centrais para

o pensamento romântico, saudados como a fonte original para qual a cultura devia

voltar os olhos. Não por acaso, no que diz respeito ao cunho classicista da

maturidade de Schiller e Goethe vivida na cidade de Weimar, existem mais

convergências com seus contemporâneos românticos situados em Iena do que

discordâncias: “os paralelos entre os dois grupos de autores, classicistas e

românticos, parecem óbvios”1. Tanto que é comum acusar os românticos de

nostálgicos2 ou de estarem sob a tirania da cultura grega3, o que, a rigor, não é o

caso. É verdade, contudo, que os primeiros românticos buscavam, nas palavras de

Friedrich Schlegel, “a perspectiva de um classicismo crescendo sem limites”4.

*

Não é possível compreender a profundidade da relação dos românticos

com o classicismo apenas no nível descritivo. Não adianta listar elementos que

caracterizariam um e outro lado, sem refletir sobre o fundo filosófico que os

explica. Este fundo diz respeito ao problema da história, resumido por Goethe ao

afirmar que “fazemos a experiência do que está ausente, à qual pertence a

experiência do passado, através de uma autoridade alheia; a experiência do que

está presente deveríamos fazer por autoridade própria”5. Porém, essa dialética

histórica, de acordo com ele, não é feliz: “a natureza do indivíduo é 1 Ernst Behler, German Romantic Literary Theory (Cambridge, Cambridge University Press,1993), p. 2.2 Jacques Taminiaux, La nostalgie de la Grèce à l’Aube de l’Idealisme Allemand (Haia, MartinusNijhoff, 1967).3 E. M. Butler, The Tyranny of Greece over Germany (Boston, Beaon Press, 1935).4 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum, Fr.116).5 J. W. Goethe, Máximas e reflexões (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003), p. 31.

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completamente insuficiente para fazer ao mesmo tempo as duas coisas como

convém”6. Ela não relaciona, com facilidade, presente e passado. No caso aqui, a

questão é, como diz Hölderlin, “o ponto de vista segundo o qual devemos encarar

a antiguidade”.

Sonhamos com formação, piedade, etc., mas não possuímos nenhuma. Sãoapenas pretensão – sonhamos com originalidade e autonomia, acreditamosenunciar o novo em alto e bom tom, mas tudo isso não passa de reação, de umaespécie de vingança suave contra a escravidão que norteia o nossorelacionamento com a antiguidade. Parece que, realmente, quase não se ofereceuma outra escolha senão deixar-se soterrar pelo já assumido, pelo positivo ou,com a mais violenta soberba, contrapor a vida de nossas forças a tudo o que foidado, aprendido, a todo o positivo.7

Sonhamos com a construção da cultura própria do nosso tempo, com nossa

formação. Desejamos autonomia, ou seja, dar a nós a nossa própria lei, de nossa

época, ao invés de tomá-la emprestada. Porém, esta pretensão esbarra na solidez

do “já assumido”, da positividade do dado, que eclipsa a abertura da negatividade

daquilo que ainda não é. Mesmo buscando o novo, os modernos são dominados

pela reação, tornando-se, ainda, escravos da antiguidade que querem negar, pois

no esforço para vencê-la, acabam por mantê-la como o ponto de orientação

contrastante para o presente.

Eis a bifurcação histórica em que estava a modernidade: afirmar o presente

sobre o passado ou deixá-lo a ele subordinado, contrapor com “violenta soberba”

a força do atual a tudo o que foi feito ou “deixar-se soterrar” pelo que já está

formado? Este “tudo ou nada” foi recusado pelos primeiros pensadores

românticos, assim como por Hölderlin. Friedrich Schlegel, por exemplo, diluía a

oposição do romantismo moderno à antiguidade clássica, ao afirmar que “somente

quando forem encontrados o ponto de vista e as condições da identidade absoluta

que existiu, existe ou existirá entre antigo e moderno, se poderá dizer que ao

menos o contorno da ciência está pronto”8.

Logo, não é estranho que abundem, no romantismo, elogios aos gregos.

Tanto que, ao formularem algum cânone, os românticos concedem a eles o

primeiro posto. Falando sobre “épocas da arte poética”, por exemplo, louvam 6 Ibid., p. 31.7 F. Hölderlin, “O ponto de vista segundo o qual devemos encarar a antiguidade”, in Reflexões(Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994), p. 21.8 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 71 (Athenäum, Fr.149).

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Homero. “Na planta homérica vemos também o surgimento de toda poesia; mas

as raízes se subtraem ao olhar, e as flores e os ramos da planta brotam

inconcebivelmente belos da noite da antiguidade”9. Passagens assim suscitaram a

acusação de “grecomania”, embora seja claro, para Friedrich Schlegel, que

“jamais se deveria evocar o espírito da antiguidade como uma autoridade”10.

É que o elogio aos gregos não fez com que os românticos buscassem fazer

renascer a cultura antiga. Não se tratava de voltar aos gregos, mas de voltar os

olhos para eles. É aí que as coisas começam a se complicar, ao mesmo tempo que

ficam interessantes. Embora admirassem a arte grega, os românticos não foram

soterrados pela antiguidade, graças à pioneira importância que concederam à

história. Segundo Friedrich Schlegel, “a ciência da arte é sua história”11. Esta

perspicácia histórica impediu que os primeiros românticos, mesmo venerando os

gregos, os colocassem como modelo fora do tempo a ser copiado.

Se o elogio à antiguidade não deixa conceber o romantismo como

anticlassicismo, o sentido histórico os coloca longe do neoclassicismo. Nenhuma

recriação da cultura grega, para eles, seria possível ou mesmo recomendável, já

que roubaria, de antemão, a possibilidade do simples nascimento da cultura

moderna, ainda que ela deva ser considerada através da referência à antiguidade.

É nesta fronteira entre a identidade e a diferença com a antiguidade clássica que se

constrói o pensamento romântico alemão.

*

No pré-romantismo, a discussão entre modernos e antigos já estava posta.

Seu apego Shakespeare, por exemplo, estava atrelado ao fato de que o dramaturgo

inglês era sinônimo de modernidade, pois sua obra livrara-se das regras clássicas.

Em torno dele, os pré-românticos juntavam-se para afirmar a criação artística

original do presente, enfrentando a “maldição de ser-nos difícil pensar como os

antigos, uma vez que se deseja apanhar o pensamento sem expressão”12.

Buscando regras antigas para realizar artisticamente a modernidade, por confiar 9 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 35.10 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 27 (Lyceum, Fr.44).11 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 35.12 J. G. Herder, “Da terceira coleção de fragmentos”, in Autores pré-românticos alemães (SãoPaulo, EPU, 1991), p. 31.

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serem elas universais e atemporais, esquece-se que, por mais elevadas que sejam,

foram criadas numa época específica, a ela pertencendo. Seria preciso, assim,

achar a forma originalmente moderna para tratar dos temas modernos, longe do

“palavrório estético no qual o pensamento é tratado em separado da expressão”13,

para falar ainda com Herder. Líder do pré-romantismo, ele foi severo crítico das

Luzes, pois contestava “que a natureza humana era fundamentalmente a mesma

em todos os tempos e lugares”. Ele “não era nacionalista; supunha que diferentes

culturas podiam e deviam florescer proveitosamente lado a lado como tantas

flores pacíficas no grande jardim humano”, atacando só os “cosmopolitismo e

universalismo ocos”14, como atesta Isaiah Berlin. Para Herder, cada cultura

possuía seu próprio centro de gravidade, logo, a modernidade não poderia girar

em torno do centro antigo.

Para Friedrich Schlegel, que compartilha o problema de Herder mas não

sua solução, trata-se da “estranha predileção que poetas modernos têm pela

terminologia grega para designar seus produtos”15. Por isso, os pré-românticos

voltaram-se, muitas vezes, para tradições locais, buscando a inspiração para a

produção de uma arte original. Para Herder, por exemplo, “o poeta que queira

reinar sobre a expressão deverá permanecer fiel à sua terra; nela poderá plantar

palavras poderosas, pois que conhece o país; aqui poderá colher flores, pois que a

terra lhe pertence”, de onde conclui que “a disposição verdadeira só se estampa na

língua materna”16. Essa aproximação metafórica entre a exploração da linguagem

na escrita e a do país na geografia, cara à retórica pré-romântica, tinha por

objetivo apontar outro ponto de referência para a poesia que não os antigos

gregos, bem como outras tradições formuladas não universal, mas localmente. Daí

que muitos contos ficcionais do romantismo alemão sejam incursões mágicas ou

fantásticas no folclore.

*

13 Ibid., p. 31.14 Isaiah Berlin, “O Contra-Iluminismo”, in Estudos sobre a humanidade (São Paulo, Companhiadas Letras, 2002), p. 273 e 284.15 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 27 (Athenäum,Fr. 45).16 J. G. Herder, “Da terceira coleção de fragmentos”, in Autores pré-românticos alemães (SãoPaulo, EPU, 1991), p. 33.

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No caso dos primeiros românticos, a antiguidade grega não foi renegada

como, às vezes, o fizeram os pré-românticos. É verdade que eles abriram o leque

de influências e fontes para a criação moderna, desvendando alternativas à

tradição greco-romana. Mas não a abandonaram. Pelo contrário, como vimos, os

primeiros românticos tinham em alta conta a antiguidade e jamais deixariam para

trás sua riqueza poética. Tampouco, contudo, deixariam de submetê-la ao crivo da

história. Já em 1794, Friedrich Schlegel expunha esses dois lados da questão, em

seu ensaio Sobre o estudo da poesia grega.

Não faltam, neste texto, louvores à antiguidade, na qual poderíamos “fruir

a pura beleza” ou encontrar a “perfeição despretensiosa”17. Segundo Schlegel, “a

poesia grega verdadeiramente atingiu o limite último da formação natural da arte e

do gosto, o mais alto cume da livre beleza”18. Muitas vezes, esses comentários

resvalam mesmo na sensação de superioridade dos antigos sobre os modernos,

carentes da firme solidez cultural grega.

“Este estado é chamado de época de ouro”19, escreve Schlegel. Porém, ele

segue afirmando que “o prazer que as obras da época de ouro grega proporcionam

admite, certamente, acréscimo”20. De que modo obras perfeitas poderiam sofrer

ampliação ou aumento? Poucos anos depois, junto do irmão August Schlegel,

Friedrich descartaria os gregos como época de ouro da cultura. Eles falam, então,

da “imagem enganosa de uma época de ouro passada”, porque, dizem, “se houve

a época de ouro, não foi exatamente dourada”, afinal, “ouro não pode enferrujar

ou ser corroído”21. Entra em jogo, aqui, a questão da história. Se fosse de ouro, a

época escaparia do tempo, pois o ouro, seguindo a metáfora, não corrói, ficando a

salvo do movimento da história. Logo, o fato de não sermos mais clássicos prova

que os próprios clássicos não são de ouro.

Essa perspectiva, exposta pelo primeiro grupo romântico fixado em Iena

no ano de 1799, já aparecia, mesmo que mais tímida, no texto de Friedrich

Schlegel de 1794. Seu título é sintomático desta tomada de sentido histórico face

à antiguidade: Sobre o estudo da poesia grega. Embora sua redação sugira a

17 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 184 (298).18 Ibid., p. 175 (287).19 Ibid., p. 175 (287).20 Ibid., p. 175 (287).21 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 90 (Athenäum,Fr. 243).

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inclinação clássica do autor, favorável à arte grega, sua abordagem parte da

situação moderna e espera contribuir para seu aprimoramento. Não é à toa que o

texto abre com as seguintes palavras: “é óbvio que a poesia moderna ou ainda não

alcançou o objetivo em direção ao qual se esforça, ou que seu esforço não possui

objetivo estabelecido, sua formação nenhuma direção específica”22. É a questão

da formação cultural moderna que comanda a reflexão sobre a antiguidade, por

sua vez ponto de referência crucial em tal empreitada. Deve-se, pois, sublinhar, no

título do texto, a palavra “estudo”. É a discussão sobre como a arte grega será

encarada ou estudada que importa – para compreender os desafios do presente.

*

De que modo deveria ser estudada a poesia grega? Esta pergunta é chave

para compreender a relação do romantismo com a antiguidade, que não se resume

à oposição. Existe, porém, oposição ao estudo neoclássico do classicismo, que o

transformara em padrão eterno e, lançando mão das lições poéticas aristotélicas,

pretendia decifrar os segredos da boa produção e correta avaliação de toda arte.

Era isso que August Schlegel tinha em mente ao declarar que “o estudo dos

antigos foi pervertido fatalmente”23. Mesmo Goethe, tantas vezes crítico dos

românticos, juntava-se a eles nisso, ao afirmar que “fragmentos do tratado sobre a

arte poética fornecem uma estranha visão de Aristóteles”, pois “se precisaria antes

de todas as coisas tomar contato com o modo de pensar filosófico deste homem

para compreender como ele considerou esta manifestação artística”24.

Foi essa apropriação neoclássica das lições aristotélicas que fez com que,

algumas vezes, os primeiros românticos se voltassem para Platão. Pois, ao

contrário do que Boileau e outros neoclássicos fizeram com o pensamento de

Aristóteles, em Platão a reflexão sobre a arte não se manifestava na forma de

regras ou determinações concretas sobre o fazer poético. Não era doutrina

empírica prescritiva, mas reflexão filosófica especulativa.

22 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 113 (217).23 August Schlegel, Vorlesungen über dramatische Kunst und Literatur (Bonn, K. Schroeder,1923), Vorlesung I.24 J. W. Goethe, Máximas e reflexões (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003), p. 142-143.

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Esta reavaliação também trouxe uma mudança decisiva na relação prevalecentecom a antiguidade clássica, que pode ser descrita como uma saída da influênciaromana e aristotélica, dominante sobre a crítica européia, em troca de um laçomais forte com os gregos e especialmente com a tradição platônica.Anteriormente, os gregos haviam mantido seu impacto na história da estéticasobretudo através dos romanos, bem como através das várias adaptações daPoética, de Aristóteles. Seguindo Winckelmann e a tradição do humanismogermânico, os Schlegel tentaram acabar com esta forma de classicismo através doestabelecimento de uma conexão mais próxima com o mundo estético dos gregose se referindo diretamente às declarações sobre poesia de Platão…25

Embora Platão tivesse expulsado os poetas da república ideal que

imaginou, sua doutrina, para os românticos, parecia mais filosófica do que a

tradição aristotélica que lera as lições poéticas do mestre de modo parcial, sem

levar em conta o seu pensamento. Fora isso, os românticos sentiam-se atraídos

pela reflexão platônica acerca da natureza não empírica do belo, que dava asas

para os vôos de sua própria filosofia da arte. No que nos interessa aqui, cabe

destacar que contestar a poética aristotélica visava desautorizar a estética

neoclássica e, assim, tirar da antiguidade o valor de modelo a ser obedecido.

Nesse sentido, Winckelmann foi um discreto precursor do romantismo, a

despeito de sua crença clássica no ideal apolíneo fixo de beleza grega na “nobre

simplicidade e calma grandeza”26. É que, como mostrou Gerd Bornheim, “sua

importância histórica não repousa apenas no fato de defender entusiasticamente os

antigos, mas sobretudo em saber problematizá-los, em perguntar o que se deve

entender por ‘antigo’”27. Foi este último ponto que o fez especialmente relevante

para os românticos em geral.

No caso do “humanismo germânico”, a influência de Lessing, a despeito

dos valores iluministas que o afastavam do romantismo, foi sentida pelos

Schlegel, por conta da contestação pioneira do neoclassicismo no teatro.

Nós, alemães, reconhecemos com bastante sinceridade que ainda não possuímosum teatro. O que muitos de nossos críticos de arte, que concordam com essaconfissão e são grandes admiradores do teatro francês, pensam ao dizer tal coisaeis algo que não posso realmente saber. Mas sei bem o que penso disso. Pensoefetivamente que não só nós, alemães, mas os que se gabam de ter há cem anos

25 Ernst Behler, “The Impact of Classical Antiquity on the Formation of the Romantic LiteraryTheory of the Schlegel Brothers”, in Zoran Konstantinovic, Warren Anderson e Walter Dietze,Classical Models in Literature (Innsbruck, Amoe, 1981), p. 139.26 J.-J. Winckelmann, Réflexions sur l’imitation des oevres grecques en peinture et en sculpture(Paris, Aubier, s/d), p. 142-143.27 Gerd Bornheim, Páginas de filosofia da arte (Rio de Janeiro, Uapê, 1998), p. 79.

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um teatro, que se jactam até de ter o melhor teatro de toda a Europa, que tambémos franceses ainda não têm um teatro.28

Por trás da provocação nacionalista de Lessing, estava o drama da

“imitação de segundo grau”29, como a chamaram Philippe Lacoue-Labarthe e

Jean-Luc Nancy: os alemães viam-se forçados a imitar a imitação dos antigos que

França e Itália exportavam, ficando não só privados de sua identidade, mas até

dos seus próprios meios de imitação. Reeditar aquele classicismo, portanto, não

seria suficiente para o teatro. Era preciso contestar o predomínio de Molière,

Corneille e Racine, para valorizar o gênio poético inglês de Shakespeare, exemplo

de liberdade face às regras antigas objetivas, já que ele não dependera da tragédia

grega como modelo empírico para sua criação própria.

*

Todo o modo romântico de olhar a antiguidade está amparado no sentido

histórico de que a “arte é infinitamente perfectível”30, conforme escreveu

Friedrich Schlegel. Shakespeare era a prova de tal perfectibilidade, levando a arte

até alturas que mesmo os gregos não poderiam imaginar. Esta é a cifra do sentido

histórico da arte, ao qual está submetida inclusive a antiguidade, pois “um

máximo absoluto em sua contínua evolução não é possível: porém, um máximo

relativo, condicionado, uma aproximação permanente, insuperável, é possível”31.

Logo, a antiguidade não é o máximo absoluto, mas apenas o máximo

relativamente condicionado ao seu tempo. Não criaram os antigos “simplesmente

uma beleza sobre a qual nada mais belo poderia ser pensado”32. Tanto poderia que

os modernos voltam os olhos para os gregos para criar sua beleza sobre a deles.

Desse modo, embora destituída do valor modelar eterno, a arte grega faz parte da

aproximação, jamais superável, do absoluto. Ela conta, segundo Schlegel, como

28 Lessing, “Dramaturgia de Hamburgo”, in De teatro e literatura (São Paulo, EPU, 1991), p. 82.29 Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, O mito nazista (São Paulo, Iluminuras, 2002), p.36.30 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 176 (288).31 Ibid., p. 176 (288).32 Ibid., p. 175 (288).

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“exemplo que compreende a idéia inalcançável, que se torna aqui, essencialmente,

completamente visível”33.

Embora o ensaio Sobre o estudo da poesia grega ainda traga, em seu bojo,

certo respeito às regras e leis de construção poética oriundas dos gregos, Friedrich

Schlegel já lança aí sua revolucionária consideração sobre a antiguidade, mesmo

que de modo ambíguo. É o preço que, em geral, pagam os pioneiros: são menos

resolutos e livres de contradições que seus epígonos. Essa ambiguidade, contudo,

não diminui o quanto sua reflexão transformou o modo de pensar a relação dos

modernos com os antigos, que agora tinham reconhecida sua qualidade estética

sem que, para isso, fosse necessário destituí-la de sua natureza histórica e forçá-la

ao patamar atemporal.

Este é o ponto de vista segundo o qual devemos encarar a antiguidade,

como diria Hölderlin. Porém, ao mudar a forma de olhar a antiguidade, os

românticos, ao mesmo tempo, descobriram, por assim dizer, outra paisagem,

diferente daquela imagem forjada pelo neoclassicismo. De súbito, os gregos

apareciam não mais como o povo solar do dia, mas como a cultura cuja fonte

escondida era a noite escura. Lá deitavam as raízes de sua arte e, aliás, a

relevância da forma dramática da tragédia. “Igualmente misturados na mente de

Sófocles estavam a divina intoxicação de Dionísio, a profunda inventividade de

Atena e a calma prudência de Apolo”34, escreveu Friedrich Schlegel.

É aí que reside a importância da descoberta romântica da ambivalência da

cultura grega como apolínea e dionisíaca, depois retomada pela filosofia de

Nietzsche. Na medida em que não era mais concebida unilateralmente através do

princípio apolíneo solar da ordem harmônica, a antiguidade não fornecia,

objetivamente falando, a luz que desse orientação precisa. Seu princípio

dionisíaco, de desmesura, retirava dela a precisão e o equilíbrio das medidas, pois

a noite antiga era a fonte de onde brotava sua beleza. Esta ambivalência corrompia

a solidez necessária a qualquer imagem que se queira modelar ou prescritiva.

“Este caos formado de maneira estimulante é a semente a partir da qual se

organizou o mundo da poesia antiga”, escreveu Friedrich Schlegel já no coração

do grupo romântico de Iena, revelando que, “assim como os sábios procuram na

33 Ibid., p. 175 (288).34 Ibid., p. 184 (298).

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água o começo da natureza, a poesia mais antiga também se mostra em fluídas

feições”35.

Nesse sentido, acompanha a mudança de relacionamento que os

românticos têm com a antiguidade certa alteração no que significa a própria

antiguidade. Longe de ser modelo estável, ela é fluída, logo, não pode ser copiada.

É apenas certa formação cultural exemplar, que não pode ser repetida, mas pode

ser observada e, assim, tem muito a ensinar – pois ali os gregos souberam dar

forma ao informe, mantendo-se na linha fina que separa e une a ordem e o caos, o

ser e o nada. Suas produções artísticas “podem ser um insuperável exemplo no

qual todo o propósito da arte torna-se tão manifesto quanto é possível em uma

obra de arte efetiva”36, sugere Schlegel. Elas não devem ser copiadas na

objetividade empírica, mas imitadas no seu gesto diante do mundo. Logo, a

antiguidade não precisa nos soterrar e nós não precisamos fazer oposição a ela

com violenta soberba.

*

No romantismo alemão, era apontada a renovação da relação que a

modernidade podia entreter com a antiguidade, ou seja, que o presente podia

estabelecer com o passado. Para se alcançar a grandeza propriamente clássica, não

seria preciso ser tutorado pela sua autoridade transformada em cânone normativo.

Não era só o que, nas obras modernas, lembrasse as obras antigas que deveria ser

estimado. Nos artistas capazes de produzir algo próprio, o entusiasmo pelos

antigos não os tornava modelos, mas estímulo e alimento. Por isso, suas obras não

resultariam em exercícios escolares eventualmente corretos mas sem espírito,

capazes no máximo de suscitar, como gostava de dizer August Schlegel,

“admiração frígida”. Essas obras, por mais embebidas que fossem dos clássicos,

trariam impresso o selo da genialidade original, ao contrário da monotonia da

cópia. Se Shakespeare era o caso paradigmático dessa situação, os primeiros

românticos não cessaram, contudo, de dar outros exemplos. Já era este o caso de

Dante, segundo August Schlegel: reconhecendo Virgílio como seu mestre, ele

35 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 35.36 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 180 (293).

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produziu uma obra que difere radicalmente da Eneida. E ele não era um caso

isolado.

O que preserva os poemas heróicos de um Tasso e de um Camões vivos até osdias de hoje nos corações e nos lábios de seus compatriotas não é, de modoalgum, sua semelhança imperfeita a Virgílio, ou mesmo a Homero, mas, emTasso, o sentimento delicado de amor cortês e honra, e, em Camões, a inspiraçãoincandescente de patriotismo heróico.37

Todos esses exemplos são mobilizados para que seja sublinhado o mesmo

ponto: a qualidade das obras de arte não está na imitação dos clássicos antigos,

mas na sua própria originalidade. Daí o papel do gênio do artista, tal como foi

teorizado na estética de Kant. Segundo ele, “o gênio opõe-se totalmente ao

espírito de imitação”38. Imitar, aqui, significa copiar apenas. Porém, o próprio

Kant sinaliza que, ainda assim, os produtos do gênio são “exemplares”39. Imitar,

agora, ganha outro sentido. Todo artista pode seguir o exemplo do outro, desde

que não simplifique tal operação na forma da cópia fiel. Kant admite que “é difícil

explicar como isto seja possível”, mas não abre mão de afirmar que tais produtos

geniais são “os únicos meios de orientação para conduzir a arte à posteridade”40.

Imitar, portanto, é a base da historicidade da arte, graças à qual ela ganha sua

posteridade, mas apenas na medida em que essa continuidade se dá pelas

sucessivas originalidades que não tomam o modelo como norma, mas sim como

exemplo que inspira.

Retomando Kant, os primeiros românticos afirmam, com August Schlegel,

que a “mera imitação é sempre estéril; mesmo quando pegamos algo emprestado

de outros, para que assuma forma verdadeiramente poética, deve nascer

novamente conosco”41. Na arte antiga, os românticos não procuravam modelos

que pudessem ser seguidos, do mesmo modo que, nas lições poéticas aristotélicas,

não queriam achar prescrições práticas. Não se deveria reproduzir os gregos, mas

imitar seu exemplo, que era, para os românticos, ele mesmo original: “a

37 August Schlegel, Vorlesungen über dramatische Kunst und Literatur (Bonn, K. Schroeder,1923), Vorlesung I.38 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 154(183).39 Ibid., p. 153 (182).40 Ibid., p. 155 (186).41 August Schlegel, Vorlesungen über dramatische Kunst und Literatur (Bonn, K. Schroeder,1923), Vorlesung I.

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antiguidade inteira é um gênio”42, escreveu Friedrich Schlegel. Imitar os gregos

seria, ao mesmo tempo, não imitá-los, já que eles não imitaram ninguém.

Não é à toa, então, que J. Winckelmann foi decisivo para os românticos.

Embora anterior a eles, Winckelmann fora pioneiro ao colocar a paixão pelo

mundo clássico antigo sob a exigência de contribuir para a formação específica e

original do mundo moderno. Em suas Reflexões sobre a imitação das obras

gregas na pintura e na escultura, de 1755, ele afirmava: “o único meio de nos

tornarmos grandes e, se possível, inimitáveis é imitar os antigos”43. Recuperava,

assim, a definição clássica da poesia como imitação, mas só para torcê-la, já que o

objetivo é oposto: tornar-se inimitável. Nesta fórmula paradoxal, os primeiros

românticos acharam o apontamento que, a despeito do caráter clássico do autor,

prenunciava seus ideais. Ela impunha, para eles, o desafio de serem inimitáveis

em sua modernidade mas, ao mesmo tempo, afirmava que necessariamente só se

poderia alcançar isto através da imitação dos antigos. Em jogo estava, como disse

Friedrich Schlegel, a “percepção da diferença absoluta entre antigo e moderno”44,

que implicava acatar os riscos da criação artística fora da continuidade serena da

tradição hegemônica, já que o presente não seria mais o mero prolongamento do

passado.

Em suma, o perfil histórico do romantismo é desenhado a partir do

contraste entre o passado antigo e o presente moderno, ao mesmo tempo em que,

a rigor, é assim que se define também o perfil da história de acordo com o

romantismo. Reconhecida, então, a diferença absoluta entre o passado e o

presente, aquele não pode mais servir de modelo para este, pois se instala um

fosso entre ambos. Sendo assim, a idéia de imitação dos antigos, como notara

Winckelmann, tornava-se problemática, já que devia estar sob a égide do presente

distinto do passado. Mudava-se o conceito de “mímesis”, de imitação.

“Este é o caráter da verdadeira imitação”, afirmou Friedrich Schlegel,

completando ainda que “o modelo, para o artista, é apenas estímulo e meio para

individualizar os pensamentos daquilo que pretende criar”45. Ele sugeria certa

42 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 91 (Athenäum,Fr. 248).43 J.-J. Winckelmann, Réflexions sur l’imitation des oevres grecques en peinture et en sculpture(Paris, Aubier, s/d), p. 94-95.44 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 71 (Athenäum,Fr. 149).45 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 75.

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comunicação não excludente entre o velho e o novo, já que a “afetação não surge

tanto do esforço em ser novo, quanto do temor de ser antigo”46. Nesse sentido, a

arte clássica grega é estimada no romantismo enquanto fonte de onde pode jorrar

inspiração poética exemplar para a própria modernidade. “Para nós, modernos,

para a Europa, esta fonte se encontra na Grécia”, dizia Friedrich Schlegel. E

mais: “lá havia uma fonte incessante de poesia oniplasmável, um poderoso caudal

de representação em que cada onda da vida se derrama sobre a outra”47.

Transformar todo este poderoso mar de vida da poesia grega em normas e

regras seria, no limite, traí-la. Seria fazer do seu belo arabesco que combinava

figuras diversas a partir do caos da fantasia criativa apenas a diretriz de alguma

ordem geral fixa e sem vida. Eis o perigo da interpretação neoclássica oriunda das

lições poéticas aristotélicas: secar a fonte de criação, ao torná-la legislação. Por

isso que, embora tendo em alta conta a arte grega clássica, Friedrich Schlegel não

podia aceitar que dela se derivasse a normatividade pretendida pelo

neoclassicismo.

A mais infeliz idéia que já se teve – e muitos dos traços de sua prevalência geralainda persistem – foi esta: atribuir à crítica e à teoria da arte gregas umaautoridade que, no reino da ciência teórica, é completamente inaceitável.Acreditava-se ter achado a efetiva pedra filosofal da estética; regras isoladas deAristóteles e epigramas de Horácio foram usados como talismãs poderosos contrao demônio mal da modernidade.48

Não por acaso, Friedrich Schlegel, ao escrever isso, falava “sobre o estudo

da poesia grega”, não sobre a poesia grega propriamente dita. Ele recusa o estudo

tradicional das lições poéticas aristotélicas, que, de afirmativas e comentários

isolados, teriam passado a conjunto normativo estruturado, fundando a sabedoria

teórica sobre como fazer, na prática, boa arte. Tal conjunto normativo, sob o

guarda-chuva da autoridade do filósofo antigo, teria garantido a proteção contra a

tempestade moderna.

Seguindo com a metáfora, poderíamos dizer que, para os românticos,

“quem está na chuva é para se molhar”. Eles não querem se proteger da

modernidade, mas nela mergulhar. Não querem fugir do tempo pelo subterfúgio

46 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 35 (Lyceum, Fr.101).47 Ibid., p. 35.48 Friedrich Schlegel, “Über das Studium der griechischen Poesie”, in Kritische Schriften(München, Carl Hanser Verlag, 1970), p. 218.

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de eternizar como absolutas regras que são históricas. Para eles, o absoluto não

pertence à antiguidade, mas a antiguidade faz parte do absoluto. Por isso, embora

não forneça regras universais acima da história, ela deve ser olhada com toda a

atenção, já que aí se expressa o absoluto. “Se o absoluto se externaliza no

empírico, então não é adequado ver esta externalização como um ato

essencialmente repetitivo e atemporal”, logo, “era necessário examinar esta

articulação do absoluto como um processo histórico”49, como reparou Suart

Barnett.

*

“Hegel é, para mim, o pai da história da arte”50, afirmou Ernst Gombrich.

Poder-se-ia deslocar, na sua sentença, apenas a filiação paternal de Hegel. Ele é

mais a mãe da história da arte, que gera e entrega para o mundo, já pronta, a

criança nascente – na nossa metáfora, a historicização da arte. No lugar de pai,

daquele que insemina pela primeira vez, estão os primeiros românticos, que

exigiam, ao lado da “mais profunda especulação”, também “a história da arte mais

erudita”51, de acordo com Friedrich Schlegel.

Eles despertaram para o sentido histórico da arte, que seria, depois,

apropriado, com maior força, por Hegel, para quem o absoluto não fica fora da

história, mas se realiza na história e como história – o que vale inclusive para a

exposição do absoluto na arte. “Tratamos da arte nascendo da própria idéia

absoluta e até mesmo indicando a exposição sensível do próprio absoluto como

sua finalidade, devemos proceder junto a esta visão panorâmica”52, afirma Hegel.

Nos seus cursos de estética, essa visão panorâmica deve ser a história que “mostre

como as partes singulares se originam do conceito de belo artístico em geral

enquanto exposição do absoluto”53.

49 Stuart Barnett, “Critical Introduction: The Age of Romanticism: Schlegel from Antiquity toModernity”, in Friedrich Schlegel, On the Study of Greek Poetry (New York, State University ofNew York Press, 2001), p. 13.50 Ernst Gombrich, “Hegel e a História da Arte”, in Revista Gávea, n. 5 (Rio de Janeiro, PUC-Rio,1988), p. 57.51 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 90 (Lyceum, Fr.121).52 F. W. G. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 86.53 Ibid., p. 86.

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Porém, a despeito da proximidade de Hegel, as diferenças entre ele e os

românticos são grandes. Pois o modo romântico de pensar a história não possuía o

sentido teleológico que Hegel lhe emprestava, ou seja, não tinha norte fixo algum

para o qual, a priori, tendesse. Menos ainda achavam os românticos, como Hegel,

que o caminhar do tempo tivesse fim, lugar no qual, chegando lá, cessasse o

caminho. Daí a perspectiva de Friedrich Schlegel da “infinita perfectibilidade” da

arte, que lhe abre a possibilidade de crescer para sempre, fora de qualquer marco

finalista. Entende-se, agora, porque Schlegel podia enunciar, paradoxalmente, um

“classicismo crescendo sem limites”.

Portanto, a presença da história na compreensão da arte, com os

românticos, não foi totalizante como em Hegel. Mesmo assim, mudara o modo de

pensar a relação do presente moderno com o passado clássico, que deixava de ser

a norma atemporal para a arte, já que, para os românticos, “os antigos (…) não

possuem o monopólio da poesia”54, como afirmou Friedrich Schlegel. Só por isso,

o próprio Hegel pôde reconhecer que “o mérito de ter dado forma clássica à

beleza sensual foi sem dúvida para os gregos, mas o classicismo representa apenas

uma fase da arte”55, como afirmou Gombrich.

De Hegel em diante, a compreensão da arte pela história tornou-se

preponderante, até sufocante às vezes. Porém, naquele momento, o sentimento era

o oposto. Historicizar a arte era dar a ela o ar que lhe faltava por conta da

subordinação ao classicismo enquanto modelo eterno a ser obedecido. Foi isso

que fizeram os românticos, liberando a arte de tais compromissos e, ao mesmo

tempo, sem enclausurá-la numa estrutura sistemática rígida. Para August

Schlegel, o combate era contra os que “reclamavam para os antigos uma

autoridade ilimitada, e com grande aparência de razão, desde que eles são

modelos a sua própria maneira”56. Modelos a sua própria maneira quer dizer: a

arte antiga é absoluta dentro de seu próprio jeito, é o máximo condicionado ao seu

tempo, não o incondicionado fora da história que serviria de lei para qualquer

época.

54 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 34 (Lyceum, Fr.91).55 Ernst Gombrich, “Hegel e a História da Arte”, in Revista Gávea, n. 5 (Rio de Janeiro, PUC-Rio,1988), p. 58.56 August Schlegel, Vorlesungen über dramatische Kunst und Literatur (Bonn, K. Schroeder,1923), Vorlesung I.

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Pode-se dizer que os românticos tiraram o absoluto dos antigos e

colocaram os antigos no absoluto. Por isso, classificá-los como anticlassicismo

não é adequado, embora menos ainda realocá-los como neoclássicos. “Schlegel

não procura opor a Grécia e a literatura moderna; antes, procura construir uma

reflexão produtiva, crítica”57, afirmou Franz Mannemeier. No contexto pós-

clássico, os românticos refundam a relação da modernidade com a antiguidade –

aquela não se atrasa por olhar para esta. “Sob esta premissa, poder-se-ia afirmar,

paradoxalmente, que o mais avançado tipo de modernidade consiste naquela

mentalidade que possui a mais viva relação com os gregos”, notou Ernst Behler,

para quem a singularidade da posição romântica alemã foi que nela “classicismo e

modernidade entram em uma relação de forte interação, uma comunicação

ausente na França, na Inglaterra e em todos os outros tratamentos da querela entre

os antigos e os modernos”58. Não seria pelo grau de recusa ou endosso da

antiguidade que seria medido o vigor da modernidade, mas pela capacidade de

com ela interagir.

*

Goethe foi sagaz ao afirmar que “classicismo e romantismo, impulso

corporativo e liberdade profissional, manutenção e esfacelamento do solo

fundamental: é sempre o mesmo conflito, que sempre gera, por fim, um novo”,

portanto, “o procedimento mais sensato do regente seria moderar de tal modo esta

luta que, sem declínio de um dos lados, ele pudesse se equilibrar”59. Esta deve ter

sido a esperança de Hegel ao buscar a síntese feliz dos opostos dialéticos.

“Todavia, isto não é dado ao homem, e Deus também parece não desejá-lo”60,

afirma Goethe, aqui mais próximo dos românticos. Para estes, entretanto, o

romantismo não é apenas um dos termos do conflito, e sim o nome de sua

aceitação. Se eles, às vezes, tentaram ser o regente que moderaria a luta até o

equilíbrio, sabiam que o esforço não evitava o restabelecimento, a cada vez, do

conflito. Entretanto, Goethe, em geral, não os entendia assim, como prova a 57 Franz Norbert Mannemeier, Friedrich Schlegels Poesiebegriff Dargestellt anhand derLiteraturkritischen Schriften (München, Fink, 1971), p. 22-23.58 Ernst Behler, German Romantic Literary Theory (Cambridge, Cambridge University Press,1993), p. 4.59 J. W. Goethe, Máximas e reflexões (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003), p. 21.60 Ibid., p. 21.

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passagem abaixo, em que ele postula que a origem da oposição entre classicismo

e romantismo vinha de suas discussões e obra.

O conceito de poesia clássica e de poesia romântica, que hoje corre o mundo etantas discussões provoca, veio originalmente de mim e de Schiller. Eu seguia napoesia a máxima objetividade e não queria aceitar nenhuma outra. Mas Schiller,que via tudo subjetivamente, considerava a sua atitude a única justa e, para sedefender contra mim, escreveu o ensaio acerca da poesia ingênua e da poesiasentimental. Demonstrava que eu, contra a minha própria vontade, continuava aser romântico, e que a minha Ifigênia, por causa do predomínio que nela tem osentimento, não era de modo algum clássica, ao gosto antigo, como se poderiasupor. Os Schlegel se apoderaram da idéia e a lançaram, a ponto que hoje toda agente fala de Classicismo e de Romantismo, quando há cinqüenta anos ninguémse lembrava de tal.61

Essas palavras de Goethe fazem suspeitar que ele não via que, para os

primeiros românticos, não resolveríamos a relação com os antigos por afirmação

ou negação. Fadados ao contato com eles, porém, poderíamos abandonar o que

Ernst Behler chamou de “versão pobre da modernidade”, que é a “mera separação

do classicismo”, em prol da “modernidade genuína”, que “possui um

relacionamento igual com o classicismo e é uma posição dinâmica em relação

àquele mundo”62. Sem essa proposital ambivalência de sua posição histórica,

dificilmente entendemos os primeiros românticos alemães. Sua ausência de

alguma negação mais contundente do classicismo63, aliás, “explica a talvez

confusa presença de um anseio quase neoclássico pela antiguidade junto com a

firme convicção de que a cultura contemporânea é irrevogavelmente distinta da

antiguidade”64, conforme comentou Stuart Barnett. Só aparentemente, contudo, há

aí contradição. Pois “os grandes poetas e artistas”, observou August Schlegel,

“seja qual for a força de seu entusiasmo pelos antigos e seja qual for a

61 J. W. Goethe, Conversações de Goethe com Eckermann (Lisboa , Vega, 1990), p. 240-241.62 Ernst Behler, German Romantic Literary Theory (Cambridge, Cambridge University Press,1993), p. 105.63 Neste cenário, é possível que os primeiros românticos concordassem com o que, muitos anosdepois, pensaria Benedetto Croce, ao escrever que “quando se começa a experimentar o cansaçoda infecunda defesa de um ou outro ponto de vista parcial; quando,s obretudo, das obras de artecomuns, que são produto da escola romântica e da clássica, das obras convulsionadas pela paixão edas friamente decorosas, se desvia o olhar não dos discípulos, mas dos mestres, não dosmedíocres, mas dos grandes; vê-se então que o contraste se afasta para longe, e deixa-se de ter apossibilidade de usar uma ou outra palavra de ordem das escolas: os grandes artistas, as grandesobras, ou as partes grandes daquelas obras, não podem chamar-se nem românticas nem clássicas,nem passionais nem representativas, porque são a um só tempo clássocas e românticas”. BenedettoCroce, Breviário de Estética / Aesthetica in nuce (São Paulo, Ática, 1997), p. 49.64 Stuart Barnett, “Critical Introduction: The Age of Romanticism: Schlegel from Antiquity toModernity”, in Friedrich Schlegel, On the Study of Greek Poetry (New York, State University ofNew York Press, 2001, p. 9.

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determinação de seu propósito de entrar em competição com eles, são compelidos

por sua independência e originalidade mental a desbravar seu caminho próprio”65.

Era o que a modernidade precisava.

Nesse contexto, poderíamos dizer que os primeiros românticos saem

daquele paradigma que já foi chamado, na esteira de Philippe Lacoue-Labarthe,

de (simples) “imitação dos antigos” para entrar no (mais complexo) da “imitação

dos modernos”, que é “ordenada a partir de uma perspectiva de ‘superar’ os

antigos, não segundo uma simples inversão do problema, do tipo: a cópia é

melhor do que o original, que permanece em realidade submissa à mesma

ordenação”, e sim segundo “uma repetição dos antigos, na qual se repete o que

eles em realidade nunca foram”66. Imitar os antigos seria, assim, retomá-los, mas

esta retomada jamais reproduz apenas o que foi. Ela traz o que ali não foi.

Eis aí a originalidade da descoberta da antiguidade feita pelos primeiros

românticos. Esta descoberta era, ela mesma, a produção da antiguidade. Repetido,

portanto, era aquilo que os antigos não foram, alojando a diferença no seio mesmo

da imitação que, ao contrário do conceito tradicional, não seria só cópia. Somente

assim, acreditavam os românticos, “a antiguidade encanecida tornar-se-á de novo

viva”67, como diz Schlegel. Novalis, por sua vez, escreve, com todas as letras, que

“através do estudo assíduo e espirituoso dos antigos surge apenas agora uma

literatura clássica para nós – a qual os antigos mesmos não possuíam”68.

Simultaneamente à criação de sua modernidade, os primeiros românticos criavam

também a sua antiguidade.

Imitar deixava de se opor à formação singular de si próprio. Imitar a

antiguidade, pelo contrário, seria parte constitutiva da construção própria, não só

copiada, da época moderna. Márcio Seligmann-Silva, em ensaio sobre o assunto,

afirmou que “esse modelo de formação do próprio por meio da imitação é

evidentemente uma atualização da antiga lei retórico-poética da imitação como

princípio da criação”69. Imitar seria, portanto, criar, já que, como dissemos, o que

65 August Schlegel, Vorlesungen über dramatische Kunst und Literatur (Bonn, K. Schroeder,1923), Vorlesung I.66 Virginia de Araujo Figueiredo e João Camilo Penna, “Introdução”, in Philippe Lacoue-Labarthe,A imitação dos modernos (São Paulo, Paz e Terra, 2000), p. 10-11.67 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 52.68 Novalis, apud Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (SãoPaulo, Iluminuras, 1999), p. 120.69 Márcio Seligmann-Silva, “A formação da Alemanha a partir da Grécia: Winckelmann e F.Schlegel”, in O local da diferença (São Paulo, Ed. 34, 2005), p. 292.

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é repetido é o que não foi, já que a antiguidade é, ela mesma, criada pela

modernidade, como queria Novalis. Seu amigo Friedrich Schlegel afirma que

para pode traduzir perfeitamente dos antigos para o moderno, o tradutor teria dedominar tanto este último que, se necessário, poderia fazer todo o moderno, masao mesmo tempo entender tanto o antigo que, se necessário, não poderia apenasimitá-lo, mas também criá-lo de novo.70

Imitação não seria só o que parece. Seria tradução e esta, por sua vez, é

criação. Nenhuma experiência foi tão aguda, neste aspecto, quanto as traduções

propriamente ditas de Hölderlin para o alemão das tragédias gregas. Tal contato

em geral com os gregos teria sido apontado filosoficamente, por exemplo, pelo

pensador holandês Hemsterhuis, que “soube delimitar belamente um âmbito

moderno pela simplicidade antiga”71, segundo August Schlegel. Hemsterhuis já

observava, é verdade, “que os gregos jamais copiaram as obras dos egípcios, e

que se pode considerar que as artes nasceram de fato entre eles”72. Nada poderia

atrair mais os primeiros românticos alemães do que isso.

Não é, portanto, no conteúdo para o qual os primeiros românticos olham

que compreendemos sua posição diante do classicismo, se é de afirmação ou de

negação. Pois, nesse caso, está claro: é de afirmação, já que eles não cessam de

olhar para o classicismo. Mais que isso. Eles gostariam, em certo sentido, de ser

clássicos, já que, segundo Friedrich Schlegel, “um escrito clássico jamais tem de

poder ser totalmente entendido” e “aqueles que são cultos e se cultivam têm, no

entanto, de querer aprender sempre mais com ele”73. Este é exatamente o objetivo

da própria escrita dos primeiros românticos alemães. Porém, o que muda, e os

distingue de seus contemporâneos neoclássicos, é a forma pela qual olham para

isso que olham, a antiguidade. Esta forma não é a da obediência cega que copia o

modelo passado, mas a da apropriação criativa da fonte que inspira o futuro. Era o

anúncio do primeiro nascimento da modernidade estética de vanguarda.

70 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 126 (Athenäum,Fr. 393).71 Ibid., p. 95 (Athenäum, Fr. 271).72 Franz Hemsterhuis, “Carta sobre a escultura”, in Sobre o homem e suas relações (São Paulo,Iluminuras, 2000), p. 33.73 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 23 (Lyceum, Fr.20).

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“Daquilo que os modernos querem é preciso aprender o que a poesia deve

vir a ser; daquilo que os antigos fazem, o que ela tem de ser”74, escreveu Friedrich

Schlegel. Futuro (como vir a ser) entra em contato com o passado (como o que

tem de ser) no presente (como o que fica entre ambos). Nesse sentido, a relação

dos antigos com os modernos, de acordo com os primeiros românticos, seria

aquela em que, afirma ainda Schlegel, “o mestre disciplinasse a sério o discípulo,

mas também lhe deixasse, no suor de seu rosto, uma base sólida como herança,

sobre a qual o seguidor devesse então avançar sempre mais, com grandeza e

audácia, para finalmente movimentar-se com liberdade e habilidade nas mais

orgulhosas alturas”75. Goethe, a despeito de suas críticas aos românticos, parecia

afinado com eles ao escrever os seguintes versos no Fausto.

O que hás herdado de teus pais,Adquire, para que o possuas,O que não se usa, um fardo é, nada mais,Pode o momento usar tão só criações suas.76

74 Ibid., p. 33 (Lyceum, Fr. 84).75 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 35.76 J. W. Goethe, Fausto: uma tragédia – Primeira parte (São Paulo, Ed. 34, 2004), p. 85.

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10

Fragmentos de vanguarda:

a consciência do instante

Sabemos que a palavra “vanguarda” possui origem no vocabulário militar.

Designa aquelas tropas que, na situação de combate, vão à frente, abrem caminho.

Literalmente, portanto, vanguarda diz respeito ao espaço, à ocupação do lugar

adiantado no terreno. Metaforicamente, contudo, a expressão foi deslocada e

passou a dizer respeito ao tempo. Mais especificamente, por analogia ao

significado original, vanguarda passou a designar, no âmbito da cultura e

especialmente no da arte, os que estão à frente do seu tempo, ou seja, que, embora

situados no presente, de alguma forma apresentam, dentro dele, o futuro,

colocando sob nova perspectiva até mesmo o passado. Não é preciso, portanto,

colar às vanguardas o valor da pura ruptura, como tantas vezes se fez tendo em

vista operações poéticas de movimentos artísticos do começo do século XX. Pelo

menos, não precisamos pensá-las como simples corte com o passado. Basta

lembrar a apropriação que os modernos primeiros românticos alemães faziam dos

clássicos gregos, sem negá-los. Se as vanguardas rompem, elas o fazem no

sentido de que abrem algo. Rompem o tempo como as tropas no espaço, abrem

algum âmbito que, antes, não conhecíamos. Elas vão à frente neste sentido. Para

tal, muitas vezes entram em choque com os soldados que preferem, tomados pelo

medo, não se movimentar, protegendo o homem da passagem, do tempo.

Nem sempre as vanguardas quiseram, contudo, avançar dentro da lógica

estrita do progresso, pois este envolve melhoria: o que é posterior seria também

superior. Muitas vezes, o caráter crítico da modernidade tinha a função de colocar

em marcha esta lógica. Era o motor que, negando o passado, nos carregaria até o

futuro sonhado. Se, entretanto, a modernidade é a época da crítica, como dizia

Friedrich Schlegel1, as vanguardas foram, em geral, tão modernas que fizeram

1 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, Carl HanserVerlag, 1970), p. 532.

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crítica da crítica, opondo-se ao tempo exclusivamente linear e progressivo. Esta

ambivalência foi observada por Octavio Paz, para quem “a relação do romantismo

com a modernidade é ao mesmo tempo filial e polêmica”, já que, “filho da idade

crítica, seu fundamento, sua certidão de nascimento e sua definição são a

mudança”2. Ser de vanguarda, então, não seria necessariamente progredir em

linha reta pré-determinada seguindo o mandamento moderno mais óbvio, e sim,

como o avanço em algum campo desconhecido, mudança, movimento,

descoberta.

Não que as vanguardas desejassem a mudança por si mesma. Mas é que só

com ela novas descobertas poderiam ser feitas. Por isso, “a vanguarda se move”3,

como pontuou Clement Greenberg. Só com ela poderíamos fugir às convenções

que aprisionam a arte, a filosofia e a vida em formas pretensamente corretas e,

assim, arriscarmo-nos no tempo, ou seja, nas transformações em geral. Naturalizar

essas formas seria negar a história. É dentro deste contexto que compreendemos a

famosa tematização feita por Octavio Paz sobre a conexão entre romantismo e

vanguarda. Para ele, “os futuristas, os dadaístas, os ultraístas, os surrealistas, todos

sabiam que sua negação do romantismo era um ato romântico que se inscrevia na

tradição inaugurada pelo romantismo: a tradição que nega a si mesma para

continuar-se, a tradição da ruptura”4.

Rupturas vanguardistas, portanto, não se fazem, como dizíamos, por

simples gosto. São feitas em prol da liberação daquilo que está em jogo, seja a

arte, a filosofia ou a vida. Por isso, as vanguardas surgem do sentimento de

aprisionamento em algum cárcere que desviava a arte, a filosofia e a vida de sua

potência. Para os primeiros românticos alemães, por exemplo, devia parecer que o

neoclassicismo em relação à arte, a forma exclusiva do sistema em relação à

filosofia e a burguesia em relação à vida eram prisões assim. Seria preciso,

portanto, liberá-las, apontando outro caminho através da vanguarda. Trilhar este

caminho significava encarar o desafio de aproximar arte e vida, gesto primordial

quando tratamos do vínculo entre romantismo e vanguardas. Em seu mais famoso

fragmento, Friedrich Schlegel declarara que o romantismo queria “tornar viva e

2 Octavio Paz, A outra voz (São Paulo, Siciliano, 1993), p. 37.3 Clement Greenberg, “Vanguarda e kitsch”, in Arte e cultura (São Paulo, Ática, 2001), p. 26-27.4 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 133.

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sociável a poesia, e poéticas a vida e a sociedade”5. Esta divisa faz com que

possamos falar dos primeiros românticos alemães como antecipação do caráter

vanguardista dos movimentos artísticos do século XX. Também fez com que eles

adiantassem dilemas que viriam a ser, depois, o de outras vanguardas, como o da

autonomia da arte. Pensemos nele.

Para discutir a polêmica questão da autonomia da arte, partiremos da

tematização tardia feita pela teoria da vanguarda de Peter Bürger. De um lado, foi

a autonomia que concedeu à arte liberdade de pesquisa estética sem precedentes,

afinal, a arte, agora autônoma, não estava subordinada a outras esferas que

controlassem suas experiências. De outro lado, esta autonomia ameaçava redundar

em simples isolamento, afastando a arte da vida e esta daquela. Por isso, “os

movimentos europeus de vanguarda podem ser definidos como um ataque ao

status da arte na sociedade burguesa”, já que aí “é negada não uma forma anterior

de manifestação da arte (um estilo), mas a instituição da arte como instituição

descolada da práxis das pessoas”6. Já era este o problema que, anos antes das

vanguardas do século XX, enfrentavam os primeiros românticos alemães.

Friedrich Schlegel afirmava que a filosofia da arte deveria começar “com a

autonomia do belo, com a proposição segundo a qual está e deve estar separado

daquilo que é verdadeiro e daquilo que é moral, e tem os mesmos direitos que

estes”7. Ele segue, assim, exatamente o ensinamento da autonomia da estética

estabelecida por Kant, já que seu assunto, o belo, deve ser apartado do verdadeiro,

que é o assunto do conhecimento, e do bem, que é assunto da moral. Somente

assim, a beleza poderia ganhar sua liberdade e, por conseqüência, a arte exercitar

suas experimentações livre de coerções. Entretanto, logo após afirmar essa tese,

Friedrich Schlegel completa que, se aquele é o fundamento da filosofia da arte,

ela, contudo, “terminaria com a unificação total”8.

Peter Bürger observou que há aí a presença de certa contradição. “Pois a

(relativa) liberdade da arte frente à práxis vital é, ao mesmo tempo, a condição de

possibilidade do conhecimento crítico da realidade”, diz ele, completando ainda

que “uma arte não mais segregada da práxis vital, mas que é inteiramente 5 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum, Fr.116).6 Peter Bürger, Teoria da vanguarda (São Paulo, Cosac Naify, 2008), p. 105.7 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 92 (Athenäum, Fr.252).8 Ibid., p. 92 (Athenäum, Fr. 252).

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absorvida por esta, perde – juntamente com a distância – a capacidade de criticá-

la”9. Sem absolver a contradição que aí existe, é preciso ter em vista que, para os

primeiros românticos, a própria vida devia ser digna do experimentalismo que a

arte, com sua autonomia, torna possível. Inventar a vida significa levar a arte até

ela. Por isso, Friedrich Schlegel afirmou que “todo homem que é culto e se cultiva

também contém um romance em seu interior” – e acrescentou que “não é, porém,

necessário que o exteriorize e escreva”10. Nós poderíamos ainda dizer: bastaria

que este homem o vivesse de fato, e a arte estaria na sua vida.

Para Schlegel, a descoberta de que a arte extrapola para a vida

supostamente fora dela fizera o personagem Wilhelm Meister, no romance

homônimo de Goethe, abandonar o teatro. Percebera que a arte não estava só no

palco, e sim na sua formação como pessoa. Soma-se a este acontecimento no

conteúdo do enredo, a forma em que ele é contado, empregando o contato da

prosa vital com a poesia artística. “Mediante o diálogo entre a prosa e a poesia,

perseguia-se, de um lado, vitalizar-se a primeira por sua imersão na linguagem

comum e, de outro, idealizar a prosa, dissolver a lógica do discurso na lógica da

imagem”11, como sublinhou Octavio Paz. Foi ele, ainda, a chamar atenção para

que, diferentemente do neoclassicismo ou do barroco, “o romantismo apagou as

fronteiras entre a arte e a vida: o poema foi uma experiência vital e a vida adquiriu

a intensidade da poesia”12. Dorothea Schlegel dizia que, se a sociedade burguesa

tornava difícil carregar a arte até a vida, podíamos, ao menos, colocar vida na arte.

Partindo da autonomia da arte, os primeiros românticos a conectaram com

a vida. Pretendia-se, com ela, preservar a vida que é da arte. Pois a arte possui sua

própria força vital, é tão viva quanto o resto do que chamamos de vida. Logo, não

precisa subordinar-se a outras esferas do real. Nesse sentido, a autonomia da arte

era a chance de proteger a sua vida, pois a defendia dos critérios petrificados da

tradição neoclássica que, pretendendo-se atemporal, não acolhia as

transformações da época moderna. Essa autonomia da arte é sustentada pelo que

há de vital na própria arte. Ela, assim, abre o caminho de comunicação com a vida

– pelo reconhecimento do que há de vida na arte e do que há de arte na vida.

9 Peter Bürger, Teoria da vanguarda (São Paulo, Cosac Naify, 2008), p. 197.10 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 32 (Lyceum, Fr.78).11 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 83-84.12 Ibid., p. 86.

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Este objetivo estava em jogo na própria exposição propositalmente

fragmentária do pensamento dos primeiros românticos. Segundo Friedrich

Schlegel, “um fragmento tem que ser como uma pequena obra de arte, totalmente

separado do mundo circundante e perfeito e acabado em si mesmo como um

porco-espinho”13. Esta separação do mundo circundante e este acabamento em si

mesmo fazem com que o fragmento seja comparável à obra de arte. Ele possui

autonomia. Esta, porém, é estranhamente comparada ao porco-espinho. É que,

como este animal, o fragmento defende-se das pretensões de predadores que,

vindos de fora, desejam abocanhá-lo. São os espinhos do fragmento que não

deixam que ele, como obra de arte, seja explicado por categorias externas. Ele

defende-se, assim, da aplicação de conceitos definitivos sobre si. Sempre que

atacassem os fragmentos, seus predadores acabariam cheios de espinhos enfiados

no rosto. Simultaneamente, está aí a comunicação desta autonomia com a vida.

Predadores como os preconceitos estéticos, as categorias filosóficas prontas ou

instituições da sociedade burguesa acabam com espinhos encravados em si, ou

seja, são contaminados por algo que, antes, pertencia apenas às obras ou aos

fragmentos, cujo acabamento, então, não se basta. Fechando-se em si mesmo, o

fragmento, como o porco-espinho, projeta-se para fora. Ele é o projeto dos

românticos. Sendo assim, a arte de escrever em fragmentos pretendia, ao mesmo

tempo, proteger-se do mundo circundante e comunicar-se com ele, embora esta

comunicação, como fica claro pela metáfora, não fosse serena ou tranqüila, mas

violenta, tensa – espinhosa.

Por isso, ainda que exercitando a autonomia em seus próprios escritos

filosóficos, os primeiros românticos os publicavam em revistas. Já se mostra, aí, a

pretensão de participar ativamente da vida social da época, ou seja, de penetrar

nela com a arte. Intervir pontualmente nesse sentido é sintomático do objetivo de

poetizar a sociedade através da crítica de seu estado dado. Esta crítica começava

já no próprio modo de produção dessas publicações, que punha em jogo

exercícios nada habituais para a organização burguesa cristalizada, como a

formação de grupo com vínculos afetivos fora do padrão. Resultado: o coração do

primeiro grupo romântico alemão foi a revista Athenäum.

13 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 82 (Athenäum,Fr. 206).

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182

*

Sabemos que, quase sempre, as vanguardas suscitam polêmica. Esse

efeito, porém, não é circunstancial. Suas polêmicas, programadas ou não, são

conseqüências do que é a própria vanguarda. Na medida em que, de certo modo,

projeta-se à frente de seu tempo, a vanguarda tende a entrar em conflito com o seu

próprio presente, afinal, ela está no futuro. Ela é o futuro penetrando no presente.

Suas obras e seus escritos, por isso, pretendiam operar certa temporalidade

distinta da cronologia óbvia. Deviam ser pedaços do próprio futuro lançados no

presente. Daí, aliás, a tendência a publicar revistas, ou seja, de fazer circular a

presença deste futuro no próprio presente concreto em que as vanguardas estavam

situadas. Em nada disso as poucas edições da revista publicada pelos primeiros

românticos fogem à regra, aliás, nem mesmo no fato de terem sido poucas

edições, outra marca das vanguardas. Suas melhores revistas costumam perecer

rapidamente. Friedrich Schlegel, certa feita, tentou responder algumas das

polêmicas que envolveram este órgão de publicação do grupo. Seus argumentos aí

presentes são sintomáticos. Para ele, a culpa pela ausência de capacidade

compreensiva do que o grupo dizia não estava necessariamente em seus escritos,

mas possivelmente nos leitores. Eram eles que, situados apenas no presente,

talvez não tivessem como entender o futuro que tinham diante de si.

Se os pré-românticos alemães quiseram, tantas vezes, desbancar o passado

em prol dos direitos do presente, os primeiros românticos ousaram algo além. Eles

queriam alojar fragmentos do futuro no próprio presente, como gesto de

transformação na história. Podemos chamá-lo, empregando a palavra que depois

seria do gosto de Nietzsche, de intempestivo, “ou seja, contra o tempo, e com isso,

no tempo e, esperemos, em favor de um tempo vindouro”14. Trata-se da

perspectiva descontínua de história, que busca, na contramão do que defendia

Hegel, pensar o presente não só como ponto cronológico no progresso permanente

da história. É o que justifica a tensão suscitada pelas publicações dos primeiros

românticos em seu ambiente cultural. Para Peter Bürger, “nos movimentos

históricos de vanguarda, o choque do receptor se transforma no mais elevado

14 Friedrich Nietzsche, Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem dahistória para a vida (Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2003), p. 7.

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princípio da intenção artística”15. Embora seja exagerada sua observação, este

choque, derivado do estranhamento provocado pela produção de algo novo, de

fato era conseqüência típica das vanguardas. Mas apenas conseqüência, e não o

fator proposital tencionado acima dos outros. Ele era o efeito daquela situação de

dissonância no tempo, em que o ainda não conhecido do futuro penetrava no já

sabido do presente, forçando este em direção ainda não experimentada.

Ironicamente, como era seu gosto, Friedrich Schlegel explicou que a falta de

compreensão de seus escritos devia-se a que eles falavam de “tendências”,

colocando a presença do futuro no presente. Daí o “escândalo” que provocaram.

Já quanto a ser ou não da opinião de que todas essas tendências serão resolvidas ecorrigidas por mim, ou por meu irmão ou por Tieck, ou por alguém mais donosso grupo, ou apenas por filhos nossos, ou netos, ou bisnetos, netos vinte e setegerações distantes, ou apenas no Juízo Final, ou nunca: isso eu deixo à sabedoriado leitor, a quem esta questão realmente pertence.16

Repare-se no deslizamento semântico das palavras de Schlegel, que

sutilmente enfatizam que a compreensão ou não dos escritos dos primeiros

românticos alemães era questão de tempo, do tempo. No futuro, quem sabe, eles

seriam melhor entendidos. Schlegel afirma que a questão pertence aos leitores,

mas, ao mesmo tempo, sugere que estes ainda estão por vir, já que os atuais

podem não ser contemporâneos daquilo que as vanguardas dizem: uns estão no

presente, outros no futuro. Escrevendo no final do século XVIII, Schlegel afirma

que no século seguinte “o pequeno enigma de incompreensão da Athenäum será

também resolvido”, já que “então existirão leitores que saberão como ler”17. Ele

completa, ainda, que “no século XIX todos serão capazes de saborear os

fragmentos com tanta satisfação e prazer nas horas depois do jantar”18.

Fragmentos foram o gênero da vanguarda dos primeiros românticos

alemães. Muitas vezes, eles soavam como aforismos, mas sua aparência empírica

não dá conta do que eram. Tanto que, para Schlegel, “um diálogo é uma cadeia ou

coroa de fragmentos”, assim como “um epistolário é um diálogo em escala

15 Peter Bürger, Teoria da vanguarda (São Paulo, Cosac Naify, 2008), p. 51.16 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 535.17 Ibid., p. 539.18 Ibid., p. 539.

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ampliada e memórias, um sistema de fragmentos…”19. Lembremos de sua

Conversa sobre a poesia. Ela seria fragmentária. Importa que “no dialeto dos

fragmentos a palavra significa que tudo agora é apenas uma tendência”20. Esses

fragmentos apontam tendências, não estados dados. São, por isso, vanguardistas.

Seus fragmentos não são póstumos ou auxiliares às suas obras centrais. Pelo

contrário, são a forma predileta de exposição romântica porque descentralizam a

ordem dada, porque a fragmentam. Eles expõem, assim, sua própria modernidade.

Se “muitas obras dos antigos se tornaram fragmentos”, afirma Friedrich

Schlegel, “muitas obras dos modernos já o são ao surgir”21. Por conta dos

percalços e destruições da história, escritos pré-socráticos, aristotélicos e outros

transformaram-se em fragmentos e assim chegaram até nós. Seu caráter

fragmentário foi efeito de causas externas às obras. Por sua vez, as obras

modernas, diferentemente das clássicas, já nascem fragmentadas. São frutos de

percalços e destruições do pensamento, que ao refletir constantemente sobre si

não entretém contatos perfeitos com o mundo. São problemáticos desde sua

origem. Fazem parte daquele contexto moderno descrito com fortes cores por

Lukács, quando

uma totalidade simplesmente aceita não é mais dada às formas: eis porque elastêm ou de estreitar e volatilizar aquilo que configuram, a ponto de podersustentá-lo, ou são compelidas a demonstrar polemicamente a impossibilidadede realizar seu objeto necessário e a nulidade intrínseca do único objetopossível, introduzindo assim no mundo das formas a fragmentariedade daestrutura do mundo.22

Escrever em fragmentos responde à crise do pensamento como a

compreenderam os românticos, proveniente, de um lado, da descoberta da

diferença absoluta entre modernidade e antiguidade através de Winckelmann e, de

outro lado, do abalo que Kant promovera na filosofia, descartando o realismo

tradicional e fundando a filosofia crítica. Nos dois casos, a objetividade nos

critérios para o belo na arte e para a verdade na filosofia era francamente

19 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 58 (Athenäum,Fr. 77).20 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 535.21 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 51 (Athenäum,Fr. 24).22 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 36.

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questionada. Foi no descrédito desta objetividade que se fundamentou o trabalho

romântico da forma na filosofia, na linguagem dos fragmentos.

“Neste sentido, os românticos aludiram ao mesmo tempo sob o nome da

crítica ao reconhecimento da insuficiência inevitável de seus esforços, procuraram

mostrá-la necessária”23, observou Benjamin. Seus fragmentos seriam críticos e,

como vimos, apenas tendências, já que não se completavam em si mesmos. Nesse

sentido, opunham-se ao predomínio do sistema como forma completa e totalizante

de expressão filosófica.

*

Em seus fragmentos, os primeiros românticos carregavam e

transformavam certo gênero de escrita que os precedia. Eles mesmos citam

Chamfort e Le Rochefoucauld, com suas máximas. Poderíamos falar dos

moralistas franceses e ingleses, de Pascal, ou do pré-romântico alemão Hamann.

Há o precedente dos ensaios de Montaigne. Nenhum desses textos é tal e qual os

fragmentos dos primeiros românticos, mas partilham algumas de suas

características: a ausência de acabamento de que falamos, a estruturação de escrita

que não segue apenas cadeias de deduções e argumentações mas buscam pontuar

pensamentos e, ainda, a capacidade de tratar de diversos assuntos de natureza

distinta no mesmo escopo.

Daí surge a polêmica da expressão fragmentária do pensamento dentro do

contexto da filosofia moderna, que, a despeito das exceções, apegava-se à forma

sistemática, cuja consumação viria com Hegel. Sem apaziguar a diferença que

separa fragmento e sistema, o pensamento contraditório dos primeiros românticos

alemães não buscou só abandonar o segundo pelo primeiro. Para Friedrich

Schlegel, “é igualmente mortal para o espírito ter um sistema e não ter nenhum”,

de onde conclui: “ele terá portanto de se decidir a vincular as duas coisas”24. Esta

percepção quanto à filosofia aplicava-se também à poesia, que não deveria ser

“pura e simplesmente dividida” nem “permanecer una e indivisível”, mas sim

23 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 59.24 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 55 (Athenäum,Fr. 53).

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“alternar entre separação e vínculo”25. Foi o que Schlegel fez, suportando esse

paradoxo.

Tal paradoxo foi explicado por Maurice Blanchot. Segundo ele, os

românticos estavam “ao mesmo tempo afirmando o absoluto e o fragmentário, a

totalidade, mas de uma forma que, sendo todas as formas, ou seja, no limite sendo

nenhuma, não realiza o todo mas o significa ao suspendê-lo, até o quebrando”26. É

que o próprio todo absoluto, para os românticos, era quebrado. Para chegar até

ele, então, só pelo fragmento. Esta forma era, assim, o contato com o absoluto

desde que ele, toda vez que nos aproximamos, ausenta-se. Se fragmento é sempre

fragmento de alguma coisa, ou seja, de um todo, este todo, contudo, é sempre já

perdido para os primeiros românticos alemães. Seus fragmentos testemunham e

explicitam a ausência daquele todo de que eles são fragmentos.

Essa perspectiva relativizava as expectativas de perfeição das obras em

geral, já que, para os primeiros românticos, nenhuma delas poderia encerrar a

completude de si mesma quando colocadas sob o pano de fundo do absoluto. Em

suma, o acabamento das obras deixava de ser o critério fundamental de seu valor,

já que sua falta de completude seria essencial, e não circunstancial. Por isso,

Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy escreveram que “o fragmento

designa a exposição que não pretende à exaustividade, e corresponde à idéia, sem

dúvida propriamente moderna, de que o inacabado pode, ou mesmo deve, ser

publicado (ou ainda à idéia de que o publicado não é nunca acabado)”27.

Por isso, o fragmento jamais vem sozinho. Sua forma é plural. Estamos

sempre diante de fragmentos, já que aquilo que cada um deles procura não pode

ser atingido. Ele, então, aponta para outro. Entretanto, neste tampouco

encontramos o que procuramos: a solução, a resposta. Incompleto por excelência,

o fragmento nos envia para outro, em busca da completude que jamais vem.

Montando e desmontando simultaneamente o seu próprio conjunto

constantemente, os fragmentos não cessam. Eles colocam o sentido daquilo que

dizem em movimento. Sendo “animal gregário”, conforme observou Victor-Pierre

Stirnimann, o fragmento pontua, mostra, observa, repete, lança, complementa,

25 Ibid., p. 139 (Athenäum, Fr. 435).26 Maurice Blanchot, “L’Athenaeum”, in L’Entretien infini (Paris, Gallimard, 1969), p. 518.27 Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, “A exigência fragmentária”, in Terceira Margem:revista do programa de pós-graduação em ciência da literatura da UFRJ, n. 10 (Rio de Janeiro,UFRJ, 2004), p. 73.

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suplementa, contradiz, opõe, relaciona e, assim, forja sua “sintaxe sem

controle”28.

Pouco a pouco, percebemos que a exigência fragmentária romântica não

significa seu afastamento do problema do absoluto ou do todo. Pelo contrário, os

fragmentos fazem mais agudo o caráter propriamente problemático do absoluto, já

que apontam para ele como quem aponta para algo que lá não está e que, ainda

assim, precisa ser apontado. Justamente aquilo que não está é aquilo para onde se

precisa apontar. Só que, sendo isto para o que se aponta o que não está presente, o

próprio apontar transforma-se. Interromper passa a ser seu jeito de operar. Só a

forma de escrita descontínua atenderia à exigência de chegar ao todo quando este,

por si mesmo, já não é apenas o que completa, mas também o que quebra. Por

isso, como observaram Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy,

que a totalidade esteja presente como tal em cada parte, e que o todo seja não asoma mas a co-presença das partes enquanto co-presença, finalmente, do todo a simesmo (já que o todo é também separação e acabamento da parte), tal é anecessidade da essência que se desdobra a partir da individualidade dofragmento.29

Nesse contexto, entendemos que a forma fragmentária não era, para os

primeiros românticos alemães, simples oposição ao sistema, mas sim à forma

sistemática de exposição. Esta não daria conta do sistema do absoluto, que não era

apenas contínuo, mas descontínuo. Benjamin escreveu que Schlegel “não buscou

compreender sistematicamente este absoluto; antes, ao contrário, tentou

compreender de maneira absoluta o sistema”30. Essa maneira era fragmentária.

Schlegel chega a falar de um “sistema de fragmentos”31. Sua expressão aponta o

paradoxo aí presente: enquanto o sistema quer concluir e fechar, os fragmentos

multiplicam e abrem. E ele quer o sistema de fragmentos.

Esse paradoxo faz com que, da perspectiva tradicional, o projeto dos

primeiros românticos seja facilmente considerado fracassado. Eles não concluem,

28 Victor-Pierre Stirnimann, “Schlegel, carícias de um martelo”, in Friedrich Schlegel, Conversasobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 17.29 Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, “A exigência fragmentária”, in Terceira Margem:revista do programa de pós-graduação em ciência da literatura da UFRJ, n. 10 (Rio de Janeiro,UFRJ, 2004), p. 75.30 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 53.31 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 58 (Athenäum,Fr. 77).

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portanto, não têm sucesso. Buscam encontrar aquilo que, segundo eles mesmos,

jamais se encontra: o todo, o absoluto. Lançam-se, assim, na tarefa filosófica de

dizer o que não pode ser dito.

O romantismo, é verdade, acaba mal, mas porque é essencialmente o que começae o que só pode acabar mal, fim que pode ser chamado de suicídio, loucura,perda, esquecimento. E, certamente, ele fica com freqüência sem obra, masporque é a obra da ausência da obra; uma poesia afirmada na pureza do atopoético, uma afirmação sem duração, uma liberdade sem realização, umapotência que se exalta desaparecendo.32

Essas palavras de Blanchot explicam que, se os primeiros românticos

costumam acabar mal até biograficamente, é porque aquilo que são não tem no

acabamento, isto é, no fim, sua medida. Inacabamento é seu ser. Seus fragmentos,

que seriam sua obra, são a ausência de obra no sentido tradicional: encerram a

falta de encerramento, completam-se quando não concluem. Novalis, em seu

romance Heinrich von Ofterdingen, não escreve, justamente, a parte que se

chamaria “o acabamento”, ausência emblemática do primeiro romantismo alemão.

“Inacabado, o fragmento aponta para o Livro que nunca se acaba de escrever; que,

por isso, sempre se retoma e sempre se adia”33, observou Luiz Costa Lima.

*

Inacabados, os fragmentos exibem seu caráter de tendência. Sendo assim,

“o sentido para projetos que poderiam ser chamados de fragmentos do futuro”34

caracteriza a os primeiros românticos alemães. Projetos foram o traço típico das

vanguardas, apontando para o que, na configuração espiritual do tempo, já não se

satisfazia com o presente. Ir além dele seria preciso. Foi assim que o futuro

tornou-se o tempo privilegiado para os modernos, e não apenas para os primeiros

românticos alemães que temos aqui em vista.

Todo o surgimento das modernas filosofias da história carregou esta

valorização do futuro. Kant, por exemplo, expunha sua “perspectiva consoladora

para o futuro, na qual a espécie humana será representada num porvir distante em

32 Maurice Blanchot, “L’Athenaeum”, in L’Entretien infini (Paris, Gallimard, 1969), p. 517.33 Luiz Costa Lima, Limites da voz: Montaigne, Schlegel (Rio de Janeiro, Rocco, 1993), p. 202.34 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 50 (Athenäum,Fr. 22).

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que ela se elevará finalmente por seu trabalho a um estado no qual todos os

germes que a natureza nela colocou poderão desenvolver-se plenamente”35.

Seguindo algum plano secreto da natureza, a humanidade estaria destinada a

realizar sua racionalidade – no futuro. Daí o consolo para os dilemas do presente,

que seriam solucionados depois. Por trás deste argumento, estava a doutrina

teleológica aplicada à história, ou seja, de que seu movimento ganhava significado

a partir da descoberta de sua direção, de seu fim, de seu objetivo – do futuro para

o qual nos encaminharíamos. Estaria garantido para a humanidade, portanto, o

“desenvolvimento continuamente progressivo, embora lento, das suas disposições

originais”36.

Hegel eleva esta filosofia da história esboçada com Kant a seu cume. Nele,

aquele “porvir distante” pensado por Kant deixa de estar tão distante. Nele, o

desenvolvimento “progressivo, embora lento”, torna-se veloz e resoluto. Em

suma, o caminho para o futuro não é gradual e hesitante. É uma marcha firme,

cujo motor tem o nome de dialética, onde o “progresso está intimamente ligado à

destruição e à dissolução da forma precedente do real”37. Hegel, assim, acolhia as

transformações como sinal saudável do movimento dialético da história na

direção do futuro, cumprindo sua finalidade. Por conta disso, ele escreve que os

grandes homens, ou seja, os heróis, “não colheram os seus fins e a sua vocação no

curso das coisas consagradas pelo sistema pacífico e ordenado do regime”, já que

“a sua justificação não está na ordem existente, mas provém de outra fonte”38.

Estaríamos, então, próximos aqui do caráter vanguardista dos primeiros

românticos alemães? Eles, afinal, também achavam que as grandes obras colhiam

sua justificação em outra fonte que não a do presente dado e estabelecido. Se

fosse só assim, porém, como explicar as críticas de Hegel aos românticos? É que a

aparente proximidade esconde diferenças cruciais. Segundo Hegel, a fonte que

justifica as ações estranhas ao presente dado “é o espírito oculto, ainda

subterrâneo, que ainda não alcançou uma existência actual”, portanto, “os

indivíduos históricos são aqueles que quiseram e concretizaram não uma coisa

imaginária e presumida, mas uma coisa justa e necessária, e que eles

35 I. Kant, Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (São Paulo, MartinsFontes, 2004), p. 1.36 Ibid., p. 2137 G. W. F. Hegel, “Extractos”, in Jacques d’Hondt, Hegel (Lisboa, Edições 70, 1984), p. 101.38 Ibid., p. 107.

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compreenderam porque receberam interiormente a revelação do que é

necessário”39. Provavelmente, Hegel achava que os primeiros românticos alemães

estavam entre aqueles cujas obras, no caso, foram levadas a cabo como coisas

imaginadas, e não necessárias. Ele talvez estivesse certo. Pois o pressuposto da

necessidade histórica dependia da aceitação daquela teleologia que determinaria, a

priori, o sentido da história como um todo. E os primeiros românticos alemães não

partilharam desta convicção teórica.

Se suas obras, portanto, tornavam-se compreensíveis a partir de outra

fonte distinta dos códigos já estabelecidos do presente, assim como as grandes

ações segundo Hegel, esta outra fonte não era a mesma nos dois casos. No caso de

Hegel, era a presumida condução do mundo ao conhecimento de si mesmo, de

acordo com a compreensão da totalidade de seu movimento histórico teleológico.

No caso dos primeiros românticos alemães, o que está em jogo não é a

consciência do processo histórico, e sim o que Maurice Blanchot chamou de

“consciência do instante”40. Por aí, compreendemos a exposição fragmentária, e

não só fragmentada, de seu pensamento, ao contrário da completude sistemática

de Hegel. É que a consciência por eles exposta não busca totalizar o movimento

do processo histórico, mas pode, por outro lado, pontuar o futuro no presente sem

orientação teleológica ou finalista. Sistematizar esta consciência só seria possível,

paradoxalmente, de modo fragmentado. Foi o que fizeram os primeiros

românticos.

Portanto, se Friedrich Schlegel afirma que “a poesia romântica é uma

poesia universal progressiva”41, o sentido da palavra “progresso” aí não é aquele

presente em Hegel ou até em Kant. Tal progresso não possui pré-determinação.

Tal progresso não é teleológico, ou seja, não tem direção dada previamente. É o

que esclarece o resto daquele mesmo fragmento de Schlegel, quando ele diz que

“o gênero poético romântico está em devir; sua verdadeira essência é mesmo a de

que só pode vir a ser, jamais ser de maneira perfeita e acabada”42. Permanece,

39 Ibid., p. 107.40 Maurice Blanchot, “L’Athenaeum”, in L’Entretien infini (Paris, Gallimard, 1969), p. 517.41 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum,Fr. 116).42 Ibid., p. 65 (Athenäum, Fr. 116).

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assim, o romantismo sem acabamento, em devir, ou seja, aberto, o que o

diferencia da perspectiva hegeliana. “Ele é infinito”43, diz Schlegel.

Esta infinitude que jamais se realiza, no sentido de que não se fecha, era

considerada por Hegel má. Ele gostava de atacá-la já em Kant ou Fichte. E não

menos em Schlegel. Ernst Behler frisou que “o tipo de conhecimento hegeliano

reclama uma compreensão total da interpretação do finito e do infinito”, enquanto

“Schlegel insiste que esta relação nunca pode ser reduzida a uma estrutura ou uma

compreensão dialética pelo entendimento finito, mas constitui um processo

infinito que só alcança alguns aspectos”44. Em suma, a apresentação do absoluto

infinito na finitude humana é sempre fragmentada, problemática e inacabada para

os primeiros românticos alemães.

Inacabamento este que, como vimos, separa também os primeiros

românticos alemães de Hegel do ponto de vista da forma de expressão. Hegel

acreditava que “a verdadeira figura, em que a verdade existe, só pode ser o seu

sistema científico”45, já que somente ele proporcionaria o fechamento ou o fim no

qual o saber encontra a si mesmo. Já os primeiros românticos procuravam, antes,

certa forma de exposição que não finalizasse aquilo que, por si mesmo, não tem

fim: o absoluto, a verdade. Esta era a forma aberta dos fragmentos. “Neste

sentido, todo fragmento é projeto: o fragmento-projeto não vale como programa

ou prospecto, mas como projeção imediata daquilo que, no entanto, ele

inacaba”46, conforme observaram Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy.

Nos fragmentos, a relação entre a parte e o todo não se resolve dialeticamente,

mas permanece tensionada sem ser solucionada, alternando ironicamente de um a

outro.

*

Benjamin, em sua tese sobre o drama barroco, já destacara o lugar do

fragmento, antes do surgimento do romantismo. Para ele, “o que jaz em ruínas, o

43 Ibid., p. 65 (Athenäum, Fr. 116).44 Ernst Behler, Irony and the Discourse of Modernity (Seattle, University of Washington Press,1990), p. 89.45 G. W. F. Hegel, Fenomenologia do espírito – parte I (Petrópolis, Vozes, 2000), p. 23.46 Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, “A exigência fragmentária”, in Terceira Margem:revista do programa de pós-graduação em ciência da literatura da UFRJ, n. 10 (Rio de Janeiro,UFRJ, 2004), p. 73.

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fragmento altamente significativo, a ruína: é esta a mais nobre matéria da criação

barroca”47. Já ali, portanto, o “poeta não pode disfarçar a sua arte combinatória,

porque o que ele pretende mostrar não é tanto o todo como a sua construção posta

à vista”, onde se destaca a “ostentação dos processos construtivos”, como na obra

de Calderón, que “se mostra como a parede de alvenaria num edifício a que caíu o

reboco”48. Esse jeito de apresentação da arte, ocorrido durante o barroco alemão

como efeito de seu momento histórico singular, foi procurado programaticamente

pelos primeiros românticos alemães, que admitiam a situação histórica moderna e

buscavam fundar seu relacionamento com ela. Nesse sentido, “antes de ser

dissolvido na absolutez do sistema, os fragmentos insistem em expor a totalidade

dentro de sua fratura material”49, como observou Michel Chaouli.

Tentando fazer suas obras e, ao mesmo tempo, apontar como elas eram

feitas, os primeiros românticos davam prosseguimento àquela exposição da arte

combinatória em que figura a construção da obra, que tinha lugar já no barroco.

Estaria aí a origem do que chamamos de vanguarda? Em certo sentido, talvez sim.

Pois o que está em jogo é “a especialização da vanguarda nela mesma, o fato de

que seus melhores artistas são artistas de artistas, seus melhores poetas, poetas de

poetas”50, como pontuou Clement Greenberg. Enfim, está aí a origem da

reflexividade moderna. Ela, conforme observou o mesmo autor, “afastou uma

grande quantidade daqueles que anteriormente eram capazes de desfrutar e

apreciar a arte e a literatura ambiciosas, mas que agora não desejam ou são

incapazes de adquirir uma iniciação aos segredos de seu ofício”51.

Essa dificuldade com as obras de vanguarda, portanto, estava em que elas

pediam ao seu espectador que participasse de seu “ofício”, que trabalhasse junto.

Fazendo “poesia da poesia”, como dizia Friedrich Schlegel, o artista moderno

colocava em pauta, para que se aproveitasse sua obra, a reflexão, ou seja, a flexão

sobre si, sobre seu modo de ser e de se fazer. Era o que os primeiros românticos

alemães buscavam ao escrever em fragmentos, não por acaso comparados a

pequenas obras de arte. Eles convocavam seu leitor a refletir.

47 Walter Benjamin, Origem do drama trágico alemão (Lisboa, Assírio & Alvim, 2004), p. 193.48 Ibid., p. 194.49 Michel Chaouli, The laboratory of poetry (Baltimore, The Johns Hopkins University Press,2002), p. 69.50 Clement Greenberg, “Vanguarda e kitsch”, in Arte e cultura (São Paulo, Ática, 2001), p. 27.51 Ibid., p. 27.

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Inacabado, o fragmento não o é apenas porque jamais completa o todo,

porque aponta sempre para outro fragmento. Essa operação significava, além

disso, admitir que seu sentido jamais está completamente dado, pronto e acabado,

quer dizer, fechado. Por conseqüência, a escrita aí em jogo transforma-se

decisivamente. Não se escreve para o público existente. Fazê-lo seria conformar-

se a códigos conhecidos, mas, como observou Reinhardt Koselleck, na

modernidade alemã “a arte entra em cena como antípoda da ordem

estabelecida”52. Escrevem os primeiros românticos para leitores que não existem e

que, quem sabe, podem vir a existir quando se deixarem afetar e construir por

aqueles textos participando da elaboração de seu sentido, atendendo às suas

exigências que se tornam, assim, vanguardistas. Ler seria, em certo sentido,

escrever junto o texto que se lê.

Nesse contexto, compreendemos a distinção que Friedrich Schlegel faz

entre o “escritor analítico” e o “escritor sintético”. Enquanto o primeiro “observa

o leitor tal como é; de acordo com isso, faz seus cálculos e aciona suas máquinas

para nele produzir o efeito adequado”, o segundo “constrói e cria para si um leitor

tal como deve ser”, portanto, “faz com que lhe surja, passo a passo, diante dos

olhos aquilo que inventou, ou o induz a que o invente por si mesmo”53. É claro

que os primeiros românticos pretendiam ser sintéticos. Não queriam escrever para

leitores prontos, mas fazer com que seus escritos construíssem outro jeito de ler.

Daí a dificuldade com sua compreensão. Escrevendo em fragmentos, eles exigiam

que os lêssemos de modo distinto do habitual. Não se contentavam, nesse sentido,

com os leitores presentes. Pretendiam criar seus próprios leitores futuros.

Podemos, nesse sentido, compreender porque Schlegel escreveu que “mais

difícil que falar bem é dar aos outros o ensejo de falar bem”54. Este ensejo era

parte do projeto dos primeiros românticos alemães, já que ele visava construir

seus leitores. Logo, sua forma de escrever precisava acalentar esta criação de

sentido por parte daquele que acolhe a obra. Subtraindo desta obra a totalidade,

exige-se que o leitor participe ativamente da construção de seu sentido. Philippe

Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy afirmaram que “a fragmentação não é

portanto uma disseminação, mas a dispersão que convém à semeadura e às futuras

52 Reinhardt Koselleck, Crítica e crise (Rio de Janeiro, Contraponto/Eduerj, 1999), p. 89.53 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 38 (Lyceum, Fr.112).54 Ibid., p. 52 (Athenäum, Fr. 33).

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colheitas”, concluindo que “o gênero do fragmento é o gênero da geração”55. Eles

tinham em mente o título da coleção de fragmentos de Novalis, Pólen. Para ele, “o

chão está pobre”, portanto, “precisamos espalhar ricas sementes”56. Fragmentos

seriam sementes que os primeiros românticos plantavam em seu solo histórico, na

esperança de que algumas delas se criassem e se desenvolvessem no encontro

com sua leitura.

Esta criação, ao contrário da caracterização ordinária do objetivo das

vanguardas, não era determinada, não visava sobrepujar outras ou esquecer as do

passado. É verdade que as vanguardas, em seu movimento, pretendiam apontar o

caminho adiante que, aliás, deveria ser seguido pelos que ficaram na retaguarda.

Elas gostariam de dizer para onde devíamos ir. Só que, no pensamento dos

primeiros românticos, o lugar assim apontado não é qualquer lugar definido. Para

Friedrich Schlegel, “o gênero poético romântico é o único que é mais que gênero

e é, por assim dizer, a própria poesia: pois, num certo sentido, toda poesia é ou

deve ser romântica”57. Por trás da aparência pretensiosa, este fragmento nos diz

que a escrita romântica não deve ser entendida por oposição à clássica ou a

qualquer outra. Ela deseja angariar as outras, misturá-las, exercitar suas

possibilidades, fazer delas estímulo, ao que se prestaria exemplarmente a forma

literária do romance, aliás.

Por isso, apenas “num certo sentido” toda poesia é ou deve ser romântica.

É que, para sê-lo, as outras poesias não precisariam deixar de ser o que eram.

Nesse sentido, o que os primeiros românticos gostariam de conquistar sob o nome

de romantismo era a possibilidade de emprego dos mais variados estilos e modos

de criação, sem pré-determinações. Segundo Friedrich Schlegel, “um homem

verdadeiramente livre e culto teria de poder se afinar a seu bel-prazer ao tom

filosófico ou filológico, crítico ou poético, histórico ou retórico, antigo ou

moderno, de modo inteiramente arbitrário, como se afina um instrumento, em

qualquer tempo e em qualquer escala”58.

55 Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, “A exigência fragmentária”, in Terceira Margem:revista do programa de pós-graduação em ciência da literatura da UFRJ, n. 10 (Rio de Janeiro,UFRJ, 2004), p. 81.56 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 36 (Fr. 1).57 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum,Fr. 116).58 Ibid., p. 29 (Lyceum, Fr. 55).

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Isso significa que os primeiros românticos não quiseram deixar para trás o

passado para se afirmarem. Sinal claro disso é o jeito pelo qual, olhando para a

história, eles buscam desvelar fundamentos românticos em autores que os

precederam, como Dante59 ou Shakespeare. Eles fariam parte, pura e

simplesmente, da poesia criadora60. Diríamos, por fim, que o movimento de

vanguarda do primeiro romantismo alemão apontava para um lugar ou um tempo

aberto, não fechado, em que a própria poesia descobriria que, ao invés de optar

por este ou aquele caminho, possuía todos os caminhos à sua disposição, para que

fossem livremente experimentados. Foi o que escreveu poeticamente Friedrich

Schlegel.

Todos os seres que amam a poesia são por ela unidos e aparentados em laçosindissolúveis. Pois mesmo que possam em sua vida buscar as coisas maisdiferentes, um desdenhando completamente o que outro considera sagrado,desconhecendo-se, incompreendidos e para sempre estranhos, permanecemunidos e em acordo nesta esfera, graças a um encantamento de ordem superior.Toda musa procura e encontra a outra; todas as correntes da poesia deságuamjuntas no grande oceano universal.61

59 Conferir Erich Auerbach, “A descoberta de Dante no Romantismo”, in Ensaios de literaturaocidental (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2007), p. 289-302.60 Nesse sentido, Antonio Cícero* observou que “o verdadeiro sentido da vanguarda não foi arenúncia, mas a desprovincianização e a cosmopolitização da poesia”, completando que, “aomostrar novas possibilidades, o que a vanguarda fez foi relativizar as possibilidades antigas; masrelativizar uma coisa não é destruí-la”.* Antonio Cícero, “Poesia e paisagens urbanas”, in Finalidades sem fim (São Paulo, Companhiadas Letras, 2005), p. 23.61 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 29.

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Ironia, pátria da arte e da filosofia:

a representação alegórica

Ironia é assunto difícil. Não só porque a expressão traz consigo longa

história de determinações, desde Sócrates até Kierkegaard e depois. É difícil

porque, se pensarmos bem, você, que agora põe os olhos sobre essas palavras, não

deveria saber se o que elas dizem é sério. Basta suspeitar que são irônicas. Eis o

poder da ironia. Ela desestabiliza o sentido do discurso. Está presente quando,

sem querer enganar e sem estarmos errando, empregamos palavras cujo sentido é

oposto ao da verdade que pretendemos dizer. Esse é o emprego da ironia como

figura de linguagem, que aparece na retórica latina de Cícero ou Quintiliano.

Supomos assim que o caráter irônico define-se pela intenção do autor, que

depende do que ele quis ou não dizer. Mas, e se isso for pouco? Não pretendo,

aqui, ser irônico. Mas será que basta esta confissão para que o sentido do que vem

aqui escrito seja estável? Maurice Merleau-Ponty, o filósofo francês

contemporâneo, disse que “o sentido é sempre irônico”1, já que não é fixado, mas

se move. Essa hipótese, talvez assustadora, foi a que defenderam, várias décadas

antes, os primeiros românticos alemães.

No começo, eles destacaram a ironia própria da arte moderna, responsável

pela autoconsciência das novas obras, exibida quando elas falavam de si. Foi o

que ocorreu, decisivamente, no Dom Quixote de Cervantes, no qual “predominam

a espirituosidade fantástica e uma pródiga abundância de audaciosa invenção”2,

afirma Friedrich Schlegel. São diversas as passagens nas quais o romance, ao

fazer referência a si mesmo enquanto texto, expõe seu caráter ficcional, ao invés

de escondê-lo3. Dorotea, por exemplo, chega a comentar a certa altura com outro

personagem: “falta pouco ao nosso hospedeiro para fazer a segunda parte de Dom

1 Maurice Merleau-Ponty, A prosa do mundo (São Paulo, Cosac & Naify, 2002), p. 522 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 42.3 Conferir Bernardo Barros Coelho de Oliveira, “A necessária ironia da ficção: algumasconsiderações sobre o dom Quixote”, in Aisthe: revista de estética, n.1 (Rio de Janeiro, UFRJ-PPGF, 1997), p. 19-33.

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Quixote”4. Reflexões assim trazem uma descontinuidade reflexiva para a

continuidade narrativa, pela qual o enredo é quebrado ao acolher em si palavras

que expõem seu caráter de obra. Ironicamente, Cervantes, que aparentemente nos

oferecia a ficção como se fosse realidade, expõe a realidade daquela ficção.

Era ainda esta operação que, para os primeiros românticos, estava em

Laurence Sterne. Tanto que, comenta Friedrich Schlegel, o “deleite com Sterne

era puro e de uma natureza completamente diversa da sede de curiosidade, que

muitas vezes um livro inteiramente ruim pode saciar”5. Seu Tristram Shandy

fundaria a vertente na qual estaria situado também Jacques, o fatalista, de

Diderot. Ironia, nessas obras, não seria brincadeira circunstancial, mas capacidade

de fundar sua autoconsciência. É o que vemos, ainda, em um escritor influenciado

por Sterne como Machado de Assis6. Seu narrador, por exemplo, conversa com os

leitores, comentando o que se passa no enredo. Retira-nos do pretenso realismo do

jogo ficcional. Este artifício faz com que a obra, de dentro de si, mostre que se

sabe como obra, ganhando autoconsciência. Ironizando a estória que conta, a obra

desloca seu sentido, que passa a se situar na sua forma de apresentação enquanto

arte. Fiel à sua condição moderna, a força deste tipo de obra vem da reflexividade,

que provoca o leitor pelo pensamento, ao colocar em questão o estatuto daquilo

que está diante dele.

Em suma, a ironia é o gesto pelo qual as obras de arte desestabilizam seu

sentido. Marca da modernidade, essa ironia, contudo, já se manifestava, sem a

mesma abrangência, na antiguidade, como nos comentários do coro e do corifeu

para o público nas comédias gregas, chamado de parábase. Pensávamos que o

sentido estava no que era contado, mas de súbito somos deslocados para o lugar

onde aquilo que é contado está: a própria obra. Só que a obra singular faz parte da

arte em geral. Somos, assim, deslocados pela segunda vez. Primeiro, fomos do

conteúdo da obra para sua forma. E, agora, vamos de sua forma específica a seu

pertencimento à forma da arte em geral. Ironizando esta sua forma determinada, a

obra expõe que, se não está na vida empírica naturalista, pertence porém à vida

das formas em geral, na qual todas as obras comunicam-se umas com as outras, 4 Miguel de Cervantes, Dom Quijote de la Mancha (São Paulo, Real Academia Española, 2004), p.324.5 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 62.6 Mesmo porque, é possível vincular a natureza da ironia machadiana àquela dos primeirosromânticos, como apontou Patrick Pessoa, A segunda vida de Brás Cubas (Rio de Janeiro, Rocco,2008), p. 157-250.

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como astros de um universo fantástico. Eis a ambiguidade de sentido trazida por

esta ironia que não é mais somente uma figura de linguagem ou um tropo do

mundo clássico, empregada estrategicamente aqui ou ali. Sua parábase, diria

Friedrich Schlegel, é permanente.

Nas obras em que sentimos “o divino sopro da ironia”, afirma Schlegel,

“vive uma bufonaria realmente transcendental”7. Bufão, sabemos, era o bobo da

corte, aquele que se apresentava nos palácios e, enquanto aparentemente elogiava

seu rei, na verdade destilava, pela ambiguidade de suas palavras, críticas a seu

governo. Ironia era a marca forte do bufão. Schlegel, porém, acrescenta que esta

bufonaria, nas obras de arte, é transcendental. Kant dizia que a abordagem

transcendental não se preocupa com as coisas, mas com as condições de

possibilidade para que nós as experimentemos. Não se preocupa com o

condicionado, mas com as condições em que ele se dá. Entendemos, assim, que

Schlegel complete aquele fragmento dizendo que a ironia é, “no interior, a

disposição que tudo supervisiona e se eleva infinitamente acima de todo

condicionado, inclusive a própria arte, virtude ou genialidade; no exterior, na

execução, a maneira mímica de um bom bufão italiano comum”8. Extravasada

como simples gracejo de um bufão, a ironia, porém, diz respeito à relação da

forma condicionada da obra específica com a condição geral à qual ela pertence,

ou seja, ao seu sentido como parte da arte em geral, do absoluto da arte.

Ironização da forma foi como Benjamin chamou essa operação sublinhada

pelos primeiros românticos alemães e presente, é claro, também na literatura de

Goethe. Nela, surge a “ligação com o incondicionado, trata-se não de

subjetivismo e jogo, mas, antes, da assimilação da obra limitada ao absoluto, de

sua completa objetivação que paga com sua eliminação9. Eliminando a exposição

singular em que se dava, a obra, ao mesmo tempo, adentra o absoluto da arte,

onde pode se comunicar com todas as outras obras – na vida das formas. Ela abre

mão de sua forma específica, abandona sua totalidade própria e fechada em si,

para agregar-se à abertura infinita da forma da arte em geral. Torna-se, por isso,

mais forte, e não menos. Se a forma determinada da obra singular “torna-se a

7 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 26 (Lyceum, Fr.42).8 Ibid., 26 (Lyceum, Fr. 42).9 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 92.

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vítima da destruição irônica”, como disse Benjamin, “sobre ela, no entanto, a

ironia rasga um céu da forma eterna”, portanto, “atesta a sobrevida da obra que

extrai desta esfera sua existência indestrutível”10. Sua sobrevida deve-se a seu

pertencimento à arte.

Essa densa argumentação de Benjamin visava a salvar a ironia, como foi

tematizada pelos primeiros românticos alemães, das ferrenhas críticas de Hegel.

Seus ataques eram ao caráter subjetivo da ironia, enquanto Benjamin sublinha que

ela está na objetividade da obra, e não nas decisões de seu autor. Nesse sentido, a

ironia da obra não faz dela produto particular do artista envolvido só consigo

mesmo. Segundo Lukács, “o auto-reconhecimento, ou seja, a auto-superação da

subjetividade, foi chamado de ironia pelos primeiros teóricos do romance, os

estetas do primeiro romantismo”11.

*

Hegel atacou, com violência, a teoria romântica da ironia. Kierkegaard,

escrevendo pouco após Hegel e o seguindo, achou que devia pontuar esta

violência, pois ela podia até atrapalhar o ataque que, para ele, era justo. “Sempre

que se lhe oferece a oportunidade Hegel fala desses irônicos, sempre tratados da

maneira mais altiva, sim, Hegel olha para eles de cima para baixo, com enorme

desdém”, afirma Kierkegaard, completando que aí “nem sempre ele utilizou os

meios mais suaves”12. Este testemunho é de alto valor porque Kierkegaard

concordava com Hegel, abominando a ironia romântica. Mesmo assim, ele atesta

que, com Hegel, “não ganhamos uma verdadeira análise, mas em compensação

Schlegel sempre ganha uma boa sova”13. Não entraremos, aqui, na teoria de

Kierkegaard, mas queremos compreender a sova de Hegel sobre Schlegel, para

saber de onde ela vem.

Se a grande violência dos ataques de Hegel explica-se por sua conhecida

antipatia com o grupo de Iena, liderado por Friedrich Schlegel, já os ataques

propriamente ditos são perfeitamente coerentes com aquilo que sua filosofia

10 Ibid., p. 93.11 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 74.12 S. A. Kierkegaard, O conceito de ironia (Bragança Paulista, Editora Universitária SãoFrancisco, 2006), p. 230.13 Ibid., p. 230.

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pretendia. Eles diziam respeito à superação da centralidade do “eu” presente no

sistema do saber de Fichte, já que a ironia romântica seria, em certo sentido, sua

versão aplicada à estética. Segundo Hegel,

o irônico, como individualidade genial, consiste na autoaniquilação doesplêndido, grandioso e primoroso e, assim, as configurações artísticas objetivastambém somente necessitam expor o princípio da subjetividade absoluta por si,na medida em que mostram como nulo e em sua autodestruição o que para oshomens têm valor e dignidade.14

Para Hegel, a ironia era o poder do intelecto que, ao voltar-se apenas para

si, fazia do mundo exterior simples brincadeira, perdendo toda a seriedade e

legitimidade. Nesse sentido, a ironia, ao contrário da dialética que ele prezava,

não conciliava os opostos, no caso, a subjetividade e a objetividade. Presa na

autoria do sujeito que faria do objeto o que quisesse, a ironia não daria o passo até

a junção daquela oposição, como faria a dialética ao concretizar a síntese final do

conhecimento. “Este é o significado universal da genial ironia divina, como

concentração do eu em si mesmo, para quem todos os elos foram quebrados e que

somente pode viver na beatitude do gozo próprio”15, afirma Hegel.

Nada parece mais distante do sentido que os primeiros românticos deram à

ironia, sobretudo o “senhor Friedrich Schlegel”, ao qual Hegel, debochadamente,

refere-se. Para ele, a ironia não quebrava os “elos”. Ela era um elo, embora não ao

modo que Hegel gostaria. É que a ironia não trata, como afirma Hegel, só de

“concentração”, mas, junto, de desconcentração a partir de ambigüidades. Essas

ambigüidades tornam a ironia o elo entre o que é e o que não é, entre a presença e

a ausência de sentido. Seu humor, por isso, “tem a ver com ser e não-ser, e sua

essência própria é a reflexão”16, afirma Schlegel. Ironia é o que junta e separa os

opostos ao mesmo tempo, forçando-os a entrarem em contato. Entram em

contato, por exemplo, o conteúdo de algum enredo com a forma na qual ele é

contado, já que a obra, ao refletir ironicamente sobre si mesma, expõe a conexão

de ambos. Por sua vez, toda obra relativamente condicionada em sua forma

particular expõe seu pertencimento ao incondicionado absoluto que é a arte em

geral enquanto idéia.

14 G. W. F. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 84.15 Ibid., p. 83.16 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 102 (Athenäum,Fr. 305).

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Idéia é o absoluto no qual estão os particulares, como as obras que

participam da arte. Para Friedrich Schlegel, “uma idéia é um conceito perfeito e

acabado até a ironia, uma síntese absoluta de antíteses absolutas, alternância de

dois pensamentos conflitantes que engendra continuamente a si mesma”17. Idéia

não é a solução do problema do sentido, mas o acolhimento do conflito que a ele

pertence. Sua perfeição e seu acabamento o são ao ponto da ironia, ou seja, do que

não permite ao sentido ser de fato perfeito e acabado. Pode-se ver porque Hegel

discordava dos primeiros românticos. Ironia era o que fazia com que a síntese

absoluta, por ele buscada, fosse quebrada paradoxalmente pelas antíteses, elas

mesmas, absolutas. Em sua alternância, as antíteses não se acalmariam.

Engendrariam constantemente sua própria alternância, que assim jamais

encontraria solução final.

Era a permanência do conflito que Hegel não endossava. Ele criticou, por

vezes, a falta de “seriedade” que a ironia romântica imputaria ao seu objeto, já que

ele seria um mero produto do “eu”18. Pecou, contudo, por não ver que, segundo

Friedrich Schlegel, na ironia “tudo deve ser gracejo e tudo deve ser sério” 19. Mais

uma vez, era a ausência de solução para um lado, o do gracejo, ou para outro, o da

seriedade, que estava em jogo na ironia. É provável que, para Hegel, esta

manutenção ambígua fosse pior do que a simples falta de seriedade, o que talvez

justifique a força de seus ataques. É que a presença do problema das antíteses e da

síntese, assim como dos opostos e de como situá-los, colocava a ironia dos

primeiros românticos alemães em perigosa proximidade de sua dialética, cuja

pretensão, entretanto, era completamente outra. Isso explica a violência dos

ataques de Hegel: quanto mais próximo o oponente, mais intenso é o embate para

dele se distinguir.

Essa proximidade, aliás, pode facilmente enganar, pois toma várias

formas. Entre elas, está aquela que, embora admitindo a diferença, só a toma

como parcial, buscando compreender a ironia como “ainda não” da dialética, ou

seja, como forma que a anteciparia, mas sem a mesma eficiência. Peter Szondi,

em famoso ensaio sobre Friedrich Schlegel e a ironia romântica, escreveu que, do

ponto de vista da “história intelectual, poder-se-ia dizer que Schlegel preparou o

17 Ibid., p. 66 (Athenäum, Fr. 121).18 G. W. F. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 82.19 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 37 (Lyceum, Fr.108).

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caminho para a dialética hegeliana”20. Note-se, porém, que a abordagem de Peter

Szondi soa, desde já, hegeliana, pois pensar que autores que vieram antes

preparam o caminho progressivo para os que vêm depois constituía o pressuposto

de todo o pensamento histórico de Hegel. Julga-se o que veio antes a partir do que

veio depois, portanto, o critério erguido por este último é que prevalece.

Para Peter Szondi, poderíamos enxergar a filosofia da história

esquematizada por Friedrich Schlegel em três tempos: o passado clássico da

antiguidade, o presente moderno angustiado pelo abismo que o separa da época

anterior e o futuro escatológico no qual se aloja a crença no Reino de Deus por

vir. Estaríamos situados entre o “não mais” e o “ainda não”, entre a tese do

passado e a síntese do futuro. Ironia, nesse raciocínio, seria a forma achada por

Schlegel para suportar a situação conflituosa do presente, apontando, contudo,

para sua solução no futuro. Ironia seria o emblema da transição que a época

moderna era, sendo depois superada por Hegel, em favor da dialética. Se a

modernidade romântica “não pode superar a negatividade da sua situação através

de uma ação que levasse à reconciliação do contingente e do necessário”, poderia

ao menos, para Peter Szondi, “ao antecipar a unidade futura na qual acredita,

declarar esta negatividade temporária”21.

Paul de Man contestou, com pertinência, a tese de Szondi. Para ele, a

ironia dos primeiros românticos alemães não antecipa o esquema dialético de

Hegel sobre a história, porque ela persiste na ausência de possibilidade da síntese

final. Portanto, “o ato da ironia (…) revela a existência de uma temporalidade (…)

que se relaciona com sua fonte só em termos de distância e diferença, não permite

nem fim e nem totalidade”22. Ironia, para ele, não é apenas a estratégia romântica

para suportar a situação momentânea que depois se resolveria. Ela veio para ficar:

“ao contrário da asserção de Szondi, a ironia não é temporária, mas repetitiva” 23.

Não se acenaria, portanto, com a extinção futura da ironia.

Essa compreensão é coerente com o deslocamento sutil, porém decisivo,

que os primeiros românticos alemães fizeram da filosofia de Fichte. Eles tomaram

20 Peter Szondi, “Friedrich Schlegel and Romantic Irony, with Some Remarks on Tieck’sComedies”, in On textual understanding and other essays (Minneapolis, University of MinnesotaPress, 1986), p. 57.21 Ibid., p. 68.22 Paul de Man, “The Rhetoric of Temporality”, in Blindness and Insight (Minneapolis, Universityof Minnesota Press, 1992), p. 222.23 Ibid., p. 220.

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o processo de reflexão descrito por Fichte e deram a ele, no entanto, o caráter

infinito antes ausente, proibindo que aí fosse montada alguma história teleológica,

isto é, com fim. Segundo esta infinitude, o devir não devém qualquer futuro que

pudesse, então, dar cabo da situação presente, já que isto significaria colocar fim

naquilo que é infinito. Esta irônica permanência do tempo, que não aponta para

uma época em que ele pudesse ser abolido, é o sentido da definição da poesia

romântica como “universal progressiva”24.

Friedrich Schlegel escreveu que “ironia é consciência clara de eterna

agilidade, do caos infinitamente pleno”25. Ironia é a consciência de que ela mesma

não é temporária. É a consciência de que sua própria agilidade é eterna, de que o

caos é fonte da qual vem a possibilidade de criação e, neste sentido, ele é

infinitamente pleno, jamais podendo ser completamente ordenado. Não há

esclarecimento final para o problema do sentido, que jamais será totalmente

compreendido. Essa ironia não aponta a resolução do caos, da divisão, da

fragmentação, do presente. Essa “negatividade irônica é vista por Hegel como um

bloqueio”, conforme observou Vladimir Safatle, pois sua dialética não pode

“acomodar-se com o jogo infinito de paradoxos e de passagens”26 que aí está em

jogo.

Ironia é a “alternância constante de autocriação e auto-aniquilamento”27,

afirma Schlegel. Tanto autocriação quanto auto-aniquilamento estão presentes na

dialética de Hegel. São o sim e o não. Eis aqui, porém, a grande diferença.

Enquanto na dialética a alternância entre criação e destruição estava destinada a

encontrar seu acabamento na síntese entre tese e antítese, na ironia esta

alternância é constante, ou seja, ela não dá lugar senão a seu próprio

desdobramento, que jamais encontra conciliação final. Ficamos oscilando, aqui,

entre o sim e o não, a tese e a antítese, o finito e o infinito, a ordem e o caos, a

ficção e a realidade, o enredo e a obra, a obra e a arte, a vida e a morte.

*

24 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum,Fr. 116).25 Ibid., p. 153 (Idéias, Fr. 69).26 Vladimir Safatle, “Dialética, ironia, cinismo”, in Cinismo e falência da crítica (São Paulo,Boitempo, 2008), p. 41.27 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 54 (Athenäum,Fr. 51).

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Ironia era a forma subjacente aos escritos dos primeiros românticos

alemães. Não surpreende, portanto, que eles tenham causado tanta polêmica na

época de sua publicação. Seu sentido permanecia perigosamente próximo da

ausência de entendimento, já que a ironia corrói a clareza. Por isso, na última

edição da Athenäum, Friedrich Schlegel publica seu opúsculo sobre o problema da

compreensão e daquilo que não é compreensível, sob a desculpa de defender seus

escritos dos ataques que vinham sofrendo. Esperaríamos que, no opúsculo,

Schlegel, então, esclarecesse o que queria dizer. Só que nada assim ocorre. “Eu já

fui forçado a admitir indiretamente que a Athenäum é incompreensível, e como

isso aconteceu no calor da ironia, mal posso desfazê-lo sem que no processo faça

violência a esta ironia”28. Schlegel não fará violência à sua ironia porque ela não é

sua. Ela é do texto. É a ironia da própria linguagem, e não algum adorno

circunstancial. Ironia é a admissão, por parte da linguagem, de que o sentido não

pode ser completamente compreensível. Redobrando o problema, ao invés de

solucioná-lo, Schlegel adota, no seu opúsculo, o espírito irônico que fizera seus

outros escritos causarem escândalo. Ironia de novo.

Explica-se, assim, que Schlegel proponha aí o sistema total da ironia.

Teríamos a ironia crassa, encontrada na natureza das coisas e que se sente em casa

na história da humanidade; a ironia fina ou delicada, assim como a extrafina,

comum entre os poetas, também chegados à ironia direta; a ironia dramática,

“quando um autor que escreve três atos, surpreendentemente, torna-se outro

homem e agora precisa escrever os dois últimos atos”29; e a dupla ironia, quando

duas linhas irônicas correm paralelamente. Schlegel elenca todos esses tipos de

ironia em ritmo vertiginoso, mal conseguimos acompanhá-lo.

Quais deuses nos salvarão de todas essas ironias? A única solução é achar umaironia que seria capaz de engolir todas essas grandes e pequenas ironias e nãodeixar traço algum delas. Devo confessar que, precisamente nesse momento,sinto que minha ironia tem urgência de fazer justamente isso.30

Será que encontraremos, finalmente, o esclarecimento da ironia? Não. Em

todo seu texto, Schlegel explicita que não temos como parar o efeito corrosivo da 28 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 538.29 Ibid., p. 537.30 Ibid., p. 538.

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ironia. É como se quiséssemos achar o conceito da ironia, porém, o próprio

conceito é irônico, negando sua pretensão original. Desejamos a síntese final do

sentido que nos colocaria acima da ironia. Só que, sempre que lá chegamos, nos

vemos ainda dentro da ironia. Portanto, o próprio sistema de ironia proposto por

Schlegel é irônico. Sua consumação é o que ele chama de “ironia da ironia”, cujos

exemplos complicam mais do que explicam. Ela ocorre

se alguém fala da ironia sem a empregar, como acabei de fazer; se alguém falaironicamente da ironia sem no processo estar consciente de que caiu em umaironia muito mais intensa; se alguém não consegue mais se destacar da ironia,como parece estar acontecendo neste ensaio sobre a incompreensibilidade; se aironia transforma-se em maneirismo e torna-se, de novo, irônica com o autor…31

Essa suposta classificação não faz sentido. Seus exemplos se contradizem.

Sua reflexividade, que faz com que o texto onde é exposta apareça como exemplo

seu, situa-nos em posição contrária àquela em que precisamos estar para

classificar alguma coisa: dentro. Este traço do escrito de Schlegel foi chamado de

“performático”32, já que ele não declara apenas a ironia, mas é irônico consigo

mesmo, colocando em prática o que diz. Ele só nos deixa com a “ironia tornada

selvagem e que não pode mais ser controlada”33.

Para empregar a terminologia do estudioso da ironia Wayne Booth34, os

escritos dos primeiros românticos não se enquadrariam na “ironia estável”, em

que a dissonância entre sentido literal e real pode ser descoberta e, assim, desfeita.

Instrumentalmente empregada, essa ironia forneceria não só a possibilidade, mas

as dicas para quem está diante dela poder detectá-la e entender o que se queria

dizer. Pelo contrário, o romantismo seria marcado pela “ironia instável”, que

desestabiliza o sentido definitivamente porque não pode ser desfeita. Ela nos

envolve por completo, sem deixar que saiamos para onde contemplaríamos o

sentido sério e verdadeiro. Mais agudo ainda, Paul de Man critica os esquemas

que pretendem parar a ironia pela sua compreensão, como se pudessem, assim, se

desvencilhar de sua cadeia infinita. Para ele, “a ironia é sempre do entendimento”,

ou seja, “o que está em jogo na ironia é sempre a questão de se é possível

31 Ibid., p. 537-538.32 Wilma Maas, “Ironia e performance no Primeiro Romantismo Alemão”, in Revista Artefilosofia,n. 4 (Ouro Preto, IFAC, 2008), p. 171.33 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 538.34 Wayne Booth, A rhetoric of Irony (Chicago, The University of Chicago Press, 1974).

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entender ou não”35. Seguindo Friedrich Schlegel, Paul de Man afirma que, se a

ironia está enlaçada com a impossibilidade do entendimento, a empreitada de

entendê-la é falida desde o começo. Por isso, Schlegel comenta suas ironias justo

no opúsculo em que trata da falta de completude da compreensão. Mas essa tese

“não significa que devamos parar de lutar com isso, pois é tudo que podemos

fazer, mas isto será sempre interrompido, sempre rompido, sempre desfeito pela

dimensão irônica que irá necessariamente conter”36, afirmou Paul de Man.

*

Somos acostumados, em arte e filosofia, à continuidade. Na arte,

pretendemos que o enredo seja contado com verossimilhança, fazendo-nos

esquecer que aquilo é ficção e o apresentando como verdade empírica. Na

filosofia, esperamos cadeias de deduções, argumentações e demonstrações que

formem totalidade e solidez teórica. No pensamento dos primeiros românticos

alemães são frustradas tais expectativas. Ironia é como chamam essa frustração.

Interrompendo o fechamento da continuidade, esses autores explicitavam a

modernidade como época para a qual o sentido pleno estava sempre perdido.

“Todos os abismos e fissuras inerentes à situação histórica têm de ser

incorporados à configuração e não podem nem devem ser encobertos por meios

composicionais”37, observou Lukács sobre o romance. Este princípio governa as

criações românticas, na arte e na filosofia.

Ironia, para Friedrich Schlegel, é a alma dessas criações, pois “contém e

excita um sentimento do conflito insolúvel entre incondicionado e condicionado,

da impossibilidade e necessidade de uma comunicação total”38. Impossível, a

comunicação total, contudo, é necessária. São as obras condicionadas por toda a

situação histórica em que se encontram que buscam, ainda assim, o sentido sem

condições: a verdade. Insolúvel é este conflito, ao contrário de seu acolhimento na

dialética de Hegel, por exemplo. Escrever em fragmentos, como fazem os

primeiros românticos alemães, é admitir a ausência de continuidade no 35 Paul de Man, “The concept of irony”, in Aesthetic Ideology (Minneapolis, University ofMinnesota Press, 1996), p. 174.36 Ibid., p. 179.37 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 60.38 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 37 (Lyceum, Fr.108).

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pensamento filosófico, sem sistematização completa e fechada da sua

compreensão. Interromper tornou-se, assim, o gesto de escrita preferido desses

autores. Reconheceram que o sentido sempre escapa, mas não vai embora

definitivamente. Jamais o possuímos, mas também jamais estamos completamente

desprovidos dele. Resta-nos procurá-lo.

Novalis escreveu que “procuramos por toda parte o incondicionado, e

encontramos sempre apenas coisas”39. Ironia foi como seu amigo Friedrich

Schlegel acolheu esta situação. Filosoficamente, diríamos: procuramos por toda

parte o ser, e encontramos sempre apenas os entes. Linguisticamente: procuramos

por toda parte o significado, e encontramos sempre apenas os significantes. É que,

“subjetivamente considerada, a filosofia sempre começa no meio”40, escreve

Schlegel. Não começamos nem do final e nem da origem. Já estamos sempre no

meio e, com isso, jamais totalizamos o sentido da situação na qual nos

encontramos. Daí Schlegel afirmar que “a filosofia é a verdadeira pátria da

ironia”41. Incondicionado é o que ela procura, ou seja, o sentido da verdade e a

verdade do sentido. Nesta procura sem fim, a filosofia conta, porém, somente com

as palavras, sempre condicionadas. “Ironia é a forma do paradoxo” 42, afirma

Schlegel.

Ironia é a reflexão da obra, com o que ela pode estar acima de si mesma.

“Essa ironia é autocorreção da fragmentariedade: as relações inadequadas podem

transformar-se numa ciranda fantástica e bem-ordenada de mal-entendidos e

desencontros mútuos, na qual tudo é visto sob vários prismas: como isolado e

vinculado, como suporte de valor e como nulidade”43, observou Lukács. Essa

autocorreção, contudo, jamais é completa, já que os fragmentos, como os escritos

pelos românticos, continuam fragmentos. Só que eles sugerem o todo, ainda que

este se subtraia sempre que queremos pegá-lo. Ironicamente, a exposição

fragmentária vale-se de sua ambiguidade: é parte e é todo, isola e vincula.

Benjamin observou que “a infinitude da reflexão é, para Schlegel e

Novalis, antes de tudo não uma infinitude da continuidade, mas uma infinitude da

39 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo Iluminuras, 2001), p. 36 (Fr. 1).40 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 60 (Athenäum,Fr. 84).41 Ibid., p. 26 (Lyceum, Fr. 42).42 Ibid., p. 28 (Lyceum, Fr. 48).43 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 76.

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conexão”44. É esta, e não aquela, a dos fragmentos. Podem comunicar-se entre si,

mas não forçam continuidade. Esse procedimento seria tanto o da filosofia quanto

o da arte: “onde quer que se filosofe em conversas faladas ou escritas, e apenas

não de todo sistematicamente, se deve obter e exigir ironia”, afirma Friedrich

Schlegel, completando que, “nesse aspecto, somente a poesia pode também se

elevar à altura da filosofia”45. Ironia, pátria da arte e da filosofia.

Encontramos esta operação no polêmico romance de Friedrich Schlegel,

Lucinda. Seu erotismo provocou escândalo na sua época, até porque o enredo

emprega a ironia para satirizar costumes burgueses, em especial o casamento

tradicional. Kierkegaard admitiu a dignidade do problema que a estória

enfrentava, pois havia, na época, “uma rigidez moral, uma camisa de força, dentro

da qual nenhum homem razoável consegue mover-se”.

Se olharmos mais de perto aquilo que Schlegel combate com sua ironia,certamente ninguém há de negar que havia e que há muita coisa (…) da vidaconjugal que merece uma tal correção e que leva o sujeito naturalmente a selibertar de tais coisas. Existe aí uma seriedade bitolada demais, uma ênfase naconveniência ou utilidade, uma miserável teleologia idolatrada por tantoshomens…46

Nem assim, porém, Kierkegaard valorizou Lucinda. Para ele, “não é uma

saída o que Fr. Schlegel encontrou, mas sim um desvio em que ele se

desencaminhou”, pois “o que Lucinde pretende é superar toda eticidade, não só no

sentido de usos e costumes, mas sim, toda aquela eticidade que é a validade do

espírito, a dominação do espírito sobre a carne”47. Tal tratamento obsceno do

amor trazia ambiguidade, saindo do âmbito apenas espiritual para o carnal. Mas,

Kierkegaard sabia que o problema era que esta ambiguidade refletia outra, mais

grave: a do sentido. Esta era presente na composição da obra: “a confusão e a

desordem que Lucinde quer introduzir no mundo estabelecido, o romance tenta

ilustrar plasticamente com a mais completa confusão na estrutura”48. Kierkegaard

condenava o romance de Schlegel moralmente, mas também poeticamente. Não

44 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 36.45 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 26 (Lyceum, Fr.42).46 S. A. Kierkegaard, O conceito de ironia (Bragança Paulista, Editora Universitária SãoFrancisco, 2006), p. 248.47 Ibid., p. 248, 251.48 Ibid., p. 252.

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só ele. Dilthey o considerava “um pequeno monstro do ponto de vista estético”49.

Rudolph Haym o ataca moral e esteticamente50. Hegel assevera que “não deve

acontecer de algum modo o desleixo com a santidade e com a excelência suprema,

como na época da Lucinde de Friedrich von Schlegel”51. No conteúdo e na forma,

a obra ofendia. Ela confundia.

“Para mim e para este escrito, para o meu amor por ele e para a sua forma

em si, não há propósito mais propositado do que anular desde começo o que

chamamos ordem, de afastá-la para muito longe de nós, de reclamar claramente o

direito à confusão encantadora”52, enuncia Lucinda. Podemos então atacar a

confusão da escrita de Schlegel, mas não por desleixo, pois este era seu propósito.

Não “ser demasiado rigoroso quanto à verossimilhança e à significação geral de

uma simples alegoria”, aconselha o “narrador inábil”53. Ele sabe que a

significação é fragmentada. Suas treze partes não são ordenadas linearmente54.

Lucinda contraria a expectativa dos romances de formação da época, sem

apresentar o progresso conclusivo do caráter de Julio, seu personagem. “Schlegel

não escreveu uma narrativa com começo, meio e fim”, como percebeu Karin

Volobuef, mas sim uma “que mescla livremente a descrição e o diálogo; que troca

repetidas vezes de narrador e de foco narrativo; enfim, que louva a transgressão

dos tabus”55.

Ironia é o que estava em jogo. Não só aquela pontual, que satiriza

costumes sociais burgueses. Schlegel não funda o romance “em passagens

irônicas, como a retórica”56, para empregar seus termos. Irônica é sua forma

descontínua, sem fixar o sentido: “as alegorias de Lucinde resistem à interpretação

não porque são proibitivamente esotéricas, mas por seu sabor ligeiramente

49 Wilhelm Dilthey, Leben Schleiermachers (Berlin, G. Reimer, 1870), p. 492.50 Rudolph Haym, Die romantische Schule (Berlin, Weidmannsche Buchhandllung, 1906), p. 501.51 G. W. F. Hegel, Cursos de estética II (São Paulo, Edusp, 2000), p. 240.52 Friedrich Schlegel, Lucinda (Portugal, Guimarães & C. Editores, 1979), p.15.53 Ibid., p. 31.54 “Schlegel não trabalha com uma unidade de efeito, a obra não apresenta um conflito, portantonão há desenlace”, observou Angelita Maria Bogado*.* Angelita Maria Bogado, O romance-projeto: um estudo de Lucinde (1799), de FriedrichSchlegel – Dissertação de Mestrado (São Paulo; Araraquara, Unesp, 2007), p. 17.55 Karin Volobuef, Frestas e arestas: a prosa de ficção do Romantismo na Alemanha e no Brasil(São Paulo, Edunesp, 1999), p. 47.56 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 27 (Lyceum, Fr.42).

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absurdo e irônico”57, observa Marc Redfield. Não só a diferença entre gêneros

sexuais (masculino e feminino) e entre amor e sexo resiste a interpretações

definitivas, como sugere Lucinda. Ironicamente, o romance está na mesma

situação, com seus sonhos, cartas, diários e outras formas que se entrecruzam na

confusão narrativa de Schlegel. Erotiza-se o enredo. Erotiza-se a linguagem. Tudo

aqui é ambíguo. É alegoria.

*

Na alegoria, os primeiros românticos alemães encontraram o procedimento

estético a ser empregado nas suas criações artísticas e filosóficas: “quero que pelo

menos entendas nestas divinas alegorias tudo quanto não posso diretamente

exprimir”58, pede Lucinda. Esta passagem aponta a alegoria como expressão que

não pode dizer diretamente. Mediar é o que ela faz, como signo que traz consigo a

fratura do sentido que não se dá por completo. Não é acaso, portanto, que a

alegoria surja junto com a ironia no primeiro romantismo. Há, como diz Paul de

Man, “uma estrutura partilhada por ironia e alegoria na medida em que, em ambos

os casos, a relação entre o signo e o sentido é descontínua”, ou seja, “em ambos os

casos, o signo aponta para algo que difere de seu sentido literal e tem por sua

função a tematização desta diferença”59. Em alegorias, o signo aponta não só a

descontinuidade com seu sentido. Ele tematiza a descontinuidade, dá a ver esta

diferença. “Enquanto o símbolo postula a possibilidade de uma identidade ou

identificação, a alegoria designa primordialmente uma distância em relação à sua

própria origem”60, explica Paul de Man. Ele sugere, ainda, que a falta de final

feliz das estórias românticas de amor está nesse teor alegórico: os amantes

“jamais podem entrar em contato completo” e, “quando podem se ver um ao

outro, estão separados por uma distância inalcançável”61.

Portanto, a alegoria estaria em oposição ao símbolo, que pertence ao

classicismo estético. Representar perfeitamente o significado no significante, com

57 Marc Redfield, “Lucinde’s Obscenity”, in The politics of aesthetics: Nationalism, Gender,Romanticism (Stanford University Press, California, 2003), p. 126.58 Friedrich Schlegel, Lucinda (Portugal, Guimarães & C. Editores, 1979), p. 132.59 Paul de Man, “The Rhetoric of Temporality”, in Blindness and Insight (Minneapolis, Universityof Minnesota Press, 1992), p. 209.60 Ibid., p. 207.61 Ibid., p. 228.

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totalidade orgânica, é o fito do símbolo. Por sua vez, a alegoria quebra esta

harmonia. Expõe “a representação e seus descontentamentos”62, como disse

Azade Seyhan. Ela seria, então, a forma poética da modernidade como época que

perdera a harmonia clássica antiga: “as alegorias são no reino dos pensamentos o

que são as ruínas no meio das coisas”63, disse Walter Benjamin. Escrever

alegoricamente era trazer para dentro da forma de composição das obras aquelas

ruínas que constituíam a paisagem moderna, como foram tematicamente

representadas tantas vezes pelo maior pintor romântico alemão, Caspar David

Friedrich. Não espanta que os primeiros românticos escrevessem em fragmentos.

“É sob a forma de fragmentos que as coisas olham o mundo, através de sua

estrutura alegórica”64, afirma Benjamin.

Este exercício da alegoria teria começado sobretudo com o drama barroco

alemão, de acordo com Benjamin. Sua força, contudo, “foi encoberta pelo

veredicto do preconceito classicista”, que consistia “em denunciar a alegoria,

vendo nela um modo de ilustração, e não uma forma de expressão”, como talvez

tenha feito Goethe, sem perceber que a alegoria é “expressão, como a linguagem,

e como a escrita”65. Se o romantismo tardio costumou prolongar o preconceito

classicista, os primeiros românticos alemães, porém, foram herdeiros da intuição

do drama barroco. “Por isso, é digno de nota que Novalis, que tinha muito mais

consciência do que o separava dos ideais clássicos que os românticos posteriores,

revele uma profunda compreensão da essência da alegoria”66.

Neste contexto, a beleza clássica, que supunha a representação simbólica,

tornava-se problemática. Benjamin explica que, com a alegoria, a “beleza

simbólica evapora-se” e “o falso brilho da totalidade extingue-se”, trazendo “uma

profunda intuição do caráter problemático da arte”67. Efeito disso foi a valorização

da categoria do sublime, que estaria vinculada à alegoria, por oposição à beleza

simbólica: “a alegoria é essencialmente fragmentária, distante de qualquer

perspectiva harmônica, totalizante do símbolo, ou de uma estética do belo”68,

62 Azade Seyhan, Representation and its discontents (Los Angeles, University of California Press,1992).63 Walter Benjamin, A origem do drama barroco alemão (São Paulo, Brasiliense, 1988), p. 200.64 Ibid., p. 208.65 Ibid., p. 184.66 Ibid., p. 209.67 Walter Benjamin, Origem do drama trágico alemão (Lisboa, Assírio & Alvim, 2004), p. 191.68 Katia Muricy, “O sublime e a alegoria”, in Revista O que nos faz pensar, n. 21 (Rio de Janeiro,PUC-Rio, 2007), p. 48.

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como apontou Katia Muricy. Era o conflito sublime que ganhava lugar na

modernidade, embora seu germe já estivesse no antigo escrito de Longino.

Quando, pois, uma passagem, escutada muitas vezes por um homem sensato eversado em literatura, não dispõe a sua alma a sentimentos elevados, nem deixano seu pensamento matéria para reflexões além do que dizem as palavras, e, bemexaminada sem interrupção, perde em apreço, já não haverá um verdadeirosublime, pois dura apenas o tempo em que é ouvida. Verdadeiramente grande é otexto com muita matéria para reflexão, de árdua ou, antes, impossível resistênciae forte lembrança, difícil de apagar.69

Muitos traços do sublime moderno são antecipados nas teses atribuídas a

Longino, cuja autoria, porém, era controversa. Sua pretensão, seja como for,

focava-se na oratória. Ele queria fornecer boa orientação retórica. Seu escrito, por

isso, foi apropriado depois por Boileau e o neoclassicismo francês, em busca de

regras para a formulação de discursos e obras. “Todavia, a economia do texto é

afectada por uma incerteza, como se o seu tema, o sublime, o indeterminado,

desestabilizasse o seu projeto didáctico”, observou Jean-François Lyotard,

concluindo: “a noção de sublime desregra esta harmonia” 70, a saber, a harmonia

pretendida pelo classicismo. Foi o que apontou, com precisão, Ernst Cassirer.

Os mais profundos movimentos da alma, as experiências artísticas mais intensasnão são despertadas em nós pela contemplação da “beleza” como proporçãoserena e construção rigorosa. Uma excitação mais viva manifesta-se quandoestamos em presença não da exata delimitação da forma mas, pelo contrário, desua discordância, inclusive de sua dissolução completa. (…) Esse fenômeno, quedestrói o quadro conceptual da estética de então, recebeu de Burke a designaçãode sublime.71

É em Burke, mas sobretudo em Kant, que achamos a teoria moderna do

sublime. Este afirma que, ao contrário do que sentimos diante da beleza, “o

sentimento do sublime, na verdade pode, quanto à forma, aparecer como contrário

a fins para nossa faculdade de juízo, inconveniente à nossa faculdade de

apresentação e, por assim dizer, violento para a faculdade da imaginação”72. Kant

expunha o caráter conflituoso do sublime, no qual aquilo que se pretende

representado jamais cabe na própria representação, tornada, assim, falha. No

69 Longino, “Do sublime”, in Aristóteles, Horácio, Longino, A poética clássica (São Paulo,Cultrix, 2005), p. 76 (VII.3).70 Jean-François Lyotard, “O sublime e a vanguarda”, in O inumano: considerações sobre o tempo(Lisboa, Editorial Estampa, 1990), p. 99-101.71 Ernst Cassirer, A filosofia do iluminismo (Campinas, Editora da Unicamp, 1997), p. 430.72 I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 91 (76).

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sublime, que por isso pode ser visto como alegórico, não há conveniência entre a

representação e o representado, o que ocorria no símbolo. Essa bela aparência é

quebrada porque o sublime excede o que a aparência pode ser, violentando a

imaginação.

Para Kant, o “sublime não pode estar contido em nenhuma forma sensível,

mas concerne somente a idéias da razão, que, embora não possibilitem nenhuma

representação adequada a elas, são ativadas e evocadas ao ânimo precisamente por

essa inadequação, que se deixa apresentar sensivelmente”73. Idéias da razão são

idéias como a de infinito ou de absoluto, quer dizer, tudo aquilo que justamente

não cabe em qualquer representação sensível determinada, já que esta é sempre

finita. Tais idéias só são ativadas indiretamente, pelo que aqui estamos chamando

de alegoria. Representa-se a própria inadequação da representação, que portanto

exibe o fracasso de si mesma como seu modo de ser.

Fracassando na representação daquilo que desejava representar, porém, o

sublime desperta, através deste fracasso, o pensamento. Sem conseguir abarcar na

forma sensível aparente o que é representado, somos forçados para outro lugar

que não é o dos sentidos: o pensamento. “Sublime é o que somente pelo fato de

poder também pensá-lo prova uma faculdade de ânimo que ultrapassa todo padrão

de medida dos sentidos”74. Deve ser assim porque o sublime “é absolutamente

grande”, ou seja, grande fora de toda comparação e medida. Não há representação

para ele. Mas é possível representar esta impossibilidade, o que traz, então, não só

o prazer estético do belo. Traz dor. É a dor de não conseguir formar imagens

sensíveis. É o prazer de ativar, por outro lado, a faculdade do pensar. Isto ocorre

pela própria inadequação de nossa faculdade de imaginação na tentativa de avaliar

a grandeza de um objeto, de onde decorre aquele “desprazer que ativa em nós o

sentimento de nossa destinação supra-sensível”75, ou seja, pensante – que pode aí

ser prazerosa.

Neste ponto, surge o que “Kant chama apresentação negativa, ou mesmo,

uma não-apresentação”76, aponta Jean-François Lyotard. Seria preciso, então,

“fazer alusão a algo que não pode ser mostrado”, gesto adotado em geral pelas

73 Ibid., p. 91 (77).74 Ibid., p. 96 (85).75 Ibid., p. 104 (98).76 Jean-François Lyotard, “O sublime e a vanguarda”, in O inumano: considerações sobre o tempo(Lisboa, Editorial Estampa, 1990), p. 103.

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vanguardas: “o sublime será talvez o modo da sensibilidade artística que

caracteriza o modernismo”77, sugere Lyotard. Já que o sublime soa alegórico, e

não simbólico como o belo, as vanguardas, cujo espírito foi antecipado pelos

primeiros românticos alemães, deveriam ser alegóricas. É a teoria, por exemplo,

de Peter Bürger sobre os movimentos artísticos do começo do século XX. “Na

obra de arte orgânica (simbólica), a unidade do geral e do particular é estabelecida

sem mediação; na obra não-orgânica (alegórica), ao contrário – é o caso das obras

de vanguarda –, trata-se de uma unidade mediada”, afirma ele, pois, “aqui, o

momento da unidade é, por assim dizer, afastado para infinitamente longe”78.

Retornemos aos primeiros românticos alemães. “Belo é aquilo que é ao

mesmo tempo atraente e sublime”79, escreve Friedrich Schlegel, confirmando o

predomínio deste sobre aquele. “Toda beleza é alegoria”80, acrescenta. Em outras

palavras, toda beleza é, no fundo, sublime, já que a alegoria quebra a harmonia do

símbolo como sustentação da beleza clássica tradicional. “Do mais elevado, por

ser inexprimível, só se pode falar de maneira alegórica”81, confirma ainda

Schlegel. Noutras palavras: do absoluto, do infinito e do ilimitado só podemos

falar indiretamente, já que as obras são relativas, finitas e limitadas – mas podem

despertar o sublime, apresentando a impossibilidade de apresentar. Tanto que

“uma obra está formada quando está”, afirma Schlegel, “sublime acima de si

mesma”82. Deste conflito sem solução vem a tristeza do sublime, semelhante à

melancolia que às vezes paira sobre a alegoria: ambos são a apresentação do que

não se apresenta jamais. Fazem presente a ausência ao mesmo tempo em que

ausentam a presença.

Era já esta a operação alegórica que os primeiros românticos pretendiam

com a ironia, por isso qualificada de “sublime”83. Se, “na sua configuração

simbólica, o belo formaria com o divino um todo contínuo”84, como observou

Benjamin, a ironia, por sua vez, “é capaz de vislumbrar a plenitude divina do

77 Ibid., p. 95-99.78 Peter Bürger, Teoria da vanguarda (São Paulo, Cosac Naify, 2008), p. 118.79 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 63 (Athenäum,Fr. 108).80 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 58.81 Ibid., p. 58.82 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 100 (Athenäum,Fr. 297).83 Ibid., p. 26 (Lyceum, Fr. 42).84 Walter Benjamin, Origem do drama trágico alemão (Lisboa, Assírio & Alvim, 2004), p. 174.

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mundo abandonado por deus”85, como apontou Lukács. Ironia aproxima-se,

portanto, do sublime e da alegoria. Deus apresenta-se, aqui, apenas como aquele

que se ausenta, assim como a plenitude de sentido do ser.

*

Lemos, nos escritos de Walter Benjamin, que “o fragmento e a ironia

constituem metamorfoses do alegórico”86. Todos os três, fragmento, ironia e

alegoria, apresentam o sentido como problema, a partir da perspectiva

descontínua que lhes é própria. Em todos os três, falta a totalidade orgânica. Foi

Octavio Paz quem explicou que a centralidade da ironia para os românticos estava

em que ela “revela a dualidade daquilo que parecia uno, a cisão do idêntico”87. No

caso da apresentação do pensamento na linguagem, sublinha-se que o signo e o

significado não coincidem, como gostaria a estética clássica da beleza simbólica.

Este gesto detonava o processo moderno que “tem dissolvido criticamente a idéia

da obra redonda e compacta”88, para empregar o vocabulário adorniano mais

contemporâneo. Marca-se, assim, a perda moderna da possibilidade de plena

significação.

Encontramos o anúncio desta perda na filosofia da arte de Schelling, de

1802. Sua explicação é simples: “na alegoria, o particular somente significa o

universal, na mitologia ele próprio é ao mesmo tempo universal”89. Em outras

palavras, o signo (particular), para os antigos gregos, era já o sentido (universal),

em plena harmonia conjunta. Esta era sua mitologia. Não havia o abismo que a

época moderna conheceu sob o nome de alegoria, quebrando a continuidade entre

o signo e o sentido. “Não há ironia nos deuses gregos”90, como observou Rubens

Rodrigues Torres Filho em ensaio sobre o simbólico em Schelling. Embora o

contexto exposto pelo filósofo alemão evidencie sua participação no primeiro

grupo romântico que acabara poucos anos antes, seu elogio do símbolo contra a

alegoria o afasta daquele pensamento, como ocorreu com outros integrantes

85 Georg Lukács, A teoria do romance (São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34, 2000), p. 95.86 Ibid., p. 210.87 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 68.88 Theodor Adorno, Filosofia da nova música (São Paulo, Perspectiva, 1989), p. 33.89 F. Schelling, Filosofia da arte (São Paulo, Edusp, 2001), p. 71 (409).90 Rubens Rodrigues Torres Filho, “O simbólico em Schelling”, in Ensaios de filosofia ilustrada(São Paulo, Iluminuras, 2004), p. 117.

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depois.

Enquanto o grupo estava junto, porém, a concepção alegórica prevalecia.

Lemos, na Conversa sobre poesia, que “a linguagem, entendida originariamente

como idêntica à alegoria, é a primeira ferramenta espontânea da magia”91. Magia

esta que ocorre sempre que aquilo que é finito pode, ainda que precariamente,

significar o absoluto, que é sem fim. Ironia é outro nome para esta operação

mágica que faz a linguagem. Importa, como afirma Beda Allemann, o que “na

obra de arte parece saltar ironicamente”, pois, junto àquilo que é dito e formulado,

há “o que é inexprimível e permanece obscuro sob o fundo, mas que constitui o

terreno onde se afundam as raízes da linguagem”92. Essa tensão entre o que é

expresso e a profundidade sem fundo de onde provém é o que faz a poesia da

linguagem, seja em verso ou prosa. Linguagem esta cujos signos finitos podem

combinar-se em processos sem fim, para falar do sem fim que é a própria questão

do sentido.

Ironia, compreendida com esta envergadura, foi “a grande invenção

romântica”, como “amor pela contradição que cada um de nós é e consciência

dessa contradição”, observou Octavio Paz, o que, para ele, “define

admiravelmente o paradoxo do romantismo alemão”93. Irônica é a situação

paradoxal da existência do homem, caminhando pela vida sem fim do ser, mas à

beira do abismo que é a sua morte. “Para Schlegel, a situação básica

metafisicamente irônica do homem é que ele é um ser finito que luta para

compreender uma realidade infinita, portanto incompreensível”94, escreveu D. C.

Muecke.

Ironia, portanto, define a tensa combinação do desejo (hegeliano) de

conciliação entre a finitude humana e a infinitude da realidade com a crítica

(kantiana) em relação à possibilidade de tal conciliação. Kierkeggard comentara

que “a discrepância, que a ironia estabelece com a realidade, já está

suficientemente indicada quando se diz que a orientação irônica é essencialmente

crítica”, completando ainda que “tanto o seu filósofo (Schlegel) como o seu poeta

91 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 78.92 Beda Allemann, Ironia e Poesia (Milano, Mursia, 1971), p. 185.93 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 63.94 D. C. Muecke, Ironia e o irônico (São Paulo, Perspectiva, 1995), p. 39.

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(Tieck) são críticos”95. Ironia, assim compreendida, é pátria da filosofia: ama o

saber, mas sabe que o saber não é completamente sabido. Pode-se, então,

“somente vir a ser, não ser filósofo”, já que “tão logo se acredita sê-lo, se deixa de

o vir a ser”96, escreve Friedrich Schlegel.

Novalis dizia, precisamente nesse sentido, que “quem procura,

duvidará”97. Ignorância e conhecimento estão, aqui, próximos: “quanto mais já se

sabe, tanto mais ainda se tem de aprender”, pois “não saber, ou antes, saber que

não se sabe, aumenta no mesmo grau que o saber”98, afirmava socraticamente

Friedrich Schlegel. É que o saber é como o círculo fora do qual está o

desconhecido: quanto mais conhecemos, mais este círculo cresce e, junto com ele,

cresce a superfície de contato que temos com o que está fora dele, que não é senão

aquilo que ignoramos. Por isso, quanto mais conhecemos, mais conhecemos

também o quanto desconhecemos.

Essa constatação não deve causar surpresa, pois Sócrates, na origem da

filosofia, já era considerado irônico. Platão fala da “amostra da conhecida ironia

de Sócrates”, quando certo personagem em um de seus diálogos o ataca

afirmando: “eu sabia, e disso mesmo tinha avisado os presentes, que ele não

haveria de dialogar, pois preferes recorrer à ironia e a toda sorte de estratagemas,

a responder ao que eu te perguntasse”99. Irônico era afirmar: só sei que nada sei.

Recusando soluções prontas às perguntas feitas, Sócrates era condenado; afinal,

como percebeu contemporaneamente Richard Rorty, “o oposto da ironia é o senso

comum”100. Sócrates opunha-se ao senso comum. Ironia era seu problema, pois

esta não o deixava satisfazer a ansiedade geral pelo conhecimento. Por isso,

Friedrich Schlegel gosta de citar a “ironia socrática”101, às vezes chamada de

“musa socrática”102. Longe de ser apenas dissimulação, a ironia de Sócrates era já

crítica, apontando para a ausência de fim do processo compreensivo que ama o

95 S. A. Kierkegaard, O conceito de ironia (Bragança Paulista, Editora Universitária SãoFrancisco, 2006), p. 238.96 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 55 (Athenäum,Fr. 54).97 Novalis, “Observações entremescladas”, in Pólen (São Paulo Iluminuras, 2001), p. 49 (Fr. 22).98 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 95 (Athenäum,Fr. 267).99 Platão, A república (Belém, EDUFPA, 2000), p. 64 (337a).100 Richard Rorty, Contingência, ironia e solidariedade (São Paulo, Martins Fontes, 2007), p. 134.101 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 37 (Lyceum, Fr.108).102 Ibid., p. 26 (Lyceum, Fr. 42).

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saber, a filosofia.

Reconhecer este caráter sem fim da filosofia colocava os primeiros

românticos na extrema oposição ao pensamento de Hegel, que gostaria justamente

de consumar a história em seu sistema do saber. Ironia, nesse sentido, não era o

“quase” ou o “ainda não” da dialética, como dissemos anteriormente. “Schlegel

não empregou a metáfora do ‘ainda não’ para designar um estágio transitório a ser

superado por uma forma completa de conhecimento e escrita literária, mas via aí a

forma humana apropriada de compreensão e comunicação”103, como atentou Ernst

Behler. Essa situação não deixava de ser, em algum sentido, trágica: a condição

de possibilidade de sua procura era trazer, junto consigo e simultaneamente, a

corrosão daquilo que era procurado. Se esta época da cultura alemã esteve muito

interessada em geral no sentido da tragédia104, a ironia, para os primeiros

românticos alemães, era, por sua vez, a tragédia do sentido.

103 Ernst Behler, German Romantic Literary Theory (Cambridge, Cambridge University Press,1993), p. 152.104 Interesse este que não era apenas curiosidade pelo mundo grego e sua arte, mas preocupaçãocom a possível constituição ontológica trágica da própria modernidade, como mostrou o trabalhode fôlego de Roberto Machado*.* Roberto Machado, O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche (Rio de Janeiro, JorgeZahar, 2006).

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12

Ler o universo, viver o poema:

a linguagem como diluição do autor

“Palavras geralmente compreendem a si mesmas melhor do que aqueles

que as usam”1. Esta frase de Friedrich Schlegel soa estranhamente familiar,

deslocando a faculdade do entendimento, pela qual em geral definimos a

humanidade do homem, para as palavras. Elas compreenderiam a si mesmas

melhor do que nós, que as empregamos. Muitas vezes, o controle subjetivo que

nossa vontade pretende possuir sobre as palavras seria menos poderoso do que

achamos. Nem sempre conseguimos sujeitar as palavras a nossos desígnios.

Estamos freqüentemente sujeitos a elas, que frustram, assim, nossas tentativas de

pleno esclarecimento do significado que encerrariam. Entretanto, trazem à tona

então, e só então, outra dimensão da linguagem para o homem.

Linguagem, portanto, não poderia ser algo que os primeiros românticos

alemães apenas usariam instrumentalmente para comunicar o que queriam.

Submeter as palavras aos planos e cálculos de significados como se elas fossem

significantes à disposição seria, ainda, entrar em contato com elas dentro do

paradigma pragmático que confia no poder do sujeito consciente sobre elas.

Tratava-se, então, de buscar alguma aproximação acolhedora da arte combinatória

de sentido que as próprias palavras trariam consigo. Sendo assim, o primeiro

grupo romântico alemão, no final do século XVIII, colocará em atividade certo

processo de produção de escrita completamente diferente do que até então era

conhecido e do que, até hoje, estamos acostumados. Eles o chamaram de

sinfilosofia e simpoesia.

Esta proposta consistia na possibilidade de filosofar ou poetar

conjuntamente. Nas palavras “sinfilosofia” e “simpoesia”, o prefixo “sim” aponta

para o mesmo significado presente em “simpatia”, ou seja, afinidade que junta,

1 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, Carl HanserVerlag, 1970), p. 531.

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patos comum. Tal proposta justifica que grande parte das publicações do grupo

romântico de Iena tenha sido veiculada sem assinatura dos seus integrantes.

Escritos produzidos dentro de uma troca tão intensa de pensamentos não poderiam

ter sua autoria atribuída a algum sujeito determinado. Eles eram o coroamento

final da dança de palavras que havia se dado nos encontros do grupo. Não seria

possível decidir quem sugeriu cada passo. Mas a dança estava lá. É o que, aliás,

encontramos até hoje em tais escritos: a dança anônima do sentido.

Posteriormente, vários estudos foram feitos para atribuir autoria àquilo

que, em sua origem e sentido, não tinha autor. Hoje, os primeiros escritos

românticos são classificados cuidadosamente, para podermos distinguir quais

pertencem a quem. Dissolvemos, assim, a proposta do grupo e, pior, corremos o

risco de esquecer que ela estava fundada em sua filosofia da linguagem. Mesmo

quando assinavam textos, os membros do grupo, ao menos enquanto este

perdurou, pretendiam estar dentro do âmbito desta filosofia, para a qual a autoria

era conceito altamente problemático. Eles pensavam que “uma época inteiramente

nova das ciências e artes começaria talvez quando sinfilosofia e simpoesia

tivessem se tornado tão universais e tão interiores, que já não seria nada raro se

algumas naturezas que se complementam reciprocamente constituíssem obras em

conjunto”, já que “muitas vezes não se pode evitar o pensamento de que dois

espíritos poderiam no fundo pertencer um ao outro, como metades separadas, e só

juntos ser tudo o que pudessem ser”2.

Entendemos, assim, por que os primeiros românticos alemães precisaram

formar o grupo amoroso que testemunhou tanto a troca intelectual quanto a troca

afetiva entre seus integrantes. Só com amor, enquanto possibilidade de encontros,

poderiam acontecer a sinfilosofia e a simpoesia. Reciprocidade era a chave para

abrir essa produção conjunta, potencializando partes que, separadas, talvez fossem

privadas do que juntas são capazes. “Filosofar significa buscar onisciência em

conjunto”3, escreveu Friedrich Schlegel. Esta frase serve tanto para explicarmos

que a filosofia do primeiro romantismo alemão tenha sido feita em grupo quanto

para compreender sua escrita propositalmente fragmentária. Dentro do texto, os

fragmentos, que por isso devem sempre vir no plural, são a busca da onisciência

2 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 67 (Athenäum, Fr.125).3 Ibid., p. 113 (Athenäum, Fr. 344).

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em conjunto, o que já define admiravelmente seu paradoxo, pois a onisciência não

possui aí a totalidade que supomos, devendo ser buscada, então, na pluralidade do

conjunto: de pessoas ou de fragmentos.

Resta, ainda, outro alargamento das noções de “sinfilosofia” e

“simpoesia”, feito pelos primeiros românticos alemães. É que, se o sentido das

palavras não é completamente controlado pelo seu autor, então este entra, através

daquelas, em contato com seu leitor de forma diferente da que estamos

habituados. Leitor é aquele que participa da construção do sentido que é posto

pelas próprias palavras. Por sua vez, o escritor “não quer produzir nenhum efeito

determinado sobre ele, mas com ele entra na sagrada relação da mais íntima

sinfilosofia ou simpoesia”4. Por isso justamente, “não se deve querer sinfilosofar

com todos”5, afirma Friedrich Schlegel, afinal, são as afinidades fora de nosso

controle voluntário que constroem os elos onde esta atividade pode se dar.

Linguagem é aquilo dentro do qual os homens encontram-se, portanto, aí eles

podem se encontrar uns com os outros também. Leitor e escritor são pólos

produzidos pelo evento da linguagem.

*

Este princípio de organização fora das determinações subjetivas

conscientes foi chamado pelos primeiros românticos alemães de chiste. Friedrich

Schlegel definiu o chiste como “explosão do espírito estabilizado”6. Encadeamos

sempre palavra atrás de palavra, forjando explicações coerentes e, subitamente,

somos surpreendidos por aquela palavra que não era para estar ali, que não

queríamos. Eis o chiste. Ele explode a estabilidade que o espírito supunha poder

manter. Faz surgir, a despeito de nossa vontade, alguma outra coisa: na fala, no

papel, na vida. Lembra-nos, com isso, o quanto não somos senhores da linguagem

e, até, de nós mesmos. Precursor do que Freud, décadas depois, chamaria de

chiste na psicanálise, o conceito romântico aponta já para o valor do inconsciente.

Nele, as palavras poderiam achar-se sem o domínio dos homens, mas

através deles. Derrubava-se o voluntarismo diante das palavras. “No chiste, querer

4 Ibid., p. 38 (Lyceum, Fr. 112).5 Ibid., p. 94 (Athenäum, Fr. 264).6 Ibid., p. 34 (Lyceum, Fr. 90).

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só pode consistir em suprimir as barreiras convencionais e em deixar o espírito

livre”7, afirmou August Schlegel. Ficava restrito o papel da vontade à

contribuição para chegar até o terreno no qual o chiste pode se dar. Mas ela não

entra neste terreno. Em geral, aliás, ela sequer ajuda a chegar lá. Tanto que “o

mais chistoso seria, contudo, quem o fosse não apenas sem querer, mas também

contra sua vontade”8. Ironia é a amiga do chiste. São lugares onde a linguagem

quebra sua clareza. Nossa vontade quer continuidade, é pautada por regras de

raciocínio convencionadas, que seguimos sem pensar. Interrompê-las é o que faz

o chiste.

Desagregador, o chiste, como a alegoria que os primeiros românticos

alemães por vezes opuseram ao símbolo classicista, apresenta a descontinuidade

na construção do sentido que se queria completo e total. Friedrich Schlegel chega

a falar que os chistes “provocam uma pausa desagradável na conversa”9, afinal,

surgem como obstáculos na sua trajetória ordenada. Eles quebram a cadeia de

causas e conseqüências tão bem organizada pelo entendimento humano.

Evidenciam, para o homem, que aí corre junto outro entendimento, do qual em

geral nem sequer suspeitamos. Esse chiste, portanto, cria encontros sem pré-visão

pelos quais nós, homens, aprendemos que as próprias palavras têm sua arte

combinatória, com a qual podemos entrar em contato e que pode até surgir através

de nós, mas que não temos como fabricar quando e como queremos.

Um achado chistoso é uma desagregação de elementos espirituais, que, portanto,tinham de estar intimamente misturados antes da súbita separação. A imaginaçãotem de estar primeiro provida, até a saturação, de toda espécie de vida, para quepossa chegar o tempo de a eletrizar de tal modo pela fricção da livresociabilidade, que a excitação do mais leve contato amigo ou inimigo possa lhearrancar faíscas fulgurantes e raios luminosos ou choques estridentes.10

Imaginação costuma ser a faculdade chistosa: suas conexões têm maior

liberdade para articular sentidos não estabelecidos. Para Friedrich Schlegel, o

“chiste é sociabilidade lógica”11. Lógica fala, aqui, a partir da origem grega da

palavra “logos”, que diz não só razão, mas também discurso. É a razão da

linguagem que está em jogo no chiste, de modo mais fundamental que a razão

7 Ibid., p. 62 (Athenäum, Fr. 106).8 Ibid., p. 62 (Athenäum, Fr. 106).9 Ibid., p. 126 (Athenäum, Fr. 394).10 Ibid., p. 24 (Lyceum, Fr. 34).11 Ibid., p. 29 (Lyceum, Fr. 56).

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subjetiva. Irracional, portanto, é tudo que o chiste não é. Ele é a razão presente,

por exemplo, nos sonhos. Tanto que Friedrich Schlegel escreve que “há também

uma razão espessa e ígnea, que faz o chiste propriamente chiste, e dá elasticidade

e eletricidade ao estilo sólido”12. Esse chiste, portanto, tem a sua racionalidade, só

não no sentido estreito “daquilo que habitualmente se chama razão”13.

Sociabilidade do chiste, então, não depende daquilo que queremos ou

escolhemos: “achados chistosos são como o surpreendente reencontro de dois

pensamentos amigos após uma longa separação”14. Palavras, aqui, podem, a toda

hora, conectarem-se entre si sem que as controlemos. Perdemos a cadeia

sistemática do conhecimento, mas ganhamos caminhos que não prevíamos, fora

da continuidade linear. Raios luminosos, faíscas fulgurantes, choques estridentes,

fricção: é assim que age o chiste. Ele não abole o contato entre as palavras, mas

somente a ordem que julgávamos estruturar este contato, fazendo surgir, a cada

vez, outra, diferente da que achávamos saber.

Nesse sentido, o chiste afasta-se da moral e de suas regras. Intenção

voluntarista é o que domina a moralidade. Na arte, ocorre o contrário disso. Não

adianta, por exemplo, querer gostar desta ou daquela obra, pois nosso gosto ignora

nossa vontade de gostar, como já dizia Kant. Não decidimos do que gostamos;.

apenas gostamos. Por isso, August Schlegel afirma que “a apreciação moral é

inteiramente oposta à apreciação estética”, pois, “lá, a boa vontade é o valor de

tudo; aqui, de absolutamente nada”15. Não é no que o autor quer dizer que se

decide o sentido de sua obra, mas sim no que ela, a obra, diz. Este dizer é tão

amplo que não pode ser controlado por qualquer vontade consciente.

Se as palavras compreendem a si mesmas melhor do que os homens que as

usam, então o sentido da obra pertence à linguagem. Esta linguagem não deseja

saber a vontade de quem criou a obra, e sim o que ela, em si mesma, mostra. É o

que aparece nos achados chistosos, onde as palavras encontram umas às outras,

até à revelia do que pretendia quem as colocou no papel. Tanto que “uma única

palavra analítica, mesmo como elogio, pode apagar imediatamente o mais notável

achado chistoso, cuja chama só iria aquecer depois que tivesse brilhado”16, disse

12 Ibid., p. 36 (Lyceum, Fr. 104).13 Ibid., p. 36 (Lyceum, Fr. 104).14 Ibid., p. 53 (Athenäum, Fr. 37).15 Ibid., p. 62 (Athenäum, Fr. 106).16 Ibid., p. 23 (Lyceum, Fr. 22).

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Friedrich Schlegel. “Deve-se ter chiste, sem o querer ter”17, portanto. Com ele, a

linguagem toma conta do suposto autor, tornando-se ela a autora do que ali vai

escrito. Neste contexto, se o artista pode orgulhar-se de alguma coisa, é “da obra

que ultrapassa divinamente toda intenção, e cuja intenção ninguém aprenderá até

o fim”18, assevera Schlegel, deduzindo por aí o caráter sem fim das interpretações

das obras de arte. Intenção é o que fica para trás na criação, que assim supera a

particularidade subjetiva empírica e pode fundar a comunicação na arte, até

mesmo nas expressões líricas.

Nesse sentido, os românticos aproximaram o chiste da genialidade que, ao

invés de falar a partir de si, deixa a fala ocorrer através de si. Friedrich Schlegel

afirma que chiste é “genialidade fragmentária”19. Ela é fragmentária porque

justamente não compõe qualquer totalidade orgânica ordenada conscientemente,

mas deixa surgirem, aqui e ali, os encontros entre as palavras que podem forjar

algum sentido não sabido previamente sequer pelo autor empírico – que por isso é

um gênio. Novalis, às vezes, falava, sob este aspecto, de gênio da língua. Nessa

medida, o gênio não expressaria particularidades individuais. Pelo contrário, o

autor genial apaga-se, para que a linguagem apareça. Friedrich Schlegel escreve

que “o artista que não renuncia a todo o seu si mesmo é um servo inútil”20.

Inverte-se o esquema habitual: o poeta é objeto da criação, que se torna, ela, o

sujeito; atividade é deixar-se ser afetado e tomado pela poesia que aí se exerce.

*

Tanto a centralidade do chiste quanto a proposta de simpoesia e de

sinfilosofia na origem do romantismo alemão anteciparam questionamentos

contemporâneos decisivos, a partir da filosofia da linguagem, sobre a noção de

autoria. Esta era, então, destituída do caráter individual. “Nas suas manifestações

mais extremas, a vanguarda contrapõe a esse caráter não apenas o coletivo, como

sujeito da criação, mas a negação radical da categoria da produção individual”21,

observou Peter Bürger, pensando nos movimentos artísticos do começo do século

17 Ibid., p. 52 (Athenäum, Fr. 32).18 Ibid., p. 162 (Idéias, Fr. 136).19 Ibid., p. 22 (Lyceum, Fr. 9).20 Ibid., p. 158 (Idéias, Fr. 113).21 Peter Bürger, Teoria da vanguarda (São Paulo, Cosac Naify, 2008), p. 109

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XX, como aquele dos surrealistas. Eram os primeiros românticos alemães,

contudo, que já eram vanguarda no final do século XVIII.

Enquanto a época moderna buscava estabelecer a solidez da figura do

autor, os primeiros românticos, simultaneamente, já a diluíam. Essa figura do

autor “faz parte da evidência de um novo modo de produção de sentido, que é

habitualmente referido pela noção de ‘subjetividade moderna’”, explica Hans

Ulrich Gumbrecht, na qual “o homem concebe-se como a instância que confere

seu sentido aos fenômenos, por oposição à cosmologia medieval, fundada, em

razão do ato divino da criação, na imanência do sentido”22. Sem Deus como fonte

segura e referência de estabilização do sentido entre as palavras e as coisas, os

modernos buscaram colocá-la no sujeito autor.

Mas se a intervenção do sujeito criou assim as condições propícias aoaparecimento do papel de autor, foi a invenção da imprensa que o tornou umanecessidade concreta. Foi, com efeito, o livro impresso que transformou em casoexcepcional o que até então era a situação normal da comunicação humana, asaber, a copresença física dos participantes. Esta implicava a possibilidade deproduzir significações consensuais entre quem falava e quem escutava. Com odesaparecimento da situação de interação direta, os leitores tiveram necessidadede uma nova orientação para dominar o risco de uma plurivocidade, ou mesmo deuma confusão, de sentido. O papel de autor encontrava aí a sua formaçãoespecífica e sua razão de ser históricas.23

Nesse contexto, podemos dizer que os primeiros românticos alemães

destituíam a autoria justamente porque queriam acolher, ao invés de expulsar, a

confusão do sentido que dominava a época moderna, enxergando na sua

plurivocidade o risco que jamais pode ser dominado quando estamos na

linguagem. Tal confusão, aliás, exigiria que o leitor entrasse em relação ativa e

criativa com a obra, pois o sentido não poderia ser estabilizado pela remissão à

figura do autor. Intenção autoral era a estratégia moderna para acobertar o

problema do sentido. Era o que os primeiros românticos alemães não endossavam,

já que o chiste tirava da subjetividade sua autoridade. Descentrava-se a questão do

sentido.

Nada disso, teoricamente, é distante de nós. Michel Foucault, em 1969,

afirmava que “o apagamento do autor tornou-se desde então, para a crítica, um

22 Han Ulrich Gumbrecht, Modernização dos sentidos (São Paulo, Ed. 34, 1998), p. 104.23 Ibid., p. 104.

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tema cotidiano”24. Ele já problematizava, aliás, essa assertiva, embora

confirmasse que na escrita “não se trata da amarração de um sujeito em uma

linguagem: trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não pára

de desaparecer”25. Foucault, porém, alertava que este desaparecimento não é

suficiente para compreendermos o que aí entra em jogo. Pergunta-se: “essa noção

não transporta, em um anonimato transcendental, as características empíricas do

autor”26? Para evitar ficar aí, portanto, “não basta, evidentemente, repetir como

afirmação vazia que o autor desapareceu”, observa Foucault, completando: “o que

seria preciso fazer é localizar o espaço assim deixado vago pela desaparição do

autor”27. No caso dos primeiros românticos alemães, o espaço que surge com a

diluição do autor é o da própria linguagem, centro de sua filosofia.

*

Novalis escreveu aquela que é, provavelmente, a mais decisiva passagem

de todo o pensamento dos primeiros românticos sobre a linguagem, chamada

“Monólogo”. Em 1954, Martin Heidegger explicou que este “título acena para o

mistério da linguagem: a linguagem fala unicamente e solitariamente consigo

mesma”28. Monólogo é o que se passa com ela, já que exprime a si mesma.

Novalis escreve que “exatamente o específico da linguagem, que ela se aflige

apenas consigo mesma, ninguém sabe” e que “por isso ela é um mistério tão

prodigioso e fecundo – de que quando alguém fala apenas por falar pronuncia

exatamente as verdades mais esplêndidas, mais originais”29.

É quando falamos por falar ou escrevemos por escrever que as verdades

são, então, pronunciadas. Não é quando queremos dizer alguma coisa, mas

quando deixamos que as coisas sejam ditas, que encontramos o esplendor da

linguagem. Sua especificidade ocorre aí, ao afligir-se consigo mesma. Sua

singularidade está em sua autonomia, naquilo que ela é por si mesma. Esta

autonomia da linguagem face ao controle humano é que traz à tona a sua 24 Michel Foucault, “O que é um autor?”, in Estética: literatura, música e cinema (Rio de Janeiro,Forense Universitária, 2001), p. 264.25 Ibid., p. 268.26 Ibid., p. 270.27 Ibid., p. 271.28 Martin Heidegger, “O caminho para a linguagem”, in A caminho da linguagem (Petrópolis,Vozes, 2003), p. 191.29 Novalis, “Monólogo”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 195.

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fecundidade para além do que podemos prever. É sua capacidade de germinar e

fazer nascer a si própria. Mistério, aqui, é o que, ao estimular o desvendamento e

ao mesmo tempo não o fazer, torna a linguagem este âmbito que jamais é

esgotado pelo homem.

No lugar das verdades esplêndidas ditas quando o homem fala apenas por

falar, surge o que há de pobre na linguagem quando ele quer domá-la pela

vontade. “Se quiser falar de algo determinado, a linguagem caprichosa o faz dizer

o que há de mais ridículo e arrevesado”30, comenta Novalis. Para os padrões

habituais, essa constatação é estranha. Inverte o que costumamos achar. Falar por

falar seria superior a falar para expressar adequadamente as coisas fora da

linguagem. Estranhamento familiar este, contudo, pois conhecemos bem o quanto,

aqui e ali, a linguagem nos surpreende e revela alguma coisa justamente no

instante em que, distraídos, deixamos ela ser o que é e falar o que quer.

Novalis estava especialmente preocupado com a linguagem no âmbito da

filosofia e da poesia, onde o emprego pragmático das palavras ameaçava deturpar

sua possibilidade de dizer aquilo que ainda não sabemos, já que a reduziria a um

conjunto previamente dado de significantes e significados que a eles

correspondem precisamente. Mas “o que se passa com o falar e escrever é

propriamente uma coisa maluca”31, afirma Novalis. Maluquice que estaria em

experimentarmos certa autonomia da linguagem em relação a nós.

Se com isso acredito ter indicado com a máxima clareza a essência e função dapoesia, sei no entanto que nenhum ser humano é capaz de entendê-lo e disse algototalmente palerma, porque quis dizê-lo, e assim nenhuma poesia resulta. Mas, ese eu fosse obrigado a falar? e esse impulso a falar fosse o sinal da instigação dalinguagem, da eficácia da linguagem em mim? e minha vontade só quisessetambém tudo a que eu fosse obrigado, então isto, no fim, sem meu querer e crer,poderia sim ser poesia e tornar inteligível um mistério da linguagem? e entãoseria eu um escritor por vocação, pois um escritor é bem, somente, um arrebatadoda linguagem?32

Novalis antecipa-se à possível acusação de que, contraditoriamente,

empregaria a linguagem como quer para fazer o elogio da linguagem como evento

que foge ao que queremos dizer. Teria, neste caso, dito algo “palerma”, já que

assim, pelo querer dizer, a poesia não é dita. Ele, porém, explica que não é este o

30 Ibid., p. 195.31 Ibid., p. 195.32 Ibid., p. 196.

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caso. Levanta então outra hipótese. E se esta sua fala fosse algo a que ele se sentiu

obrigado? Então, suas palavras seriam o efeito da eficácia da linguagem agindo

sobre ele, e não o contrário, ou seja, da sua eficácia agindo sobre a linguagem. Foi

a própria linguagem que instigou a fala. Surge, assim, outra perspectiva sobre o

problema da vontade, que sai das determinações conscientes presentes na moral,

por exemplo. Esta vontade, ao invés de ser o livre-arbítrio do sujeito, é aquilo para

o qual o sujeito sente-se obrigatoriamente atraído. Logo, o homem não é sujeito

da escrita, mas está sujeito a ela. Neste caso, as palavras de Novalis poderiam ser

poesia, sim. Foi o próprio mistério da linguagem que, então, pôde dizer-se a si

mesmo através de Novalis. Define-se, por fim, o que é ser escritor: estar

arrebatado, mas não por sua subjetividade particular e suas emoções específicas,

mas pela linguagem na qual tudo isso é o que é e como é. “Por isso essa força

estranha”. É ela que leva a falar.

Linguagem, aqui, possui para os primeiros românticos alemães a

centralidade que fez Benjamin, cem anos depois, tomar suas publicações como

exemplos do que desejava. Em 1916, Martin Buber pedia que ele contribuísse

para a revista que editava, Der Jude. Benjamin declina o convite, justificando em

carta a razão. Não colocaria a linguagem a serviço de fins políticos, como a causa

sionista. Mobilizar os homens para a ação seria corromper a ação que a própria

linguagem é. “Benjamin considera devastador o equívoco que cinde palavra e

ação”, observou Katia Muricy, “porque o ato não é, nestes domínios, o que está

no fim de um processo, mas a própria linguagem em seu exercício”33. No fim da

carta, Benjamin admite a dificuldade de fazer justiça a esta autonomia da

linguagem em revistas. “Mas estou pensando na Athenäum”34, confessa,

mencionando o órgão de publicação principal dos primeiros românticos alemães.

Logo depois, em sua tese de doutorado, Benjamin diria que o pensamento de

Schlegel é “lingual”35.

Escrever, portanto, não seria a tentativa de comunicar conteúdos

específicos ou, ao menos, este não seria o sentido pelo qual se escreve. Muito

antes de Nietzsche chamar seu Assim falou Zaratustra de “um livro para todos e 33 Katia Muricy, Alegorias da dialética: imagem e pensamento em Walter Benjamin (Rio deJaneiro, Relume Dumará, 1998), p. 90.34 Walter Benjamin, The Correspondence of Walter Benjamin, 1910-1940 (Chicago, TheUniversity of Chicago Press, 1994), p. 81.35 Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,1999), p. 55.

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para ninguém”, Friedrich Schlegel já dissera que “todo autor legítimo escreve

para ninguém, ou para todos” e que “quem escreve para que estes ou aqueles o

possam ler, merece não ser lido”36. Escreve-se para todos e para ninguém porque

caso haja algum “público-alvo”, como se diz hoje em dia, a linguagem aí

envolvida degrada-se em meio de comunicação direcionado para certo fim prévio.

Limita-se seu poder criativo. Planeja-se seu propósito. Justamente porque tão sem

sentido quanto escrever para ninguém é pretender escrever para todos, ambas as

atitudes liberam a linguagem dos compromissos comunicacionais. Escreve-se,

agora, apenas para escrever. Escreve-se para ninguém, para todos, para Deus, para

a própria linguagem.

Escrever é verbo, ato, gesto. É a ação de escrever. Escrever comunica o

que é a própria escrita, já que, como disse Novalis, a singularidade da linguagem é

afligir-se consigo mesma. Maurice Blanchot, que como Benjamin tinha a

Athenäum em alta conta, afirmou que os primeiros românticos introduziram um

novo modo de escrita: “o poder da obra ser e não mais representar”37. Novalis

explicou, no seu “Monólogo”, que as palavras

constituem um mundo por si – Jogam apenas consigo mesmas, nada exprimem anão ser sua prodigiosa natureza, e justamente por isso são tão expressivas –justamente por isso espelha-se nelas o estranho jogo das proporções das coisas.Somente por sua liberdade são membros da natureza e somente em seus livresmovimentos a alma cósmica se exterioriza e faz delas um delicado metro ecompêndio das coisas.38

Em princípio, as palavras não teriam relação com seu exterior. Elas

constituiriam um mundo por si, jogando somente consigo mesmas. Não poderiam

exprimir nada a não ser a sua própria essência. Nesse sentido, palavras falariam

apenas da própria linguagem, nunca de coisas. Não serviriam, então, como

significantes que empregamos para transmitir significados. Porém, subitamente,

ocorre certa reviravolta. Exatamente porque é assim, encontramos na linguagem,

por espelhamento, o jogo que se dá entre as próprias coisas. Não se trata, contudo,

de conferir a cada palavra seu sentido correto, por precisão e transparência diante

das coisas. Novalis defendia, ao contrário, que “quanto mais peculiar, mais

36 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 33 (Lyceum, Fr.85).37 Maurice Blanchot, “L’Athenaeum”, in L’Entretien infini (Paris, Gallimard, 1969), p. 518.38 Novalis, “Monólogo”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 195.

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abstrata poderíamos dizer, é a representação, designação, reprodução, quanto mais

dessemelhante ao objeto, ao estímulo, tanto mais independente, autônomo é o

sentido”39. Na abstração do caráter representacional da linguagem, esta aparece

pelo que é em si mesma, ao invés de se esconder sob o que significa. Para o

sentido surgir na linguagem, ele não dependeria do alicerce óbvio da designação

reprodutiva das coisas, podendo ser autônomo nesse aspecto. “Se não precisasse

nem sequer de uma ocasião externa, deixaria de ser um sentido, e seria um ser

correspondente”40. Melhor ainda. Neste caso, ao invés significar o mundo externo,

a linguagem corresponderia à sua configuração por sua própria criação. Nela,

ouviríamos a música do universo tocar pelo ritmo das palavras e veríamos a dança

das coisas nos deslocamentos da sintaxe. Linguagem é fala poética.

“Poderiam ser suas configurações mais ou menos semelhantes e

correspondentes a configurações de outros seres”, afirmava Novalis, para ainda

completar que se “fossem suas configurações e a seqüência de figuras delas

perfeitamente iguais e semelhantes às seqüências de figuras de um outro ser –

haveria a mais pura consonância entre ambos”41. Este outro ser era o próprio

mundo, por exemplo. É que as coisas, para os românticos, não eram somente

objetos. Eram poesia. Nomeá-las, portanto, era trazer à linguagem este caráter

poético. Logo, se as palavras devem fazer o compêndio das coisas, não podem

pretender apenas designá-las fixamente. Devem entrar em consonância com seu

próprio ritmo, pois seus movimentos exteriorizam a alma cósmica do mundo:

cadência, música, analogia, combinação, sentido, beleza, criação, produção,

movimento.

*

Sentimos, nesta teoria da linguagem, a forte presença do pensador pré-

romântico Hamann. Religioso, Hamann dizia que “Deus se revela”, para

completar que “o Criador é um escritor”42. Sua escrita é o próprio mundo que,

então, ganha a feição de um texto que o homem pode ler. Deus escrevera o livro

39 Novalis, “Fragmentos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 146.40 Ibid., p. 146.41 Ibid., p. 146.42 J. G. Hamann, “De Escritos e Cartas”, in Autores pré-românticos alemães (São Paulo, EPU,1991), p. 25.

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do mundo. Naquilo que chamamos de coisas, e que assim pretendemos designar

com as palavras, já está a linguagem. Portanto, não podemos nos comportar como

se fossem apenas objetos e empregar a linguagem do ponto de vista

epistemológico como meio instrumental. Não conhecemos o mundo através da

linguagem, mas na linguagem. É a própria linguagem, em si e por si mesma, que

já é conhecimento, e não aquilo por intermédio do que chegamos a conhecer

alguma coisa.

No entanto, não é qualquer linguagem que oferece esta possibilidade, mas

apenas a linguagem poética, que pode ser encontrada sobretudo nas artes e na

filosofia. Desde que não coloque o mundo apenas como objeto diante do homem

como sujeito, a linguagem aproxima-se da poesia, pois não é tratada como

simples meio de manipulação das coisas. Na poesia, quem é sujeito e quem é

objeto são determinações relativas. Somos nós que fazemos a poesia ou é a poesia

que nos faz? Schleiermacher, ao contribuir para a Athenäum, afirmou: “sem

poesia, não há nenhuma realidade”43. Hamann, por sua vez, dizia que “a poesia é a

língua materna da espécie humana”44.

Dentro desse contexto, “Hamann sustenta que nem as coordenadas

cartesianas do racionalismo dedutivo em geral nem o mentalismo de Kant podem

dar conta dos processos criadores”45, como observa George Steiner. Em suma, a

subjetividade como sede absoluta da verdade não seria suficiente para explicar o

caráter poético fundante entre homem e ser. “Para Hamann, o abismo consiste em

que razão é linguagem”46, notou Heidegger. Razão não seria o sujeito pensado

pela modernidade enquanto aquilo que subjaz e é fundamento, como era em

Descartes ou Kant. Este sujeito pretendia controlar a linguagem como sua

ferramenta cognitiva, fazendo a era moderna afastar-se, neste ponto, da dimensão

poética de sua existência histórica. Lamentava Herder a perda de “toda a vida da

arte poética – já amortecida”47. Para ele, “o homem está organizado para ser uma

43 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 114 (Athenäum,Fr. 350).44 Ibid., p. 28.45 George Steiner, Depois de Babel (Lisboa, Relógio D’Água, 2003), p. 107.46 Martin Heidegger, “A linguagem”, in A caminho da linguagem (Petrópolis, Vozes, 2003), p.191.47 J. G. Herder, “Da terceira coleção de fragmentos”, in Autores pré-românticos alemães (SãoPaulo, EPU, 1991), p. 31.

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criatura de linguagem, pois sem linguagem o homem não possui razão e sem

razão não tem linguagem”48.

Herder e Hamann deslocavam a ênfase da época moderna do sujeito para o

âmbito da linguagem, abrindo caminho para os primeiros românticos alemães

superarem o que Benjamin chamou depois de “concepção burguesa da

linguagem”49. Percebemos, nesse contexto, que “a concepção romântica da

linguagem comporta, portanto, um conflito interno: se a linguagem é vista –

enquanto decaída – como simples signo funcional e meio de comunicação”,

conforme observou Márcio Seligmann Silva, “ela também comporta um âmbito

irredutível, não-conceitual – reflexos daquela linguagem original perdida que dão

a ela um caráter mágico, mais nobre”50. Reflexos da linguagem original estão na

poesia, mas não porque ela chega à correspondência exata e unívoca entre

palavras e coisas. Pois o original da linguagem não é a exatidão. É a criação.

Na origem da linguagem não está a operação dentro de ligações

estabelecidas entre significantes e significados, mas a criação de tais relações que,

sem ela, não existiriam. Seu caráter mágico está aí. Ela é divina porque, ao criar,

repete, a seu modo, o que foi o gesto do começo do mundo. Sendo assim, na fala

poética é o próprio mundo que começa, a cada vez de novo. Experimentamos este

mundo não através da linguagem, mas dentro da própria linguagem, quando nos

abandonamos para sermos junto a ela.

Friedrich Schlegel sempre sublinhou esta proximidade entre o caráter

criador da poesia e o caráter criador da própria natureza. “Imenso e inesgotável é

o mundo da poesia, como o reino da viva natureza o é em animais, plantas e

criações de toda espécie, forma e cor”51. Por isso, o romantismo, afirma Schlegel,

“abrange tudo que seja poético, desde o sistema supremo da arte, que por sua vez

contém em si muitos sistemas, até o suspiro, o beijo que a criança poetizante exala

em canção sem artifício”52. Em suma, a poesia não está somente na arte, ou seja,

no artifício. Ela está também nas próprias coisas.

48 J. G. Herder, Ensaio sobre a origem da linguagem (Lisboa, Antígona, 1987), p. 49.49 Walter Benjamin, “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana”, in Sobre arte,técnica, linguagem e política (Lisboa, Relógio Dágua, 1992), p. 181.50 Márcio Selligamn-Silva, Ler o livro do mundo (São Paulo, Iluminuras, 1999), p. 28.51 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 29.52 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum,Fr. 116).

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Assim como o coração da terra se reveste de plantas e formas, assim como a vidabrotou por si mesma das profundezas e tudo tornou-se pleno de criaturas quealegremente se multiplicavam, assim também brota espontânea a poesia da forçaprimeva e invisível da humanidade, quando o cálido raio de sol divino a atinge efecunda.53

Em ambas as passagens de Friedrich Schlegel, há uma palavra crucial que,

porém, passa discretamente. É a palavra “como”: o mundo da poesia é como o

reino da natureza e o coração da terra se reveste de formas como a vida brotou.

Era o princípio da analogia que estava aí presente, já que “a analogia é o reino da

palavra como, essa ponte verbal que, sem suprimir, reconcilia as diferenças e as

oposições”, conforme observou Octavio Paz, completando que “a analogia

concebe o mundo como ritmo: tudo se corresponde porque tudo ritma e rima”54.

Por analogia à criação natural, a arte cria. Nela, a linguagem, até quando e

especialmente quando faz valer sua autonomia poética, não deixa de refletir a

alma cósmica de tudo o que é. Não o faz porque é empregada com a devida

precisão, e sim porque, ao criar, segue analogamente o jogo das próprias coisas.

Reviravolta, afirma Octavio Paz: “se a analogia faz do universo um poema, um

texto feito de oposições que se resolvem em consonâncias, também faz do poema

um doble do universo”, o que resulta numa “dupla conseqüência: podemos ler o

universo, podemos viver o poema”55.

Percebemos, aqui, que o homem não está colocado em oposição à

natureza, como se esta fosse o objeto e ele, o sujeito. Pelo contrário, o homem está

dentro da natureza. Situa-se, aliás, em lugar especial dentro dela, pois “o homem é

um olhar retrospectivo criador da natureza para si mesma”56, afirma Friedrich

Schlegel. Só por isso, o homem faz poesia. Ele respira a poesia bruta do mundo.

Nesse sentido, buscar a origem da linguagem não significaria achar seu começo

cronológico, e sim aquilo que faz com que a linguagem dê origem: ontem, hoje ou

amanhã. Portanto, a pergunta pela origem da linguagem transforma-se na

pergunta pela linguagem da origem enquanto aquela que, sendo criadora, origina,

assim como fizera o verbo divino, se quisermos. Toda vez que o poeta tomasse a

palavra, acenderia, com ela, a fagulha que fizera Deus, como criador, ser escritor.

53 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 30.54 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 93, 88.55 Ibid., p. 79.56 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 148 (Idéias, Fr.116).

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Encontramos, aqui, ecos do “livro do mundo” pensado por neoplatônicos,

medievais e renascentistas. Ler o real como texto é sua conseqüência. Para

Schelling, por exemplo,

o que chamamos de natureza é um poema que se encontra fechado emmaravilhoso e secreto escrito. Mas se o enigma pudesse se desvelarreconheceríamos aí a odisséia do espírito, que, maravilhosamente enganado,procurando-se a si mesmo escapa de si; pois através do mundo sensível o sentidobrilha apenas como através de palavras, e a terra da fantasia, que ambicionamos,apenas como através de neblina semitransparente.57

Novalis abre sua novela Os aprendizes de Sais explorando este potencial

significante da natureza. Ele fala das “figuras que parecem pertencer a esta grande

cifra que reconhecemos escrita em todo lugar, nas asas, cascas de ovo, nuvens e

neve, em cristais e nas formações das pedras, nas águas cobertas pelo gelo, no

interior e exterior das montanhas, das plantas, animais e homens, na luz do céu”,

onde “pressentimos uma chave para a escrita mágica, até mesmo uma

gramática”58. Entretanto, esse “pressentimento se recusa a tomar formas definidas,

e não parece que deva nos dar a chave dos mistérios”59: as cifras que fazem das

coisas o grande livro do mundo a ser lido por nós teriam perdido, na modernidade,

o código referencial que as tornava compreensíveis.

Em seus fragmentos, Novalis dizia que “outrora era tudo aparição de

espíritos”, mas “agora não vemos nada, senão morta repetição, que não

entendemos”, concluindo que “a significação do hieróglifo falta”60. Hieróglifo

quer dizer, aqui, justamente a escrita na qual o significado dos significantes

deixou de ser facilmente decifrável. Este seria o âmbito, portanto, em que se daria

a atividade da arte. “No estilo do poeta genuíno nada é ornamento, tudo é

hieróglifo necessário”61, escreve August Schlegel. Este poeta procura a “bela

mitologia” enquanto “expressão hieroglífica da natureza circundante”62. “Para o

verdadeiro poeta tudo isso é apenas tão intimamente quanto sua alma o possa

abarcar, alusão ao mais elevado e infinito, hieróglifos de um amor eterno e da 57 F. Schelling, “Trecho do Sistema do Idealismo Transcendental”, in Rodrigo Duarte (org.), Obelo autônomo (Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1997), p. 147.58 Novalis, “Die Lehrlinge zu Sais”, in Novalis Werke (München, Verlag C. H. Beck, 1969), p. 95,59 Ibid., p. 95.60 Novalis, “Fragmentos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 141 (104).61 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 75 (Athenäum,Fr. 173).62 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 54.

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sagrada plenitude de vida da natureza plasmadora”63. Nesses casos, é como se

escutássemos os ecos do sentido cuja voz original, porém, está sempre já perdida.

Friedrich Schlegel afirmava que “nos antigos se vê a letra perfeita e

acabada de toda a poesia; nos modernos se pressente o espírito em devir”64. Se os

antigos, fundando na mitologia sua arte, possuíam essa segurança de perfeição

para o sentido, já os modernos apenas o buscam, querem, perseguem – pois não

têm. Restaurar a harmonia completa, se é que ela houve, entre palavras e coisas

não é possível, para os primeiros românticos. Não há parâmetro objetivo que

proporcione a leitura da língua em que o livro do mundo está escrito. Ironia,

alegoria, chiste, fragmento, reflexão e contradição são formas pelas quais a poesia

entraria em contato com o sentido da escrita do mundo tornado opaco ao sentido.

*

Pouco a pouco, a concepção de linguagem dos primeiros românticos

alemães, em sua abrangência, ganhava caráter religioso, através do qual a sua

experiência poderia ser salva dos estreitos limites impostos pela época. Era o

confronto moderno entre fé e saber que se colocava, como observou Novalis.

Dentre os iluministas, “procurava-se ver na fé o fundamento da estagnação geral,

e esperava-se que esta pudesse ser eliminada pela perspicácia do saber”65. Esta

eliminação, para Novalis, transformou-se, progressivamente, no ódio contra a

Bíblia e a religião em geral. Mas não parou por aí. Este ódio, dizia ele, “estendeu-

se muito natural e consequentemente a todos os objetos do entusiasmo, passou a

condenar a fantasia e o sentimento, a moral e o amor à arte, o futuro e o

passado”66.

Na contramão do estreitamento feito pelo pensamento iluminista e da

concepção mais tradicional de religião, os primeiros românticos alemães vão

colher em Spinoza sua visão de Deus, especialmente através da interpretação de

sua obra feita por F. H. Jacobi67. Era decisivo, para eles, que, na ontologia de

63 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 66.64 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 34 (Lyceum, Fr.93).65 Novalis, A cristandade ou a Europa (Lisboa, Antígona, 2006), p. 42.66 Ibid., p. 42.67 F. H. Jacobi, “Briefe über die Lehre von Spinoza”, in Werke (Leipzig, Fleischer, 1812).

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Spinoza, Deus fosse substância primordial, “ente absolutamente infinito”68. Tudo

o que é, para Spinoza, é em Deus, inclusive nós. Deus é a natureza. Esta, porém,

não é pensada só como natureza naturada, ou seja, como as coisas existentes que

encontramos já dadas na existência do mundo. Ela é também natureza naturante,

ou seja, a “causa livre”69 produtora de tudo o que é.

“Este Deus-natureza come-nos, dá-nos à luz, fala conosco, educa-nos,

dorme a nosso lado, deixa que dele nos alimentemos, que o geremos e que o

demos à luz; abreviando, ele é a matéria infinita de nossa atividade, e do nosso

sofrer”, afirmou Novalis, submetendo a religião ao erotismo sensual de seu

pensamento, para o qual “só há um templo no mundo e esse é o corpo humano”,

pois “nada é mais sagrado do que essa alta configuração”70. Segundo Novalis,

“toca-se o céu quando se tacteia um corpo humano”71. É só porque nós já somos

em Deus, como queria Spinoza, que se torna possível, como quer Novalis,

encontrar sua revelação na própria carne, pois ela, a carne, não está fora dele,

Deus. Ela traz, em si mesma, seu quinhão divino.

“É entre os homens que é preciso procurar Deus”, dizia Novalis,

completando que “nos acontecimentos humanos, nos pensamentos e nas

sensações humanos revela-se com a maior claridade o espírito celestial”72. Por

isso, o simples exercício do amor já seria religioso: “se fizermos da nossa amada

um Deus assim, isso é religião aplicada”, o que significa que “o coração parece

ser, por assim dizer, o órgão religioso”73. Mais ainda, é a própria religião que se

assenta no amor, já que, ao amar as coisas deste mundo, não estamos senão

amando a Deus. Por trás da reviravolta, estava o pioneiro Spinoza, que, segundo

Novalis declarou certa vez, era “um homem embriagado com Deus”74. Mas não

foi só ele que destacou a relevância de Spinoza na origem do romantismo. “Mal

consigo conceber como se possa ser poeta sem venerar Spinoza, amá-lo e se

tornar completamente um dos seus”75, afirmou Friedrich Schlegel.

68 Spinoza, Ética (Belo Horizonte, Autêntica, 2007), p. 13.69 Ibid., p. 53.70 Novalis, “Seleção dos fragmentos e estudos”, in A cristandade ou a Europa (Lisboa, Antígona,2006), p. 71, 75.71 Ibid., p. 72.72 Ibid., p. 70.73 Ibid., p. 75, 74.74 Ibid., p. 93.75 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 53.

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Partindo da ontologia de Spinoza, segundo a qual nós, seres finitos, somos

parte da substância infinita, os primeiros românticos conceberam que a criação

artística só existe na medida em que nela age a mesma força divina que

testemunhamos pela natureza naturante, que cria a todo o tempo as coisas que

constituem a natureza naturada. Deus é suas obras (natureza naturada) e a

atividade produtiva que as cria (natureza naturante). Por analogia, a arte é suas

obras e a atividade produtiva que as cria, assim como “o poema único da

divindade”76. Somos criadores porque a natureza da qual fazemos parte e que fala

em nós é criadora: “o homem – metáfora”77, escreveu Novalis. Metáfora de Deus,

da criação divina. Eis o homem. Se for assim, vale dizer, até a relação entre

homem e Deus, para os românticos, ocorre como linguagem, em forma

metafórica.

Esta aproximação entre religião e arte foi reforçada ainda por Novalis

quando ele afirmou que “Schleiermacher veio anunciar um tipo de amor, de

religião – uma religião-arte – quase uma religião como a do artista, que venera a

beleza e o ideal”78. Tal aproximação, então, era de mão-dupla. Não estava em

jogo apenas o caráter religioso da arte, mas também o caráter artístico da religião.

Por isso, Novalis afirmou que “a história de Cristo é sem dúvida tanto um poema

quanto é uma história, e em geral só é história a história que também consegue ser

fábula”79. Tanto assim que, para ele, cabia ler a Bíblia como os românticos

pretendiam ler arte, “continuando em crescimento”, afinal, “o relato bíblico é

infinitamente variegado – história, poesia, tudo interpenetrando-se”80. Irônico,

Friedrich Schlegel chega a comparar a situação do monarca que “teria sido um

homem bem amável como pessoa privada, só não servia para rei”, com a da

Bíblia, que seria “também apenas um amável livro de uso privado, que só não

deveria ser Bíblia”81.

Explica-se, aqui, a atração dos primeiros românticos alemães pelo

protestantismo, a despeito das conversões posteriores de alguns de seus membros

ao catolicismo, que atestam, aliás, sua virada conservadora após a diluição do 76 Ibid., p. 30.77 Novalis, “Fragmentos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 157.78 Novalis, “Seleção dos fragmentos e estudos”, in A cristandade ou a Europa (Lisboa, Antígona,2006), p. 68.79 Ibid., p. 72.80 Ibid., p. 74.81 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 48 (Athenäum,Fr. 13).

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grupo original. Era a atração pelo direito de cada homem interpretar os textos (no

caso, os sagrados) por si mesmo. Para Novalis, “os insurrectos, com razão,

apelidaram-se de protestantes, pois que protestavam solenemente contra toda a

arrogância que um poder incômodo e aparentemente ilegítimo sobrepunha à

consciência”82. Este poder era a Igreja de Roma. Por oposição, a Reforma

Protestante enfatizava a revelação íntima e pessoal de Deus. Por conseqüência, a

própria Bíblia devia ser lida como fonte espiritual, não subordinada à autoridade

papal. Desse modo, os protestantes “reapropriaram-se do seu direito, de que

haviam prescindido tacitamente, de examinar, definir e eleger em matéria de

religião”83, observou Novalis.

Essa força do contato singular de cada fiel, por si mesmo, com as Sagradas

Escrituras possuía, no âmbito religioso, o mesmo espírito que movia o modo pelo

qual os românticos pensavam que os leitores em geral deviam se relacionar com

os textos e com a linguagem, especialmente no caso da arte. Octavio Paz dizia que

“o romantismo continua a ruptura protestante”84. Nos dois casos, os preceitos

normativos deveriam dar lugar ao confronto pessoal, direto e livre com a matéria

a ser compreendida. Em outras palavras, a “liberdade do cristão”85, anunciada por

Martinho Lutero, confrontava as prescrições de interpretação da Bíblia de forma

análoga à contestação que os primeiros românticos, sobre o mesmo solo histórico

e geográfico, faziam dos preceitos classicistas no tocante à criação e à

compreensão da arte. Em ambos os casos, protestava-se contra as imposições de

regras objetivas exteriores para a interpretação do que estava em causa.

Friedrich Schlegel afirmava que “catolicismo é cristianismo ingênuo,

protestantismo é cristianismo sentimental e, além do mérito polêmico e

revolucionário, tem ainda, pela adoração da Escritura, o mérito positivo de ter

propiciado a filologia, que também é essencial a uma religião universal e

progressiva”86. Essa passagem emprega, duas vezes, qualificações que

originalmente diziam respeito à poesia para falar da religião. Primeiro, temos as

categorias de “ingênuo” e “sentimental”, provenientes de Schiller, sendo que

aquela caracterizaria, em geral, a poesia antiga, enquanto esta predominaria na 82 Novalis, A cristandade ou a Europa (Lisboa, Antígona, 2006), p. 34.83 Ibid., p. 34.84 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 69.85 Martinho Lutero, Da liberdade do cristão (São Paulo, Unesp, 1998).86 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 87 (Athenäum,Fr. 231).

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moderna, por conta de seu caráter reflexivo. Segundo, e ainda mais importante,

“universal e progressiva” eram os adjetivos empregados para falar da própria

poesia romântica buscada por Schlegel. Fica claro, então, que a importância do

protestantismo, para os românticos, estava em que ele se aproximava, em seu

modo der ser, dos desafios colocados à própria poesia, especialmente a de seu

tempo.

Neste sentido, vemos que a religião aproxima-se, para os românticos, da

arte. Mas não só. Ela aproxima-se também da filosofia. Para Novalis, “orar é na

religião o mesmo que o pensar é na filosofia”87. Não por acaso, ele dizia que “o

espinosismo é um excesso de saciedade com a divindade”88. Sugeria, ainda, que

“também a filosofia fichteana não será (…) senão cristianismo aplicado”89.

Spinoza e Fichte, a despeito das diferenças, são aproximados pelos românticos por

tentarem contornar, respectivamente, os dualismos das filosofias de Descartes e

de Kant. Buscavam o âmbito ontológico não cindido entre sujeito e objeto, que

seriam assim religados um ao outro no absoluto. Religação é o que faz a religião.

Só que, vale destacar, a valorização de Spinoza e Fichte já evidencia, pelos

acontecimentos biográficos na trajetória dos dois filósofos, o caráter atípico da

religião de que tratam os românticos: o primeiro foi excomungado da comunidade

judaica e o segundo demitido de seu cargo de professor envolvido em pesadas

acusações de ateísmo.

Essa aproximação da religião em relação à poesia e à filosofia não se

devia, claro, só às influências deste ou daquele autor. É bem mais que isso: “quem

tiver religião, falará poesia” e “o órgão para a procurar e descobrir é a filosofia”90,

afirma Schlegel. Para ele, “dependendo de como são consideradas, poesia e

filosofia são esferas diferentes, formas diferentes ou também fatores da religião”,

uma vez que, “se vocês tentarem vincular efetivamente a ambas, não obterão outra

coisa que religião”91. Religião, em suma, ocorre pelo vínculo entre arte e filosofia,

que, porém, não daria qualquer perfeição estável. Portanto, “a religião é pura e

87 Novalis, “Seleção dos fragmentos e estudos”, in A cristandade ou a Europa (Lisboa, Antígona,2006), p. 75.88 Ibid., p. 91.89 Ibid., p. 75.90 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 148 (Idéias, Fr.34).91 Ibid., p. 150 (Idéias, Fr. 46).

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simplesmente insondável”, sendo que “nela em toda parte se pode cavar, cada vez

mais profundamente, ao infinito”92, afirma Friedrich Schlegel.

Nem de longe, porém, isso reduz sua centralidade. Pelo contrário, para

Friedrich Schlegel, a religião “não é apenas uma parte da formação, um membro

da humanidade, mas o centro de todo o resto, em toda parte o primeiro e mais

alto, o pura e simplesmente originário”93. Gianni Vattimo observou que o projeto

de secularização da modernidade, embora trouxesse consigo a autonomia da arte,

fazia dela a mais central postulante ao lugar perdido da religião. “O

desenvolvimento da arte como fenômeno específico (e da estética como teoria)

aparece ligado à emancipação da arte da religião”, afirma ele, “porém o

significado da experiência estética, uma vez que se queira apreendê-lo na sua

especificidade, remete, uma vez mais, a um âmbito que não se deixa definir senão

em referência à experiência da religião e do mito”94. Friedrich Schlegel afirmava

que “só pode ser um artista aquele que tem uma religião própria, uma visão

original do infinito”95. Religião própria enquanto criação singular, e não geral, é o

que marca o romantismo.

*

Ninguém parece ter compreendido melhor o caráter paradoxal da religião

para o romantismo do que Octavio Paz, pois ele enxergava que esta, aqui, era o

contrário de sua acepção tradicional estabilizadora. Revelava ausência, e não

presença. Era desejada, e não dada. Deus apresentava-se como aquele que falta.

Esta falta foi cantada por vários poetas românticos. É que “o tema da morte de

Deus é uma tema romântico” e

a morte de Deus abre as portas da contingência e da sem-razão. A resposta édupla: a ironia, o humor, o paradoxo intelectual; também a angústia, o paradoxopoético, a imagem. Ambas as atitudes aparecem em todos os românticos: suapredileção pelo grotesco, o horrível, o estranho, o sublime irregular, a estética doscontrastes, a aliança entre riso e pranto, prosa e poesia, incredulidade e fé, asmudanças repentinas, as cabriolas, tudo, enfim, que transforma cada poetaromântico num Ícaro, num Satanás e num palhaço, não é nada mais que uma

92 Ibid., p. 148 (Idéias, Fr. 30).93 Ibid., p. 146 (Idéias, Fr. 14).94 Gianni Vattimo, Para além da interpretação (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1999), p. 99.95 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 146 (Idéias, Fr.13).

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resposta ao absurdo: angústia e ironia. Ainda que a origem de todas essas atitudesseja religiosa, é uma religiosidade singular e contraditória, pois se resume naconsciência de que a religião está vazia. A religiosidade romântica é falta dereligião: ironia; a falta de religião romântica é religiosa: angústia.96

Religião como falta e falta como religião, eis o paradoxo dos românticos.

Exilados da plenitude divina, não deixavam de buscá-la: “cumpre outrossim que

exista alguém / capaz de o sagrado interpretar”97, dizia Hölderlin. Este alguém é o

poeta em contato com a linguagem como aquilo que, embora familiar, permanece

estranho a nós: “quão pouco de nós sabemos, nós / em cujas almas um deus

impera”98, sentencia ainda Hölderlin. Poderíamos parafraseá-lo: quão pouco de

nós sabemos, nós / em cujas almas a linguagem impera. Por isso, ela está sempre

a nos ensinar, não só sobre o mundo, mas sobre nós mesmos, sobre o sinal sem

interpretação que somos. É o que faz o chiste, como vimos. “Não acontece que

saibamos, um momento antes, que chiste vamos fazer, necessitando, apenas, vesti-

lo em palavras”, observou Freud, “temos, antes, um indefinível sentimento, cuja

melhor comparação é com uma ‘absence’, um repentino relaxamento da tensão

intelectual, e então, imediatamente, lá está o chiste – em regra, já vestido em

palavras”99. Linguagem: o chiste já vem vestido de palavras, deslocando e

condensando sentidos, ao invés de ser ordenado previamente por nossa

consciência voluntarista. Friedrich Schlegel escreve que “a poesia romântica é,

entre as artes, aquilo que o chiste é para a filosofia, e sociedade, relacionamento,

amizade e amor são na vida”100.

Para Octavio Paz, “no fundo desta idéia vive ainda a antiga crença no

poder das palavras: a poesia pensada e vivida como uma operação mágica,

destinada a transmutar a realidade”, completando que, aqui, “o poema não é

apenas uma realidade verbal: é também um ato”101. Este ato era o que fazia da

linguagem o âmbito crucial de todo o pensamento do primeiro romantismo

alemão. Religar-nos ao mundo cuja história trouxera a fratura que arde no coração

96 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 69.97 F. Hölderlin, “A voz do povo”, in Poemas (São Paulo, Companhia das Letras, 1991), p. 141.98 F. Hölderlin, “O adeus”, in Poemas (São Paulo, Companhia das Letras, 1991), p. 123.99 Sigmund Freud, “Os chistes e sua relação com o inconsciente”, in Edição Standard Brasileiradas obras psicológicas completas – v. VIII (Rio de Janeiro, Imago, 1975), p. 192.100 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 65 (Athenäum,Fr. 116).101 Octavio Paz, Os filhos do barro (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), p. 85.

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moderno era o que poderiam fazer as palavras, desde que não ficassem fixadas em

fórmulas precisas porém sem graça – e a graça é sempre divina.

No começo do secular “desencantamento do mundo”, os primeiros

românticos alemães não persistiam dizendo que Deus garantia o sentido pleno da

vida. Entretanto, acreditavam que, se não fôssemos capazes sequer de dizer

poeticamente a sua ausência, provavelmente não teríamos nem como habitar o

espaço aberto que aí surgia, não perceberíamos, como disse Heidegger, que

“também esta fatalidade da ausência do deus constitui um modo como o mundo

mundifica”102. Religião, neste contexto, seria a ação sem fim pela qual o homem

busca a completude que, porém, jamais é dada a ele. Por isso, Novalis afirmou

que a religião “é trágica e, contudo, infinitamente doce”103. Resistiam, assim, os

primeiros românticos alemães à estreiteza da concepção científica moderna de

linguagem, acreditando, como Freud observou depois, que “o mundo inteiro era

animado, e a ciência, que surgiu tão mais tarde, muito teve de fazer para mais uma

vez despir parte do mundo de sua alma; na verdade, mesmo nos dias de hoje, ela

não completou essa tarefa”104. Diriam os românticos: ainda bem, pois então há

poesia entre nós.

102 Martin Heidegger, A origem da obra de arte (Lisboa, Edições 70, 1989), p. 35.103 Novalis, “Seleção dos fragmentos e estudos”, in A cristandade ou a Europa (Lisboa, Antígona,2006), p. 93.104 Sigmund Freud, “Moisés e o monoteísmo”, in Edição Standard Brasileira das obraspsicológicas completas – v. XXIII (Rio de Janeiro, Imago, 1975), p. 137.

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Fúria apaixonada:

arte e filosofia na contramão da tradição

Podem arte e filosofia entrar em uma relação amorosa? Se julgarmos pela

tradição ocidental de pensamento, provavelmente diremos que não. Mesmo

“naquilo que se chama filosofia da arte falta habitualmente uma das duas: ou a

filosofia, ou a arte”1, observou Friedrich Schlegel. Este diagnóstico é decisivo

para compreender o que estava em causa para os primeiros românticos alemães.

Eles buscavam construir uma linguagem em que o caráter criativo da arte e o

reflexivo da filosofia estivessem juntos, fosse em harmonia ou em combate.

“Toda a história da poesia moderna é um comentário contínuo ao seguinte breve

texto da filosofia: toda arte deve se tornar ciência e toda ciência, arte; poesia e

filosofia devem ser unificadas”2, escreveu Friedrich Schlegel.

Já aparece, aqui, a compreensão histórica que os primeiros românticos

tinham de si mesmos. Eram modernos. Confirmam, assim, o diagnóstico

contemporâneo de Habermas, para o qual “é no domínio da crítica estética que,

pela primeira vez, se toma consciência do problema de uma fundamentação da

modernidade a partir de si mesma”3. Sem o Deus tradicional para fundamentar o

sentido das coisas, sobrava para a época moderna achar a si própria e por si

própria. Segundo Habermas, ainda, “a modernidade não pode e não quer tomar

dos modelos de outra época os seus critérios de orientação”, ou seja, “vê-se

referida a si mesma, sem a possibilidade de apelar para subterfúgios”4. Fazer-se a

si mesma era a tarefa moderna que, particularmente para os primeiros românticos

alemães, só poderia se dar no âmbito da linguagem, onde o próprio homem se faz

e se desfaz. Esta linguagem, como vimos, viria da junção entre arte e filosofia.

1 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 22 (Lyceum, Fr.12).2 Ibid., p. 38 (Lyceum, Fr. 115).3 Jürgen Habermas, O discurso filosófico da modernidade (São Paulo, Martins Fontes, 2000), p.13.4 Ibid., p. 12.

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Nesse sentido, não encontramos, na origem do romantismo alemão, a

tentativa de purificar a arte da filosofia e a filosofia da arte. Nas obras de arte em

que exclamamos o quanto há de filosofia e nos escritos filosóficos em que somos

tomados pelo tom poético, não estariam, para os românticos, momentos casuais

ou desvios desafortunados nos quais se confundiria o que é arte com o que é

filosofia. Para eles, pelo contrário, tais momentos tornavam patente o que, em

geral, fica latente nos outros, a saber, que filosofia e poesia partilham o espaço da

linguagem em que se inventam a si mesmas e que, portanto, jamais está definido

de antemão, no sentido ontológico, onde fica uma e onde fica outra. São as

próprias filosofia e poesia que criam sua separação dentro de sua origem comum,

que é a linguagem. Podem, portanto, também tentar permanecer na proximidade

desta origem.

Tal operação, contudo, colocava-se na contramão do que ensinara toda a

tradição do pensamento ocidental, que sempre separara, cuidadosamente, a

filosofia de um lado e a arte de outro. Para compreender a singularidade do

primeiro movimento romântico em sua exigência de que a arte fosse filosófica e a

filosofia artística, portanto, seria preciso ter a dimensão da cisão entre elas que

vigorava até então. Embora existam exceções, filosofia e arte foram em geral, de

Platão a Hegel, mantidas pretensamente à distância uma da outra, ao contrário do

que fizeram os primeiros românticos alemães.

*

No começo de nossa tradição ocidental, Platão já falava da “antiga

inimizade” entre arte e filosofia. Para ele, “vem de longa data a querela entre

poesia e filosofia”5. Sua contribuição, aliás, em nada ajudou para desfazer a

querela. Pelo contrário, acirrou a oposição, condenando a arte em nome da

filosofia e, por fim, expulsando os poetas da república ideal aí imaginada. Esta

condenação era crucial para Platão, o que mostra que, se censurava a poesia, não

era por considerá-la sem importância mas, ao contrário, porque reconhecia seu

poder e, por isso, seu perigo. Para ele, a disputa entre arte e filosofia aparece com

5 Platão, A república (Belém, EDUFPA, 2000), p. 451 (607b-607c).

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cores vivas neste momento histórico diante da força da poesia de Homero, que se

torna o inimigo a ser combatido, ainda que admirado. É o problema da formação

que está em jogo, por conta do papel do aedo Homero como pedagogo entre os

gregos. Para Platão, a poesia corrompia o entendimento dos homens, prejudicando

a educação, a não ser daqueles que conhecessem sua verdadeira natureza, ou seja,

dos filósofos. Esta natureza da poesia é que justificaria sua condenação. Poesia é,

para Platão, imitação.

Só por isso, o artista “pode fazer tudo quanto faz particularmente cada

obreiro”6. Por exemplo: o pintor faz sapatos, mesas, bolos, vasos. Pois tudo que

ele faz é imitação, ou seja, o faz ao modo de quem carrega um espelho: “num

abrir e fechar de olhos, farás o sol e tudo o que há no céu; num segundo, a terra;

rapidamente farás a ti mesmo e os outros animais, os móveis, as plantas e tudo o

mais”. Só que “tudo isso não passa de aparência; carece de existência real”7. Esta

carência de realidade da arte leva à sua desqualificação. Ela seria radical pois a

arte, ao imitar as coisas que vemos, estaria imitando, na verdade, coisas que já

são, elas mesmas, imitações. É que, para Platão, os fenômenos sensíveis aos quais

temos acesso pelo nosso corpo são cópias derivadas das essências supra-sensíveis

às quais temos acesso pelo nosso pensamento. Em outras palavras, as coisas que a

arte imita não são as originais, mas já são cópias do que Platão chama de idéias,

estas sim a verdadeira realidade, cuja localização é metafísica, ou seja, além do

mundo físico.

Por isso, a arte é cópia da cópia. Se Deus cria as idéias universais, elas

fornecem os modelos que o obreiro tem em mente ao fabricar as coisas singulares.

Por sua vez, o artista imita tais coisas. Do mais alto para o mais baixo, teríamos:

criador, fabricador e imitador. Em suma, a arte nem sequer imitaria a realidade,

mas apenas sua aparência. “Logo, a arte de imitar está muito afastada da verdade,

sendo que por isso mesmo dá a impressão de fazer tudo”8. Esta crítica de Platão à

capacidade de “fazer tudo” aproxima os artistas daqueles que eram seu alvo

preferido: os sofistas. É como se os artistas, não mais no plano retórico em que

agiam os sofistas, reproduzissem o mesmo mal que eles, pairando sobre ambos a

6 Ibid., p. 434 (697c).7 Ibid., p. 434-435 (697d-597e).8 Ibid., p. 438 (598b).

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suspeita de charlatanismo. “Só criam fantasmas, não o verdadeiro ser”9, afirma

Platão. Eles fazem o não-ser se passar por ser, o falso se passar por verdadeiro.

Enganam.

Provavelmente, esta preocupação de Platão deriva, historicamente, de que

ele foi contemporâneo da descoberta de técnicas realistas de representação nas

artes, especialmente na pintura de retratos e na construção de cenários com efeitos

de perspectiva (trompe l’oeil). Tais técnicas eram capazes de reproduzir, na

superfície bidimensional, os objetos tridimensionais. Ficou famosa, a este

respeito, a anedota segundo a qual Platão quando criança, dirigindo-se certa vez a

uma mesa com maçãs no intuito de comer uma delas, teria enfiado os dedos numa

pintura, enganado então pela reprodução pictórica naturalista.

Por ser significativa, a anedota vale mais como sinal da consideração de

Platão sobre a arte do que pela curiosidade biográfica. Ela revela que a arte é

condenada por seu efeito ilusionista, já que, enquanto imitação, engana. Pois a

arte não apenas abandona a reprodução da realidade verdadeira, que é metafísica e

supra-sensível, como, pior ainda, nos distancia mais dela, ao multiplicar, como

cópia da cópia, as coisas sensíveis em suas aparências fugidias. Para Platão, a

grande tarefa filosófica e educacional do homem é “a ascensão da alma para a

região inteligível”10, ou seja, ir além do “domicílio carcerário” que é o mundo

aparente percebido pela visão do corpo para alcançar, pela contemplação

espiritual, a compreensão conceitual do que as coisas são em seu ser verdadeiro.

Mas a arte agiria no sentido oposto. Ela estimularia o arraigamento nas sensações,

atrapalhando a pedagogia que deve operar a conversão da alma na direção do

mundo supra-sensível.

É que as artes da imitação, segundo Platão, “são companheiras, amigas e

associadas da porção do nosso íntimo mais afastada da razão e em que nada se

encontra de são e verdadeiro”11. Para ele, a arte incita a parte inferior da alma, de

menor valia, passional e maldosa, que se opõe justamente à parte racional. Por

conseqüência, acusa a poesia “de poder estragar as pessoas sérias”12. Na arte, sob

o pretexto de estarem sendo tratadas as vidas alheias, “a porção melhor de nossa

natureza, por não estar suficientemente educada pela razão e pelo hábito, relaxa a

9 Ibid., p. 438 (599a).10 Ibid., p. 322 (517b).11 Ibid., p. 445 (603b).12 Ibid., p. 449 (605c).

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vigilância”. Neste caso, a “parte choramingas” predomina, nos fazendo aplaudir e

prestigiar até aquilo que condenaríamos no caso de as vidas tematizadas serem as

nossas próprias. Só que “depois de alimentar e fortificar nossa sensibilidade no

sofrimento dos outros, não é fácil conter a nossa em limites razoáveis”13. Logo, a

arte é danosa para a alma.

Em resumo, Platão condena a arte em nome da filosofia duas vezes:

primeiro através do referencial do conhecimento, já que, por ser imitação, ela não

nos leva até a verdade; e depois através do referencial da moral, já que ela

estimula a parte inferior da alma, que é irracional. Em outras palavras: do lado da

ontologia, fica firmado que “todos os poetas, a começar por Homero, não passam

de imitadores de simulacros da virtude e de tudo o mais que constitui objeto de

suas composições, sem nunca atingirem a verdade”, enquanto, do lado da ética, a

arte “não é coisa séria, mas simples brincadeira”14, é leviana.

*

No começo de nossa tradição, Platão separou arte e filosofia, deixando a

primeira sob o signo do charlatanismo e a segunda sob o da pedagogia. Concluiu

que seria melhor tirar o direito de cidadania da arte. Na ponta final de nossa

tradição, pelo contrário, Hegel aproximou a arte da filosofia, ao colocar ambas

junto com a religião dentro da mais alta expressão da realidade, aquela que ele

chamava de espírito absoluto. Se Platão achava que a arte nos afastava da

verdade, para Hegel a verdade podia ser representada na arte.

De acordo com Platão, a arte era a versão copiada e decaída do mundo

sensível. Para Hegel, pelo contrário, a arte é o lugar justamente onde a

sensibilidade é redimida do caos, da casualidade e da atrofia em que se vê metida

na maioria das vezes. Para ele, “a arte arranca a aparência e a ilusão inerentes a

este mundo mau e passageiro (…) e lhe imprime uma efetividade superior nascida

do espírito”, de onde conclui: “deve-se atribuir aos fenômenos da arte a realidade

superior e a existência verdadeira, que não se pode atribuir à efetividade

cotidiana”. Por isso, Hegel prossegue afirmando que a arte pode

13 Ibid., p. 450 (606b).14 Ibid., p. 441 (600e), p. 444 (602b).

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exprimir o divino, os interesses mais profundos da humanidade, as verdades maisabrangentes do espírito. Os povos depositaram nas obras de arte as suas intuiçõesinteriores e representações mais substanciais, sendo que para a compreensão dasabedoria e da religião a bela arte é muitas vezes a chave – para muitos povosinclusive a única. Esta determinação a arte possui em comum com a religião e afilosofia, mas de um modo peculiar, pois expõe sensivelmente o que é superior.15

Na medida em que a arte envolve não apenas os elementos naturais, como

o mármore ou as cores, mas também o espírito humano que dá forma a esses

elementos, ela oferece a sensibilidade “libertada do esqueleto de sua mera

materialidade”. Nas obras de arte, a necessidade que marca a natureza sensível

entraria em contato com a liberdade que marca o homem pensante. Sendo assim,

então, “a obra de arte se situa no meio, entre a sensibilidade imediata e o

pensamento ideal”16. Mediação é o que ela faz. Resultado: “ela ainda não é puro

pensamento, mas apesar de sua sensibilidade, também não é mais mera existência

material, como pedras, plantas e vida orgânica”17.

Hegel concede à arte, portanto, lugar importante no seu sistema filosófico.

No entanto, reeditando aquela “antiga inimizade” de que falava Platão, avisa que a

arte “ainda não é puro pensamento”. Por isso, adverte: “ao atribuirmos à arte esta

alta posição, devemos, entretanto, lembrar que ela não é (…) o modo mais alto e

absoluto de tornar conscientes os verdadeiros interesses do espírito”18. É que, na

arte, a verdade precisaria ainda poder transitar para o âmbito da sensibilidade e

nele se adequar, já que ela necessita da apresentação material como obra. Esta

forma da arte a limita a certos conteúdos determinados, já que ela não poderia

expressar a versão mais profunda da verdade, que não é nem aparentada e nem

simpática ao sensível. Se os deuses gregos são exemplos de verdade da arte, este

já não era o caso do Deus cristão, pois ele não pode ser bem recebido e nem

expresso no elemento material. Menos ainda é este o caso da filosofia racional

moderna, em seu exercício do puro pensamento conceitual.

Filosofia, religião e arte, portanto, constituem as expressões máximas do

espírito. Mas não em pé de igualdade. Elas estão claramente hierarquizadas, da

mais para a menos importante, respectivamente. Desse modo, Hegel abraça a arte

na história que constitui a formação do espírito absoluto, mas a coloca no passado,

15 F. W. G. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 33.16 Ibid., p. 59.17 Ibid., p. 59.18 Ibid., p. 34.

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como expressão da verdade já não mais essencial para sua modernidade. Elogiada

e venerada, a arte, porém, já teria cedido lugar, como expressão mais importante

do espírito absoluto, para a religião e, depois, para a filosofia. Era atrasada. Hegel

acolhe a arte no sistema de seu pensamento, mas para colocá-la, ainda uma vez,

numa dimensão periférica. Se a filosofia seria capaz de compreender a arte, a arte

não seria capaz de compreender a filosofia. Esta inferioridade da arte deixa de ser

entendida só espacialmente, como em Platão, para ser vista também

temporalmente: a arte, por estar abaixo da filosofia, está antes dela – fadada a

ficar para trás. Por mais fundamental que seja na constituição passada da história

do espírito da humanidade, a arte permanece, para Hegel, sob o signo do “ainda

não”: ainda não é o ponto mais alto, no qual o espírito sabe a si mesmo

absolutamente – ainda não é filosofia.

*

Tendo escrito antes de Hegel, os primeiros românticos alemães

concordariam com ele, em parte, quanto ao contato da arte com o sensível, que

não o copia, mas o enforma. Só que essa operação é diferente para eles, pois ela

não busca salvar as coisas sensíveis de sua pobre materialidade, já que esta não

seria assim tão pobre. Todos os produtos da arte são, para os românticos, poemas

escritos sobre a poesia primeira do mundo.

E que são eles ante a poesia sem forma e consciência que se faz sentir nasplantas, que irradia na luz, que sorri na criança, cintila na flor da juventude, ardeno peito amoroso das mulheres? Esta contudo é a originária, a primeira, sem aqual certamente não haveria nenhuma poesia das palavras. Nós todos, humanos,não temos nenhum outro objeto e nenhuma outra matéria de toda ação e alegria,sempre e eternamente, que não o poema único da divindade, de que somostambém parte e flor – a terra.19

Essas palavras de Friedrich Schlegel expõem o olhar romântico para as

coisas sensíveis sem forma ou consciência, exuberantes em seu colorido e na sua

multiplicidade abundante. Não caberia à arte, portanto, socorrer esse mundo,

como queria Hegel. Nem, contudo, restaria a ela apenas copiá-lo, como acusara

Platão. Seu papel seria o de fazê-lo ressurgir com forma e consciência, adentrando

19 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 30.

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a cultura do homem em sua relação com o que a cerca. “É essencialmente próprio

a toda arte associar-se ao cultivado”20, afirmou Schlegel. Já que somos parte da

natureza e ela mesma é criadora, também fazemos poemas e os lemos –

cultivamos. É graças a ela, e não em seu socorro, que fazemos arte. “Somos

capazes de perceber a música do infinito mecanismo, de compreender a beleza do

poema, porque em nosso íntimo também vive uma parte do poeta, uma fagulha de

seu espírito criador, que (…) nunca cessa de arder com secreta violência”21.

Podemos sentir, aqui, ecos do ensinamento aristotélico muitas vezes

esquecido de que “a arte, por um lado, completa aquilo que a natureza não é capaz

de elaborar, e, por outro, imita as coisas naturais”22. Hemsterhuis, filósofo

holandês bastante admirado no romantismo, quase copia essa sentença. Para ele,

“o primeiro fim de todas as artes é imitar a natureza, e o segundo é acrescentar à

natureza produzindo efeitos que ela geralmente não produz, ou não é capaz de

produzir”23. Esses dois lados ou fins da arte, para os primeiros românticos

alemães, explicavam-se no mesmo princípio. Imita-se não o produto natural já

acabado na matéria sensível do mundo, e sim o fulgor que pulsa nesta natureza

para que ela crie constantemente este mundo. Já que esta criação divina é sem

forma e consciência, a arte completa o que a natureza não sabe elaborar: a forma e

a consciência. Mas não sabe apenas em parte, pois, enquanto vida, ela o elabora

no próprio homem, que a ela pertence.

Modelo e cópia deixavam de ser o par explicativo do contato entre a

verdade e a arte. Esta faz parte, antes, do próprio movimento pelo qual a verdade

cumpre seu ciclo de vida enquanto criação, natural e humana. Se a natureza é, por

vezes, divinizada pelos românticos, é justamente porque, assim, eles tentam

pensá-la para além da objetividade científica empobrecedora, que se colocaria

fora do homem enquanto sujeito – “é este suave reflexo da divindade no homem a

própria alma, a faísca de toda poesia”24.

Tanto os românticos como Hegel compartilham a valorização ontológica

da arte, em contraposição à sua desqualificação por Platão. Só que os românticos

vão ainda mais longe, pois nem sequer colocam, como Hegel, a arte abaixo da 20 Ibid., p. 35.21 Ibid., p. 30.22 Aristóteles, Física – Livros I e II (São Paulo, IFCH/Unicamp, s/d), p. 93 (199a).23 Franz Hemsterhuis, “Carta sobre a escultura”, in Sobre o homem e suas relações (São Paulo,Iluminuras, 2000), p. 23.24 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 54.

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filosofia. Eles querem “pôr a poesia em contato com a filosofia”25. Buscam

relacionar amorosamente arte e filosofia. Porém, a despeito dessa singularidade,

seu anseio básico ainda é pela verdade e pelo absoluto, como era para Platão e

para Hegel. Mas acrescentam: “uma vez que se tenha predileção pelo absoluto e

não se possa deixar disso, então não resta outra saída senão se contradizer sempre

e vincular extremos opostos”26. Se levarmos em conta que, para Friedrich

Schlegel, “poesia e filosofia são apenas extremos”27, então fica claro que vinculá-

las é a aproximação romântica do absoluto, mesmo que seja contraditória.

Trata-se de “aproximação” porque, para os românticos, não se alcança o

absoluto absolutamente, mas só relativamente ou, ainda, pela via da contradição, o

que não seria tolerável para Hegel, cuja dialética foi a estratégia para assegurar o

respeito pelo princípio da não-contradição, resolvendo na figura da síntese do

saber absoluto a oposição de tese e antítese. Heidegger dizia que “o pensamento

de Hegel pretende colocar as contradições, enquanto absoluto, numa fluidez geral

e obrigá-las assim a resolverem-se”28. No caso dos românticos, a contradição não

vai embora, permanece “sempre”. Bem ao contrário da soberba confiança de

Hegel quanto às nossas chances de alcançar o absoluto, ou seja, de descobrir as

grandes verdades, para Friedrich Schlegel “elas nunca podem ser expressas em

sua totalidade”29. Toda compreensão do absoluto jamais seria, ela mesma,

absoluta.

Poderíamos sentir, aqui, a influência de Kant, por conta de sua interdição

feita ao conhecimento das coisas em si mesmas pelos homens. Não resta dúvida

de que sua crítica às pretensões do saber humano foi decisiva para os primeiros

românticos, bem como o ceticismo. Porém, o acesso ao absoluto, para eles, não é

totalmente interditado. Sua posição é mais complexa do que a simples dualidade

entre ser ou não ser possível chegar à verdade. É neste contexto que podemos

entender a seguinte declaração de Schlegel: “na árvore genealógica dos conceitos

primordiais de Kant sinto com desagrado a falta da categoria

25 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 64 (Athenäum,Fr. 116).26 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 52 (Fr. 26).27 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 156 (Idéias, Fr.96).28 Marrtin Heidegger, Hinos de Hölderlin (Lisboa, Instituto Piaget, 2004), p. 127.29 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 534.

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‘aproximadamente’”30. Nossa relação com o absoluto, para os românticos, não

seria nem de desistência e nem de alcance, mas da ordem da aproximação.

Por isso, Schlegel frisava que só há compreensão junto com falta de

compreensão, ou não haveria o que ser compreendido. Elas dependem uma da

outra, só são o que são uma pela outra, em especial quando se trata do absoluto.

Não há entendimento total.

Sim, mesmo a posse mais deliciosa dos homens, sua própria satisfação interior,depende, em última análise, como qualquer um pode facilmente verificar, dealgum ponto de força que deve ser deixado na obscuridade, mas que, emcontrapartida, suporta e sustenta o todo. Esta força se perderia no instante em quefosse sujeita à compreensão. De fato, seria muito ruim para você se, como vocêquer, o mundo todo devesse se tornar inteiramente seriamente compreensível. Enão é este mundo inteiro, sem fim, construído pelo entendimento a partir daincompreensão e do caos?31

Dessa perspectiva, aquilo que, para Hegel, era o defeito da arte não

consegue ser superado pela filosofia, já que esta também não alcança a

compreensão completa e nem é perfeitamente adequada para acolher o conteúdo

mais elevado do absoluto. Günter Figal chegou a dizer que “a defesa mais eficaz

no interior da discussão hermenêutica do incompreensível remonta a Friedrich

Schlegel”32. Filosofia não é só a ordem suprema do entendimento, para os

românticos, mas também caos. “Para os primeiros românticos, sistemas cuja auto-

referência não sofra constantemente uma interrupção caótica não permitem

quaisquer vida, variedade e abundância de fenômenos”, sublinha Menninghaus,

acrescentando que, “em oposição à ordem rígida na política, na filosofia e na

literatura, Friedrich Schlegel e Novalis exigem uma nova mistura de caos e

ordem”33. No âmbito da linguagem, a ironia, a fragmentação, o chiste ou a

alegoria eram formas desta interrupção caótica na ordem da filosofia e da arte. Era

o processo reflexivo e compreensivo que, assim, incluía em si mesmo a nomeação

de sua impossibilidade de se completar.

Para os românticos, “quando na comunicação dos pensamentos alternamo-

nos entre absoluto entendimento e absoluto não-entendimento, isso já pode ser 30 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 32 (Lyceum, Fr.80).31 Friedrich Schlegel, “Über die Unverständlichkeit”, in Kritische Schriften (München, CarlHanser Verlag, 1970), p. 539.32 Günter Figal, Oposicionalidade (Petrópolis, Vozes, 2007), p. 130.33 Winfried Menninghaus, “Mitologia do caos no romantismo e na modernidade”, in Estudosavançados [online] (v. 10, n. 27, 1996), p. 128.

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chamado uma amizade filosófica”34. Essa fórmula contraditória torce nossa

compreensão habitual, pois o absoluto é partido entre entendimento e não-

entendimento, sem que possamos fixá-lo em algum dos dois pólos. Na

comunicação, portanto, não há clareza completa, mas sim alternância – entre a

ordem e o caos. Eis o que é a filosofia: permanecer nesta alternância. Sua força

não está em tudo compreender, mas em suportar que toda compreensão é parcial

e, portanto, deixa algo fora de si ainda a ser compreendido. Deve pressentir o

caos, pois

quem ainda não chegou ao claro conhecimento de que, inteiramente fora de suaprópria esfera, ainda pode haver uma grandeza para a qual lhe faltacompletamente o sentido; quem nem ao menos tem pressentimentos obscuros daregião cósmica do espírito humano onde essa grandeza pode aproximadamenteser localizada: este é ou sem gênio em sua esfera, ou ainda não chegou, em suaformação, até aquilo que é clássico.35

Para os primeiros românticos, o caos não era só oposição à ordem, mas

também o que a acompanha e sem o qual ela não seria o que é. “Faz parte da

pluralidade não apenas um sistema abrangente, mas também sentido para o caos

fora dele”36, afirma Friedrich Schlegel. Logo, caos não é sinônimo de desordem.

“Somente é um caos aquela confusão da qual pode surgir um mundo”37. Se caos é

confusão, é porque, nele, há fusão conjunta de tudo o que é em sua diversidade

sem fim. Nele, age a ordem que, porém, jamais o desfaz para sempre. Por

conseqüência, a ordem é esforço que, a cada vez, volta. Daí surge o mundo. Daí

surgem os mundos. Pois “a mais elevada beleza, a mais elevada ordem, é,

justamente, a do caos, um caos que só espera o contato do amor para se desdobrar

em um mundo harmônico”38. Não seria com este espírito que Nietzsche, depois,

diria que “é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela

dançante”39?

*

34 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 44 (Fr. 20).35 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 25 (Lyceum, Fr.36).36 Ibid., p. 152 (Idéias, Fr. 55).37 Ibid., p. 153 (Idéias, Fr. 71).38 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 51.39 Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000), p. 41.

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Entre a ordem e o caos, o entendimento e a ausência de entendimento, os

primeiros românticos alemães fizeram da alternância e da contradição seu jeito de

pensar. Nada mais coerente, portanto, que constituíssem este jeito de pensar na

fronteira das classificações habituais dos discursos da tradição, especialmente

entre a arte e a filosofia. Seus escritos têm forma híbrida. Se precisarem deixar a

arte para serem filosofia ou deixar a filosofia para serem arte, simplesmente

deixarão de ser o que são: arte e filosofia. Não se tratava, é claro, de qualquer

organização corporativa, como se poetas e filósofos devessem se juntar – mesmo

que isso pudesse acontecer. Importava que o caráter filosófico da arte e o artístico

da filosofia fossem exercitados. Se, ao contrário de Platão, os primeiros

românticos não achavam a arte mera brincadeira infantil, mas sim reflexão,

tampouco acreditavam, com Hegel, que a filosofia não tivesse sua própria dose de

criação poética.

Esta dupla distância, da ponta inicial e da final de nossa tradição ocidental,

define o modo pelo qual o primeiro romantismo alemão compreende a relação

entre arte e filosofia. Se a arte, como a filosofia, reflete; por sua vez a filosofia,

como a arte, cria. São ambas solidárias, não inimigas, na busca, por dentro da

linguagem, da verdade ou do absoluto. Nem a arte seria ingênua e nem a filosofia

abstrata: a arte, como a filosofia, pensa e a filosofia, como a arte, escreve. Essa foi

a grande novidade do romantismo. De Platão a Hegel, a superioridade da filosofia

sobre a arte trazia consigo o motivo de que, enquanto a primeira era capaz de nos

levar além da linguagem, a segunda nos mantinha presos a ela. Toda arte viria

maculada com a materialidade sensível do mundo. Não seria, assim, pura o

suficiente para dar acesso ao reino da idéia ou do espírito. Tanto em Platão como

em Hegel, a despeito da diferença entre os dois, o rebaixamento ontológico da arte

em relação à filosofia está fundamentado no sentido metafísico do pensamento,

pelo qual ele devia nos levar além do mundo físico sensível, fosse para superá-lo

ou suprassumi-lo.

No caso da estética de Hegel, podemos notar o exato momento em que

esse critério metafísico determina o abandono da arte e a entrada na filosofia. Para

ele, “a arte poética é a arte universal do espírito tornado livre em si mesmo e que

não está preso ao material exterior e sensível para a sua realização”40. No sistema

40 F. W. G. Hegel, Cursos de estética I (São Paulo, Edusp, 2001), p. 102.

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das artes, portanto, a poesia ocupa o lugar superior já por ser a mais metafísica de

todas, mais desprendida do sensível e do material. “Mas, exatamente neste estágio

supremo, a arte também ultrapassa a si mesma, na medida em que abandona o

elemento da sensibilização reconciliada do espírito, e da poesia da representação

passa para a prosa do pensamento”41. Essa prosa do pensamento seria a filosofia,

livre de qualquer resíduo mundano, pura na sua adequação à verdade.

Porém, como poderia a filosofia ser pura, se ela já é prosa? Enquanto

linguagem e enquanto escrita, não estaria a filosofia, como a arte, presa ao

sensível? Foram essas as perguntas dos primeiros românticos alemães. Daí sua

valorização da retórica, da gramática e da filologia. Eram modos de

aprofundamento no que chamavam de “doutrina do espírito e da letra”42, sem

detrimento da segunda pelo primeiro. Para os românticos, filosofia e linguagem

não se separam. Podemos pensar a favor da linguagem ou contra a linguagem,

mas não sem a linguagem. Então, a questão é como despertar na linguagem o seu

fundo sem fundo, no qual ela deixa de ser apenas o código já familiar ao nosso

conhecimento para se tornar a experiência de estranheza em que a criação de

alguma diferença ocorre.

É comum, neste contexto, destacar a centralidade da tradução para os

primeiros românticos, embora, enquanto estivessem juntos no grupo de Iena,

tenham escrito pouca coisa de vulto sobre o assunto. Importava, porém, que a

tradução tinha a capacidade de tornar o estrangeiro familiar e o familiar

estrangeiro. Era ainda o princípio da alternância que estava em jogo, já que a

tradução despertaria, em nossa língua, outra e, na outra língua, a nossa.

Deslocamentos assim eram a essência do romantismo, segundo Novalis.

O mundo precisa ser romantizado. Assim reencontra-se o sentido originário.Romantizar nada é, senão uma potenciação qualitativa. O si-mesmo inferior éidentificado com um si-mesmo melhor nessa operação. Assim como nós mesmossomos uma tal série qualitativa. Essa operação é ainda totalmente desconhecida.Na medida em que dou ao comum um sentido elevado, ao costumeiro um aspectomisterioso, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito um brilhoinfinito, eu o romantizo – Inversa é a operação para o superior, desconhecido,místico, infinito…43

41 Ibid., p. 102.42 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 61 (Athenäum,Fr. 93).43 Novalis, “Fragmentos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 142 (fr. 105).

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Romantizar é traduzir, desde que compreendamos a palavra em sentido

amplo. É traduzir o pequeno no grande e o grande no pequeno, o superior no

inferior e o inferior no superior, o conhecido no desconhecido e o desconhecido

no conhecido, a arte na filosofia e a filosofia na arte, o homem no mundo e o

mundo no homem. Foi o que Antoine Berman chamou de “versabilidade

infinita”44 da tradução no romantismo. Novalis gostava de dizer que tudo podia

ser traduzido, não apenas livros. É claro que as traduções românticas

especificamente de livros foram marcos culturais definitivos na cultura ocidental,

como as que August Schlegel fez de Shakespeare, mas compreendemos, agora,

que não é apenas neste sentido que este grupo de autores prezava tal atividade.

Traduzir era, em certo sentido, a ação da filosofia romântica: “elevação e

rebaixamento recíprocos”45.

Este significado amplo da tradução transformou também seu sentido

estrito: a obra original à qual a tradução para outra língua deveria ser fiel já não é

considerada bem original. Ela já é tradução do poema da própria vida. É comum

tradutores comentarem a dificuldade e até impossibilidade de verter uma língua

em outra. Tal dificuldade, porém, já começa antes. Ela começa na tradução que a

obra original faz da linguagem das coisas para a linguagem humana. Eis a

primeira tradução. Ela não está apenas por trás de todas as outras mas, em certo

sentido, ocorre novamente em todas as outras. Toda tradução tomaria contato,

assim, com a tradução primeira que em geral chamamos de original.

Nosso problema é achar que “a tradução pretende servir ao leitor”46,

equívoco que Benjamin apontou ao explicar que nem a obra de arte original devia

ter o público em vista. Escreve-se porque a linguagem das coisas torna possível a

tradução na linguagem humana. Traduz-se porque a obra em certa língua torna

possível sua tradução em outra. Nem a obra original alcança completamente as

coisas e nem a tradução aquilo que a original era. Não por acaso, os românticos

falavam do “gosto sublime em sempre preferir coisas à segunda potência”, como

“cópias de imitações, juízos sobre resenhas, adendos a suplementos, comentários

44 Antoine Berman, “Revolução romântica e versabilidade infinita”, in A prova do estrangeiro:cultura e tradução na Alemanha romântica (Bauru, Edusc, 2002), p. 125-156.45 Novalis, “Fragmentos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 142 *Fr. 105).46 Walter Benjamin, A tarefa do tradutor (Rio de Janeiro, UERJ, 1994), p. 8.

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a notas”47. São operações sublimes, e não belas, alegóricas e não simbólicas,

porque apontam para o que não se completa, e mesmo assim se faz. Por isso,

“aquilo que se perde em traduções de hábito boas ou excelentes é o melhor”48: a

estranheza.

Nesse sentido, a situação da tradução é semelhante à da arte, porque a da

arte é semelhante à da tradução. Tradução é criação. Por isso, Friedrich Schlegel

afirmou que, na sua época, “a tradução dos poetas e a reconstituição de seus

ritmos tornaram-se arte”49. Nada mais coerente, já que a própria arte, para os

primeiros românticos, não era, enquanto concretização de obras, possível. Seus

escritos costumam ser críticas, cartas, fragmentos, diálogos ou, ainda, traduções,

sendo que, como apontou Antoine Berman, “têm todos em comum o fato de

remeter a um outro ausente: a tradução ao original, os fragmentos a um todo, as

cartas e os diálogos a um referente externo do qual eles tratam, a crítica ao texto

literário ou à totalidade do sistema literário”50. Há falta, pois a origem é, por

definição, aquilo que sempre falta. Só aparece como ausência. Esta origem falta,

portanto, já na obra “original”, que partilha então a precariedade que, em geral,

concedemos só à tradução.

Toda a precariedade da obra ou de sua tradução, porém, não se devem a

elas não satisfazerem certa experiência de totalidade ou precisão a que estariam

dispostas. Novalis explicou que as boas traduções “não nos dão a obra de arte

efetiva, mas o ideal dela”51. Tradução é potencialização crítica do projeto que a

obra primeira já colocara em jogo. Eis o âmbito da tradução: a crítica. Novalis

afirma que este tradutor “tem de ser o poeta do poeta e assim poder fazê-lo falar

segundo sua própria idéia e a do poeta ao mesmo tempo”52. Intensificar e

desdobrar a obra original é o que faz a tradução, assim como a obra original faz

com a vida. Só que “é preciso para isso uma cabeça, onde espírito poético e

espírito filosófico se interpenetraram em sua inteira plenitude”53, observa Novalis.

47 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 63 (Athenäum,Fr. 110).48 Ibid., p. 31 (Lyceum, Fr. 73).49 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 45.50 Antoine Berman, A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica (Bauru,Edusc, 2002), p. 128-129.51 Novalis, “Pólen”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 72 (Fr. 68).52 Ibid., p. 72 (Fr. 68).53 Ibid., p. 72 (Fr. 68).

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Traduzir, como dizíamos, é alternar. Filosofia e poesia foram a alternância

dentro da qual foi construído todo o pensamento do primeiro romantismo alemão.

Nesse sentido, quando Hölderlin, possivelmente acompanhado de seus então

jovens colegas seminaristas Schelling e Hegel, escreve, no esboço conhecido

como “o mais antigo programa de sistema do idealismo alemão”, que “a filosofia

do espírito é uma filosofia estética”54, está em sintonia com os primeiros

românticos. Ele afirma que “os homens desprovidos de sentido estético são nossos

pseudo-filósofos”55. No romantismo, então, não se tratava apenas de elaborar uma

filosofia da arte. Estava em jogo compreender a arte de filosofar.

Em que sentido, porém, filosofia é arte? Primeiro, ela não pode ser

abarcada em classificações exteriores a si mesma. Segundo, ela não diz respeito à

“representação interior”56 subjetiva, seja emocional (pré-romantismo) ou racional

(Descartes, Kant). Terceiro, assim como “o expor, o apresentar, é a função da

arte”57, segundo Friedrich Schlegel, também a filosofia tem aí seu âmbito: na

apresentação da linguagem e não na representação da mente. Essa filosofia

dependeria, como a arte, de sentido estético. É como se os românticos tomassem a

sério, na formulação de Hegel de que a filosofia é a prosa do pensamento, tanto

seu caráter pensante quanto seu caráter literário de prosa.

*

Levar a sério o caráter de escrita da filosofia jamais foi a característica

forte dos filósofos da tradição, o que talvez ajude a compreender a singularidade

que, até hoje, complica a aceitação do pensamento dos primeiros românticos

alemães neste âmbito disciplinar. É famoso, por exemplo, o caso de Platão, com

seu repúdio à escrita e, por conseqüência, sua desvalorização do caráter concreto

de prosa da filosofia. Para ele, “quando vemos alguma composição escrita, ou seja

de um legislador, a respeito de leis, ou de outro indivíduo sobre assunto diferente,

é certeza não ter o autor levado muito a sério o seu trabalho”58, conforme aponta

em carta do próprio punho. Nesse sentido, seu mestre, Sócrates, seria o modelo 54 F. Hölderlin, “Esboço (O mais antigo programa de sistema do idealismo alemão)”, in KathrinRosenfield (org.), Filosofia & Literatura: o trágico (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001), p. 173.55 Ibid., p. 173.56 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 48.57 Ibid., p. 48.58 Platão, “Sétima carta”, in Diálogos: Fedro, Cartas… (Belém, EDUFPA, 2008), p. 185 (344c).

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ideal de filósofo, dado que nada deixou escrito e se contentava com o caráter

etéreo do vento do pensamento. “Por conseguinte, quem julgasse transmitir na

escrita uma arte e quem por sua vez a recebesse, como se dessas letras escritas

pudesse derivar algo de certo e seguro, mostraria muita ingenuidade”59, afirma

Platão.

Nesse mesmo sentido, porém, Platão, que tanto escreveu, poderia ser pego

na sua própria rede, por assim dizer. Mas, ao mesmo tempo, podemos observar

seu cuidado, por conta disso, com sua escrita. É possível, por exemplo, que a

escolha da forma do diálogo como apresentação de sua filosofia busque minorar e,

ao mesmo tempo, explicitar a deficiência dos textos escritos, que consiste,

segundo Platão, em que, “se, movido pelo desejo de aprender, os interrogares

sobre o que acabam de dizer, revelam-te uma única coisa e sempre a mesma”60.

Em certo sentido, a exposição dialógica tenta, contra a natureza fixa da própria

escrita, dar-lhe algo da mobilidade da fala. Não são pequenas as conseqüências de

ler Platão, ou qualquer outro filósofo, levando em conta esta dimensão literária

formal para compreender o conteúdo exposto.

Tendo isso em mente, o caso de Platão, de fato, é bastante complexo. E

não apenas porque, aqui e ali, são feitos elogios à arte, como à “superioridade da

educação musical, por calarem fundo na alma o ritmo e a harmonia”61. É mais

curioso, por exemplo, perceber que ele define a palavra poética como invenção

das musas62, tema recorrente na cultura grega, e que a verdadeira musa, afirma, é

a filosofia63. Estaria aí marcado o secreto encontro entre arte e filosofia no

pensamento de Platão? E o que dizer sobre ele afirmar ser “a filosofia a música

mais nobre”64? Não custa lembrar, com Nietzsche, “que o jovem poeta trágico

chamado Platão queimou, antes de tudo, os seus poemas, a fim de poder tornar-se

discípulo de Sócrates”65. Este passado de poeta, que Platão pretendeu apagar de

forma tão violenta para se tornar filósofo, reaparece, contudo, na grande

quantidade de mitos, alegorias e narrativas que ele expõe durante seu pensamento,

59 Platão, Fedro (Lisboa, Edições 70, 1997), p. 121 (275c).60 Ibid., p. 122 (275d).61 Platão, A república (Belém, EDUFPA, 2000), p. 160 (401d).62 Platão, Íon (Porto Alegre, L&PM, 2007), p. 33-34 (534a-534d).63 Platão, A república (Belém, EDUFPA, 2000), p. 365 (548b).64 Platão, Fedão (Belém, EDUFPA, 2002), p. 253 (61a)65 F. Nietzsche, O nascimento da tragédia (São Paulo, Companhia das Letras, 1992), p. 87-88.

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testemunhando, a despeito de sua posição doutrinária, a proximidade entre arte e

filosofia.

Mais que tudo, no entanto, é sua simples opção pela forma de exposição

do diálogo que já indica o zelo formal do grande poeta, cuja realização impecável

só confirma e que talvez seja tão responsável pelo vigor deste pensamento quanto

os conteúdos da doutrina, se é que estes poderiam ser o que são sem aquela. Não é

sem razão, portanto, que Friedrich Schlegel, em texto escrito na forma de uma

“conversa sobre a poesia”, coloque o personagem Lothario reagindo assim ao que

ouvira de um interlocutor: “ao mencionar a passagem da poesia à filosofia e da

filosofia à poesia, você citou Platão como poeta – pelo que a musa lhe

recompensará”66.

Por essas e por outras, Giorgio Agamben comentou que o confronto que

vem de longa data entre poesia e filosofia é “bem diverso de uma simples

rivalidade; ambas tentam apreender aquele inacessível lugar original da palavra,

em relação ao qual se vêem ameaçados, no homem falante, seu próprio

fundamento e sua própria salvação”67. Malgrado o objetivo declarado de Platão,

ele também deixou acontecer, junto com a tradição de confronto entre poesia e

filosofia, uma espécie de história subterrânea, certamente mais rara, em que uma e

outra encontram-se aqui e ali, como se estivessem, por caminhos inesperados,

enlaçadas na aproximação do misterioso lugar da criação e da reflexão. Nessa

história, os primeiros românticos alemães têm lugar de honra.

Talvez eles tenham lido Platão melhor do que muitos. Pois, mesmo

expulsando os poetas de sua república ideal, Platão frisa: “não obstante,

declaremos desde agora que se a poesia imitativa e serva do prazer puder aduzir

um argumento, ao menos, a favor da tese de que ela é indispensável em toda

cidade bem constituída, com a maior satisfação a receberemos na nossa”68. É

curioso, pois Platão não apenas abre esta brecha. Ele insiste nela, ao sublinhar,

pela boca de Sócrates, que a arte pode “vir a falar em defesa própria numa

composição lírica ou em qualquer outro metro”69. Seu interlocutor concorda:

“perfeitamente”, diz. Mas Sócrates não se satisfaz e reitera que “permitiremos,

até, que seus protetores – não há necessidade de serem poetas: simples amigos da

66 Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 46.67 Giorgio Agamben, A linguagem e a morte (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2006), p. 107-108.68 Platão, A república (Belém, EDUFPA, 2000), p. 451-452 (607c).69 Ibid., p. 452 (607d).

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poesia – falem em prosa a seu favor para demonstrar-nos que ela não é apenas

agradável mas também de vantagem para as cidades e a vida humana em geral”70.

Parece até que Platão gostaria muito de acolher a arte, a ponto de torcer para que

alguém trouxesse boas razões para que mudasse de idéia quanto a seu banimento.

“De muito bom grado os ouviremos, pois só teríamos a ganhar se se provasse que

além de deleitável é proveitosa”71. Poucas vezes se dá importância a este convite

que Platão faz. Pois bem: os românticos o aceitaram.

*

Sem dúvida, a tradição ocidental firmou, para si, a querela entre arte e

filosofia que já Platão dizia ser antiga e que, por sua vez, perpetuou. Somos,

ainda, testemunhas disso: “até no próprio meio filosófico, por exemplo na

academia, reina certa desconfiança em relação aos aspectos formais mais

apurados de uma palestra oral ou de um texto filosófico”72, observou criticamente

Jeanne Marie Gagnebin. Não é raro, mesmo quando se tenta relacionar filosofia e

arte, vermos que se concebe a primeira como saber sério, profundo e complexo,

embora sua dificuldade deva-se, também, à inabilidade de expressar ou comunicar

aquilo que pensa, enquanto a segunda, por sua vez, é alijada da posse de tais

pensamentos próprios, mas dotada de enorme técnica e talento para falar ou

escrever bem.

Nesses casos, relacionar arte e filosofia torna-se, muitas vezes, preencher

com conteúdos filosóficos graves a forma literária bela. Nem é preciso dizer que

relacionar desse jeito significa manter e até acirrar a identidade pura de cada um

dos termos relacionados, arte e filosofia. Enquanto tipos ideais, essas identidades

podem até funcionar. Mas na prática não é bem assim. Pois, como notou Martha

Nussbaum, “a forma literária não é separável do conteúdo filosófico, mas é, em si

mesma, uma parte do conteúdo – uma parte integral, portanto, da procura pela

verdade e sua afirmação”73.

Esta poderia ser a suma do projeto do primeiro romantismo alemão. Por

isso, não bastava, nele, relacionar arte e filosofia. Esta relação precisava ser de

70 Ibid., p. 452 (607d).71 Ibid., p. 452 (607e).72 Jeanne Marie Gagnebin, Lembrar escrever esquecer (São Paulo, Ed. 34, 2006), p. 202.73 Martha C. Nussbaum, Love’s Knowledge (New York, Oxford University Press, 1990), p. 3.

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natureza amorosa, para que, no encontro, os termos encontrados transformassem

um ao outro, ao invés de saírem dali tal como entraram. É que, como afirmou

Friedrich Schlegel, “no amor, em primeiro lugar vem o sentido de um para o

outro, e o mais elevado é a crença de um no outro”74. É neste contexto amoroso,

no qual a figura da alteridade entre arte e filosofia vem à tona justamente no seu

encontro, que os românticos as colocaram. Por isso também, disseram que “divino

é aquilo que jorra do amor pelo puro ser e devir eterno, amor que é mais alto do

que toda poesia e filosofia”75.

Muitas vezes, quando amamos, não sabemos bem onde acaba nossa

identidade e onde começa a do outro. Elas se confundem pois, a rigor, o que

somos não se dá senão nos contatos que entretemos, e o amor é o mais radical

deles, colocando nossa identidade num constante processo de formação no interior

da relação. Nosso anseio, às vezes, seria o de sair dela para ver quem realmente

somos, sem nos darmos conta de que, aí, já não seríamos aqueles que queríamos

descobrir, pois já estaríamos em outra situação e, assim, já seríamos outros e não

mais aqueles. É o mesmo que se dá com o que são arte e filosofia no primeiro

romantismo alemão. Nenhuma fronteira nítida consegue separar, aí, onde começa

uma e onde termina outra. Elas estão juntas.

Daí a dificuldade, ainda hoje, de classificação dos primeiros textos

românticos. Neles, o pensamento filosófico vem sempre exposto numa forma

literária sem a qual não seria o que é. Seriam eles poesia ou filosofia? Não é

possível dar boa resposta para esta pergunta pois, desde que adentram a

experiência amorosa, arte e filosofia passam a ser o que são apenas uma pela

outra, nas múltiplas relações que entretém. Não adianta muito, portanto, perguntar

de fora o que são a arte e a filosofia para os primeiros românticos alemães e nem

se eles são mais poetas ou mais pensadores. Pois o que são arte e filosofia ou

poesia e pensamento que só se mostram na própria experiência que fazemos com

elas?

Essa valorização da arte e, sobretudo, do caráter literário da própria

filosofia feita pelos românticos corria na contramão da tradição ocidental, fundada

por Platão. Mesmo a visão aristotélica da arte, segundo a qual “a poesia é mais

74 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 60 (Athenäum,Fr. 87).75 Ibid., p. 132 (Athenäum, Fr. 419).

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filosófica e de caráter mais elevado que a história, porque a poesia permanece no

universal e a história estuda apenas o particular”76, jamais ameaça o lugar superior

da ciência teórica que é a própria filosofia. Porém, quando andamos na

contramão, não apenas vamos na direção oposta dos outros. Nós também

passamos a vê-los por outro ângulo, bem diferente. Nesse momento, é possível até

que enxerguemos coisas que antes não víamos. Em nosso caso, aqui, talvez

enxerguemos em Platão um poeta, já que, segundo os primeiros românticos

alemães, ele “considerava a filosofia o ditirambo mais audacioso e a música mais

harmoniosa”77.

Nesse contexto, então, a origem do romantismo alemão, ainda que muito

breve, representa a exceção que confirma a regra da querela que predominou entre

arte e filosofia em nossa tradição. Experimentaram os românticos, por alguns

poucos instantes mas com grande intensidade, o amor entre arte e filosofia.

Ninguém expressou melhor esta situação do que María Zambrano: “no

romantismo, poesia e filosofia abraçam-se, chegando a fundir-se em alguns

momentos com fúria apaixonada; como amantes separados durante longo tempo e,

que ao encontrarem-se, pressentem que a sua união não será duradoura; fundem-

se com a paixão que precede a morte”78.

76 Aristóteles, “Arte Poética”, in Arte Retórica e Arte Poética (Rio de Janeiro, Ediouro, 2005), p.252 (IX).77 Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 142 (Athenäum,Fr. 450).78 María Zambrano, A metáfora do coração e outros escritos (Lisboa, Assírio & Alvim, 2000), p.107.

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