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Organização: Pedro Duarte CADERNOS DO DEPARTAMENTO DE

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O que nos faz pensarCadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio

Pontifícia Universidade Católica do Rio de JaneiroCentro de Teologia e Ciências Humanas (CTCH) – Departamento de Filosofia

EditorPedro Duarte (PUC-Rio)

Comissão Editorial Irley Franco (PUC-Rio); Danilo Marcondes de Souza Filho (PUC-Rio); Déborah Danowski (PUC-Rio); Luiz Carlos Pereira (PUC-Rio)

Conselho Editorial Abel Lassalle Casanave (UFSM); André Duarte (UFPR); André Lepecki (Tisch School of the Arts, NY/EUA); Edgard José Jorge Filho (PUC-Rio); Elsa Helena Buadas Wibmer (PUC-Rio); José Alexandre Durry Guerzoni (UFRGS); Françoise Dastur (Université de Nice Sophia-Antipolis, França); Gregory Chaitin (UFRJ); Howard Caygill (Kingston Univerisity, Inglaterra); Markus Gabriel (Universität Bonn, Alemanha); Marcelo Perine (PUC-SP); Marcia Cavalcante (Södertörn University, Suécia); Matthias Schirn (Ludwig-Maximillians Universität Munich, Alemanha); Maura Iglesias (PUC-Rio); Mercedes Torrevejano (Universidade de Valência, Espanha); Newton Carneiro Affonso da Costa (USP); Oswaldo Chateaubriand Filho (PUC-Rio); Oswaldo Giacoia (UNICAMP); Oswaldo Porchat Pereira (UNICAMP); Paulo Cesar Duque Estrada (PUC-Rio); Renato Janine Ribeiro (USP); Ricardo Ribeiro Terra (USP); Roberto Markenson (UFPE); Vladimir Vieira (UFF); Virginia Figueiredo (UFMG); Wilson John Pessoa Mendonça (UFRJ).

Editor AssistenteElir Ferrari (UERJ)

Revisão e normalizaçãoAngela Dias

Projeto GráficoMarcos Martins Design

Capa e Editoração Eletrônicaestudio \o/ malabares - Ana Dias e Julieta Sobral

Imagem da capa Walter de Maria: The lightning field. Imagem extraída de http://sajdavanderleeuw.co.uk/home/land-art-worldwide/news-events

Catalogação na fonte: PUC-Rio / Biblioteca / DBD

O que nos faz pensar [recurso eletrônico] : cadernos do Departamento deFilosofia da PUC-Rio. Vol. 1, n. 1, (1989)- . – Rio de Janeiro : Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, 1989-v.

Semestral Descrição baseada em: Vol. 1, n. 1 (1989) ; título da tela de informação

geral (em 11 de dez. 2017)Exigências do sistema: conexão com a Internet, World Wide Web browser

e Adobe Acrobat ReaderDisponível em: http://oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/ISSN: 0104-6675

1. Filosofia - Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia.

CDD: 100

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4 ApresentaçãoPedro Duarte

Artigos

A Recepção da Carta sobre a Tolerância de Locke Flavio Fontenelle Loque

Adeus à Bildung? A universidade e a formação pela ciência em Max Weber Ricardo Barbosa

Em busca do tempo encontrado: a criação artística em Proust e Bergson Gilberto Bettini Bonadio

No balanço do tédio: Heidegger e o tédio como tonalidade afetiva fática Marco Antonio Casanova

Álvaro Vieira Pinto sobre o conceito de tecnologia: uma discussão introdutóriaBreno Costa e Adriano Martins

O Paradoxo de Richard (conexões artístico-filosófico-matemáticas) Isabel Cafezeiro, André Campos da Rocha, Carmem Gadelha e Ricardo Kubrusly

O que nos fazem pensar Exu e Criolo? Alexandre de Oliveira Fernandes

Colapso climático e a destruição do futuro Rafael Mofreita Saldanha

Exfermidade, enfermidade ou experiência de doença: zoonose e antropocenoCarlos Eduardo Freire Estellita-Lins

tradução

Discurso filosófico e existência em Ricoeur: filosofar após Kierkegaard Domenico Jervolino

Entre filosofia e não-filosofia: a obra de Paul Ricoeur sob o olhar de Domenico Jervolino Thiago Luiz de Sousa e Luciano Vicente

entrevista

Drummond : événement et apparition d'un nouveau sujet – entretien avec Alain BadiouGustavo Chataignier

Drummond: acontecimento e surgimento de um novo sujeito –entrevista com Alain BadiouGustavo Chataignier

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APRESENTAÇÃO

Depois de oito volumes temáticos, este número 47 da O que nos faz pensar é constituído por textos avulsos, que, por sua qualidade filosófica, representam contribuições de excelência à comunidade acadêmica – e nos fazem pensar.

Há artigos de revisão da história da filosofia que tratam do cânone mo-derno e contemporâneo. Flavio Loque discute a tolerância em Locke, Ricardo Barbosa aborda a ciência e a universidade em Max Weber, Gilberto Bonadio relaciona a criação artística em Bergson e Proust, Marco Casanova destaca a tonalidade afetiva do tédio em Heidegger.

Há artigos temáticos, escritos coletivamente. Adriano Martins e Breno Costa abordam a questão da tecnologia a partir do trabalho de Álvaro Vieira Pinto. Já Isabel Cafezeiro, André Campos da Rocha, Carmen Gadelha e Ricar-do Kubrusly ousam fazer conexões entre arte, filosofia e matemática a partir do paradoxo de Richardson. Por sua vez, Alexandre Fernandes, trazendo o debate da filosofia para suas referências brasileiras, pergunta-se o que nos fazem pensar Exu e Criolo.

Em dois ecos do número 46 da O que nos faz pensar, dedicado à pande-mia de Covid-19, Rafael Saldanha escreveu sobre colapso climático e Carlos Estellita-Lins sobre doença e antropoceno. Os dois artigos atestam que as questões filosóficas levantadas pela situação global diante da pandemia per-manecem nos fazendo pensar.

Esta edição traz ainda uma tradução do artigo “Discurso filosófico e exis-tência em Ricoeur: filosofar após Kierkegaard”, do autor italiano Domenico Jervolino, acompanhada de apresentação dos tradutores Thiago Luiz de Sou-sa e Luciano Vicente.

Por fim, uma breve surpresa, ofereceida por Gustavo Chataignier: uma pe-quena entrevista com o filósofo francês Alain Badiou em que testemunhamos suas primeiras impressões diante de poemas de Carlos Drummond de Andrade.

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* Professor adjunto da Universidade Federal de Itajubá, campus de ItabiraContato: [email protected]

A Recepção da Carta sobre a Tolerância de Locke

The Reception of Locke’s Epistola de Tolerantia

Resumo

Desde que foi publicada em abril de 1689, a Carta sobre a Tolerância nunca deixou de despertar atenção. Já nos primeiros meses depois de vir a lume, ela obteve uma recepção considerável: (i) três projetos tradutórios para línguas vernáculas, (ii) duas resenhas em periódicos eruditos, atribuídas a Jean Le Clerc e Henri Basnage de Beauval, e (iii) duas críticas de clérigos ingleses, os anglicanos Thomas Long e Jonas Proast. O presente artigo se propõe a analisar essa recepção imediata e tem como finalidade avaliar em que medida a tese central da obra e as justificativas para sustentá-la foram identificadas e compreendidas.

Palavras-Chave: Carta sobre a Tolerância; recepção; Le Clerc; Basnage de Beauval; Long; Proast.

Abstract

Published in April 1689, the Epistola de Tolerantia never failed to call attention. Right after its publication, the work generated a remarkable reception that covers (i) three projects of translation to vernacular languages, (ii) reviews in learned journals attributed to Jean Le Clerc and Henri Basnage de Beauval, and (iii) critiques by the Anglican clergymen Thomas Long and Jonas Proast. This article intends to analyse this immediate reception in order to assess whether the central thesis of the work and its grounds were identified and understood.

Key-words: Epistola de Tolerantia; reception, Le Clerc; Basnage de Beauval; Long; Proast.

Recebido em:13/05/2020 - Aceito em: 20/12/2020

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Introdução

Escrita no inverno europeu de 1685-1686, a Carta sobre a Tolerância foi pu-blicada anonimamente, em latim, no mês de abril de 1689, na cidade de Gouda, Holanda. Àquela altura, Locke já havia voltado para a Inglaterra, aon-de chegara poucos meses antes, em fevereiro, depois de cinco anos e meio de exílio. A publicação foi supervisionada por Philip van Limborch (1633-1712),1 remonstrante holandês e professor de teologia, que Locke conhecera em janeiro de 1684 e de quem desde então se tornara um amigo próximo. A Carta sobre a Tolerância foi dedicada a Limborch, esse caro amigo, mas essa era uma informação de que nenhum leitor poderia desconfiar: a dedicatória inscrita entre o título e a imprenta, “ao ilustre senhor T.A.R.P.T.O.L.A escrita por P.A.P.O.I.L.A.”, é indecifrável sem a chave dos criptogramas. Seu sentido só foi revelado após a morte de Locke no Elogio histórico do finado Sr. Locke escrito por Jean Le Clerc (1657-1736): “ao professor de teologia dos remons-trantes, que odeia a tirania, da família Limborch de Amsterdã”, “por um ami-go da paz que odeia a perseguição, John Locke, inglês”.2

Dada a identificação entre eles, que se estendia também para o campo intelectual, era de se esperar que, da parte de Limborch, a Carta sobre a Tole-rância fosse bem acolhida. E é isso que de fato aconteceu. Em carta a Locke anunciando a publicação da obra, ele se mostra efusivo, “nunca li nada sobre esse assunto que me tocou tão fortemente”, e expressa seu juízo com con-tundência: “ela demonstra irrefutavelmente, em fundamentos nunca estabe-lecidos até aqui, que toda perseguição religiosa é contrária tanto ao espírito da religião quanto à lei da natureza”.3 Esse comentário datado de 26 de abril (ou 6 de maio, a depender do calendário) possivelmente consiste no primeiro registro de leitura da Carta sobre a Tolerância. A seu modo, ele marca o início da recepção da obra.

1 Cf. Locke, J., The Correspondence of John Locke (Ed. E. S. de Beer) Oxford: Clarendon Press, 1976-1989, v. III, 1283, p. 60.

2 Cf. Le Clerc, J. Éloge Historique de feu Mr. Locke In: Locke, J. Œuvres Diverses de M. Locke Nouvelle édition considérablement augmentée Amsterdam: chez Jean Frederic Bernard, 1732. Tome Premier, p. LII. O próprio Limborch, contudo, em carta de 24 de março de 1705 a Lady Masham, oferece um sentido parcialmente diferente para o primeiro criptograma, no qual ele lê

“amante da liberdade” em lugar de “da família Limborch de Amsterdã”, cf. Simonutti, L. Religion, Philosophy and Science: John Locke and Limborch’s circle in Amsterdam In: Force, J. E., Katz, D. S. (Ed.) Everything Connects Leiden: Brill, 1999, p. 322, que publica a carta em apêndice.

3 Cf. Locke, J., op. cit., v. III, 1131, pp. 607-608.

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A recepção da Carta sobre a Tolerância, porém, não se limitou à leitura de amigos e a comentários privados. Logo nos primeiros meses após sua publi-cação, ela ensejou (i) três projetos tradutórios para línguas vernáculas: fran-cês, holandês e inglês, (ii) duas resenhas em periódicos eruditos, elaboradas, supõe-se, por Jean Le Clerc e Henri Basnage de Beauval (1656-1710) e (iii) dois libelos críticos, escritos pelos clérigos anglicanos Thomas Long (1621-1707) e Jonas Proast (c. 1642-1710). Essa recepção é sem dúvida considerá-vel, mas, ao menos no que se refere às traduções e às resenhas, ela não difere substancialmente da recepção de outras obras contemporâneas, como a De nuperis Angliæ motibus Epistola (1685), de Adrian Paets (c. 1630-1685), ou A Relation of the death of the primitive persecutors (1687), edição inglesa acrescida de prefácio, feita por Gilbert Burnet (1643-1715), de uma obra atribuída a Lactâncio. Assim como Paets e Burnet, Locke fazia parte de uma rede de co-laboração existente na Holanda, formada em grande medida por refugiados religiosos e políticos componentes da chamada República das Letras, que tinha entre suas finalidades a promoção da tolerância religiosa por diferentes vias: traduções, resenhas, citações e recomendações de leitura.4 Era comum, portanto, que as obras dos autores da rede fossem traduzidas e resenhadas. Evidentemente, essa rede de colaboração jamais esteve associada aos libelos dos clérigos anglicanos, cuja meta era opor-se à tolerância religiosa. De ma-neira geral, a controvérsia relativa às restrições paulatinas ao Edito de Nantes e, por fim, à sua revogação em outubro de 1685 constituem o grande marco a nortear a recepção da Carta sobre a Tolerância (assim como das outras obras tolerantistas do período), mas é preciso destacar que, de modo mais imediato, em especial no que diz respeito à Inglaterra, a aprovação da chamada Lei da Tolerância, de maio de 1689, foi um fator decisivo na elaboração da tradução inglesa e na leitura da obra realizada por Long e Proast.

4 Tal como descreve Marshall, J. John Locke, Toleration and Early Enlightenment Culture Cambrid-ge: Cambridge University Press, 2006, p. 476, “havia uma rede de aliança e ajuda mútua muito substancial entre esses indivíduos na campanha pela tolerância religiosa.” Limborch, Le Clerc e Basnage de Beauval, além de Pierre Bayle, Charles Le Cène, Isaac Papin e Noel Aubert de Versé, todos eles compunham essa rede, que envolvia ainda apoio material quando necessário, compra e transporte de livros, indicações para postos de trabalho, encontros de discussão e auxílio para publicação. Apesar da confluência teórica, entretanto, não existia pleno consenso entre seus in-tegrantes, como se vê pela conversão ao catolicismo, em 1690, de Aubert de Versé e Papin, que então se tornaram contrários à tolerância, cf. Ibidem, pp. 495-496, e no desacordo entre Le Clerc e Bayle, cf. Ibidem, pp. 496-501 e Israel, J. Group Identity and Opinion among the Huguenot Diaspora and the Challenge of Pierre Bayle’s Toleration Theory (1685–1706) In: Pollmann, J., Spicer, A. (Ed.) Public Opinion and Changing Identities in the Early Modern Netherlands: Essays in Honour of Alastair Duke Leiden: Brill, 2007, pp. 279-293.

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Tratar da rede de colaboração à qual Locke estava vinculado ou especificar a influência do contexto histórico na recepção da Carta sobre a Tolerância não é, contudo, o objetivo que se pretende alcançar aqui. O presente artigo tem um propósito menos ambicioso. Ele se concentra nas sete publicações que compõem a recepção da obra e tem como intuito analisá-las descritivamente (no caso das traduções) e conceitualmente (no caso das resenhas e críticas). A pretensão é avaliar em que medida a recepção imediata da Carta sobre a Tole-rância foi capaz de identificar sua tese central e compreender as justificativas para sustentá-la. Como se verá a seguir, as sete publicações em jogo se en-trelaçam do ponto de vista cronológico, mas o presente artigo as agrupa por afinidade e concebe-as como três ondas distintas: tradução, resenha e crítica.

As traduções

A onda inicial da recepção da Carta sobre a Tolerância consistiu em sua tra-dução para línguas vernáculas. Nos meses que se seguiram à publicação da obra, há na correspondência entre Locke e Limborch a menção de traduções para o inglês, francês e holandês. As primeiras referências a essas traduções encontram-se em duas cartas distintas: quanto à inglesa, numa de Locke a Limborch datada de 6 de junho; quanto à francesa e holandesa, numa de Limborch a Locke de 8/18 de julho.5 A expectativa para a difusão da obra es-tava depositada na versão francesa, já que, desde a segunda metade do século XVII, o francês vinha assumindo o lugar do latim como língua franca (o in-glês continuava a ser muito pouco falado no continente).6 O que idealmente se almejava, entretanto, não era apenas que a obra fosse mais lida, mas que demovesse figuras políticas importantes. Na referida carta a Locke de 8/18 de julho, Limborch escreve: “espero que a leitura dela não deixe de gerar frutos e o que me agrada em especial é sua tradução para o francês, língua que agora é em geral familiar para todos, até para os grandes homens e príncipes”.7

5 Cf. Locke, J. op. cit., v. III, 1147, p. 634, e 1158, pp. 647-648.

6 Sobre a ascensão do francês frente ao latim e o parco domínio do inglês no continente, cf. Sou-lard, D. Anglo-French Cultural Transmission: the case of John Locke and the Huguenots Historical Research v. 85, n. 227, pp. 107-111, 2012.

7 No Elogio histórico do finado Sr. Locke, Le Clerc parece ratificar esse poder transformador da Carta sobre a Tolerância ao afirmar que Locke “abriu os olhos de muita gente (il y desabusé bien du monde) que, por falta de atenção, aprovava as máximas dos perseguidores e agora as detestam”, cf. Le Clerc, op. cit., p. lxiv. O poder transformador da filosofia de Locke (e, em geral, da circulação de obras) já havia sido exaltado pelo próprio Le Clerc em carta a Locke de 12/29 de abril de 1694

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A tradução francesa, ainda segundo essa mesma carta de Limborch, já havia sido feita por Charles Le Cène (c. 1647-1703), refugiado huguenote, e a estimativa era que fosse publicada em breve. Em nova carta a Locke em 6/16 de setembro, contudo, Limborch confessa que já não sabia mais se a publicação de fato vingaria.8 Igual hesitação foi também demonstrada por Le Clerc na conclusão de sua resenha da Carta sobre a Tolerância.9 Algo ines-perado certamente se sucedera. A primeira tradução francesa acabou sendo publicada apenas cerca de vinte anos mais tarde, em 1710, nas Œuvres Di-verses de Monsieur Jean Locke. Na advertência ao leitor que abre o volume, há uma breve exposição das obras selecionadas na qual a dedicatória da Carta sobre a Tolerância é reproduzida e explicada conforme a elucidação que Le Clerc fizera dos criptogramas no Elogio histórico do finado Sr. Locke. Em parte alguma há qualquer identificação seja do tradutor, seja da língua a partir da qual a tradução foi feita, mas existem bons indícios para supor que o texto de partida tenha sido o latim e não a tradução inglesa, que naquele momento circulava há cerca de duas décadas.10

na qual ele não apenas fala da “necessidade que há de colocar bons livros nas mãos do povo e de multiplicar seu número, que é tão pequeno,” como também expressa seu desejo de que seu amigo tenha “uma vida de Nestor [isto é, uma vida longa] a fim de que possa fazê-lo, pois não conheço ninguém que seja mais capaz do que você de abrir os olhos (désabuser) do mundo e de banir a superstição e a ignorância”, cf. Locke, J., op. cit., v. V, 1734, p. 48.

8 Cf. Locke, J., op. cit., v. III, 1178, p. 685.

9 Cf. Le Clerc, J. Tolerantia, lettre latine sur cette matière. Bibliothèque Universelle et Historique de l’année M.D.C.LXXXIX, tome quinzième. Seconde édition révûe et corrigée Amsterdam: chez les héritiers d’Antoine Shelte, MDC XCIX, p. 412.

10 Três pontos em que a tradução de Popple se afasta do original serviram como critério para a afirmação de que o texto de partida da tradução francesa parece ter sido o latim: (1º) a perífrase na definição de Estado, (2º) uma interpolação da expressão “liberdade de consciência” e (3º) a exemplificação de igrejas na conclusão da obra, cf. Locke, J. Œuvres Diverses de Monsieur Jean Locke Rotterdam: chez Fritsch et Böhm, MDCCX, pp. 14, 112, 124 e Locke, J. A Letter concerning Toleration The Second Edition Corrected London: printed for Awnsham at the Black Swan in Ave-Mary Lane, MDCXC, pp. 8, 68, 75. Registre-se aqui que a tradução francesa de 1710 difere de algumas edições francesas do século XX que afirmam terem-na reproduzido, como a de Spitz (cf. Locke, J. Lettre sur la tolérance et autres textes Présentation par J.-F. Spitz. Traductions par Jean Le Clerc et J.-F. Spitz. Édition revue et augmentée. Paris: GF Flammarion, 2007). Nesses casos, os editores reproduziram a tradução francesa de 1710 revista por Thurot, professor do Collège Royal de France, na edição das Obras filosóficas de John Locke (1821-1825). Sobre as traduções de Locke para o francês, excetuando-se a tradução da Carta sobre a Tolerância, cf. Soulard, D. L’oeuvre des premiers traducteurs français de John Locke: Jean Le Clerc, Pierre Coste et David Mazel Dix-sep-tième siècle v. 4 n. 253 pp.739-762, 2011. Particularmente sobre a tradução do Segundo Tratado sobre o governo, cf. Savonius, S. J. The Du Gouvernement Civil of 1691 and its readers The Historical Journal v. 47 n. 1 pp. 47-79, 2004.

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A outra tradução mencionada por Limborch na carta de 8/18 de julho é a holandesa, da qual ele enviou um exemplar a Locke em 20/30 de setembro, poucos dias depois de ter lhe contado que ela estava à venda.11 Nenhum exemplar dessa edição até hoje foi encontrado,12 mas sua existência é corro-borada por duas fontes suplementares: em primeiro lugar, por Le Clerc, que em sua resenha da Carta sobre a Tolerância atesta a impressão das traduções inglesa e holandesa;13 em segundo lugar, por Isaak Tirion (1705-1765), coe-ditor de uma coletânea sobre tolerância publicada em 1734 em cujo prefácio se lê que uma tradução holandesa da Carta sobre a Tolerância, então já esgo-tada, havia sido publicada pouco depois da edição latina.14 Nessa edição de 1734, a tradução holandesa de 1689 foi retocada, mas não se sabe quem foi o responsável pela revisão, tampouco quem a traduzira originalmente. Entre as edições de 1689 e 1734, talvez tenha havido outra em 1730, mas dela também não se conhece nenhum exemplar.15

Na primeira onda de recepção da Carta sobre a Tolerância, a tradução in-glesa sem dúvida foi a mais importante. Na carta a Limborch de 6 de junho, Locke revela que sabia que uma tradução inglesa estava em curso, mas nada fala sobre o tradutor, nem estima quando a publicação ocorreria. Anos mais tarde, no codicilo a seu testamento, ele haveria de dizer que a tradução fora feita “without my privaty”, o que possivelmente significa que ela se deu sem sua colaboração.16 O tradutor era William Popple (1638-1708), comerciante inglês e unitarista, que Locke não conhecia até voltar do exílio na Holanda. A versão inglesa da Carta sobre a Tolerância teve duas edições: a primeira, em outubro de

11 Cf. Locke, J., op. cit., v. III, 1178, p. 685, e 1184, p. 697.

12 Cf. Yolton, J. S. John Locke: a descriptive bibliography Bristol: Thoemmes Press, 1998, item 16, p. 14; Attig, J. C., The Works of John Locke: a comprehensive bibliography from the Seventeenth Century to the Present Westport: Greenwood Press, 1985, item 71, p. 16.

13 Cf. Le Clerc, J., op. cit., p. 412.

14 Cf. Klibansky, R. Preface In: Locke, J. Epistola de tolerantia Latin text edited with a preface by R. Klibansky, English translation with introduction and notes by J. W. Gough Oxford: Clarendon Press, 1968, pp. xxvi-xxvii. Essa coletânea de 1734 foi coeditada por Tirion em parceria com Jacob Ter Beek. Sobre a publicação dessa obra, mas sobretudo sobre sua reedição ampliada em 1774, cf. Van Eijnatten, J. Liberty and Concord in the United Provinces: religious toleration and the public in the Eighteenth-Century Netherlands Leiden: Brill, 2003, pp. 264-277.

15 Cf. Yolton, J. S., op. cit., item 17, p. 14; Attig, J. C., item 71, p. 16.

16 Cf. Locke, J., op. cit., v. VIII, Will, p. 426.

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1689; a segunda, corrigida, em março de 1690.17 Ambas contêm um Prefácio que, por ausência de identificação, muitas vezes foi lido como sendo do autor da obra. Nenhuma dessas duas edições reproduz a dedicatória. A julgar por um comentário de Locke na Segunda Carta sobre a Tolerância, ele parece reconhecer que o tradutor se atribuiu certa liberdade ao verter o latim para o inglês, mas logo em seguida observa que não se deve culpá-lo por ter expressado o sentido do original em termos mais vivos do que os do próprio autor.18 Além de certa gravidade que imprime ao texto, o traço mais notório da tradução de Popple é seu esforço para adaptar a obra para o contexto inglês, como quando numa passagem substitui a referência aos remonstrantes, antirremonstrantes, lutera-nos, anabatistas e socinianos por outra aos presbiterianos, independentes, ana-batistas, arminianos e quakers.19 Especificamente quanto às escolhas lexicais, merece destaque a tradução de bona civilia por “interesses civis”, já que o termo ‘interesse’ é pouco recorrente na escrita de Locke.20 Popple também fez certas interpolações, a mais relevante das quais a assertiva de que “a liberdade de consciência é um direito natural de todo homem”.21 Na Carta sobre a tolerância, vale lembrar, Locke jamais opera com o conceito de liberdade de consciência.

Além das traduções para o francês, holandês e inglês, a Carta sobre a Tolerân-cia conheceu ainda uma tradução para o alemão, anônima, publicada em 1710, mesmo ano das Œuvres Diverses de Monsieur Jean Locke. Ao longo do século

17 Para uma colação das duas edições, cf. Locke, J. A Letter concerning Toleration Latin and English texts revised and edited with variants and an introduction by M. Montuori. The Hague: Martinus Nijhoff, 1963.

18 Cf. Locke, J. A Second Letter concerning Toleration London: printed for Awnsham and John Churchill in Ave-Mary Lane Near Pater-Noster-Row, MDCXC, p. 10.

19 Cf. Locke, J. Carta sobre a Tolerância Tradução F. Fortes, W. Ferreira Lima. Organização, introdu-ção, revisão técnica, notas e comentários F. F. Loque. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019, p. 101.

20 No original latino, nenhuma das três ocorrências de interest tem o sentido de interesse (cf. Locke, J. A Letter concerning Toleration Latin and English texts revised and edited with variants and an introduction by M. Montuori. The Hague: Martinus Nijhoff, 1963, pp. 50, 58, 62). Ao empregar ‘interesse’, Popple normalmente traduz bona civilia ou bona (cf. Ibidem, pp. 15, 17, 23), mas há exceções, como res (cf. Ibidem, p. 89) ou como as interpolações (cf. Ibidem, pp. 15, 21, 37, 67). A título de comparação, vale frisar que há ocorrências de interest nos Dois Tratados sobre o Governo, mas que elas frequentemente possuem conotação negativa (cf. Locke, J. Two Treatises of Government (Ed. P. Laslett) Cambridge: Cambridge University Press, 2015, II §§ 12, 57, 98, 124, 136, 138). O termo ‘interesse’ também ocorre na tradução francesa de 1710, o que é um indício de que talvez tenha sido feita com consulta à tradução de Popple.

21 Cf. Locke J. Carta sobre a Tolerância Tradução F. Fortes, W. Ferreira Lima. Organização, introdução, revisão técnica, notas e comentários F. F. Loque. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019, p. 95, n. 62.

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XVIII, todas essas traduções haveriam de ser reeditadas.22 O essencial a notar acerca da primeira onda de recepção da Carta sobre a Tolerância, entretanto, é a expectativa de que uma maior circulação da obra pudesse ser benéfica para a causa da tolerância, sobretudo se “grandes homens e príncipes” chegassem a lê-la, como comentou Limborch na carta de 8/18 de julho a propósito da tradu-ção francesa. Não surpreende, assim, que o esforço tradutório tenha se iniciado logo depois da publicação do original latino. Aos olhos de Locke e Limborch, como se pode perceber, a filosofia era vista como uma arma na luta política.

As resenhas

A segunda onda da recepção da Carta sobre a Tolerância compreende as resenhas que a obra recebeu em dois periódicos eruditos: Bibliothèque Universelle et Historique e Histoires des Ouvrages des Sçavans. Nenhuma delas traz a identificação de autoria, mas supõe-se que tenham sido escritas pelos editores dos respectivos periódicos: Jean Le Clerc e Henri Basnage de Beauval. A despeito das diferenças de estilo, am-bas as resenhas partilham a mesma natureza descritiva e, assim, fazem jus ao prin-cípio editorial anunciado no prefácio do primeiro volume das duas publicações.23

Nascido em Genebra e de origem calvinista, Le Clerc passou alguns anos na França antes de se fixar na Holanda, onde fez carreira como teólogo e como editor da Bibliothèque Universelle et Historique, mas também da Biblio-thèque Choisie e, por fim, da Bibliothèque ancienne et moderne, três periódicos que resultaram num total de mais de oitenta volumes feitos sempre com a colaboração de diversos eruditos. Locke ele próprio contribui com algumas resenhas e com outros textos, o mais célebre dos quais o Abregé do Ensaio sobre o Entendimento Humano.24 Como observado há pouco, todavia, a resenha da Carta sobre a Tolerância é tida como da lavra de Le Clerc. Ela se encontra no décimo quinto volume da Bibliothèque Universelle et Historique, referente aos meses de outubro a dezembro de 1689, cuja primeira edição ocorreu em 1690.

22 Para uma lista abrangente e bastante detalhada das edições e traduções da Carta sobre a Tole-rância, cf. Yolton, J. S., op. cit., itens 1-28, pp. 1-274; Attig, J. C., op. cit., itens 41-97, pp. 12-21.

23 Para uma breve contextualização e tradução das duas resenhas, cf. Loque, F. F. As resenhas da Carta sobre a Tolerância de John Locke: contextualização e tradução Perspectiva Filosófica v. 47 n. 1 pp. 242-258, 2020.

24 Sobre as contribuições de Locke para a Bibliothèque Universelle et Historique, cf. Milton, J. R. Locke’s Publications in the Bibliothèque Universelle et Historique British Journal for the History of Philosophy v. 19, n. 3, pp. 451-472, 2011.

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A resenha se inicia com um brevíssimo comentário no qual se observa que sua publicação deveria ter ocorrido no volume anterior do periódico,25 não fosse por um esquecimento cujas razões são desconhecidas. Le Clerc observa ainda que a Carta sobre a Tolerância é uma obra curta, mas que, por abordar uma matéria importante, merece a mesma atenção daquelas mais extensas. Como indica a referência bibliográfica que a antecede, a resenha se baseou no original latino. O resenhista, no entanto, tinha conhecimento da existência das traduções inglesa e holandesa e também da possibilidade de uma tradu-ção francesa vir a ser publicada, como já apontado.

O tom da resenha é bastante sóbrio. Paráfrases e resumos são abundantes. O único momento em que Le Clerc se afasta da letra do texto, por assim dizer, é na conclusão, quando realiza uma avaliação abrangente, mas nada substan-cial: “com efeito, veem-se poucos livros que tenham tratado desse tema em tão poucas palavras e com tanta clareza e força quanto este”.26 Caso fosse pre-ciso operar com extremos, não seria inadequado afirmar que a resenha não consiste numa interpretação, mas numa análise, dado seu objetivo de dissecar a Carta sobre a Tolerância e expor sinopticamente suas partes principais. Esse caráter analítico, aliás, é perceptível na própria estrutura da resenha, que se encontra subdividida em sete pequenas seções identificadas com algarismos romanos, cada uma das quais correspondendo com precisão às grandes in-flexões conceituais da obra: (I) o prólogo sobre tolerância e caridade; (II) a definição de Estado e os argumentos sobre a restrição da jurisdição do magis-trado aos bens civis; (III) a definição de Igreja; (IV) os deveres dos indivíduos, das igrejas, dos clérigos e dos magistrados relativos à tolerância; (V) o dever do magistrado com relação aos cultos e aos dogmas; (VI) a reflexão sobre as assembleias; (VII) o pós-escrito sobre heresia e cisma.27 Nas sete seções de-lineadas na resenha, as definições, as teses e os argumentos de Locke jamais

25 Volume referente a julho-setembro de 1689, cuja primeira edição ocorreu nesse mesmo ano, cf. Ibidem, p. 470.

26 Le Clerc, J. Tolerantia, lettre latine sur cette matière. Bibliothèque Universelle et Historique de l’année M.D.C.LXXXIX, tome quinzième. Seconde édition révûe et corrigée Amsterdam: chez les héritiers d’Antoine Shelte, MDC XCIX. p. 412.

27 Noutras abordagens da Carta sobre a Tolerância (por exemplo, cf. Locke, J. Carta sobre a Tolerância Tradução F. Fortes, W. Ferreira Lima. Organização, introdução, revisão técnica, notas e comentários F. F. Loque. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019), divide-se a obra em nove seções, mas essa diferença se explica facilmente: em tais abordagens, a quinta seção de Le Clerc é desmembrada em duas (uma dedicada aos cultos, outra aos dogmas) e uma seção suplementar, de natureza conclusiva, é acrescentada entre a reflexão sobre as assembleias e o pós-escrito.

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são debatidos. O que importa a Le Clerc é descrever. Dada a limitação de espaço própria do gênero, entretanto, ele inevitavelmente teve de selecionar os pontos centrais e descartar os secundários, o que fez com grande êxito.28

Le Clerc abre a seção inicial de sua resenha com a dupla observação de que a tolerância representa a “verdadeira marca da Igreja Cristã” e de que, “sem a tolerância, não há caridade”.29 Seu objetivo é mostrar que atos de intolerância para com pessoas de opiniões diferentes são incompatíveis com a caridade, o que deixa nas entrelinhas a conclusão de que tais atos jamais podem ser reali-zados por quem se entende (ou quer se entender) como cristão. Le Clerc não menciona o exemplo de Cristo, nem alude aos versículos bíblicos citados no prólogo da Carta sobre a Tolerância, mas ironiza os “fanáticos” à maneira de Locke, apontando que, caso efetivamente desejassem salvar almas, “eles seriam tão severos contra os vícios (...) quanto contra aquilo que acreditam ser erros”.30

Na segunda e terceira seções da resenha, além de citar as definições de Estado e Igreja, Le Clerc apresenta com clareza o objetivo central de Loc-ke: “o autor quer que se distinga com cuidado a República da Igreja”.31 Le Clerc então aponta que há três provas para sustentar essa distinção, isto é, para mostrar que o magistrado está “encarregado” apenas das “coisas exte-riores” e que “seu poder de modo algum diz respeito à salvação das almas”.32 Identificadas com precisão, essas três provas são as seguintes: em primeiro lugar, ao magistrado não foi “confiado” o cuidado com as almas “nem pelo céu, nem pelos homens”; em segundo lugar, o magistrado difere das pessoas privadas por poder empregar a força, mas a força não tem “utilidade alguma” em religião por ser incapaz de gerar a “persuasão interior” necessária para a salvação;33 por fim, mesmo se a força pudesse persuadir, seriam salvas so-mente as poucas pessoas que nascessem e permanecessem sob um príncipe

28 “Sua recensão da Epistola é rigorosa e didática”, afirma Soulard, D. The Reception of Locke’s Politics: Locke in the République des Lettres In: Champion, J., et al. (Ed.) Politics, Religion and Ideas in Seventeenth- and Eighteenth-Century Britain: essays in honour of Mark Goldie Nova York: Boydell and Brewer, 2019, p. 206.

29 Le Clerc, J., op. cit., pp. 402-403.

30 Le Clerc, J., op. cit., p. 403.

31 Le Clerc, J., op. cit, p. 403. Note-se aqui a tradução de res publica por ‘República’. Na tradução francesa da Carta sobre a Tolerância publicada em 1710 nas Œuvres Diverses de Monsieur Jean Locke, optou-se por ‘Estado’ (p. 24).

32 Le Clerc, J., op. cit., pp. 403-404.

33 Le Clerc, J., op. cit., p. 404.

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ortodoxo, o que significa introduzir a sorte como critério de salvação. Espe-cificamente quanto à igreja, Le Clerc não explora as noções de liberdade e espontaneidade essenciais à definição proposta por Locke, mas lhes atribui a devida importância ao destacar que ninguém nasce membro de uma socie-dade religiosa, ainda que seus progenitores façam parte dela ou que ela esteja estabelecida no lugar do nascimento.

A quarta seção da resenha trata dos deveres relativos à tolerância, que são apresentados na ordem seguida por Locke: deveres dos indivíduos, das igrejas, dos clérigos e dos magistrados. Mais uma vez, a exposição de Le Clerc é precisa. Compete aos indivíduos adequar-se às normas das igrejas a que se vinculam, sob o risco de excomunhão, assim como lhes compete respeitar os bens civis de terceiros que professam outras religiões. Analogamente, agora no que se refere às igrejas, Le Clerc observa que nenhuma sociedade religiosa tem o direito de molestar outra em razão de suas diferenças. Já o dever dos clérigos é valer-se de seus poderes para a execução das leis da sociedade religiosa de quem fazem parte sem ameaçar os bens civis de quem quer que seja. Com a mesma propensão anticlerical de Locke, Le Clerc destaca ainda a obrigação de os clérigos exortarem seus correligionários “à caridade e, por conseguinte, à tolerância”, já que a origem da “animosidade das pessoas” re-side na “instigação daqueles que, ao invés de pregar a moderação e a paz, inflamam-nas contra o próximo”.34 Por último, quanto aos magistrados, cabe a eles conferir a todos a liberdade de professar as crenças que considerarem adequadas e impedir que sofram violência pela escolha que fazem.

Na seção seguinte, que corresponde à parte mais extensa da Carta sobre a Tolerância, Le Clerc sintetiza o dever do magistrado com relação aos cultos e dogmas. Locke aqui estrutura seu raciocínio subdividindo-o em duas vertentes: proibição e instituição de cultos e dogmas, mas elas não exploradas na resenha. Quanto aos cultos, Le Clerc se limita a enfatizar a noção de coisas indiferentes, apontando, por um lado, que o magistrado não tem poder para tornar algo indiferente agradável a Deus e, por outro, que, concebidos como coisas indife-rentes, os cultos não dizem respeito aos fins da sociedade civil. No que se refere aos dogmas, a distinção entre crenças especulativas e práticas também não é explorada na resenha, que se concentra no conjunto de crenças intoleráveis.

Na sexta seção, Le Clerc dedica-se à reflexão de Locke sobre as assem-bleias e apresenta corretamente tanto a tese a ser refutada quanto o argumen-to para refutá-la. À afirmação de que as assembleias são causa de sedição, a

34 Le Clerc, J., op. cit., pp. 406-407.

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resposta é que elas não o são “por sua natureza”: 35 se alguma perturbação advém delas, isso se deve exclusivamente à desigualdade de tratamento a que as igrejas são submetidas. É a opressão que gera sedições, “não a tolerância, que produziria em todo lugar a paz”.36

A sétima e última seção, correspondente ao pós-escrito da Carta sobre a Tolerância, aborda as definições de heresia e cisma. Tendo ressaltado que esses conceitos se aplicam a quem partilha a mesma regra de fé e culto, Le Clerc então observa que a heresia representa uma separação na comunidade ecle-siástica por causa de algum dogma e ressalta o raciocínio por reciprocidade segundo o qual ninguém pode estabelecer como regra as conclusões que tira da Sagrada Escritura sem dar aos outros essa mesma liberdade. Já o cisma é uma divisão causada por alguma divergência relativa não só à disciplina, como lembra Le Clerc, mas também às cerimônias, o que ele deixa de men-cionar explicitamente, talvez por tomar como evidente.

Feita essa exposição da resenha de Le Clerc, não deve restar dúvida acer-ca de sua pretensão descritiva. Em todas as sete seções, não há nenhuma crítica, nenhum reparo, nenhum juízo de valor acerca das posições centrais de Locke, que são reportadas de maneira ao mesmo tempo completa e sin-tética. No limite, seu trabalho como resenhista foi extrair do original latino uma sinopse em francês.

Basnage de Beauval, o outro resenhista da Carta sobre a Tolerância, adotou um estilo diferente. Huguenote exilado na Holanda depois da revogação do Edito de Nantes, onde acabou por editar as Histoires des Ouvrages des Sçavans, ele próprio já publicara uma obra sobre o tema: Tolérance des Religions, em 1684. Na resenha que elaborou, Basnage de Beauval não segue à risca o desen-volvimento do texto, subentendendo-se por isso o interesse em reproduzir pas-so a passo a progressão do raciocínio de Locke. Comparado a Le Clerc, ele es-creve com maior liberdade, mas nunca a ponto de criticar as posições do autor.

Igualmente baseada no original latino, a resenha publicada em 1689 no sexto tomo das Histoires des Ouvrages des Sçavans também se inicia destacando a relação entre tolerância e caridade. Ao contrário de Le Clerc, que se preocupa em ressaltar a problemática das marcas da verdadeira igreja, Basnage de Beauval enfatiza a associação entre tolerância e caridade. Ele afirma que a intolerância é a causa das “divisões e violências que perturbam a tranquilidade da socieda-de” e esclarece que a perseguição, eufemisticamente compreendida como “ódio

35 Le Clerc, J., op. cit., p. 409.

36 Le Clerc, J., op. cit., p. 410.

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pelo erro”, “cobre-se com o belo nome de amor pela verdade”.37 A rigor, porém, não faz sentido chamar de caridade a “caridade cruel e ridícula que consiste em oprimir ou degolar o próximo alegando convertê-lo”.38 De sua perspectiva, o sentido do prólogo da Carta sobre a Tolerância é levantar suspeita sobre as ações caridosas dos “grandes fanáticos pela salvação dos outros”,39 já que eles estão mais dispostos a guerrear contra a heresia do que contra o vício e o pecado.

Para Basnage de Beauval, “a máxima fundamental” do autor – que ele presume ser Jacques Bernard (1658-1718), outro huguenote em exílio na Holanda depois da revogação do Edito de Nantes40 – é que “os homens se congregaram em sociedade apenas para as comodidades temporais e para se assegurar da posse delas pelas forças reunidas da República”.41 Por conse-guinte, continua ele, o magistrado tem o direito de punir quem quiser tomar os bens alheios ou vier a ameaçar a sociedade, mas excede o poder que lhe foi conferido, caso passe a impor uma religião. A restrição da jurisdição do magistrado justifica-se porque “a religião depende da persuasão interior e da fé, que não pode ser produzida pela autoridade”.42 O uso da força em ques-tões religiosas não gera verdadeiros convertidos, mas hipócritas. Ao contrário de Le Clerc, que aborda as três provas que compõem a justificativa de Locke para demonstrar que o magistrado não deve atuar em questões religiosas, Basnage de Beauval se restringe ao chamado argumento da inadequação da força, mas inclui em sua resenha a temática da hipocrisia, que Le Clerc aca-bou por não tocar. No que se refere à igreja, Basnage de Beauval não formula uma paráfrase da definição como fizera no caso do Estado, mas trata de seu aspecto essencial: todos os indivíduos nascem livres para optar pela seita que julgarem mais ortodoxa. “A verdade”, diz ele, “requer uma aquiescência

37 Basnage de Beauval, H. Epistola de Tolerantia Histoires des Ouvrages des Sçavans Mois de SEPT. OCT. etc jusqu’au mois d’AOUST 1690 inclus. Tome VI. Amsterdam: chez Michel Charles Le Cène, M.D.C.C.X.X.I. p. 20.

38 Ibidem, p. 22.

39 Ibidem, p. 21.

40 Essa atribuição, que ocorre três vezes ao longo da resenha (pp. 21, 23, 25), talvez se explique pelo fato de que Bernard àquela altura vivia como pastor em Gouda, cf. Klibasnky, R., op. cit., p. xxi. No volume de fevereiro de 1690 das Histoires des Ouvrages des Sçavans (cf. art. XVI, p. 278), em carta enviada ao periódico, o próprio Bernard negou a autoria da obra.

41 Basnage de Beauval, H., op. cit., p. 22.

42 Basnage de Beauval, H., op. cit., p. 22.

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voluntária”,43 razão pela qual os clérigos não podem empregar a força em lugar das provas. Deixando de lado qualquer menção aos deveres dos indiví-duos, igrejas, clérigos e magistrados relativos à tolerância, Basnage de Beauval apenas afirma, ao final de sua abordagem da igreja, que “toda a função dos pastores se limita a instruir e exortar”.44

No passo seguinte da resenha, tampouco se aborda o dever do magis-trado com relação aos cultos e aos dogmas. Tendo exposto a contraposição entre Estado e Igreja, cerne conceitual da Carta sobre a Tolerância, Basnage de Beauval formula o que lhe parece ser a grande objeção dos intolerantes à tese do autor: se o magistrado não deve se imiscuir em questões religiosas, “seria então preciso suportar os idólatras e o paganismo”.45 Na Carta sobre a Tolerân-cia, a discussão sobre a idolatria ocorre na seção em que Locke reflete sobre os deveres do magistrado com relação aos cultos (de modo mais específico, no trecho em que ele avalia a possibilidade de o magistrado proibir cultos), mas Basnage de Beauval não faz alusão a isso, o que confere à objeção uma relevância maior do que o próprio Locke lhe atribui. Seja como for, a resposta à objeção é apresentada corretamente: “a religião cristã não está no direito de demolir os templos dos ídolos”.46 Mas por que não tem ela esse direito? A justificativa aqui é o argumento da reciprocidade, que Basnage de Beauval afirma ter sido explicado por meio de um “exemplo imitado do Comentário Filosófico”.47 Não tendo conhecimento da história da composição da Carta so-bre a Tolerância, Basnage de Beauval não podia imaginar que ela fora redigida antes que Pierre Bayle (1647-1706) publicasse sua obra.48

O referido exemplo consiste na história de um missionário que, questio-nado pelo Rei da China, responde que imporia a religião cristã, caso tivesse força para tanto.49 Que a religião mais forte se imponha às outras, no entanto, é um princípio que todas poderiam adotar. Como cada religião considera-se

43 Basnage de Beauval, H., op. cit., p. 23.

44 Basnage de Beauval, H., op. cit., p. 23.

45 Basnage de Beauval, H., op. cit., p. 23.

46 Basnage de Beauval, H., op. cit., p. 23.

47 Basnage de Beauval, H., op. cit., p. 23.

48 O Comentário Filosófico compreende três partes publicadas em anos diferentes (em 1686, as partes 1 e 2; em 1687, a parte 3) às quais se seguiu um suplemento (em 1688).

49 Cf. Bayle, P. De la Tolérance – Commentaire Philosophique Édité par J.-M. Gros Paris: Honoré Champion, 2014, pp. 121-122.

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verdadeira, todas então poderiam coagir as demais. Essa reciprocidade, o mis-sionário não percebe, implica que “a mesma lei que o Cristianismo faz na Euro-pa contra os idólatras, ele a faz contra si mesmo na Ásia e no Oriente”.50 Apro-fundando-se na questão da idolatria, Basnage de Beauval observa, seguindo o autor, que a lei mosaica prevê a punição dos idólatras. Ocorre, porém, que os homens não receberam de Deus a ordem de punir tudo que ofende a divindade (veja-se o caso da avareza, exemplo dado pelo próprio Locke). Especificamente quanto a Israel, onde a punição aos idólatras era imperativa, isso se explica porque o Estado era teocrático, mas aos cristãos não compete a obediência a essa lei cerimonial. Numa frase lapidar que Basnage de Beauval bem poderia ter incluído na resenha, Locke marca sua posição a esse respeito dizendo que

“não há absolutamente nenhum Estado cristão sob o Evangelho”.51

Apresentada a resposta à objeção, Basnage de Beauval afirma em segui-da que o autor da Carta sobre a Tolerância conclui a obra apontando que o magistrado, na condição de “conservador da tranquilidade comum”, deve dar “plena liberdade a todas as religiões, já que a consciência não é de sua competência”,52 numa clara alusão ao argumento da inadequação da força. A síntese do resenhista é correta e bastante assertiva: “desde que sejamos bons cidadãos, isso basta”.53 Ele faz a ressalva, todavia, de que nem tudo em religião deve ser aceito e então descreve o conjunto de crenças intoleráveis. No fechamento da resenha, que não toca nos conceitos de heresia e cisma, Basnage de Beauval fala das assembleias e, como Le Clerc, ressalta correta-mente a posição de Locke de que elas não são em si mesmas revoltosas, mas o faz supondo que a fonte do problema “está na animosidade que os teólogos muito se esforçam em manter”.54

Vista em sua totalidade, a resenha de Basnage de Beauval é mais livre do que a de Le Clerc não somente por não acompanhar estritamente a sucessão do raciocínio de Locke, como já apontado, mas também por especular sobre a autoria e por realizar uma comparação pontual com o Comentário Filosófico. Ressalta-se ainda que, ao contrário de Le Clerc, Basnage de Beauval omite duas das provas apresentadas por Locke para demarcar a distinção dos fins

50 Basnage de Beauval, H., op. cit., p. 24.

51 Cf. Locke, J., op. cit., p. 79.

52 Basnage de Beauval, H., op. cit., p. 25.

53 Basnage de Beauval, H., op. cit., p. 25.

54 Basnage de Beauval, H., op. cit., p. 25.

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entre Estado e Igreja. Todavia, a despeito dessas diferenças, as duas resenhas se irmanam no fato muito mais importante de se limitarem a reportar o con-teúdo da Carta sobre a Tolerância.55 Na recepção inicial da obra, os juízos críticos a seu respeito haveriam de provir apenas dos clérigos anglicanos.

As críticas

A terceira onda na recepção da Carta sobre a Tolerância é formada pelas crí-ticas à obra publicadas em dois livros: o primeiro deles, de 1689, intitula-se A ‘Carta sobre a Tolerância’ decifrada e o absurdo e impiedade de uma tolerân-cia absoluta demonstrados; o segundo, de 1690, O Argumento da ‘Carta sobre a Tolerância’ brevemente analisado e respondido.56 Clérigos anglicanos, seus autores são, respectivamente, Thomas Long, prebendeiro de Exeter (1661-1701) e polemista contra os dissidentes protestantes; e Jonas Proast, capelão do All Souls College, Oxford (1677-88, 1692-98), mais tarde arcediago de Berkshire (1698-1710). Ambos os livros se baseiam na primeira edição da tradução inglesa de Popple.57 As abordagens que realizam, porém, são bas-tante distintas. Como se verá a seguir, Long tem um tom agressivo, recorre

55 Por essa razão, parece excessiva a afirmação de que as resenhas de Le Clerc e Basnage de Beauval são “muito diferentes”, cf. Soulard, D., op. cit., p. 209.

56 O Tableau du Socinianisme (1690), de Pierre Jurieu, também critica a Carta sobre a Tolerância, mas não é analisado aqui como parte da recepção imediata da obra. Isso se justifica porque não há propriamente no Tableau du Socinianisme uma discussão da Carta sobre a Tolerância, que recebe apenas cinco curtas menções (em meio às 581 páginas do livro): a primeira delas trata generi-camente da caridade (p. 212); a segunda trata da objeção relativa à tolerância da idolatria e do paganismo que, segundo Basnage de Beauval, seria a principal objeção dos intolerantes (p. 436); a terceira reproduz a afirmação de que para o Estado basta que os indivíduos sejam bons cidadãos (p. 511); a quarta e a quinta abordam a delimitação da jurisdição do magistrado, sendo que uma se constitui numa citação da resenha de Basnage de Beauval (p. 508) e a outra consiste numa retomada do exemplo do missionário católico na China (p. 528), o qual, como visto acima, tem como origem o Comentário Filosófico e foi relacionado à Carta sobre a Tolerância por Basnage de Beauval. Muito possivelmente, portanto, Jurieu se limitou a ler a resenha publicada nas Histoires des Ouvrages des Sçavans. Ao discutir a chamada tolerância universal no Tableau du Socinianisme, seu verdadeiro interesse é criticar a Lettre écritte de Suisse en Hollande (1690) e a Apologie des vrais tolerants (1690) de Gédéon Huet e, sobretudo, o Comentário Filosófico. No que se refere à recep-ção da Carta sobre a Tolerância, convém registrar ainda, a título de completude, que ela recebeu um elogio genérico no curto pós-escrito da Lettre écritte de Suisse en Hollande.

57 A licença para impressão do livro de Proast é de 9 de abril de 1690. No limite, portanto, ele poderia ter se valido da segunda edição da tradução inglesa, que ocorreu em março. Para evitar in-compreensões, contudo, o editor dispôs uma breve advertência antes do corpo do texto alertando que “a edição da Carta sobre a Tolerância citada aqui é aquela in quarto”. Como se lê nas descrições bibliográficas das obras de Locke, a primeira edição da tradução inglesa foi uma edição in-4º; a

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muito a passagens bíblicas e, na maior parte do livro, não trata diretamente da Carta sobre a Tolerância. Proast é sóbrio e debate com Locke em termos genuinamente filosóficos.

O livro de Long se inicia com uma dedicatória a John Holt (1642-1710), chefe de justiça da Inglaterra (1689-1710), na qual seu intuito é apresentado:

“contrapor-se àquela liberdade absoluta e incontrolável no culto religioso”.58 A referência derrogatória à liberdade sem dúvida alude ao Prefácio de Popple, que fala em “liberdade absoluta, liberdade justa e verdadeira, liberdade igual e imparcial”, termos jamais empregados por Locke na Carta sobre a Tolerân-cia.59 Essa alusão é compreensível, dada a ausência de indicação de que o Pre-fácio é do tradutor, mas surpreende que Long não tenha notado que a afirma-ção em jogo não corresponde ao conteúdo da obra. Terminada a dedicatória com a humildade de praxe, Long então afirma, logo nas primeiras linhas do primeiro parágrafo, que irá “explicitar os princípios absurdos do autor dessa Carta”,60 mas que deixará para os leitores a tarefa de extrair as consequências.

O primeiro princípio absurdo aos olhos de Long é formulado a partir do trecho do Prefácio de Popple aludido na dedicatória a Holt. Trata-se da liber-dade absoluta de crer e de professar a crença e da consequente legitimidade de se resistir à força com a força. Para Long, essa liberdade absoluta corresponde à tolerância absoluta que é tida como a marca característica da verdadeira igre-ja. Note-se a favor de Locke, contudo, que ele nunca defendeu uma tolerância com essa amplitude (basta pensar no conjunto de crenças práticas intolerá-veis), mas é nesses termos que seu adversário a compreende. Long argumenta que tal tolerância iria afetar a unidade da igreja nas sociedades cristãs, o que contradiz o exemplo da primeira comunidade cristã registrado nos Atos dos Apóstolos 2: 42 e 2: 44. Frente à ameaça de perda da unidade, tanto na doutri-na quanto no culto, Long defende que é preciso “prescrever ou proibir o uso de coisas em sua própria natureza indiferentes”,61 à moda do que fizeram os

segunda, in-12º, cf. Yolton, J. S., op. cit., itens 3-4, pp. 4-6; Attig, J. C., op. cit., itens 51-52, p. 14. No caso do livro de Long, publicado em 1689, esse problema não se coloca.

58 Cf. Long, T. The Letter for Toleration decipher’d and the Absurdity and Impiety of an Absolute Toleration demonstrated London: printed by Freeman Collins and are to be sold by R. Baldwin in the Old-Bay, M DC LXXXIX, dedicatória não paginada.

59 Cf. Locke, J., op. cit., p. 115.

60 Cf. Long, T., op. cit., p. 1.

61 Cf. Long, T., op. cit., p. 2.

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apóstolos ao usar seu poder e autoridade para suprimir erros e cismas. Atitude semelhante, observa Long, tomaram mais tarde os padres ortodoxos contra os arianos e Agostinho e outros bispos contra os donatistas. Essa prescrição ou proibição de coisas indiferentes, vale lembrar, nada mais é do que o uso da força em questões religiosas. É exatamente isso que define a intolerância.

O segundo absurdo apontado consiste no cerne da Carta sobre a Tole-rância: a restrição da jurisdição do magistrado aos bens civis e a recusa de que seu poder se estenda ao cuidado com a salvação das almas. Nenhum argumento de natureza filosófica é apresentado contra a distinção dos fins do Estado e da Igreja. Para questioná-la, Long cita Romanos 13, que trata da sub-missão às autoridades constituídas, subentendendo por isso que a igreja deve estar sob a autoridade do magistrado; em seguida, ele recorre ao exemplo do imperador cristão Constantino e da ordenação de “ritos externos e adminis-trações da Igreja em matérias de unidade e decência”,62 o que constitui uma nova menção às chamadas coisas indiferentes63 e uma alusão a 1 Coríntios 14: 40, em que Paulo, tratando dos carismas, pede que “tudo se faça com decoro e com ordem”; por fim, Long destaca que, segundo as Sagradas Escrituras, os reis devem ser tutores, reproduzindo quase literalmente Isaías 49: 23. Não é difícil compreender o sentido dessas passagens: se, ao tratar do primei-ro princípio, Long defendeu que o Estado pode a usar a força em questões religiosas, agora ele se volta para o outro lado da moeda, por assim dizer, e advoga que a igreja deve se submeter ao poder constituído.

O terceiro princípio absurdo constatado na Carta sobre a Tolerância encon-tra-se na definição de igreja, particularmente na afirmação de que as pessoas se reúnem para cultuar a Deus da maneira que julgam Lhe ser agradável. Long parece pressupor que a definição de igreja proposta por Locke permitiria que os indivíduos abrissem mão das Escrituras e sacramentos, dos bispos ou pas-tores e de regras e leis para guiá-los. Dessa perspectiva, ele então argumenta que as pessoas devem se reunir para fazer cultos segundo o que Deus pres-creveu, não segundo o que elas próprias pensam Lhe agradar, o que constitui uma distorção atestada em Mateus 15: 9. Esse terceiro princípio, contudo, não difere substancialmente do primeiro, exceto pela ênfase na eclesiologia.

Tendo tratado desses três princípios, certamente tidos como importantes, já que se dignou a respondê-los, Long passa a dedicar-se a outros. Encadeados

62 Cf. Long, T., op. cit., p. 3.

63 Na conclusão do livro, Long menciona expressamente dois exemplos emblemáticos de coisas in-diferentes: o uso da sobrepeliz e o sinal da cruz no momento do batismo, cf. Long, T., op. cit., p. 16.

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numa extensa sequência, mais treze princípios são apresentados, mas a estes não se contrapõe nenhum argumento. Long não se dá a esse trabalho, porque, a seus olhos, “a menção deles é uma confutação suficiente”.64 O desprezo pela argumentação se manifesta ainda com ainda maior clareza no passo seguinte do livro, quando Long afirma crer que está “abaixo de qualquer homem só-brio condescender a uma confutação mais pormenorizada do discurso”.65 A Carta sobre a Tolerância, assim, parece-lhe nada mais do que um amontoado de absurdos que na maior parte dos casos sequer necessita de refutação. Além disso, sendo a tolerância um tema há muito debatido, Long afirma que ela já foi contraposta em obras anteriores, como nos escritos de Calvino contra os anabatistas e no De Imperio Summarum Potestastum circa Sacra (1647) de Hugo Grócio (1583-1645), cuja leitura é então recomendada.

Expostos todos os princípios absurdos, Long realiza uma avaliação geral da obra, que para ele é ao mesmo tempo injuriosa para os magistrados e destrutiva para as igrejas cristãs. O quadro que ele delineia envolve ainda, en-tretanto, um terceiro elemento. A seus olhos, o plano do autor é “colocar toda a Igreja e o Estado em confusão por meio da tolerância absoluta, cuja finali-dade é nos pulverizar em seitas inumeráveis e irreconciliáveis de modo que o Papismo possa não somente ser tolerado entre nós, mas obter domínio sobre nós”.66 O juízo de Long acerca da tolerância envolve, em suma, três pontos: (i) a negação aos magistrados do poder que deveriam ter sobre as igrejas; (ii) a proliferação de seitas destrutiva da unidade de doutrina e culto; (iii) a der-rocada da Igreja Anglicana e a ascensão da Igreja Romana. Os pontos (i) e (ii), como já apontado, são faces de uma mesma moeda; o ponto (iii) representa o destino a que eles conduziriam (e ecoa temores que remontam aos reinados de Carlos II e Jaime II). Tão nefasto lhe parece esse cenário que, inspirado nos versículos iniciais de Apocalipse 9, Long compara o autor da Carta sobre a Tolerância aos gafanhotos com aspecto de cavalo e poder de escorpião saídos da fumaça proveniente do abismo.

No restante do livro, Long deixa de tratar da Carta sobre a Tolerância, que se torna apenas um ensejo para que ele exponha a incoerência dos presbite-rianos, círculo ao qual parece supor que o autor da obra pertencia. Nos idos de 1640, período das guerras civis inglesas, os presbiterianos se opunham à

64 Cf. Long, T., op. cit., p. 3.

65 Cf. Long, T., op. cit., p. 5.

66 Cf. Long, T., op. cit., p. 5.

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tolerância das seitas puritanas radicais, mas agora a requeriam para si pró-prios. Na explicitação dessa incoerência, vários autores são citados, entre os quais Thomas Edwards (c. 1599-1648), conhecido por sua heresiologia inti-tulada Gangraena (1646). O objetivo de Long é mostrar que eles passaram de defensores a detratores da intolerância, o que o leva a lhes pedir, não sem cer-ta ironia, que “não condenem nos outros o que permitem para si mesmos”.67

Por fim, para ratificar a necessidade do uso da força em questões religio-sas, Long novamente recorre à autoridade de Agostinho, mas desta vez citan-do a Carta a Bonifácio (417), escrito seminal na história da intolerância.68 De sua perspectiva, não deve haver dúvida de que compete ao magistrado tratar de questões religiosas a fim de assegurar a unidade da igreja. Tendo assim concluído o livro, Long busca confirmar sua posição dispondo nas páginas subsequentes uma espécie de apêndice com uma compilação de citações de diferentes autores, mas principalmente de Richard Baxter (1615-1691), sobre a tolerância, a conformidade, as assembleias, o episcopado e a liturgia. Assim como na parte relativa aos presbiterianos, todavia, também aqui não se dis-cute diretamente a Carta sobre a Tolerância. Ela volta a ser mencionada apenas no epílogo, quando Long insinua uma oposição entre a tolerância absoluta e aquela instituída pela chamada Lei da Tolerância, de maio de 1689, que é bastante limitada e que ele descreve como “condescendências já feitas”.69

Como se pode notar, portanto, A ‘Carta sobre a Tolerância’ decifrada e o absurdo e impiedade de uma tolerância absoluta demonstrados é essencialmente um panfleto. Long não se concentra na obra de Locke, que lhe serve so-bretudo como uma ocasião para criticar os presbiterianos. A rigor, a Carta sobre a Tolerância é discutida somente nas cinco páginas iniciais de um total de trinta, quando Long lista o que chama de princípios absurdos. Seu juízo acerca da obra é tão depreciativo que ele sequer considera necessário refutar cada um desses princípios. Ele só se contrapõe a três deles e o faz apoian-do-se em passagens bíblicas. Sua verve polemista e difamatória supera em muito a argumentativa.

67 Cf. Long, T., op. cit., p. 12.

68 Dos escritos de Agostinho sobre o uso da força em questões religiosas elaborados na contro-vérsia donatista, destacam-se as Cartas 93 (a Vicente, datada de 408) e 185 (a Bonifácio, de 417). Para uma análise detalhada da retomada de Agostinho na Inglaterra, particularmente durante a Restauração, cf. Goldie, M. The theory of Religious Intolerance in Restoration England In: Grell, O. P., Israel, J. I., Tyache, N. (Ed.) From Persecution to Toleration: The Glorious Revolution and Reli-gion in England Oxford: Clarendon University Press, 1991. pp. 331-368.

69 Cf. Long, T., op. cit., p. 30.

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O livro de Proast, por sua vez, é completamente diferente. Seu objetivo de fato consiste em tratar da Carta sobre a Tolerância. Ele é bem escrito e toca em questões cruciais. Não é casual, aliás, que Locke o tenha respondido de pronto, já em 1690, com a Segunda Carta sobre a Tolerância, o que alimentou uma controvérsia que envolveria ainda uma réplica de Proast em 1691 intitu-lada Terceira Carta sobre a Tolerância, respondida por Locke em 1692 com sua própria Terceira Carta sobre a Tolerância, à qual se seguiram anos de silêncio até que Proast voltou à carga em 1704 com uma Segunda Carta sobre a Tole-rância (os títulos das obras de Proast são mesmo confusos). Ainda em 1704, Locke começou a compor sua nova resposta, mas morreu antes de terminá-la. A Quarta Carta sobre a Tolerância, inconclusa, foi publicada nas Obras Póstu-mas de 1706. Não é o caso aqui, porém, de analisar toda essa controvérsia.70 Basta que se perceba o quanto Locke nela se engajou, pois esse engajamento demonstra a relevância que ele atribuiu à crítica de Proast. Sobre o livro de Long, Locke não escreveu uma linha sequer.

Após uma breve dedicatória a um amigo não identificado, datada de 27 de março de 1690, O Argumento da ‘Carta sobre a Tolerância’ brevemente analisado e respondido se inicia com uma síntese da obra em que seu cerce conceitual é identificado: “mostrar que todas as religiões e seitas no mundo, bastando que sejam compatíveis com a sociedade civil e estejam dispostas a tolerar umas as outras, devem ser, em todos os lugares, igualmente toleradas e protegidas ou gozar de uma liberdade igual e imparcial, como o Prefácio a denomina”.71 Como se pode notar, Proast também assume que o Prefácio seja do autor da

70 Para uma análise filosófica da controvérsia entre Locke e Proast, cf. Nicholson, P. John Loc-ke’s later Letters on Toleration In: Horton, J., Mendus, S. (Ed.) John Locke: A Letter Concerning Toleration In Focus New York: Routledge, 1991, pp. 163-187; Vernon, R., The Career of Toleration

– John Locke, Jonas Proast and after Montreal: McGill Queen’s University Press, 1997; Jolley, N. Toleration & Understanding in Locke Oxford: Oxford University Press, 2016; Tate, J. W. Liberty, Toleration and Equality: John Locke, Jonas Proast and the ‘Letters concerning Toleration’ New York: Routledge, 2016; e Loque, F. F. Os Fundamentos da Tolerância Religiosa em John Locke (Tese de Doutorado) Belo Horizonte, UFMG, 2019. Para uma análise histórica da controvérsia vinculan-do-a aos desdobramentos da Revolução Gloriosa, cf. Goldie, M. John Locke, Jonas Proast and Religious Toleration 1688-92 In: Walsh, J., Haydon, C., Taylor, S. (Ed.) The Church of England c. 1688-c. 1833 Cambridge: Cambridge University Press, 1993. pp. 143-171. A título informativo, convém observar que O Argumento da ‘Carta sobre a Tolerância’ brevemente analisado e respondido e a Segunda Carta sobre a Tolerância de Locke foram objeto de resenha na Bibliothèque Universelle et Historique (1690, v. XIX). A Terceira Carta sobre a Tolerância de Locke também foi resenhada, mas nas Histoires des Ouvrages des Sçavans (1694, v. X), depois de ter sido anunciada em número anterior do mesmo periódico (1693, v. IX).

71 Cf. Proast, J. The Argument of the Letter concerning Toleration briefly consider’d and answer’d Ox-ford: printed at the Theatre, for George West and Henry Clements, Booksellers in Oxford, 1690, p. 2.

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obra. Ao contrário de Long, contudo, ele percebe que uma tolerância absolu-ta não está em jogo. Proast corretamente reconhece que, embora a obra come-ce falando de tolerância mútua entre cristãos e depois a estenda para judeus, muçulmanos e pagãos, isso não significa que não haja restrições à tolerância. Ele menciona o ateísmo, as crenças contrárias à sociedade civil e lista no rol do intolerável aqueles que não ensinam que cada um tem o dever tolerar as religiões diferentes das suas.

Proast afirma não acreditar que o autor tenha interesse em prejudicar a religião em geral ou o Cristianismo em particular, mas observa lhe ser difícil imaginar como uma ou outra poderia ser beneficiada pela tolerância. Os ne-gócios e o comércio, estes sim, é que tenderiam a ser promovidos. A comparar com Long, salta aos olhos a sobriedade de Proast. Especificamente quanto a seu próprio livro, ele explica que o plano não é argumentar contra a tolerân-cia, mas “investigar o que nosso autor oferece como prova de sua asserção e examinar se há nela força suficiente para suportar o peso que ele deposita so-bre ela”.72 Assim como Le Clerc, Proast identifica as três provas de Locke para sustentar a restrição da jurisdição do magistrado aos bens civis (ou interesses civis, como ele fala por influência de Popple), mas considera que apenas uma delas representa propriamente um argumento. Trata-se do argumento da inadequação da força. No entanto, antes de analisar como Proast o discute, convém entender sua abordagem das outras duas provas.

A primeira delas é a afirmação de que o encargo com o cuidado com as almas não foi confiado ao magistrado nem por Deus, nem pelos indivíduos. Proast classifica-a como uma petição de princípio e rejeita-a em ambas as vertentes, por assim dizer. No que se refere à primeira delas, ele alega que

“certamente essa autoridade pode ser confiada ao magistrado por Deus”,73 mas não chega a citar versículos bíblicos para justificar sua posição. Quanto à segunda das vertentes, Proast recusa-a por considerar que “é do verdadeiro interesse de cada homem não ser deixado completamente a si mesmo nessa questão”,74 o que significa que confiar ao magistrado o cuidado com as almas não debilita, mas contribui para a busca pela salvação (desde que, claro, o magistrado professe a verdadeira religião).

72 Cf. Ibidem, p. 3.

73 Cf. Ibidem, p. 21.

74 Cf. Ibidem, p. 22.

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A outra prova que Proast julga não constituir propriamente um argumento é a terceira apresentada por Locke, aquela em que se afirma que, caso a força pudesse gerar persuasão e fosse empregada pelo magistrado, diferentes reli-giões seriam impostas ao redor do mundo, o que implica que, havendo apenas uma verdadeira, somente seriam salvas as poucas pessoas que tivessem tido a sorte de nascer no lugar certo. Proast considera esse raciocínio mal formulado, pois não se trata de atribuir ao magistrado o poder de impor a própria religião, mas a verdadeira religião. Só nesses casos o uso da força está autorizado. Além disso, acrescenta ele, mesmo que a força viesse a ser mal empregada, isso causaria somente “o sofrimento de algumas inconveniências toleráveis”, o que não lhe parece ser malefício suficiente à humanidade “a ponto de fazer com que fosse preferível que esse poder não tivesse sido investido no magistrado”.75

Acerca da prova restante, o argumento da inadequação da força, Proast tem muito mais a dizer. É em torno desse argumento que gira praticamente todo seu livro, já que, a seus olhos, não haveria nenhuma outra fundamen-tação para a tese de Locke acerca da restrição da jurisdição do magistrado aos bens civis. Proast subdivide-o em cinco proposições: (1) há apenas uma religião verdadeira; (2) quem não acredita na religião verdadeira não pode ser salvo; (3) a crença deve provir de razão e de argumentos, não da força e da coerção; (4) a força é “completamente inútil” para promover a salvação; donde se conclui que (5) ninguém deve ter o direito de usar força alguma para conduzir os indivíduos à verdadeira religião.76

Proast logo observa que, assim como o autor, ele aceita as proposições (1) e (2). O núcleo da discórdia reside em (3), isto é, na possibilidade de a força gerar persuasão. Evidentemente, não se trata de negar que a força seja “muito inapropriada para ser usada para esse fim em vez da razão e de argumentos”, mas de defender a possibilidade de que ela seja utilizada “somente para levar os homens a analisar aquelas razões e argumentos que são apropriados e sufi-cientes para convencê-los, mas que, sem ser forçados, eles não analisariam”.77 Para Proast, muitos indivíduos não adotam a verdadeira religião por descuido e negligência, por influência de preconceitos e paixões que fazem com que não deem ouvidos àquelas razões apropriadas e suficientes para convencê-

-los. Proast está de acordo com Locke de que a força não pode gerar crenças

75 Cf. Ibidem, pp. 26-7.

76 Cf. Ibidem, pp. 3-4.

77 Cf. Ibidem, pp. 4-5.

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imediata ou diretamente, mas considera que ela pode gerá-las de maneira me-diada ou indireta, obrigando os indivíduos fechados às razões apropriadas e suficientes a ouvi-las. A força opera como um corretivo ao descuido e à negli-gência, aos preconceitos e às paixões. De fato incapaz de produzir ou alterar uma crença diretamente, ela pode, contudo, fazê-lo indiretamente. Nos ter-mos de Proast, portanto, a força tem sim uma utilidade, mas concebida como indireta e à distância. Logo, se a força tem esse uso possível, disso decorre que a proposição (4) tem de ser rejeitada, pois a coerção não é de todo inútil.

Tendo demonstrado a utilidade da força, o raciocínio de Proast se desloca para outro tópico extremamente importante: a necessidade da força. Proast então observa que, se há apenas uma religião verdadeira, a diversidade reli-giosa não deveria existir. Baseando-se em Provérbios 2: 1-5, que trata da busca e do conhecimento de Deus, ele considera que “ninguém que busca como deve pode falhar em encontrar o caminho da salvação”,78 o que significa que a diversidade religiosa só se explica pelo fato de muitos indivíduos não inves-tigarem devidamente as questões religiosas. Eles se deixam levar por precon-ceitos e paixões, como já dito, e acabam descuidando ou sendo negligentes com a investigação. O que fazer nesses casos? Há meios não coercitivos de promoção da verdade, sem dúvida, mas Proast sustenta que tais meios nem sempre são eficientes. A seus olhos, os indivíduos com muita frequência “tor-nam-se tão opiniáticos e tão rígidos em seus preconceitos que, depois disso, nem as mais gentis admoestações, nem as mais sérias solicitações jamais pre-valecem sobre eles” para que examinem a verdade.79 Frente a esse diagnóstico, Proast então infere que não resta outro remédio exceto usar a força. É preciso vencer uma resistência que as palavras não conseguem quebrar. “Quando a instrução é rigidamente recusada e todas as admoestações e tentativas de persuasão se revelam vãs e ineficazes”, escreve ele, “não há lugar para qual-quer outro método senão esse”.80 A força, em suma, não é apenas útil quando usada indiretamente e à distância, ela é também necessária em todos os casos de obstinação de um indivíduo pelas próprias crenças.

O problema que a partir daí se coloca diz respeito ao grau de força a ser empregado. Trata-se de algo que é difícil de determinar com precisão, de modo que o próprio Proast admite que esse é um ponto do seu raciocínio

78 Cf. Ibidem, p. 7.

79 Cf. Ibidem, p. 10.

80 Cf. Ibidem, pp. 11-12.

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(segundo ele, o único) que pode vir a ser alvo de questionamento. O que ele prescreve é apenas que a força deve ser “proporcional” ao objetivo que se pretende alcançar,81 isto é, que sejam instituídas penalidades “usualmente suficientes para prevalecer sobre homens de discernimento comum, e não desesperadamente perversos e obstinados, para fazê-los pesar cuidadosa e imparcialmente as questões de religião”.82 Proast tem o cuidado de descartar as punições extremas, como a privação de bens, o sofrimento físico, o aprisio-namento e a execução. Essas crueldades ou severidades, como ele as denomi-na, não bastasse ser deploráveis, possuem ainda um efeito contraprodutivo: tanto os que as sofrem quanto os que as assistem ser empregadas tendem a se afastar da religião em nome da qual elas são utilizadas.

Sendo assim, tendo mostrado a utilidade e a necessidade da força, bem como indicado o grau em que deve ser empregada, Proast retoma a proposi-ção (5) a fim de rejeitá-la expressamente. Assumindo-se que a força possa ser útil e que seja necessária, torna-se insustentável a asserção de que ninguém deve ter o direito de usá-la em questões religiosas. Para a salvação de muitos indivíduos, é sim preciso que ela seja usada. A questão agora é: por quem? Segundo Proast, o direito a usar a força para a salvação das almas compete ao magistrado, àqueles que possuem autoridade dele derivada e também, num grau menor, aos pais, senhores de família e tutores, mas jamais às pessoas privadas, aos clérigos e às igrejas. O uso da força em questões religiosas, por-tanto, é um atributo essencialmente político que pertence ao magistrado ou dele advém. Isso significa, noutras palavras, que a jurisdição do magistrado não deve se restringir aos bens civis, mas se estender ao cuidado com as al-mas. Ressalte-se, todavia, que essa prerrogativa do magistrado se justifica pela utilidade e necessidade da força, mas só faz sentido pensá-la supondo que esteja voltada para a promoção da verdadeira religião. Não fosse assim, como o próprio Proast ressalta, o “verdadeiro interesse” dos indivíduos não seria contemplado e eles não confeririam ao magistrado esse poder.

Por fim, convém notar que Proast também aborda a noção de caridade com o intuito de avaliar se essa virtude cristã é compatível como o uso da força. Naturalmente, ele precisa tratar dessa incompatibilidade apontada na Carta sobre a Tolerância e nas duas resenhas de que ela foi objeto. O caminho de Proast é desmembrar a noção de caridade em três categorias: em primeiro lugar, a que ele chama de “fraternal”, que diz respeito ao cuidado que todos

81 Cf. Ibidem, p. 13.

82 Cf. Ibidem, pp. 14-15.

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devem ter uns com os outros; em segundo, a caridade dita pastoral, que compreende o trabalho de aconselhamento e orientação feito pelos cléri-gos; por último, a caridade descrita como “cuidado exterior e mais remoto das almas”, que se caracteriza pela possibilidade de se obrigar, “sob sanções temporais”, aqueles que não abraçam a verdade a se submeter à direção espiritual que os levará a repensar suas posições.83 Dessas três, somente a caridade mais exterior e remota pode se valer da força, mas isso não muda o fato de que Proast tem de admitir que a força e a caridade são compatíveis. Em sua Terceira Carta sobre a Tolerância, publicada um ano depois, ele já não mais haveria de hesitar em reconhecer abertamente a compatibilidade das punições com o “método do Evangelho”.84

Como se pode notar, apesar de muito bem construído, o livro de Proast não percorre toda a Carta sobre a Tolerância, mas se concentra no cerne da obra: a tese sobre a restrição da jurisdição do magistrado aos bens civis e as provas para sustentá-la. Seu argumento sobre a utilidade da força é pertinen-te, ainda que não seja original,85 e se articula a outras noções importantes: necessidade da força, proporção no uso da força, verdadeiro interesse dos indivíduos, para não mencionar a questão da caridade. Ao contrário de Long, Proast elabora uma crítica genuína e isenta de impulsos difamatórios ou pole-mistas. O próprio fato de Locke tê-lo respondido é um indicativo de seu valor, embora talvez não de sua correção.

Conclusão

A recepção da Carta sobre a Tolerância pode ser dividida em três ondas: tra-dução, resenha e crítica. No caso das duas primeiras, é notório o esforço para dar maior circulação à obra, seja fazendo-a acessível em diferentes línguas, seja anunciando-a em periódicos eruditos. A onda crítica, por sua vez, opera na contracorrente, já que tem como objetivo questionar a pertinência da obra. Essas três ondas, contudo, não são estanques: há interseções entre elas tanto

83 Cf. Ibidem, p. 20.

84 Cf. Proast, J., A Third Letter concerning Toleration: in defense of the Argument of the Letter con-cerning Toleration briefly consider’d and answer’d Oxford: printed by L. Lichfield for George West and Henry Clements, 1691, p. 38.

85 No Comentário Filosófico, Bayle aborda essa mesma objeção sobre o uso indireto e à distância da força, cf. Bayle, P. op. cit., p. 101.

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do ponto de vista cronológico, já que ocorreram de maneira praticamente simultânea, quanto do ponto de vista das influências, dado que a tradução de Popple foi utilizada por Long e Proast.

No que se refere às traduções, a francesa acabou sendo publicada apenas em 1710, ao passo que a holandesa e a inglesa foram editadas já em 1689. A tradução inglesa foi sem dúvida a mais importante e se caracterizou pela vivacidade que Popple lhe imprimiu (reconhecida pelo próprio Locke), mas também pela adaptação do texto de chegada ao contexto inglês e pela in-serção de algumas interpolações. Ressalte-se ainda que a opção de tradução para bona civilia, ‘interesses civis’, introduziu no léxico de Locke um termo que não lhe é recorrente.

Quanto às resenhas e críticas, deve-se reconhecer que, apesar das dife-rentes formulações, elas captam a tese central da obra, embora nem sempre identifiquem com precisão os três argumentos que a sustentam. Le Clerc e Proast são os únicos a apontá-los, sendo que este último o faz para descartar dois deles, considerados, num caso, uma petição de princípio; no outro, uma má formulação. A seus olhos, como aos de Basnage de Beauval, o importante era enfatizar o chamado argumento da inadequação da força. Resenhistas e críticos, todos também perceberam que a restrição da jurisdição do magis-trado aos bens civis (ou aos interesses civis, como traduz Popple) implica a possibilidade de os indivíduos se vincularem às igrejas que julgarem mais adequadas. A sociedade que se constituiria a partir daí seria assim certamente muito diversa do ponto de vista religioso, o que não significa, porém, que Locke não tenha imaginado limites à tolerância. O caso dos ateus é aqui emblemático, mas há outras crenças e comportamentos intoleráveis, como Le Clerc e Proast bem indicaram. A tolerância absoluta de que fala Long, ins-pirada no Prefácio de Popple, é uma terrível imprecisão ou, quem sabe, uma estratégia polemista intelectualmente desonesta.

Do restante da Carta sobre a Tolerância, cujas seções Le Clerc demarcou com precisão, o outro grande ponto conceitual enfatizado diz respeito à cari-dade ou, mais precisamente, à relação entre caridade e coerção. Proast elen-cou três categorias diferentes de caridade e apontou que apenas numa delas pode haver uso da força. Talvez assim ele tenha buscado atenuar o que, para os olhos de Locke, é uma pura e simples contradição. Proast, contudo, não é exceção entre os intolerantes, que não hesitavam em alegar que pode haver um uso caridoso da força. Ater-se a uma concepção de intolerância como

“ódio pelo erro” ou “amor pela verdade” era a estratégia mais comum a que eles recorriam, como indicou Basnage de Beauval.

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Os intolerantes tinham plena consciência de que suas posições representa-vam a defesa do uso da força em questões religiosas. Proast admite isso aberta-mente, mas fez questão de ressaltar que não era favorável a crueldades ou se-veridades. A coerção deveria ser empregada num grau suficiente para demover aqueles que não fossem irremediavelmente obstinados. Dos demais, só mesmo Deus poderia dar conta. Segundo Proast, a verdadeira religião possui argu-mentos claros e suficientes a seu favor, motivo pelo qual apenas o predomínio de preconceitos e paixões poderia explicar sua recusa. O que ele não percebe, entretanto, é que os dissidentes ou errantes poderiam reivindicar o mesmo acerca de suas religiões. Como exemplifica Basnage de Beauval recorrendo ao caso do missionário cristão e do Rei da China extraído do Comentário Filosófico, a pretensão à verdade é partilhada por todos e, portanto, não pode servir como justificativa para o uso da força. Tal raciocínio por reciprocidade, também Le Clerc o aponta em sua resenha. Essa maneira de pensar é o que explica o fato de Locke não recorrer à noção de verdade ao definir igreja. A rigor, se as cren-ças e cultos de uma determinada igreja não são verdadeiros e agradáveis a Deus, isso não causa dano às demais igrejas e aos indivíduos a elas vinculados. E, se esse é o caso, que sentido poderia haver para o uso da força? Ao contrário de Long e Proast, Locke percebe que a busca da unidade de crença e culto por meio da coerção tem um enorme custo social: todos os oprimidos, indivíduos e igrejas, tendem a resistir. Não é a tolerância, portanto, mas a ausência dela, a causa dos conflitos religiosos, como Le Clerc e Basnage de Beauval destacaram.

A despeito de suas diferenças, em suma, todos os resenhistas e críticos compreenderam que o cerne da Carta sobre a Tolerância consiste numa con-cepção da relação entre Estado e Igreja segundo a qual, sendo a tarefa do Estado preservar e promover os bens civis, não lhe compete preocupar-se com a dimensão espiritual das crenças e cultos. Importa-lhe unicamente sua dimensão política, isto é, as consequências que podem ter sobre os bens civis de terceiros e sobre a tranquilidade social. A salvação das almas, dessa pers-pectiva, é algo que interessa apenas aos indivíduos. Para o Estado, como sin-tetizou Basnage de Beauval, “desde que sejamos bons cidadãos, isso basta”.86

86 Pela leitura e comentários ao presente artigo, agradeço a Newton Bignotto, Antônio Carlos dos Santos, Natália Tavares Campos e Hélio Dias. Agradeço ao Pedro Vianna Faria a ajuda gentil na obtenção de material bibliográfico. Registro ainda com tristeza o fato de não ter conseguido acesso aos seguintes artigos: Colie, R. L. John Locke in the Republic of Letters In: Bromley, J. S., Kossman, E. H. (Ed.) Britain and The Netherlands. Papers delivered to the Oxford-Netherlands Historical Confe-rence London: Chatto and Windus, 1960. pp. 111-29 e Vet, J. de John Locke in the ‘Histoires des Ouvrages des Savants’ In: Bots, H. (Ed.) Henri Basnage de Beauval en de Histoire des Ouvrages de Savants 1687-1709 Amsterdam: Holland Universiteits Pers, 1976-84. v. II, pp. 183-270.

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* Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Contato: [email protected].

Adeus à Bildung?A universidade e a formação

pela ciência em Max Weber

Farewell to Bildung?Max Weber on University

and Scientific Education

Resumo

As reflexões de Max Weber sobre a universidade e a formação pela ciência, desenvolvidas especialmente em sua clássica conferência “A ciência como vocação” (1919), integram uma tradição cuja origem remonta à Aufklärung. Weber se confronta particularmente com o legado das experiências de Schiller, Fichte e Schelling em Jena, por sua vez assimilado por Wilhelm von Humboldt no projeto da Universidade de Berlim, fundada em 1810 sob o ideal da Bildung durch Wissenschaft. O presente artigo procura mostrar de que modo as reflexões de Weber podem ser entendidas como uma despedida desse ideal.

Palavras-chave: Max Weber; Universidade; Ciência como vocação; Bildung durch Wissenschaft.

Abstract

Max Weber’s reflections on university and scientific education, specially developed in his classical lecture “Science as a Vocation” (1919), integrate a tradition whose origin dates back to the Aufklärung. Weber confronts particularly with the legacy of the experience of Schiller, Fichte and Schelling in Jena, on its turn assimilated by Wilhelm von Humboldt in the project of the University of Berlin, founded in 1810 under the ideal of the Bildung durch Wissenschaft. This article aims to show how Weber’s reflections can be understood as a farewell to that ideal.

Keywords: Max Weber; University; Science as a Vocation; Bildung durch Wissenschaft.

Recebido em: 26/06/2020 Aceito em: 20/12/2020

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A ciência é, atualmente, uma “vocação” alicerçada na especialização e posta ao serviço de uma tomada de consciência de nós mesmos e do conhe-cimento das relações objetivas. A ciência não é produto de revelações, nem é graça que um profeta ou um visionário houvesse recebido para assegurar a salvação das almas; não é também porção integrante da meditação de sábios e filósofos que se dedicam a refletir sobre o sentido do mundo. Tal é o dado inelutável de nossa situação histórica, a que não podemos escapar, se desejarmos permanecer fiéis a nós mesmos.1

A conferência “Ciência como vocação” não é apenas uma das obras mais im-portantes e impressionantes de Max Weber; ela é também um dos clássicos de uma tradição de textos cuja origem remonta à época da Aufklärung. No centro dessa tradição, um problema recorrente: a universidade e o seu papel na formação (Bildung) dos indivíduos. Max Weber proferiu sua famosa con-ferência em Munique, em 7 de novembro de 1917, a convite da “Liga dos estudantes livres”. Seus membros eram jovens republicanos e liberais que se opunham ao conservadorismo e ao corporativismo da velha tradição alemã das ordens estudantis; ao mesmo tempo, estavam empenhados em restituir aos estudos superiores o já arrefecido espírito da Bildung.2 A conferência de Weber seria a primeira de uma série, anunciada sob o título “O trabalho espiritual como vocação”. Além da ciência, a educação, a arte e a política estavam na pauta dos organizadores. Como lemos nas memórias de um dos seus ouvintes, Karl Löwith, à época um Freistudent, as conferências tiveram lugar no salão de uma conhecida livraria, no qual os estudantes costumavam se reunir semanalmente para seminários e discussões noturnas sobre temas filosóficos, políticos e sociais.3

O problema da natureza e da função da universidade se apresentou para os precursores e criadores da universidade moderna como um autêntico pro-blema prático-filosófico. Que se pense em Kant, quando, na primeira disserta-ção de O Conflito das faculdades (1798), estendeu as exigências da Aufklärung

1 Weber, M. A Ciência como vocação. In: ____. Ciência e política. Duas vocações. Trad. Leonidas Hegenberg e Octany S. da Mota. São Paulo: Cultrix, 1972, p. 47.

2 Cf. Schluchter, W. Einleitung e Mommsen, W. e Morgenbrod, B. Editorischer Bericht. In: Max Weber Gesamtausgabe I/17: Wissenschaft als Beruf 1917/1919 – Politik als Beruf 1919. Ed. Wolfgang J. Mommsen e Wolfgang Schluchter, com Birgitt Morgenbrod. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Sie-beck), 1992, p. 1 segs. e p. 49 segs.

3 Löwith, K. Mein Leben in Deutschland vor und nach 1933. Ein Bericht. Frankfurt am Main: Fis-cher, 1979, p. 16-7.

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à estrutura da universidade, defendendo as prerrogativas que a “faculdade inferior”, a Faculdade de Filosofia, deveria passar a possuir num momento em que, por força da crítica da razão, a filosofia deixava para trás séculos de um desgastante “tatear” às cegas no âmbito do conhecimento metafísico para encontrar, pela primeira vez, sua via regia, o “caminho seguro de uma ciência” (KrV, B VI), comparável ao que já havia sido percorrido pela lógica, a matemá-tica e a física matemática. Que se pense também na aula inaugural de Schiller da Universidade de Jena, “O que significa e com que fim se estuda a história universal?” (1789). Diante do imenso público que fora recebê-lo no novo posto, Schiller deplorou o “erudito ganha-pão” (Brodgelehrte), mediocremen-te afeito a uma “ciência ganha-pão” (Brodwissenschaft), como se os estudos superiores fossem simples “estudos ganha-pão” (Brodstudien) e a universidade uma mera escola profissionalizante, e não uma instituição destinada a formar o indivíduo como uma “cabeça filosófica”, capaz de mover-se com autonomia e discernimento não só no âmbito das ciências, como também no das mais altas exigências da vida prática.4 Esse mesmo motivo foi brilhantemente re-tomado por Fichte no semestre de verão de 1794, quando deu início à sua atividade docente em Jena, num famoso ciclo de preleções públicas sobre a Bestimmung des Gelehrten, a “destinação do erudito”.5 Outro marco histórico foi o Kolleg de Schelling no semestre de verão de 1802, também em Jena, logo editado sob o título Preleções sobre o método do estudo acadêmico (1803). Elas são a formulação mais abrangente de um motivo que, desde então, acompa-nharia todas as discussões em torno da essência e da destinação da universi-dade moderna: a ideia da formação pela ciência (Bildung durch Wissenschaft.)6

Recolhida por Wilhelm von Humboldt, essa ideia tornar-se-ia a diretriz de um modelo ao qual associamos o seu nome: o da Universidade de Berlim (1810). Num esboço inacabado de um projeto para a nova universidade, lê-se logo nas primeiras linhas:

4 Schiller, F. Was heisst und zu welchem Ende studiert man Universalgeschichte? Eine akademis-che Antrittsrede. In: Schillers Werke. Nationalausgabe. Bd. 17: Historische Schriften. Erster Teil. Ed. Karl-Heinz Hahn. Weimar: Hermann Böhlaus Nachfolger, 1970, p. 359-76.

5 Fichte, J. G. O destino do erudito. Trad., notas e posfácio Ricardo Barbosa. São Paulo: Hedra, 2014; ____. Moral para eruditos. Preleções públicas na Universidade de Jena 1794-95. Org., trad., introd. e notas Ricardo Barbosa. São Paulo: LiberArs, 2019.

6 Barbosa, R. A formação pela ciência. Schelling e a ideia de universidade. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010; ____. Schellings Vorlesungen über die Methode des akademischen Studiums. Historisch-

-kritische Bemerkungen zur Überlieferung. Berliner Schelling Studien, 8, 2011, p. 11-25.

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O conceito das instituições científicas superiores, enquanto o cume no qual se reúne tudo o que advém imediatamente para a cultura moral da nação, baseia-se em que estas estão destinadas a elaborar a ciência no sentido mais profundo e amplo da palavra, e em oferecer à formação espiritual e ética um material que, embora não intencionalmente preparado para isso, é por si mesmo adequado para a sua utilização. Por isso, sua essên-cia consiste em, internamente, vincular a ciência objetiva com a formação subjetiva e, externamente, em vincular o ensino escolar já concluído com o estudo que se inicia sob orientação própria, ou antes em realizar a tran-sição de um ao outro. Mas somente a ciência permanece como o ponto de vista principal. Pois na medida em que essa se encontra aí em sua pureza, é apreendida corretamente por si mesma e em sua totalidade, por mais que ocorram desvios isolados.7

Pouco mais de um século separa a fundação da Universidade de Berlim das reflexões de Weber sobre a ciência como vocação. Elas se deixam ler como uma sóbria avaliação do que, afinal, foi o maior legado prático-institucional do idealismo alemão: um modelo universitário destinado a transformar, pela força de sua irradiação, o legado medieval do Studium Generale. Para Weber, esse modelo, do qual Jena fora o casulo espiritual, tornara-se quase irreco-nhecível. Sob muitos aspectos, as universidades alemãs já se assemelhavam às norte-americanas, apesar do monopólio estatal e da influência eclesiástica. Sua estrutura já era, em boa medida, a de uma “grande empresa universitá-ria capitalista”.8 Embora nas humanidades o acadêmico ainda fosse em ge-ral “proprietário pessoal de seus meios de trabalho (essencialmente, de sua biblioteca)”, produzindo suas obras “à semelhança do artesão de outrora”, nas demais faculdades e institutos já se impunha o “fenômeno específico do capitalismo, que é o de ‘privar o trabalhador dos meios de produção’”.9 Uma vez monopolizados pelo Estado e administrados com certo despotismo pelos dirigentes das faculdades e institutos, o professor em início de carreira, o Privatdozent, como o assistente nas universidades norte-americanas, ver-se-

-ia agora numa posição “tão precária quanto a de qualquer outra existência

7 Humboldt, W. von. Über die innere und äussere Organisation der höheren wissenschaftlichen Anstalten in Berlin. In: Weischedel, W. (org.), Idee und Wirklichkeit. Dokumente zur Geschichte der Friedrich-Wilhelm-Universität zu Berlin. Berlim: Walter de Gruyter, 1960, p. 193.

8 Weber, M. A Ciência como vocação, p. 20.

9 Ibidem, p. 19-20.

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‘proletaróide’” – uma tendência que, para Weber, logo arrastaria consigo as humanidades, fazendo desaparecer o erudito “artesão”.10 “A antiga organi-zação universitária tornou-se uma ficção, tanto no que se refere ao espírito, como no que diz respeito à estrutura.”11

Naturalmente, Weber não foi o primeiro a diagnosticar as crises e as trans-formações do modelo humboldtiano. As reformas de Helmholtz, quando rei-tor da Universidade de Berlim (1877-8),12 foram significativas o bastante para atestar que o modelo originário há muito ultrapassara o seu zênite, se é que um dia chegara a atingi-lo.13 E que se pense também no olhar que o jovem Nietzsche, ainda professor de filologia em Basel, já havia lançado sobre o sistema de ensino alemão, particularmente o ginásio, em suas conferências inacabadas Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino (1872).14 A luz que emana dos escritos de Nietzsche e de Helmholtz é a do poente da Bildung. Na conferência de Weber vemos talvez o seu último raio. Uma despedida da Bildung? De certo modo, sim. Mas por que apenas “de certo modo”? – É o que tentarei justificar a seguir.

Desde que passou a ser usada como uma palavra já não mais destinada apenas à caracterização dos seres vivos e de sua organização, embora sua origem remonte à mística medieval, estendendo-se ao homem e à sua con-figuração espiritual, a palavra Bildung adquiriu o sentido de um equivalen-te moderno e marcadamente germânico do que a Aufklärung grega chamara de paidéia.15 Com isso, torna-se clara a distinção entre Bildung e Ausbildung. A Ausbildung é mais restrita. Ela se refere antes de tudo aos procedimentos necessários à capacitação profissional. Embora a Bildung também requeira essa capacitação, ela se destina à formação do homem na totalidade de suas forças e na universalidade de sua condição. Sua meta é faustiana: o indivíduo

10 Ibidem, p. 20.

11 Ibidem.

12 Helmholtz, H. Über die akademische Freiheit der deutschen Universitäten: Rede beim Antritt des Rectorats an der Friedrich-Wilhelms-Universität zu Berlin am 15. October 1877. Berlim: August Hirschwald, 1878.

13 Cf. Barbosa, R. e Videira, A. A. Autonomia e liberdade na vida universitária. In: Ciência hoje, 36, 2005, p. 32-35.

14 Nietzsche, F. Über die Zukunft unserer Bildungs-Anstalten. In: ____. Werke, vol. 3. Munique: Hanser, 1982.

15 Jaeger, W. Paidéia. A formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 10.

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harmonioso, a personalidade16 multifacetada, à qual tudo que é humano não pode nem deve ser estranho. Que a ciência fosse capaz de promover tal for-mação é uma convicção que só se torna compreensível quando a palavra

“ciência” não é tomada no sentido das disciplinas empíricas e das técnicas delas derivadas; pois assim como a Bildung não se confunde com a Ausbildung, a ciência de que se trata aqui se distingue como a ciência – die Wissenschaft

– por excelência: a filosofia. Formação pela ciência significa, em última ins-tância, formação pela filosofia. Pouco importa se a formação é a do teólogo, do jurista ou do médico; se se trata de formação, isso implica não só que o estudante compreenda a mediação do particular pelo universal no seu saber como também que se eleve do particular ao universal no seu próprio ser. A unidade das ciências, da qual a universidade deveria ser a forma viva, é indis-sociável da unidade da personalidade, meta de toda a formação. Não se forma o especialista sem que se forme o homem; mas quando se forma o homem, forma-se mais que o especialista.

Essa convicção era comum a Schiller e Fichte, Schelling e Hegel. Ainda que não a expressassem ingenuamente, ela soa como um grito numa batalha perdida quando nos lembramos das advertências de quem, já àquela época, era visto como uma personificação do ideal da Bildung: Goethe. Afinal, não fora ele a perceber que a hora da despedida do “homem universal” havia soa-do? Não fora ele a mostrar aos seus contemporâneos que toda escolha é uma renúncia, que eleger um caminho para a própria vida é abdicar dos demais? Reencontramos esses motivos justamente ao final de A ética protestante e o espírito do capitalismo. Weber observa que

a conduta de vida racional baseada na ideia de vocação nasceu (...) do es-pírito da ascese cristã. (...) Que a limitação ao trabalho especializado, com a renúncia à faustiana universalidade da humanidade que a condiciona, é em geral, no mundo de hoje, pressuposto do agir pleno de valor; que, por-tanto, a “ação” e a “renúncia” hoje inevitavelmente se condicionam uma à outra: esse motivo ascético fundamental do estilo de vida burguês – se ele quer ser justamente um estilo e não falta de estilo – também Goethe

16 Lichtenstein, E. Bildung. In: Historisches Wörterbuch der Philosophie. Ed. Joaquim Ritter. Basel e Stuttgart: Schwabe & Co., 1971, vol. 1, col. 921-37, esp. col. 924; cf. tb. Menze, C. Humanis-mus, Humanität. In: op. cit., vol. 3, 1974, col. 1217-9; Gadamer, H.-G. Wahrheit und Methode. Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1990, p. 15-24; Ringer, F. O declínio dos mandarins alemães. A comunidade acadêmica alemã, 1890-1933. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Edusp, 2000, p. 108-17.

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quis nos ensinar, do alto de sua sabedoria, nos Wanderjahren e no final de vida que deu ao seu Fausto. Para ele, esse reconhecimento significava uma renunciadora despedida de uma época plena e bela da humanidade, que no curso do nosso desenvolvimento cultural não se repetirá, assim como não se repetiu a época do florescimento de Atenas na Antiguidade.17

Em face desse desenvolvimento, o ideal da Bildung soa como algo tornado ex-temporâneo. O que pode então significar a ciência como Beruf, ou seja, como vocação e como profissão?18 O que pode significar ser chamado pela ciência e para a ciência? Os Freistudenten esperavam ouvir de Weber uma resposta a essa pergunta – uma pergunta que também poderia ser formulada do seguinte modo: qual o legado da Bildung para uma universidade que já não só teve a Fa-culdade de Filosofia deslocada do seu centro como também não mais possui um centro em parte alguma? Sob tais condições, que espécie de formação ainda é lícito esperar da e para a ciência como um Beruf substancialmente transformado?

Quando Humboldt aceitou a missão de criar uma universidade em Berlim, Fichte e Schleiermacher foram seus colaboradores imediatos. Ambos apre-sentaram planos detalhados.19 Em linhas gerais, o de Schleiermacher preva-leceu. Ele também escreveu os primeiros estatutos, mas Fichte foi o primeiro reitor eleito. Apesar das muitas divergências entre eles, havia um sólido con-senso de fundo, a começar pela ideia da unidade da ciência – uma unidade filosófica, sistematicamente articulada como uma unidade enciclopédica. Já à época de Helmholtz nada restava dessa ideia. A totalidade do saber se mos-trava antes cindida entre as ciências do espírito e as ciências naturais, exitosas

17 Weber, M. Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus. In: ____. Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie I. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1988, p. 202-3.

18 A palavra Beruf, que significa tanto vocação (do latim vocare: chamar) quanto profissão, remete ao verbo rufen (chamar) e ao substantivo Ruf (chamado). No mundo germânico, quando um professor é convidado a lecionar numa universidade, diz-se que ele recebeu um Ruf dessa univer-sidade. Sobre as raízes religiosas de Beruf, consulte-se o início do capítulo 3 de A ética protestante e o espírito do capitalismo: “O conceito de vocação em Lutero”.

19 Fichte, J. G. Deducirter Plan einer zu Berlin zu errichtenden höheren Lehranstalt (1807). In: ____. Sämmtliche Werke, vol. 8. Berlim: Walter de Gruyter, 1971; Schleiermacher, F. D. Gelegentliche Gedanken über Universitäten in deutschen Sinn (1808). In: ____. Texte zur Pädagogik. Kommentier-te Studienausgabe. Bd 1. Ed. M. Winkler e J. Brachmann. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2000. Cf. tb. Müller E. (org.). Gelegentliche Gedanken über Universitäten. J. J. Engel, J. B. Erhard, F. A. Wolf, J. G. Fichte, F. D. E. Schleiermacher, K. F. Savigny, W. v. Humboldt, G. W. F. Hegel. Leipzig: Reclam, 1990; VVAA. La idea de la universidad en Alemania. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1959; Ferry, L., Pesron, J.-P. e Renaut, A. (org.). Philosophies de l’Université. L’idéalisme allemand et la ques-tion de l’Université. Textes de Schelling, Fichte, Schleiermacher, Humboldt, Hegel. Paris: Payot, 1979.

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e independentes. Do mesmo modo, a velha arquitetônica da universidade, com suas quatro faculdades – a inferior (a Faculdade de Filosofia) e as três superiores (Teologia, Direito e Medicina), uma herança da universitas studio-rum medieval – já havia caído por terra. A estrutura universitária tornara-se muito mais complexa, com novos institutos, faculdades, cursos. A vocação científica, como apontou Weber, já se transformara.

Em nossos dias e referida à organização científica, essa vocação é deter-minada, antes de tudo, pelo fato de que a ciência atingiu um estágio de especialização que ela outrora não conhecia e no qual, ao que nos é dado julgar, se manterá para sempre. A afirmação tem sentido não apenas em relação às condições externas do trabalho científico, mas também em re-lação às disposições interiores do próprio cientista, pois jamais um indiví-duo poderá ter a certeza de alcançar qualquer coisa de verdadeiramente valioso no domínio da ciência, sem possuir uma rigorosa especialização.20

No momento em que Weber se dirige aos estudantes de Munique, os efeitos da especialização já são de tal modo irreversíveis, que se alguma unidade das ciências é ainda possível, ela parece resultar da perspectiva aberta por uma clara distinção entre fatos e valores. Sem dúvida, a filosofia terá aqui o seu lugar: um lugar ao lado – nunca acima, mas também nunca abaixo – das ciências. O modelo universitário clássico-moderno era, de certo modo, a ma-terialização da unidade do saber como a unidade da razão sob um princípio incondicionado, como podemos ler no famoso documento de Humboldt.21 Já a universidade que Weber tem diante dos olhos é, por assim dizer, uma universidade pós-metafísica. O que resta da unidade da razão e da própria instituição universitária se o teórico e o prático parecem agora eternamente cindidos em duas esferas: a dos juízos propriamente científicos sobre fatos e a dos juízos de valor, cientificamente incontroláveis?

À semelhança de Kant, que admitiu ter limitado a razão para abrir espaço à crença, Weber distinguiu rigorosamente entre a esfera dos juízos científi-cos e a dos juízos de valor, mas com esta diferença fundamental: ele tornou a esfera dos valores e das valorações de certo modo impermeável à racio-nalidade científica. Sua premissa era muito clara: “a tarefa de uma ciência empírica”, e também de uma ciência racional, “jamais pode ser procurar

20 Weber, M. A Ciência como vocação, p. 24.

21 Humboldt, W. von. op. cit., p. 195.

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(ermitteln) normas e ideais de caráter obrigatório para deles poder deduzir receitas para a práxis.”22 Como Tolstoi, Weber pergunta: o que é lícito es-perar da ciência, já que ela não nos diz nem pode nos dizer como devemos viver e o que devemos fazer?

Weber estava convencido de que, apesar disso, o conhecimento científico era capaz de nos oferecer três contribuições fundamentais. A primeira delas seria o domínio técnico da natureza.

Todas as ciências da natureza nos dão uma resposta à pergunta: que de-vemos fazer, se quisermos ser tecnicamente senhores da vida. Quanto a indagações como ‘isso tem, no fundo e afinal de contas, algum senti-do’, ‘devemos e queremos ser tecnicamente senhores da vida?’ aquelas ciências nos deixam em suspenso ou aceitam pressupostos, em função do fim que perseguem.23

Esse argumento deixa claro que a racionalidade própria às ciências naturais é essencialmente técnica ou, melhor, instrumental. Excluir da esfera da racio-nalidade instrumental todas as questões práticas que transcendem os limites da pura técnica significa afirmar que as ciências naturais são capazes apenas de determinar os meios mais eficazes para a realização de fins previamente dados. Portanto, liberar a esfera prática da tutela da razão significa afirmar, contra boa parte da tradição filosófica, que o reino dos fins está entregue a si mesmo. A ciência ocupa-se agora apenas da racionalidade dos meios.

A segunda contribuição fundamental da ciência seria a de que ela nos oferece “métodos de pensamento, isto é, os instrumentos e uma disciplina.”24

Isso, porém, depende da aceitação de alguns pressupostos. “Todo trabalho científico pressupõe a validade das regras da lógica e da metodologia, que constituem os fundamentos gerais de nossa orientação no mundo.”25 Ocorre que, por outro lado, “ciência alguma tem condição de provar seu valor a quem lhe rejeita os pressupostos.”26 Assim, aquele que rejeita a validade das

22 Weber, M. Die “Objektivität” sozialwissenschaftlicher und sozialpolitischer Erkenntnis. In: ____. Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1988, p. 149.

23 Idem, A Ciência como vocação, p. 37.

24 Ibidem, p. 45.

25 Ibidem, p. 36.

26 Ibidem, p. 49.

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regras da lógica e da metodologia – ou seja, precisamente aquelas condições em que o conhecimento é produzido e criticado, garantindo-lhe alguma “ob-jetividade” – rejeita um determinado valor: o valor da verdade.

Para quem essa verdade não é valiosa – e a crença no valor da verdade cien-tífica é produto de determinadas culturas, e não um dado da natureza – nada temos a oferecer com os meios da nossa ciência. Mas decerto buscará em vão uma outra verdade que substitua a ciência naquilo que somente ela pode fornecer: conceitos e juízos que não são a realidade empírica e nem a repro-duzem, mas permitem ordená-la pelo pensamento de um modo válido.27

Entretanto, a ciência ainda é capaz de nos oferecer algo mais que o ordena-mento conceitual do mundo empírico: ela pode iluminá-lo, pode propor-cionar uma certa clareza sobre as coisas e nossas escolhas. Ela se revela aqui como um precioso instrumento crítico; porque através da crítica técnica da racionalidade meios-fins, a ciência pode nos dar indicações valiosas acerca das consequências possíveis e prováveis, desejáveis e inevitáveis das nossas ações. O valor dessa crítica técnica está em que ela nos ajuda a perceber o significado objetivo das nossas ações, ou seja, aquilo que em geral ultrapassa e frequentemente até contraria nossas intenções e os motivos que nos deter-minam a agir ou a deixar de agir de um certo modo.

Essa contribuição positiva da ciência, no entanto, não resulta apenas da crítica técnica nem se esgota nela. A filosofia também pode desempenhar um papel importante em proveito da clareza. Weber seguia vendo a filosofia como ciência, embora não mais como a ciência. Ele distinguia entre, por um lado, as ciências empíricas, subdivididas em ciências da natureza e ciências da cultura, e, por outro lado, as ciências racionais, ou seja, a filosofia e suas disciplinas fundamentais, a começar pela lógica e a teoria do conhecimento (responsáveis pelo estabelecimento das normas e dos critérios a partir dos quais é possível determinar as condições de validade do conhecimento), além da ética e da estética. Concentrada nos nexos entre meios, fins e consequên-cias, a crítica técnica pode nos ajudar a estimar os custos das nossas ações, decorrentes de determinadas avaliações práticas.

27 Idem, Die “Objektivität” sozialwissenschaftlicher und sozialpolitischer Erkenntnis, p. 213.

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As disciplinas filosóficas podem, para além disso, com os seus meios de pensamento, descobrir o “sentido” das avaliações, sua estrutura signifi-cativa última e suas consequências significativas, portanto, indicar o seu

“lugar” no interior do conjunto dos valores “últimos” em geral possíveis e de-limitar sua esfera de validade significativa. Porém, já questões tão simples como esta: ‘em que medida um fim deve consagrar os meios inevitáveis?’, ou esta: ‘em que medida os efeitos colaterais (Nebenerfolge) não deseja-dos devem ser aceitos?’, ou sobretudo esta: ‘como devem ser mediados os conflitos entre vários fins, desejados ou impostos (gesollten), colidentes in concreto?’ – tais questões são inteiramente matéria de escolha ou compro-misso. Não há procedimento científico (racional ou empírico) de nenhuma espécie que pudesse oferecer uma decisão aqui.28

Em suma, a ciência pode levar o sujeito a “dar-se conta do sentido último de seus próprios atos ou, quando menos, ajudá-lo em tal sentido.”29 É precisamente nisso que Weber identifica a única e autêntica contribuição moral da ciência: pois enquanto instrumento valioso para aquela tomada de consciência do significado último das nossas ações, ela pode suscitar em nós o “sentido da responsabilidade”.30 Nessa contribuição moral encontra-se o efeito propria-mente formativo da ciência, pois o “sentido da responsabilidade” consiste na capacidade de o sujeito imputar as consequências de suas ações ao significa-do objetivo de suas próprias escolhas. Torna-se assim evidente a correlação entre a racionalidade científica e a “ética de responsabilidade”, uma correla-ção que se estende das mais estritas escolhas pessoais à dimensão bem mais ampla de uma responsabilidade política perante o futuro e a história.31

Estamos assim de volta à premissa inicial. De acordo com ela, ciência alguma estaria em condições de descobrir valores ou ideais universalmente válidos e obrigatoriamente vinculantes, dos quais se pudessem deduzir “re-ceitas para a práxis”. Em face de um reino dos fins entregue a si mesmo, a ciência pode nos socorrer apenas sob o aspecto da adequação dos meios e da antecipação de consequências fáticas, assim como para a compreensão

28 Idem, Der Sinn der “Wertfreiheit” der soziologischen und ökonomischen Wissenschaften. In: ____. Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre, p. 509.

29 Idem, A Ciência como vocação, p. 46.

30 Ibid.

31 Idem, A Política como vocação. In: ____. Ciência e política. Duas vocações, p. 109 segs.

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da estrutura e das consequências significativas das nossas escolhas. Mas se enquanto restringe a razão teórica Weber também liquida com as aspirações da razão prática, então para o que ele abre espaço? À premissa conforme a qual ele traça os limites da razão teórica corresponde outra, relativa à esfera da práxis e dos fins:

a vida, enquanto encera em si mesma um sentido e enquanto se compreen-de por si mesma, só conhece o combate eterno que os deuses travam entre si ou – evitando a metáfora – só conhece a incompatibilidade das atitudes últimas possíveis, a impossibilidade de dirimir seus conflitos e, consequen-temente, a necessidade de se decidir em prol de um ou de outro.32

Não existe critério racional capaz de determinar essas escolhas. A esfera da práxis e dos fins é constituída por legalidades axiológicas múltiplas e irre-dutíveis entre si. O “politeísmo dos valores” se deixa ver então como uma poliarquia: a esfera da práxis e dos fins concentra toda a “irracionalidade ética do mundo”.33 Ela é tanto mais eloquente quanto mais evidente é o ocaso da autoridade milenar do cristianismo e do poder da crença num único Deus. O que fora reprimido por essas crenças, retorna transformado.

Os deuses antigos abandonam suas tumbas e, sob a forma de poderes im-pessoais, porque desencantados, esforçam-se por ganhar poder sobre nos-sas vidas, reiniciando suas lutas eternas. (...) Tal é o destino de nossa ci-vilização: impõe-se que, de novo, tomemos claramente consciência desses choques que a orientação de nossa vida em função exclusiva do pathos grandioso da ética do cristianismo conseguiu mascarar por mil anos.34

A modernidade se distingue justamente por esse politeísmo secularizado e pela exigência de coragem para enfrentá-lo, “pois é fraqueza não ser capaz de encarar de frente o severo destino do tempo que se vive.”35 Mesmo “uma consideração interpretativa do sentido (sinndeutende Betrachtung), portanto uma autêntica filosofia dos valores”, com sua inestimável utilidade, “também

32 Ibidem, A Ciência como vocação, p. 47.

33 Ibidem, A Política como vocação, p. 115.

34 Id., A Ciência como vocação, p. 42-3.

35 Ibidem, p. 43.

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não poderia ignorar que inclusive um bem ordenado esquema conceitual dos ‘valores’ estaria aquém justamente do ponto mais decisivo desse estado de coisas”;36 porque num mundo eticamente “irracional” – e para homens cujo “destino é o de viver numa época indiferente a Deus e aos profetas”37 –, toda escolha de valores é um ato de fé, uma decisão rigorosamente pessoal e irredutível. Por isso Raymond Aron identificou um pathos “existencialista” no pensamento de Weber.38 Melhor seria dizer que se trata de um “decisionis-mo”, o qual, aliás, foi secundado por Karl Popper e Hans Albert, mas também convincentemente criticado por Habermas e Apel.39

Uma vez admitida a “impossibilidade de alguém se fazer campeão de con-vicções práticas ‘em nome da ciência’”,40 é compreensível que, para Weber, a exigência da Wertfreiheit, ou seja, de que a investigação científica e a co-municação dos seus resultados fossem “neutras”, “livre de valores”, devesse repercutir imediatamente na prática do professor universitário, tornando-se mesmo no “pressuposto do ensino”.41 Daí o seu repúdio ao uso do pódio do auditório acadêmico como altar ou palanque:

o profeta e o demagogo estão deslocados em uma cátedra universitária. Tanto ao profeta como ao demagogo cabe dizer: “Vá à rua e fale em públi-co”, o que vale dizer que ele fale em lugar onde possa ser criticado. Numa sala de aula, enfrenta-se o auditório de maneira inteiramente diversa: o professor tem a palavra, mas os estudantes estão condenados ao silêncio.42

36 Idem, Der Sinn der “Wertfreiheit” der soziologischen und ökonomischen Wissenschaften, p. 508.

37 Idem, A Ciência como vocação, p. 48.

38 Aron, R. As etapas do pensamento sociológico. Trad. Sérgio Bath. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 448 e 456.

39 Habermas, J. Teoria analítica da ciência e dialética. Contribuição à polêmica entre Popper e Adorno. In: Benjamin, W. et al. Textos escolhidos. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1980, p. 286 segs.; Apel, K.-O. Types of Rationality Today: The Continuum of Reason between Science and Ethics. In: ____. Ethics and the Theory of Rationality. Selected Essays of K.-O. Apel, vol. II. Atlantic Highlands: Humanities Press, 1996, p. 140-1.

40 Weber, M. A Ciência como vocação, p. 41.

41 Ibidem, p. 47.

42 Ibidem.

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Weber exalta o uso público da razão, mas não em respeito a um uso privado qual-quer; pois aqui não se trata de obedecer, no sentido em que Kant fixou a diferença entre esses dois usos da razão, e sim de uma questão de consciência, pois “numa sala de aula, nenhuma virtude excede, em valor, a da probidade intelectual.”43 Contrariando as expectativas dos estudantes que esperavam encontrar no pro-fessor antes um “líder no domínio da conduta prática da vida”,44 Weber advertia:

O professor que sente a vocação de conselheiro da juventude e que frui da confiança dos moços deve desempenhar esse papel no contato pessoal de homem para homem. Se ele se julga chamado a participar das lutas entre concepções de mundo e entre opiniões de partidos, deve fazê-lo fora da sala de aula, deve fazê-lo em lugar público, ou seja, através da imprensa, em reuniões, em associações, onde queira. É, com efeito, demasiado cômodo exibir coragem num local em que os assistentes e, talvez, os oponentes, estão condenados ao silêncio.45

Evidentemente, Weber não questionava a tradicional relação assimétrica entre o professor e os estudantes nas preleções – até porque essa assimetria sempre foi razoavelmente quebrada no ambiente dos seminários. O seminário é uma outra herança da atividade de Fichte em Jena. No verão de 1794, quando começou a lecionar, Fichte instituiu um Conversatorium semanal justamente para que se pudesse discutir livremente sobre questões direta ou indireta-mente ligadas às preleções e mesmo trabalhos apresentados pelos próprios estudantes, no que foi imediatamente seguido por professores de todas as faculdades. Aquela assimetria, ainda intacta à época de Weber, persistiu por algumas décadas. Foi preciso que surgissem figuras como Gadamer: já idoso, serenamente convicto de que não se tem a última palavra, ele começou a re-servar os minutos finais de suas preleções para perguntas da audiência. O fato de que essa assimetria não tenha desaparecido por completo é irrelevante. O gesto anti-autoritário de Fichte ao instituir o Conversatorium foi testemunha-do por Humboldt, que à época vivia em Jena para fruir de perto da amizade de Schiller e Goethe. O êxito de uma iniciativa tão simples fez com que se se-dimentasse a convicção de que, numa universidade moderna, a investigação

43 Ibidem, p. 51.

44 Ibidem, p. 44.

45 Ibidem, p. 44-5.

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livre e a comunicação irrestrita deveriam ser praticadas à base de um certo equilíbrio entre as preleções, sempre assimétricas e em geral destinadas a um grande público, e a mesa-redonda do seminário, quando a palavra se estende igualmente a todos. Weber formou-se nessa tradição, mas afinou seu instrumento dois tons acima, avesso que era a qualquer espécie de homilia filosófica, coisa em que Reinhold e Fichte haviam sido mestres, superlotando auditórios em Jena. Sob esse aspecto, Weber foi antes um mestre da decepção. Assim se sentiram Max Horkheimer e seus colegas quando deixaram um au-ditório (lotado) da Universidade de Munique, em 1919, após ouvirem Weber discorrer durante “duas ou três horas” sobre um tema candente: o sistema dos conselhos e a Rússia revolucionária. “Era tudo tão preciso, tão cientificamente rigoroso, tão livre de valorações, que fomos para casa totalmente tristes.”46

A unidade dos usos teórico e prático da razão estava à base da concepção clássica da Bildung. Para Humboldt, como vimos, a essência mesma da for-mação universitária estaria em “vincular a ciência objetiva com a formação subjetiva” enquanto uma “formação espiritual e ética”. Schelling formulou essa exigência com toda clareza:

A formação (Bildung) para o pensar conforme a razão, pelo que sem dúvida não entendo um mero hábito superficial, e sim uma formação que se transfor-ma na essência do próprio homem, e que é também a única autenticamente científica, é também a única para o agir conforme a razão; os fins que se encontram fora dessa esfera absoluta da educação científica (szientifischer Ausbildung) já estão excluídos dela pela destinação primeira das academias.47

Para Weber, as universidades já não mais poderiam assumir essa missão com boa consciência. No entanto, creio que ele aceitaria cada palavra do que disse Schelling sobre a essência da comunidade universitária e da vida acadêmica:

O reino das ciências não é uma democracia e, muito menos, uma oclocra-cia, e sim uma aristocracia no seu mais nobre sentido. Os melhores devem dominar. (...) O talento não carece de proteção, contanto que o contrário

46 Horkheimer, M., Wiese, L. v., Albert, H., Habermas, J., Henrich, D., Rossi, P., Parsons, T. Diskussion zum Thema: Wertfreiheit und Objektivität. In: Stammer, O. (org.). Max Weber und die Soziologie heute: Verhandlungen des 15. Deutschen Soziologentages in Heidelberg 1964. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1965, p. 66.

47 Schelling, F. W. J. Vorlesungen über die Methode (Lehrart) des akademischen Studiums. Hambur-go: F. Meiner, 1990, p. 31 (SW I/5, p. 237).

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não seja favorecido; a faculdade das ideias produz por si mesma o efeito supremo e mais decisivo. Essa é a única política que tem lugar no que toca a todas as instituições científicas para que floresçam, para dar-lhes tanta dignidade quanto possível no interior e autoridade no exterior.48

Lê-se algo muito semelhante em “Ciência como vocação”: “A democracia deve ser praticada onde convém. A educação científica, tal como, por tradi-ção, deve ser ministrada nas universidades alemãs constitui-se numa tarefa de aristocracia espiritual. É inútil querer dissimulá-lo.”49 Seria igualmente inútil querer insistir ingenuamente na unidade de ensino e pesquisa, quando se sabe que, sob um aspecto nada desprezível, ela, como tantas outras coisas na vida universitária, depende de acasos felizes.

Todo jovem que acredite possuir a vocação científica deve dar-se conta de que a tarefa que o espera reveste duplo aspecto. Deve ele possuir não ape-nas as qualificações do cientista, mas também as do professor. Ora, essas duas características não são absolutamente coincidentes. É possível ser, ao mesmo tempo, eminente cientista e péssimo professor. Penso na atividade docente de homens tais como Helmholtz ou Ranke que, por certo, não são exceções. (...) Ora, é também verdade, por outro lado, que dentre todas as tarefas pedagógicas, a mais difícil é a que consiste em expor problemas científicos de maneira tal que um espírito não preparado, mas bem-dota-do, possa compreendê-lo e formar uma opinião própria – o que, para nós, corresponde ao único êxito decisivo. (...) Aquela capacidade depende (...) de um dom pessoal e de maneira alguma se confunde com os conhecimen-tos científicos de que seja possuidora uma pessoa. Contrariamente ao que se dá em França, a Alemanha não tem uma corporação de imortais da ciência, mas são as universidades que devem, por tradição, responder às exigências da pesquisa e do ensino. Será mera coincidência o fato de essas duas aptidões se encontrarem no mesmo homem.50

Evidentemente, Weber não era simplesmente contrário à unidade de ensino e pesquisa, um dos traços característicos do modelo de Humboldt. Ele apenas

48 Ibidem.

49 Weber, M. A Ciência como vocação, p. 23.

50 Ibidem, p. 22-3.

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insistia no quanto essa unidade estava à mercê do acaso. Weber também nunca deixou de sair em defesa de um outro traço marcante do modelo de Humboldt: a autonomia da universidade, especialmente em face do Estado e das igrejas, cujo corolário é a liberdade acadêmica.51 Como Schelling, creio que Weber também não hesitaria em dizer que a formação universitária deveria promover antes de tudo a autonomia do juízo, o passo à Mündigkeit, mas como a tomada de consciência daquela que seria a única virtude ainda capaz de moldar como um todo a personalidade do homem de ciência: a probidade intelectual, ou seja, a obrigação de reconhecer a diferença essencial e a irre-dutibilidade entre fatos e valores, juízos científicos e avaliações práticas, e a sóbria tomada de consciência do significado das escolhas últimas num mun-do eticamente irracional, onde “Deus” e o “diabo” se confrontam sem cessar.

O fruto da árvore do conhecimento, indesejável para toda comodidade humana, mas inevitável, não é outra coisa senão justamente isto: ter de tomar consciência daquelas oposições e, assim, ver que toda ação indivi-dual importante e, sobretudo, a vida como um todo, caso não deslize como um acontecimento da natureza, e sim deva ser conduzida conscientemente, significa uma cadeia de decisões últimas, pela qual a alma, como em Platão, escolhe o seu próprio destino, ou seja, o sentido do seu agir e do seu ser.52

Toda a problemática da Bildung e da personalidade, da vocação e da especiali-zação, concentram-se nesse pathos da escolha, do colocar-se a serviço de um “de-mônio”, de uma causa. Eis o que, para Weber, significa formar e ser formado em resposta a um chamado como o da ciência; eis também o princípio de indivi-duação da personalidade responsável. Wolfgang Schluchter tocou nesse ponto central ao comentar as conferências de Weber ao estudantado livre de Munique:

“Vocação e autolimitação, vocação como autolimitação, esta é, pois, a mensagem de Weber à juventude acadêmica.”53 É nesse sentido que o conceito de perso-nalidade – um motivo fundamental da velha Bildung e objeto do confuso anelo dos jovens estudantes – emerge do interior de um processo de formação, mas já privado de todos os laivos naturalistas e esteticistas, como observa Schluchter:

51 Cf. a coletânea de artigos e intervenções públicas de Max Weber, Sobre a universidade. Trad. Lólio L. de Oliveira. São Paulo: Cortez, 1989.

52 Idem, Der Sinn der “Wertfreiheit” der soziologischen und ökonomischen Wissenschaften, p. 508-9.

53 Schluchter, W. Einleitung. In: op. cit., p. 41.

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A esse conceito de personalidade corresponde antes de tudo um individualis-mo ascético e humanista: ascético, pois o agir metódico é exigido a serviço de uma causa suprapessoal; humanista, pois essa causa pressupõe a forma-ção (Bildung) constante na perspectiva dos valores últimos; individualismo, pois essa formação constante tem de ser escolhida por cada um através de uma cadeia de decisões últimas. Onde essas condições estão satisfeitas, uma pessoa tornou-se, sem intenção, uma personalidade. Como é dito no final de

“Ciência como vocação”, ela encontrou seu demônio e aprendeu a obedecê-lo, enquanto satisfaz a exigência por ele erguida a cada dia.54

Se a conferência de Weber é em boa medida uma sóbria avaliação do signifi-cado da Bildung, não é casual que a figura de Goethe como que paire por toda parte e, com ela, suas reflexões sobre a autolimitação e a perfeição. Do mesmo modo, é significativo que tais reflexões também tenham resultado numa espé-cie de autorretrato in negativo do conferencista. Afinal, poucos “especialistas” deram um testemunho tão eloquente das artes do “demônio”, pois aquele que busca a perfeição nos limites de sua própria esfera termina por superá-los.

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54 Ibidem, p. 42.

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* Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Contato: [email protected]

Em busca do tempo encontrado – a criação artística em Proust e Bergson

In search of the time found – the artistic creation in Proust and Bergson

Resumo

O presente artigo parte da leitura crítica de Samuel Beckett acerca do romance de Proust, Em busca do tempo perdido, para investigar a questão da criação artística no pensamento filosófico de Henri Bergson. A análise de Beckett sobre a temática da memória, do hábito e do tempo em Proust possibilita o vislumbre de certas afinidades entre as ideias do romancista e a reflexão bergsoniana sobre a arte e o artista enquanto reveladores da realidade temporal da vida, a duração. Tal revelação conduz o artista à busca de uma forma por meio da qual ele consiga superar os usos comuns e as tendências naturais inscritas na linguagem para que a expressão e a comunicação de um conhecimento sobre o verdadeiro possam vir à luz, o que coloca a imaginação como instância crucial para o acesso à verdadeira natureza da realidade.

Palavras-chave: Proust, Bergson, arte, tempo.

Recebido em: 15/08/2020 - Aceito em: 20/12/2020

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Abstract

This article is based on Samuel Beckett’s critical reading of Proust’s novel In Search of Lost Time to investigate the issue of artistic creation in Henri Bergson’s philosophical thought. Beckett’s analysis of memory, habit, and time in Proust, makes it possible to glimpse certain affinities between Proustian ideas and Bergson’s reflection on art and the artist as the ones who reveal the temporal reality of life, the duration of it. Such revelation leads the artist to the search for a way by which he can overcome the common uses and the natural tendencies inscribed in the language so that the expression and communication of a knowledge about the truth can come to light, which puts the imagination as a crucial instance to access the true nature of reality.

Keywords: Proust, Bergson, art, time.

De acordo com Samuel Beckett, Em busca do tempo perdido, de Proust, expõe a problemática sobre a impenetrabilidade dos objetos que se encontram no tempo, definido pelo autor irlandês como um “monstro de duas cabeças, da-nação e salvação”.1 Na obra proustiana, as personagens são configuradas em termos de seus anos e não de sua fisicalidade, examinadas de acordo com sua inserção no tempo e não no espaço, já que para Proust o tempo é o que mo-difica ou deforma aquilo que sem ele continuaria igual. Sendo assim, diz Bec-kett, o ontem é o desfigurador dos mapas da consciência habitual que define e coloca a linearidade temporal como o esteio básico para a construção e a identificação da personalidade; isso significa que em Proust o sujeito de hoje já não é o mesmo de ontem, pois cada instante vivido lhe acrescentou uma nova experiência capaz de modificar os seus anseios. O sujeito é composto, no presente, pelas múltiplas faces passadas de sua personalidade, podendo tão somente ser apreendido ao considerarmos tudo o que viveu, nesse senti-do, o conhecimento sobre a realidade permanente desse sujeito está restrito à formulação de uma hipótese, pois nada garante a constância de sua identida-de, uma vez que ele está imerso num processo temporal que a tudo modifica. Cada dia que se vai anuncia o perecimento do sujeito que morre junto com

1 Beckett, S. Proust. São Paulo: Cosac Naif, 2003, p. 9.

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as horas, mas que também se levanta e renasce depois, modificado, no dia seguinte. Entrementes, a transição temporal entre renascimento e morte, bem como entre morte e renascimento não deixa de ser dolorosa e aflitiva devido à incessante “deformação” da personalidade, o que torna impossível ao sujeito uma apreensão definitiva de si mesmo. Segundo a interpretação de Beckett, o objeto em Proust adquire total independência do sujeito que, a despeito de seus esforços, não consegue possuí-lo, uma vez que ambos estão imersos no fluxo temporal em que cada um à sua maneira se modifica; a possibilidade de apreensão do objeto observado, mesmo que esse objeto seja o próprio sujeito, torna-se inviável ao se considerarem as inúmeras características variáveis que o objeto adquiriu ao longo do tempo. Além disso, quando se trata da relação entre duas pessoas o problema fica ainda mais pungente, de modo que o ob-jeto de desejo, o outro, está desde já e para sempre perdido pelo fato de cons-tituir um mecanismo intrínseco e irremediavelmente separado do sujeito que tenta possuí-lo; não por acaso, a tragédia das personagens Marcel e Albertine no romance de Proust configura, para Beckett, “a tragédia arquetípica das relações humanas, cujo fracasso é preestabelecido”.2 Desse modo, pode-se dizer que as concepções que subjazem ao pessimismo proustiano acerca do conhecimento e do amor possuem em sua fundamentação uma reflexão sobre o tempo que, segundo Beckett, está entrelaçada às relações entre a memória e o hábito, os dois outros pilares que sustentam o edifício romanesco de Proust.

No romance proustiano, as leis da memória estão submetidas às leis do hábito: “o hábito é o lastro que acorrenta o cão a seu vômito. Respirar é um hábito. A vida é um hábito. Ou melhor, a vida é uma sucessão de hábitos [...]”.3 O hábito, assim, abrange em Proust os cantos mais recônditos da vida, ele é a vida mesma e sua relação com o homem se constitui a partir do mo-mento em que os dois firmam uma espécie de acordo, fundado sobre a garan-tia duvidosa de uma inquebrantável rotina que sustenta a existência.4 Como

2 Ibidem, p. 16.

3 Ibidem, p. 17.

4 “O hábito! Camareiro hábil, mas bastante moroso, que começa por deixar nosso espírito du-rante semanas em uma instalação provisória; mas que, apesar de tudo, é-lhe grato encontrar, pois que, sem o hábito e reduzido a seus próprios recursos, seria nosso espírito incapaz de nos tornar habitável qualquer alojamento”. A partir deste excerto, pode-se observar que o hábito, para Proust, torna o mundo reconhecível para o indivíduo, reduzindo toda a multiplicidade e o caos do real a fórmulas apreensíveis e modos de vivência que estabelecem para ele uma unidade no decorrer dos dias, a fim de facilitar sua ação sobre o mundo. Essa calma cotidiana advinda de um conhecimento reduzido sobre o real, contudo, cobra seu preço ao atrofiar as faculdades humanas para tudo aquilo que esteja fora do ramerrão das ações a serem executadas pelo sujeito; a cegueira

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o sujeito proustiano – o narrador – se altera no fluxo dos dias, morrendo e renascendo constantemente, às sucessivas aquisições que o tornam um novo indivíduo a cada manhã correspondem modificações também em seus hábi-tos e, ao final, sua história versará sobre a sucessão de hábitos que continua-mente se amalgamaram à sucessão de indivíduos que tomaram corpo: “o há-bito, então, é um termo genérico para os incontáveis compromissos travados entre os incontáveis sujeitos que constituem o indivíduo e seus incontáveis objetos correspondentes”.5 Porém, a passagem de um antigo hábito para um novo ou a transição da morte à ressurreição não é tão simples quanto parece: os períodos de transição entre as mortalhas e as fraldas, no dizer de Beckett, não é explicado por Proust como uma espécie de transubstanciação, mas representam verdadeiros calvários na vida do sujeito. Esse período entreatos constitui verdadeira zona de risco para o narrador que, dolorosamente, se vê por algum motivo obrigado a viver perigosamente e a abandonar uma parte de si mesmo que já não consegue se adequar às novas exigências que as ca-racterísticas sucessivas, internas e externas, adquiridas no tempo, impõem. O fato de que esses momentos de transição entre aquilo que já não serve e o que precisa vir a ser impliquem dor e sofrimento aponta para o esforço necessário e árduo que o sujeito deve fazer ao colocar novamente em ação o livre jogo de suas faculdades enferrujadas e empoeiradas pelo hábito quando “por um ins-tante o tédio de viver é substituído pelo sofrimento de ser”.6 Assim, sempre que o narrador proustiano se vê defronte a uma quebra na sua rotina, quando ele viaja, por exemplo, para o balneário de Balbec com sua avó e é obrigado a enfrentar o estranhamento que lhe dificulta o sono num quarto em que não está acostumado a dormir, ele sofre, pois, como o hábito havia paralisado sua atenção e anestesiado sua percepção para tudo aquilo que lhe era supérfluo e que se encontrava fora de seu universo domesticado, suas faculdades se veem subitamente impelidas a lhe prestar socorro e restaurar sua integridade maculada pelo novo, fazendo-o renascer por meio de um embate com sua própria consciência. Ele é exposto à realidade e impulsionado a se libertar

imposta pelo hábito o impede de acessar toda uma realidade além da que ele está acostumado a pensar e a agir, evidenciando um exílio no qual o indivíduo sobrevive pautando-se em noções lineares, causais e uniformes sobre o real que barram o conhecimento sobre a essência verdadeira e indomável do mundo e de si mesmo (PROUST, M. Em busca do tempo perdido. Vol 1. No caminho de Swann. São Paulo: Ed. Globo, 2006, p. 26).

5 Beckett, S., op. cit., pp. 17-18.

6 Ibidem, p. 18.

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da cegueira na qual resistia o antigo eu, experimentando nessa circunstância “uma lucidez tensa e provisória do sistema nervoso”.7 Contudo, dirá Beckett, essa lucidez termina e o pacto imemorial do sujeito com o hábito é renovado assim que as circunstâncias, outrora novidade, se tornam agora demasiada-mente conhecidas, com seus mecanismos decifrados pelo sujeito, num ajus-tamento automático do organismo humano às condições de sua existência. Essa volta à tranquilidade não permite, todavia, qualquer consideração moral a seu respeito, pois não se trata de uma recompensa pelo esforço doloroso a que o indivíduo teve de se submeter frente às circunstâncias da vida. Seu torpor constante perante o real é quebrado, mas os cacos voltam a se unir irremediavelmente, compondo uma nova forma de existir que seguirá dali em diante perseverando e embotando as suas faculdades até o limite, ou seja, até se tornar desnecessária por não atender mais às demandas da realidade.

O pacto renovado, entretanto, não exclui a possibilidade de outro tipo de acordo entre o sujeito e seu meio, ou seja, o hábito que se refaz a cada período de transição pode não se renovar porque não estava necessariamente fadado a morrer, mas apenas adormecido, assim, não se inaugura um perío-do de transição, pois o eu antigo ainda resiste. Em Proust, tal experiência, segundo Beckett, pode vir ou não acompanhada de dor, mas de todo modo expõe o indivíduo à realidade; em ambos os casos, o hábito é tanto aquilo que embota como o que traz segurança à consciência, possibilitando que o sujeito se compreenda por meio da suposta continuidade e perenidade de sua per-sonalidade no tempo. A compreensão sobre a constituição de si mesmo por meio do hábito, no entanto, atrofia a atividade vital das faculdades do sujeito, o que o leva a uma compreensão de si como se enxergasse uma paisagem com os óculos embaçados pela própria respiração. Assim, para Beckett, a recherche proustiana apresenta um sujeito refém do hábito e que somente consegue al-guma liberdade nos períodos entre as adaptações sucessivas, ou seja, quando o hábito dorme em serviço e deixa de prestar sua função:

O eu antigo resiste até o fim. Assim como foi um ministro do embotamento, também era um agente de segurança. Quando deixa de prestar essa segun-da função, quando tem pela frente um fenômeno que não é capaz de reduzir à condição de um conceito familiar e confortável, quando, em suma, trai seu cargo de confiança como um véu que protege sua vítima do espetáculo da realidade, ele desaparece e a vítima, agora uma ex-vítima, liberta por

7 Ibidem, p. 19.

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um instante, é exposta à realidade – exposição que tem suas vantagens e desvantagens. [...] O narrador não pode adormecer num quarto estranho, torturado por um teto alto, acostumado que está a um teto baixo. O que está passando? O pacto antigo prescreveu.8

Exposto ao mundo, o sujeito cria um novo pacto para evitar o colapso de sua consciência no contato com a realidade intolerável e intensamente absorvida, dissipando assim a possibilidade do desastre e também o mistério ameaçador e belo do real. Segundo Beckett, a beleza da realidade é encontrada no romance proustiano a partir do momento em que os objetos são percebidos como desli-gados das redes de causalidade e das noções gerais, quando o hábito ainda não vetou essa forma de percepção primeira, escondendo “a essência – a Ideia – do objeto na névoa dos conceitos – dos preconceitos”.9 Como o sujeito esponta-neamente trabalha para o hábito na construção de novos hábitos, ele é privado pela própria natureza de suas faculdades cognitivas do acesso a essa realidade originária que, apesar de indômita, oferece seus objetos como fontes de en-cantamento, e isso porque em Proust eles são concebidos como algo isolado e independente de qualquer conceito ou noção geral que os explique, de modo que cada objeto possui o valor de um milagre. Se para Proust o hábito é como uma segunda natureza que se empenha para nos colocar em segurança da ferocidade de uma realidade nada encantadora, ao mesmo tempo ele também nos conserva na ignorância de suas belezas recônditas que só se deixam revelar nos períodos em que o fiel servidor nos abandona. Nesses momentos de aban-dono do hábito, diz Beckett, uma lucidez repentina atinge o sujeito proustiano, obrigando-o a criar novas possibilidades de ser, um novo indivíduo que ca-minhará dali em diante pensando novos rumos para si mesmo, possibilidades ainda não subsumidas pelo novo pacto que se firmará e que inevitavelmente dissipará o livre jogo da consciência estimulado pelo inesperado. Advindo o hábito, o indivíduo tem seu sofrimento estancado e fechadas as suas janelas para o real; o acesso à beleza escondida nos objetos da percepção é vetado no-vamente e a experiência estética do sujeito volta a se firmar sob os cânones da mera identificação das coisas, sintetizando e organizando em conceitos a rea-lidade mutável e ameaçadora. A negligência ou a ineficácia do hábito podem deflagrar, portanto, períodos dolorosos e, não obstante, férteis para o sujeito que, na obra proustiana, sofre devido a um deslocamento da sensibilidade que

8 Ibidem, p. 21.

9 Ibidem, p. 22.

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tenta incansavelmente se reajustar em relação às condições da existência. Esses momentos, contudo, não podem durar para sempre: o hábito retoma seu lugar e, para confirmar que sua função voltou a ser cumprida adequadamente, o tédio se manifesta como prova irrefutável. Posto isto, de acordo com Beckett, sofrimento e tédio representam os dois polos entre os quais oscila o pêndulo do indivíduo proustiano que, apesar de tudo, só chegará a conhecer vagamen-te essas renovações infinitas em sua vida quando já for tarde demais.

O narrador proustiano, que Beckett parece confundir com o próprio Proust, tem má memória justamente porque seu hábito é ineficaz e não cum-pre sumariamente a sua função. Nesse sentido, na recherche proustiana a boa memória é entendida pelo autor irlandês como a recordação voluntária do passado que nada traz de novo à consciência do narrador, constituindo-se enquanto uma função do hábito, um instrumento de referência e não de des-coberta para aquele que se dedica a contemplar as imagens de seu passado. A boa memória ou memória voluntária pertence então à criatura de rotina que contempla uniformemente o ontem do qual não pode lembrar-se, pois nunca o esqueceu, “sua memória é um varal e as imagens de seu passado são roupa suja redimida, criados infalivelmente complacentes de suas necessidades de reminiscência”.10 Em outras palavras, só poderíamos realmente nos lembrar daquilo que passou despercebido à consciência, daquilo que não deixou tra-ço discernível em nossa mente e, portanto, não caiu sob o domínio do hábito; nele encontra-se tudo o que é “recordado” costumeiramente e, por isso, em Proust, apenas o que foi esquecido é que pode verdadeiramente ser lembrado.

Estritamente falando, só podemos lembrar do que foi registrado por nossa extrema desatenção e armazenado naquele último e inacessível calabouço de nosso ser, para o qual o Hábito não possuía a chave – e não precisa possuir, pois lá não encontrará nada de sua útil e hedionda parafernália de guerra. Mas aqui, nesse ‘gouffre interdit à nos sondes’, [...] está ar-mazenada a essência de nós mesmos, o melhor de nossos muitos eus e suas aglutinações, que os simplistas chamam de mundo; o melhor, porque acumulado sorrateira, dolorosa e pacientemente a dois dedos do nariz da vulgaridade, a fina essência de uma divindade reprimida [...], a pérola que pode desmentir nossa carapaça de cola e de cal.11

10 Ibidem, pp. 29-30.

11 Ibidem, p. 31.

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A esse calabouço recôndito e impenetrável ao hábito, Proust dá o nome de “memória involuntária”, aquela que não se reduz à estrita função de consul-ta nos arquivos engavetados da interioridade do sujeito. Já a memória que não é memória, que nada redescobre do passado pois tudo o que apresenta não foi esquecido e continua, portanto, presente, a essa emissária do hábito, Proust a nomeará “voluntária”, uma vez que sua ação se assemelha à de virar um álbum de fotografias. Ao não se interessar pela perigosa descoberta do elemento misterioso e colorido das impressões despercebidas que pode re-volucionar as experiências mais comuns do sujeito, essa memória uniforme e monótona lhe assegura, ao contrário, que a “personalidade” está logo ali a salvo, incorruptível e idêntica a si mesma, pendurada no varal junto das ima-gens enevoadas e distantes da verdadeira realidade de seu passado.

Em sentido oposto, a memória involuntária é rebelde, autônoma, explosi-va, surge inesperadamente e, na delícia e na lucidez de sua aparição, “revela o que a falsa realidade da experiência não pôde e jamais poderá revelar – o real”.12 Ela configura justamente a janela que se abre para a realidade durante os períodos de sono ou morte do hábito, estimulada por elementos do mun-do físico que tocam de repente a percepção e fazem outro mundo se revelar. Nesse instante se recupera o que até então não estava perdido para o sujeito, o qual descobre agora a sua perda e sofre por não ter se dado conta dela no momento em que acontecera. De acordo com Beckett, a realidade que este sujeito reencontra, chamada das profundezas de sua interioridade, é “sua própria realidade perdida [...], a realidade de seu eu perdido”;13 por um breve momento ele entra em contato com uma espécie de síntese da verdade das coisas, descobrindo num instante fugaz o que sempre ficara oculto, esqueci-do, aquilo que passara despercebido à sua consciência adormecida pelo há-bito. O narrador proustiano identifica, assim, a reaparição de uma sensação passada ou sua reação no presente (desencadeada por meio da percepção de um acontecimento trivial subitamente apreendido) como uma duplicação da sensação esquecida. O tropeço nos paralelepípedos irregulares do pátio dos Guermantes desencadeia no narrador o surgimento súbito das imagens

12 Ibidem, p. 33.

13 Ibidem, p. 41.

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esquecidas de sua viagem a Veneza,14 a luz radiante dos dias na costa adriática jamais lembrados e cuja essência ele nunca conseguira expressar, mas que essa “reduplicação casual” (da sensação de desequilíbrio na basílica de San Marco) trouxera à tona ali no átrio dos Guermantes. Ao contrário do esforço voluntário de evocação, a memória involuntária irrompe por meio de aci-dentes no plano da vida prática do sujeito cujo hábito encontra-se relaxado e diminuída a tensão de sua consciência, o que o libera por um instante dos

“preconceitos da inteligência” ou de sua apreensão do real determinada habi-tualmente pelo ato intelectivo. Nessa senda, um objeto da realidade percebi-do acidentalmente desperta no sujeito a impressão central de uma sensação passada, a qual ressurge não como cópia ou eco da sensação presente, mas em sua totalidade fulgurante cuja pureza integral fora conservada justamente porque fora absolutamente esquecida, dissolvendo num átimo as fronteiras colocadas pela inteligência entre o passado e o presente. O intelecto ficaria satisfeito em estabelecer aí apenas uma relação entre causa e efeito, contudo, o que acontece, diz Beckett, “consiste numa colaboração entre o ideal e o real, entre a imaginação e a apreensão direta, entre símbolo e substância. Tal colaboração libera a realidade essencial negada tanto à vida ativa como à con-templativa”.15 Trata-se de uma percepção mais original, que aproxima pre-sente e passado na medida em que sujeito e objeto são aproximados também, possibilitando para o primeiro o que seria um conhecimento ínfimo, porém essencial de si e da realidade vivida. Desse modo, em Proust, a visão de uma realidade essencial só pode ser encontrada no que de comum portam passado e presente e não em sua distinção ou separação; essa união entre os tempos

14 Conforme nota Jeanne-Marie Gagnebin, se em Proust há a evocação de imagens, estas nascem da memória involuntária, despertadas por uma sensação tátil: basta atentar, segundo ela, para o exemplo clássico da Madeleine no início do romance proustiano; não é a visão do bolinho que cau-sa um arrebatamento no narrador e faz irromper suas lembranças, mas sim um contato, um tocar.

“Mas no instante mesmo em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim” (PROUST, M. op. cit., p. 71). Gag-nebin se interessa pela imagem em Proust na medida em que ela pode implicar, para autora, numa reformulação da imagem aurática tal como concebida por Walter Benjamin. Para o nosso interesse, cabe ressaltar que o que causa um estremecimento do eu arrebatado pelas imagens surgidas invo-luntariamente, advém de uma sensação que se antecipa à construção do visível. Trata-se de uma memória corporal, oposta à do espírito, de origem primeira e por isso mesmo mais fugaz, porque escapa à inteligência que tentaria reproduzi-la ansiosamente, por ser, justamente, essa memória, involuntária. Cf. Gagnebin, J-M. “De uma estética da visibilidade a uma estética da tatibilidade em Walter Benjamin”. In: Duarte, R.; Kangussu, I. (Orgs.). Estéticas do deslocamento: discurso filosófico

– teoria crítica – linguagens artísticas. Belo Horizonte: Abre/UFMG, 2008.

15 Beckett, S., op. cit., p. 79.

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traz o que Beckett chama uma reduplicação da experiência, que agrega de uma só vez o que até então era encarado pela inteligência como uma espécie de contradição, a saber, a associação entre evocação e percepção direta, ou ainda, entre imagem e realidade sensível: “graças a essa reduplicação a expe-riência é a uma só vez imaginativa e empírica [...], real sem ser apenas factual, ideal sem ser meramente abstrata, o real ideal, o essencial, o extra temporal”.16

Essa experiência unificada que o romance de Proust configura, segundo Beckett, diz respeito à transmissão de uma essência extratemporal porque consegue combinar num átimo o que ficaria costumeiramente fragmentado em infinitos pontos no tempo e, por isso mesmo, perdido para o sujeito.17 Assim, aquilo que está envolto pelo tempo está também dotado de impenetra-bilidade, pois a sua posse ou o seu conhecimento significaria apreender todos os pontos do espaço e do tempo que este objeto já ocupou e ocupará um dia. O corpo que aparentemente limita o ser que desejamos compreender e torna mais fácil sua apreensão é apenas a matéria ilusória que esconde atrás de si toda uma história em que se encarnaram lugares, sensações, acontecimen-tos, pessoas, sentimentos, hábitos... A deflagração da memória involuntária, rara e intensa, consegue então trazer por meio de uma sensação o que ficara fragmentado no tempo, ou seja, nos instantes em que o indivíduo é afetado subitamente por uma recordação essencial evocada graças a uma sensação corriqueira, apresenta-se a ele um conhecimento puro do objeto que, não fosse isso, permaneceria insondável. Esta síntese rápida e definitiva, contudo, não se liga a conceitos e nem traz consigo um conjunto de noções gerais trabalhadas pela razão; a atuação involuntária da memória relaciona-se mais com o trabalho do sonho que condensa em minutos toda uma vida e faz dela um caleidoscópio, de modo que apenas na tentativa de comunicação dessa experiência é que a razão conseguirá intervir.

O ponto de partida da demonstração proustiana não é a aglomeração cristalina, mas seu núcleo – o cristalizado. A mais trivial experiência, ele [Proust] afirma, está incrustada de elementos que não podem ser rela-cionados logicamente a ela e que consequentemente foram rejeitados por

16 Idem.

17 “Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me torna-ra indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres, ilusória sua brevidade, tal como faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou, antes, essa essência não estava em mim, era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal” (PROUST, M., op. cit., p. 71).

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nossa inteligência: está encarcerada em um vaso perfumado com certa fra-grância, colorido por certa cor e elevado a uma certa temperatura. Esses vasos estão suspensos ao longo da linha de nossos anos e, inacessíveis à memória inteligente, conservam-se de certo modo imunes, a pureza de seu conteúdo climático resguardada pelo esquecimento, cada um mantido à sua distância, em sua data. De modo que quando o microcosmo encarce-rado é assediado da maneira descrita, sentimo-nos inundar por um novo ar e um novo perfume (novo porque precisamente já experimentado) e respiramos o verdadeiro ar do Paraíso, do único Paraíso que não é o sonho de um louco, do Paraíso que se perdeu.18

Quando o indivíduo retorna ao ramerrão da vida, ele, que há poucos instan-tes acessava a essência de uma realidade perdida e que se via de repente acima do tempo num vislumbre da eternidade, é tragado de volta tornando-se mais uma vez mortal, cotidiano, exilado. O seu retorno ao mundo é também o re-torno ao isolamento característico das personagens proustianas que, segundo Beckett,19 nada conseguem comunicar, pois são como “mecanismos intrín-secos e separados, carentes de um sistema de sincronização” e, desse modo, a experiência avassaladora da evocação da realidade do tempo perdido está fadada a uma comunicação impossível: “não há comunicação porque não há veículos de comunicação. Mesmo nas raras ocasiões em que palavra e gesto ocorrem ser expressões válidas da personalidade, perderão seu significado ao passar pela catarata da personalidade alheia”.20 Igualmente, para o autor, em Proust o ser humano está condenado ao isolamento, pois qualquer expressão da fala ou do corpo é inescapavelmente distorcida em seu significado ao ser captada pela inteligência alheia, o que o torna incapaz de compreender e ser compreendido. Assim, o indivíduo será sempre frustrado ao tentar evocar novamente o paraíso perdido da sensação passada, pois neste ato voluntá-rio organizado pela inteligência misturam-se os preconceitos habituais dela oriundos, como as noções causais e a linearidade temporal e espacial, que condicionam a atividade do indivíduo e modificam inescapavelmente sua experiência. Segundo Beckett, o que um esforço de manipulação voluntária pode conseguir é apenas trazer à consciência um eco da sensação passada,

18 Beckett, S., op. cit., p. 78.

19 Ibidem, p. 15.

20 Ibidem, p. 68.

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ou pior, a sua cópia, aniquilando com a sensação mesma e com a libertação promovida por ela em relação às restrições espaciais e temporais. Ora, se a experiência de liberação da memória involuntária permite uma essência ex-tratemporal é porque naquele momento, dirá Beckett, o sujeito se torna um ser extratemporal, de modo que o tempo para ele já não existe e, consequen-temente, a morte também não; entretanto, como essa experiência é fugaz ao extremo, ele retorna de seu instante na eternidade redescobrindo o tempo e a morte. De volta do arrebatamento de sua experiência, o narrador proustiano se depara com a necessidade de compreensão daquilo que lhe acontecera e a arte se lhe revela como a forma única que em seu fulgor pode sugerir aquilo que ele conheceu intimamente,21 a saber, a essência ou a Ideia do real, ou ainda, os próprios objetos em sua união possível com o sujeito.

O Tempo não é redescoberto, é obliterado. O Tempo é redescoberto, e com ele a Morte [...]. Agora, portanto, na exaltação de sua breve eternidade, ten-do escapado da escuridão do tempo e do hábito, da paixão e da inteligência, ele [o narrador proustiano] compreende a necessidade da arte. Pois somente no esplendor da arte poderá ser decifrado o êxtase perplexo que ele conhe-ceu perante as superfícies inescrutáveis de uma nuvem, um triângulo, uma torre, uma flor, um cascalho, quando o mistério, a essência, a Ideia, encarce-rados na matéria, imploraram pela caridade de um sujeito passante, em sua casca de impureza, e ofereceram [...] ao menos uma beleza incorruptível.22

Beckett sugere que em Proust a Ideia está no próprio objeto, ou ainda, ela é o objeto mesmo em sua concretude inconquistável.23 Apenas com a deflagração da memória involuntária poderia vir à tona um conhecimento não conceitual sobre essa Ideia que é a própria realidade, por isso, Em busca do tempo perdido

21 “Grave incerteza, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? Não apenas explorar: criar. Está diante de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar em sua luz” (PROUST, M., op. cit., p. 72).

22 Beckett, S., op. cit., p. 80.

23 Para Proust, é importante notar, o passado encontra-se em um objeto material qualquer, sendo questão de sorte encontrá-lo ou não. Adquirir uma imagem verdadeira de si mesmo ou a posse e o significado real das experiências passadas fica por conta do acaso. “É assim com nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material (na sensação que nos daria este objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca” (PROUST, M., op. cit., p. 71).

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aponta, de acordo com Beckett, para uma compreensão da Ideia não como ra-cionalização, mas como particularização do objeto em sua mais absoluta com-plexidade. “Proust não lida com conceitos, ele persegue a Ideia, o concreto”.24 A memória involuntária resgata o pouco que o sujeito conseguiu aproximar-se do objeto e, com isso, a experiência do tempo é apreendida junto desse regaste, dessa Ideia que retorna. Assim, a memória se mostra fundamental para que o conhecimento ocorra, pois ao mesmo tempo em que, pressionada pelo hábito, anestesia o indivíduo com o desfile voluntário das recordações passadas que nada lhe acrescentam, ela também lhe oferece o medicamento que involunta-riamente irrompe trazendo de volta uma sensação despercebida e que agora se manifesta como detentora de um conhecimento íntimo sobre o real. Em outras palavras, o trabalho da memória operado entre a recordação estéril e o esquecimento profícuo permite que o objeto seja apreendido em sua Ideia, não ao modo idealista e abstrato, mas em toda a sua singular complexidade de coisa concreta, caso contrário ele já não existiria por si, independente do sujeito, como quer Proust, e constituiria apenas mais uma imagem entre tantas outras disponíveis às intervenções e aos preconceitos da inteligência, as quais se aglomeram no álbum de fotografias opacas da memória voluntária.

Nesse contexto, o narrador proustiano descobre a arte e a si mesmo como artista, como aquele que resgata por detrás da superfície do real a Ideia ali encarcerada. No entanto, a comunicação ou a tradução dessa Ideia em obra de arte independe do esforço do artista ou do escritor, uma vez que, para Proust, a vontade está associada à inteligência, assumindo uma natureza utilitária que serve aos desígnios do hábito e termina por compreender os objetos com os quais se defronta como inseridos inevitavelmente em uma cadeia de causa e efeito. Consequentemente, a vontade não será uma condição da experiência artística, pois ao se deixar dominar por ela o sujeito é dominado também pela causalidade, circunscrevendo-se ao tempo e ao espaço; a experiência estética proustiana se constitui, portanto, por meio da contemplação, enquanto “ato puro de conhecimento, destituído de vontade”, segundo Beckett,25 o que re-vela, em Proust, uma afirmação do valor da intuição no processo de criação artística. A intuição na recherche refere-se ao que Beckett chama o relato “im-pressionista” realizado pelo narrador proustiano, suas descrições não lógicas de alguns fenômenos, na exata ordem de sua aparição, antes que tenham sido elaborados – ou distorcidos – pelo ato intelectivo, o que lembra a Beckett a

24 Beckett, S., op. cit., p. 85.

25 Ibidem, p. 98.

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definição de Schopenhauer do procedimento artístico como “a contemplação do mundo independentemente do princípio da razão”:26 um guardanapo caí-do no chão empoeirado é confundido com um pincel de luz, por exemplo, o som da água correndo nos canos é confundido com cachorros latindo ou uma sirene. Nesse contexto, o estilo “impressionista” de Proust decorre, para Bec-kett, de uma postura anti-intelectual por parte do autor/narrador que rejeita o conceito em favor da Ideia, que afirma um ceticismo em relação à causalidade e atribui à sensibilidade preponderância tanto no processo de criação artística quanto na aquisição de um conhecimento que aproxime mais o humano da verdadeira realidade das coisas. Apesar da referência a Schopenhauer, para Beckett, o narrador de Proust apresenta-se como isento de vontade, pois assim como não escolheu os momentos de irrupção da memória involuntária, tam-bém não encara o fazer artístico como um exercício de liberdade, mas como o único meio pelo qual ele pode atribuir uma forma ao conteúdo dessa realidade oculta “fornecida por hieróglifos traçados pela percepção inspirada (identifica-ção de sujeito e objeto) ”.27 A memória – e, em última instância, a vida – neces-sita então da arte para que sua realidade mais pura seja expressa, de sorte que a singularidade da união entre forma e conteúdo própria à a obra de arte atrai o sujeito para a criação artística como meio expressivo, colocando-o na difícil e extenuante tarefa de configurar a Ideia por ele capturada. Por isso, em Proust,

“a qualidade da linguagem é mais importante do que qualquer sistema ético ou estético. De fato, ele não faz qualquer esforço para separar forma e conteúdo. Um é a concretização do outro, a revelação de um mundo”.28

As palavras empregadas usualmente pela inteligência a serviço da vonta-de anestesiada pelo hábito constituem, assim, o meio mais complicado para expressar essa experiência única e esse é o trabalho de Proust: ele tenta in-cansavelmente ao longo de mais de mil páginas fazer com que as palavras comuniquem o conhecimento possível e único que, a despeito de tudo, o sujeito imerso no tempo conseguiu. Raros são esses momentos de desco-brimento da realidade original e, consequentemente, rara é a possibilidade de conhecimento ou apreensão da Ideia ou da Coisa em si dos objetos que constituem o real, revelando sua face concreta para além das noções lógi-cas, causais, conceituais e lineares que os tornam impenetráveis. Aliás, Proust

26 Ibidem, p. 92.

27 Ibidem, p. 89.

28 Ibidem, pp. 93-94.

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usará a metáfora como recurso de expressão justamente porque a Ideia lhe foi metaforicamente desvelada, isto significa que o conhecimento puro e repen-tino advindo da união entre sujeito e objeto, entre passado e presente só lhe foi possível porque acessado por meio de uma memória indômita e imprevi-sível que fez emergir à consciência dominada pelo hábito as imagens esque-cidas dos dias vividos, bem como sua carga afetiva, e não uma compreensão conceitual ou sistemática da inteligência acerca da relação entre passado e presente. Desse modo, enquanto atividade criadora de imagens não subsumi-das à superfície do real, a arte constitui a forma pela qual um conhecimento outro, inaudito, sobre a realidade, pode se apresentar, permitindo ao humano colocar-se fora da dimensão temporal que embota suas faculdades; de acor-do com a interpretação de Beckett sobre Em busca do tempo perdido, graças à ação da memória involuntária e à arte – literária, no caso – em Proust, o sujeito escapa por pouco da melancolia e da solidão absolutas decorrentes da impossibilidade de um conhecimento verdadeiro sobre a realidade hu-mana. Ao analisar a obra de Proust, Beckett parece ver uma fresta de luz que proporciona ao sujeito fragmentado, solitário e destruído pelo tempo uma dignidade última: a memória ainda lhe oferece as bases com as quais ele pode se firmar no mundo mesmo sob a égide enganosa das recordações voluntárias que, se não lhe garantem um contato puro com a realidade ou a apreensão de sua Ideia, ao menos lhe assegura o necessário para a sobrevivência de uma existência medíocre. A deflagração involuntária de uma atmosfera passada e livre da surdina do hábito coloca o indivíduo frente à esperança de um futuro menos desolador em que sua vida encontrar-se-ia em estreitos limites com a arte, na tentativa de expressão de uma experiência única ainda não degradada pelo tempo, mas que se encontra precisamente nele.

Proust... Bergson.

A partir da análise de Beckett, pode-se considerar que o romance de Proust configura um exemplo do esforço necessário – ocorrido, aliás, no in-terior da própria reformulação moderna do gênero romanesco – para que se possa dizer algo além daquilo que é percebido habitualmente, uma vez que o narrador proustiano, sugere Beckett, desvela em sua obra uma verdade com a qual entrou em contato e para a qual ele busca, por meio da arte literária, dar forma. Seu trabalho consistirá justamente no esforço em apresentar por meio das palavras a (re)descoberta do tempo como incessante mudança, o proces-so de dissolução e deterioração que insere homens e coisas na contingência

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e que escapa à fixidez da representação. Ou seja, no romance de Proust há uma reflexão acerca da relação entre percepção do real e obra de arte que também pergunta sobre a forma como o tempo é apresentado na obra, a qual, enquanto revelação do verdadeiro, busca comunicar o contato do su-jeito com a essência temporal da realidade e não simplesmente representar literariamente o tempo vivido. Nesse sentido, a reflexão beckettiana sobre o romance de Proust lembra a análise operada pela filosofia bergsoniana a respeito da temporalidade e da arte, uma vez que Bergson pensa a literatura como a forma possível de conhecimento sobre a duração. Com o intuito de aproximar a literatura da filosofia sem, com isso, obscurecer as diferenças que as constituem, seria lícito afirmar que a reflexão de Proust e Bergson possuem certas afinidades,29 como a consideração comum aos dois autores franceses de que aquilo que a realidade possui de mais íntimo e essencial é justamente sua característica mais fugidia e quase imperceptível: o tempo.

Caracterizado por Bergson como um movimento incessante e imprevisível de criação e elaboração do existente, o tempo como duração é invisível aos olhos, seu fluir contínuo escapa à nossa percepção comum, de modo que o conhecimento sobre ele se revela inabitual e extraordinário. Para Bergson, a percepção não permite ao indivíduo apreender a essência da realidade, pois

29 Os pontos de intersecção entre a obra de Bergson e a de Proust estimularam já muitas análises em inúmeras publicações, principalmente no que se refere ao debate sobre a memória e o tempo. Todavia, o reconhecimento de tais pontos de encontro não suprime as diferenças também exis-tentes. Nesse âmbito, Paul Ricoeur e Gilles Deleuze são dois grandes nomes, entre vários autores, que discordam de uma aproximação irrestrita entre a obra de Proust e a filosofia de Bergson. Para Ricouer (1995, p. 254) o tempo em Proust se aproximaria muito mais do tempo espacializado do que da duração bergsoniana: “O extra temporal não passa de um ponto de passagem: sua virtude é transformar em duração contínua os ‘vasos fechados das épocas descontínuas’. Longe, portanto, de desembocar numa visão bergsoniana de uma duração despojada de qualquer exten-são, Em busca... confirma o caráter dimensional do tempo”. Já Deleuze (2003, p. 18) discute a obra proustiana também em sua relação com categorias advindas da obra de Bergson, delineando semelhanças acerca da noção de memória presente nos dois autores, as quais, contudo, não o impedem de pontuar as diferenças no que diz respeito à concepção de duração, já que “Proust não concebe absolutamente a mudança como uma duração bergsoniana, mas como uma defec-ção, uma corrida para o túmulo”. Apesar disso, o autor ressalta que Proust e Bergson pensam o passado de forma semelhante, não como a representação de algo que foi, mas de algo que é, que permanece presente, de modo que em ambas as obras a recordação não instaura um movimento do presente em direção ao passado, mas um alojamento direto, imediato no passado conservado em si mesmo e coexistente ao presente. A partir daí, segundo Deleuze (2003, p. 55), “[...] o pro-blema não é o mesmo para Proust e para Bergson: para este é suficiente saber que o passado se conserva em si. [...] Bergson não se pergunta como o passado, tal como é em si, também poderia ser recuperado para nós. Segundo ele, mesmo o sonho mais profundo implica um desgaste da lembrança pura, uma queda de lembrança numa imagem que a deforma. O problema de Proust é: como resgatar para nós o passado, tal como se conserva em si, tal como sobrevive em si?”. Cf. Deleuze, G. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003; Ricoeur, P. Tempo e Narrativa – Tomo II. São Paulo: Papirus, 1995.

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sua função é estritamente pragmática, isto é, o sujeito percebe o mundo não para conhecê-lo em profundidade, mas para nele poder agir da melhor manei-ra possível;30 a percepção humana realiza, portanto, um recorte na realidade movente por meio do qual podemos esquematizar nossa ação sobre ela. Ora, Bergson também nota que se a percepção não consegue nos colocar em conta-to com o movimento e a mudança que caracterizam a realidade em si mesma, os conceitos formulados pela inteligência tampouco o poderão fazer uma vez que a natureza íntima da realidade seria perdida com o estancamento de seu devir incessante realizado pela linguagem, a qual imobiliza ou cristaliza em palavras aquilo que é vivente e não se permite fixar sem obnubilar sua mais original característica.31 Na tentativa de pensar o real, a inteligência necessi-

30 De acordo com Torres (2006, p. 3) Bergson pensa o mundo material como um conjunto de imagens, existindo entre aquilo que o idealista chamaria uma representação e aquilo que o realista chamaria uma coisa. Dessa forma, uma imagem existe independente de nós, por si mesma; con-tudo, concomitantemente ela é tal como a percebemos, isto é, uma imagem, mas com existência própria. Sendo assim, Bergson evita o debate entre realismo e idealismo, pois coloca o problema do dualismo definindo-o em termos de imagens, ou seja, da presença aos sentidos daquilo que descreve de forma direta e primitivamente a percepção da matéria. Pensando primeiramente as imagens, que apresentam as condições de constituição da subjetividade no mundo material, Berg-son afasta-se radicalmente das concepções tradicionais da filosofia sobre esse problema: para ele a percepção está fundada na e pela ação visando à sobrevivência no mundo, configurando-se como um processo originado pela práxis e que não é destinado à especulação ou caracterizado como conhecimento imediatamente. A representação, nesse sentido, configura-se como reflexo da ação que se originou no corpo e não uma cópia mental do mundo ou um desdobramento da matéria na interioridade mental. A imagem não é mais tomada como estática ou unidade do pensamento, mas como resultado final de um processo que interrompe um movimento, estabelecendo um campo para a ação. Cf. Torres, S. Ser, tempo e liberdade – as dimensões da ação livre na filosofia de Henri Bergson. São Paulo: Humanitas, 2006.

31 Em Bergson a linguagem constitui-se enquanto instrumento natural de comunicação, aplicado às finalidades práticas da inteligência em sua necessidade de ação sobre o mundo, o que a torna alheia às dimensões mais profundas da realidade. De natureza utilitária – mas não restrita a ela – a linguagem atua no registro da espacialidade e não da temporalidade, viabilizando a comunicação entre os humanos e, no limite, sua coexistência e cooperação para a manutenção da vida em sociedade. Contudo, o universo linguístico elaborado pela inteligência engendra a construção de um sistema de símbolos que significam a realidade objetiva e permitem que o homem aceda a um universo abstrato, não se restringindo ao imediatismo da percepção que enclausura o humano no “agora”; assim, a linguagem também viabiliza para o homem a configuração de um universo subjetivo que permite à inteligência operar a despeito dos imperativos urgentes da vida prática, de modo que os símbolos, em virtude de sua versatilidade, podem ser deslocados das coisas e apli-cados a realidades não materiais, possibilitando o desenvolvimento da interioridade e das ideias. Apesar disso, Bergson assevera que tais símbolos, capazes de introduzir o homem em sua própria interioridade, revelam-se impotentes para traduzir o real em sua mobilidade criativa, pois mesmo que estejam descolados das coisas os símbolos passam a ser confundidos com a natureza delas, ilusão advinda da própria ambiguidade da linguagem que constitui ao mesmo tempo condição de emancipação do homem em relação ao domínio da percepção para a ação no real e evidência da adulteração do mundo pelo humano. “Com efeito, os conceitos são exteriores uns aos outros, como se fossem objetos no espaço. [...] Reunidos, constituem um “mundo inteligível”, que pelos

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ta marcar aquilo que permanece e lhe permite fixar o objeto, assegurando a este uma identidade que possibilite a atividade racional, assim, a inteligência apreende o mundo organizando as imagens advindas da exterioridade por meio dos símbolos que a linguagem formaliza nas palavras, do que decor-re uma sistematização do recorte prático efetuado no devir pela percepção. Quando tal representação simbólica resultante do trabalho intelectual se apli-ca à transitividade interna da realidade, à interioridade do Eu, delineia-se, se-gundo o autor, uma cristalização material do vivente que, no limite, instaura um simulacro, isto é, engendra uma substituição das nuances temporais, da mobilidade, da fusão e da heterogeneidade características da realidade moven-te e da interioridade subjetiva pelas representações da linguagem.

Por isso, para Bergson, o artista será justamente aquele que, diferentemen-te do homem cotidiano, empregará mormente os esforços de sua imaginação na busca de uma linguagem que exprima por meio da criação de imagens e não de símbolos representacionais a verdadeira face do real sem macular sua originalidade; semelhante ao narrador proustiano, o artista constitui-se como aquele que se empenha em transformar em obra material a sua experiência de contato profundo, de coincidência com o interior da realidade. Desse modo, a arte é prefigurada em Bergson como a possibilidade de suplantar a tendên-cia inerente ao ato intelectivo que concebe o real como pura espacialidade, isto é como uma imagem fixa à qual é preciso escandir; o modo habitual do humano de conhecer a realidade pode ser então superado e, na perspectiva bergsoniana, será a experiência do artista que ofertará a possibilidade para essa superação. O autor assinala que o artista, geralmente apontado como um ser distraído e menos preocupado com as questões materiais da vida, ao contrário do humano comum, possui naturalmente uma sensibilidade menos engajada nas exigências práticas e que lhe permite atentar para impressões, sentimentos, acontecimentos que passam despercebidos à maioria das pes-soas; assim, lhe é possível capturar outras nuances da realidade, as quais, sob a perspectiva da percepção ordinária, encontram-se destituídas de utilidade para a ação imediata e, por isso mesmo, vazias de sentido. Para Bergson, o criador da obra de arte é aquele que, menos engajado na ação utilitária, se permite sonhar, imaginar e observar o movimento de sua interioridade, por

seus caracteres essenciais se assemelha ao mundo dos sólidos, mas cujos elementos são mais leves, mais diáfanos, mais fáceis de manejar pela inteligência do que a imagem pura e simples das coisas concretas; com efeito, já não são a própria percepção das coisas, mas a representação do ato pelo qual a inteligência se fixa sobre elas. Já não são imagens, mas símbolos” (Bergson, H. A evolução criadora. São Paulo: Ed. Unesp, 2009, p. 180).

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essa razão, o artista é aquele que se encontra menos distante da duração que constitui a característica mais original do humano e da realidade em que circula e vive. Nesse âmbito, a obra de arte criada pelo artista nos colocará frente à experiência de um outro olhar para o real e para os próprios senti-mentos, aos quais permaneceríamos ignorantes sem ela; a obra nos desperta uma simpatia para com os sentimentos por ela sugeridos, de modo que a representação espacial do Eu é ultrapassada por instantes por uma vivência da duração interna, do fluxo incessante, qualitativo e heterogêneo de nossas sensações, sentimentos, volições e representações, enfim, de tudo aquilo que compõe a subjetividade. Distendendo a tensão de nosso espírito às demandas pragmáticas, a arte opera, assim, uma dilatação da consciência que permite o encontro entre duas durações, a da interioridade humana com aquela que constitui o estofo da realidade exterior.

Esse contato constitui para o autor um verdadeiro encontro ou, em suas palavras, uma simpatia da consciência com a temporalidade; o artista é aque-le que dá um primeiro passo em direção a essa comunhão, pois vivencia mais constantemente a intimidade de si próprio que é também uma maneira de acesso à temporalidade original, a duração. Ora, a duração, entendida por Bergson como o fundamento interno do real, constitui-se como pura trans-formação, a criação imprevisível que a tudo elabora dentro e fora de nós; daí que ao coincidir consigo mesmo é com essa história de múltiplas transfor-mações que o artista entra em contato, com o incessante vir a ser qualitativo que caracteriza também o cerne da realidade exterior. Entretanto, a tentativa de expressão ou de representação desta coincidência pode acabar traindo o movimento de que ela é feita, imobilizando em palavras o que na verdade constitui uma experiência direta do fluir temporal. O esforço no processo de criação artística consistirá justamente em encontrar a forma que melhor consiga expressar o contato incomum e direto com a duração sem ofuscar sua verdade intangível. A diversidade criativa da arte assumirá então, em Bergson, tal como em Proust, uma função reveladora da verdade, o desvelamento da própria realidade enquanto movimento de pura criação e elaboração tempo-ral que a obra colocará frente a nós.32

32 Como observa Rita Paiva (2005, p. 397), “ao perceber a totalidade, uma vez que não se en-contra circunscrita unicamente às evidências atualizadas, mas abre-se parra para as tendências do devir, a percepção descontraída do artista nos convida a uma inserção mais lúcida no absoluto em que circulamos e vivemos, como assevera Bergson, mas para o qual raramente despertamos. Por essa razão, nos reconhecemos nos sentidos emanados pela obra, os quais nos remetem às dimen-sões mais recônditas do real e mais íntimas de nós mesmos. No entanto, para a percepção comum o real é aquele no qual agimos, delimitado pela fixidez [...]. Sob a perspectiva desse recorte, a

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Para além das diferenças entre a filosofia de Bergson e a literatura de Proust, seria lícito afirmar que ambas – cada uma à sua maneira – problematizam a dificuldade da expressão de uma experiência única, a apreensão do tempo; a duração ou o fluxo do devir que escapa à fixação, extrapola, de acordo com os autores, aquilo que a linguagem consegue dizer do movimento. Contudo, o recurso à arte como saída para o problema da comunicação daquilo que é, por sua própria natureza, incomunicável, conduz tanto Bergson como Proust a acreditarem que, mesmo com dificuldade e muito esforço, uma expressão dessa experiência é possível. Tal esforço certamente não será aquele deter-minado pelo trabalho habitual da inteligência que realiza um estancamento da transitividade do real por meio das palavras, mas aquele realizado pela imaginação, a qual presidirá a elaboração da obra ou das imagens cujo in-tento é a expressão e a comunicação do inefável.33 Encontramos assim nos dois autores o reconhecimento de que, a partir da inadequação das palavras enquanto meros signos do real, são as imagens criadas pela linguagem meta-fórica que podem subverter a tendência natural das palavras de aniquilação da mobilidade, da verdadeira face da realidade. Lembremos que Beckett aponta em sua análise do romance proustiano justamente a metáfora como a forma pela qual o narrador expressa o mundo a ele revelado metaforicamente pela memória involuntária.34 Entrementes, o pensamento bergsoniano afirma que

arte é figurada como desvelamento de irrealidades, como um mundo substancialmente falso, por-quanto resultante da invenção dos pouco ocupados. O artista é alguém que transita numa esfera em relação à qual as pessoas comuns [...] se encontram alheias. Essa esfera não é outra que não os férteis campos da imaginação e da fantasia. Essa ótica convencional é contraditada pelos argu-mentos bergsonianos. Segundo o autor, é num mundo fantasmático e irreal, erigido pelo intelecto, que vivemos a maior parte de nossas vidas. A arte desvela justamente a realidade efetiva, para a qual nossa percepção é comumente arredia”. Cf. Paiva, R. Subjetividade e Imagem: a literatura como horizonte da filosofia em Henri Bergson. São Paulo: Humanitas, 2005.

33 Como assinala Franklin Leopoldo e Silva (1994, p. 147), “a luta pela expressão é o esforço de fixar esse movimento absoluto do tempo; e é um esforço da imaginação, que, portanto, é órgão de conhecimento, de acesso mais profundo e mais direto à realidade”. Cf. Leopoldo e Silva, F. Bergson: Intuição e Discurso Filosófico. São Paulo: Loyola, 1994.

34 “O mundo proustiano é expresso metaforicamente pelo artesão porque apreendido metafori-camente pelo artista: a expressão comparativa e indireta da percepção comparativa e indireta. O equivalente retórico ao real proustiano é a cadeia metafórica” (BECKETT, S., op. cit., p. 94). Bec-kett estabelece uma distinção entre o artista e o escritor, para ele o artista é aquele que apreende o real mais livremente porque mais liberto do encarceramento do hábito, ao passo que o escritor é aquele que se ocupará apenas em traduzir a experiência única dos fenômenos da realidade apreen-didos pelo artista não em sua lógica causal, mas em sua distinção qualitativa, única, extraordinária. O artista seria então o real sujeito do conhecimento, enquanto o escritor um mero artesão que lida com impressões, experiências e emoções de segunda mão, já descoloridas pelo tempo e pelo hábito. Por isso, para Beckett, “o artista conquista seu texto, o artesão o traduz”; o artista domina

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o escritor em seu empenho de expressar as nuances e os conflitos de uma subjetividade particular, debruça-se sobre a linguagem no intuito de fazer com que as palavras possam dizer sempre mais do que dizem, trabalhando sobre a sua versatilidade, deslocando-as de seus significados convencionais de modo a estimular sua potência simbólica ou metafórica para que o leitor não se detenha na palavra escrita, mas no movimento das imagens que emana desse rearranjo das palavras no texto. Segundo o filósofo (1974, p. 97), ao procurar a flexibilidade na linguagem, o literato esforça-se por “nos fazer esquecer que emprega palavras”, como se elas fossem apenas instrumentos inconvenientes, ainda que necessários, para a expressão indireta do movimento do espírito humano. Por isso, mais importante que o próprio signo linguístico, para Berg-son, é o movimento das imagens que o conjunto articulado das palavras leva a cabo por meio de um esforço colaborativo entre a imaginação e a inteligência do escritor; somente ao esquivar-se dos significados estagnados e da tendên-cia imobilizadora da linguagem convencional é que ele consegue instituir um campo semântico prenhe de significados outros para as imagens criadas, de modo a sugerir no interior da obra o aspecto indizível da realidade que não se deixa cristalizar nos símbolos formais das línguas. Nesse âmbito, o esforço de expressão realizado pelo artista constitui uma luta tensa, sem descanso, uma tentativa arriscada de ultrapassagem das tendências naturais da própria inteligência, uma superação da linguagem por meio da própria linguagem que, por isso mesmo, corre o risco do fracasso, a recaída no caráter autossuficiente das palavras e suas significações habituais que tornariam estéril a obra literária.

A arte institui então, para Bergson e para Proust, a criação de uma forma compreensível mais próxima da verdade que escapa à percepção comum, uma linguagem capaz de esquivar-se do caráter estanque e fragmentário dos sig-nificados convencionais das palavras. Precisamente porque procura desenvol-ver como obra material a expressão de um sentimento incomparável, o artista consegue nos proporcionar, contudo, apenas um vislumbre da natureza ex-traordinária das vivências interiores e sua multiplicidade indistinta que compõe também a realidade que dura. Ao observar um quadro ou ler um romance, diz

a linguagem e a faz curvar-se à sua experiência, o artesão curva sua experiência aos domínios da linguagem. Cabe assinalar que Bergson não estabelece uma diferenciação entre o escritor e o artista, ainda que a experiência de contato direto com a duração nunca possa ser expressa em sua originalidade, mas sempre indiretamente, metaforicamente por meio da torção realizada pelo artista na linguagem, o que não deixa de ser uma conquista sobre o material linguístico, ainda que ela não ultrapasse definitivamente suas limitações originais.

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Bergson,35 “afastamos por momentos o véu que interpúnhamos entre a nossa consciência e nós mesmos”, experimentando a surpresa do contato, por míni-mo que seja, com a duração; a obra de arte, portanto, coloca-nos em presença do nosso próprio movimento criador que é também o da vida, assim como o narrador proustiano ao se deparar com o advento involuntário de sua memó-ria por um instante liberta da tensão do hábito ou, em termos bergsonianos, distraída das demandas pragmáticas impostas pelo real, também nos incita a redescobrir junto com ele o tempo enquanto duração que a tudo transmuda.

Nessa perspectiva, poderíamos afirmar que tanto em Bergson quanto em Proust a arte, e mais particularmente a literatura, é pensada como a forma pela qual o homem comum pode conhecer de modo indireto, isto é, metaforica-mente, a duração como a dimensão interna e verdadeira da realidade, já que a elaboração de uma obra artística configura, apesar de tudo, um processo de imobilização da transitoriedade. Ambos os autores parecem designar à palavra o desafio de sempre dizer algo a mais para que de alguma forma ela consiga aproximar-se de uma experiência inapreensível que escapa ao trabalho repre-sentativo da inteligência. Ao fim e ao cabo, ambos possuem a confiança de que a linguagem artística, configurada por meio de uma imaginação criadora e de um esforço incomum à inteligência, transmitiria um conhecimento, por mínimo que seja, mais originário e mais verdadeiro porque mais próximo da realidade desvelada para além da superfície estanque e habitual dos objetos. A linguagem não é negada ou execrada como falsidade absoluta, todavia seu caráter simbólico, metafórico, permanece, mais explicitamente em Bergson, como valor negativo na medida em que não impede a cristalização dos sig-nificados e, em última instância, sua imobilização em representações.36 Por um lado, também em Proust, a arte parece salvaguardar a linguagem de suas limitações costumeiras, seu domínio pelo hábito e sua tendência natural à es-quematização espacial imobilizadora e empobrecedora da realidade movente, tentando constantemente superá-las; no entanto, mesmo que o universo artís-tico trabalhe eminentemente com a sugestão de imagens, não se pode afirmar que estas escapariam à vocação estabilizadora da inteligência conduzida pelo hábito, uma vez que também são símbolos ou metáforas sobre a realidade – interior e exterior – que, para os autores, muda sem cessar.

35 Bergson, H. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 93.

36 “As imagens são símbolos dos quais o significado não se cristaliza devido a um esforço reflexi-vo para impedir que este significado se transforme numa representação autossuficiente. Mas ainda assim são símbolos” (LEOPOLDO E SILVA, 1994, p. 107).

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Destarte, é possível considerar que para Bergson e também para Proust a arte literária constitui-se como tarefa de deslocamento do significado usual das palavras na pretensão da comunicação de um conhecimento sobre o verdadeiro que, enquanto conhecimento a ser transmitido, só pode ser efe-tivado por meio da ficção, isto é, a criação de imagens operada pela imagi-nação, o que constitui ao mesmo tempo um impeditivo para este objetivo e um estímulo ao esforço necessário para que a inteligência supere os usos comuns de sua linguagem, expandindo o alcance do pensamento. A tarefa que Bergson confia ao artista, assim, parece ser aquela que Proust se esforça por configurar em sua obra.

Referências

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BERGSON, H. “A alma e o corpo”. In: BERGSON (Col. Os pensadores). Trad. Franklin Leopoldo e Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

BERGSON, H. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Trad. João da Silva Gama. Lisboa: Edições 70, 1988.

BERGSON, H. A evolução criadora. Trad. Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.

DELEUZE, G. Proust e os signos. Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Ja-neiro: Forense Universitária, 2003.

GAGNEBIN, J-M. “De uma estética da visibilidade a uma estética da tatibilidade em Walter Benjamin”. In: DUARTE, R.; KANGUSSU, I. (Orgs.). Estéticas do deslocamento: discurso filosófico – teoria crítica – linguagens artísticas. Belo Horizonte: Abre/UFMG, 2008.

LEOPOLDO E SILVA, F. Bergson: Intuição e Discurso Filosófico. São Paulo: Loyola, 1994.

PAIVA, R. Subjetividade e Imagem: a literatura como horizonte da filosofia em Henri Berg-son. São Paulo: Humanitas, 2005.

PROUST, M. Em busca do tempo perdido - vol. 1 - No caminho de Swann. Trad. Mario Quintana. São Paulo: Globo, 2006.

RICOEUR, P. Tempo e Narrativa – Tomo II. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1995.

TORRES, S. Ser, tempo e liberdade – as dimensões da ação livre na filosofia de Henri Berg-son. São Paulo: Humanitas, 2006.

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* Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Contato: [email protected]

No balanço do tédio: Heidegger e o tédio como

tonalidade afetiva fática

In the Balance of Boredom: Heidegger and Boredom

as Factical Mood

Resumo

O intuito do presente texto é acompanhar as razões pelas quais Heidegger retoma em sua preleção de 1929/30 Os conceitos fundamentais da metafísica (mundo – finitude – solidão) o projeto de Ser e tempo de uma análise do existente humano e de uma descrição de suas crises existenciais como decisivas para as possibilidades de mobilização histórica do mundo, agora não mais a partir de uma tonalidade afetiva de matiz ontológica, a angústia, mas sim a partir de uma tonalidade afetiva fática, ou seja, uma tonalidade que possui um vínculo estrutural com o mundo histórico que é o nosso. Partindo daí, o texto analisa o aprofundamento das diversas figuras do tédio até o tédio dito profundo, assim como expõe o problema que impede uma vez mais que Heidegger consiga pensar de maneira consistente o acontecimento fundamental da singularização como via de acesso à temporialidade propriamente dita do ser, ou seja, a ontologia fundamental em sua ligação com a analítica existencial.

Palavras-chave: Tédio – Tonalidade afetiva fundamental – Facticidade – Exis-tência – Mundo.

Recebido em:13/07/2020 - Aceito em: 20/12/2020

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Abstract

The aim of the present paper is to follow the reasons for which Heidegger, in his lectures from 1929/30 The Fundamental Concepts of Metaphysics (world – finitude – solitude) repeats the project of Being and Time of an analysis of the human existence and of a description of his existential crises as central for the possibilities of a historical mobilization of the world now no longer from a simply ontological mood, but rather from a so called factical mood, i.e., a mood that possesses a structural connection with our historical world. From that, the paper analyses the figures of boredom going through the most superficial one to the deep boredom, while also exposing what once more hinders Heidegger’s attempt to think in a consistent way about the fundamental event of singularization as a key path into the temporality of Being as such, which implies a new failure of the project of fundamental ontology in its essential liaison with existential analytics.

Key-words: Boredom – Fundamental Mood – Facticity – Existence – World.

1. O tédio sem movimento ou o enfado no coração do mundo

Nossas compreensões medianas do tédio tendem a tomá-lo como um senti-mento que produz o despontar imediato de uma certa experiência de letargia, uma sensação muitas vezes paralisante de enfado e modorra. Nós denomina-mos a princípio entediante aquilo que não é capaz de atiçar nosso interesse e cativar nossa vontade, aquilo que se mostra como por demais arrastado, aquilo que deprime nosso movimento e nos lança em uma imensa monotonia do espaço e do tempo. Com isto, o tédio parece estar essencialmente ligado à quebra de um determinado ritmo existencial, à incapacidade de prosseguir-mos a dinâmica de nossos afazeres cotidianos, à interrupção de nosso movi-mento automático de preenchimento dos momentos com ações – sendo que essa quebra, essa incapacidade e essa interrupção são pensadas a princípio como completamente externas à existência, como traços subsistentes de cer-tas coisas ou estados de coisas. Em nossas vidas cotidianas, plenamente pre-sentes em meio aos caminhos mais diversos, envoltos na miríade de negócios do mundo ôntico, parecemos livres de todo tédio e distantes de toda situação na qual ele poderia nos visitar. Assim, para que nos vejamos entediados, é

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preciso antes de tudo que algo determinado aconteça e perturbe abruptamen-te a dinâmica de nossos empreendimentos. Cotidianamente, portanto, só nos vemos entediados, quando algo se interpõe em nossa existência e nos obriga a abandonar temporariamente o salto incessante de uma atividade para outra. Se tal interposição não ocorre, supomo-nos livres de todo ser entediado e capazes mesmo de orientar nossas vidas para além de todo e qualquer con-tato com seu campo de aparição. Neste sentido, soa estranha a afirmação de Heidegger em sua preleção do semestre de inverno de 1929/30, Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo – finitude – solidão, de que a tarefa da pre-leção seria despertar o tédio como uma tonalidade afetiva fundamental de nosso filosofar atual; e essa estranheza acirra-se ainda mais, no momento em que nos damos conta de que essa tonalidade se confundiria, para ele, não com um tédio cotidiano, mas com algo denominado tédio profundo. Tal como se encontra formulado no tópico a do parágrafo 16 da obra: “A tarefa fundamental consiste agora no despertar de uma tonalidade afetiva funda-mental de nosso filosofar. Eu digo intencionalmente: de nosso filosofar, não de um filosofar qualquer ou mesmo da filosofia em si, que nunca há. Cabe a nós despertar uma tonalidade afetiva fundamental, que deve sustentar nosso filosofar”1. E ele prossegue no tópico c do parágrafo 18: “Será que as coisas se dão de tal modo conosco que um tédio profundo atravessa de cá para lá os abismos do ser - aí como uma névoa silenciosa?”2 Filosofia e despertar de uma tonalidade afetiva fundamental – mundo contemporâneo, filosofar atual e tédio profun-do. Esse é o estranho nexo estrutural, do qual parte a preleção de inverno de 1929/30. Mas as coisas não param por aí. Toda essa estranheza ganha novos contornos ao vermos o autor se lançar não simplesmente em direção a um empenho crítico ante o tédio, mas estabelecer como meta explícita desper-tar essa tonalidade afetiva fundamental. O que importa a Heidegger desde o princípio aqui não é buscar modos de afugentar o tédio ou de escapar de sua presença, mas antes se lançar em um modo próprio de relação com o tédio, em uma descrição do acontecimento radical que tem lugar em meio a tal relação. A tarefa da preleção, em suma, é deixar que o tédio que dormita em nosso horizonte histórico enquanto tal venha à tona e nos afine. Não que ela

1 Martin Heidegger, Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo – finitude – solidão, OC29/30, p. 89.

2 Idem, p. 115. Por mais que a passagem assuma a forma interrogativa, o contexto deixa claro que se trata de uma pergunta meramente retórica, que pode tranquilamente ser tratada como uma afirmação: um tédio profundo claramente atravessa de cá para lá os abismos do ser-aí.

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busque nos entediar: isso colocaria a obra em uma relação superficial com o tédio. Não. O que ela procura empreender é, sim, enraizar nossa experiência de mundo no tédio como tonalidade afetiva fundamental. Assim, uma série de perguntas parecem se impor como que por si mesmas: em que medida é possível sustentar o tédio como uma tonalidade afetiva fundamental de nosso ser-aí atual? O que significa no presente contexto a afirmação de que ela é uma e não a tonalidade afetiva fundamental de nosso filosofar atual? Essa afirmação retira o lugar paradigmático do tédio para pensar o nosso tempo e o mundo que é o nosso? Até que ponto é possível superar o caráter marca-damente extrínseco e contingente da compreensão mais imediata do tédio e aprofundar o tédio? O que há de propriamente filosófico nesse movimento? Há diferenças entre figuras determinadas do tédio? Elas são completamente diferentes ou possuem, em verdade, algumas estruturas originárias em co-mum, que tornam possível pensar o tédio na chave de um conjunto de es-truturas existenciais? Supondo que elas sejam diferentes, em que medida é possível pensar tal diferença a partir de algo assim como níveis diversos de profundidade – algo que está diretamente insinuado pela menção a um tédio profundo? Heidegger acena com uma primeira via de resposta a essas questões em uma passagem do parágrafo 20 dos Conceitos:

“Pois exatamente isso permanece obscuro para nós: em que medida o té-dio deve ser nossa tonalidade afetiva fundamental, e, evidentemente, uma tonalidade afetiva fundamental essencial. Através dessa afirmação, tal-vez não ressoe em nós absolutamente nada: é possível que essa afirmação não nos evoque mesmo nada. Por que será que isto acontece? Talvez não conheçamos este tédio, porque não entendemos o tédio em geral em sua essência. Talvez não conheçamos a sua essência, porque ele jamais se tor-nou essencial para nós. E o tédio não pode, por fim, se tornar essencial para nós, porque ele pertence àquelas tonalidades afetivas que não apenas afugentamos cotidianamente, como também não deixamos frequentemente que nos afinem como tonalidades afetivas; mesmo quando elas estão aí.”3

A passagem acima articula explicitamente a estranheza diante da afirmação do tédio como tonalidade afetiva fundamental de nosso filosofar atual (o que pode ser lido a princípio como um sinônimo de nosso ser-aí atual) com o nosso desconhecimento da essência do tédio, assim como com a nossa

3 Martin Heidegger, Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo – finitude – solidão, p. 98.

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dificuldade de deixar que ele se torne essencial para nós. Ao mesmo tempo, Heidegger acentua ao final, que esse desconhecimento e essa dificuldade es-tão enraizados no modo cotidiano de existência, naquilo que em Ser e tempo aparece como o modo de ser de saída e na maioria das vezes do existir hu-mano. O tédio claramente não se mostra por um lado como um fenômeno desconhecido para o ser-aí cotidiano: ele está evidentemente entre as expe-riências mais comuns do dia a dia do homem de nosso tempo, mobilizando todo um conjunto enorme de estratégias próprias ao campo da diversão e do entretenimento tanto quanto caracterizando o afã da vida cotidiana na busca por coisas sempre e cada vez mais interessantes. Todavia, todas as experiên-cias cotidianas do tédio acompanham, por outro lado, a tendência estrutural da cotidianidade para superficializar de maneira reificadora a existência em meio ao automatismo das atividades utensiliares, que se mantêm no ritmo incessante da sucessão dos agoras. De saída e na maioria das vezes, é o que não cansamos de acompanhar nas diversas preleções e textos heideggerianos da década de 1920, ninguém concebe propriedades por si subsistentes dos entes em geral, mas todos sempre lidam a cada vez de maneira circunvisiva com utensílios em meio a campos conformativos, ou seja, campos que se sustentam a partir da articulação entre totalidade significativa (significância) e sentido, nos quais se impõe constantemente aquilo que respectivamente precisa ser feito. Cotidianamente, dá-se o domínio quase irrestrito da lógica da ocupação no interior da mediania do existir. De saída e na maioria das vezes, não nos compreendemos plenamente a partir de nossas possibilidades mais próprias de ser, mas a partir de caminhos impessoais desde o princípio dados à mão4. Jogados em um mundo fático específico, vemo-nos absorvi-dos por referências utensiliares que viabilizam as escolhas das diversas ações

4 Hans Georg Gadamer chama em sua coletânea de textos sobre Hegel, Husserl, Heidegger esse movimento empreendido por Heidegger na década de 1920 de “virada prática no interior da hermenêutica”, contrapondo evidentemente a fenomenologia hermenêutica heideggeriana à her-menêutica das ciências do espírito de Wilhelm Dilthey. Aqui, a compreensão perde o seu caráter de faculdade teórica, deixando de ser a capacidade de descobrir o eu no tu e de se mostrar como o traço estrutural do método mesmo das ciências do espírito, para se mostrar como a determi-nação propriamente dita do modo do dar-se originário e intencional da existência. Existir é aqui compreender, na medida em que o acontecimento existencial originário traz sempre consigo o descerramento de um campo de sentido, em virtude do qual e com vistas ao qual pela primeira vez é possível pensar algo assim como uma possibilidade de ação. Eu comento mais detidamente o significado originário da compreensão e a tendência ontológica daí emergente tanto em meu li-vro de 2009, Nada a caminho: impessoalidade, niilismo e técnica na obra de Martin Heidegger, quanto em meus dois livros de 2017 e 2019, Mundo e historicidade: leituras fenomenológicas de Ser e tempo, volume 1, Existência e mundaneidade, volume 2, Tempo e historicidade. Nesse volume, a questão da desarticulação cotidiana da essência temporal do cuidado é tratada de maneira detida.

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em geral e promovem ao mesmo tempo as nossas interpretações cotidianas tanto de nós mesmos quanto dos outros. Assim, nosso ser e o ser dos entes intramundanos como um todo se determinam aí em função de orientações fornecidas pelo próprio mundo fático em que nos achamos imediatamente inseridos. Essa determinação produz, então, uma homogeneização radical de todas as nuanças ontológicas entre os entes, além de uma confusão estrutural entre o ser-aí (Dasein – Existenz) e os entes dotados do caráter de subsistência em si (Vorhandensein). Heidegger descreve de maneira paradigmática essa ho-mogeinização em um outro trecho de Os conceitos fundamentais da metafísica, na medida em que mostra concomitantemente como ela torna possível o movimento incessante da cotidianidade:

“De início e na maioria das vezes, na cotidianidade de nosso ser-aí, deixa-mos muito mais o ente se aproximar de nós em uma estranha indistinção e ser um ente por si subsistente. Não que todas as coisas confluam umas para as outras indistintamente – ao contrário, somos sensíveis à multiplicidade de conteúdos do ente que nos envolve, nunca estamos satisfeitos com as mu-danças e somos ávidos por novidades e por alteridade. No entanto, o ente que nos envolve está aí homogeneamente manifesto como o justamente presente enquanto um subsistente no sentido mais amplo possível; há terra e mar, montanhas e florestas, e, em tudo isto, há animais e plan-tas; há homens e obras humanas, e, no interior de tudo isto, nós mesmos também. Este caráter do ente enquanto o ente por si subsistente no sentido mais amplo possível não poderia ser jamais indicado de maneira suficien-temente insistente: ele é com efeito um caráter essencial do ente, tal como este se difunde em nossa cotidianidade. A amplitude desta difusão é tal que nós mesmos somos incluídos aí. É o fato de o ente poder ser manifesto nesta homogeneidade nivelada dos entes por si subsistentes que dá à cotidianida-de do homem a própria segurança, firmeza e quase automaticidade. É este fato que assegura a facilidade, necessária para o cotidiano, da passagem de um ente para o outro, sem que aí o respectivo gênero ôntico do ente tenha grande importância em toda a sua essencialidade”.5

5 Heidegger, Os conceitos fundamentais da Metafísica (Mundo – Solidão – Finitude), pp. 315-6.

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Absorvidos no mundo fático em sua cotidianidade mediana, perdemos ao mesmo tempo de vista as nuanças ontológicas entre os entes em geral (senti-dos de ser), na mesma medida em que tendemos imediatamente a nos tomar ontologicamente a partir do modo de ser dos entes com os quais lidamos de saída e na maioria das vezes, a partir do modo de ser do ente dotado de propriedades, ou seja, a partir do sentido de ser próprio à subsistência em si (Vorhandenheit)6. Tudo aparece constantemente sob o caráter dominante da subsistência em si e mesmo o existente não chega a escapar dessa determina-ção. Nós lidamos aí com uma série inumerável de utensílios e não possuímos em momento algum dessa lida uma relação com o seu ser que seja marcada pela experiência de que, sendo, colocaríamos o nosso ser em jogo em meio à assunção de cada um de nossos modos possíveis de lida. Exatamente isso produz, então, o surgimento de um certo ritmo particular nas atividades coti-dianas. Jogado em campos de sentido já disponíveis no mundo e justamente por isso desde o princípio supostos como positivos, o ser-aí se deixa absorver nesses campos e conquista em sintonia com eles a possibilidade de simples-mente seguir as orientações significativas normativas do seu mundo fático se-dimentado. Não se questiona aqui às últimas consequências o que se precisa fazer, uma vez que o sentido suporta tacitamente a obviedade dessa questão; tampouco se questiona o que cada utensílio exige de nós, uma vez que ques-tionar tal exigência seria radicalmente questionar a normatividade do próprio campo fenomênico no qual ele conquista seu significado em meio a uma rede referencial determinada. Assim, jogado no mundo, o ser-aí se deixa absorver em campos específicos de ação, na mesma medida em que a autonomização desses campos vai paulatinamente promovendo uma desarticulação entre o ser-aí e o seu primado ôntico-ontológico, para usar uma expressão de Ser e tempo, isto é, uma desarticulação entre o ser-aí e o fato de que ele é origina-riamente os seus modos de ser. Desarticulado de tal unidade entre seu ser e seus modos de ser, porém, o ser-aí pode tanto mais agir obedecendo automa-ticamente àquilo que é requerido pelo campo de ação em sua configuração a cada vez presente. O que significa dizer que a absorção no campo de ação se-dimentado favorece a autonomização dos campos de ação, na mesma medida em que a autonomização dos campos de ação potencializa o obscurecimento

6 Uma análise primorosa da homogeneização ontológica do mundo e da possibilidade de uma ampliação dos campos de sentido pode ser acompanhada em Aspectos da modalidade: A noção de possibilidade na fenomenologia hermenêutica. Antes de tudo nas partes 4 e 6: “Possibilidade e verdade” e “A justificação na hermenêutica da possibilidade”.

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do primado ôntico-ontológico do ser-aí humano, abrindo o espaço para o surgimento e a intensificação da assunção inicial do ser-aí como um ente por si subsistente. Quanto mais, portanto, o ser-aí segue de maneira automática as orientações normativas dos campos sedimentados no qual age, tanto mais também ele se vê tranquilizado em relação à sua indeterminação ontológica7, em relação ao fato de que ele é constituído originariamente por uma nadida-de estrutural. A segurança e a estabilidade de tais atividades repousam, por conseguinte, sobre a dita homogeneização do ser dos entes e propiciam a pos-sibilidade de uma articulação incessante de nossas mais diversas ações. Nós saímos de casa para o trabalho e o caráter dado das referências utensiliares fáticas viabiliza o uso impessoal e irrefletido do carro. Nós seguimos então a série infinda de orientações presentes no trânsito. Mas não paramos por aí.

7 É preciso explicitar aqui um pouco mais o que compreendo por “indeterminação ontológi-ca”. Ao ouvir tal expressão, alguém poderia retrucar que, na medida em que o ser-aí humano é determinado originariamente por seu caráter de jogado, ele já sempre teria deixado para trás tal indeterminação e assumido determinações específicas em meio à realização de suas possibilidades fáticas de ser. Ao mesmo tempo, como é que seria possível afirmar a indeterminação ontológica do ser-aí humano, uma vez que todo o exercício de Ser e tempo e mesmo das preleções que cir-cundam a obra capital do pensamento heideggeriano na década de 1920, antes e depois de 1927, se caracteriza justamente por explicitar os existenciais que determinam o modo de ser do que ente que nós mesmos somos, o ente que é sempre a cada vez meu?!? Em primeiro lugar, quanto à menção à facticidade, me parece imprescindível ter em vista que as possibilidades fáticas de ser do ser-aí humano jamais suprimem o caráter de poder-ser que é o dele. Heidegger chega mesmo a explicitar esse fato diretamente por meio da noção de diferença ontológica em sua preleção Pro-legômenos a uma história do conceito de tempo. Diferença ontológica é umtermo para designar aí o fato de que o ser-aí jamais se torna os seus modos de ser, como se esses modos de ser pudessem ser pensados na chave da ontologia da subsistência em si, mas sempre retém o modo do ser possível em todas as suas possibilidades de ser. É isso, por outro lado, que viabiliza a conexão entre ser e tempo (Cf. Prolegômenos a uma história do conceito de tempo, GA20, pp. 148-92). Em segundo lugar, a objeção, segundo a qual a indeterminação ontológica do ser-aí humano seria incompatí-vel com a sua determinação enquanto existente, ou seja, enquanto totalidade do todo estrutural dos existenciais também me parece desconsiderar que os existenciais determinam justamente a indeterminabilidade última do ser-aí humano: eles descrevem justamente o modo de ser de um ente que não tem nenhuma determinação para além de suas possibilidades de ser no tempo finito de ser essas possibilidades. Assim, chamar os existenciais de determinações do ser do ser-aí me parece algo que atenua justamente o significado último da noção de poder-ser: a impossibilidade de se transformar um modo de ser no modo de ser do ser-aí. Por fim, não é demais lembrar que o próprio Heidegger acentua essa indeterminação, utilizando inclusive uma variante interessante em alemão, Unbestimmtheit, que poderíamos traduzir antes por “indeterminidade”, em uma passagem paradigmática que cito aqui: “A decisão transparente para si mesma compreende que a indetermi-nidade do poder-ser só é a cada vez determinada no estar decidido para a respectiva situação. Ela sabe da indeterminidade, que impera sobre um ente que existe. Esse saber, porém, precisa emer-gir ele mesmo, caso ele queira corresponder à decisão propriamente dita, de um descerramento próprio. A indeterminidade do poder-ser próprio, que, contudo, já sempre se tornou a cada vez certo no estar decidido, só se manifesta, porém, completamente no ser para a morte. A antecipação traz o ser-aí para diante de uma possibilidade, que permanece constantemente certa e, no entanto, indeterminada a todo instante no quando a possibilidade se torna uma impossibilidade. Ela torna manifesto, que esse ente é jogado na indeterminidade de sua ‘situação limite’” (ST, §62, p. 308).

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Logo chegamos ao escritório e começamos o uso igualmente impessoal de uma gama enorme de outros utensílios. Assim, saltamos incessantemente de um uso para o outro sem que qualquer quebra venha a se instaurar. No en-tanto, não é apenas isso o que acontece aí a cada vez. De acordo com a plena imersão no horizonte mediano da ocupação, tendemos desde o princípio a experimentar qualquer perturbação dessa lógica como um problema intrín-seco aos utensílios em geral, como uma consequência de alguma ruptura no interior do próprio mundo utensiliar, que não pode ser causada senão por algum ente intramundano qualquer.8 Essa tendência assenta-se, contudo, em um modo específico de concreção das tonalidades afetivas na cotidianidade, que repercute diretamente sobre o modo superficial de o ser-aí de início e na maioria das vezes se relacionar com essa tonalidade afetiva fundamental que determina a sua experiência contemporânea de si e do mundo. Ao automa-tismo cotidiano e ao esquecimento de si corresponde, então, uma tonalidade afetiva cotidiana que está na base da superficialidade mesma com que o ser-aí cotidiano se relaciona com o seu ser e com o ser de tudo o que é. A questão, com isto, passa a ser aprofundar tal tonalidade.

2. Do tédio superficial ao primeiro aprofundamento do tédio: a tarefa da preleção

Heidegger acentua desde o princípio em sua preleção do semestre de inverno de 1929/30, que a tarefa da preleção seria despertar uma tonalidade afetiva fundamental de nosso filosofar atual, ou seja, uma tonalidade afetiva que tenha um vínculo fático com o modo de descerramento de mundo que é constitutivo não de toda e qualquer facticidade, mas da nossa facticidade em particular. Despertar, porém, como o próprio texto heideggeriano procura evidenciar inicialmente, é algo que só podemos fazer com aquilo que já se encontra aí, ainda que dormindo. Para que se possa falar, em outras palavras, de um despertar do tédio, é preciso que o tédio já dormite em todas as nossas

8 Há aqui uma relação plenamente analógica do modo mais imediato de experimentação do tédio (o tédio mais superficial) e do tédio profundo em relação às tonalidades afetivas do temor e da an-gústia tematizadas expressamente em Ser e tempo. Exatamente como o temor é sempre provocado pela presença de um ente intramundano que é suposto como podendo provocar o aniquilamento do ser-aí enquanto a angústia, em contrapartida, possui uma ligação direta com o ser-aí enquanto poder-ser, o tédio superficial nasce inicialmente em conexão direta com os entes intramundanos enquanto o tédio profundo, por outro lado, se caracteriza justamente por uma certa dinâmica de abertura do ente na totalidade. A diferença aqui está apenas no fato de que o tédio superficial e o tédio profundo apontam para modos diversos de temporalização da existência.

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possibilidades de ser fáticas em geral. Neste sentido, o tédio já precisa se fa-zer presente em todas as nossas possibilidades de ser em geral. Não obstante, uma vez que ele precisa ser despertado, então seu modo de presença aponta na direção de uma ausência primordial. Tal como se encontra formulado no parágrafo 16 dos Conceitos: “‘O que dorme’ está de uma maneira peculiar ausente e, contudo, se acha aí. Se nós despertamos uma tonalidade afetiva, então isto significa que ela de certa forma não está aí. Estranho, a tonalidade afetiva é algo, que ao mesmo tempo está e não está aí”9. Para acompanharmos o sentido propriamente dito do que está aqui em questão, é preciso ter em vista uma analogia com o que Heidegger nos apresenta em Ser e tempo acerca da relação entre temor e angústia. No temor, nós nos vemos jogados no mun-do fático e ao mesmo tempo confrontados com a nossa fragilidade propria-mente dita. O modo mesmo como o jogado se dá aí, porém, é caracterizado por uma retenção da absorção no mundo e por uma modulação de nossa fragilidade ontológica em uma fragilidade ôntica específica. Quando temo, eu sempre temo algo que aparece como temível, precisamente na medida em que esse algo temível evidencia a minha vulnerabilidade ôntica, o fato de que algo sempre pode destruir a coisa que eu pretensamente sou. A questão, porém, é que um ente ontologicamente indeterminado, um ente marcado por uma nadidade estrutural, ou seja, um ente dotado de caráter de poder-ser jamais se constitui como uma coisa dotada de propriedades subsistentes que podem ser destruídas por um algo também subsistente qualquer. Minha mortalidade, como Heidegger não cansa de mostrar em Ser e tempo, não provém do fato de que algum dia algo destruirá a coisa que eu sou, mas da necessidade, oriunda de minha própria nadidade, de ser sempre a cada vez a possibilidade que sou no tempo finito de ser tais possibilidades. Assim, para que eu possa experi-mentar onticamente o temor e a vulnerabilidade que vem à tona com ele, eu preciso antes de tudo que a minha vulnerabilidade ontológica experimente uma modulação e seja experimentada como vulnerabilidade ôntica. Temos aqui algo muito comum à fenomenologia em geral, uma descrição de estrutu-ras originárias que condicionam as experiências derivadas. Bem, mas na mes-ma medida em que o temor se revela como angústia imprópria, em que ele é “angústia decaída no mundo e velada para ela mesma enquanto tal”10, em suma, na mesma medida em que o temor pode ser pensado como angústia

9 Martin Heidegger, Os conceitos fundamentais da metafísica (mundo – finitude – solidão), OC29/30, § 16, p. 91.

10 Martin Heidegger, Ser e tempo, OC2, p. 189.

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superficial, o tédio também possui formas derivadas de sua determinação mais própria, mais originária, mais fundamental. O que está em questão, por isto, na preleção não é simplesmente despertar o tédio que dormita, como se pudéssemos tornar algo inconsciente consciente, mas antes reduzir as formas superficiais patentes na cotidianidade à sua forma profunda, à forma da qual elas não são senão modulações. Mas como é que nós cotidianamente com-preendemos o tédio? De onde é que precisamos partir para aceder ao tédio profundo, ao tédio como tonalidade afetiva fundamental?

Uma reificação dos elementos entediantes perpassa radicalmente as com-preensões medianas da essência do tédio. O tédio não possui de saída e na maioria das vezes nenhuma ligação com o próprio ser-aí, mas é assumido inversamente como um traço de certos entes intramundanos ou de estados de coisa manifestos em meio a conjunturas intramundanas. De saída e na maioria das vezes, o que nos entedia é a árida rodoviária em que ficamos inutilmente parados à espera de um ônibus que só chegará em cinco horas, o livro que não conseguimos suportar sem bocejos, mas que temos necessaria-mente de ler para um trabalho universitário ou a palestra interminável sobre um tema completamente alheio aos nossos interesses, da qual não podemos sair em função da lotação do auditório e das formalidades que regem a vida acadêmica e social. Em todos esses casos, experimentamos uma quebra na dinâmica intrínseca ao mundo das ocupações cotidianas e um alongamento do tempo. Para descrever essa conjuntura, Heidegger nos fala de alguns ele-mentos constitutivos dessa primeira figura do tédio, do ser entediado por: retenção pelo tempo hesitante, serenidade vazia e passatempo. Em verdade, o que há de comum em todas as situações acima é o fato de sermos repenti-namente retidos em uma quebra de nosso ritmo existencial. Não nos senti-ríamos tomados pelo tédio, se o ônibus chegasse imediatamente à rodoviária, se não precisássemos continuar lendo o livro enfadonho ou se pudéssemos nos levantar e ir embora da palestra. Como não podemos simplesmente abandonar essas situações, vemo-nos presos ao tédio. O tédio instaura, por sua vez, um novo ritmo: em meio ao tédio temos a impressão de que nada acontece e de que o tempo parece demorar uma eternidade para passar. Com isto, onde quer que sejamos entediados por algo (primeira figura do tédio), tendemos a olhar de dois em dois minutos para o relógio e conferir quanto tempo já se passou. O novo ritmo instaurado pelo tédio aponta, assim, para um ralentamento característico do tempo, para a constituição de um novo ritmo temporal. Olhamos incessantemente para o relógio em meio à situação que nos entendia e o tempo não anda. Nós nos vemos, portanto, retidos

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não à situação, à rodoviária, ao livro ou à palestra, mas ao curso hesitante do tempo.11 Entediados por algo, nós nos vemos no interior de um vagar do tempo. Nas palavras de Heidegger: “No que concerne ao nosso problema orientador, o que é propriamente o ser-entediado, conclui-se então: o ser-en-tediado consiste em uma perplexidade peculiarmente paralisante oriunda do curso temporal hesitante.”12 Mas como é possível tal ralentar do tempo? Um dia tem vinte e quatro horas, uma hora tem sessenta minutos e um minuto, sessenta segundos. Nem mais, nem menos. Alguém podia imaginar que es-taria em jogo algo assim como uma experiência subjetiva do tempo, como um tempo psicológico. A questão, contudo, é que tal posição não dá conta de modo algum da amplitude da modificação do modo de temporalização da temporalidade. Não é como eu me relaciono com o tempo que se altera aqui, mas o modo como o tempo se revela para mim, como ele por ele mesmo se mostra, ou, dito em linguagem fenomenológica, como ele se fenomenologi-za. Ao ser entediado por algo, o ser-aí experimenta um empobrecimento de suas possibilidades mesmas de ser no tempo. Juntamente com esse ser retido pelo tempo hesitante dá-se, então, um novo modo de relação do ser-aí com os próprios entes que se encontram à sua volta no mundo circundante. Em meio à retenção pelo curso hesitante do tempo não é apenas o ritmo de nos-sas atividades que se quebra. Ao contrário, os entes mesmos passam a se re-cusar para nós. Nós gostaríamos de continuar nos entregando à dinâmica da ocupação, mas não vemos nada com que pudéssemos nos ocupar. Nós pro-curamos em vão um passatempo, mas não há nada à mão capaz de funcionar como tal. A entrada em cena do tédio quebra o ritmo de nossas atividades co-tidianas ao mesmo tempo em que perturba a lógica confiável da significância.

“As coisas nos deixam em paz, não nos aporrinham. Mas elas também não nos ajudam: elas não fazem com que assumamos uma atitude em relação a elas. Elas nos abandonam a nós mesmos. Porque não têm nada a oferecer, elas nos deixam vazios. Deixar vazio significa não oferecer nada como algo por si sub-sistente. Serenidade vazia diz: não receber nenhuma oferta do que está por si subsistente”.13 O surgimento do tédio a partir dos entes intramundanos traz consigo, assim, o enfado para o coração do mundo e tem por correlato uma compreensão do tempo como preenchimento sucessivo dos agoras com

11 É fácil perceber isso, uma vez que a mesma estação rodoviária, o mesmo livro e a mesma pa-lestra podem se mostrar como nada entediantes em um outro momento, em outra circunstância.

12 Martin Heidegger, Os conceitos fundamentais da metafísica (mundo – finitude – solidão), p. 118.

13 Idem, p. 124.

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ações. O vazio está por toda parte e o tempo não tem mais como seguir o seu ritmo cotidiano, uma vez que não conseguimos mais preencher a sequência infinita de agoras com o que cada um deles requisita em termos de ocupação. Tudo isso se aprofunda na segunda figura do tédio.

A primeira figura do tédio brota diretamente dos entes intramundanos e chega como que de fora ao ser-aí: ela é o resultado de uma quebra no ritmo mesmo das ocupações medianas provocada pela recusa dos entes em jogo na situação. A essa forma superficial de tédio alia-se uma outra mais profunda que será caracterizada em Os conceitos fundamentais da metafísica por meio da expressão “entediar-se junto a”. Heidegger exemplifica inicialmente essa segunda forma no parágrafo 24 do livro:

“Fomos convidados para irmos a um lugar à noite. Não precisamos ir. Mas tivemos um dia tenso e à noite temos tempo. Assim, vamos. Há aí a comida de sempre com as conversações de sempre à mesa. Tudo não está somente de fato saboroso, mas também de muito bom gosto. Como se diz, as pessoas se sentam juntas depois animadamente, talvez ouçam música, conversem: tudo é espirituoso e divertido. Já é tempo de ir embora. As senhoras asseve-ram, e não apenas ao se despedirem, mas também no andar de baixo e do lado de fora, onde já estão entre si: ‘– Foi realmente muito legal’; ou: ‘– Foi extremamente estimulante’. De fato. Não se encontra simplesmente nada que pudesse ter sido entediante nesta noite; nem a conversação, nem as pessoas, nem os ambientes. As pessoas voltam totalmente satisfeitas para casa. Elas ainda dão uma rápida olhadela sobre o trabalho interrompido à noite, fazem um cálculo aproximativo e uma consideração prévia do que tem de ser feito no dia seguinte – e, então, aparece aí: eu me entediei nesta noite, em meio ao convite”.14

Não é difícil perceber logo de saída uma série de diferenças entre a primeira e a segunda figura do tédio. Enquanto no primeiro caso tínhamos uma situação entediante e uma recusa ligada explicitamente aos entes presentes na situação, não conseguimos encontrar aqui nenhum ente que pudesse se mostrar como responsável pelo aparecimento do tédio. Não há nada entediante na festa e as coisas tampouco nos abandonam a nós mesmos. Nós nos sentimos antes muito mais à vontade com tudo o que acontece na festa e completamen-te articulados com os entes que vão se oferecendo. Nós conversamos com

14 CFM, p. 132.

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desenvoltura, rimos das piadas que vão sendo contadas, nos deliciamos com a comida, dançamos durante um bom tempo e nos alegramos com todas as coisas. Não há nada na situação que pudesse ser responsável pelo tédio que se abateu sobre nós. No entanto, o fato é que nos entediamos. Mas onde está, então, o tédio propriamente dito? O que nos assegura que tudo não passou de uma impressão posterior, causada pelo cansaço ao chegar em casa e pela visualização da montanha de trabalho restante para o dia seguinte? A resposta a essas questões depende de uma análise mais atenta da situação agora em jogo. Em primeiro lugar, estamos, sim, totalmente presentes no espaço de realização da festa, de tal modo que não podemos falar aqui de um ser-dei-xado-vazio pelos entes do mesmo modo que falávamos no tédio proveniente dos entes. A mesma coisa vale para o curso hesitante do tempo: não há aí nenhuma quebra na dinâmica de nossas atividades, mas somos lançados em um ritmo ainda mais constante e ininterrupto dessas atividades. Por fim, não chegamos aí sequer a buscar o passatempo. Como não há nada entediante na festa, não sentimos a princípio qualquer necessidade de procurar algo que devolva a mobilidade ao tempo e propicie um fluir incessante. A ausência de tal necessidade de passatempo não repousa aqui, porém, senão sobre o caráter próprio ao passatempo em questão na festa. O ponto de partida desta segunda figura do tédio aponta para a experiência mesma do convite: “Fomos convidados para ir a um lugar à noite. Não precisamos ir. Mas tivemos um dia tenso e à noite temos tempo”.

Se procurarmos inicialmente por algum ente intramundano responsável pelo aparecimento do tédio, não o encontramos. Nada nos entedia aqui. To-davia, o fato de nenhum ente intramundano se mostrar como entediante não significa que não nos entediamos. Ao contrário, isso indica apenas que a origem do tédio se encontra aqui a princípio encoberta e precisa ser, com isto, explicitada para que venha à tona propriamente. Nós perguntamos então: qual o caráter próprio a esse tédio? A resposta a essa pergunta precisa ser buscada a partir da identificação do tipo de passatempo em jogo. Nós temos tempo essa noite. Mas não apenas isso. Nós temos tempo essa noite e tivemos um dia tenso. O dia tenso faz com que procuremos nos distrair à noite, com que aceitemos o convite e procuremos escapar da sensação de estarmos em casa entregues a nós mesmos. Nós não queremos nenhuma atividade que produza ainda mais tensão e abdicamos de qualquer coisa que exija o mí-nimo de reflexão. Portanto, aceitamos o convite, porque ele pode propiciar justamente o que almejamos. O que receamos, contudo, em última instân-cia que aconteça se ficarmos em casa? O que esse receio traz imediatamente

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consigo? Nós receamos o curso hesitante do tempo e o sermos deixados va-zios – exatamente aquilo que caracterizava a primeira figura do tédio e que nos indica o fato de ainda estarmos nos movimentando em meio à atmosfera específica daí oriunda. Esse receio mobiliza, então, toda uma estrutura que funciona como o passatempo. Heidegger descreve um tal fato em uma outra passagem dos “Conceitos”: “(...) toda a atitude e todo o comportamento são o passatempo: toda a noite, o próprio convite. Por isto mesmo, o passatempo foi tão difícil de ser encontrado. Mas se o convite mesmo deve ter se tornado o passatempo, o que é aí, então, entediante? Através do que somos entediados? Constatamos, de qualque modo, que em todo o convite não havia nada de entediante. De fato. Não falamos mesmo de antemão sobre o tédio no sentido de um ser entediado por, mas trata-se aqui de um entediar-se junto ao convi-te. Assim, temos de insistir em todo caso no seguinte: o convite é isto junto ao que nos entediamos e este ‘junto ao quê’ é simultaneamente o passatempo. Nessa situação entediante, o passatempo e o tédio se entrelaçam de uma manei-ra peculiar. O passatempo insere-se furtivamente no ser-entediado e recebe, estendido por toda a situação, uma abrangência peculiar; uma abrangência que ele nunca poderia ter na primeira forma, com aqueles rompantes e com aquelas tentativas inquietas”.15 O que é descrito através daí é, portanto, um movimento deveras particular. Nesta segunda figura do tédio, não encontra-mos a princípio nada entediante, porque o tédio não está mesmo em nenhum ente presente na situação, não se confunde com nenhuma propriedade de algo que chega até o ser-aí de fora e que produz o surgimento do efeito que é o tédio. Ao contrário, ele está mobilizando, sim, estruturalmente a própria constituição do convite como convite. Vamos à festa para não cairmos em um tédio possível e transformamos o espaço da noite em uma forma de impedir o surgimento do curso hesitante do tempo e a sensação de vazio que acompa-nha tal curso. Mais ainda: como o tédio está desde o princípio perpassando a conformação das atividades que vão se sucedendo durante a noite, ele mo-biliza todo um aparato voltado para o estabelecimento de um ritmo existen-cial que não torne possível o aparecimento explícito do tédio, a retenção no curso hesitante. E uma coisa é importante acentuar neste caso. Não se trata de uma festa qualquer que é pensada como passatempo, mas trata-se de uma festa repleta de momentos capazes de provocar o nosso interesse e nos levar a uma plena participação em tudo o que acontece. Essa segunda figura do tédio implica, em suma, a extensão do passatempo a toda a situação em jogo,

15 Idem, p. 136.

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porque só uma tal extensão pode vedar o despertar do tédio que nos afina. Mas alguém poderia apresentar agora a seguinte objeção: mesmo concordan-do com o fato de a situação como um todo se mostrar como o passatempo, isso ainda não diz que nos entediamos na festa. Se o passatempo for efetivo como passatempo, ele não deixará o tédio surgir e nós conseguiremos, com isto, escapar dessa tonalidade afetiva. O tédio revelar-se-á, assim, como uma mera experiência posterior, como alguma coisa que só se apresentará poste-riormente, ao chegarmos em casa cansados e não conseguirmos adormecer. A questão é que o passatempo não vige absolutamente em uma dimensão extrínseca ao tédio, mas é incessantemente mobilizado por ele: ele está e preci-sa mesmo estar constantemente presente aí. É preciso que o tédio se mante-nha incessantemente presente para que a dinâmica do passatempo continue tendo lugar. Dito isso, resta então perguntar: qual é o caráter próprio a esse tédio? Nós também temos aqui aquelas duas instâncias essenciais à primeira figura, o curso hesitante do tempo e a serenidade vazia? Para respondermos a essas perguntas, é preciso compreender a ligação dessa segunda figura do tédio com nós mesmos, com o nosso si-próprio.

“Entediar-se junto a” não é uma expressão qualquer. Ao contrário, ela é uma expressão que acentua diretamente a relação entre o tédio e o ser-aí. O que está em jogo nessa figura do tédio não é mais o aparecimento de um ente ou de uma situação intramundana na qual o ser-aí se entedia, mas o tédio mesmo como afinação do ser-aí. É ele que se entedia aí junto à situação da festa. Na medida em que o ser-aí se mostra como afinado por esse tédio, nada mais coerente do que tomar o vazio como estando ligado agora não aos entes que se recusam, mas ao próprio ser-aí. Em que medida é possível falar, porém, em um vazio do ser-aí afinado por essa segunda figura do tédio? Nós recebemos o convite para a festa e nos preparamos durante algum tempo para ele. Nós procuramos uma roupa adequada, nos arrumamos com uma destreza calculada de modo a chegarmos na hora certa, pegamos o carro e nos dirigimos para a casa de quem nos convidou. O convite mobiliza, com isto, nossas atividades já antes de a festa começar. E essa mobilização não pára por aí. Ao chegarmos à festa, tomamos parte nas ondas que a cada vez nos carregam e é exatamente em virtude dessa participação plena que o vazio se instaura. Heidegger nos diz em uma passagem do parágrafo 25 (b) de seu Os conceitos fundamentais da metafísica: “A serenidade vazia não acontece agora em e através da exclusão do preenchimento, através do recusar-se deste ou daquele ente, mas ela cresce desde o fundo, porque a sua própria pressuposição, a busca por um ser-preenchido pelo ente, já se encontra obstaculizada em

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meio a este deixar-rolar. Não se chega mais agora nem mesmo a esta busca. O entendiante também tem aqui o caráter do deixar-vazio, mas de um deixar-

-vazio que se enraíza mais profundamente; ele é um obstaculizador daquela busca, o estender-se do deixar-rolar. Com isto, o preenchimento em meio à participação torna-se manifesto, mesmo que de maneira apenas crepuscular e indeterminada, como uma aparência (uma insatisfação peculiar!) – como um passatempo que não expele tanto o tédio, mas que justamente o produz e deixa ser na situação. (...) Neste deixar-rolar alvorece uma via de escape para longe de nós mesmos, para junto do que transcorre”.16

Se olharmos atentamente para o que está dito acima, não será difícil per-ceber aí uma certa ressonância com a tematização do impessoal no interior de Ser e tempo, ainda que a segunda figura do tédio nasça antes de um aceno indelével para o mundo do entretenimento, que estava surgindo com cada vez mais intensidade na primeira metade do século XX. O que Heidegger descreve na passagem tem um paralelo imediato com a plena absorção do ser-aí pelo mundo circundante e com a queda sem travas na dinâmica de funcionamento desse mundo. Tal paralelo, contudo, insere a descrição em um campo particular que possui uma vinculação fática evidente: imerso na cotidianidade, o ser-aí decaído se vê tranquilizado ontologicamente, seduzi-do a permanecer em tal sedução e alienado de si17. Tal alienação aprofunda-

-se agora em meio a um mundo que não retém apenas na avidez pelo novo a ritmicidade da ocupação cotidiana, mas que produz toda uma gama de passatempos capazes de elevar extremamente as possibilidades mesmas de dispersão de si. Há, assim, uma transformação do modo mesmo de expor a hermenêutica cotidiana em Ser e tempo, que procura pensar em uma ligação mais imediata com a facticidade. Diferentemente do primeiro caso, então, em que o tédio surgia de uma perturbação do ritmo das atividades cotidianas, essa segunda forma aponta para a plena concretização desse ritmo. No que essa plena concretização se dá, desaparece a busca por algum passatempo. Nós não buscamos algo para nos ocuparmos, nós nos entregamos ao sabor do vento. Para onde o astral dos convivas nos levar, nós seguimos. Não que-remos ser preenchidos, porque não deixamos sequer o vazio se apresentar. Em meio à boa festa somos radicalmente integrados à convivêcia mediana e afinados diretamente por ela. A consequência disso é que a extensão do dei-xar-rolar traz consigo um esvaziamento de meu si-próprio e uma manutenção

16 Idem, p. 140.

17 Cf. Martin Heidegger, Ser e tempo, §38, pp. 175-80.

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no âmbito impessoal de existência. Nada acontece comigo aí e o deixar-rolar revela-se, com isto, como uma forma mais profunda de serenidade vazia, uma forma que diz respeito ao ser-aí mesmo e às possibilidades de sua determi-nação como um si próprio. A festa não é outra coisa senão o espaço propício à fuga que é determinante para o impessoal, à fuga do ser-aí como poder-ser. No que concerne a essa fuga e ao vazio que com ela se forma, ela vem acom-panhada de uma dimensão temporal congênere.

Por mais velada que possa estar a serenidade vazia nessa segunda forma do tédio, vimos que ela se faz aí presente. A mesma coisa se dá em relação ao curso hesitante do tempo. A princípio parece um contrassenso falar em curso hesitante do tempo, quando não nos sentimos de maneira alguma presos ao relógio e nos entregamos antes a um ritmo existencial constante, por vezes mesmo frenético. No entanto, essa aparência é uma vez mais oriunda do caráter específico dessa segunda figura do tédio, do entediar-se junto à festa. O que temos desde o início do convite é uma imersão radical nos movimen-tos próprios à convivência. Esses movimentos se sucedem em ondas que se mostram ora mais ora menos intensas. Nós nos largamos de qualquer modo ao sabor dessas ondas e deixamos que elas nos carreguem. Com isto, não chegamos nem mesmo a nos dar conta do tempo e a noite transcorre como que em um único segundo. Nós dizemos mesmo em tais situações: “– Como passou rápido! Mas já acabou? Nem percebi o tempo passar!”. A questão é que ela não transcorre apenas como que em único segundo. Ao contrário, tudo efetivamente se dá em um único e longo instante em que nada é capaz de acontecer com nosso ser-aí. O tempo tornou-se hesitante em meio à experiên-cia privativa do tempo, em meio a uma radical supressão da temporalidade e à condensação do tempo extenso em um único ponto vazio. Heidegger explicita essa experiência temporal: “Mas o que acontece ao descartarmos o tempo, ao nos fecharmos para o fluxo da duração? De qualquer modo, não podemos sair do tempo. Também não queremos absolutamente isso, mas queremos ter esse tempo para nós. Se o matamos e nos descartamos dele, então isso só pode significar que nos postamos de certa maneira em relação a ele. Como? Fazemos com que o tempo fique estagnado. Nós deixamos o tempo tomado para a noite – nisto reside justamente o tomar – estender-se de tal forma durante a noite, que não atentamos ao seu curso e aos seus mo-mentos em meio à participação no que se transcorre. A extensão temporal do ‘durante’ engole como que a sequência de agoras que flui e se torna um único agora dilatado, que não flui ele mesmo, mas se encontra estagnado. O agora é dilatado, ele é trazido à estagnação e retido nesta estagnação dilatada de

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tal maneira que tomamos totalmente parte no que transcorre à nossa volta; ou seja, que estamos totalmente presentes para os que aí se encontram. Total-mente presentes para a situação trazemos nosso tempo para a estagnação”.18 Nós vemos assim, com essa segunda figura do tédio, uma extensão máxima do tédio ao horizonte situacional do ser-aí, que passa, então, a existir em um mundo em que nada acontece e em um tempo que, por mais que dure, é sempre redutível a um único instante no qual nada se dá com o si mesmo do ser-aí19. Com essa descrição, vemo-nos diante de uma descrição rigorosa do campo de uma convivência regulada por movimentos aleatórios e casuísticos, nos quais os homens interagem a partir dos impulsos que vão recebendo de outros homens e nos quais viver é um ininterrupto deixar-rolar sem sentido. A questão, contudo, é que Heidegger dá um passo além em relação a essa compreensão entre tédio e mundo do entretenimento, abrindo-nos a possi-bilidade de pensar um acontecimento fundamental capaz de trazer consigo novas possibilidades da existência no tempo do tédio. É isso que está em jogo na tonalidade afetiva fundamental do tédio profundo.

3. Da tonalidade afetiva fundamental do tédio profundo: do banimento do horizonte temporal na totalidade à possibilidade do ser singular no tempo

Os conceitos fundamentais da metafísica (mundo – finitude – solidão) abrem uma possibilidade única no pensamento heideggeriano de perguntar sobre o víncu-lo histórico entre as tonalidades afetivas e os acontecimentos epocais em geral. Como já acentuamos, o tédio não é simplesmente uma tonalidade afetiva fun-damental, mas uma tonalidade afetiva fundamental de nosso filosofar atual. Na medida em que o filosofar tem, para Heidegger, uma relação direta com o des-cerramento de mundo e com a experiência mesma desse descerramento, afir-mar o tédio como desempenhando tal papel implica pensar o tédio em uma relação direta com o modo de descerramento não apenas do mundo enquanto tal, mas de nosso mundo em específico. Neste sentido, o tédio se diferencia da

18 Idem, p. 148.

19 Irene Borges Duarte descreve assim esse aprofundamento do tédio no entediar-se junto a: “(...) a tonalidade afetiva do tédio abandonou a superficialidade do casual, para penetrar na inte-rioridade do aí, em que o ser se dá: depois da perda das coisas no seu estar-à-mão, é o próprio Dasein que, prisioneiro do agora sem figura, se desfaz em nada. O aborrecer-me, assim, conduz às profundezas abissais do si-mesmo”. In: O tédio como experiência ontológica. Aspectos da Daseinsanalyse heideggeriana, p. 15.

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angústia, uma vez que não possui apenas um caráter ontológico, mas também um caráter histórico-fático indelével. Trata-se aqui de uma tonalidade afetiva fundamental fática. Dito de outro modo, assim como a angústia, é possível pensar o tédio em qualquer mundo histórico específico. De qualquer modo, porém, diferentemente da angústia, o tédio possui um vínculo mais determi-nado com o nosso tempo histórico; e isto significa dizer que ele torna possível compreender elementos de nosso mundo que antecipam a ideia heideggeriana de epocalidade, evidenciando até que ponto Heidegger já se encontra nesta preleção muito próximo das transformações que têm lugar na assim chamada viragem (Kehre) de seu pensamento. Mas se o tédio se distingue da angústia por conta do que dissemos acima, ele comunga com ela de uma série de traços essenciais que são próprios às tonalidades afetivas fundamentais. Para com-preender tais traços, é preciso ter em vista agora o aprofundamento radical da noção de tédio que ocorre por meio da noção de “tédio profundo”.

Na primeira figura do tédio, como vimos, o que estava em questão era o movimento de se ver entediado por algo. Aqui, algo entediante provocava de fora o aparecimento do tédio no existente humano. Era sempre algo que aparecia como entediante, assim como na descrição em Ser e tempo da dis-tinção entre temor e angústia era necessariamente algo que se mostrava no temor como temível. O vazio próprio ao tédio, com isto, permanecia fora do ser-aí humano e era interpretado de maneira consequente como um vazio contingente, provocado pela situação do tédio. No ser entediado por, eu não sou de modo algum entediante, ou seja, eu não me encontro de modo algum diante de um vazio que me constitui, mas é o algo entediante que me esvazia, que interrompe o movimento do preenchimento dos momentos com ações e quebra o ritmo das ações cotidianas. Em relação a essa primeira figura do tédio, a segunda figura traz consigo um claro aprofundamento, na medida em que aponta para um vazio que não vem de uma coisa ou de um estado de coisas entediante, mas para um vazio que habita em nós e que desencadeia de maneira antecipada o surgimento da festa como estrutura de passatempo. Ainda resta, contudo, um último elemento da superficialidade no entediar-se junto a, uma vez que esse vazio é experimentado de maneira ôntica como insipidez e desânimo e que a antecipação da festa como estrutura de passa-tempo apenas visa a evitar que o tédio superficial efetivamente apareça em casa, quando o ser-aí se vê entregue a si mesmo. Dito de maneira ainda mais clara, ainda há nessa segunda figura algo que me deixa entediado: esse algo sou neste caso eu mesmo, mas ainda temos algo como algo. Eu mesmo sou aqui para mim entediante. Tudo se altera, então, em meio à experiência do

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tédio profundo, na medida em que, exatamente como a angústia, no tédio profundo não é mais nada que se mostra como entediante: nem algo que se encontra fora de mim e que interrompe o movimento de meu preenchimento da série infinita de agoras com ações, nem eu mesmo em meu vazio onti-camente determinado, no fato de ter me tornado desinteressante para mim mesmo. Tal relação com a angústia está expressa agora na própria formula-ção utilizada para designar o tédio profundo. O que está em questão não é nem um ser entediado por, nem um entediar-se junto a, mas um dar-se do tédio a alguém (es ist einem langweilig).

“Dá-se tédio a alguém. Não é por este ou aquele ente, que nós somos ente-diados. Não somos nós que nos entediamos sempre a cada vez ocasional-mente junto a esta determinada situação precisamente – mas: dá-se tédio para alguém. Não este ou aquele ente em uma proximidade palpável desta determinada situação se nos recusa, mas todo ente, que nos abarca pre-cisamente nesta situação, se retrai em uma indiferença. Mas não apenas todo ente da situação em questão, na qual nós por acaso estamos, lá onde este ‘dá-se tédio a alguém’ emerge, mas o ‘dá-se tédio a alguém’ explode precisamente a situação e nos coloca na amplitude plena daquilo que se manifesta sempre a cada vez, se manifestou um dia e poderá um dia se manifestar para o ser-aí em questão enquanto tal na totalidade. Este ente na totalidade se recusa, e isto uma vez mais não apenas em um aspecto determinado, em consideração a algo determinado, com vistas a algo de-terminado, que nós gostaríamos, por exemplo, de fazer com o ente, mas este ente na totalidade na citada amplitude, segundo todos os aspectos e com toda e qualquer intenção e para toda e qualquer consideração. É deste modo na totalidade que o ente se torna indiferente”20.

A passagem é paradigmática em muitos aspectos. Em primeiro lugar, ela acen-tua um elemento central em todas as tonalidades afetivas fundamentais em geral. Além de elas não provirem de fora e, com isto, poderem surgir em qualquer situação, em qualquer contexto, independentemente do que esteja a cada vez por acaso acontecendo, elas não se restringem nem a um campo ôntico específico nem possuem um vínculo com uma conjuntura regional determinada. Seguindo a indicação fornecida pela própria formulação, há

20 Martin Heidegger, Os problemas fundamentais da metafísica (mundo – finitude – solidão), OC29/30, pp. 214-5.

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aqui uma gratuidade que vem expressa por meio da partícula “se”, partícula essa que tem como correlato em alemão o pronome pessoal neutro “es”. Dá-

-se tédio a alguém: “Não é por este ou aquele ente, que nós somos entediados. Não somos nós que nos entediamos sempre a cada vez ocasionalmente junto a esta determinada situação precisamente – mas: dá-se tédio a alguém”. Há aqui uma absoluta ausência de vínculo com coisas ou objetos determinados que, vindos de fora ou de dentro, pudessem provocar em nós o surgimento do tédio. Na terceira figura do tédio, então, podemos dizer de maneira análoga à formulação da angústia em Ser e tempo, que nada nos entedia. Uma vez que nada desponta em meio à totalidade conformativa, produzindo em nós o sur-gimento do tédio, o tédio profundo também traz consigo a suspensão de todo o poder normativo e normalizante do mundo sobre nós. No instante em que o tédio profundo se dá, “não este ou aquele ente em uma proximidade palpá-vel desta determinada situação se nos recusa, mas todo ente, que nos abarca precisamente nesta situação, se retrai em uma indiferença. Mas não apenas todo ente da situação em questão, na qual nós por acaso estamos, lá onde este ‘dá-se tédio a alguém’ emerge, mas o ‘dá-se tédio a alguém’ explode pre-cisamente a situação e nos coloca na amplitude plena daquilo que se manifesta sempre a cada vez, se manifestou um dia e poderá um dia se manifestar para o ser-aí em questão enquanto tal na totalidade”. Assim como a angústia, por-tanto, o tédio profundo não provém de nenhum ente ou conjunto de entes, de nenhuma coisa ou estado de coisas, na mesma medida em que tampouco diz respeito à suspensão de um campo de sentido regional, a um esvaziamen-to de um certo campo de ação, com suas características situacionais próprias. O que está em jogo tanto lá quanto aqui é a experiência da retenção da aber-tura do ente na totalidade. Ao acentuar a máxima amplitude própria ao tédio profundo, o que Heidegger procura evidenciar é antes de tudo o caráter de abertura total que é próprio de tal figura do tédio, assim como a redução do ser-aí ao puro poder-ser. De maneira repentina e abrupta, sem qualquer cone-xão com um contexto específico, o tédio se abate sobre a existência, manten-do-a retida de um modo específico no tempo hesitante e confrontando-a com a tranquilidade vazia na totalidade. Neste ponto, a terceira figura se aproxima das outras duas. Tal retenção, porém, no caso tanto do tempo hesitante quan-to da tranquilidade vazia ganham contornos diversos. O tédio profundo não ralenta apenas o tempo, deixando-o por assim dizer menos líquido e mais pastoso. Ele não se caracteriza nem pela consulta incessante ao relógio nem pela mobilização ultra desenvolvida das estruturas de passatempo, que pro-duzem uma aceleração correlata do movimento hesitante do tempo, mas sim

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pela supressão de toda e qualquer possibilidade de temporalização. Tal como se encontra formulado no texto da preleção, quando se dá tédio a alguém, esse dar-se mesmo vem à tona como um “ser banido do horizonte do tempo enquanto tal (...) na totalidade”21. A esse banimento do horizonte do tempo na totalidade corresponde uma tranquilidade vazia, que não é caracterizada por uma experiência de insipidez e enfado, mas antes por uma radical nadidade estrutural, por uma espécie de morte em vida, por uma redução da existência à sua nulidade originária, ao fato de que se precisa ser sempre as possibilida-des de ser que se é, sendo tais possibilidades no tempo.

A formulação de que o tédio profundo promove um “banimento do ho-rizonte do tempo na totalidade” traz consigo uma série de elementos que provocam a princípio uma certa estranheza. Como é possível ser banido do tempo na totalidade? Em que medida tal banimento ocorre por meio do tédio profundo? Há de um lado o tempo como um âmbito dotado de subsistência em si e de outro o ser-aí humano como um ente dentro de tal âmbito que, por meio do tédio profundo, seria expelido para outro lugar? A resposta a essas perguntas depende antes de tudo de uma lembrança do modo como a feno-menologia em geral e como a fenomenologia hermenêutica heideggeriana em particular pensam o tempo. Seguindo um preceito estrutural da fenomeno-logia, não se pode simplesmente pressupor que há o tempo e defini-lo em seguida por suas propriedades específicas. Ao contrário, é preciso sempre se colocar no lugar mesmo em que, sem procurar determinar o que é o tempo, o tempo por ele mesmo se dá. Dizer isso, no caso de Heidegger, significa acom-panhar o campo de dação da dinâmica de temporalização da temporalidade. Não há o tempo como algo ou como um âmbito por si subsistente, assim como não há o tempo como mero traço estrutural de certos eventos: o que há é apenas o acontecimento temporalizante. Tal acontecimento assenta-se sobre uma intuição primordial heideggeriana, que ganha voz em sua máxima amplitude na segunda parte de Ser e tempo. Em verdade, só o ente finito, só o ente marcado por uma nadidade ontológica originária, em suma, só um ente dotado de caráter de poder-ser precisa realizar sempre a cada vez as suas pos-sibilidades de ser no tempo finito de ser22. Só o ser-aí humano, enquanto ente

21 Idem, p. 222.

22 Deus não tem como se mostrar como ente temporal, porque todas as suas possibilidades de ser já sempre se realizaram no instante originário do seu ser: como tudo o que é possível se mostra para ele como necessário, ele já sempre foi tudo o que podia ser na eternidade de seu ser. As coisas tampouco podem ser temporais, porque, enquanto entes dotados de propriedades por si subsis-tentes, elas não realizam suas possibilidades de ser no tempo, mas apenas sofrem derivadamente

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finito, precisa ser no tempo para ser. Esse tempo, contudo, não é um tempo dado a priori, mas é antes aberto pelo acontecimento mesmo da existência. De acordo com a estrutura formal do cuidado expressa no parágrafo 41 de Ser e tempo, isto é, de acordo com a “antecipação de si já sendo em um mundo junto a entes intramundanos que vêm ao encontro”23, é o próprio modo de ser do existir enquanto cuidado que abre o espaço para que o tempo se faça tempo. Por meio da antecipação de si constitui-se a ekstase porvir; por meio da estrutura do já sendo em um mundo emerge a ekstase ter sido; e, por fim, por meio do fato de a antecipação de si e de o já sendo em um mundo se articularem sempre a cada vez com os entes intramundanos que vêm ao encontro vem à tona a ekstase instante. Toda e qualquer possibilidade de se falar de tempo já sempre se enraíza nas estruturas intencionais do cuidado, no fato de a existência ser constitutivamente temporalizante. Cotidianamente, na dimensão daquilo que Heidegger designa com a expressão “de saída e na maioria das vezes”, o ser-aí humano existe em meio à dinâmica de tempo-ralização própria à facticidade sedimentada, ao mundo circundante em sua mediania própria. Seus tempos são sempre a cada vez os tempos do mundo, os tempos da indecisão com suas “tarefas, regras, critérios de medida, (com) a urgência e a amplitude do ser-no-mundo ocupado e preocupado”24; tempos esses que já sempre se encontram a cada vez estabelecidos25. O tédio profun-do abate-se, com isto, diretamente sobre os tempos públicos, sobre os ritmos e os prazos cotidianos, de tal modo que inviabiliza por completo sua simples manutenção. Isto se dá, por fim, a partir da transformação da inquietude vazia em confrontação radical com a nadidade estrutural do existir humano.

Na primeira figura do tédio, o ser-aí se vê marcado por uma tranquilidade vazia, exatamente na medida em que a presença de uma coisa ou de um esta-do de coisas entediante interrompe o prosseguimento automático do preen-chimento de momentos com ações. O vazio aqui não diz respeito ao ser-aí,

o efeito corrosivo do tempo sobre tais propriedades. Mesmo os animais, por fim, não precisam realizar suas possibilidades de ser no tempo, porque seu vínculo originário com o círculo envoltó-rio determina de antemão tudo o que é e pode ser, de tal forma que suas possibilidades de ser já se acham em potência condicionadas de antemão por tal círculo.

23 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo, § 41, p. 192.

24 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo, §54, p. 268.

25 David Farell Krell descreve esse movimento em relação direta com a preleção Os conceitos fundamentais da metafísica (mundo – finitude – solidão) em um livro hoje clássico de 1992 chama-do Daimon Life: Heidegger and Life-Philosophy; cf. especialmente na parte 1, que empreende uma leitura fina de Ser e tempo, pp. 33-63.

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mas à paisagem insípida da localidade na qual se encontra a estação de trem, ao fato de não se ter trazido nenhum livro ou de não se ter à mão nada que pudesse funcionar como passatempo etc. Na segunda figura, essa situação experimenta uma modulação, uma vez que o vazio passa a estar no próprio ser-aí e a funcionar ele mesmo como mobilizador estrutural do passatempo como um todo que é a festa. O vazio aqui é vazio do instante dilatado, do instante que se estende por tanto tempo quanto durar a festa e no qual nada acontece com o si próprio do ser-aí. Por isto, a tranquilidade vazia é aqui mais profunda, porquanto ela se confunde com o si próprio, que se mantém vazio junto à festa. Todavia, é somente na terceira figura do tédio, ou seja, somente no “dá-se tédio a alguém”, que a tranquilidade vazia abandona suas confor-mações exógenas e passa a ser pensada radicalmente em sintonia com a na-didade estrutural do ser-aí humano. A tranquilidade vazia não se funda mais aqui em um esvaziamento puro e simples do si mesmo, mas se estende agora de imediato para a raiz de todo e qualquer esvaziamento, para o nada que ha-bita em nós. Exatamente como no caso da angústia, o tédio profundo também se caracteriza por uma nadificação de todos os sentidos pretensamente positi-vos que sustentam tacitamente as ações cotidianas, de tal modo que, quando ele se abate sobre a existência, ele também torna o mundo insignificante, uma vez que nos lança em uma experiência de indiferença fenomenológica radical. A tal experiência, por outro lado, corresponde uma confrontação de si por parte do ser-aí humano com a sua nadidade estrutural, com o seu caráter de poder-ser. A diferença, então, se revela justamente no modo como se dá essa confrontação. Enquanto na angústia tudo se revela repentinamente como pos-sível, porque o ser-aí descobre a sua liberdade ontológica radical, o fato de ele não se achar originariamente impelido a nada, no tédio profundo essa relação do ser-aí com a sua nadidade ontológica originária concerne mais diretamen-te à temporalidade, ao nexo entre ser e tempo essencial para a existência. Em outras palavras, enquanto na angústia tudo se mostra como possível, no tédio profundo tudo se esgota na recusa do ente na totalidade que ocorre por meio da inviabilização do tempo existencial em sua dimensão cotidiana. Aqui, nada é possível, porque a existência perde toda possibilidade de temporalizar suas possibilidades de ser no espaço a partir de uma mera operacionaliza-ção dos sentidos disponíveis no mundo e de uma retenção da existência no campo daquilo que o mundo de antemão já definiu como possível. O que emerge a partir daqui no texto de Os conceitos fundamentais da metafísica, en-tão, é um resgate aprofundado do instante como unidade das ekstases e como tempo da rearticulação da própria facticidade. Temos aqui uma vez mais a

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tentativa heideggeriana de pensar a singularização como elemento nodal nas crises mesmas que tornam possíveis as rearticulações da historicidade para além do aprisionamento na hermenêutica cotidiana. Ao invés de reconstruir esse elemento da singularização, porém, o que vou fazer agora ao final do presente texto é antes acentuar um vínculo decisivo entre o tédio profundo e uma antecipação de alguns elementos presentes na descrição heideggeriana da metafísica da técnica no período posterior à viragem, uma vez que o cerne do projeto de Heidegger em sua preleção Os conceitos fundamentais da metafí-sica (mundo – finitude – solidão) aponta para o esforço por encontrar no tédio profundo um nexo com a medida histórica do nosso tempo.

4. Os impasses da hermenêutica da facticidade e a impossibilidade de alcançar a medida epocal de nosso tempo pelo acontecimento fundamental da singularização

A relação entre tédio e técnica pode ser encontrada textualmente na obra tardia de Heidegger. Nos Seminários de Zollikon, por exemplo, o próprio Hei-degger menciona o vínculo entre tédio e técnica26. Essa relação vai a meu ver ao encontro do que sempre me pareceu decisivo na afirmação de que o tédio seria uma tonalidade afetiva fundamental de nosso filosofar (ser-aí) atual: o fato de a tentativa de Heidegger pensar tal vínculo entre tédio e tempo a partir de uma menção ao esforço da filosofia da cultura da década de 1920 na Alemanha por alcançar um novo papel histórico para o homem, o que, segundo o texto dos Conceitos fundamentais da metafísica, constituiria um ab-surdo completo, uma vez que o ser-aí humano é o ente histórico por excelên-cia, se mostra como extremamente frágil. Essa tentativa revela-se como antes incidental, sem que consiga tocar no cerne do problema. O que Heidegger procura por meio do tédio profundo não é descrever de maneira indicativo formal uma possibilidade sempre vigente na dinâmica existencial mesma do ser-aí humano de reconquistar sua temporalidade originária e, por meio daí, mobilizar historicamente o mundo para além da estagnação hermenêutica à qual o mundo mesmo se vê condenado pela mediania da cotidianidade. Não se trata aqui de um mero decalque do caminho expositivo de Ser e tempo a partir da mudança apenas da tonalidade afetiva fundamental da angústia para o tédio profundo. Ao contrário, o que se busca nos Conceitos é antes escapar

26 CF. HEIDEGGER, Martin. Zollikoner Seminare, OC 89, p. 222.

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de tal descrição ontológica por meio de um aceno primordial para um tipo de vazio, de ausência de sentido, de alienação da determinação originária do ser-aí enquanto poder-ser, que não dizem respeito mais apenas à coti-dianidade em sua gramática, em sua sintaxe e em sua semântica impessoais, mas que concernem também ao campo histórico contemporâneo, ao nosso mundo fático em seu nexo estrutural marcado por uma medida epocal deter-minada. A questão, contudo, é que, uma vez que só possui neste momento a noção de mundo como totalidade de significados estruturada por sentido, ou seja, na medida em que ainda não se movimenta na lógica do acontecimento apropriador (Ereignis) e em sintonia com a expressão central apresentada em sua conferência decisiva de 1930 Da essência da verdade, a expressão “me-dida vinculadora” (bindende Richte)27, Heidegger não tem como pensar em 1929/30 a transformação radical do campo histórico como determinada por um abalo no próprio fundamento de tal campo e como enraizar tal abalo em um acontecimento capaz precisamente de abrir o espaço para o dar-se de uma medida histórica do próprio ser. Em outras palavras, ele não tem como pensar o fundamento histórico do vazio que ganha corpo no tédio profundo em seu vínculo com o tempo do mundo e, com isto, se vê obrigado a repe-tir ao final da primeira parte sobre o tédio a lógica inerente a Ser e tempo, qual seja, a lógica que impõe a tentativa de pensar a crise existencial oriunda das tonalidades afetivas fundamentais, o dito acontecimento fundamental da existência (Grundgeschehen), como determinante dos processos de reinterpre-tação da facticidade. E aqui o ponto nevrálgico não apenas do fracasso de Ser e tempo, mas do fracasso da filosofia de Heidegger na década de 1920 ganha corpo – o ponto nevrálgico do que obriga Heidegger à viragem de seu pensa-mento. Como se dá, contudo, a tentativa acima menciona e até que ponto ela realmente se depara com um beco sem saída?

Em primeiro lugar, o que está em jogo agora não é mais levar a termo o projeto de uma hermenêutica da facticidade, ou seja, pensar o movimento de autointerpretação da facticidade por meio das crises do ente nodal, o ser-aí humano. Encontrar o nexo entre tempo e historicidade exige agora mais do que, por meio do colapso da existência, encontrar um caminho para resguar-dar, como se acha formulado no parágrafo 40 de Ser e tempo, “a força das palavras mais elementares, nas quais se exprime o ser-aí”28. É preciso antes descrever a medida epocal, que unifica todos os fenômenos de um mundo e

27 HEIDEGGER, Martin. Da essência da verdade, em: Wegmarken, OC9, pp. 185-6.

28 Martin Heidegger, Ser e tempo, §44, p. 220.

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que torna possível justamente falar de um mundo. O que está em questão na preleção Os conceitos fundamentais da metafísica (mundo – finitude – solidão) é mais do que clamar ao ser-aí humano a necessidade de recobrar a essência temporal do cuidado, mobilizando, com isto, o próprio campo histórico com-preendido como totalidade de fenômenos, significados, palavras. Heidegger precisa agora alcançar por meio de uma tonalidade afetiva fundamental o próprio coração do vazio que habita a contemporaneidade, o cerne de nossa perda de conexão com o acontecimento da verdade do ser, ou seja, com a his-toricidade da verdade. Não se trata mais aqui, portanto, em segundo lugar, de superar a lógica dos momentos, com a fugacidade característica de tal lógica, em direção ao instante como unidade total das ekstases, mas de pensar uma determinação histórica oriunda do acontecimento pontual de uma época. Tal determinação não tem como ser descrita a partir das crises existenciais do ser-aí humano, mas precisa se enraizar na própria negatividade dos funda-mentos históricos, na impossibilidade de se falar de fundamentos últimos, de uma simples equiparação entre ser e fundamento. Para chegar a ela, portanto, fez-se necessário, para Heidegger, abandonar a ideia de que o ser-aí seria ele mesmo o veículo da introdução da negatividade no mundo e passar a tomar o próprio mundo em sua errância, em sua nadidade constitutiva. Não é o ser-aí que se revela como a clareira do ser, mas é a clareira que aponta para o aí no qual insistentemente habita o ser-aí. Ser na clareira implica agora insistir no acontecimento histórico não fundado na temporalidade do existir humano, mas na própria temporialidade do ser. Não há, em suma, como pensar o tédio como tonalidade afetiva fundamental de nosso ser-aí atual, assim como não há como escapar de uma certa monotonia ontológica da tradição senão enfrentando a força de um determinado modo inicial dessa tradição, sem uma confrontação com o caráter mesmo de seu início. Pois é no início que se encontra prelineada a possibilidade do fim.

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* Universidade Federal de Uberlândia. Contato: [email protected]** Instituto Federal do Triângulo Mineiro. Contato: [email protected]

Álvaro Vieira Pinto on the concept of technology: an introductory discussion

Álvaro Vieira Pinto sobre o conceito de tecnologia:

uma discussão introdutória

Abstract

This paper aims to discuss the concept of technology as provided by the Brazilian philosopher Álvaro Vieira Pinto. First, the philosopher’s life and work are presented, his book “O conceito de tecnologia” [The concept of technology] and his methodological foundations are briefly examined and, finally, we discuss his conceptualization of technology. From the four meanings of the term unravelled by the author, we highlight technology as the “logos of technique”, as the philosopher proposes it as a unitary field of study on this matter. We conclude pointing the richness of his reflections to the liberation of underdeveloped countries.

Keywords: Álvaro Vieira Pinto; Philosophy of technology; Decoloniality.

Recebido em: 23/05/2020 - Aceito em: 20/12/2020

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Resumo

Esse artigo tem o objetivo de discutir o conceito de tecnologia provido pelo filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto. Primeiramente, vida e obra do filósofo são apresentadas, seu livro “O conceito de tecnologia” e seus fundamentos metodológicos são brevemente examinados e, finalmente, discute-se sua conceituação de tecnologia. Dos quatros significados do termo desvelados pelo autor, destaca-se tecnologia como sendo o “logos da técnica”, já que é ela proposta como um campo unitário de estudo do tema em questão. Na conclusão, aponta-se a riqueza de suas reflexões para a libertação dos países subdesenvolvidos.

Palavras-chave: Álvaro Vieira Pinto; Filosofia da tecnologia; Decolonialidade.

Introduction

This paper aims to discuss the concept of technology as provided by the Brazilian philosopher Álvaro Vieira Pinto. After the posthumous publication of his book “O conceito de tecnologia” [The concept of technology] in 2005 and “A sociologia dos países subdesenvolvidos” [The sociology of the under-developed countries] in 2008, the academic debate on his ideas has increased. Academics underline how his reflections can contribute in different fields, such as Education and Technology1.

Born in the city of Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, in 1909, Vieira Pinto’s primary academic background was in Medical Studies. Following his experiences as a scientific researcher, he later attended Physics and Mathe-matics courses while also studying Philosophy. In the 40’s he was nominated by the writer Alceu Amoroso Lima to be assistant professor at the Faculdade Nacional de Filosofia, which was later incorporated into the Universidade Federal do Rio de Janeiro. In 1951, after a year of studies in Sorbonne, France, Vieira Pinto became professor of History of Philosophy with a thesis entitled

1 Gonzatto, R. & Merkle, L. Vida e obra de Álvaro Vieira Pinto: um levantamento biobibliográfico, 2016; Grohman, R. Humanist and Materialist Perspectives on Communication: The Work of Álvaro Vieira Pinto, 2016

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110 Breno Augusto da Costa e Adriano Eurípedes Medeiros Martins

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“Ensaio Sobre a Dinâmica na Cosmologia de Platão”2 [Essay on Dynamics in Plato’s Cosmology]. At that time, considering his published work, consisted mainly of papers on science communication and ancient Greek philosophy, he was considered a great Hellenist. However, in 1955 he received an in-vitation and became one of the founding fathers of the Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) [Superior Institute of Brazilian Studies], which changed drastically his writing and thinking profile3.

ISEB held the responsibility of using the social sciences categories and concepts to provide an authentic comprehension of the Brazilian reality and to promote the ideological foundation for the process of national develop-ment. As the head of the philosophy department, Vieira Pinto soon acquired prominence, lecturing at the inaugural conference of the Institute, entitled

“Ideologia e desenvolvimento nacional”4 [Ideology and National Develop-ment]. In 1960 he published “Consciência e realidade nacional”5 [Cons-ciousness and National Reality], one of his most quoted works. He also published other works approaching Brazilian development-related themes6, but right after the 1964 Brazilian coup d’état, he was obliged to leave Brazil, living first in Yugoslavia in exile, then, invited by Paulo Freire, in Chile. There he worked in educational matters and studied Demography, returning to Brazil in 1968. From this moment until his death he kept recluse in his apartment, away from public activities, but working on the translation of books by authors such as Piaget, Chomsky, Toynbee and Bertalanffy among others, using pseudonyms however7.

From this period until his death in 1987, he published three more impor-tant works: the 1969 “Ciência e Existência” [Science and existence], the 1973

“El Pensamiento Crítico en Demografia” [The critical thinking in demogra-phy] and the 1982 “Sete Lições Sobre a Educação de Adultos” [Seven lessons on adult education]. Thus, Vieira Pinto was regarded as a thinker especially

2 Vieira Pinto, A. 1949.

3 Côrtes, N. Esperança e democracia: as ideias de Álvaro Vieira Pinto, 2003; Vieira Pinto, A. Sete lições sobre a educação de adultos, 1982.

4 Vieira Pinto, A. 1956.

5 Vieira Pinto, A. 1960.

6 Vieira Pinto, A. Por que os ricos não fazem greve?, 1962a; Vieira Pinto, A. A questão da universi-dade, 1962b; Vieira Pinto A. Indicações metodológicas para a definição do subdesenvolvimento, 1963.

7 Côrtes, N. op. cit.; Gonzatto, R. & Merkle, L. op. cit.

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devoted to nationalism, national development, critical thinking, logic, onto-logy, human work, demography, scientific methodology, researchers’ forma-tion and popular education.

But at the same time the author worked on six other books that we can determine: “A Crítica da Existência” [The critique of existence], a book discus-sing existentialism; a book on “Filosofia Primeira” [First philosophy], probably discussing the Pre-Socratic Philosophy; “A Educação para um País Oprimido” [The education to an oppressed country]; and “Considerações Éticas para um Povo Oprimido” [Ethical considerations to an oppressed nation], which re-flects upon a concrete ethic to the Brazilian context8. The whereabouts of these four books are still unknown, but, as we stated previously, “O conceito de tecnologia” in 2005 and “A sociologia dos países subdesenvolvidos”, in 2008, were published, thus contributing to a re-evaluation of his work and thought.

Vieira Pinto suffered in his existence all the misfortunes a thinker devoted to national liberation is prone to face. As many Latin-American progressive thinkers at that time, his academic career, personal life and legacy were pro-foundly coined by the right-wing dictatorship. Hereafter we will present his reflections on technology and the bases of his discourse.

Álvaro Vieira Pinto’s discussion on technology

The book “O conceito de tecnologia”, our main source to the discussion of technology according to Álvaro Vieira Pinto, was probably written in the late 1960s or early 1970s, considering the author’s statement that he finished the last revision in April 5th, 19739. The two-volume book was divided in four parts: in the first, he proposes an analysis of some fundamental notions such as “technological age”, the human faculty of project, the concept of produc-tion, the relation between machine and humans, ancient and contemporary conceptions of technique, technique and history, the author’s comprehension of technique, and the various meanings of technology. The second part discus-ses the technical rationality, the use of technology in social domination, tech-nology and work, ethics and work, technostructure, the authentic character

8 Vieira Pinto, A. Sete lições sobre a educação de adultos, 1982.

9 Vieira Pinto, A. O conceito de tecnologia, vol. II, p. 794

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of the technical rationality, the dialectical categories of “ter” and “haver”10, the hominization process, the “Herod Complex”11 and an examination of the con-cept of “restart of history”. The third discusses themes proposed by cyberneti-cs, such as the historical and dialectical character of cybernetics, cybernetics and human beings, heuristics, different kinds of cybernetic systems, analogy, information, the question of truth, modelling, black box theory, logic and information, gnosiology, the social character of cybernetics, communication and intersubjectivity, self-regulation, the intelligence of human beings and

“intelligence” of machines, second-degree feedback, learning and the notion of “destiny of men”. The fourth and final part of the book discusses techno-logy and problems of existence, reflecting upon the ideology of cybernetics, cybernetics as a new version of mathesis universalis, the social bases of the future of technology, the technical progress and moral problems, the naivety of the notion of a “war between human nature and technology”, the techno-

-catastrophism and technology and social classes. Álvaro Vieira Pinto can be considered a critical thinker who uses a non-

-idealistic dialectical logic. To comprehend what this characterization means for his methodological perspective we should consider some of his previous works. According to his explanations, the consciousness of the national rea-lity can be schematized in two poles which shape every representation; the naïve consciousness, which can be defined as the one unaware of its fundamen-tals; and the critical consciousness, that can be defined as “the one which has clear conscience of the factors and conditions that determines it12”13, being also characterized by a systematic thinking guided by the categories of objec-tivity, historicity, totality, rationality, activity, liberty and nationality14.

10 We will not translate “ter” and “haver” to English for both terms mean “there to be”. In Por-tuguese, they are commonly used as synonyms, but Vieira Pinto gives a philosophical distinction based on the fact that, to animals, nature tem (“has”, “provides”) all the goods they need to survive, it is already there. To humans, the world must haver (“come to exist”) the goods they need, but they only haverá (future form of haver) if humans produce them.

11 On the author’s reflection, the Herod Complex is defined by “the dread of new-borns, of infancy, from where the increasingly bigger and more politicized young crowds of tomorrow will come demanding that the adult generations explain the way they organized society for the young.” (Vieira Pinto, 2005, vol. I, p. 504).

12 This and all the translations from Portuguese are provided by the authors, except where noted otherwise.

13 Vieira Pinto, A. Consciência e realidade nacional, vol. I, p. 83.

14 Idem, vol. II.

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One may identify some conceptual proximity with Paulo Freire’s thoughts, as also when regarding the tittles of the previously mentioned manuscripts on ethics and education; this proximity occurs because of the influence exer-cised by Vieira Pinto on the Brazilian educator who calls him “Brazilian mas-ter”15. On the other hand, the non-idealistic dialectic in his conception can by understood as the science of the movement of reality16.

Some authors considered Vieira Pinto a Marxist17, others portrayed him as a Hegelian18, but the most accurate analysis, in our opinion, was made by Marcos Freitas, Norma Côrtes and Ernesto Faveri in different works19, who showed that Vieira Pinto sought the Marxist thought, but the phenomenolo-gical and existentialist as well. Norma Côrtes’20 production should be regar-ded, as she provided a profound hermeneutic analysis of what can be con-sidered his magnum opus, “Consciência e realidade Nacional”. But, above all, we should consider Marxism, Existentialism, Phenomenology or any other philosophical school as influences to the author who created his own way of thinking, which is, and we are currently investigating, extremely coherent with the most recent productions on the decolonial thought21. We defend that Álvaro Vieira Pinto should be regarded as a pioneer of the decolonial mo-vement because his reflections illuminate and predict several of the current modernity-coloniality-decoloniality discussion topics22.

15 Faveri, J. Álvaro Vieira Pinto: Contribuições à educação libertadora de Paulo Freire, 2014; Freire, P. Pedagogia do oprimido, 2016, p. 101.

16 Vieira Pinto, A. Ciência e existência, 1969.

17 Paim, A. História das ideias filosóficas no Brasil, vol. I, 2007.

18 Domingues, I. História da filosofia no Brasil: legados e perspectivas- ensaios metafilosóficos, 2017.

19 Freitas, M. Álvaro Vieira Pinto: a personagem história e sua trama, 1998; Côrtes, N. op. cit.; Faveri, J. op. cit.

20 Côrtes, N. Consciência e Realidade Nacional: Notas sobre a ontologia da nacionalidade de Álvaro Viei-ra Pinto (1909–1987), 1999; Côrtes, N. Esperança e democracia: as ideias de Álvaro Vieira Pinto, 2003.

21 Ballestrin, L., América Latina e o giro decolonial, 2013; Bernardino-Costa, J., Maldonado-Torres, N. & Grosfoguel, R., Decolonialidade e pensamento afrofiaspórico, 2018; Martins, P., Teoria crítica da colonialidade, 2019.

22 Costa, B. & Martins, A. Álvaro Vieira Pinto e o pensamento decolonial, 2019a; COSTA, B. & MARTINS, A. Álvaro Vieira Pinto e o Pensamento Decolonial: a questão da colonialidade do saber, 2018.

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As we mentioned earlier, “O conceito de tecnologia” covers a vast number of themes related to technology and we will not dissect it in its minimal de-tails. Instead, we will discuss the author’s concept of technology itself, expo-sed in the first part of the book, in chapter IV.

As Álvaro Vieira Pinto elucidates, the term “technology” possesses four main meanings: according to the first meaning, technology is understood as the logos of technique, the science or theory of technique, comprehending the notion of the arts, the abilities to do something, the professions and, ge-nerally speaking, the way of producing. This is the primordial meaning of technology, which is going to be emphasized in our paper and unfolds the others. In the second meaning, the most commonly used, according to the author, technology is taken as an equivalent to technique and can be used to express the notion of “know how”. The philosopher points that the tangle of technique and technology can foment dangerous mistakes in the examination of sociological and philosophical concerns.

The third meaning expresses technology as the ensemble of all the techni-ques available by determined society in any phase of its historical development. This meaning is important because it is used when referring to the degree of advance of productive forces in a given society. It keeps close ties with the fourth meaning: technology as the ideologization of technique, expressing the ideology of technique, which receives great importance in the philosopher’s reflections. Vieira Pinto23 was aware of the process by which the resources flow from the periphery of the world, constituted by underdeveloped nations, to the core of the so-called WEIRD countries, (i.e. Western, Educated, Industria-lized, Rich, and Democratic), enriching the latter at the expense of the former. The ideologization of technique plays an important role in the maintenance of this process, as it offers the subjective, and consequently social, conditions for it. The 1956 “Ideologia e desenvolvimento nacional” offers a deeper unders-tanding of Vieira Pinto’s conceptualization of ideology.

Although in Vieira Pinto’s analysis the second meaning is the most popu-lar, in our perception, after almost five decades, a variant of the third one is the most used, at least in Brazil. In many cases when one uses the term “tech-nology”, they are referring to a technological device, a cybernetic and highly developed product of science. This is the social foundation of the idea, much criticized by Vieira Pinto, that we are living in a “technological era”.

23 Vieira Pinto, A. O conceito de tecnologia, 2005.

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To understand the critique provided by Vieira Pinto, we should first explore his concept of technique. The author proposes that the correct question over technique should be stated as following: What role does it play in the process of material production of humans’ existence by themselves?24? After an etymological study of the term, reaching for its Greek origin, the author clarifies that technique was first used as an adjective, only later being taken as a noun. As an adjective, te-chnique is applied to the human act of any sort of production, so it is the human activity that should be considered technical or not.

According to the Brazilian philosopher, the essence of technique “is the me-diation in obtaining a conscientious human finality”25, being it done with the aid of tools or not. Later on, the author explains that technique firstly defines the quality of the human action of producing. In a second moment of the cognitive process, the quality of the act is transferred to the agent, to the technician, the human being who does the technical acts, that is, the productive act of a certain human finality. Lastly, after abstracted, the term is turned into a noun, and that allows for the possibility of hypostatizing the technique.

The hypostatization of technique is often criticized by Vieira Pinto26, who points, for example, Martin Heidegger’s reflections on this kind of attitude. By raising te-chnique to the quality of being, of thing per se, it gains the ability to do things, and what is originally a qualifier receives qualifications and properties unrelated to its quality. Only human acts can be good or evil, states the author; the techniques and technology can be deemed good or bad only in genere suo, that is, if the mentioned act as it is achieves or not the finality that it is destined to. The author mentions the atomic bomb dropped over Hiroshima as an example; there is no sense in accusing the technique of perversity, instead we should hold humans responsible for concei-ving and executing such hideous crime27. The author conceives that:

in a manoeuvre of historic self-disclaiming, which we judge as a moral duty of critical consciousness to denounce, the holders of social power transfer to an abstraction [technique], an ideal concept, the objective responsibilities that in fact fit individuals perfectly concrete and identifiable28.

24 Ibidem, vol. I, p. 155.

25 Ibidem, vol. I, p. 175.

26 Idem.

27 Ibidem, vol. I, p.178.

28 Ibidem, vol. I, p. 180.

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Technique, explains Álvaro Vieira Pinto, is an “existencial” [existential]. That means it is a distinctive trace of human nature, always having a social charac-ter, referring to the humans’ attitude and conditioned by work29. Although only recently we have been able to produce intellectual reflections systematic enough to create a new field, humans always exercised technical actions; therefore humans have always lived in a “technological era”. The impres-sive technical production of today is based on what once was new, but is now obsolete and outdated, much like the current production is bound to be when compared to the new and more impressive creations of tomorrow. In summary, this is the main core of Vieira Pinto’s critique of the notion of “tech-nological era”. In “O conceito de tecnologia”, he also explores the ideological framework of said notion30.

Vieira Pinto’s conception of technique is grounded in the concrete human existence, instead being a free-floating construction. This concept allows us a richer understanding of its presence in different human actions and fields of study. As we elaborated this brief exposition of technique carried out by the Brazilian philosopher, it is possible now to thematize his reflections on the concept of technology, focusing the first meaning we highlighted and its contributions to the humanization of humanity and development of science.

Technology as the logos of technique

Vieira Pinto conceives that from technique, as the qualification of the pro-ductive act, arise theoretical considerations that justify the development of a knowledge field which takes it as object and reflects on it and its condition in the objective process. From this conception the author points the legitimacy of technology as science of technique, and as so, it can be the subject of an epistemological approach. The author points to the dispersion of studies on technique in different works of sociology, philosophy or other specific dis-ciplines, highlighting the importance of unification of this field as a defined object of philosophical research31.

29 Ibidem, vol. I, p. 239.

30 Ibidem, vol. I, p. 41, 290.

31 Idem, vol. I.

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As conceptualized by a classic Brazilian thinker, Milton Vargas, technique is “a human ability to craft, build and use tools”32, thus inevitably associating technology and engineering closely, as he defines technology as a product of Modern Science with clear preference for the positivist exact sciences. What may cause admiration, but not for a critical thinker, is the fact that the Greek term τεχνολογία “technology” can be considered nearly as old as τέχνη “te-chnique”. τεχνολογία is defined as the systematic treatment of grammar and other33 τέχνη or arts. Vieira Pinto exposed a similar assertion: according to him, language is the “fundamental technique, the technique of technique, the one without which any other would not be”34, because technique, as he clarifies, is not only linked to the material use of instruments, but a priori any human action is technical for the simple fact that it is human. That occurs because technique, as discussed previously, holds an existential relevance to humans, as it mediatizes the process of projecting and consecution of its finalities. This conception promotes technique to its authentic wide range, correcting many mistakes induced from a reductionist perspective that links technique or technology specifically to engineering-related fields.

Walter Bazzo, Luiz Pereira and Jilvania Bazzo, for instance, despite recog-nizing that philosophers, physicians or teachers can be considered “appliers of technique”35, finds the idea of technology “ingenuous” as an applied scien-ce and “unnecessary” as the study of technique36, showing a complete alie-nation to the essentiality of coherency. In fact, one of the main attributes we find in many thinkers’ reflections which in greater or lesser depth approach technique is the lack of a coherent totality of ideas and notions they defend: their reflections lack a systematic character. What they state on one page con-tradicts the reflections on the following or in the next chapter, or what they criticize is, in an authentic and critical perspective, exactly what can be refer-red to them. In this sense, we argue for the need to conceiving technology as the field of study of technique in all the different kinds of beings it is applied to: inorganic, organic and social.

32 Vargas, M. História da Técnica e da Tecnologia no Brasil, 1994, p. 15.

33 Liddell, H. & Scott, R. A Greek-English Lexicon, 1897

34 Ibidem, vol. I, p. 183.

35 Bazzo, W., Pereira, L. & Bazzo, J. Conversando sobre educação tecnológica, 2016, p. 115.

36 Ibidem, p. 82.

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These reflections, on the application of technique, offer us the bases of an aspect of the general theory of technique proposed by Vieira Pinto37. The author comprehends that it can be elaborated with the following topics: a) classifica-tion of techniques; b) its history; c) profitability; and c) its social function. In the first topic we understand that we can classify technique from the perspec-tive of its application, as we have pointed, and from the procedure, manually, mentally or consubstantiated in a machine or instrument. On this matter, Ci-priani and Bortoleto38 highlight the relevance of treating the anthropogenesis process, because technique and human beings are coetaneous according to the Brazilian philosopher’s thought. In the second topic, the author approa-ches the history and historicity of technique using dialectical bases. Refusing the argument of technique as the motor of history, he shows that the work of the masses is the most relevant in this case. On the profitability and the social function of technique, to consider the social dynamics of work is vital to his mind, that is, there is a tendency for the production of the masses to be appropriated by a ruling minority. His assumption is similar to the third of the interpellations of Dussel’s philosophy of liberation39.

Vieira Pinto conceives that from the moment human beings are aware of the unity of technique, its university and pluriversity, which is offered by tech-nology as a unitary scientific field, they are capable of dominating not only the one they execute, but all the others, knowing its meaning, worth and finalities40. This offers us an epistemology of technology grounded in the work executed by the human being. In the author’s conception, the outdating of the duality that opposes the worker, who is the technician, and the thinker, who thinks the tech-nique, is made possible by the critical idea of technology as a unified science.

The philosopher also defends the idea of technology as “the study of the process of human creation through the praxis of material existential reali-zation of the self, as a result of its social conditionings”41. Because of the previously stated definition of technique, we need to coherently comprehend it in the horizon of every human action. Rigorously speaking, clears Vieira

37 Ibidem, vol. I, p. 236.

38 Cipriani, C. & Bortoleto, E. A tecnologia como epistemologia da técnica: um estudo a partir de Álvaro Vieira Pinto, 2015.

39 Dussel, E. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão, 2017.

40 Ibidem, vol. I.

41 Ibidem, vol. I, p. 246.

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Pinto, only a few of the human actions cannot be considered technical, and that is because human existence is oriented by the finalities it proposes on the process of production of its existence. Here the dialectical categories of ter and haver can help us theorize this matter, because the human “is a living being biologically compelled to create for himself the ecumenical where he is installed”42. In this sense, he highlights an important difference: initially, humans considered the Kantian technica naturalis as the phenomena portra-yed by nature; now the human behaviour and production occupy the quality of phenomena to be studied. Technology, thus, as the study of technique, gathers in the research of the relations of humans a basis of its epistemology.

Vieira Pinto conceive that work occupies an essential hole on the fundamen-tal axiomatic notion of philosophy of technology43. In fact, his conceptions of ethics and philosophical anthropology holds deeply embed this category, but now we would like to highlight the political consequences of his reflection on technique. According to him the “capacity that the human being acquires of consciously exercise the direction of the historical course of existence, leading him to more perfect forms of coexistence among all the individuals in the act of collective production, is what is denominated politics”44. Thus, he concep-tualizes politics with an ethical note, which allows us to associate his philo-sophy of technology with the application of technique on the improvement of the condition of work and existence of the mases of the underdeveloped countries. Current reflections on his production supports this claim.

Jairo Carvalho45 discusses the asymmetric economic exchanges in Viei-ra Pinto’s perspective. He affirms that the philosopher clarifies this process, denounces the oppression it provokes on the poor nations and defends the formulation of policies of autochthone creation of technology and scien-ce, both directed to the solution of national problems. In other work, the same author46 discuss with Vieira Pinto’s thought and defends the thesis that nationality is a fundamental critical and epistemological category that allows us to examine who, why, for what reason technology is produced.

42 Ibidem, vol. I, p. 245.

43 Ibidem, vol. II, p. 537.

44 Ibidem, vol. I, p. 208.

45 Carvalho, J. Tecnologia, política e filosofia em Álvaro Vieira Pinto, 2017.

46 Carvalho, J. A nação como conceito da filosofia da tecnologia de Álvaro Vieira Pinto, 2019b.

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Carvalho makes explicit the political aspect of Vieira Pinto’s proposal, dif-ferently of many academics who seeks the philosopher’s book only to quote his conception of technology or technique, thus neglecting some practical aspects of his reflections. He is often quoted in fields such as education, es-pecially when reflecting Information and communications technology (ICT) and its hole in the educational process, nonetheless it lacks an appropriation of Vieira Pinto’s thinking in his philosophical amplitude.

Concluding remarks: the first words of a debate

The conclusion of this paper should be understood through the Portuguese word “desfecho”, which means “denouement”, generally linked with the end of a plot, of its conclusion or resolution. But, as meditates João Augusto Pom-péia47, the desfecho is also a des-fecho, that is, the negation of the act of closing [fechar]. We elaborated a brief thematization of the concept of technology according to the Brazilian philosopher Álvaro Vieira Pinto certain that there is much more to approach. We would deepen our exploration on the first meaning of technology and also discuss the other three, especially the last one, the ideological, for the importance of the theme.

We find the elaboration of technology as a scientific discipline extremely necessary. As the discovery of new techniques and the production of kno-wledge on it grows incessantly and rapidly, it justifies a new unified study field. Moreover, the reflections on the essence of technique and its link to the human production of existence, offered by Vieira Pinto, would contribute to the enhancement of technological research.

It is necessary to discuss the applicability of Vieira Pinto’s theses on recent themes such as artificial intelligence (AI), deep learning algorithms, neural networks, among others. Although the author himself devoted a whole chap-ter of the book (vol. II, ch. XIII) on the matter of intelligence, the historical development of technology imposes the discussion of his conceptions in the light of current topics.

We would find our reflections incomplete if we did not mention the need for a nationalist-based politics of technology in underdeveloped countries. In another work, we addressed the theme of nationalism in Vieira Pinto’s

47 Pompéia, J. Na Presença do Sentido: uma aproximação fenomenológica a questões existenciais básicas, 2014.

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thought more profoundly48; now we would like to highlight the importance of thinking politics in terms of national interests. Jairo Carvalho49 points the political relevance of thinking in these terms. Based on Vieira Pinto’s thought, he offers a philosophical justification of what is conceived as “technological policy”, which integrates the productive forces and the actions of fomenting scientific and technological research for the sake of the wellbeing of the inha-bitants of a given country.

If the Brazilian state does not look after the social development of its own people, who else is going to worry about it? One of our main contradictions

– term that should be taken in a dialectical sense – is the imperiousness of being in march again as a nation, striving for a national project of develop-ment and liberation.

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* Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato: [email protected]** Faculdade São Bento do Rio de Janeiro (FSBRJ). Contato: andré[email protected]*** Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Contato: [email protected]**** Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Contato: [email protected]

O Paradoxo de Richard (conexões artístico-filosófico-matemáticas)

Richard’s Paradox (artistic-philosophical-mathematical connections)

Resumo

Para explorar as articulações que perpassam os campos da filosofia, artes e matemáticas, partimos do princípio de que todos eles acompanham os modos de pensamento inscritos em lugar e tempo, sendo, portanto, historicamente construídos. Temos por foco o conceito de representação e suas diversas percepções ao longo das três primeiras décadas do século XX, na Europa ou no Brasil. A análise parte do

“Paradoxo de Richard”, um enunciado formulado no campo da matemática, mas que se embrenhou por outros campos, gerando claras implicações, instigou formas de pensamento (novas compreensões a respeito das representações) e realizações práticas (conceito central na concepção dos computadores). Nossa ambição é compreender processos comuns (caso da representação) aos territórios de saber acima indicados: o problema diz respeito a rupturas contemporâneas que parecem redimensionar a relação epistême/poiésis.

Palavras-chave: Arte, Matemática, Representação, Computadores, Paradoxos.

Recebido em: 30/03/2020 - Aceito em: 20/12/2020

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Abstract

To explore the articulations that cross the fields of philosophy, arts and mathematics, we assume that these fields follow the modes of thought inscribed in a place and in a time, and are therefore historically constructed. We focus on the concept of representation and its various perceptions over the first three decades of the twentieth century, in Europe or Brazil. We analyse from Richard’s Paradox, a statement formulated by the field of mathematics, but involving other fields, generating clear implications. This paradox instigated modes of thought (new understandings concerning representations) and practical achievements (central concept in the computer conception). Our ambition is to understand common processes (as the of representation) for knowledge territories pointed out above: this problem concerns contemporary ruptures that seem to resize the episteme/poiesis relationship.

Keyword: Art, Mathematics, Representation, Computers, Paradoxes

Introdução

À televisão

Teu boletim meteorológicome diz aqui e agorase chove ou se faz sol.Para que ir lá fora?

A comida suculentaque pões à minha frentecomo-a toda com os olhos.Aposentei os dentes.

Nos dramalhões que encenashá tamanho poderde vida que eu próprionem me canso de viver.

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Guerra, sexo, esporte- me dás tudo, tudo.Vou pregar minha porta:já não preciso do mundo(José Paulo Paes)

Nos versos deste poema podemos identificar articulações entre cenas do uni-verso artístico e matemático, segundo condições de pensamento que servem de apoio às expressões em campos diversos (arte e ciência) e são imbricadas com mudanças de paradigma historicamente operadas. O autor dedica à televisão um certo desprendimento do mundo possibilitado pela representação.1 O que vem pela tela lhe parece tão fiel e satisfatório que o mundo se torna dispensável. Em 1962, John Glen, o astronauta norte-americano, não se impressionou ao ver, do espaço, continentes e oceanos. As representações em imagens nos simulado-res da NASA lhe pareciam mais verdadeiras do que sua experiência no espaço.2

Tal como se dá em qualquer forma de representação nos diversos campos de conhecimento, as representações matemáticas carregam em si próprias as-pectos de espaço/tempo. São, portanto, construções coletivas e históricas. Mas a trajetória do conhecimento na era moderna se desenvolveu no sentido de identificar a matemática com uma forma de expressão abstrata e hermética, impondo o seu afastamento com relação às coisas de seu tempo e espaço. Tem-se a sensação de abandono do mundo, já que o modelo se basta. Porém, enclausurada em si própria, a matemática não alcança responder a certas ques-tões propostas por ela mesma. Mais do que isso, a clausura produz aversão e renúncia por parte daqueles que desejam (ou são obrigados) a lidar com ela. Attie e Moura ilustram com exemplos uma ruptura na relação epistême/poiésis: a matemática escolar é direcionada “aos métodos e técnicas e não aos proces-sos e argumentações”.3 Métodos e técnicas são considerados historicamente invariantes, como se não fossem sujeitos às contradições, hesitações e criações que se fazem perceptíveis nos processos e argumentações.

Aversão e renúncia denunciadas por Attie e Moura se revertem quando percebemos manifestações, em outras áreas, de questões também expressas na

1 Paes, J.P. Prosas seguidas de odes mínimas. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1992.

2 Marques, I.C. O Brasil e a abertura dos mercados. O trabalho em questão. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 2002.

3 Attie, J. & Moura, M. A altivez da ignorância matemática: Superbia Ignorantiam Mathematicae. Revista Educação e Pesquisa 44, 2018.

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matemática. Quando isto acontece, a linguagem hermética e indecifrável se torna acessível, porque estabelece vínculos com outros sistemas e significados. É preciso, então, ampliar o olhar e verificar as condições de enunciação das sentenças ma-temáticas, o que demanda reconhecer a matemática como uma construção social.

Convém ressaltar que aqueles vínculos com outros sistemas e significados se dão como trocas e reciprocidades, alterando paradigmas não somente na matemática, mas em todos os terrenos de saber envolvidos. Aqui, vamos ex-plorar articulações que perpassam os campos da filosofia, artes e matemáticas a partir do Paradoxo de Richard, um enunciado que se insere no desenrolar da crise da representação configurada no início do século XX, tanto na mate-mática quanto nas artes, seja na Europa ou no Brasil.

Este texto está organizado da seguinte forma: veremos, na seção “Artima-nhas da representação”, reflexões de artistas nas primeiras décadas do século XX, sobre a representação. Foucault traz compreensões sobre a representação artística que relacionaremos com conceitos sobre a representação matemática da mesma época.4 Em seguida, na seção “Crise da representação”, apresenta-mos cenas cruzadas (artes, política, matemática) que contrapõem duas prer-rogativas das três primeiras décadas do século XX: exigência de totalização e repulsa às abordagens que se desenvolviam sob a percepção da incompletude, inconsistência e valorização de expressões locais. Estas últimas indicam que a empreitada totalizadora buscada pelos cientistas no início do século XX não se efetivaria. Na seção seguinte abordamos o Paradoxo de Richard. Trazemos cenas do ambiente matemático que ilustram as preocupações daquele tempo, aliando a isso as análises de Foucault sobre a representação, discutidas na seção prece-dente. Ao concluir indicamos que tanto o conhecimento matemático quanto a arte abrem-se hoje, não sem resistências, aos reclamos de um pensamento capaz de fazer emergirem outras falas e formulações. Incluam-se, para isso, breves abordagens de uma epistemologia na qual ecoam processos de descolonização.

2. Artimanhas da representação (semelhança e similitude)

O desconcertante quadro Os amantes, de René Magritte (1928), mostra pes-soas com a cabeça coberta por um pano. O Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, apresenta em sua galeria online uma possível explicação:5

4 Foucault, M. Isto não é um cachimbo. São Paulo, SP: Paz e Terra, 1988

5 https://www.moma.org/learn/moma_learning/rene-magritte-the-lovers-le-perreux-sur-mar-ne-1928/, acesso:08/03/2019, tradução nossa.

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O artista tinha 14 anos quando sua mãe se suicidou por afogamento. Ele encontrou seu corpo molhado, com a roupa enrolada em seu rosto. Alguns especulam que este trauma inspirou uma série de trabalhos em que Ma-gritte oculta os rostos. Magritte discordou de tais interpretações, negando qualquer relação entre suas pinturas e a morte de sua mãe: “Minha pintura são imagens visíveis que não escondem nada”.

O pano cobre o que não está escondido. Mas o que o artista diz (“Minha pintura são imagens visíveis que não escondem nada”) não é evidente ao olhar, pois a leitura mais imediata parte do signo de ocultação sugerido pelo pano. Duas possibilidades de interpretação do que diz Magritte sobre o que estaria oculto: ou se configura no pensamento de quem observa, ou não faz falta alguma. No Rio de Janeiro de 1989, a Arquidiocese do Rio de Janeiro proibiu a imagem do Cristo Redentor no desfile da Escola de Samba Beija Flor de Nilópolis. Ratos e urubus: larguem minha fantasia, enredo de Joãozi-nho Trinta, trazia o Cristo mendigo abençoando favelas. Uma ordem judicial mandou cobrir a imagem; a alegoria entrou na Sapucaí com a mensagem

“Mesmo proibido, olhai por nós”. O plástico preto não ocultou a imagem do Redentor. Ao contrário disso, o “invisível” deixou às claras a intransigência da Arquidiocese, que não admitiu a apropriação popular da imagem. Em 1966, Magritte já havia explicado a Foucault:

Existe, há algum tempo, uma curiosa primazia conferida ao “invisível” através de uma literatura confusa, cujo interesse desaparece se se observa que o visível pode ser escondido, mas que o invisível não esconde nada: pode ser conhecido ou ignorado, sem mais.6

Há aqui uma estratégia: o que se vê não coincide com o que é dito. Em A trai-ção das imagens, 1926, Magritte também lança mão do recurso. O que se vê é um cachimbo, mas há abaixo o alerta: “Isto não é um cachimbo”. Magritte explicou: “O famoso cachimbo... Como fui censurado por isso! E, entretan-to... Vocês podem encher de fumo o meu cachimbo? Não, não é mesmo? Ele é apenas uma representação. Portanto, se eu tivesse escrito no meu quadro: ‘isto é um cachimbo’, eu teria mentido.”7

6 Foucault, M, op. cit. p.82-83

7 Idem, posfácio.

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A pintura cria uma rede de similitudes (não de semelhanças) porque não exige uma fidelidade entre a coisa e a imagem. Para elaborar a compreensão da representação, Magritte refinou o conceito de “similitude”, que já vinha sendo elaborado por Foucault em As palavras e as coisas, publicado pela primeira vez em 1966.8 Segundo o pintor, os dicionários não são muito edificantes em distinguir os conceitos.9 No livro Isto não é um cachimbo, publicado em 1973, Foucault retomou esse conceito – assumindo a abordagem de Magritte – e fez uma reflexão sobre a representação. Para ele, “semelhança” diz respeito a um padrão a partir do qual se estabelecem cópias. É, portanto, uma relação hie-rarquizada onde se destaca a identidade (ou falseamento) das representações (cópias) com o modelo original: reforça a noção de “verdadeiro”, que prescre-ve e determina o falso. “Similitude” diz respeito a diferenças: é uma cadeia de repetições onde pequenas diferenças circulam passo a passo, sem hierarquia nem direção. Para Foucault, a representação está associada à semelhança; o simulacro, à similitude.10 Para Deleuze, os simulacros não têm modelo, pois rompem a relação da cópia com a ideia, libertando e trazendo à superfície da linguagem o que ficou recalcado pela hierarquia platônica.11 Trata-se de explo-são do sentido (que alia “bom senso” e “senso comum”) em sentidos múltiplos, quebrando as cadeias de significação e abalando a dicotomia verdadeiro/falso. Aí se alojam, entre outros problemas da linguagem, os paradoxos.

É então no pensamento que a semelhança (representação) se concretiza: os rostos, o cachimbo, o Cristo mendigo aí se conformam, aproximando pes-soa (observador) e mundo. Foucault ressalta: “Só ao pensamento é dado ser semelhante. Ele se assemelha sendo o que vê, ouve ou conhece, ele torna-se o que o mundo lhe oferece”.12

Por outro lado, há o plano linguístico. O que é dito ou escrito sobre a obra: um título, uma legenda. Tanto em Os amantes quanto em Isto não é um cachimbo, Magritte confronta o plano linguístico ao que é percebido nas imagens. Pratica, assim, uma ruptura com relação a uma longa tradição, ferindo dois princípios que Foucault destacou como dominantes na pintura ocidental, do século XV ao XX:

8 Foucault, M. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2000.

9 Foucault, M, op. cit. 1988, p.81.

10 Idem p.60-66.

11 Deleuze, G. Lógica do Sentido. São Paulo, SP: Perspectiva, 2013.

12 Foucault, M, op. cit. 1988, p.82.

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O primeiro afirma a separação entre representação plástica (que implica a semelhança) e referência linguística (que a exclui). Faz-se ver pela se-melhança, fala-se através da diferença. De modo que os dois sistemas não podem se cruzar ou fundir. É preciso que haja, de um modo ou de outro, subordinação: ou o texto é regrado pela imagem (…), ou a imagem é re-grada pelo texto (…). Mas pouco importa o sentido da subordinação ou a maneira pela qual ela se prolonga, multiplica e inverte: o essencial é que o signo verbal e a representação visual não são jamais dados de uma vez só.13

Magritte fere este princípio ao marcar a diferença, em Os amantes, na referên-cia linguística, quando diz que o pano não oculta. Também fere este princípio em Isto não é um cachimbo, pois signo verbal e representação visual são dados de uma só vez: a legenda é parte da obra. Da mesma forma, Joãozinho Trinta contrasta o Cristo invisível com a referência linguística que desfila na faixa:

“Mesmo proibido, olhai por nós”.

O segundo princípio (...) coloca a equivalência entre o fato da semelhança e a afirmação de um laço representativo. Basta que uma figura pareça com uma coisa (ou com qualquer outra figura), para que se insira no jogo da pintura um enunciado evidente, banal, mil vezes repetido e entretanto qua-se sempre silencioso (...): “O que vocês estão vendo, é isto”. (...) O essencial é que não se pode dissociar semelhança e afirmação.14

Mas, em Isto não é um cachimbo, há uma negação que separa o fato da semelhança (o que se vê é um cachimbo) e a afirmação de um laço representativo (o que é dito sobre a imagem). Da mesma forma ocorre quando Magritte afirma de sua obra que “são imagens visíveis que não escondem nada”. Há uma negação que separa o fato da semelhança (rostos encobertos) e a afirmação de um laço representativo (imagens visíveis).

Os dois princípios, quando rompidos, deixam em evidência o mecanismo que engata uma negativa e uma autorreferência. Deste esquema, advém o que coloca em xeque a representação. Em Isto não é um cachimbo, um paradoxo se impõe através do demonstrativo “isto”, que dança entre representação e simulacros, ligando-os e desfazendo elos. Afinal, “isto”, a que se refere? Ao cachimbo (objeto ou pintura)? Negando a semelhança, o que se afirma recai

13 Idem.

14 Foucault, M, op. cit. 1988, p.42.

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sobre o próprio elo e o que ele enuncia. O objeto deste “isto” é uma espessura de negações e afirmações, desprendida tanto da imagem do cachimbo quanto do objeto cachimbo e do enunciado. “Isto” é o esplendor da representação aureolada de crise. De fato, o Cristo encoberto no desfile de Joãozinho faz evidente a sua presença ao mesmo tempo que conta a história de sua censura; ou, ainda, “Mesmo proibido, olhai por nós” é frase que inclui um clamor sem destino, pois é preciso perguntar sobre quem recai a proibição: o carnavales-co, os desfilantes, os espectadores, o próprio Cristo.

Na década de 1930, Antonin Artaud também refletiu sobre a represen-tação.15 O que o moveu foi um forte incômodo com o abismo que observou entre a cena teatral e a vida, entre o corpo e suas mediações subjetivas. Este afastamento encontrou na linguagem e nas representações o suporte para as indagações. No prefácio de O teatro e seu duplo, ele deixou clara sua revolta:

Julga-se um civilizado pelo modo como se comporta e ele pensa tal como se comporta; mas já quanto à palavra civilizado reina a confusão; para todo o mundo, um civilizado culto é um homem bem informado sobre os siste-mas e que pensa em sistemas, em formas, em signos, em representações. É um monstro no qual se desenvolveu até o absurdo essa faculdade que temos de extrair pensamentos de nossos atos ao invés de identificar nossos atos com nossos pensamentos.

Ao perceber a ruptura entre “as coisas e as palavras, as ideias, os signos que são a representação dessas coisas”, Artaud apresenta-se como combatente contra a representação, liberando a vida da escravidão ao duplo das coisas.16 Magritte disse: “o invisível não esconde nada: pode ser conhecido ou igno-rado, sem mais”. Temos, então, que o invisível é apenas o invisível, mate-rializado na tela de Magritte; ele não quer representar o invisível, talvez por reconhecê-lo como irrepresentável (por definição, o invisível não se vê); ou quer libertar suas infinitas possibilidades. Artaud, por sua vez, vê na repre-sentação aquilo que o afasta das coisas: os signos. Isto impede a experiência de imediatidade, vetando também a posse de si mesmo. Em outros tempos, sob o fascínio de outras tecnologias, José Paulo Paes também denunciaria a perda de si e do mundo, na ode à televisão.

15 Artaud, A. O teatro e seu duplo. São Paulo, SP: Max Limonad Ltda, 2006, p.16-17.

16 Idem, p.2.

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Inconformado com “a fixação do teatro numa linguagem”, Artaud buscava uma cena com um máximo de aproximação e coincidência com a vida, um ponto zero da representação. Isto exigiria uma outra poética que liberaria o espetáculo da prisão estabelecida pela linguagem: “Romper a linguagem para tocar na vida”.17 Surgiu daí a proposta do “Teatro da Crueldade”, que consiste em um teatro vivido na carne, no qual a linguagem se liberta dos textos e roteiros pré-fixados, mistura-se ao momento do ator, cedendo lugar às percepções imediatas e suas manifestações: gritos, suspiros, urros. Mas, paradoxalmente, Artaud percebeu que o zero de representação constitui um vazio que refaz a representação, multiplicando-a. Um zero que, na qualidade de furo, deixa-se atravessar infinitamente – proliferando e dando passagem a possíveis. Vida e teatro novamente se separam; o irrepresentado é repre-sentação. Não fosse assim, um sonhado zero de representação expulsaria as coisas do âmbito da linguagem (experiência, sabemos, impossível). Ao se ver destituído de seu nome, um objeto qualquer refaz uma distância consigo mesmo, ali onde o vazio cria, ao mesmo tempo, uma nova designação e um novo intervalo (vazio) entre a coisa e sua representação. A linguagem oscila entre o que abole e o que refaz, entre o dizível e o indizível. O que Magritte visibiliza é a invisibilidade; Artaud representa o irrepresentável que retorna como representado. A representação diz uma forma de presença do ausente: se proferimos a palavra “copo”, não precisamos tê-lo à mão. Trata-se de ope-ração dada no tempo (presente) e no suporte do espaço que abriga a presença

– ainda que fictícia, como no teatro. O corpo real e presente do ator representa o do personagem; é, ele mesmo, simultaneamente a representação de si e do

“outro” – fictício, portanto, ausente. A figura é habitante de outro tempo e outro espaço, ainda que Artaud quebre as cadeias narrativas e pretenda insta-lar-se num puro tempo presente.

3.Crise da representação

Cenas históricas ocorridas na Europa e no Brasil mostram evidências de que os modos de pensamento das primeiras décadas do século XX configura-vam um ambiente fomentador dos questionamentos sobre a representação. O termo é considerado aqui no seu sentido mais amplo, desde representa-ção artística até política, ou matemática. Inicialmente, estes questionamentos

17 Idem, p.21-22.

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seguem na carona de um pensamento totalizador (seção 3.1). Nessa atmos-fera, surgem, logo na virada do século, claros sinais da impossibilidade desse projeto: paradoxos. Aproximando-se da década de 1930, as impossibilidades assumem formas de propostas que subvertem a ordem totalizadora: Magritte, Artaud, Malfatti, Villa-Lobos, Gödel (seção 3.2).

3.1 Abordagens totalizadoras nas artes, na filosofia, na política, assim como na matemática

Na segunda metade do século XIX, Richard Wagner propõe compreender o teatro como Gesamtkunstwerk, “obra de arte total”: encontro das artes do tempo (música, literatura) com as do espaço (pintura, arquitetura, escultura).

Anunciava-se o esgotamento da mímesis; as artes indagavam sobre si, ontolo-gicamente – o que cada uma delas é, o que pode realizar, o que cabe a cada uma frente às outras. A inauguração do Teatro de Bayreuth (1876) conduz a imensas mudanças no palco à italiana, herdado da Renascença e da cena clás-sica francesa. Retiram-se frisas e camarotes, aproxima-se a plateia de um palco rebaixado, posicionam-se os espectadores em aclive, tal como no anfiteatro grego. Com o advento da luz elétrica e o apagamento das luzes sobre a plateia, o teatro transformou-se numa caixa escura: silenciado e com o corpo aquieta-do, o espectador é levado a voltar sua atenção para um espaço recortado por focos de luz sobre a cena. Fragmenta-se também a narrativa, criam-se zonas de sombra. Sob este regime de atenção, espera-se que o espectador mude de ati-tude frente ao teatro: uma nova sociabilidade exige que cada um ignore a pre-sença dos outros. Todo real se resume à ficção oferecida ao olhar disciplinado.

A contemplação se dá por um suposto apagamento do espectador, posto na escuridão e defrontado com uma quarta-parede: ele é dado como ine-xistente para que a obra viva a sua autonomia e totalização em si mesma. A contemplação separa sujeito e objeto, ator e espectador. No entanto, pode acontecer do olhar dispersar-se ao menor ruído ou ser provocado a procurar justamente o que se encontra nas frestas e zonas de invisibilidade. Paroxis-mos de um projeto totalizador conduzem também a política, nas primeiras décadas do século XX: purificação (a raça pura), centralização e controle (po-der forte) e dicotomia Estado/corpo social, onde o primeiro termo pretende que se apaguem as tensões do segundo em relação a ele. A instabilidade po-lítica no entre-guerras traz para a cena a instalação de governos apoiados por um sentimento exacerbado de nacionalismo: Stalin, Mussolini, Hitler, Franco, Salazar; no Brasil, Getúlio Vargas e o Estado Novo.

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Convicções positivistas também ressoaram no Brasil e marcaram a for-mação de uma elite republicana que enxergava desordem em qualquer coisa que fugisse àqueles ideais; o controle e a técnica seriam vias seguras para o progresso e a verdade.18 Em 20 de dezembro de 1917, o jornal de ampla circulação “O Estado de São Paulo” publicou, na seção “Artes e Artistas”, o comentário de Monteiro Lobato Paranóia ou mistificação: a propósito da exposi-ção de Malfatti. Lobato classifica artistas em três categorias: os que têm gênio, os que têm apenas talento; e uma terceira classe “formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam à luz de theorias ephêmeras, sob a sugestão estrabica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furunculos da cultura excessiva”. Totalização, precisão e controle são as bases em que o es-critor constrói sua crítica: “Todas as artes são regidas por princípios immutá-veis, leis fundamentaes que não dependem do tempo nem da latitude”. Dessa forma, ele rejeita veementemente o que identifica como “tendencias para uma attitude esthetica forçada no sentido das extravagancias de Picasso e compa-nhia”. A grafia de Lobato foi mantida.19

Na cena matemática, o panorama não era muito diferente. Alemão, assim como Wagner, David Hilbert também vinha, desde os fins do século XIX, ela-borando suas concepções sob a perspectiva de uma conquista total: abraçar toda a matemática. Para isso, em 1925, propôs um sistema de símbolos que, de maneira intuitiva e finitária, garantiria a confiabilidade de todo aparato matemático. Tratava-se de uma concepção minimalista: sequências de traços a serem manipulados por justaposição (|,||,|||, ...) e definições autorreferentes; daí sua característica intuitiva. Além disso, qualquer operação deveria ser passível de ser completada em tempo finito, envolvendo um número determi-nado de passos, o que se dizia “finitário”.20 Em 1928, na Conferência Interna-cional de Matemáticos de Bolonha, ele apresentou o que mais tarde foi chamado de “Programa Hilbert”: a formalização que garantiria confiança e precisão a qualquer construção matemática. Para Hilbert, um sistema formal deveria

18 Martins, P. Configuração de Monteiro Lobato na crítica à Anita Malfatti. Revista Vernáculo 36, 2015.

19 Lobato, M. Paranóia ou mistificação: A propósito da exposição de Malfatti. O Estado de São Paulo, Seção Artes e Artistas, 2017.

20 Hilbert, D. On the infinite. In P., Benacerraf e H., Putnan (Ed.) Philosophy of mathematics. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

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atender a três requisitos: ser completo, consistente e decidível.21 Ser comple-to exige que, para qualquer enunciado expresso no sistema, haja uma prova de sua veracidade (ou falsidade); ser consistente indica que o sistema deve ser livre de contradições; e ser decidível indica a existência de um processo mecânico capaz de verificar se um determinado enunciado formal é verdadei-ro ou falso. Como em Wagner, uma abordagem totalizadora e controladora, definida por meio de regras precisas e aplicações sistemáticas. Consistência, completude e decidibilidade traçariam o foco de luz na cena matemática.

3.2 Incompletudes, impossibilidades: insubordinações

Na década de 1930, a angústia de Artaud emergiu da busca por um zero de representação, o que significa uma arte experimentada e sentida (não capturada ou representada). Artaud reivindicou o fim das obras-primas, argumentando que elas impõem um padrão elitizado de arte e por isso não dialogam com a vida. Re-jeitando as narrativas que copiam a vida, ele propôs começar tudo de novo atra-vés de um teatro em constante aderência à própria vida, o Teatro da Crueldade.22

Artaud fez transbordar a proposta Wagneriana de Gesamtkunstwerk. A con-jugação das artes não supriu sua necessidade visceral de transitar no espaço do indizível. O chamamento é ao agir: “E eu nos convido a reagir. Esta ideia de arte desligada, de poesia-encantamento que só existe para encantar o lazer, é uma ideia de decadência e demonstra claramente nossa força de castração”.23

No Brasil, a concepção de arte domesticada por “princípios imutáveis” também transbordou. A crítica de Monteiro Lobato a Anita Malfatti serviu de inspiração ao artista plástico Di Cavalcanti para a proposição da Semana de Arte Moderna. Realizada em apenas três dias, 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, a Semana colocou em pauta uma crítica direta ao academicismo que desmerecia qualquer forma de manifestação artística fora dos padrões neo-clássicos.24 Os modernistas reivindicavam espaço criativo para uma produção marcada pela identidade nacional. Dentre insultos e vaias, Heitor Villa-Lobos

21 Hilbert, D. Probleme der Grundlegung der Mathematik. In P., Mancosu (Ed.) From Brouwer to Hilbert: The debate on the foundations of mathematics in the 1920s, Oxford: Oxford University Press, 1922, 227-233.

22 Artaud, A, op. cit. p.92.

23 Idem, p.87.

24 Reinheimer,P. Identidade nacional como estratégia política, Revista MANA v.13, n.1,2007.

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apresentou-se com “[S]ons sucessivos sem nexo”, “ruídos, estrondos”.25 Po-de-se arriscar a pergunta: aquilo que soava terrivelmente desagradável para o público brasileiro daquele momento teria alguma sintonia com a proposta de Artaud na Europa da década seguinte? - “os sons, os ruídos, os gritos são buscados primeiro por sua qualidade vibratória e, a seguir, pelo que repre-sentam”.26 A pretendida representação “zero” conduz a ação – seta de tempo cronológico sobre a cadeia de causa e efeito – a um agir. Com Artaud, o que encontramos é uma potência de teatralidade cujo sentido opera em Aion: presente pressionado por passado e futuro simultaneamente. São forças de dissipação da mimesis. Mas, uma pura presença das coisas, só suportada por um puro presente, estará sempre furtando-se a si mesma, porém refazendo as representações, de um lado; de outro põem em movimento o devir dos simulacros, que desdenham qualquer compromisso com as cópias e as ideias a que elas se referem. Artaud procura uma palavra-hieróglifo, não conceitual: uma palavra-coisa, cuja sonoridade se anteponha ao significado. Trata-se de combater o domínio do texto dramático sobre a cena.

O compositor brasileiro Villa-Lobos identificou-se de imediato com as aspirações da Semana de Arte Moderna. Àquela altura, sua “maneira bem brasiliense” de compor já despertava rejeição. Em carta ao amigo Iberê Lemos, Villa-Lobos divertiu-se e riu ao relatar os três dias de vaia que incluíram canto de galo, ovos podres e batatas. Disse ter conseguido a execução perfeita, po-rém o público xingou, ofendido.27

Representou-se ontem o último ato de bambochata futurista. O senhor Vil-la-Lobos, pelo seu talento musical, bem merecia não ter se metido com a meia dúzia de cretinos que transformaram o nosso Municipal em dois espetáculos memoráveis pela sandice, numa desoladora grita de feira.28

A crítica acusou de “futurismo” sua aparição com um pé em chinelo, des-considerando que “o compositor assim se calçava por estar com um calo

25 Mariz, V. A música na Semana de Arte de 22. O Estado de São Paulo, Caderno Cultura, ano V, no. 448, 1989.

26 Artaud, A, op. cit. p.92.

27 Zanelatto, J. H. & Matias, C. P. Historiadores e musicólogos: vozes dissonantes sobre Villa Lobos no Estado Novo. Revista História v.14 n.2, 432-449, 2014. doi:https://doi.org/10.5335/hdtv.14n.2.4582

28 Mariz, V. op. cit.

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arruinado”.29 Invisível para a plateia, o calo de Villa-Lobos pôs em relevo a ousadia de suas composições. Como diria Magritte em décadas seguintes, “o visível pode ser escondido, mas (...) o invisível não esconde nada”. No ano-

-marco do Centenário da Independência do Brasil, a “meia dúzia de cretinos” reunia nomes como Mário de Andrade, Anita Malfatti, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Manuel Bandeira (embora nem todos presentes). Eles rei-vindicaram o nascimento de uma nova arte que não se limitasse à equipara-ção às vanguardas europeias, mas fosse capaz de pensar-se em sua singulari-dade cultural. Trafegavam na contramão do romantismo que buscou raízes no Velho Mundo. Serviriam aqui as palavras de Artaud: “é preciso que as coisas arrebentem para se começar tudo de novo”.30

No campo da matemática, o transbordamento se deu com relação aos cha-mados “movimentos de fundamentação”, que vinham, desde o final do século XIX, buscando um tratamento considerado rigoroso para lidar com o que emer-gia e ainda não se mostrava resolvido dentro da concepção totalizadora que pre-dominava na Europa. Havia uma grande confiança de que a matemática, com sua linguagem formal e sua abordagem considerada rigorosa e precisa, resolveria qualquer questão do seu próprio escopo. Foi nestas bases que se estabeleceu o

“programa de Hilbert”. Entretanto, em 1931, Kurt Gödel, embora empenhado em fortalecer a iniciativa do colega, terminou por demonstrar um resultado que se mostrava inconciliável com o programa: a impossibilidade de um sistema formal suficientemente expressivo provar a totalidade de enunciados que ele mesmo é capaz de expressar. A isto chamamos hoje Incompletude da Matemá-tica. Este resultado trouxe desconforto: deixou evidente que um sistema formal não pode ser ao mesmo tempo completo e consistente. Se for completo, não será consistente. Se for consistente, não será completo. Com a incompletude, os matemáticos ver-se-iam desafiados a transitar em campos que escapavam do controle e precisão dos formalismos, algo não concebível naquela década e em tempos anteriores. Assim, a incompletude ocupou, no campo da matemática, um espaço semelhante às propostas desconcertantes de Artaud, no campo do Teatro. A questão é a mesma: a impossibilidade de concretização de uma lingua-gem totalizadora; a partir daí, abre-se um espaço de pensamento que escapa ao controle das regras e formalismos. Na Europa da década de 1930, Artaud cria o teatro da crueldade; Gödel formula a matemática do indecidível.

29 Estadão. Semana de Arte de 22, O Estado de São Paulo, Caderno Cultura, 14 de fev de 1982, 185-190, 1982.

30 Artaud, A, op. cit. p.83.

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A incompletude se desenrola sob o argumento do paradoxo do mentiroso, que já vinha despertando a atenção dos matemáticos desde a virada dos sé-culos; mais tarde recebeu diversas versões, de acordo com o enquadramento matemático. O paradoxo de Richard foi a base de inspiração para a formula-ção da Incompletude. Como disse Gödel: “A analogia entre este resultado e a antinomia de Richard é imediatamente evidente”.31

4. O paradoxo de Richard

Começaremos por situar as controvérsias entre os matemáticos do início do século, que criaram um ambiente favorável à enunciação dos paradoxos. Em seguida, analisaremos a carta de Richard com a exposição do paradoxo e a retomada deste argumento no artigo de Gödel.

4.1 Conjuntura de enunciação

Em junho de 1905, Jules Richard enviou carta ao editor da Revista Geral de Ciências, chamando atenção para certas contradições a respeito da teoria geral dos conjuntos presentes em uma publicação anterior. Pouco tempo antes, em 1901, Bertrand Russell, também havia se surpreendido com a percepção de uma contradição na teoria dos conjuntos. Diferente de Ri-chard (professor do ensino médio no Liceu de Dijon), Russell provinha de uma família aristocrática, com amplo trânsito no ambiente acadêmico. Era reconhecido como um filósofo matemático, não como um professor; tinha a oportunidade de discutir e trocar correspondências diretas com os renoma-dos pensadores de sua época. Em carta, comunicou o paradoxo a Gottlob Frege. Outros importantes filósofos e matemáticos, como Poincaré, Peano e Hilbert se envolveram na discussão do paradoxo apontado por Russell. No texto que segue a carta de Richard, há um comentário editorial situando o seu enunciado ao lado da formulação de Russell e argumenta que o assunto mobilizou as mentes dos matemáticos.32

31 Gödel, K. On formally undecidable propositions of principia mathematica and related systems. In: Davis, M. The Undecidable: Basic Papers on Undecidable Propositions, Unsolvable Problems and Computable Functions, New York: Dover Publications, 1965, p.5.

32 Olivier, L. Chronique et correspondance. Revue générale des sciences pures et appliquées v.12 n.16, 541-542, 1905.

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Mas, se o paradoxo de Russell foi recebido pelos filósofos matemáticos como um alerta de perigo, o de Richard despertou desconfianças. Poincaré en-xergou circularidade no argumento pela definição autorreferente do conjunto.33 Peano incomodou-se com a carga linguística do enunciado e afirmou que não se tratava de uma questão matemática.34 Os tempos eram de intensa busca por regras e formalizações visando à segurança e à solidez do aparato matemático, como defenderia Hilbert, em seu discurso de 1925.35 Numa atmosfera de rigor, o emprego da “lingua commune” não transitava bem entre os matemáticos, daí a conveniência de expatriar da matemática o enunciado de Richard.

Ainda assim, em 1921, mencionando o enunciado de Richard dentre ou-tros, Hermann Weyl criticou a atitude de negligenciar os paradoxos. Em Sobre a nova crise nos fundamentos da matemática, seus argumentos se misturavam à conjuntura do pós-guerra, em um estilo completamente incomum na comu-nicação entre os acadêmicos matemáticos. Dirk van Dalen comentou que o texto de Weyl soou como um manifesto para a comunidade matemática.36 Ele fez uma relação direta da guerra e da economia com as proposições matemá-ticas, o que foi perfeitamente compreendido por quem vivia aquele momento de instabilidade. Por exemplo, comparou o uso clássico das declarações exis-tenciais com o uso do papel-moeda. Para Dirk van Dalen, Weyl se utilizou de uma metáfora política para explicar a matemática e dirigiu uma descompos-tura aos matemáticos que se negavam a considerar os paradoxos como uma questão fundamental na matemática:

De fato, toda reação sincera e honesta deve levar à percepção de que os problemas na fronteira da matemática devem ser julgados como sintomas, nos quais o que se esconde no centro do brilho superficial e da atividade branda vem à luz - nomeadamente a instabilidade no interior dos funda-mentos sobre as quais repousa a estrutura do império.37

33 Idem.

34 Kennedy, H. Peano: Life and works of Giuseppe Peano. London: Reidel Publishing Company, 1980, p.120.

35 Hilbert, D. op. cit. 1984.

36 Van Dalen, D. Hermann Weyl’s Intuitionistic Mathematics, The Bulletin of Symbolic Logic v.1 n.2, 1995.

37 “Indeed, every earnest and honest rejection must lead to the insight that the troubles in the borderland of mathematics must be judged as symptoms, in which what lies hidden at the centre of the superficially glittering and smooth activity comes to light - namely the inner instability of

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Aqui entendemos o manifesto de Weyl para além de uma metáfora políti-ca. A metáfora expressa uma relação de semelhança (subordinação). Weyl percebeu a similitude entre essas conjunturas, de modo que a compreensão conjunta de ambas permitiu-lhe perceber modos de pensamento que tiveram suas manifestações num campo e no outro. É em função dessa similitude (e não da semelhança) que argumentamos em favor de abordagens interdiscipli-nares: compreensões imbricadas em diversos campos de saber.

Uma década depois, em 1931, Weyl finalmente veria uma abordagem bre-ve e marcante dos paradoxos na matemática. Kurt Gödel situou o enunciado de Richard no âmago de um dos resultados mais importantes da matemática, a Incompletude. Gödel foi direto em seus argumentos e já no primeiro pará-grafo deixou claro que provaria a Incompletude: a impossibilidade do pro-jeto totalizador da matemática: “É mostrado [...] que, em ambos os sistemas mencionados, existem de fato problemas relativamente simples na teoria dos números que não podem ser decididos a partir dos axiomas.”38

É importante notar que a discussão de Gödel se encontra num contexto que, historicamente, se inicia no ocaso do século XIX e tem seu auge na primeira metade do século XX. Os problemas abordados nesse período podem ser organizados em três categorias: a) o status ontológico dos objetos matemáticos; b) a natureza de um sistema matemático; c) a justificação da vali-dade; seja de uma prova ou de uma teoria.

No que diz respeito ao primeiro tópico, discutia-se se eles deviam ser tomados como construtos mentais que, no entanto, num acepção neokan-tiana, seriam transcendentais, tal como argumentavam os intuicionistas. Uma segunda abordagem, a dos formalistas, argumentava que seriam simples entes linguísticos. Já uma terceira posição, que é a do logicismo, afirmava que se-riam entidades platônicas. Em relação aos sistemas matemáticos, discutia-se se eles deviam ser entendidos como um sistema construtivo formalizável, de índole formal abstrata, manipulado por regras algorítmicas ou, por último, como um sistema axiomático interpretado. Já quanto ao problema da vali-dade, as posições básicas se tensionavam entre justificar que o sistema seria

the foundations, upon which the structure of the empire rests.” Weyl, H. Über die neue Grun-dlagenkrise der Mathematik, Mathematische Zeitschrift 10, 1921, p.37-79, In From Brouwer to Hilbert: The debate on the foundations of mathematics in the 1920s, Mancosu, P., Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 86-118.

38 “It is shown below that [...] in both the systems mentioned there are in fact relatively simple problems in the theory of ordinary whole numbers which cannot be decided from the axioms.” Gödel,,K. op.cit., p. 6.

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consistente com critérios construtivos, que a consistência seria obtida por meio de uma demonstração capaz de ser representada no próprio sistema ou que a consistência seria fornecida por modelos semânticos.

Durante grande parte do curso do século passado, os embates entre as três escolas acima mencionadas (logicismo, intuicionismo e formalismo) se deu de forma intensa. No entanto, o interesse por esses problemas diminuiu na me-dida em que os matemáticos profissionais foram se desligando desses debates.

4.2 O paradoxo de Richard

“Recebemos de M. J. Richard, professor no Liceu de Dijon, a carta seguin-te”.39 Após esta breve introdução do editor da revista, segue-se a exposição de Richard, onde o autor promete encontrar uma contradição semelhante às verificadas na teoria dos conjuntos. Ele começou definindo uma enumeração de sequências finitas de letras do alfabeto francês, organizando as sequências por tamanho e arrumando sequências do mesmo tamanho em ordem lexico-gráfica. Nesta lista estarão os enunciados de qualquer proposição matemática, incluindo a definição de números. Então ele propôs: “Tiremos de nossos ar-ranjos todos aqueles que não são definições de números”; passou a nomear a nova lista como o conjunto E, identificando os elementos em sua ordem com u1, u2, u3 etc. Concluiu daí que “todos os números que podemos definir a partir de um número finito de palavras formam um conjunto enumerável”. A contradição é arquitetada pela definição de um número que difere em um dígito de qualquer número da lista:

Eis aqui a contradição: podemos formar um número que não pertence a esta enumeração. Seja p o nésimo decimal do nésimo número do conjunto E; formemos um número que tenha zero como parte inteira e, como nésimo de-cimal, p+1 se p não for igual nem a 8 nem a 9, e unidade no caso contrário.

39 “Nous avons reçu de M. J. Richard, professeur au lycée de Dijon, la lettre suivante” Olivier, L. op. cit.

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Esse número N não pertence ao conjunto E. Se ele fosse o nésimo número do conjunto E, seu nésimo dígito seria o nésimo dígito decimal deste número, o que não é. Seja G o grupo das letras entre aspas. O número N é definido pelas palavras do grupo G, quer dizer, por um número finito de palavras; ele deveria portanto pertencer ao conjunto E. Vimos que ele não pertence. Tal é a contradição.40

A estratégia de Richard encontra antecedente na matemática. Ao final do sé-culo XIX, ocupado em mostrar que o conjunto dos números reais não é con-tável, Georg Cantor elaborou o mecanismo geral que mais tarde veio a ser utilizado em diversas provas e hoje é conhecido como argumento diagonal. O argumento pode ser resumido no que se segue: dada uma propriedade definidora de uma lista de números, inventar um novo número que cumpre com aquela propriedade (portanto pertencente à lista), mas é construído de maneira a diferir, em pelo menos um dígito, de todos os outros elementos da lista (portanto não pode pertencer a ela). Na versão de Richard, a propriedade definidora é um enunciado em francês. Em outras versões, como na prova de Cantor ou no paradoxo de Russell, a propriedade definidora é descrita formalmente. Num caso ou no outro, há dois planos distintos: aquilo que se compreende a partir da propriedade definidora e o que se compreende pelo que aparece explicitamente na lista. Como na análise de Foucault sobre a obra de Magritte (seção 2), a separação entre uma referência e a representa-ção. Vemos aqui que a ruptura que ocorre no campo das artes na Europa do início do século XX também está na matemática.

Conforme foi dito aqui, Foucault identificou também um segundo prin-cípio da tradição ocidental que Magritte subverte: “a equivalência entre o fato da semelhança e a afirmação de um laço representativo”.41 Magritte rompeu com o segundo princípio quando contrapôs laço representativo e fato da semelhança a partir de uma negação: “Isto não é um cachimbo”. Os

40 “Voici maintenant où est la contradiction: On peut former un nombre n’appartenent pas à cet ensemble. Soit p la n-ième décimale du n-ième nombre de l’ensemble E; formons un nombre ayent zéro pour partie entière, et pour n-ième décimale, p + 1 si p n’est égal ni à 8 ni à 9, et l’unité dans le cas contraire. Ce nombre N n’appartient pas à l’ensemble E. S’il etait le n-ième numéro de l’ensemble E, son n-ième chiffre serait le n-ième chiffre décimal de ce nombre, ce qu’il n’est pas. Je nomme G le groupe de lettres entre guillemets. Le nombre N est défini par les mots du groupe G, c’est-à-dire par un nombre fini de mots; il devrait donc appartenir à l’ensemble E. Or, on a vu qu’il n’y appartient pas. Telle est la contradiction.” Richard, J., op.cit.

41 Foucault, M, op.cit., 1998, p. 42.

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matemáticos procedem da mesma forma quando partem da propriedade de-finidora da lista (fato da semelhança) e produzem um objeto que não pode estar na lista (negação do laço representativo).

Richard prosseguiu:

Mostremos que esta contradição não é mais que aparente. Retomemos nossos arranjos. O grupo de letras G é um desses arranjos; ele estará na minha tabela. Mas, no lugar que ele ocupa, ele não faz sentido. Ele tem a ver com o conjunto E, e este não está definido. Eu deveria portanto o tirar. O grupo G não tem sentido a menos que o conjunto E seja totalmente definido, e este não o é, a não ser por um número infinito de palavras. Não há portanto contradição.42

Ele faz contracenar o grupo “G” de arranjos de letras com o conjunto “E”, também de arranjos de letras, mas onde cada arranjo é uma propriedade definidora de número. Para ele, é “E” quem dá sentido a “G”, e como “E” não está completamente definido, a contradição não se configura. Como Foucault deixou claro, na tradição ocidental “o essencial é que o signo verbal e a repre-sentação visual não são jamais dados de uma vez só”.43 Magritte rompeu esse princípio ao introduzir a legenda no próprio quadro. E o fez rompendo o elo mimético entre o que se vê e o que se diz. Richard não chegou a mencionar com clareza essa junção de planos, mas percebeu a falta de um mapeamento entre a “lingua commune” e a matemática, o laço representativo que as si-tuaria num mesmo plano. Com essa ausência, Richard entregou a Poincaré o argumento do círculo vicioso:

Depois de ter exposto a antinomia que chamamos de antinomia Richard, ele dá a explicação. (...) E é o conjunto de todos os números que podem ser definidos por um número finito de palavras, sem apresentar a noção do con-junto E em si. Caso contrário, a definição de E contém um círculo vicioso.44

42 “Montrons que cette contradiction n’est qu’apparente. Revenons à nos arrangements. Le grou-pe de lettres G est un de ces arrangements; Il existera dans mon tableau. Mais à la place qu’il occupe, il n’a pas de sens. Il y est question de l’ensemble E, et celui-ci n’est pas encore défini. Je devrais donc le biffer. Le groupe G n’a de sens que si l’ensemble E est totalment défini, et celui-ci ne l’est que par un nombre infini de mots. Il n’y a donc pas de contradiction.” Richard, J. op.cit.

43 Foucault, M, op.cit., 1998, p. 40.

44 “Aprés avoir exposé l’antinomie que nous avons appelée l’antinomie Richard, il en donne l’ex-plication.(...) E est l’emsemble de tous les nombres que l’on peut définir par un nombre finit de

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A Peano, ele entregou o argumento que posicionou seu enunciado como uma confusão linguística:

Um elemento que é fundamental na definição de N, não pode ser definido de forma exata (de acordo com as regras da matemática). A partir de um elemento que não está bem definido podem deduzir-se muitas conclusões auto-contraditórias.45

Assim Richard deu a dica para o desprestígio de seu enunciado, mas também entregou a Gödel o coração da incompletude, que viria a ser formulada pou-co menos de três décadas mais tarde.

Em seu artigo de 1931, Gödel considerou que um sistema formal se define a partir de um conjunto finito de símbolos e que os enunciados, assim como as provas formais, são sequências finitas destes símbolos. Ele considerou um mapeamento entre símbolos do sistema e números, um laço representativo. Considerou também que os enunciados referentes à matemática (metamatemá-ticos) são também expressos a partir de um conjunto finito de símbolos básicos e, portanto, podem ser numerados e identificados por estes números. Assim, ele partiu para a definição de um laço representativo que transformaria em números tanto os enunciados matemáticos e provas, como também os enuncia-dos metamatemáticos. Foi com esta estratégia que Gödel contrapôs o primeiro princípio que mais tarde seria indicado por Foucault: matemática e metamate-mática de uma só vez, como uma legenda que faz parte do próprio quadro. A objeção de Poincaré sobre a circularidade mereceu uma nota de rodapé:

Apesar das aparências, não há nada de circular sobre essa proposição, uma vez que começa por afirmar a não probabilidade de uma fórmula totalmente determinada (ou seja, a q-th no arranjo alfabético com uma substituição defi-nida), e somente posteriormente (e de alguma forma por acaso) surge que esta fórmula é precisamente aquela pela qual a própria proposição foi expressa.46

mots, sans introduir la notion de l’ensemble E lui-même. Sans quoi la definition de E contiendrait un circle vicieux.” Poincaré, H. op.cit., p. 48.

45 “One element, which is fundamental in the definition of N, cannot be defined in an exact fashion (according to the rules of mathematics.) From an element that is not well defined may be deduced many self-contradictory conclusions” Kennedy,H., Peano: Life and works of Giuseppe Peano, London: Reidel Publishing Company, 1980, p.120.

46 “In spite of appearances, there is nothing circular about such a proposition, since it begins by asserting the unprovability of a wholly determinate formula (namely the q-th in the alphabetic

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A objeção de Peano sobre confusão linguística foi anulada pela transfor-mação em números dos enunciados metamatemáticos.

Para mostrar a indecidibilidade, Gödel buscou uma fórmula “A” de modo que nem “A” nem a negação de “A” pudessem ser provadas no sistema. Ele considerou um enunciado que afirma sua própria improvabilidade: “Este enunciado não tem prova”. Se for verdadeiro, então, como ele próprio afirma, não pode ser provado no sistema (pois este é incompleto). Se o enunciado for falso, então é contraditório (o sistema é inconsistente). Gödel ressalta a analogia desta prova não somente com o paradoxo de Richard, como também com o paradoxo do mentiroso (Epimênides, 600 a.C.).

5. Conclusão

Minto! Neste exato instante em que pronuncio “minto”, se digo a verdade, então minto; portanto, o que digo é falso. Mas, sendo falso, não é o caso que minto; portanto, digo a verdade.

A tradição ocidental é marcada pelo fortalecimento de uma concepção totalizadora cujas origens remonta à Grécia Antiga. Já em Os elementos (400 a.C.), Euclides de Alexandria afirmava que o todo é maior do que as partes. Mas demarcar o todo significa também demarcar o nada; disso decorre o esta-belecimento de uma fronteira precisa que determina o que está dentro, o que está fora. Há aqui a afirmação de uma concepção dicotômica que se traduz no pensamento matemático pelas regras da lógica clássica: a não contradição [não (p e não p)] e o terceiro excluído (p ou não p), que já aparecem em Aristóteles, na Metafísica.

Esta racionalidade totalizadora – consequentemente, dicotômica – forta-leceu-se na era moderna, ao longo dos séculos, e alcançou o século XX nesta perspectiva que exige clareza na distinção entre o verdadeiro e o falso. O que possibilita esta distinção é a negação. Ao lado disso, a necessidade de totali-zação traz para o matemático a urgência de compreender o infinito, descrever de forma finita um conjunto infinito, ou seja, o infinito domesticado pela linguagem, o infinito completado. O mecanismo que os matemáticos dispu-nham para fazer isso eram as definições recorrentes.

arrangement with a definite substitution), and only subsequently (and in some way by accident) does it emerge that this formula is precisely that by which the proposition was itself expressed.” Gödel, K. op.cit. p. 6.

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Vemos aqui dois princípios que estão na base da matemática da era mo-derna: (a) duas possibilidades únicas e excludentes; (b) dois planos: o que é dito e a recorrência sobre o que é dito pela autorreferência. Mas estes são também os padrões que Foucault identificou na tradição da pintura ocidental, onde o primeiro princípio demanda duas possibilidades únicas e excludentes (representação plástica e referência linguística) e o segundo, a recorrência, caracteriza um laço (que afirma a semelhança). Magritte desataria o laço.

A ruptura desses princípios, mostrou Foucault, gera estranhezas no cam-po das artes. No campo da matemática vemos que a mudança da relação entre (a) e (b) fornece a chave para a construção dos paradoxos do tipo do menti-roso: Minto ou falo a verdade, um confronto entre duas possibilidades únicas e excludentes. Pronuncio “minto” ao mesmo tempo em que exerço (ou não) a mesma ação que menciono: um confronto entre dois planos, o que é dito e a recorrência sobre o que é dito.

É este o padrão dos paradoxos: o conjunto dos conjuntos que não pertencem a si próprios (na versão de Russell), o enunciado que afirma a sua própria improvabilidade (na versão de Gödel), o enunciado do número que não pode ser enunciado em linguagem natural (na versão de Richard).

No século XX, a radicalização da busca pela totalização criou grandes per-plexidades. Artaud percebeu: “Se o signo da época é a confusão, vejo na base dessa confusão uma ruptura entre as coisas e as palavras, as ideias, os signos que são a representação dessas coisas”.47 E, notando que a confusão é produtiva, ele completou: “[O] homem impavidamente torna-se senhor daquilo que ainda não existe, e o faz nascer. E tudo que ainda não nasceu pode vir a nascer contanto que não nos contentemos com ser simples órgãos de registro”.48 O artista fala de poiesis: um fazer que é criar, na acepção de dar existência ao que não há, tendo naquele existir uma permanente fonte de virtualidades. Ao olhar Mona Lisa, não sabemos se seu sorriso é de ironia ou complacência; não sabemos nem mesmo se ela sorri. Mas vemos que algo existe em invisibilidades circulantes para além da imagem que nos interpela, para além da tela, das cores e sua moldura. Damos testemunho desse existir, mesmo em face do inominável, do indeterminável; al-cançamos um todo que só pode conceber-se na infinitude de suas partes finitas. Trata-se da dobra do infinito que se faz conter no finito, o infinito completado.49

47 Artaud, A, op. cit., 2006, p.16.

48 Idem, p.2.

49 Foucault, M. op.cit., 2000.

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Os teoremas de Gödel prometeram tempos sombrios à matemática. O invisível tomou lugar no seio da confusão, mas como o invisível não esconde nada, em pouco tempo revelou caminhos: o mesmo paradoxo, expresso em termos de uma máquina abstrata, forneceria as coordenadas para a constru-ção do computador, marcando o início de novos tempos. Alan Turing (1936) reescreveu a prova de Gödel em termos do que denominou Máquina Uni-versal.50 Ela simula o funcionamento de uma outra máquina cuja descrição lhe é dada como entrada (é exatamente o princípio do computador do nosso tempo; ele simula o comportamento de um programa que lhe é dado como entrada e armazenado na memória). Desta forma, Turing incorporou à má-quina a mesma recorrência de enunciados como o paradoxo do mentiroso. A negação também está presente: a máquina universal que simula uma outra é concebida de forma a corrigir a saída desta segunda para zero, no caso em que resultaria 1; e corrige para 1 em qualquer outro caso. Dado este esquema, o que acontece quando a Máquina Universal recebe como entrada a descrição de si própria? Ela retorna zero, havendo retornado 1. Contradição!

Coincidências, embaraçamentos, similaridades entre artes e matemáticas acompanham um dado tempo e um dado local, porque há modos de pen-samento a circular, assumindo formas diversas de expressão. Podem inspi-rar pinturas no meio artístico, enquanto que no meio matemático podem inspirar teoremas e fórmulas. Se “a verdade é desse mundo”,51 como disse Foucault ao reforçar o seu caráter histórico, por que a matemática não ha-veria de ser? A obra de arte total de Wagner não demorou a mostrar seus limites: os primeiros encenadores, como Appia e Meyerhold no início do século XX, apontaram a abertura do “total” para a incompletude, ao verem no espectador um elemento ativo de atribuição de sentido. As explorações de Artaud explodem as crenças da modernidade e avançam para a cena contem-porânea, cuja potência se encontra justamente no dobrar-se e redobrar-se da linguagem com o seu “fora”: o espaço-tempo da cena é uma fita de Möbius. A incompletude funda uma matemática do mesmo modo voltada para articu-lar representações e simulacros, numa linguagem liberta das normatizações totalizantes; pode-se, neste horizonte, pensar em matemáticas contempo-râneas, desierarquizadas, não baseadas em sistemas fixos. Gödel inaugura

50 Alan Turing, On computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem, In: Proceedings of the London Mathematical Society v.2 n.42,1936.

51 Foucault,M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Editora Graal, 2013, p.52.

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uma epistemologia de grandes consequências para a própria ideia de ciência, pondo a nu seus mecanismos políticos de dominação do pensamento. A an-tropofagia de Oswald serve hoje de campo de explorações para uma arte de comprometimento com a decolonialidade.

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* Instituto Federal de Educação da Bahia (IFB). Contato: [email protected]

O que nos fazem pensar Exu e Criolo?

What makes us think Exu and Criolo?

Resumo

Dialogo com a Tese de doutoramento intitulada “Nos (Des)Caminhos da Exu: poética: As encruzilhadas afrossurrealistas da criação de Criolo”1. Produzo comentários à moda de Roland Barthes2 e enxerto minha leitura à tese, buscando um efeito de transbordamento textual. No presente texto que não é mais do que um possível prefácio ou uma nota de rodapé, para refletir sobre a tese em tela, utilizo-me de uma “an-arquitetura3” derridiana e, ao seguir os rastros da escritura de Andrade, componho um pensamento outro nos limites da forma de pensar, de articular e de escrever uma tese. Trata-se de uma “promessa” sustentada por um texto-comentário, um “enxerto” generalizado, cujo movimento não tem começo, não tem fim nem certezas que não sejam contingenciais, acenando para “um discurso outro”.

Palavras-chave: rastros; escritura; transbordamento; enxerto.

1 ANDRADE, L. T. Nos (des)caminhos da Exu-poética: as encruzilhadas afrossurrealistas da cria-ção de Criolo. 156f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020.

2 BARTHES, R. S/Z. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 42.

3 HADDOCK-LOBO, R. Considerações sobre “Posições” de Derrida. O que nos faz pensar, Pontifícia Universidade Católica (PUC), Rio de Janeiro. [S.l.], v. 16, n. 21, p. 66-77, july 2007. ISSN 0104-6675.

Recebido em: 27/06/2020 – Aceito em: 20/12/2020

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Abstract

I interact with the doctoral thesis titled “Nos (Des)Caminhos da Exu: poética: As encruzilhadas afrossurealistas da criação de Criolo”. I produce commentaries in the style of Roland Barthes, and graft my reading to the thesis seeking a textual overflow effect. In the present text, that is nothing more than a possible preface or a footnote to reflect upon a thesis on a canvas, I use a derridian “an-architecture” and, upon following the traces of Andrade’s writing, compose another thought at the edge of a way of thinking, to articulate and write a thesis. It’s about the

“promise” sustained by a text-commentary, a general “grafting” where movement does not have a beginning, an end and not even the certainty of contingencies, which points us to “another discussion”.

Key-words: traces; scripture; overflow; graft.

1. Abrir a gira: caminhos de uma “an-arquitetura”

Em seu texto de qualificação para o doutoramento, Lucas Toledo de Andrade objetivava pensar a produção do artista Kleber Cavalcante Gomes, mais co-nhecido como Criolo. Naquele momento, presente à banca de qualificação, pude acompanhar os interesses, os desejos e as angústias teóricas do dou-torando. Seu estudo se desdobrou em um trabalho de Tese4, o qual passo a comentar, buscando com ele conversar, ou seja, dar voltas no pensamento, tanto quanto evocar análise e reflexão crítica. Valendo-se de ideias descons-trucionistas derridianas, de narrativas mitológicas do orixá Exu, do entre-

-lugar de Silviano Santiago, da crítica pós-estruturalista, de relações criadas entre o signo natural e o signo saudável, da ideia de texto escrevível barthe-siano, o trabalho de doutoramento de Lucas Toledo de Andrade5 erigiu-se

4 Utilizo-me desse vocábulo com letra maiúscula quando me referir à ideia central defendida no trabalho cujo gênero textual é tese de doutorado.

5 ANDRADE, L. T. Nos (des)caminhos da Exu-poética: as encruzilhadas afrossurrealistas da cria-ção de Criolo. 156f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020. BARTHES, R. S/Z. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

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como um ebó palavreiro e anticolonial, arriado à Academia, detidamente ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual de Londrina, sob a colaboração da Dra. Cláudia Camardella Rio Doce.

O trabalho em tela se contrapõe à insistência ignorante da Academia em reproduzir conhecimentos empoeirados de cinco países do globo terrestre, a saber: Itália, França, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos6. Ao contestar a hegemonia epistêmica ocidental, branca, falocêntrica, Andrade aciona sabe-res decoloniais e do Sul7, aproximando-se de escritores como o camaronês Achille Mbembe8 e os brasileiros Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino9.

Ainda que sejam expressões acanhadas se comparadas com a totalidade de autores manejados na tese, é evidente o esforço em, ao trabalhar com Exu e sua poética, rasurar os valores dominantes, do status quo, das estruturas da “jaula de aço”10, das ideologias totalitárias e do binarismo que estão no cerne da me-tafísica. Ao problematizar a metafísica, aproxima-se do chamado giro decolo-nial11 que altera nosso olhar para pensar pari passu Modernidade/Colonialidade. Como sabe que a modernidade é uma outra face da colonialidade, não se inte-ressa por fazer avançar seu projeto, porque segue destruindo vidas e atando-se a uma civilização que produz mortes: a Europa prossegue indefensável.

Especificamente se debruçando sobre “Ainda há tempo” – e em sua relei-tura de 201612, “Nó na orelha”13, “Convoque seu buda”14, os singles “Boca de

6 GROSFOGUEL, R. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Sociedade e Estado. vol.31 no.1 Brasília Jan./Apr. 2016, p. 26.

7 Santos, B. S. ; Meneses, M. P. Epistemologia do Sul. São Paulo: Cortez Editora, 2010.

8 MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1 edições, 2018.

9 RUFINO, L.; SIMAS, L. A. Fogo No Mato: A ciência encantada das macumbas. 1. ed. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.

10 LÖWY, M. A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano. São Paulo: Boitempo, 2014, p.55

11 GROSFOGUEL, R. op. cit., 2016, p. 26.

12 CRIOLO. Ainda há tempo. São Paulo: Oloko Records, 2016. 1 CD. (28 min. 18 seg.); CRIOLO. Ainda há tempo. São Paulo: SkyBlue Music, 2006. 1 CD. (69 min. 47 seg.).

13 CRIOLO. Nó na orelha. São Paulo: Oloko Records, 2011. 1 CD (51 min. 25 seg.).

14 CRIOLO. Convoque seu Buda. São Paulo: Oloko Records, 2014. 1 CD (31 min. 41 seg.).

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lobo”15 e “Etérea” (2019), os videoclipes “Mariô”16 e “Boca de lobo”, a revisão promovida por Lucas Toledo se interessou por compreender que caminhos sensíveis Criolo poderia, enquanto artista, oferecer-nos para a realização de discussões sobre a Literatura e a Arte, em um tempo marcado por crises das mais variadas ordens, sejam elas humanitárias, climáticas, econômicas, agra-vadas ainda mais por pandemias e pandemônios.

Uma digressão e seus registros me devem ser permitidos, porque, como fora divulgado, em 16 de junho de 2020, o Brasil já contava com 44.657 mortos por Coronavírus (Covid-19). O total de casos diagnosticados passava dos 900.000, número levantado por um consórcio de veículos de imprensa junto às secretarias municipais e estaduais de Saúde porque o governo federal alterou a forma como contabilizara os dados até então. Os casos, até a saída do segundo Ministro a ocupar a pasta – por menos de um mês –, Nelson Tei-ch, eram anunciados em horário estabelecido, atendendo a regras de transpa-rência e acesso à informação. Segue-se que, por recomendação do Ministério da Saúde, órgão ocupado interinamente por Eduardo Pazuello, general de divisão do Exército Brasileiro e político brasileiro, a divulgação dos dados foi alterada. Além do que, indica o referido Ministério a ampliação do uso de um medicamento para o tratamento e profilaxia de malária, a cloroquina (também para gestantes e crianças) mesmo sem justificativa científica plau-sível. Em meio a este cenário no qual decisões políticas suplantam pesquisas médicas, uma militante apoiadora do Presidente da República, Jair Bolsonaro, teve prisão autorizada por um dos ministros do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, no âmbito de inquérito que apura atos antidemocráti-cos. O Ministro da Educação, Abraham Weintraub, foi multado por não usar máscara em manifestações em Brasília, no domingo, dia 15. O que estou a afirmar é que o cenário de pandemias e pandemônios, por conta de flexibi-lização no distanciamento social, ganha volume, sinalizando para aumento ainda maior no número de contaminados e de mortes17.

15 CRIOLO; GANJAMAN, D. NAVE. Boca de lobo. 2018. (3 min. 46 seg.). Disponível em: http://www.criolo.net/eterea/. Acesso em: 2 ago. de 2019.

16 CRIOLO; DINUCCI, K. Mariô. In: CRIOLO. Nó na orelha. São Paulo: Oloko Records, 2011. 1 CD. Faixa 4. (5 min. 45 seg.).

17 Disponível em https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/305052/recomendacao-para--ampliar-uso-da-cloroquina-nao-te.htm. Também sugiro conferir: https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/304993/militante-apoiadora-de-bolsonaro-e-presa-weintraub.htm. Acesso em 16 de jun. de 2020.

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Retornando da digressão, o texto de Lucas Toledo de Andrade aponta para outro pandemônio: o cabedal teórico mobilizado na tese que refletiu a

“confusão”, a “balbúrdia”, o “caos” imagético, sonoro e temático proposta pela criação artística de Criolo. Andrade se utilizou do movimento afrossurrealista estadunidense, e ao mesmo tempo dele se esquivou porque, apesar de ser

“chave-teórica interessante para pensar a cultura negra contemporânea, esse movimento preocupa-se, sobretudo, com o universo negro estadunidense e com as experiências negras daquele território”18. Percebeu, portanto, que o movimento ianque estava mais próximo de homogeneizar pluralidades ne-gras, o que não se prestaria a um estudo focado em Criolo e Exu.

A tese aqui comentada reflete sobre questões fundamentais para as Ciências da Literatura, os Estudos da Linguagem, a Filosofia, as Artes, os Estudos Étni-co-Raciais, pois se comprometeu em pensar, em termos nacionais, uma forma de linguagem que, por meio das vivências negras, questionasse a ordem vigente. Esse problema-pesquisa levou o autor a trabalhar com uma “an-arquitetura” de Criolo, qual seja a “Exu-poética”. Trata-se de uma “an-arquitetura” porque não trabalha com um “objeto” físico, cuja arquitetura clássica apontaria para formas bem definidas e harmonia simétrica entre as partes, senão com uma noção nascente (um conhecimento sintético, quase intuitivo), construída a partir de rastros de Criolo e de Exu. Não à toa, Andrade buscou desenvolver e encontrar uma forma de lidar com seu Criolo-Exu, por meio de uma linguagem poética, que se performativiza como Exu e nasce do olhar para as encruzilhadas e la-birintos existentes na obra de Criolo como um todo: imagens poéticas criadas pelas suas composições, clipes, ritmos e performances em apresentações.

Com todas as nuances que o vocábulo “trabalho” possa ter – “dor”, “sofri-mento”, “instrumento de tortura”, ou como nos terreiros de Axé, “ebó”, “oferen-da”, “entregar um trabalho em uma encruza” – ao evocar Exu e a ele legar seu ebó de palavras, vai longe esse discurso que parece-nada-querer-dizer, porque a Exu-poética pretende-se “desconcertante e de infinitas possibilidades (...) um campo aberto para diálogos, transformações, contaminações, um ‘texto escre-vível’, no qual perspectivas diversas convivem, se alimentam mutuamente”19.

18 ANDRADE, L. T. Nos (des)caminhos da Exu-poética: as encruzilhadas afrossurrealistas da cria-ção de Criolo. 156f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020, p. 13.

19 ANDRADE, L. T. Nos (des)caminhos da Exu-poética: as encruzilhadas afrossurrealistas da cria-ção de Criolo. 156f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020, p. 133.

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O pensamento crítico e fronteiriço, não essencialista produzido por An-drade, suspende a barra opositora e hierárquica (bem/mal; homem/mulher), abre Criolo à vertigem e ao transe ritualístico (dos shows, turnês e dos ritos acadêmicos para o doutoramento) por meio de uma Exu-poética. Evita o pe-rigo de um Exu negro africano voltado para si mesmo, fraterno com a África e xenófobo de si mesmo, potencializa uma an-arquitetura teórica – estou para-fraseando Jacques Derrida20 e Rafael Haddock-Lobo21 –, que não se coaduna com qualquer começo absoluto e, portanto, com qualquer arquia. Inteira-mente consumado à leitura, por meio de apropriação, deglutição, simbiose, semiose com outros textos e teorias, o Exu de Andrade remete-se não a um centro, senão à sua própria escritura e aos problemas da tese.

A escritura não se imanta a um movimento que se opõe à fala, tampouco está ligada à literatura ou à comunicação como na escrita. Próxima a um instrumento de análise barthesiano, de autoanálise, é uma noção que permite reconhecer traços que definem certos textos como particulares. Conforme ensina Leyla Perrone-Moisés, a escritura produz “transbordamento”, “arreba-tamento do estilo para outras regiões da linguagem e do sujeito, longe de um código literário classificado” 22.

Espalhado que está pelo mundo, Exu não se interessa por conservadoris-mos e armaduras francamente fascistas, cujo objetivo tem sido o de recusar a imigração, o acontecimento e as misturas. Não seria razoável erigir um Exu que parte da leitura de Criolo, a negar a multiplicidade e a mistura de si mesmo. Daí, defender aqui que fora acometida a tese de Andrade de uma

“an-arquitetura”23. Sua escrita baseada na afirmação do plural, não poderia tra-balhar na chave do “respeito” do Texto: o texto tutor (qual? Criolo? Exu?); o texto de saída, foi desde já quebrado, interrompido, em total “desrespeito”24, cujo movimento-comentário para sempre inacabado não se assenta em um começo absoluto, linear, hierárquico e causal, ou seja, não remete senão à própria escritura-comentário.

20 DERRIDA, J. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

21 HADDOCK-LOBO, R. Considerações sobre “Posições” de Derrida. O que nos faz pensar, Ponti-fície Universidade Católica (PUC), Rio de Janeiro. [S.l.], v. 16, n. 21, p. 66-77, july 2007.

22 PERRONE-MOISÉS, L. Com Roland Barthes. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 60.

23 HADDOCK-LOBO, R. op. cit., p. 67.

24 BARTHES, R. S/Z. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 48-49.

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Aí está a originalidade da tese de Lucas. Sei que devo usar essa palavra entre aspas, mas, uma dúvida ainda me toma de assalto: aspear “originalida-de”, “tese”, ambas, ou como faz Jacques Derrida, todas? De todo modo, Lucas ao se utilizar da dinâmica fragmentada e para além de qualquer possível definição de Exu, “an-arquiteta” um Exu-poético, uma Exu-poiesis, dentro da ordem do discurso acadêmico, abrindo possibilidades ricas para que o leitor-autor possa ver a realidade discursiva que sustenta o texto-Brasil como passível de transformação.

2. Caminhos abertos para uma Exu-poiesis

O Exu de Lucas é poiesis. É todo ele uma Exu-poética que nasce e renasce por meio do seu olhar a fragmentos de vozes e às experiências elaboradas artisti-camente na obra de Criolo, num entre-lugar, numa différance com o afrossur-realismo estadunidense. O Exu de Lucas, por um lado, mantém firme a inter-pelação de um Exu-phármakon25, qual seja “o apelo à virtude mágica de uma força à qual se dominam mal os efeitos, de uma dinâmica surpreendente para quem queria manejá-la como mestre e súdito”26, por outro lado, enquanto me-táfora de linguagem artística de Criolo, desmascara, “valendo-se de sua alegria provocadora, o Brasil fraterno, feliz e harmonioso que convive bem com o di-ferente”. Denuncia e rompe com os binarismos e o ódio crescente e duradouro que, desde sempre, genocidas, massacram indígenas, negros, mulheres, os/as sujeitos/as cujas sexualidades são dissidentes. Seu Exu atrelado a Criolo é

“um ser mágico urgente em tempos como o que vivemos, esse espelho gritante do Brasil colonial”27, que anuncia uma compreensão aguda da violência e da opressão que forma a vida dos brasileiros, tendo como foco as vidas negras.

Digo foco, mas Lucas Toledo sabe que há um devir-negro no mundo, ou seja, um vir a ser negro que aponta para o esvaziar da distinção entre o hu-mano, a coisa e a mercadoria. E como dito por Achille Mbembe, por detrás da palavra “negro” se esconde

25 FERNANDES, A. O. Axé: Apontamentos para uma a-tese sobre Exu que jamais (se) escreverá. Tese (Doutorado) – UFRJ, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Ciência da Litera-tura (Literatura Comparada), 2015, p. 35.

26 DERRIDA, J. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 50.

27 ANDRADE, L. T. Nos (des)caminhos da Exu-poética: as encruzilhadas afrossurrealistas da cria-ção de Criolo. 156f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020., p. 12.

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o escândalo da Humanidade, o testemunho vivo, inquestionavelmente per-turbador, da violência do nosso mundo, e da desigualdade que é o seu prin-cipal motor, que impõe ao pensamento do nosso mundo e do devir humano as exigências indubitavelmente mais urgentes e mais radicais, a começar pela da responsabilidade e da justiça. A palavra “África” ocupa o lugar de uma negação fundamental destes dois termos.28

Na luta pela justiça e pela responsabilidade radical, capaz de curar dores, frear e dissolver desigualdades, Andrade sabe que o sofrimento e o pânico que in-vadem as cidades, não atingem apenas negros e negras, mas muitos indivíduos que se encontram em posição de subalternidade. A Exu-poética de Lucas se compromete, por meio da arte, em expandir nossa compreensão da realidade e da própria construção dos discursos históricos que sustentam as desigualdades.

Com o poeta Cuti se aprende que Orixás não tomam chás de academia. Estão atentos ao “ariânico afago” e se rebelam contra “folclóricas nuvens e teses / de negrófobas carícias”. Por falar em teses, Cuti também as levanta:

Teses

quantas doses de sambacabem numa garrafa de pinga?

com quantas evasivas se costura a fantasiaduma escola de samba?

quantas dores de escravotecem o macacão operário?

com quantos chicotes se fez o milionário?

quantos 20 de novembroo 13 de maio matou?

28 MBEMBE, A. As formas africanas de auto inscrição. Estudos Afro-Asiáticos, ano 23, n. 1, p. 171 – 209, 2001, p. 174.

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quanto ódio há sincretizadono racismo “democrático”?

quantas perguntas no enredo ainda faltam?29

Nesse poema, seu autor lança, irônico, crítico e sagaz, problemas fundamen-tais para as relações étnico-raciais e para os estudos acadêmicos. Se não é pos-sível, muito menos proveitoso, buscar responder aos questionamentos espe-cialmente aos últimos versos, importa desdobrar a proposta de Cuti, algo que Lucas Toledo de Andrade não deixou de fazer em seu texto de doutoramento. Ao nos contar acerca da marcante presença de Criolo em espetáculo realizado durante a turnê “Convoque seu buda”30, retratou um músico profundamente emocionado, que sente os instrumentos musicais e vivencia de forma perfor-mática a letra. Mas, não apenas,

indaga, usando as vestes brancas tão comuns nos cultos afro-brasileiros: “Por que tanto sofrimento? Por que tanta desigualdade no mundo? Por quê? Qual a desculpa que eles vão inventar amanhã? Será que vai ser uma des-culpa melhor que a de hoje pra te fazer esquecer a desculpa de ontem? Por que tanto sofrimento? Por que tanta fome no mundo? Por quê?31

Do afrossurrealismo à Exu-poética, Andrade analisou a produção de Criolo, álbuns, videoclipes, performances em shows, falas em entrevistas, compo-sições e ritmos como um signo saudável barthesiano32 que se desconstrói constantemente, rasurando o binário e o conservador texto-Brasil, a saber,

29 CUTI. Negroesia. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007, p. 71.

30 O espetáculo foi realizado em Paris, no ano de 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vvQrEY_eN-4. Acesso em 16 de jun. 2020.

31 ANDRADE, L. T. Nos (des)caminhos da Exu-poética: as encruzilhadas afrossurrealistas da cria-ção de Criolo. 156f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020, p. 133.

32 Entendo que o “signo saudável” se coaduna com a condição arbitrária da própria linguagem, negando-a como um construto neutro.

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narrativas que, por excelência, dominam as relações de poder no país, fun-cionando como um texto-Brasil que se pretende imutável e imaculável. Não é por acaso que no Brasil Colônia, no Brasil Império e no Brasil República, só foram alterados os nomes dos títulos, os nomes dos cargos e as formas de ocupação do poder, mas as estruturas e os discursos continuaram exa-tamente os mesmos, uma espécie de contínuo de uma história que faz que os donos das capitanias hereditárias sejam ainda no século XXI, os que mandam e desmandam nas relações de poder no país, escolhendo, ora ou outra, alguma “marionete” para falar e para representar os seus interesses, interesses seculares que se afirmam e fazem vítimas desde 1500.33

Repare-se como refuta e constrange a classificação binária e o discurso edul-corado que historicamente, como um mito, sequestrou subjetividades e nos contou sobre a existência de uma nação tropical, miscigenada, pacífica e har-mônica. Em suas palavras,

Exu enquanto metáfora de linguagem artística pode desmascarar, valendo--se de sua alegria provocadora, o Brasil fraterno, feliz e harmonioso que convive bem com o diferente, mostrando-o, na realidade, como um país sustentado por binarismos e ódios duradores que, desde sempre, oprimem e matam o índio, o negro, a mulher, a população LGBTQ+ e tudo aquilo que foge da pretensa noção de “ordem e progresso” que falsamente norteia as nossas relações. Sendo, por isso mesmo, um ser mágico urgente em tempos como o que vivemos, esse espelho gritante do Brasil colonial.34

A escrita de Andrade reverbera pressupostos dos Estudos Étnico-raciais35 porque não se furta a discutir, ainda que de modo inicial, as excludentes tramas tecidas na história do Ocidente, as quais sustentam ainda hoje, a so-ciedade brasileira, racista e discriminatória. Aproxima-se da Educação para

33 ANDRADE, L. T. Nos (des)caminhos da Exu-poética: as encruzilhadas afrossurrealistas da cria-ção de Criolo. 156f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020, p. 57.

34 ANDRADE, L. T. Nos (des)caminhos da Exu-poética: as encruzilhadas afrossurrealistas da cria-ção de Criolo. 156f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020, p. 11.

35 GONÇALVES, P. B. Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no Brasil. Educação, v. 63, n. 3, 2007.

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a Diferença36, cuja poiesis busca a perplexidade, um assombro permanente do olhar, a criatividade do pensamento e as artes da criação, as quais não se orientam para o mesmo, para a mesmidade, mas buscam construir um ou-tro possível que oscila atravessado permanentemente por sentidos múltiplos. Não enfatiza o quão diferentes somos em detrimento de quão igual somos, porque geraria graves mal-entendidos, cujas consequências, dentre outras se-ria a de roubar a dignidade das pessoas, haja vista dificultar o reconhecimen-to da nossa humanidade compartilhada e plural37. Enamora-se e trai, como haveria de ser, fiel na infidelidade, a desconstrução derridiana.

A desconstrução que não é método, não é teoria, não é ato, não é técnica, em certo sentido, é um conjunto em aberto de dispositivos que os textos de Jacques Derrida produzem para demonstrar a inviabilidade do discurso me-tafísico. Um pensamento que se abre à dúvida, à inferência, à pretensão de verdade, à perenidade, ao entre-lugar, ao provisório, ao entendimento crítico e problematizador de que os objetos são complexos e hetero-dinâmicos. Por isso, só tem sentido, em contextos intercambiáveis, como “promessa” não de uma verdade, mas de “invenção” na disjunção, na aporia, numa lógica alógica, segundo a qual os opostos hierarquizados são deslocados por meio de um

“enxerto” generalizado, cujo movimento não tem começo, nem tem fim, numa

relação direta com uma certa experiência do impossível, e tal experiência é atravessada pela indecidibilidade da aporia, a qual permanece aliada a um talvez, o qual permite a irrupção do acontecimento. Além disso, a experiência do impossível mantém sempre inventiva a abertura à vinda do outro, quem sempre está por vir38.

A desconstrução, esse nada que é tudo, exige um modo de pensar desnortean-te. Agencia uma postura questionadora, reflexiva, com vistas a ir “descosendo” a ordem simbólica em/e sua estrutura, demonstrando que não há, em si mes-mo, nenhuma verdade una, mas sempre “um discurso outro”, não originário,

36 SKLIAR, C. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

37 Fernandes, A. O. Axé: Apontamentos para uma a-tese sobre Exu que jamais (se) escreverá. Tese (Doutorado) – UFRJ, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Ciência da Litera-tura (Literatura Comparada), 2015, p. 146.

38 ZEVALLOS, V. P. Ética do impossível: uma reflexão a partir da desconstrução. O que nos faz pensar: Pontifície Universidade Católica (PUC), Rio de Janeiro. [S.l.], v. 28, n. 44, p. 170-189, jul. 2019, p. 172.

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“aquele” que “já” está sempre em transformação, diferido, adiado, para sempre, não dado, não fixo, mas “já” escapado e escapando-se, impossibilitado de se dar num presente-presente.

O Exu-Criolo de Lucas (e veja que são vários em “um” – que nunca é um apenas – mas tantos quantos os candomblés, as macumbas, as umbandas, os quilombos em diáspora) “abriga em si múltiplas significações e muitas formas de interpretação que vão para além de qualquer possibilidade de delimita-ção39”, cuja performance está marcada por ironia, paródia, ambiguidade, ir-reverência, carnavalização. Enquanto linguagem literária, provoca “estranha-mento”; enquanto poética, aproxima-se de um crítica pós-estruturalista e sua denúncia acerca-se da instabilidade da linguagem: nada de estruturas bem marcadas, “encerrando unidades simétricas de significantes e significados”40. Nada de origem como o ponto zero ao qual se deva retornar, mas encruzilha-das de possibilidades de sentidos em que imperam a mímesis, a performance, a cópia da cópia da cópia, o talvez, a irrupção de um acontecimento porvir. E toda tentativa de retorno para um suposto original vê-se frustrada. O retorno é cruzado, desviado, transviado, rasurado por uma cadeia de significantes, dentro da qual, a significação oscila entre um jogo de diferenças, marcado pela presença/ausência de sentido41.

Parece-me acompanhar o estudo aqui problematizado um provérbio pa-radoxal conhecido nos terreiros brasileiros: “Exu matou um pássaro ontem, com a pedra que arremessou hoje”. Esse adágio rompe com a temporalidade linear e com a metafísica da presença, reverbera o valor ético da postergação da presença e o modo como permite a vinda de uma “presença” muito dife-rente, qual seja a presença do outro.

Seria incoerente manter Exu em uma tese – orixá trickster, brincalhão e, ao mesmo tempo, ainda que paradoxalmente, senhor da Ordem42–, e arrogar-

-lhe uma origem ou um futuro como telos arraigados (origem e futuro) a uma

39 ANDRADE, L. T. Nos (des)caminhos da Exu-poética: as encruzilhadas afrossurrealistas da cria-ção de Criolo. 156f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020, p. 31.

40 EAGLETON, T. Teoria literária: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 139.

41 FERNANDES, A. O. Axé: Apontamentos para uma a-tese sobre Exu que jamais (se) escreverá. Tese (Doutorado) – UFRJ, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Ciência da Litera-tura (Literatura Comparada), 2015

42 SÀLÁMÌ, S.; RIBEIRO, R. I. Exu e a ordem do universo. São Paulo: Oduduwa, 2015.

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verdade ordenada em um sistema ideal, cuja transcendentalidade teleológi-ca e pretensiosa razão clássica pudessem manter seu poder de doxa43. Logo, construiu uma Exu-poiesis, ambígua como o phármakon derridiano, este

“lugar” de exportação e deportação, de transferência e referência de sentidos, este “lugar” de “medo” em que o perfume da rosa não deve ser menos temido que o veneno da serpente.

3. Disseminações de Exu

A escrita de Andrade reflete vozes como as do senador Abdias do Nascimen-to – que está citado sem o estar em sua tese –, porque amplifica e estende sua voz negra na luta pela inserção de questões étnicas e da diáspora na Academia, a qual, até há pouco, eugenista, media cérebros para identificar quem seriam mais capazes do que os outros, quem seriam os abjetos e des-qualificáveis cujos saberes passariam a ser ignorados. Ouçamos o senador Abdias do Nascimento:

Recebo um título de doutor da mesma academia que há décadas venho ques-tionando e contestando por sua postura de marginalizar, humilhar, despre-zar e discriminar o povo afrodescendente. Pois reitero: continuo questionan-do e contestando a academia brasileira. Sei que a postura dessa academia não mudou de forma significativa, pois o negro continua marginalizado e discriminado na estrutura da educação deste país desde o ensino básico e sobretudo no superior. Minha presença aqui representa o desejo da coletivi-dade afro-brasileira de que esta universidade, a mais antiga do Brasil, dê o exemplo de forjar um caminho de verdadeira inclusão do povo de ascendên-cia africana na nossa academia. Não estou falando apenas da admissão de alunos negros, embora este seja um aspecto necessário em todo o país. Falo sobretudo do que eles e os outros alunos vão aprender. O conhecimento for-mal e científico sempre discorreu sobre nós, retratando os povos africanos e seus descendentes como escravos natos, objetos de pesquisa científica, ratos de laboratório. Aqui mesmo na Faculdade de Medicina desta universida-de, sob a égide de Nina Rodrigues, papa das teses lombrosianas no Brasil, mediu-se nossos crânios para calcular o índice cefálico; dimensionou-se a

43 BARTHES, R. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 59.

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largura da nossa narina como prova cabal de nosso suposto estado patoló-gico congênito; negou-se a nossa arte enquanto produção criativa taxando-a da representação deformada de uma mentalidade primitiva e doentia44.

E prossegue Abdias rasurando a Universidade, convocando-a a decolonizar seus saberes e metodologias de ensino/pesquisa/extensão, com vistas a erra-dicar sua pedagogia cruel da mesmidade:

É preciso virar esse conhecimento eurocentrista de cabeça para baixo, sa-cudi-lo até remover o lixo e construir no vazio uma nova epistemologia. Incorporar-lhe a experiência e o saber dos povos afrodescendentes em suas várias dimensões, vistos da sua ótica e expressos na sua própria voz, pos-sibilitando a reconstrução da civilização e da soberania dos nossos ante-passados no Continente e o redimensionamento das culturas e histórias de luta forjadas por nós, seus descendentes, na diáspora. Para isso, não adianta fingir “esquecer” o legado racista ou fazer de conta que ele perdeu sua influência. É preciso examiná-lo, identificá-lo nas suas novas sutilezas, e sobretudo desvelá-lo no silêncio que reforça a exclusão discriminatória45.

A epistemologia proposta por Abdias não se coaduna com a ambição de do-mínio sobre o outro, sobre a natureza – ironicamente apartada de nós pelo pensamento cartesiano e pelo “processo civilizatório moderno que colocou imaginação e razão em polos opostos, assim como fez com a loucura e com a racionalidade, com o sonho e com a vida, desencantando a realidade”46 –, não intenta dominar o outro, “dar-lhe voz” para que diga sempre o mesmo, para que possa se parecer com o mesmo, para que seja o mesmo. Ao invés disso, lida com a instabilidade do acontecimento mesmo, para além dos estatutos, normas, regras e moralidades. Trata-se de uma epistemologia que evoca um outro discurso; logo, deve ser inventiva e até inconveniente.

44 ABDIAS DO NASCIMENTO. Fala na UFBA. Pronunciamento de Abdias Nascimento ao rece-ber o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia. Disponível em: http://www.abdias.com.br/biografia/ufba.htm. Acesso em 15 jun. 2020.

45 ABDIAS DO NASCIMENTO. Fala na UFBA. Pronunciamento de Abdias Nascimento ao rece-ber o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia. Disponível em: http://www.abdias.com.br/biografia/ufba.htm. Acesso em 15 jun. 2020.

46 ANDRADE, L. T. Nos (des)caminhos da Exu-poética: as encruzilhadas afrossurrealistas da cria-ção de Criolo. 156f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020, p. 68.

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Andrade sabe que a arte apavora os conservadores, desnorteia os igno-rantes, provoca, dissimula. Percebeu bem que Exu, como a arte, sobrevive e prospera, ensina sem querer. Não à toa, construiu seu ebó-palavreiro que desassossega o status quo, como fora feito em outros trabalhos, evocando uma linhagem de estudos acadêmicos. Faz Exu transbordar e o dissemina por meio de conexões – mesmo que não citadas nominalmente – com estudos como os de Rodrigo Lopes de Barros Oliveira47, Emanoel Luís Roque Soares48

e Alexandre de Oliveira Fernandes49. Por que cito esses trabalhos? E tantos outros ainda haveria por destacar, uma vez que deles e com eles temos dívi-das, como os de Vanda Machado50 e Stela Caputo51, para apontar apenas dois outros nomes. Ora, porque se entrelaçam, porque se cruzam, se irmanam e dialogam mesmo que nunca tenham dialogado strictu sensu, porque Exu não é da ordem do entender, mas do sentir, “epifania de um mistério, não pode ser concebido como Um a se fixar”, está atado ao “jogo da disseminação” o qual pressupõe que “quanto mais se discute, quanto mais se fala sobre e se tenta convencer e persuadir, ele se (des)dobra, antropofágico, atentando con-tra o ocidente e a hierarquia”52, e a mim, como a Muniz Sodré, em livro de contos, “não me toca dar luz ao invisível”53.

47 OLIVEIRA, R. L. B. Derrida com macumba: O dom, o tabaco e a magia negra. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Literatura, Teoria Literária, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Ilha de Santa Catarina, 2008.

48 SOARES, E. L. R. As vinte e uma faces de Exu na filosofia afrodescendente da educação: imagens, discursos e narrativas. 2008.188f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, Fortaleza-CE, 2008.

49 Fernandes, A. O. Axé: Apontamentos para uma a-tese sobre Exu que jamais (se) escreverá. Tese (Doutorado) – UFRJ, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Ciência da Litera-tura (Literatura Comparada), 2015.

50 Machado, V. Pele da cor da noite. Salvador: EDUFBA, 2013.

51 CAPUTO, S. G. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candom-blé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

52 Fernandes, A. O. Axé: Apontamentos para uma a-tese sobre Exu que jamais (se) escreverá. Tese (Doutorado) – UFRJ, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Ciência da Litera-tura (Literatura Comparada), 2015, p. 91.

53 SODRÉ, M.Santugri: histórias de mandinga e capoeiragem. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011, p. 116.

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Repare-se no que nos diz Vanda Machado sobre Exu:

Exu não só está relacionado com os ancestrais femininos e masculinos, mas também com tudo que existe e que se imagina existir no universo, porque tudo é vivo. Ele não pode ser aprisionado em nenhuma categoria. Ele é par-te da natureza, do ser humano e da humanidade nas suas ambiguidades e contradições e em seus enigmas mais imponderáveis.54

Agora, veja-se que Stela Caputo identifica Exu como “negro. Um poderoso e imenso orixá negro. É o orixá mais próximo dos seres humanos porque representa a vontade, o desejo, a sexualidade, a dúvida”55.

E agora a leitura disseminante de Lucas Toledo de Andrade, a qual não se aparta do que nos contam Caputo e Vanda Machado sobre Exu:

Exu sempre foi, para mim, um personagem sedutor e enigmático na mitolo-gia iorubana, cheio de poderes e de características interessantes, extrema-mente próximo ao ser humano, encrenqueiro e ordeiro, dono de palavras duras e cheias de sinceridade, ambíguo como o phármakon. Exu é a dinâ-mica do ciclo da vida. Ele é o corpo humano e seu eterno fluxo de sangue, suor e pensamento.56

Numa tentativa de não estabelecer relações hierarquizadas, tal qual Rodrigo Oliveira em “Derrida ‘com’ Makumba”57 e Alexandre Fernandes58 embaralhan-do Exu, Derrida e Axé, numa a-tese, manteve em riste, falo alto, a instabilidade inerente ao significado, para sempre e desde já diferido, deferido, reunido con-textualmente pela dispersão; compreendeu Exu como um texto disseminante

54 Machado, V. Pele da cor da noite. Salvador: EDUFBA, 2013, p. 156.

55 Stela Guedes Caputo em O Globo, 23/11/2009. Disponível em: http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2009/11/23/exu-nao-pode-914886323.asp

56 ANDRADE, L. T. Nos (des)caminhos da Exu-poética: as encruzilhadas afrossurrealistas da cria-ção de Criolo. 156f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2020, p. 13.

57 OLIVEIRA, R. L. B. Derrida com macumba: O dom, o tabaco e a magia negra. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Literatura, Teoria Literária, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Ilha de Santa Catarina, 2008.

58 Fernandes, A. O. Axé: Apontamentos para uma a-tese sobre Exu que jamais (se) escreverá. Tese (Doutorado) – UFRJ, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Ciência da Litera-tura (Literatura Comparada), 2015.

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que se recusa a uma significação fixa, a um destino e, também, a uma origem. A Exu-poética de Andrade se alimentou de vários discursos e narrativas mul-tiformes, que agora, como contra-assinaturas deglutidas do e pelo outro, for-talecem sua leitura das encruzilhadas artísticas presentes na produção negra de Criolo. Há em seu texto de doutoramento o “cruzo” de influências e de referências que o formaram enquanto artista. Formaram quem? Quem “o”? Criolo ou Lucas? Quem forma quem? Onde? Onde quando? Quem quando?

O cruzo de conexões transborda o texto de Tese como um texto que não sabe da sua procedência ou da sua filiação, e por isso mesmo se faz rebelde, revolucionário, criativo, uma escritura que “só é possível a partir do transe como disponibilidade de travessia”.59 O transe coíbe a razão intransigente porque se permite andar fora do prumo. Contraria regras, acolhe a possessão, a irracionalidade mais racional do que a racionalidade moderno-colonial-

-neoliberal, marcada pelo genocídio, invasão, conquista. Ao não negociar seu Exu com identidades fixas, desvela Andrade farsas

e expande o olhar do indivíduo para o entorno. Ficamos livres para olhar, brincar, fazer estripulias, tornamo-nos um pouco, disse um pouco, bem pou-co se levo a sério a psicanálise60, pouco donos de nós mesmos e de nossa interpretação possível impossível.

Considerações finais: Fecha a gira

Não há águas calmas em que se banhar quando se evoca Exu. Não há encru-zilhadas sem nós (no duplo sentido, ao menos da palavra “nós”). Quando o autor solicita em seu estudo, no capítulo primeiro, “abra o caminho do olhar”, “abra caminho tranquilo para eu passar”, sabe, trapaceiro que é, que não se trata de “olhar” e que nada há de tranquilo pelo caminho. Como um trickster, brincalhão, pícaro, nos diz, ao que me parece, “abra caminho para eu respirar”, “eu preciso respirar”, porque seu Exu-poética não trata de ver, olhar, pensar em não ver, mas de respirar.

Sim, respirar. Precisamos de um respirar-esperança, de um respirar-poé-tica senão sufocamos. Precisamos respirar porque a Covid e o Estado suici-dário sustentado por um pandemônio que desgoverna o país, estão a matar

59 RUFINO, L.; SIMAS, L. A. Fogo No Mato: A ciência encantada das macumbas. 1. ed. Rio de Janeiro: Mórula, 2018, p. 100.

60 DERRIDA, J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

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violentamente a população negra e indígena. Respirar precisamos, porque Lucas Toledo de Andrade é homem que se considerou durante todo um tem-po de sua vida, pardo – como um papel embranquecido, resultado do seques-tro de suas raízes ancestrais –, mas que atualmente se reconhece negro. Filho de pai negro e de mãe branca, precisou reelaborar seu self, reconectando-se com sua ancestralidade, com sua macumba, com seus pretos velhos e com essa Exu-poética: uma encruzilhada dura desde o Mestrado. Ele sabe que não sofre as mesmas dores e preconceitos que um negro retinto ou em situação de extrema pobreza, mas que, orgulhosamente, faz parte de uma coletividade diaspórica ancestral que precisa respirar porque sim, vidas negras importam.

Esse respiro é também um reencantamento crítico dos sujeitos, uma magia que nasce da inteligência afro-brasileira, capaz de reelaborar artisticamente sua existência rompendo artisticamente os cadeados da lógica dominante e fazendo emergir um outro olhar para o texto-Brasil. Ora, Lucas Toledo de Andrade, se não produziu uma teoria em seu estudo, também não papagaiou teóricos, os fez gaguejar e desse titubeio nasceu a noção-conceito de Exu-poética, uma epis-temologia negra, uma proposta de uma nova forma de narratividade.

Se para narrar é preciso falar, para falar é preciso respirar. Trata-se de uma narratividade contranarrativa que emana dos sujeitos e das sujeitas negros e negras, visando à reconstrução de uma experiência agredida, carregada por noções como dor, travessia, entre-lugar e corpo como um ato político.

Andrade identificou na inquietude artística de Criolo uma necessidade de viver, talvez um viver nietzschiano, qual seja fugir constantemente à per-manência, pois esta é portadora de precariedade. Percebeu que Criolo anda de mãos dadas com certa instabilidade, com uma mobilidade que ofereceria possibilidades de fuga e de escape. Mas, escapar de quê? De uma sociedade reprodutora de desigualdades, racista e misógina.

Lucas é um malandro, pois se veja que em “considerações finais” ele “fe-cha a gira”. Mas, o que é fechar a gira senão deixar a gira girar? Quando um zelador em um terreiro diz: fecha a gira, fecha a roda, está convidando seus filhos e filhas espirituais a deixar a dança mais bonita, mais engomada com as saias e os badulaques das entidades girando e espalhando contas e cantos. E seu Exu convive bem com o outro, com a diferença que escapa, porque tem prazer como um texto barthesiano: dança, ri, debocha, ironiza, brinca, goza, abre e fecha a gira, para além de hierarquias, lugares comuns, flerta com o leitor, deixa-se levar pelas pulsões e desejos do escritor.

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Pontuo que, ao dizer que Lucas Toledo de Andrade é um malandro, me apoio em Luiz Rufino e Luiz Antônio Simas, os quais ensinam:

Os caminhos retos são os limites a serem transgredidos. Assim, a malan-dragem pratica o cruzo, o malandro é errante, o corpo, suporte de sabe-dorias, é propulsor de outras textualidades, pulsa no transe, o malandro transita, é fluxo continuo. Dessa forma, quando baixa não importa de onde vem, mas sim o riscado que imprime no chão. O malandro é sempre bem chegado, é bom boêmio, é bom camarada, não importa se vem da linha das almas ou da linha da encruzilhada. O que importa é que se sabe chegar em qualquer banda: o bom malandro não explana, chega sem ser visto sai sem ser lembrado.61

Em seu texto, Lucas-Exu realiza negociações e deglutições culturais e políticas, contribuindo com as pesquisas voltadas ao entendimento das afrobrasilidades e das produções artísticas negras no Brasil, orgulhando, sem dúvida, seus an-cestrais, honrando a luta de Abdias do Nascimento, artista ele também, como Criolo. Com Lucas, fecho a gira. E não estamos sós. Conosco vem Buda, Shiva, Ogum, Ganesh, Cosme, Damião, Doum e Exu e Maria Bethania que não tinha entrado na história, ainda. Convoco a quem for de paz. Quem for de paz pode entrar, já dizia Jorge Amado. Quem for de luta e de luto também, o que me fez lembrar a quadrilha, não a do Drummond, mas a da Lívia Natália62:

“Quadrilha”(Lívia Natália)

Maria não amava João,Apenas idolatrava seus pés escuros.Quando João morreu,assassinado pela PM,Maria guardou todos os seus sapatos.

61 RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antônio. Fogo No Mato: A ciência encantada das macumbas. 1. ed. Rio de Janeiro: Mórula, 2018, p. 83.

62 NATÁLIA, Lívia. Correnteza e outros estudos marinhos. Editora Ogum´s Toques Negros, 2015, p. 137.

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* Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Contato: [email protected]

Colapso climático e a destruição do futuro

Climate collapse and the destruction of the future

Resumo

Pretende-se explorar aqui alguns efeitos do colapso climático sobre nossa experiência do tempo. A hipótese aqui levantada é que as alterações antrópicas da estabilidade da Terra afetam a maneira como nos relacionamos com o futuro, pois a própria ideia de futuro se encontraria comprometida. Partiremos da noção de “estratos do tempo,” elaborada por Koselleck, para pensar em que medida essa crise afeta a nossa experiência do tempo. Antes disso era possível pensar a nossa experiência do tempo e da história como sendo construída a partir de certas repetições que serviam como fundo para acontecimentos. O colapso climático põe em questão essa imagem de um fundo, já que as repetições tomadas como naturais passam a ter seus ritmos alterados. Ao final do artigo, esboçaremos a proposta de uma espécie de disposição temporal alternativa, possibilitada por alguns elementos do pensamento ameríndio a partir de Danowski e Viveiros de Castro.

Palavras-chave: Colapso Climático; Koselleck; Danowski & Viveiros de Castro.

Recebido em: 26/10/2019 – Aceito em: 20/12/2020

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Abstract

We will try to explore some of the effect of climate collapse on our experience of time. Our hypothesis is that human caused changes to earth’s stability affects how we experience the future since the very idea of ‘future’ would be compromised. We will start from Koselleck’s notion of “time strata” to try and understand how this crisis affects our experience of time. Before this crisis it was possible to think our experience of time and history as constructions on top of repetitions that served as background to events. Climate collapse puts that idea of background in question since repetitions that were assumed to be natural are actually changin their rythms. At the end of this article we will propose an alternative time disposition enabled by certain elements of amerindian thought approached through the reading of Danowski and Viveiros de Castro.

Keywords: Climate colapse; Koselleck; Danowski & Viveiros de Castro.

L’avenir est comme le reste : il n’est plus ce qu’il était.Paul Valéry

O presente texto pretende explorar alguns efeitos do colapso climático sobre nossa experiência do tempo. A hipótese aqui levantada é que as alterações antrópicas da estabilidade do Sistema Terra afetam a maneira como nos rela-cionamos com o futuro, quando a própria ideia de futuro se encontra agora comprometida. Partiremos da ideia de história elaborada por Koselleck, bem como da noção de “estratos do tempo”, por ele proposta, para pensar em que medida é possível dizer que a crise climática afeta a nossa experiência do tempo; em outras palavras, tentaremos entender como essa crise pode afetar uma certa disposição temporal da nossa realidade e os desafios suscitados por isso. Antes dessa crise, como vemos em Koselleck, era possível pensar a nossa experiência do tempo e da história como sendo construídas a partir de certas repetições que serviam como fundo para acontecimentos e transformações. A história seria, nesse caso, aquilo que se destaca dessas repetições e compõe nossa experiência. O colapso climático põe em questão essa estrutura na me-dida em que as repetições, tomadas como naturais, passam a ter seus ritmos

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alterados. Ao final do artigo, esboçaremos, a partir de uma leitura do livro Há mundo por vir?, de Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, a proposta de uma espécie de disposição temporal alternativa, possibilitada por alguns elementos do pensamento ameríndio, discutidos pelos autores.

*

Para compreendermos a dimensão dessa crise ou desse colapso, porém, pre-cisamos antes esclarecer o que significa a estabilidade que a precedeu — ain-da que esta se mostre, como veremos, enganadora. Em Estratos do tempo, Koselleck afirma que a nossa experiência do tempo é fruto de um jogo entre diversos “estratos de tempo” funcionando em diferentes escalas, dependen-do do tipo de repetição envolvida. Pode-se dizer que cada estrato é, portan-to, um determinado ritmo, uma dinâmica repetitiva mais ou menos estável. Disso se conclui que o nosso entendimento da noção de história, ou seja, as transformações ocorridas no tempo seriam desvios das inúmeras repetições existentes na realidade. Os estratos, ritmos, seriam pontuados por eventos que divergem, quebram as repetições de fundo e aparecem a partir do seu contraste com a estabilidade predominante em determinado contexto. Mas, é preciso pontuar, a história não seria simplesmente os desvios que comu-mente ocorrem, mas a combinação particular que se dá entre um ritmo dos estratos e aquilo que deles se destaca. Isso significa que, a partir de um pon-to de vista mais ampliado, aquilo que encaramos como um estrato, como um tipo de repetição, pode ser visto como um desvio contrastante, advindo de um estrato mais profundo.

Há estratos relativos às repetições diárias de nossas vidas, estratos mais amplos que se constituem a partir de repetições institucionais (por exemplo, os períodos escolares), estratos relacionados ao tempo durante o qual um governo ocupa o poder de um país, ou mesmo, de modo ainda mais amplo, estratos de formas de poder que perduram por várias gerações (digamos: o modelo de poder feudal). O que nos interessa aqui, porém, é um estra-to de outra ordem. Além dos indicados anteriormente, o autor menciona, en passant, um outro que condicionaria e acolheria (porque os transcenderia em escala) não apenas os acontecimentos das nossas vidas singulares, mas os que envolvem estruturas coletivas e políticas (que podem ter uma du-ração maior que a de uma vida humana). Trata-se do estrato propriamente geológico, que, por seu caráter estável e de longuíssima duração, permitiria ocupar tal posição condicionante:

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A contínua reprodução biológica é somente um caso simples e ilustrativo que age além das unidades geracionais. Trata-se aqui daquele ciclo recor-rente de concepção, nascimento e morte, que acolhe todas as histórias de amor e de ódio, todos os conflitos geracionais. Esse ciclo se repete em de-terminados ritmos, os quais nunca se alteraram substancialmente do ponto de vista biológico desde que a humanidade existe, no decurso de mais ou menos 2 milhões de anos.1

No fim das contas, segundo Koselleck, teria sido a presença de uma natureza, enquanto repetição estável, a permitir que nos orientássemos no tempo e com-preendêssemos os acontecimentos das nossas vidas de um ponto de vista histó-rico. A partir dessa promessa de imutabilidade, seria também possível planejar as nossas próprias ações e projetar um futuro. Se em algum momento foi pos-sível orientar-se em direção a um futuro, isso se deu, em parte, pelas repetições do estrato mais profundo e lento, dando condições para que previsões seguras sobre o futuro fossem possíveis. Parece-me não estarmos muito longe daquilo que Dipesh Chakrabarty descreve como a pressuposição, por parte do histo-riador tradicional, de uma estabilidade da natureza como fundo para figurar as ações livres dos humanos. Segundo ele, é um lugar comum na historiografia a ideia de que “o ambiente humano se modificava, mas o fazia de forma tão lenta que relacionar a história humana com seu entorno assumia uma característica quase atemporal, o que excluía essa relação do domínio da historiografia.”2 O que o quadro conceitual de Koselleck nos permite, separando a história na-tural da história humana a partir da diferença de velocidade das repetições específicas a cada estrato, é complexificar um pouco esse quadro. Ao descrever a própria natureza como um fundo móvel, ainda que de ritmo lento, pode-se compreender a estabilidade presente durante boa parte da história humana sem que se precise pressupor qualquer atemporalidade da natureza. Seria con-tra essa repetição mais lenta da natureza que a história do homem livre3 poderia

1 Koselleck, R. Estratos do tempo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2014. pp. 24-25.

2 Chakrabarty, D. “O clima da história: quatro teses”. Sopro, vol. 91, p. 8. jun. 2013. Disponível em: <http://culturaebarbarie.org/sopro/n91s.pdf>. Acesso em: 14 set. 2017.

3 “Como combinar a diversidade histórica e cultural humana com a liberdade humana constitui uma das questões centrais subjacentes às histórias humanas escritas no período de 1750 até os anos da atual globalização. A diversidade, como Gadamer salientou com referência a Leopold von Ranke, era uma figura de liberdade na imaginação do historiador sobre o processo histórico. (…) poderíamos dizer que a liberdade foi o tema mais importante das narrativas escritas da história humana nestes duzentos e cinquenta anos.” (Ibidem, pp. 10-11)

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se desenrolar. O desenvolvimento da humanidade não se dá contra um fundo estático, mas como um novo estrato (com suas repetições de outra ordem) que se destaca das repetições próprias da história natural. Nesse sentido, a história humana estaria condicionada à estabilidade dos ritmos da natureza. O proble-ma é que, como o colapso climático vem nos mostrando, não podemos nos fiar na estabilidade da natureza. Mesmo assim, não se pode culpar demasiadamente os historiadores do passado, como reconhece o próprio Chakrabarty, pois

em termos climatológicos atuais, poderíamos dizer que Stalin, Braudel e outros que partilhavam dessa suposição não tinham acesso a uma ideia que hoje se encontra difundida na literatura sobre aquecimento global, ou seja, a noção de que o clima, e consequentemente todo o meio ambiente, pode às vezes atingir um ponto máximo a partir do qual sua condição de pano de fundo lento e aparentemente atemporal se transforma com uma velocidade tamanha que só pode ser desastrosa aos seres humanos.4

A ideia de um pano de fundo que começa subitamente a se mover abala a expe-riência moderna do tempo, pois implica dizer que a natureza não tem apenas um papel passivo em nossa história. Só isso já nos obrigaria a repensar a relação entre a história natural (uma história que se transformaria de maneira lenta demais para ser percebida e experimentada pelos homens) e a história humana. Mas isso não é tudo, já que, como a larga bibliografia sobre o as-sunto indica, os principais responsáveis pela transformação das condições climáticas são os próprios humanos. Com isso em mente, Chakrabarty dirá que “a mansão das liberdades modernas repousa sobre uma base de uso de combustíveis fósseis em permanente expansão. A maior parte de nossas liberdades até hoje consumiu grandes quantidades de energia.”5 A história humana nunca foi desconectada da história natural6. A ameaça que senti-mos hoje nos permite perceber em frágil equilíbrio o que antes encarávamos como estabilidade condicionante.

4 Ibidem, p. 8

5 Ibidem, p. 11

6 Não precisávamos esperar os avisos de Davi Kopenawa sobre a iminente queda do céu para en-tender que a nossa liberdade se apoiava sobre o mundo material. No final do século XVIII Schel-ling já nos avisava que o sujeito transcendental só podia ser produzido no interior de uma história natural. Não à toa ele definia a filosofia como “história natural da nossa mente” (Schelling, F. Ideas for a philosophy of nature. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. p. 30. tradução minha)

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É a partir da teoria de Gaia, elaborada por James Lovelock em parceria com Lynn Margulis, que será possível enxergar pela primeira vez (ao menos pelos olhos da nossa ciência moderna) a Terra como esse frágil equilíbrio dinâmico. Como diz Alyne Costa,

Gaia é o nome dado à complexa rede de relações vigentes entre os organis-mos, os oceanos, a atmosfera e as rochas de superfície, os quais compõem uma espécie de sistema que regula as condições físicas e químicas para favorecer, ao máximo, a manutenção das formas de vida existentes (…). O planeta, neste sentido, se comportaria como um sistema autorregula-dor, cujo funcionamento dependeria da interação entre agentes orgânicos e inorgânicos. Essa visão se opõe à noção epistemológica tradicional de que a Terra seria um espaço inerte onde a vida se desenrola: em vez disso, ela age como um ser dinâmico capaz de responder fisiologicamente aos estímulos, e cuja estabilidade climática depende das relações estabelecidas entre as partes que a compõem.7

Essa visão de Lovelock é vertiginosa, pois a partir dela começamos a ver que, ao invés de um “meio ambiente” dado previamente, ao qual os seres vivos teriam se adaptado, o que temos é um jogo sem fim entre os próprios seres orgânicos e inorgânicos. Aquilo que se entende por meio ambiente é, por-tanto, o resultado de um processo histórico composto por criações e trans-formações que acabaram adquirindo uma certa estabilidade favorável à vida. Assim, aqueles diferentes estratos do tempo geológico, biológico e antropoló-gico (este, obviamente, subdividido em ainda mais estratos dependendo do ponto de vista), cuja distinção foi tão necessária para a nossa compreensão moderna da história, seriam em realidade muito mais interdependentes do que imaginávamos. Isso não significa que se deve abandonar a ideia de estra-to. Falar de estratos diferentes de tempo, tentar entender como certos estratos com ritmos mais lentos (e, em certo sentido, mais profundos) condicionam estratos mais rápidos (e, portanto, mais superficiais) é uma ferramenta útil para analisar a nossa experiência do tempo e da história. O que vemos posto em questão nesse momento é, porém, uma ideia de que um estrato seria mais

7 Costa, A. Guerra e paz no Antropoceno: uma análise da crise ecológica segundo a obra de Bruno Latour. Rio de Janeiro: Editora Autografia, 2017. p. 90

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profundo (ou mais lento) em razão da sua especificidade. Ou seja, seguindo essa ideia assumiria-se (às vezes ingenuamente, às vezes involuntariamente) que, por exemplo, um estrato de ordem geológica seria mais lento que um es-trato biológico pelo fato dos ritmos da Terra serem mais lentos que os ritmos das transformações biológicas (assumindo, claro, que se possam recortar de maneira precisa as ligações entre o geológico e o biológico). A partir da per-cepção de que o estrato geológico (a Gaia de Lovelock e Margulis) não apenas é menos estável do que imaginávamos (dependente de inúmeras condições invisíveis a nós), como está se transformando numa velocidade que ameaça a própria vida, somos forçados a entender que certos estratos mais profundos (como os geológicos e biológicos) que condicionam estratos mais superficiais podem adquirir ritmos mais acelerados a ponto de ameaçarem os estratos que eles em algum momento condicionaram (como os antropológicos). Antes talvez fosse possível acreditar que os estratos geológicos e biológicos esta-vam num determinado ritmo por uma questão de necessidade. Como se o ritmo desses estratos específicos tivesse necessariamente uma determinada velocidade que os acabaria mantendo em condições estáveis de estratos com ritmos mais acelerados, como aqueles inúmeros estratos da história humana. Hoje em dia, parece ficar mais claro que as condições que permitem que os estratos humanos, ou seja, os estratos geológicos e biológicos existam são condições contingentes que podem inclusive ser transformadas (como foram) pelo desenvolvimento dos próprios estratos condicionados. Os limites do pensamento de Koselleck parecem ser de uma confiança até involuntária no caráter empírico dessa estabilidade e não entender que essas relações entre estratos são menos unilaterais do que parecem. Ele confunde uma unilate-ralidade contingente (ou seja, o fato de que os estratos geológicos tiveram durante boa parte da história um ritmo mais lento antes da crise climática) com o estatuto real do quadro categorial que ele constrói, não excluindo por princípio a possibilidade dos estratos terem seus ritmos alterados.

Não nos espanta a hipótese de Lovelock ter sido recebida com ceticismo. Sem considerar os entraves envolvidos no processo de produção de teorias científicas, podemos dizer que esse ceticismo tem a ver também com o fato de essa hipótese evidenciar uma quarta ferida narcísica no ser humano, como sugere Latour8. O que Lovelock nos mostra, e que produz essa quarta ferida,

8 Lembrando aqui das três feridas narcísicas que Freud descreve em sua obra: 1. A descoberta do ca-ráter heliocêntrico do sistema solar (por Copérnico). 2. A teoria da evolução de Darwin e a maneira como ela acaba com a ideia de que o homem seria um ser superior. 3. A própria teoria freudiana do inconsciente que mostra como o homem não é acionista principal nem da sua própria subjetividade.

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é a impossibilidade de ignorar a singularidade da Terra no universo, isto é, seu desequilíbrio constituinte9. Aceitar que a Terra é um work-in-progress nos retira uma segurança, pois ela passa a ser concebida como um sistema aberto (… à catástrofe?). A Terra nem foi feita para nós e nem está terminada. O que é aterrorizante não é apenas o fato de que a Terra é um sistema aberto. Como seres dependentes de certas condições ecológicas para sobreviver, a possibi-lidade de que esse sistema se transforme a ponto de alterar seus parâmetros atuais significa uma catástrofe para nós (e para todas os outros seres que tam-bém dependem dessas condições). Por se tratar de um jogo entre os diversos agentes que estão na Terra, qualquer alteração drástica nesses parâmetros que determinam uma certa estabilidade (como, por exemplo, a elevação da con-centração de gases de efeito estufa na atmosfera, a acidificação dos oceanos, o derretimento das calotas polares, o aumento da temperatura global) não ocorre sem uma série de reverberações. Mesmo a Terra funcionando como um sistema autorregulador (aberto), que pode se ajustar a partir das altera-ções que são provocadas pelo homem (em conjunção com uma série de seres não-humanos), isso nem sempre significa que essa estabilidade se dará em condições propícias para nós. As forças antrópicas podem, como estamos observando agora, levar aos limites a capacidade de autorregulação da Terra até um ponto em que só seja possível para Gaia adquirir uma estabilidade em novas condições10. Como diz Costa, a “‘busca’ por estabilidade transcen-de qualquer cuidado privilegiado em relação à nossa espécie — somos um dos componentes de seu sistema de autorregulação e, por isso mesmo, nada impede que o novo estado de equilíbrio encontrado seja desfavorável aos humanos.”11 Em outras palavras, a qualquer momento Gaia pode, em seu movimento de ajuste, se tornar completamente inóspita aos humanos.

*

9 “Não que faltasse perfeição à Terra, pelo contrário; não que ela escondesse em suas entranhas o sombrio lugar do Inferno; mas porque ela tinha – sozinha? – o privilégio de estar em desequilíbrio, o que significava também que ela possuía uma certa capacidade de ser corrompida”. (Latour, B. Facing gaia. Cambridge: Polity Press, 2017. p. 78. Tradução minha)

10 Cf. Lovelock, J. The vanishing face of Gaia: a final warning. Nova Iorque: Basic Books, 2009. p. 180

11 Costa, A. op. cit., p. 91

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É fundamental, portanto, procurar dimensionar corretamente o que a catás-trofe climática implica para nós. Como diz Chakrabarty,

Chamar seres humanos de agentes geológicos é ampliar nossa imaginação acerca do humano. Os seres humanos são agentes biológicos, coletivamente e também como indivíduos. Sempre o foram. Nunca houve um ponto na história humana em que os seres humanos não fossem agentes biológicos. Mas apenas histórica e coletivamente podemos nos tornar agentes geoló-gicos, isto é, assim que alcançamos números e inventamos tecnologias que sejam de uma escala suficientemente grande para causar impacto no pró-prio planeta. Caracterizar-nos como agentes geológicos é atribuir-nos uma força de escala igual àquela liberada nas vezes em que houve extinção em massa das espécies. Parece que estamos passando por essa fase.12

Em outras palavras, o momento presente propicia que os seres humanos pas-sem a ter a capacidade de afetar em escalas nunca antes alcançadas os sistemas complexos de interações que constituem as nossas condições de existência, mostrando que os diversos estratos descritos por Koselleck não se articulam de modo unilateral. Dessa forma, os estratos mais superficiais (na escala humana) têm capacidade de alterar a repetição dos estratos mais profundos (geológicos).

A consequência é, porém, catastrófica, já que ser capaz de afetar esses es-tratos mais profundos não significa ser capaz de controlá-los13. E se não consegui-mos controlar as alterações que provocamos, tampouco os efeitos delas são talhados à nossa medida. Quem está correndo risco nesse tipo de situação não é Gaia. Como diz Isabelle Stengers,

a própria Gaia não está ameaçada, diferentemente das inúmeras espécies vivas que serão varridas pela anunciada mudança de seu meio, com uma rapidez sem precedente. Os inúmeros micro-organismos continuarão, com efeito, a participar de seu regime de existência, o de um “planeta vivo”14

12 Chakrabarty, D, op. cit., pp. 9-10

13 As inúmeras revisões nas projeções sobre o clima já indicam que mal dominamos as ferramen-tas de diagnóstico. As ciências que lidam com essa área estão lidando com fenômenos de enorme complexidade, de modo que, para além da certeza de que estamos rumando ao colapso, é difícil dizer algo preciso sobre o futuro.

14 Stengers, I. No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac Naify, 2015. p. 40

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É por isso que “a resposta de Gaia seria possivelmente desmesurada em rela-ção ao que nós fizemos, um pouco como um dar de ombros provocado pelo leve toque de um mosquito.”15 Ela é tanto “cega aos danos que provoca”16 como “não nos pede nada (…) é indiferente à pergunta ‘quem é responsável’.”17 É por isso que chamar esse evento catastrófico, como faz Stengers, de “a in-trusão de Gaia” não significa dizer que “antes não havia Gaia”, mas sim que ela não se fazia sentir ou experimentar por nós. Significa também que lidar com essa situação — a fragilidade das nossas existências — é agora uma preocu-pação de primeira ordem. Mas Gaia é também o nome de um mistério. Hoje sabemos de sua intrusão, mas ela permanece e permanecerá uma espécie de

“transcendência”, que não podemos controlar e cuja integralidade não somos capazes de compreender18. Nas palavras da autora:

A intrusão do tipo de transcendência que nomeio Gaia instaura, no seio de nossas vidas, um desconhecido maior, e que veio para ficar. E, aliás, talvez seja isto o mais difícil de conceber: não existe um futuro previsível em que ela nos restituirá a liberdade de ignorá-la; não se trata de “um momento ruim que vai passar”, seguido de uma forma qualquer de happy end no sen-tido pobre de problema resolvido”. Não seremos mais autorizados a esquecê-

-la. Teremos que responder incessantemente pelo que fazemos diante de um ser implacável, surdo às nossas justificativas. Um ser que não tem porta-voz, ou, antes, cujos porta-vozes estão expostos a um devir monstruoso.19

Vivemos hoje a experiência de que nosso chão, ou solo, pode mudar (literal e figurativamente) a qualquer hora. Ele já está mudando. Ora, o futuro é sem-pre o futuro de um presente e, quando este entra em colapso, aquele também fará o mesmo, tornando difícil qualquer tipo de orientação ou mesmo de ação. É essa a nossa questão principal aqui. Mas antes de desenvolvermos

15 Ibidem, p. 39

16 Ibidem, p. 37

17 Ibidem, p. 40

18 “A discussão sobre a crise das mudanças climáticas pode, assim, produzir afeto e saber sobre os passados e futuros coletivos humanos que operam nos limites da compreensão histórica. Ex-perimentamos efeitos específicos da crise, mas não o fenômeno como um todo.” (Chakrabarty, D, op. cit., p. 21)

19 Stengers, I, op. cit., p. 41

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mais a maneira como nossa temporalidade é posta em cheque pela catástrofe climática, precisamos entender um pouco mais esse “devir monstruoso” que está em curso. Um devir que nos conduziu para essa situação (ou aconteci-mento?) de uma nova época geológica que, por sua vez, tem sido chamada, não sem muita discussão ou divergência, de Antropoceno20.

*

Se durante um tempo foi possível que a compreensão histórica moderna par-tisse da ideia da Terra como um fundo imutável, isto é, confundindo uma estabilidade contingente do estrato geológico com um ritmo natural e inal-terável, isso se deu não só pelo fato de que esse sistema se manteve relativa-mente estável, mas também pela ausência de meios adequados para averiguar as complexas relações que o compõem21. As suas transformações ocorriam sempre em um nível em que não eram visíveis, não nos permitindo ter uma experiência complexa delas. Às vezes por serem pequenas demais, e às vezes por serem transformações que excedem a nossa escala. Temos aqui, portanto, duas dificuldades principais. A primeira é da ordem técnico-científica, ou seja, da capacidade de ter instrumentos (instrumentos materiais ou teóricos) que permitissem analisar os fenômenos globais da Terra. A segunda dificul-dade, mais fundamental, é um problema propriamente epistêmico. Trata-se da dificuldade de uma perspectiva em compreender as próprias condições

20 Sobre essa nova era geológica chamada de “Antropoceno” remetemos aqui ao artigo de Crutzen e Stoermer que serviu como um dos pontapés iniciais para essa discussão: “The ‘Anthropocene’” (Crutzen, P; Stoermer, E. “The ‘Anthropocene’”. IGBP Newsletter. Vol. 41, maio 2000. Disponível em: <http://www.igbp.net/download/18.316f18321323470177580001401/1376383088452/NL41.pdf>. Acesso em: 14 set. 2017). Para uma discussão mais atualizada dos parâmetros que indicam a nossa entrada nessa nova era geológica cf. Costa, A. Cosmopolíticas da Terra: Modos de existência e resistência no Antropoceno. 2019. 304. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, 2019. pp. 24-34. Além disso, é preciso mencionar que há uma enorme disputa sobre o uso do termo ‘antropoceno’ para nomear esse novo momento. Não nos interessa, porém, entrar nessa enorme querela Se, certamente, alguns estão interessados em de fato “renomear” para retraçar os contornos do conceito, nos permitindo ampliar a nossa compreensão desse evento, isso não aconteceu sem que uma cottage industry surgisse no entorno dessa disputa, em que uma série de acadêmicos procuram “provar” que o seu “termo” é o mais adequado. Ressaltamos apenas que concordemos totalmente com a ideia de Stengers de que pode haver um interesse nessas renomeações pois, como ela mesmo diz, “nomear não é dizer a verdade, e sim atribuir àquilo que se nomeia o poder de nos fazer sentir e pensar no que o nome suscita.” (Stengers, I, op. cit., p. 37)

21 Sem contar também o fato de que as evidências que existiam acabaram sendo negligenciadas ou desacreditadas. Cf. Bonneil, C.; Fressoz, J. Lévénement Anthropocène: la Terre, l’histoire et nous. Paris: Le Seuil, 2013.

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a partir de onde ela emerge22. Essa situação, porém, nos põe numa posição estranha, em que essa incapacidade de ver a nossa condição material, isto é, o nosso planeta, como algo dinâmico foi o que acabou abrindo a possibilidade para que essas condições viessem à luz, ainda que não mais como condições sempiternas, mas como objeto de um estranho luto. O que queremos dizer com isso é que boa parte do progresso moderno dependeu em certa medida da postulação de uma hipótese de que o meio ambiente possui uma estabi-lidade “quase atemporal” (como disse Chakrabarty). E a partir da pressupo-sição dessa estabilidade foi possível postular um horizonte de progresso ili-mitado que impulsionaria parte do desenvolvimento técnico-científico23. Ou seja, a hipótese que permitia sustentar uma certa ideia de progresso funda-mental para a modernidade foi invalidada pelos próprios avanços conquista-dos a partir desse progresso. Essa dinâmica do progresso e da necessidade de uma certa estabilidade não é uma estrutura abstrata desencarnada da história. Koselleck e Chakrabarty já apontam nessa direção em suas obras, mas recor-reremos às análises de Paulo Arantes por conseguir delimitar de modo mais preciso a maneira como uma certa dinâmica temporal se orienta em direção ao futuro, incluindo nessas análises a história do capitalismo24. Se o movi-mento produtivo do capital é um movimento de autovalorização do capital, e essa autovalorização é feita em parte pelo avanço técnico, o investimento em tecnologias produtivas só faz sentido se houver a expectativa de ganhos eco-nômicos no futuro. Uma possibilidade de fazer projeções no futuro a partir de um presente estável é, portanto, condição desse gasto (que se torna um investimento) no desenvolvimento de novas tecnologias.

A postulação de uma estabilidade presente e uma orientação em direção ao futuro impulsionou uma tentativa de superar (ou suprimir) os limites atuais do humano pelo desenvolvimento técnico e econômico. Por um lado, este foi um dos fatores que nos permitiu compreender as nossas condições materiais (as estruturas geológicas que nos condicionam). Por outro, o que descobri-mos, quando tivemos esse acesso, é que o custo para tal descoberta (isto é, o

22 Esse problema, que perpassa toda a história da filosofia, de Platão (em suas investigações sobre a relação entre virtude e saber) até a contemporaneidade (podemos pensar, por exemplo, o esforço de Gilles Deleuze em retomar o problema da gênese das condições do sujeito em sua obra

“Diferença e repetição”).

23 Pensamos aqui na maneira como Koselleck, em seu “Futuro Passado” discute como a ideia de progresso como motor da modernidade depende da pressuposição de um espaço de experiências estável que pode servir de apoio para uma orientação em direção ao futuro.

24 Cf. Arantes, P. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. pp. 27-97.

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desenvolvimento de um aparato científico-industrial na escala alcançado ao longo do século XX) era o precário equilíbrio que condiciona a nossa vida25. Isso não significa que o desenvolvimento técnico-científico seja o culpado pelo colapso climático, mas que o desenvolvimento capitalista industrial que o acompanhou acabou sendo um dos principais fatores desse desequilíbrio que vivemos. Não se diz aqui, portanto, que simplesmente o avanço técnico seja responsável pela destruição do meio ambiente, mas a orientação nessa direção, tal como foi realizada, acabou gerando um panorama indicativo dos próprios limites da nossa condição epistêmica26.

A partir da modernidade — entendida como uma série de práticas de extração de recursos, produção de bens, desenvolvimento urbano etc.27 — a humanidade passou a se acomodar com folga nessas condições naturais e construiu sobre esse estrato “inerte” o seu futuro. A expectativa de que nada poderia abalar as condições necessárias da existência servia como ponto de apoio para se tentar realizar os desenvolvimentos técnicos que, em tese, tor-nariam realidade os sonhos das inúmeras utopias reinantes na cabeça do homem europeu a partir da revolução científica. A inércia da natureza apa-rentava, nesse momento pré-crise, ser condição sine qua non do futuro do homem moderno. Não deixa de ser irônico, portanto, que a ilusão da rigidez do fundo tenha permitido, séculos depois, o surgimento de uma capacidade técnica e científica que revelasse a real mobilidade desse fundo. Foi preciso destruir o frágil equilíbrio que nos permitia viver para descobrir que vive-mos (vivíamos?) essa fragilidade.

*

25 Não surpreende uma das datações possíveis para o antropoceno seja justamente meados do século XX.

26 Isso não significa que toda forma de orientação ao futuro é necessariamente problemática, in-clusive há inúmeros projetos que procuram desenvolver uma política orientada para o futuro sem recair nos problemas que apareceram na forma espçíecfica de orientação ao futuro desenvolvida ao longo da modernidade capitalista. Cf. Benanav, A. Automation and the future of work. Londres: Verso Books, 2020 e Srnicek, N.; Williams, A. Inventing the future: postcapitalism and a world wi-thout work. Londres: Verso Books, 2016.

27 Pensamos aqui, fundamentalmente, no modo de organização social que começa a se constituir na Europa mediterrânea dos séculos XIV e XV e que acabará se tornando no capitalismo global e que tende a arrasar de diversas maneiras a natureza. O que, claro, delimita a modernidade de um ponto de vista socioeconômico.

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A situação que estamos vivendo é grave e imprevisível. Como dizem os autores de Há mundo por vir?, “estamos, em suma, prestes a entrar — ou já entramos, e esta incerteza ela mesma ilustra a experiência de um caos temporal — em um regime do sistema Terra inteiramente diferente de tudo que conhecemos.”28 É simplesmente impossível fazer prognósticos totalmente precisos, já que “não se trata apenas, portanto, da magnitude das mudanças em relação a algum va-lor de referência (…), mas de sua aceleração crescente — a intensificação da variação e a consequente perda de qualquer valor de referência.”29As variações são cada vez maiores e se dão em intervalos de tempo cada vez menores, che-gando-se a poder afirmar, como dizem Danowski e Viveiros de Castro, que

vivemos o tempo dos pontos catastróficos e da reversão das curvas. Recor-des cada vez mais frequentes de temperaturas altas são seguidos por recor-des (cada vez menos frequentes?) de temperaturas baixas. (…) Como falar em desvio da norma se a norma está mudando a cada ano, restando a anormalidade ela mesma como única norma possível? Mais quente e mais frio, mais seco e mais úmido, mais rápido e menos rápido, mais sensível e menos sensível, maior e menor refletividade, mais claro ou mais escuro. A instabilidade afeta o tempo, as quantidades, as qualidades, as próprias medidas e escalas em geral, e corrói também o espaço. Local e global se sobrepõem e se confundem.30

O Antropoceno é o “fim de uma epocalidade”, um momento em que “o tem-po está fora do eixo e andando cada vez mais rápido. (…) É o próprio tem-po, como dimensão de manifestação da mudança (…), que parece estar, não

28 Danowski, D; Viveiros de Castro, E. Há mundo por vir?. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2014. p. 23 (grifo meu)

29 Ibidem, p. 24

30 Ibidem, pp. 24-25 (grifo meu). Continuam os autores: “a elevação global do nível do mar não se reflete uniformemente em sua elevação local; as mudanças climáticas são um fenômeno global, mas os eventos extremos incidem a cada vez em um ponto diferente do planeta, tornando sua previsão e a prevenção de suas consequências cada vez mais difíceis. Tudo o que fazemos localmente tem consequências sobre o clima global, mas por outro lado nossas pequenas ações individuais de mitigação parecem não surtir qualquer efeito observável. Estamos presos, enfim, em um devir-louco generalizado das qualidades extensivas e intensivas que expressam o sistema biogeofísico da Terra. Não é de admirar que alguns climatologistas já se refiram ao atual sistema climático como “a fera do clima” (‘the climate beast’). (Ibidem, p. 25)

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apenas se acelerando, mas mudando qualitativamente ‘o tempo todo’.”31. An-tes a destruição de uma estabilidade que o começo de uma nova época estável

— ou a nova época enquanto instabilidade, já que passamos pela “experiência de uma decomposição do tempo (o fim) e do espaço (do mundo)”32. É por isso, acredito, que uma das mudanças mais profundas que esse novo tempo nos impõe é a da sensação de ausência de um futuro: “Nosso presente é o Antropoceno; este é o nosso tempo. Mas este tempo presente vai se revelando um presente sem porvir, um presente passivo, portador de um karma geofísico que está inteiramente fora de nosso alcance anular.”33 Esse acidente não só nos obri-ga a encarar a mortalidade da nossa espécie de uma maneira inédita, como também não nos permite pressupor uma estabilidade em torno do qual po-deríamos construir uma saída. Ao mesmo tempo que estamos acostumados a nos orientar para o futuro, um horizonte de expectativas, nós não vemos nenhuma maneira de alcançá-lo.

Esse pode ser visto como um dos principais efeitos da aceleração do ritmo dos processos geobiofísicos: a dissolução do horizonte de expectativa moderno no momento em que o espaço de experiência se revelou móvel.34 Hora de abrir mão das utopias do progresso moderno? Acredito que sim, o que não significa abrir mão do desejo de sobreviver, ou mesmo ter uma vida feliz. Não é possí-vel desfazer os estragos já realizados. Tampouco é ainda possível se apoiar na promessa de um progresso infinito (e nunca foi possível, apenas acreditamos nisso durante um tempo) porque a ideia de um futuro que nos aguardaria had we but world enough and time não se apresenta mais no horizonte.

*

31 Ibidem.

32 Ibidem, p. 19

33 Ibidem, p. 16

34 Retomando mais uma vez Danowski e Viveiros de Castro: “A bela estratificação sociocosmoló-gica da modernidade começa a implodir diante de nossos olhos. Imaginava-se que o edifício podia se apoiar apenas sobre seu andar térreo, a economia, mais eis que nos esquecemos das fundações. E o pânico sobrevém, quando se descobre que a determinação em última instância era apenas a penúltima.” (Danowski, D; Viveiros de Castro, E, op. cit., p. 27) Esqueceu-se, portanto, do fato de que o estrato mais profundo, o estrato geológico, é ele mesmo suscetível de ser transformado e alterado pelos estratos superiores.

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Somos obrigados a repensar completamente o que significa se orientar no mundo — mas não precisamos começar isso do zero. A análise que Danowski e Viveiros de Castro fazem sobre como povos ameríndios35 concebem o fim do mundo pode nos ajudar a especular a respeito dessa nova disposição que inevitavelmente teremos que construir36.

Segundo os autores, encontraremos como central na práxis de inúmeros povos ameríndios a “produção regrada de transformações capazes de reprodu-zir o presente etnográfico (rituais de ciclo de vida, gestão metafísica da morte, xamanismo como diplomacia cósmica) e assim impedir a proliferação regres-siva e caótica de transformações.”37 O que me parece interessante nesse tipo de prática é que há uma pressuposição do movimento como o solo da realidade38. Se a práxis moderna, com vimos, se constrói sobre a ideia de um fundo está-tico, encontramos entre os ameríndios um fundo, ou estado pré-cosmológico, para retomar uma expressão dos autores, composto por intensas e incessantes transformações qualitativas que jamais se resolverão completamente: “meta-morfoses erráticas, plasticidade anatômica, corporalidade ‘desorganizada’”39. Além disso, se por um lado os modernos parecem conceber a sua ideia de fundo em um sentido espacial — vide conceitos como “espaço de experiência”,

“horizonte de expectativa” elaborados por Koselleck —, vemos entre os ame-ríndios uma temporalização desse fundo (i.e., do mundo): ele é um momento40. Não à toa, a dinâmica narrada nos mitos ameríndios tende a envolver a passa-gem entre os tempos míticos e os tempos atuais, entre um momento em que as transformações se davam de maneira incessante e desordenada e o momento em que elas se estabilizaram. Como dizem Danowski e Viveiros de Castro,

35 Só nos permitimos falar com esses termos generalizantes acerca dos diversos povos indígenas por apoiarmo-nos em trabalhos que mostram que é possível identificar e construir uma semelhan-ça entre diversos grupos ameríndios. Para tanto cf. Viveiros de Castro, E. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

36 Mas é bom lembrar, o fim do mundo por que eles passaram é qualitativamente diferente do “fim do mundo” implicado na crise climática. Não se trata, então, de “imitar” os índios, mas de entender o que está em jogo na dinâmica fim do mundo.

37 Danowski, D; Viveiros de Castro, E, op. cit., p. 92

38 Inclusive, falar em solo já passa uma imagem enganosa, pela fixidez que se encontra nessa imagem tal como costumamos utilizá-la.

39 Ibidem, p. 91

40 A palavra “momento” aqui não deve ser confundida com “instante”. Um momento pode ter nele uma duração que certamente excede o ponto do instante.

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o mundo tal como nós o conhecemos, ou melhor, o mundo tal como os índios o conheciam, o mundo atual que vai (ou ia) existindo no intervalo entre o tempo das origens e o fim dos tempos — o tempo intercalar que poderíamos chamar de “presente etnográfico” ou presente do ethnos, em contraposição ao “presente histórico” do Estado-nação —, esse mundo é concebido em al-gumas cosmologias ameríndias como a época que se iniciou quando os seres pré--cosmológicos interromperam seu incessante devir-outro (…) em favor de uma maior univocidade ontológica. Encerrando o “tempo das transforma-ções” — a expressão é usual nas culturas amazônicas — os instáveis antro-pomorfos das origens adotaram as formas e hábitos corporais atuais daque-les animais, plantas, rios, montanhas etc. que eles viriam a ser, como aliás estava prefigurado nos nomes que eles já portavam nesse passado absoluto.41

Esse tempo pré-cosmológico pode ser descrito como acelerado, se compreen-demos a aceleração como uma intensificação da variação qualitativa, uma com-plexificação crescente das misturas e interações dos corpos. Não à toa, o que se encontra nos mitos que falam do pré-cosmológico são homens que se tornam animais, os quais não são distinguíveis de maneira clara dos homens, uma série de relações que poderiam ser consideradas interespecíficas, mas que, no con-texto mítico, um contexto em que as diferenças entre os corpos ainda não estão externalizadas em diferenças discretas, são apenas relações intraespecíficas42.

Mas isso não é tudo. A práxis indígena nos mostra que, para eles, esse tempo pré-cosmológico não termina nunca de se atualizar. Há uma constan-te ameaça de que ele possa “irromper através dos rasgões que se abrem no tecido do mundo cotidiano (sonho, doença, incidentes de caça), fazendo os humanos serem violentamente reabsorvidos pelo substrato pré-cosmológico onde todas as diferenças continuam a se comunicar caoticamente entre si.”43 Isso parece indicar o erro em se pensar que, em algum momento, o tempo te-nha se estabilizado — como se de uma maneira abrupta ele tivesse se tornado mais lento e menos caótico. A estabilidade foi construída contra a constante ameaça do substrato pré-cosmológico do mundo.

41 Ibidem, pp. 90-91

42 “Tudo era humano, mas tudo não era um. A humanidade era uma multidão polinômica; ela se apresentou desde o início sob a forma da multiplicidade interna, cuja externalização morfológica, isto é, a especiação, é precisamente a matéria da narrativa cosmogônica.” (Danowski, D; Viveiros de Castro, E, op. cit., p. 92)

43 Ibidem, p. 93

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Essa construção é justamente aquilo que os autores chamam do “esforço de reproduzir o presente etnográfico”. O presente etnográfico pode ser con-cebido como uma forma de conceber a experiência do presente como um ponto intercalado entre transformações aceleradas, procurando produzir uma estabilidade. Esse conceito aparece, portanto, em contraposição ao “presente histórico”, que nesse contraste aparece como uma experiência do presente como articulado a partir do movimento e do progresso, desejando intensificar ainda mais a sua aceleração. O presente etnográfico, é importante esclarecer, faz referência à ideia de “sociedades frias” (ou lentas) de Claude Lévi-Strauss, sendo uma tentativa de descrever a relação de certos povos não modernos com a temporalidade. É uma posição diante da passagem do tempo que bus-ca “anular de maneira quase automática o efeito que os fatores históricos po-deriam ocasionar sobre seu equilíbrio e sua continuidade”44. O presente que elas buscam preservar é, portanto, uma construção, um abrigo temporal dos perigos inerentes à transformação caótica. É por isso que Danowski e Vivei-ros de Castro fazem questão de reforçar que “o presente etnográfico não é de modo algum um ‘tempo imóvel’”45. Como vimos, essas sociedades partem já de uma mobilidade total como solo (ao contrário da modernidade46): “as so-ciedades lentas conhecem velocidades infinitas, acelerações extra-históricas, em uma palavra, devires”47. Em certo sentido, essa aceleração caótica do fun-do pré-cosmológico pode ser entendida, no contexto das nossas discussões, como a compreensão de que os estratos temporais que constituem o solo da nossa experiência temporal não possuem uma divisão discreta entre as suas diversas fases. Como se, em vez de um solo estratificado em diversas camadas, sendo que as camadas inferiores sempre condicionariam unilateralmente as camadas superiores, o que houvesse fosse antes um terreno em que os ritmos de cada estrato não deixassem de afetar e ser afetados pelos outros estratos, independentemente de sua posição como inferior ou superior. A cosmologia ameríndia parece portanto inverter completamente a disposição temporal

44 Lévi-Strauss, C. O pensamento selvagem. São Paulo: Papirus Editora, 2012. p. 273. A caracteriza-ção da temporalidade moderna vem logo em seguida, quando o autor diz que elas acabam “interio-rizando resolutamente o devir histórico para dele fazer o motor de seu desenvolvimento.” (Ibidem.).

45 Danowski, D; Viveiros de Castro, E, op. cit., p. 93

46 E não deixa de ser irônico isso, considerando que um dos momentos inaugurais da moderni-dade foi justamente a descoberta do heliocentrismo e — consequentemente — do fato de que a Terra estava se movendo em velocidades altíssimas.

47 Ibidem.

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que encontramos na modernidade. Enquanto para os ameríndios a instabi-lidade é a condição de fundo a partir do qual alguma estabilidade provisória deve ser alcançada, para a modernidade descrita por Koselleck é a estabilida-de que deve ser pressuposta para que possamos orientar nossas ações rumo a uma espécie de progresso ou transformação. Diante da crise climática atual, porém, essa posição moderna se torna insustentável, pondo em risco sua própria disposição temporal orientada para o futuro.

Em outras palavras, o esforço por reproduzir o presente etnográfico, nesse contexto, seria então o esforço de produzir alguma estabilidade a partir do e com o fundo caótico. Partindo da ideia do mundo como pura transformação, esse movimento construtivo que se utiliza de “máquinas folk lentas mas muito eficazes, que funcionam de maneira inteiramente ‘local’”48 (máquinas como “ri-tuais de ciclo de vida, gestão metafísica da morte, xamanismo como diplomacia cósmica”49) parece querer produzir bolsões de neguentropia, blocos de esta-bilidade que ao menos posterguem o caos que não para de assombrar. O eixo que orienta a prática não é, portanto, a promessa de uma utopia, mas o próprio presente e não o progresso: “trata-se de afirmar o presente etnográfico, conservá-

-lo ou recuperá-lo, não de ‘crescer’, ‘progredir’ ou ‘evoluir’. Como professam os povos andinos em seu hoje célebre lema cosmopolítico, ‘vivir bien, no mejor.’”50

Mas o que isso significa em termos práticos? Embora não seja possível efetivar esse tipo de transformação em nossa experiência do tempo de modo voluntário, acreditamos que relacionar a forma moderna de orientação em direção ao futuro com os desenvolvimentos do capitalismo nos permite com-preender as condições materiais dessa maneira de se articular temporalmente. Por sua vez, essa forma de se articular a partir do presente etnográfico também remete ao modo de viver, proceder e se reproduzir de povos ameríndios que sustentam essa experiência do tempo. A situação não é simples, mas con-seguir relacionar essas formas de conceber o tempo a modos de produzir a vida social de um determinado grupo nos permite visualizar dois planos. Em primeiro lugar reforça a possibilidade de variar a forma de relacionar o espaço de experiência com o horizonte de expectativa a partir de transformações no modo de viver. Sabemos que a crise ecológica já está afetando a vida moder-na e pondo em risco o futuro aberto que sempre orientou a modernidade.

48 Ibidem, p. 151

49 Ibidem.

50 Danowski, D; Viveiros de Castro, E, op. cit., p. 103

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190 Rafael Mofreita Saldanha

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Isso significa que inevitavelmente precisaremos lidar com transformações na organização e reprodução da vida social. Em segundo lugar, entender que o presente etnográfico, sedimentado num modo de vida particular que não pressupõe a relação de dominação e destruição do entorno em que se vive, pode servir de aceno para o tipo de transformação política que precisamos empreender. Tomar, portanto, esse modo de vida como uma espécie de ho-rizonte político pode ajudar na reconstrução de um modo de vida mais ade-quado para os novos tempos, rearticulando a nossa compreensão do tempo e da história que não seja orientada para o futuro.

*

A partir dessa discussão, acredito que temos uma imagem melhor dos efeitos que a crise climática traz para a nossa disposição temporal. Ela não significa o fim do tempo, mas implica a necessidade de se aceitar o fim de uma certa imagem do tempo que continha em si uma certa ideia de futuro como eixo orientador, a partir de um solo seguro – isto é, o estrato temporal dos ritmos mais profundos e lentos. A crise não é, portanto, algo de absolutamente novo que irrompe no horizonte, como um deus ex machina. O que há – e é preciso ter em mente na hora de enfrentar esse problema – é uma estrutura comple-xa e frágil que teve seu ritmo alterado, passando de uma regularidade mais ou menos estável para um arranjo complexo mais irregular. Trata-se, nesse contexto, da instabilidade e imprevisibilidade dos processos complexos que constituem as condições da nossa vivência. Essa ausência de regularidade acaba destruindo a possibilidade de direcionar as nossas vidas para um fu-turo, pois o espaço de experiências que o fundamentaria deixou de existir quando nós, modernos, o destruímos. Ou melhor, quando nós conseguimos produzir efeitos fortes a ponto de afetar os estratos mais profundos que eram a condição do desenvolvimento técnico da humanidade. Mas essa ausência de perspectivas futuras não significa o vazio. O problema permanece apenas se, diante dessa crise, permanecermos presos na estrutura temporal moderna. É por isso que procuramos esboçar, a partir do pensamento ameríndio, uma possibilidade de disposição temporal diferente, obrigando-nos a construir outra relação com o porvir.

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191Colapso climático e a destruição do futuro

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29, n.47, p.171-191, jul.-dez.2020

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* Fundação Osvaldo Cruz (FIOCRUZ) e Museu Nacional (UFRJ). Contato: [email protected]

Exfermidade e experiência de adoecimento: zoonose

no Antropoceno

Exfermity and illness experience: zoonosis

in Anthropocene

Resumo

Absolutamente datado, efêmero e circunstancial o presente ensaio é uma reflexão que parte do conceito de acontecimento, durante a pandemia do new covid-19 SARS-2 no mundo, verificada a partir do claustro de um pequeno apartamento em Copacabana. O texto descreve a súbita necessidade de descrição da experiência de doença por filósofos, sociólogos, antropólogos e intelectuais a partir de um paradoxo: a busca de soluções e a percepção de sua impossibilidade emergem simultaneamente. O estatuto das reflexões filosóficas hodiernas sobre o fim de todas as coisas é mencionado de modo ensaístico e não exaustivo. A questão do Antropoceno e das zoonoses é tematizada neste contexto de modificação, onde os modos, etimologia insuperável do projeto moderno, se confrontam com impasses escatológicos de adiamento do fim do mundo.

Palavras-chave: “Antropoceno”; “covid-19”; “fim de todas as coisas”; “expe-riência de doença”; “filosofia francesa contemporânea”; “Bruno Latour”.

Recebido em: 29/05/2020 - Aceito em: 20/12/2020

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Abstract

Definitely dated, ephemeral and circumstantial, this essay considers the concept of event (événement) during the pandemic of the new covid-19 SARS-2 in the world, listening from the cloister experience springing out of quarantine in a small apartment in Copacabana. The recent and sudden need to describe illness experience by philosophers, sociologists, anthropologists and intellectuals has been envisaged as a paradox: the search for solutions and the perception of their impossibility emerge simultaneously. The status of today’s philosophical reflections concerning the end of all things is mentioned through an essayistic and non-exhaustive way. The issue of anthropocene and zoonosis is addressed in this context of change, where modes, an insurmountable etymology of the modern project, are confronted with eschatological impasses and do face the postponement of the end of the world.

Keywords: “anthropocene”; “covid-19”; “end of all things”; “illness experi-ence”; “contemporary French philosophy”; “Bruno Latour”.

"la surenchère de l’éloquence eschatologique"Jacques Derrida

Inscrever mais de 200 mil mortos em lápides

Ocorre uma pandemia letal, desde janeiro de 2020 até o dia em que escrevo. No final de junho o Brasil contava com mais de cinquenta mil mortos e, agora, quando reescrevo este mesmo texto no final de janeiro do ano seguinte, há 218.878 óbitos causados por COVID-19. Embora sejam enumeradas epide-mias e pandemias ao longo de dois séculos, penso que as únicas temidas no hemisfério sul foram AIDS, Zica, e, até ontem, o Ebola. A (gripe) Espanhola, do final da primeira guerra (H1N1), foi sentida no Brasil de modo desigual no tempo e no espaço. O coléra, a peste negra e outras enfermidades infecciosas e epidêmicas portuárias jamais rivalizaram com os mosquitos de nossos tró-picos. A antibióticoterapia limitou as epidemias bacterianas e as enfermidades virais ganham visibilidade somente depois dos métodos de replicação genética do PCR a partir de 1986-87. No hemisfério norte, ao contrário, as epidemias

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de influenza-SARS e MERS foram sentidas e forçaram respostas. A preocu-pação com doenças virais respiratórias que provocam SARS ou SRAG (uma tempestade inflamatória de citocinas que obstrui e danifica os pulmões) se fez presente no hemisfério norte ao longo dos últimos trinta anos. São nações com vigilância sanitária e preocupação com impacto econômico de epidemias gri-pais. Antes inespecíficas, estas viroses puderam ser diagnosticadas com maior precisão depois dos testes laboratoriais de PCR (polimerase chain reaction), tor-nando-se altamente discriminadas, contabilizadas, mas não necessariamente temidas. A frequência das epidemias aumentou, junto com a explosão popu-lacional planetária e as megagranjas para produção de frango ou porco em escala industrial. Algumas destas respostas foram produzidas em centros de controle de pandemias no sudeste asiático, a partir de diferentes critérios de preparedness em que o modelo incluía as variantes da influenza capazes de provocar SRAG. Cabe sublinhar que várias destas iniciativas de preparação preventiva dos últimos vinte anos foram sendo paulatinamente abandonadas, possivelmente em função do custo elevado e da dificuldade em financiar pro-jetos de saúde coletiva em sociedades com ideologia neoliberal predominante1. Além das barreiras de vacinas utilizando genômica reversa temeu-se também a criação de armas biológicas, restringindo ainda mais as iniciativas.

Disciplinas afins, usualmente muito críticas da biomedicina,como a me-dicina social, a saúde coletiva e a antropologia médica foram surpreendidas com o clamor que invadiu seu quintal.2 Não esperavam adquirir tamanha importância. Não sabiam como responder rapidamente ao chamado. Sempre pautadas num ideal de coletividade, foram jogadas no mais cruel impasse com a rápida disseminação da infecção: pensar a economia e planejar a di-minuição de danos. Um ideal de controle e proteção típico das sociedades previdenciárias, de gestão dos riscos e comodificação dos cuidados em saúde, foi ameaçado de modo amplo e forte. Os mais competentes foram descarta-dos e o país lançou-se num desgoverno. A incapacidade dos líderes e o con-texto pouco republicano com tendências direitistas autoritárias e neonazistas

1 O projeto ANTIGONE (Anticipating the Global Onset of New Epidemics), dirigido por Thijs Kuiken no centro médico Érasme de Rotterdam, funcionou entre 2011 e 2016 envolvendo um consórcio de 15 laboratórios de pesquisa viral (Alemanha, Espanha, França, Grécia, Reino Unido, Holanda) dedicados à ameaça de pandemia. Ver, Frédéric Keck, L’alarme d’Antigone. Les chimères des chasseurs de virus. In. Terrain, No 64, (Paris: 2015), p. 3–19.

2 Francisco Ortega, Dominque Behague. O que a medicina social latino-americana pode contri-buir para os debates globais sobre as políticas da Covid-19: lições do Brasil. Physis, Rio de Janeiro, V. 30, No. 2, (Rio de Janeiro: IMS, 2020), p. e300205. Disponível em <https://doi.org/10.1590/s0103-73312020300205>. Acesso em 09 Março 2021.

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da alt-right emergente descartaram as ciências mais diretamente responsáveis – a saber, infectologia, medicina intensiva, saúde pública-epidemiologia. O Ministério da Saúde ficou acéfalo e teve sua autonomia e poder de decisão aniquilados. A crise brasileira foi semelhante a dos EUA, distinta da crise da União Europeia e mais ainda do que ocorreu no sudeste asiático e na China, que tiveram protagonismo e resposta mais efetiva.

Ao mesmo tempo em que o acaso e o acontecimento imprevisível, sempre remotamente hipotético, antes admitido numa exterioridade impensável, se intrometem na vida cotidiana, surgem os desafios. Chamarei de exfermida-de a esta abertura para uma exterioridade radical. Tanto voltada ao novo, surpresa com um vírus desconhecido, quanto empuxo ao reconhecimento de algo que parece vir de fora, ainda que seja pura familiaridade, insidiosa repetição Unheimlich. Embora esteja inscrita nos rumos hipertecnológicos do Antropoceno, esta ameaça de enfermidade e morte coletiva aparece enquanto visita da radical exterioridade. Isso força ao rápido reconhecimento e deixa perplexos aqueles envolvidos. Isso coloca em questão as especialidades e pretensões. Isso fala e faz falar.

A rigor trata-se da noção estética do exforme (L’Exforme) desenvolvida por Nicholas Bourriaud a partir da hipótese de que produzimos lixo de tal modo que nos tornamos este lixo, nos poluímos num sentido tão mais escatológi-co que acaba não sendo possível distinguir-se dos dejetos e debris jogados fora. A ênfase comparece aqui numa ecologia do fora-exterior pensada de modo trivial, da ilusão de que as coisas desaparecem e que a circunvizinhan-ça maculada não pertence à Gaia. Estamos falando de pulsões anais e zonas erógenas de grande sadismo, de espancamentos, de sujeiras corporais fedo-rentas sadianas. Da abjeção do objeto. Mas há uma exterioridade radical que interessa ao exforme e poderia ajudar-nos a pensar a exfermidade, ecologia microbiológica multiespécie de fronteiras e “pulos” interespecíficos. Quando Anna Tsing percorre as aventuras dos cogumelos matsutake e descobre forte comodificação das ruínas, poderíamos pensar nesses regimes de exteriori-dade do lixo entrópico incessante do capital.3 O acontecimento-irrupção do cogumelo ou da virose estão em relação com o de-fora.

A relação entre arte e trabalho se modula, entretanto, diferentemente dos modernos. No Maelstrom exforme verificamos, de acordo com Bourriaud: fá-bricas despejando resíduos, agrotóxicos, reciclagem periódica de produtos

3 Anna Tsing, The mushroom at the end of the world: On the possibility of life in capitalist ruins. (Prin-ceton and Oxford: Princeton University Press, 2015), p. 205-213.

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para não-durar, descarte incessante, atos de jogar fora, favelas, subúrbios, zonas sem esgoto, saneamento, água, sujeira, plástico, compulsão obsessiva em limpar, renovar, refazer o mesmo, animais abandonados, envenenados, exércitos de imigrantes, banidos, mendigos, sem teto, errantes, despojados, pessoas perdidas, nômades. Dirá ele: “A arte nega a existência do dejeto como tal, pois nem nada nem ninguém pode ser considerado como não integrável.” Circulando entre duas “categorias” opera livremente no universo do produto e do dejeto, no afã de “constituir um resto e um valor”.4

Para além das zoonoses surgirem como expressão mais sensível do Antropo-ceno, a infecção tornou visível a fragilidade dos modos de vida. Atuou afetando negócios dos ricos e um pouquinho de suas vidas, além de ceifar a dos pobres, negros e índios. Assim como a conexão (evito falar causalidade) de peidos e arrotos do rebanho bovino com o aquecimento global não é evidente, a vincu-lação (ainda evito falar causalidade) de enfermidades emergentes com os modos de vida no Antropoceno tampouco seria facilmente perceptível ou sensível.

Sua dimensão de finitude essencial, a ser pensada com ajuda do Roman-tismo alemão ou do existencialismo, foi recolocada em termos próximos do fim de que fala Kant (Endzweck). Cartazes de um programa ambiental das Na-ções Unidas (ONU) a propósito da emergência do new 2sars-covid-19 (C19) assinalam cinco fatores responsáveis pelo aumento das zoonoses no planeta: 1) Desmatamento e outros usos inadequados da terra; 2) Agricultura, criação e rebanhos intensivos; 3) Resistência antimicrobiana crescente; 4) Mudanças climáticas; 5) Comércio ilegal ou mal regulado de animais selvagens.

A produção agrícola, especialmente de alimentos, característica de modos de vida (ainda) modernos, está desenvolvendo uma contradição ou um para-doxo que anuncia o fim de muitas coisas. Muitas vozes no planeta e do plane-ta ganharam caixa de ressonância. Trocamos alguns objetos carecas, que nos termos de Bruno Latour são os objetos sem-risco modernistas – entendo aqui, especialmente, o mercado de animais selvagens, aves sentinelas, controle de fronteiras – por um objeto cabeludo e descabelado, um apego objetal arris-cado5 – o C19, nosso visitante. Mas, a questão não tem sujeito representante nem representação realizada. É uma performance feita na abertura ao exterior com actantes que convidam objetos e são invadidos por outros quase-objetos. A surpresa esperada da crise covid é impasse, recomeço e também fim.

4 Nicholas Bourriaud, L’Exforme, (Paris: Presses Universitaires de France, 2017), p. 138.

5 Bruno Latour. Politiques de la nature: comment faire entrer les sciences en démocratie, (Paris: La Découverte/Poche, 2004), p. 358.

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O que legitima este equívoco de tomar a finitude como fim do planeta, fim dos viventes ou fim da vida humana orgânica ou social? O próprio legado kantiano, recuperado no pensamento verde acerca da Atombomb, me parece responsável, fomentando esta possibilidade. Pensadores como Anders, Apel e Jonas se perguntam sobre a universalidade do dever quando a tecnologia tor-na-se capaz de destruir Gaia.6 É preciso frisar que, no pensamento kantiano, colocar assuntos de fim-das-coisas significa mobilização de ideias que a Ra-zão cria para si mesma, num jogo.7 Kant pergunta-se “por que os homens es-peram apesar de tudo um fim do mundo (überhaupt ein Ende der Welt)?” Junto com isto considera que se deva ainda explicar por que “para a maioria do gênero humano espera-se um fim com pavor (ein Ende mit Schrecken)?”8 Kant afasta-se com firmeza da Teodicéia leibniziana. Espera-se um fim do mundo pois a duração racional indeterminada e sem fim do mundo só pode ser ad-mitida e ganhar algum valor com a comensurabilidade entre a existência e seu objetivo final (dem Endzweck ihres Daseins gemäss sind). Para tolerar o sem-fim é preciso introduzir finalidades. Justificar a existência afasta pensamentos de fim-de-todas-as-coisas. Como se a criação sem finalidade (Zwecklos) fosse um espetáculo teatral (Schauspiel) que não acaba nunca e não permite conhecer nenhuma finalidade racional (teatro do absurdo).9 Os confins dos infernos nos oferecem uma pontuação ou escansão para o texto interminável, que não pode ser lido. Os ecos da resposta para a segunda pergunta poderiam ser en-contrados, ainda que de modo desigual, em Goethe, Freud ou nos pensado-res do trágico no século XIX. A vocação para um fim pavoroso é causada por

“tamanha corrupção transmitida pelo gênero humano” que não permite haver

6 Alencar, Claudia Rodrigues, O “Tempo do Fim” de Günther Anders, AnaLógos, V. 1, (2016), p. 105–115; Anders, Gunther, Reflections on the H-bomb, Dissent, V. 3, No. 2, (1956), p. 146–155; Anders, Gunther, Teses para era atômica, Sopro, V. 87. No. abril, (2013) p. 4–9; Chiarello, Maurício, Do poderio tecnológico ao dever de responsabilidade: sobre a crítica à tecnociência em Hans Jonas e Günther Anders, Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, V. 22, No. 4, (2017), p. 13–42.

7 A destruição de Hiroshima e Nagasaki despertaram a filosofia para o horror do aniquilamento da humanidade pela própria humanidade. A liberdade do agir, tendência ao dever, responsabili-dade, etc. precisam doravante implicar necessariamente a humanidade inteira, e não mais “sim-plesmente” guiar um sujeito abstrato do agir prático. A química (nuclear, mas também inorgânica e orgânica) tornou-se uma ciência de destruição de massa (criação do ainda inexistente a partir do “antinatural”) e neste sentido o fogo de cozinha, espécie de pai alquímico das transformações, ganha destaque prometeico.

8 Immanuel Kant. O fim de todas as coisas. In. Immanuel Kant: textos seletos. Edição Bilíngue. (Petrópolis: Vozes, 1985), p. 162-163; A 503-505.

9 Immanuel Kant. O fim de todas as coisas. In. Immanuel Kant: textos seletos. Edição Bilíngue. (Petrópolis: Vozes, 1985), p. 163-164; A 504-505.

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esperança, mas apenas expectativa de dar um fim horrível aos humanos como sinal da “mais alta sabedoria e justiça”. A queda ou culpa pela abjeção só é co-mensurável com um final, ou destruição, igualmente horrendo (Schrecklich).10

Fascinados pelo fim, conduzidos pelo fim, estaríamos igualmente justifi-cados por este mesmo fim. Um circuito termodinâmico, de servo-mecanismo ou feedback, serve para figurar esta repetição vestida ou disfarçada. Esta pul-são de morte (Wiederholungszwang) incrustrada no pensamento do XIX apa-rece esquecida pela pós-modernidade tardia. Podemos supor que foi recon-figurada, que outras roupas foram vestidas na repetição ou em seu circuito. No início do século XXI ocorreu um absoluto fascínio por decapitação, assim como por canibalismo. Explico. Os smartphones permitiram redes sociais. A alimentação se confrontou com os animais sencientes. Pensar com a cabeça colocada numa tableta mágica. Refiro-me à polegarzinha com os polegares di-gitando no celular, de que fala Michel Serres.11 Somos todos pequena polegar-zinha! Alimentar-se com medo de transformar o alimento em canibal como no caso das vacas loucas, zoonotizadas por príons. Refiro-me ao comentário de Claude Lévi-Strauss,12 cuja obra incessantemente buscou compreender o canibalismo e a caça às cabeças. Somos todos canibais!

Com a pandemia, a partir dos primeiros dias de fechamento na Itália, segui-da pela França e Alemanha, surgiram escritos de filósofos e ativistas sobre esta experiência – Giorgio Agamben, Bifo Berardi, Zlavoj Zizek, Achille Mbembe e mesmo Jürgen Habermas - seguidos por artistas, intelectuais e cientistas.13 O diário de Pedro Almodóvar tem sido cobiçado por leitores e editores. Os cien-tistas também foram encontrando seu ritmo de formiguinha e têm oferecido

10 Para Kant há três possibilidades de conceber o fim de todas as coisas: um fim natural, um fim místico e o final antinatural ou invertido. São conceitos universais do fim de todas as coisas, produzidos pela razão. O fim natural, que pode ser concebido pela razão prática, se explica pelo progresso dos humanos. A cultura dos talentos, “o desenvolvimento do gosto e do luxo” (Üppig-keit) fazem com que as necessidades cresçam mais do que os meios para satisfazê-las.

11 SERRES, Michel. Petite poucette. (Paris: Le pommier, 2015) p. 13-17.

12 Ver especialmente, Claude Lévi-Strauss. La Leçon de sagesse des vaches folles. La lettre du Collège de France, No. Hors-série 2, (2008), p. 46–48; e Claude Lévi-Strauss. Nous sommes tous des cannibales. Précédéde Le père Noël supplicié. (Paris: Seuil, 2013) p. 163-174.

13 Foi Agamben que iniciou uma polêmica envolvendo sua interpretação da biopolítica e do Estado de Exceção na crisecovid, logo que o norte da Itália foi acometido, e vem mantendo “in-tervenções” sobre a pandemia com publicação aproximadamente quinzenal no Blog da editora Quodlibet. Giorgio Agamben. L’invenzione di un’epidemia. Quodlibet: Una Voce. 26 febbraio 2020. Disponível em: <https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-l-invenzione-di-un-epidemia>. Acesso em: 20 fev. 2021.

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uma pletora de artigos buscando compreender a enfermidade e seus agravos para a saúde. Exortação. Ao longo do ano foram se modificando alguns crité-rios de peer review para permitir maior e mais rápida publicação nos periódi-cos indexados. Repositórios técnicos de artigos pré-print (aguardando revisão) para COVID-19 vingaram, junto com artigos de baixa qualidade, mistificado-res ou negacionistas.14 Embora repudiados, ganham circulação num dos times envolvidos no debate. Surgiram espaços letrados para ensaios e comentários. Jornais e revistas acolheram com presteza artigos sobre o curso da crise covid. Uma enxurrada bonita, exuberante e divertida de podcasts e webinars tem sido praticada. O Brasil se destacou no conjunto desta produção.15

A escrita de textos ocorre paralelamente à codificação e leitura do RNA mensageiro, replicando o vírus dentro das células, como máquina xerox ou impressora digital. Os imunizantes baseiam-se igualmente no reconhecimen-to de alguma sequência de partes virais que pode ser lida e, portanto, reco-nhecida. Há exatamente quinze meses foi aprovada uma vacina para a febre hemorrágica do Ebola, zoonose originária da África Central. Esperou-se por vinte e sete anos para que fosse obtida. Ainda não dispomos de uma vacina para o HIV/SIDA. No caso do C19, em aproximadamente dez meses já exis-tiam quatro ou cinco laboratórios que conseguiram encerrar a Fase III de ensaio clínico, qualificando seus produtos para uso emergencial e produção acompanhada. As vacinas estão em curso. Junto com elas, uma corrida para obter imunização de rebanho enquanto avançam mutações perigosas, mais agressivas e com a possibilidade de escaparem da vacina.

Cabe tratar de um paradoxo que se desdobra em alguns outros. Além de vários modos de viver com o vírus entre nós, que aliás tem se mostrado bas-tante monocórdicos, emerge a ambição de pensar, conhecer, adotar um dis-curso à altura do vírus. Uma certa paixão arcaica, élangue (Lacan) ou mania

14 As publicações cientificas, com revisão rigorosa por pares, em tempos de pandemia passa-ram por uma modificação substancial – por um lado houve simplificação para aceleração dos processos, diminuindo o rigor do peer-review e suas negociações. Por outro - inúmeras situações editoriais afloram: erros, fraudes, conflitos de interesse não explicitados, repositórios “fantasma” de papers sem revisão, retratações, mudanças, retirada de artigos do site, pressão sobre editoriais, politização do uso de medicamentos, entre outros aspectos em curso e por vir.

15 Também tratei de fazer meu grupo e falar com veemência ou tentar compreender. Usei zoom, twitter, e-mail, assinei documentos, procurei fomentar campanhas justas e combater fakenews. Cheguei a defender, que se decretasse um ano-covid em 2020 para o ensino e pesquisa da Univer-sidade, uma jornada anti-sabática de corrigenda do Governo e de lutas regionalizadas, estratifica-das, de exercício micropolítico fino. Sentido-me abandonado pelo poder Executivo, como muitos trabalhadores intelectuais, apostei no poder moderador de Governadores e Prefeitos, atuando junto com o STF.

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(μάνια), toma conta dos pensantes. Muitas pessoas querem falar sobre tudo o que enxergam envolvendo o COVID-19, numa contagiosa injunção ao discur-so. Depois ficam extenuadas. Evidentemente não enxergam este vírus – forma de vida pequenina, invisível, artigo de fé para iletrados e produto de crença esotérica ilustrada, para quase todos restantes. O C19, ao promover isolamen-to também exorta à superutilização do mundo virtual, protético, agora como complemento e não mais suplemento do contato perdido. Seria apenas um falatório oportunizado por teclados ao alcance dos dedos nervosos? Parto do princípio de que uma experiência de fim de todas as coisas se mostra e fica demonstrada, ou pelo menos indicada, no luto, nas restrições e no confina-mento. Este ensaio trata, portanto, do paradoxo de ser obrigado a falar sobre não ter sobre o que falar.

É como se as agendas pensantes e filosóficas fossem reorganizadas pela pandemia, que se torna uma tarefa maior, quase a única tarefa, senão para quase todos, pelo menos para muitos. Junto com esta multifacetada vocação para uma metafísica do covid, que não rivaliza nem impede que a ciência do covid se lance em suas buscas e soluções, aparece a tentação em dar alguma resposta. Refiro-me deste modo ao diário íntimo, ao ensaio, ao documento político, ao plebiscito legislativo, ao tweet – pouco importa – no momento em que esta escrita atualiza um caosmos, uma insegurança de pandemia, de An-tropoceno. Muitas pessoas conseguem enxergar um novo problema, que está diretamente influindo em seus modos de viver e produzir. Cabe admitir regi-mes de cuidado inesperados e revolucionários. Entretanto, qualquer resposta trivial obedece à dicotomia: viver de outro modo ou conservar os negócios de sempre (Business as usual/BAU).16

Como disse um amigo sociólogo, as ciências sociais, aplicadas e humanas estão tão desacreditadas no Brasil que nos últimos meses surgiram milhares de textos e análises da pandemia. Todos estão escrevendo sobre o C19 para justificar sua importância ou pertinência num momento de crise. São reedita-dos livros de história das ciências dedicados às pestes, epidemias e infecções. Um estudo sobre “A Espanhola”, redigido por Lilia Moricz Schwarz e Heloisa Starling aparece nas livrarias. Números especiais de vários periódicos tratam do assunto. A verba escassa, no fundo do tacho do CNPq, está sendo dirigida

16 “Business as usual” (doravante abreviado no texto deste modo) significando: os negócios de sempre, “como de hábito”, do mesmo modo. Ou seja, sem nenhuma alteração do modo de produ-ção em sua escalada de aquecimento tecnológico e climático. O termo foi negociado nos últimos relatórios do IPCC face à necessidade de acomodar interesses nas recentes conferências climáticas mundiais. Muitos o tomam por conceito relevante no campo mas há grande resistência do capital.

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exclusivamente para a biomedicina. Espera-se uma guerra das ciências quan-do não são ouvidos protestos de outras áreas, igualmente comprometidas com estudos científicos visando o manejo da crise covid.

A história se ocupa do passado e, portanto, de exemplos a seguir. A filo-sofia se ocupa de interpretar o que acontece com olhar futurista e, portanto, durante a crise toma impulso em ideais. As ciências biológicas e econômicas ocupam-se de julgar o cotidiano e, portanto, de disputar normas ou regras a seguir. A rigor, os jornais colocam “os médicos” como sabedores do passado e do presente e “os economistas” como artífices do futuro. Não é necessaria-mente assim. Adoto esta fatia do senso comum, passado presente e futuro, do mesmo modo que um fenomenólogo dá razão ao tempo vulgar submetido à mensuração. Finjo, por alguns instantes, que não existem Marc Bloch, Michel Foucault, de Certeau, Le Goff, etc.

O que ensinam os textos que se propõem a orientar? Grandes soluções definitivas, esperadas e desejadas, que não eliminam as pequenas soluções ao alcance dos quase-infectados. Exatamente as soluções pragmáticas e rápidas que são exigidas constituem estas pequenas decisões: comer, não se conta-minar, dormir, criar um ritmo estando no isolamento, conviver com parentes ou afins, usar redes virtuais, ganhar dinheiro, manter o trabalho, contabilizar prejuízos e lucros, inventar sexo, descobrir enfermos e necessitados, praticar hospitalidade ou egoísmo, decidir quando sair de casa. A primeira versão deste texto ocupava-se aqui dos vaticínios e interpretações, era desconhecido o curso da doença, sua história natural. A crise era atacada e destrinchada por pensadores. Agora, já posso distinguir recomendações, conselhos, prog-nósticos na literatura médica especializada. Sabe-se que há sequelas ou danos mais duradouros, assim como uma síndrome com sintomas persistentes. O sofrimento começa a ser ponderado com soluções curtas ainda que transindi-viduais. O fato de que organismos são semelhantes sob a especiação autoriza uma medicina coletiva apoiada na generalidade, o que é desmentido pela infra-individuação permanente do vivente, solicitando outras medicinas que façam a crítica kantiana da primeira e adotem seus fragmentos como novas ferramentas. Espécie de medicina translacional dos conceitos imanentes.17

Qual seria o pathos destes autores? Algumas hipóteses básicas podem ser propostas. Oportunidade acadêmica profissional, exercício regular do métier,

17 O movimento ONE HEALTH, reivindica tratamento de saúde comum aos humanos e animais, atento para uma concepção holista de vida multi-espécie ou trans-específica assim como para uma ecologia planetária das enfermidades. Cabe perguntar-se sobre a contaminação por covid-19 de furões, doninhas e minks, preocupar-se com cães e gatos domésticos e lamentar danos aos primatas maiores.

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responsabilidade com a necessidade de resposta, medo e susto com a ameaça, incapacidade de fazer outra coisa senão escrever, desespero, percepção de uma mudança radical em curso.

Exatamente como no Decameron, não chegar perto dos doentes, de seus miasmas, contágios, terras e lugares, continua sendo o método mais rigoroso e feliz. Como adverte Boccaccio: “(...) avrà grave e noioso principio sí come è la dolorosa riccordazione della pestifera mortalita trapassata (...)” ou seja, este início merece concernimento/meditação em função da superação de dolorosas recor-dações da mortalidade pestilenta.18 Tomarei esta expressão: noisoso, menos no sentido de cuidado (Sorge), ocupação, lide, preocupação, chatice, ou ainda de paranoia ou metanoia, e bem mais como um fio condutor que fica por tradu-zir-se ao longo de minha digressão. Não obstante, este campo semântico é con-vidado pela pandemia e se desdobra de maneira incessante, como ela própria.

Não é desimportante tentar pensar o cuidado nesta chave. Assim como a metanoia, na tradição grega aproximada de uma mudança de opinião ou metamorfose intelectual, será lida na tradição novo-testamentária como uma conversão, ou no sentido ainda de penitência ou assumpção do peso da trans-formação. Se a paranoia apresenta uma versão paralela, mas concomitante, é porque na paranoia, como sistema delirante, os axiomas são busca de um enraizamento e dirigem-se para o centro da terra, a tematizar a gravidade.

O que poderíamos aprender sobre a peste com Grande Sertão, Veredas, de João Guimarães Rosa? Tendo sido cônsul brasileiro em Hamburgo durante o nazismo, e tendo estado pessoalmente envolvido com a questão da extradição dos judeus, podemos supor que teria algo a dizer sobre o horror e o medo de algo que se disseminava como peste. A questão mais bela do pacto com o demônio aparece numa trajetória em que se vai às serras nos confins, sempre a subir a serra e buscar um rio-de-trás, rio-de-fora, rio que é caminho pro velho Chico... Os pactários atravessam a peste.19

Na subida, verdadeira ascensão, temos o encontro fundamental com os catrumanos. Uma espécie de barreira sanitária, improviso popular com so-lenidade de capitão-do-mato, que vai de encontro à marcha da jagunçada. Descobrimos que há uma peste que faz com que os catrumanos do Sucruiú

18 Giovanni Boccaccio. Decameron. (Roma: Newton Compton editori, 2016) p. 35.

19 Thomas Mann conecta o pacto faustiano com a doença e a loucura de Adrian Leverkühn. Poderia tratar-se de Nietzsche, ou até mesmo do povo alemão, embora Mahler e Schönberg sejam personagens igualmente inspiradores. Thomas Mann. Doktor Faustus. Das Leben des Deutschen Tonsetzers Adrian Leverkühn, erzählt von einem Freunde. (Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 2014) p. 323-365 (XXV).

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estejam impedindo a passagem. São elementos arcaicos do calibre do recado do morro, anti-tropa telúrica que em seu dialeto, quase fala outra língua. A tropa de jagunços adentra o povoado do Pubo e emerge a fortíssima cena da procissão atravessando a fumaça. Todos rezam duas orações protetoras, virados para trás na sela do cavalo, sem olhar para o horror.20

Queima de bosta de vaca é remédio, defumação e esconjuro para os males da peste, praticado no Sucruiú. Primeiro a barreira, depois os remédios, en-tão o grupo segue seu curso predestinado sob a chefia de Zé Bebelo, que irá se transfigurar assim como Riobaldo (de outro modo, igualmente Diadorim). Encontram a fazenda de Seô Habão, coronel capitalista, saqueada, não por eles nem pelos catrumanos – dois bandos armados e sem governo dos outros

– mas pelo povo do Pubo queima-bosta. A experiência do Pubo sob a intensi-dade de Guirigó, personagem fugaz, porém marcante, ladrãozinho de restos inúteis que tem fome, mas o que rouba não serve de comer. Rápido ladino e fugaz, nem foge nem é deixado fugir, mas ganha um pedaço de rapadura “prá adoçar tua tripinha preta aí.” Somos todos Guirigó.21

Embora Rosa não assinale com nenhuma ênfase, o conjunto da leitura reforça o caráter muito excepcional destes acontecimentos e sua repercussão na tropa de jagunços que irá trocar de chefia na encruzilhada, e refazer seus caminhos. Segue-se o pouso prolongado e enfraquecedor. Acampam num terreno lazarento de maleita e são atingidos pela outra peste que se esconde nos lugares, nos miasmas. A enfermidade se espalha em camadas, etapas, franjas desiguais que se sucedem. Ali reaparece o sertão como ser, face ao devir da enfermidade, cara a cara com a peste de multiforme feição. O apren-dizado pactário é dianoia em sentido grego. Ali está o sertão “nonada”. Ali “o cavalo flosofou”. A peste traz medo e a ameaça redistribui corajosos e covar-des. O medo adoece, corrompe, destrói de modo diferente da dor.

Esta é a verdadeira pandemia no sentido hipocrático, emanações que der-rotam o chefe e reintroduzem o personagem anódino, mas tão maléfico quan-to o Morcegão Hermógenes – o senhor habão ou velho Abrão vetero-testa-mentário, que verifica, calcula e contabiliza. Modernidade que invade aquele sertão e o transforma em contas, verdadeiro agronegócio em seus primórdios.

20 A música como sabedoria extrema, Gaya Scienza, digna do além-do-homem, nem sempre guarda tão estreita relação com Satã tal como aparece em Mann. Embora o patuá (mojo-hoodoo estadunidense, gris-gris, juju) e a encruzilhada dos exus tenham fortes nexos musicais, não en-contramos a música na crucis de Riobaldo. Por outro lado, a ladainha e a toada evocadas nesta passagem são melódicas.

21 João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas. (Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984) p. 370.

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Aniquilação do valor pela mercadoria já quase comodificada (será que eu exagero?), daí a trágica visita à encruzilhada e o estranho pacto. Daí a chefia torna-se missão, os rumos se refazem, um compromisso se desenha. A doen-ça pactária é sucedânea da enfermidade e de sua sobrevivência. Aqueles que ficam marcados pela sobrevida da grande peste se tornam de algum modo pactários. Senhor do arco-íris e do destino, agora Riobaldo ocupa este lugar que sua obediência ao Diadorim constrange. De certo modo o pathos do chefe é uma nova enfermidade. Ao mesmo tempo que o noisoso é uma clara meta-noia, trata-se de um aprendizado e trajetória que atravessa O Gerais enfermo, adoecido, capaz de mudar nomes e acrescentar nomes como no mundo tupi-nambá: Reinaldo, tornado Riobaldo, já Tatarana (lagarta cospe-fogo) se torna então o chefe Urutu-Branco.

Quantas estantes de livros com COVID-19 no título ou na capa surgirão? Talvez a ponto de criarmos um novo gênero literário: “literatura da pande-mia”. A rigor já estava presente na ficção científica, que pode ser entendida com Ursula Le Guin como ciência-ficcional e concomitantemente enquanto etnografia imaginativa.22 Talvez nem seja uma biblioteca por vir, mas desde já apenas suas ruínas, vestígios de uma biblioteca para arqueólogos que po-dem vir a existir ou nem mesmo isso. Seguindo dicas de Kant na teoria do Céu, podemos especular sobre extraterrestres que leriam sobre a grande crise covid do século XXI. Ou simplesmente admitir a crítica devoradora dos ratos e a inutilidade dos livros que consomem papel ou baterias. Como se todos estes textos, testemunhos de um gigantesco arquivo audiovisual multimídia, se mantivessem no estatuto de “quase-livros”, no precioso sentido que Wal-ter Benjamin deu ao termo. Cadernos de notas, livros de pano, caixas de anotações e recortes que viajam com nossas bibliotecas e nelas permanecem, mantidos por nosso afeto.

Experiença ou experiência

O conceito fenomenológico de experiência alargou seu horizonte kantiano e neokantiano. Uso aqui não somente para borrar limites entre psíquico, indi-viduante, coletivo, assim como entre passado, presente e projetado. Entendo

22 Durante o êxodo para o campo iniciado com a pandemia, aparece nas redes sociais a notícia de que a grande autora de Science Fiction não tinha morrido de covid-19 mas apenas mudado de domicílio. Ficou disponível uma foto de sua mesa de trabalho, especialmente desenhada por ela, completamente vazia.

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inclusive que há uma nuance envolvendo o vivido e o vivente – a experiên-cia vivida não se afasta, mas tampouco esgota ou limita os viventes em sua capacidade de experiência ou a vida em sua dimensão, espessura e força de experiência. A política, o corpo e o organismo encontram-se entrelaçados na biopolítica (Jean-Luc Nancy, Giorgio Agamben, poder pastoral). Há, portanto, uma experiência da crise covid a ser tematizada. Isto se confirma em função do empuxo à escrita, assim como pelo caráter de exfermidade da pandemia.

Não cabe afirmar que exfermidade é vivida pelas “pessoas”, pela popu-lação dos continentes afetados do planeta. Os Estados nacionais entram em contradição com o desrespeito por fronteiras, típico da política viral.23 Até mesmo organismos transnacionais do pós-guerra como a WHO/OMS, Global Health ou mesmo a emergente One Health foram vistos como exigências, ad-versários em lugar de artifícios úteis, próteses ou barreiras sanitárias porosas. A pandemia é uma crise de certos modos de vida dos humanos durante o Antropoceno. Nem gatos, nem furões ou minks têm adoecido tanto quanto os humanos, nos quais o vírus se adaptou, em cujos corpos tem evoluído com mutações de maior perigo e ameaça tornar-se endêmico. Evidentemente cabe mais uma ressalva: não é uma crise de todos os humanos, que tampouco se igualam por terem organismos semelhantes, nem é crise de todas as culturas, que tampouco se comunicam de modo idealmente globalizado, como preten-de o comércio intensivo da feitiçaria capitalista.

Há aqueles diretamente afetados que tentam negar a crise covid. Há aque-les que buscam soluções, contingente heteróclito que se divide em dois gran-des grupos – dedicados a resolver a pandemia ou comprometidos com a crise climática geradora de pandemias. Não acredito que seja possível entender satisfatoriamente estas tendências apenas utilizando o senso comum. É mui-to cedo para concluir.

Todos os habitantes do planeta que adotaram a “grande narrativa do CO-VID-19” assistiram a um filme que mostrava a progressão dos problemas epi-demiológicos, com pequena defasagem temporal. Seu aspecto inexorável e a semelhança dos desfechos e problemas fez a aldeia global ter um estranho sentimento de unidade no fracasso. A impotência tecnológica ficou flagrante. Paradoxalmente, as soluções de baixíssima tecnologia foram evitadas, atra-sadas, ou adotadas apenas parcialmente. Quaisquer medidas epidemiológi-cas clássicas se revelavam impossíveis, sendo sobretudo recusadas enquanto

23 Gitte Du Plessis. When pathogens determine the territory: Toward a concept of non-human borders, European Journal of International Relations, V. 24. No. 2, (2018), p. 391–413.

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solução e sendo vistas como fonte de novos problemas. Hesito em falar de tempo simultâneo e espaços justapostos. É mais interessante indicar como a crise, que dura um instante longo, transforma tempo e espaço, reconfigura ambos e lhes concede novos modos de ser e feições ontológicas modificadas.

A simultaneidade pandêmica com pequena decalagem temporal fez com que se assistisse ao processo cinemático lento em que Tedros Ghebreyesus (di-retor da OMS/WHO) aumentava progressivamente alcance e tom. Ao decretar pandemia, pretendia que os aeroportos e vias de transporte fossem fechados, mas também sabia o quanto isto era sensível, arriscado, pois gerava divergên-cias há anos. Não foram fechados, senão quando era tarde demais para se fazê-

-lo com alguma efetividade na prevenção do contágio e tentativa de erradicação. Eufemismos conceituais da psicologia social estadunidense como “isolamento social” trabalharam pela ambiguidade, evitando sustentar a prática do lockdown ou “stay at home orders”. Parar quase tudo e manter pessoas e seus negócios em casa significa que o Estado deveria financiar este lapso de tempo, trocando mortalidade por prejuízo através do endividamento (a recíproca ocorre sob escândalo no Brasil). Poder-se-ia apenas dizer que saúde e economia estão jun-tas quid juris, sendo que estão de fato afastadas, em conflito exacerbado pela globalização em sursis. Ao discutir a impossibilidade de paz perpétua Kant fala no moralista político (politische Moralist) que começa no exato ponto em que, de modo justo, termina o “político moral” (moralische Politiker) ou a moralida-de sempre curta do político parlamentar24 – sem pax, estamos agora em mais uma guerra: da economia (jamais desacelerar, nunca parar) com a saúde (evitar colapso do sistema hospitalar, princípio de precaução, preparedness).

A resposta da União Europeia (EU) baseou-se num estado máximo admi-nistrando um conflito potencial da burguesia empreendedora. Nas Américas governadas pela alt-right tentou-se manter o Estado com tamanho e ideolo-gia mínimos, seguindo a cartilha neoliberal atropelada pelos acontecimentos. Neste caso ocorreu forte conflito com setores renovadores e profundamente insatisfeitos da sociedade. Militâncias e manifestações antirracistas como o Black Lives Matter (BLM) aconteceram em muitas capitais estadunidenses de modo sem precedente, propagando-se pelo mundo. Jovens sem trabalho, sem escola, ociosos e controlados, sob violência policial ou Governamental, ficaram com muita raiva. A consciência da vigilância e do controle policial

24 Submeter deste modo os princípios aos fins faz malograr suas próprias “intenções” de conciliar a política com a moral. Immanuel Kant. Sobre a discordância entre a moral e a política a propósito da paz perpétua, in: Immanuel Kant: textos seletos. (Petrópolis: Vozes, 1985), p. 144-145; B 88-89 / A 82-83.

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cresceu e começou a experimentação de insurreições locais em função da proliferação de protestos contra políticas, empresas e governos responsáveis pela catástrofe climática. A própria agenda das lutas do Antropoceno come-çou a ser traduzida e banalizada pelas querelas da crise covid: “novo normal”,

“encolher economia”, “vacina é a solução”, “contextualizar” menor emissão de gases, “comemorar” animais selvagens nas ruas ou aviões retidos no chão.25 Bruno Latour chamou esta convergência de “interessante laboratório”, que, contudo, se tornou cada vez mais desgastante e perigoso.26

Além de observarmos a propagação sincrônica da epidemia, vai se criando uma “única” experiência bastante semelhante e monótona, ainda que multiface-tada. Descobrimos que somos quase todos habitantes de enormes cidades, com uma vida cotidiana escravizada por rotinas. Estes ritmos foram interrompidos por uma exigência de monotonia ainda maior e mais implacável – isolamento, quarentena, interdito de circulação. O espaço fica, portanto, limitado ou confi-nado, porém mentalmente ampliado, sob promessa de uma vida infinita dentro do mundo virtual, dentro das telinhas. Pode-se escrever, falar sobre o que é o covid, sofrer com ele, seguir ou dar conselhos, ficar mentalmente perturbado, deprimido, com medo. Ao final, na guerra das vacinas, pode-se elogiar a tec-nologia ou reclamar da desigualdade que fornece vacinas aos mais ricos (des-denhando iniciativas mundiais de quebra de patente e melhor distribuição). A violência entre parceiros íntimos aumenta, junto com o feminicídio, o alcoo-lismo e as ofensas às crianças. Há dados esperados sobre suicídio, bem ruins, mas as publicações são parcimoniosas, pois a crise econômica vindoura deve ser ainda mais determinante. É possível entregar-se a fantasias hipocondríacas e sofrer depressivamente. Pode-se perder o emprego. Pode-se ir à falência.

O espaço de confinamento busca reunir todos os apetrechos e víveres neces-sários - como um abrigo antiaéreo ou nuclear, como um laboratório antártico. O claustro digital aspira ao mundo. Urbi et orbe, globalização é urbanização virtual, expansiva, imaginada, mas insuportável. Ficar em quarentena ou fazer lockdown se torna impasse. Divide seus adeptos à esquerda e à direita. De acordo com a teoria deleuziana do ritornelo, corpo e biosfera se expandem ou contraem, com o canto prolongando a linguagem e a mecanosfera prolongando a vida. Uma sincopada atividade estética desenha-se: territorialização, desterritorialização e

25 Pedro Duarte. O vírus e a redescoberta da natureza. O que nos faz pensar, V. 29. No. 46 (Rio de Janeiro: PUC, 2020), p. 163–172.

26 LATOUR, Bruno. Imaginer les gestes-barrières contre le retour à la production d’avant-crise. AOC-Media. (2020).

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reterritorialização.27 São fundamentos de um “empirismo transcendental” (geo-filosofia) que trabalha refundando doutrinas etológicas de agressividade territo-rial ou geopolíticas de nomos da Terra. Paradoxalmente, o “afastamento social” não significa fixar-se no território, mas deslizar por sua monotonia gelada ou desértica. A casa se urbaniza ao ser forçada à reterritorialização.28

O claustro tem um jardim que imita o paraíso. Ao apontar o dedo para um agente infeccioso, também apontamos o dedo para nosso corpo cheio de órgãos. Talvez o cenobitismo fosse uma resposta sobre “como viver junto”, já que a questão da violência doméstica e da violência entre parceiros íntimos, assim como regimes de convivência aumentada estão na pauta da pandemia.29 O cenobitismo também adquire o sentido de como viver junto com o vírus, em sua companhia, seja esperando achatamentos ou picos de curvas “SRI”, seja assistindo à epidemia tornar-se endemia. De qualquer modo, a experiên-cia quase mística deste delírio viral, sua deixis de dervixe, não se desvincu-lou do falar. O uso emponderado da palavra é por definição estranho à vida monástica. Como disseram Tronti e Tari: “Enquanto a ideia de que estamos vivendo em tempos apocalípticos hoje se tornou senso comum (na pande-mia), sua verdade permanece altamente questionável.” Observando a espeta-cularização apocalíptica da infosfera, deduzem que não se trata de um senso profético genuíno, mas de imagens provenientes de filmes hollywoodianos e séries televisivas estranhas ao “grande livro que João escreveu durante seu exílio em Patmos. (...) Por estarmos tão envolvidos e atravessados pelo espí-rito mundano as evidências se tornam invisíveis (“le evidenze diventano come invisibili”) sendo hoje necessário adotar a postura dos primeiros monges da era cristã, ou seja, o estranhamento (estraniamento), xeniteia em grego patrísti-co ou peregrinatio em latim, com relação à sociedade dominante e sua própria identidade social” Para ambos, esta peregrinação estrangeira para com todos e com a pandemia não é reclusão espiritual, mas reordenação do combate

27 Do Caos nascem os ritmos e os ambientes (meios): “Fomos levados das forças do Caos às forças da Terra” DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mille Plateux. Capitalisme et Schizophrénie. (Paris: Minuit, 1980), p. 385-397.

28 Bevan, Imogen, Rethinking the house as a public health technology of preparedness, Soma-tosphere, 2020.

29 BARTHES, Roland Barthes. Comment vivre ensemble. Cours et séminaires au Collège de France (1976-1977). (Paris: Seuil, 2015). p. 215-227.

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político em uma toada marxista.30 Artur Dória, num belo ensaio sobre o cami-nhar descalço, nos coloca em sintonia fina com a significação entrecruzada de apocalipse e fim de mundo. Não se trata do peregrino, errante solitário que faz um caminho pelo mundo devastado, mas apenas de cumprir caminhada estruturada pela metanoia, revelação e confissão. A imagem de um mundo despovoado, de um personagem condenado à solidão total depois do fim, do abuso prometeico, é igualmente recorrente e funciona como uma sobrevi-vência narcísica após a morte.31 Mais difícil é tentar pegar o fim de surpresa e mirá-lo de soslaio. Errância por ruas vazias.

Ao lado das lutas dos comuns – terra, água, ar, paisagem, salubridade, espaço virtual, coexistência interespecífica – surge uma data e um local em comum: todos confinados dentro da mesma pandemia desde sua decretação (oficial) e nossas precauções locais (oficiosas). Hesito em dizer, comparti-lhadas. Alguém já disse que o BBB (espetáculo de confinamento televisivo tradicional) se inverteu por completo, e que agora milhares de esclausurados assistem aos integrantes da “casa” já “vacinados’”, “imunes” e com maior li-berdade de convívio do que os telespectadores. Além de tempo e espaço, sur-gem dimensões ou intensidades em que também vigora a impressão de que estamos juntos, passando pela mesma coisa. A velha metáfora da guerra con-tra o vírus vai neste sentido: finalmente um referente, algo que permite a dei-xis tranquila. O outro, o inimigo, o vírus está fora. Aponto o dedo, miro com uma arma. Esta designação, mero apontar, parece que acaba com tudo que existia antes, pois algo impositivo está simplesmente solto por aí, na idiotia sólida de um objeto saltando do mundo para cima de “nós”.32 Ser-aí, existen-te-Dasein, que nesta pandemia reuniria animais pobres-em-mundo (Weltarm) com humanos ricos-em-mundo. A expressão foi extraída por Max Scheler e Martin Heidegger da biologia de Jakob von Uexkull. A má-vontade na leitura

30 Mario Tronti e Marcello Tarì. Contemplazione e combattimento, Qui e ora, Numero 36-Pri-mavera Estate. 2020.

31 Como se pode ver nas imagens-registro de Artur Dória, “Os amigos que desconheço” e o aprendizado da queda. In. Revista Landa, V. 8, No. 2. (2020), p. 1–29.

32 O vírus é actante e não sujeito ou objeto, no sentido de uma deixis cosmológica que indica um regime de transformações nos objetos “designados”. Tema filosófico por excelência, integrante da experiência, o “objeto” vem sendo conquistado por camadas de síntese disjuntiva no lugar da habitual contraposição ao sujeito. Sobre a inter-objetalidade, ver Latour reivindicando a coisa heideggeriana, ou Viveiros de Castro apresentando a fractalidade da floresta. O vírus resiste a ser apontado ou designado de várias maneiras. É um objeto-fronteiriço multiplicado, em permanente multiplicação. Naturalmente, cabe sempre fazer a pergunta que o distingue da coisa e da causa (Gegenstand, Objekt, Sache, das Ding, Ur-sache, aitía).

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do conceito é legítima pois expressa indignação com tantos privilégios do humano que lhe teriam sido outorgados na criação. De Giorgio Agamben até Marco Valentim descortina-se a provocação, aliás este encontra uma bela ex-pressão ao falar de um “anti-humanismo mitigado” em Heidegger.33 Lembro isto com ênfase, porque o questionamento dos humanismos no pensamento continental dos últimos oitenta anos somente agora desemboca na crítica do antropocentrismo e na proliferação de ontologias não-ocidentais, que convi-dam não-humanos para novos pactos, assembleias, parlamentos. Um vírus ajuda a questionar a unidade dos humanos, trancando-os em casa, fazendo com que aprendam juntos a se proteger e estimulando ações tecnocientíficas como vacinas e preparedness. De qualquer modo, como poderíamos nos con-tentar com um vírus pobre-em-mundo se nosso COVID-19 está regurgitante de mundos e é propiciador de choques incessantes entre mundos...

O advento de uma epidemia prejudica ou impede o trabalho. Atividades que necessitam de regularidade são prejudicadas. O mundo do trabalho e o ganha-pão assalariado dividem aqueles que podem contar e ouvir estórias daqueles que precisam entregar coisas. Os funcionários públicos também se dividem. A noção de trabalhadores essenciais, usual em “catástrofes naturais”, se opõe fortemente ao termo “home office”, de extração “coxinha” neoliberal. À medida em que se tenta deslocar o trabalho para o ambiente virtual e para te-leconexões, surgiu a surpresa com lixeiros, coveiros, trabalhadores de frigorífi-cos e trabalhadores operando máquinas (ainda chamados operários). A mídia divulga que é líquido e certo que não foram extintos ou substituídos por robôs. David Graeber morre de C19 em Veneza despertando atenção para um de seus últimos livros – SHIT JOBs (maiúsculas gritantes no título). Cigarra e formiga reaparecem nele enquanto comodificações do capitalismo (em sua versão nor-mal ou canônica), que precisa cultivar empregos inúteis ou cultuar funções redundantes enquanto administra os endividados e os desempregados.34

Escorrendo por caminhos sólidos e não virtuais, C19 foi se espalhando por todos os lugares, poupando somente as ilhas em que não conseguiu entrar. Imiscuiu-se também para dentro dos hábitos digitais, no intuito de propagar-

-se através da interface. A Nova Zelândia estabeleceu um padrão de proteção aos seus cidadãos, mas talvez Cuba, Ilha da Páscoa e Fernando de Noronha te-nham conseguido igual sucesso. Do Claustro à Ilha, temos fronteiras pacíficas,

33 Marco Antonio Valentim. Extramundanidade e sobrenatureza: ensaios de ontologia infundamen-tal. (Florianópolis/Desterro: Cultura e Barbárie, 2018), p. 62.

34 GRAEBER, David, Bullshit Jobs. A Theory, London: Penguin, 2019.

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mas o comércio inventou a circulação sempre acelerada, cuja fronteira é ne-gociada, contenciosa e paradoxal. O vírus gosta de Hubs, aviões, drones, de superfícies de tela ou teclados, de locais refrigerados, de transportes coletivos.

Foi globalizada e globalizante, sem diminuir a tensão entre duas experiên-cias de sociedade, uma individualista e outra abrangentemente englobante. Jun-to com as questões de saúde pública adormecidas, o vírus trouxe uma percepção ainda mais clara de sociedades divididas, fragmentadas, desiguais e injustas. A denúncia do extremismo neonazista nas redes sociais e a militância anti-GAFA espalharam-se, burlando a censura da grande mídia. A cultura, a cidadania, o pensamento, as questões políticas, a insatisfação se tornaram mais fortes e per-ceptíveis. No Brasil constatou-se que não temos leitos de CTI suficientes para os pobres, somente quando faltaram na ANS dos ricos. Considerando que não exis-te esgoto ou água potável no domicílio de 60% dos brasileiros este fato surpreen-de menos. Água e sabão para “matar” o vírus, e CTI para que ele não nos mate. O Congresso brasileiro privatizou sub-repticiamente, sem debate ou plebiscito, a água durante a pandemia, ao mesmo tempo em que seu presidente admitia desconhecer o funcionamento da saúde pública. O que é SUS? Esta pergunta tornou-se relevante mesmo para os ricos que acreditam não depender dele.35

A vida obrigatória nas telas, para aqueles que podem e temem adoecer, nos despertou do sono dogmático virtual do divertimento nas telinhas “mul-titelêi” – games, simultaneidade da comunicação, arquivos de vídeo, redes sociais, o perigoso ZAP neonazista, império do ZOOM, mapeamento foto-gráfico da superfície do planeta (Google Maps). Tocamos em telas e botões, apalpamos a face, os olhos, somos praticantes de volúpia e promiscuidade com telas (screen) que dublam o mundo. Desde o surgimento da AIDS/SIDA ficamos acostumados a evitar sexo sem preservativo, mas fracassados em in-ventar novas perversões digitais. Os caminhos do vírus no corpo são inicia-dos nas vias respiratórias superiores e inferiores, sem deixar de percorrer todo o organismo, passeando no sangue, na intimidade dos vasos e dos neurônios com facilidade. Curiosamente, jovens insinuam nas redes que irão se entregar a grandes festas ininterruptas quando acabar a pandemia.

O trabalho da morte foi convocado na pandemia. Com a pulverização das guerras, sua urbanização (zonas de conflito) e com a gestão de catástrofes

35 Se é um sistema único de saúde, como se conseguiu emendar a Constituição enxertando planos privados de Saúde sob a ANS (década de 1990), ou calar seus princípios de direito à saú-de, justiça e equidade com hospitais de campanha improvisados – durante a maior calamidade pública dos últimos 100 anos? A luta pela fila única nas UTIs é testemunho da fratura no “único” e na sociedade brasileira.

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enquanto especialidade do capital, a morte pornográfica, já oculta por pudores hospitalares (mercantilização das etapas do rito fúnebre através da biomedica-lização do cadáver) foi sendo ainda mais camuflada e comodificada.36 A crise covid, como uma grande guerra, trouxe para a cena principal morte, funeral, luto, perda. A partir do trabalho hegeliano de Omulu (e Nanã Buruquê), se-nhores da varíola, posso indicar a emergência do coveiro como trabalhador essencial. Esquecidos, cafetinados pelas Santas Casas de Misericórdia, foram se tornando objeto de preocupação, carinho e atenção. Fotogênicos ao serem co-bertos com trajes de ficção científica, estão nas fotografias da crise. Não fazem trabalho num sentido trivial.37 A rigor são um braço do hospital que esconde a morte, tornada absolutamente pornográfica, e ainda por cima contagiosa no covid. Aldeias indígenas estão afetadas por modificações funerárias de caráter sanitário. Incidentes com sepultamentos na Índia também ganharam os jornais, mas é o número de mortos manipulado pelos coveiros que faz figura e ilustra o desgoverno que vivemos. Internações solitárias sem despedida e sepultamentos sem ritual. Parece que o COVID-19 nos remete à Antígona.38

Proponho que Canguilhem nos guie na ausculta da pandemia, admitindo que oferece uma volta a mais no parafuso do bergsonismo. A rigor, uma leitu-ra trágica da história da medicina e das ciências da vida foi empreendida por Georges Canguilhem, principalmente a partir de Nietzsche e Bergson. Uma lei-tura que implicava reler o vitalismo (hoje diríamos emergentismos), e ponderar sobre o dualismo insuperável de hipocratismo (vis medicatrix curae) e galenis-mo (intervir sempre). Deixar que a “natureza” cure; ou intervir com dispêndio, risco, poluição.39 Evitar sofrimento (primum non nocere) pode ser argumento para fazer ou não fazer nada. No primeiro caso temos duas atitudes opostas: deixar morrer ou vacinar a todos. No segundo há igualmente dois caminhos: acompanhar e tratar SRAG ou apregoar um fictício tratamento precoce.

36 Sobre a retirada dos mortos da vida cotidiana, ver Geoffrey Gorer. The pornography of death. In. Encounter, V. 5. No. 4. (1955), p. 49–52; e Geoffrey Gorer. Death, grief, and mourning. (New York: Arno Press, 1965).

37 Luis Thiago Freire Dantas. As chagas que nos acompanham são as mesmas que nos curam? In. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, V. 11, No. 0 (2020), p. 12-13.

38 Maria Teresa Cardoso. Carlos Estellita-Lins. O Que há de Casa Comum? Políticas do luto e Diálogo inter-religioso. Atualidade Teologica, V. 24. No. 66, (2020), p. 817–848; Marcelo Moura e Carlos Estellita-Lins. A xawara e os mortos: os Yanomami, luto e luta na pandemia da covid-19. Horizontes Antropológicos, v. no prelo, 2021.

39 Georges Canguilhem. Normal e Patológico. (Rio de Janeiro: Forense editora, 1981), p. 144-163.

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De um lado coloca-se o imperativo de tratar o que não tem remédio. Insis-tência em intervir com medicamentos - antivirais ou supressores de resposta inflamatória, soro imunizado, anticoagulantes e trombolíticos. Neste campo digladiam-se recomendações suficientemente baseadas em evidência contra

“protocolos” – usados por Trump e Bolsonaro como discurso político – cujo fundamento terapêutico é dessueto, contrariando o padrão universal de en-saios clínicos randomizados e metanálises.

Por outro lado, desenha-se a aposta em não fazer nada – seja a falaciosa “imunidade de rebanho” ou a miraculosa vacina que inoculada faz o próprio corpo curar-se. Não estou dizendo, evidentemente, que a gigantesca mobili-zação em busca de vacinas seja nula ou pouco efetiva. Afirmo que pertence a um conjunto de práticas distintas, em que não se faz uma intervenção nos viventes do mesmo modo que com o laboratório de química orgânica. Esta é uma forma de diálogo biossemiótico que o C19 trouxe para a cena principal.

Esta filosofia da doença inaugura um campo de investigações que suspeita bastante da aplicabilidade das noções de risco e prevenção ao campo do pato-lógico, e por isso acompanha estas tentativas com ceticismo. Ser marcado pela enfermidade e sair ileso do outro lado é uma ilusão combatida pela história das ciências da vida. A vida é evidentemente um processo de demolição disse Scott Fitzgerald.40 Assim se delineia a questão do fim de todas as coisas, no interior do pensamento da finitude, abrindo caminho para outras experiências cultivadas fora da escatologia agostiniana – talvez gnósticas, de mística judaica, de misticismo substancialista ou ainda, estranhas a este tipo de fim – devires múltiplos, contrato natural, parlamento das coisas, modos de existência.

Acontece que a epidemia fez seu trabalho inexorável, talvez confundida com o trabalho da morte, nos deixando dois outros trabalhos freudianos como tarefa – o trabalho do luto (Trauerarbeit) e o trabalho do sonho (Träumarbeit). A questão da produção está colocada neste percurso, coagulado no termo tra-balho - Arbeit, significando trabalho físico, força, energia, dispêndio, gasto, que vai da física newtoniana, passa por Hegel e chega a Freud ou Bataille, com um importante desvio por Karl Marx. Para não mencionar a termodinâmica

40 Uma compreensão pragmática dos limites da ação médica e sanitária, afim com as filosofias trágicas da existência, pode ser capaz de limitar ambições tecnológicas desmedidas. Isto não sig-nifica abandonar práticas comunitárias de saúde. Os detratores da saúde pública na crisecovid apostam em uma noção de indivíduo autônomo reativada pelo projeto neoliberal. Para uma ne-guentropia poética ver F. Scott Fitzgerald. The crack-up. (NY: New Directions Publishing, 2009), para seus fundamentos ver: Gilles Deleuze. Logique du Sens. (Paris: Les Éditions de Minuit, 1969), p. 180-189 ; e Georges Canguilhem. Une pédagogie de la guérison est-elle possible? In. Nouvelle Revue de Psychanalyse, v. 17, n. Printemps, (1978), p. 13–26.

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e a polêmica de Lenin contra as teorias “empiriocriticistas” da física de Ernst Mach. Adoto aqui a solução deleuziana de uma produção de produção, enten-dida como síntese disjuntiva, para pensar o desejo na esquize capitalista.

Luto, sonho, devaneio e imaginação. A realização de desejo trabalha durante a pandemia. Muitos experimentos vieram a público sobre sonhos durante o curso da epidemia. Artistas visuais, escritoras, antropólogas, de-senhistas de HQ, letristas são as moças com que conversei ou por quem fui avisado do métier de sonhos, que me é tão caro. Acho que quase todas o pra-ticam dentro da chave moderna: ao ser forçado ao ruim torna-se inevitável responder com sonhos, que se tornam excrescências valiosas, verdadeiras barroquícies dentro da ostra.

11/9

Se admitirmos que as imagens de fim de mundo têm circulado e formaram um gênero caro aos republicanos desde os governos Bush, poderemos notar que são uma extensão das imagens de ficção científica. São, portanto, varian-tes do principal gênero capaz de tematizar a má consciência ou as distopias, praticado em solo hollywoodiano com grande ênfase na aceleração tecnoló-gica. Destaco que o grande cinema de ficção científica apresenta o progresso como farsa e jamais como tragédia, sempre inserido num gênero épico típico do cinema japonês. Quando censuraram uma fotografia bucólica de Annie Leibowitz, que retratava as torres gêmeas incendiando-se vistas do Brooklyn, já era tarde para impedir o desabamento iconográfico.

Se o 11 de setembro e a Al-Qaeda foram capazes de modificar rapidamen-te a segurança dos voos e aeroportos, restringir a divulgação científica biomé-dica e exacerbar o policiamento urbano, foram ainda mais capazes de modi-ficar a configuração política mundial criando uma ameaça mundial pervasiva

– o homem-bomba suicida. Este personagem heroico, habitante da Palestina em décadas anteriores, não deixa de ter relação com o conceito emergente de bioweapon, crescente preocupação em que os vírus têm tido papel de des-taque. Não direi que vírus são bombas, mas acredito que os laboratórios de biossegurança de nível 3 sofrerão transformações em breve.41

41 Um misterioso atentado visando políticos estadunidenses utilizando o carbúnculo ou antrax (bacillus anthracis) enviado pelos correios em envelopes (pouco perceptível) acompanhou como sombra os eventos aerotransportados.

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As imagens das torres gêmeas e as imagens progressivamente censuradas do pentágono atingido formaram um imaginário de fim-de-mundo estadu-nidense, rapidamente divulgado, contra efetuado e explorado no sentido da reconstrução.42 Os índigenas wa’ari (Pakaásnovos, de língua chapacura) de suas aldeias na floresta de Rondônia assistiram às cenas do incêndio e demolição do World Trade Center em uma pequena TV e entenderam que o fim do mun-do havia chegado. Seria apenas porque foram convertidos por missionários norte-americanos dez anos antes?43 Os incidentes de dura retaliação contra as comemorações da obra de Karlheinz Stockhausen, que ousadamente reco-nheceu naquelas imagens a realização final da Gesamtkunstwerk da tardo-mo-dernidade, sugerem que a guerra de imagens e seu iconoclash ofereceram uma figuração para certo fim-do-mundo, que durou um único dia, mas ainda se estende até este momento de exfermidade pandêmica. Este caráter de aconte-cimento, sincronizado pela imagem imediatamente disponível e maciçamente reiterada, ocorre novamente na crise covid, ganhando distintos matizes de encerramento ou destruição. Caminhos aéreos são sinais patognomônicos. Os aviões comerciais, todos mantidos no solo, fornecem imagens anômalas maci-çamente impactantes, contudo imediatamente esquecidas sob bombardeio de novas figuras. Aliás, Georges Duby já nos contava que o milenarismo do ano mil durou décadas. Não é impossível pensar que talvez possa estar ocorrendo o mesmo com o ano dois mil.44 Esta espera pré-moderna do fim, pode ser reinterpretada hoje como um acontecimento incorporado ao niilismo dos mo-dernos. O advento do messianismo como pró-gresso transforma-se na espera messiânica do progresso. As etnografias do “Cargo Cult” nos fornecem uma imagem especular invertida. Além do branco invasor colonial adivinhamos também a ciência moderna do mundo desencantado.45

42 Jacques Derrida. Jürgen Habermas. Le «Concept» du 11 Septembre. In. Borradori, Giovanna (Org.), Dialogues à New York (octobre-décembre, 2001) avec Jacques Derrida et Jürgen Habermas, Paris: Galilée, 2003; Jacques Derrida. No apocalipse, not now (Full speed ahead, seven missiles, seven missives). In. Diacritics, V.142. No. 20, (1984) p. 20-31; e ver ainda Hugo Monteiro. Exór-dio, Margem e Adenda. Post-scriptum ao fim do mundo. In. Libretos, No. 12 (2018), p. 15–27.

43 Depoimento pessoal ao autor fornecido pela antropóloga Aparecida Vilaça (Museu Nacional, PPGAS/UFRJ), que dedicou anos de pesquisa a esta etnia.

44 Georges Duby. L’An Mil, Paris: Gallimard, 1993.

45 A expectativa de que a tecnologia conduz ao Soberano Bem e jamais cria problemas aparece claramente na alegoria da chegada de um navio ou avião carregado de vacinas perfeitas, que irá nos salvar a todos. Não me refiro ao debate sobre “cargo cult science” como imitação metodo-lógica, anunciado por Richard Feynman, por exemplo, em Cargo Cult Science. Engineering and Science, V. 37. No. 7 (1974), p. 10–13; mas à etnografia oferecendo uma compreensão “reversa”

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Trata-se de um acontecimento (événement). Podemos falar em aconteci-mento com toda a força que a filosofia francesa contemporânea empregou na reconstrução deste conceito. Parece-me que provém do Er-eignis heidegge-riano e, portanto, está diretamente vinculado à diferença e à dobra/prega. Articula com facilidade história e estrutura. Interessa aqui sua deriva rumo às polêmicas da história de longa duração e da etno-história envolvendo a lin-guagem. Não é sinônimo de fato ou fenômeno, e deste modo arrasta-nos em uma reflexão renovada sobre o espaço e o tempo. Coloca problemas semânti-cos, sintáticos, semiológicos e sobretudo permite retornar às ontologias. Esca-pa ao escopo do texto discutir a versão deleuziana, de uma lógica do sentido, em que o estruturalismo levi-straussiano e a psicanálise são estudados. No caso mais tardio de Alain Badiou, há uma ênfase na relação entre ontologia e idealidades matemáticas, problematizando o “Ser”. Desde Maurice Blan-chot até François Laruelle, passando por Vattimo, verifica-se um chamado da exterioridade radical que convoca ao acontecimento – o tema do Ek-sistere. Exforme e exfermidade devem ser pensados rumo a uma ecologia ampliada em que se tenha lugar suficiente para pensar vírus e mercados.

Então verificamos que a experiência mesma do C19 é tão invisível quanto a lei da gravidade, um quark ou um vírus. Precisa ser construído e legitimado, defendido não apenas nos tribunais científicos com testemunhos fidedignos, mas igualmente praticado na deriva da esquize capitalista, que produz pro-dução, assim legitimada com outros tribunais e regimes de imagens diversos. Sua subtração da escala sensível, seja pelo infinitamente pequeno ou infinita-mente grande, faz crer que a percepção do covid como zoonose antropogêni-ca desencadeia novas camadas de denegação com seus sintomas correlatos. O pulo mítico do vírus de um animal ignorado para o humano é um momento central para a representação da pandemia, grau zero hipotético, distinto e bem anterior ao paciente zero, conceito encarnado que pôde ser identificado em vários continentes. Visita “alienígena” originando a detonação em cadeia.

Observamos melhor que a incomensurabilidade do Antropoceno parece ter emergido e se tornado mais patente no COVID-19. Dificuldade em situar o corpo, traduzir escalas, imagens. Há um horizonte daquilo que pode ser figurado. Em sentido freudiano, a figurabilidade (rucksicht auf darstellbarkeit) é aquilo que participa da criação do sonho, como uma decupagem na sala de edição do recalcamento. Cabe admitir que a figurabilidade é pura capacidade

das crenças onto-teo-lógicas no progresso tecnológico, como se verifica em Roy Wagner. Our very own Cargo Cult. Oceania, V. 70. (2000), p. 362–373.

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de negociar imagens.46 Vincula-se a um regime de visibilidade do a priori his-tórico. Mostrando-se extremamente relevante é preciso incluí-las na avaliação da catástrofe em curso. Frederick Keck descreve como no caso das epidemias de H1N1, com risco de pandemia gripal, já se verificava o debate público. En-quanto fenômeno mundial progressivamente absorvido por questões técnicas, a discussão envolve tanto o corpo quanto os imaginários.47

A imaginação reflexiva e não determinante da terceira Kritik ganhava igualmente seu prumo e importância, pela capacidade de poder imaginar a destruição, figurar, oferecer para a síntese o insensível que só pode ser sen-tido e o impensável que só pode ser pensado. Verifica-se por exemplo um privilégio do sublime na filosofia francesa contemporânea assim como na experimentação estética. Esta destruição se colocava para Gunther Anders no que concerne às novas gerações serem sujeitos de direito do sobreviver com um mundo. Este dano final se recoloca com Ernest Bloch e com Hans Jonas novamente face ao porvir dos humanos, sobretudo no panorama descober-to pelo princípio de responsabilidade (Verantwortungprinzip) – frontalmen-te contrariado na resposta transnacional ao C19. O caminho gnosticista de Hans Jonas faz proliferar mundos em outra chave. O fim do mundo era im-pensável no quadro da filosofia crítica. Havia um colonialismo moderno do número na matemática, disputando um infinito atual com aquele potencial. Havia um privilégio grego da geometria agrimensora e nomotética em disputa furtiva com a topologia, como no caso do paradoxo dos objetos simétricos. As quatro antinomias da KRV sustentam um mundo sem partículas virais auto-replicantes. T. H. Lawrence nota que os quatro cavaleiros do apocalipse, na estranha obra de São João de Patmos, fazem uma aparição extremamente rápida, efêmera. “Cavalgam um atrás do outro (...) num galope curto, repen-tino e fim. Foram reduzidos a sua mínima expressão”.48

Mesmo sem problematizar o excepcionalismo humano implícito, cabe afirmar que ambos os conceitos, humanos doadores de mundo e animais co-habitantes do mundo, são obrigados à reorganização ao serem imersos

46 Sigmund Freud. Die Traumdeutung. (Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 2003), p. 341-350.

47 Frédéric Keck. L’avant-scène du triage. Simulation de pandémie à Hong Kong. In. Les Cahiers du Centre Georges Canguilhem, V. 6, No. 1, (2014), p. 143-157; Frédéric Keck, Olivier Mongin e Marc-Olivier Padis. Expertise et choix politique : retour sur la grippe pandémique. In. Esprit, V. Mars/avril. n. 3–4, (2011), p. 168-177.

48 D.H. Lawrence. Apocalipsis, (Madrid: Losada, 2006), p. 93.

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no fim de mundo. Neste sentido seria possível falar em uma deixis como pronome cosmológico.49 O xamanismo transversal amazônico propicia uma comunicação entre enfermidade (estado valetudinário, crise) e a gênese de mundos – emergem ontologias divertidas, desrespeitosas e despreocupadas com a comensurabilidade.50 Apontar significa aqui apossar-se de uma pers-pectiva, o que faz dobra, plissa, pregueia e redistribui actantes. Como foi engenhosamente dito por Viveiros de Castro: são “ambos os três”. Curiosa-mente David Kopenawa, que escreveu junto com Bruce Albert um verdadeiro tratado cosmológico sobre a xawara, a peste, relata que mesmo antes de sua iniciação já se anunciava um comércio com os espíritos xapiri: “Na época em que meu sogro me fez beber o pó de yãkoana pela primeira vez, eu já tinha visto a imagem do céu se quebrando e tinha ouvido suas queixas (...)”. A pes-te envolve visões xamânicas, mineração ilegal, invasões, guerras, espíritos, a barriga do céu ferida, minérios do coração da terra e sobretudo a floresta: “A floresta é inteligente, ela tem um pensamento igual ao nosso”51 A floresta de cristais xapiris sonha e nos faz sonhar. O mais importante ensinamento das enfermidades trazidas pelo branco ao território yanomami me parece ligado aos regimes complexos do sonhar.

Os mitos ameríndios não gostam muito de fim de mundo, desinteressan-do-se por pensar um mundo sem gente, sem agência, desprovido de viventes:

“a impensabilidade de um mundo sem gente” poderia ser considerada forte no pensamento selvagem, pois “a ideia de uma destruição última e definitiva do mundo e da vida é, igualmente, rara, se existente nestas cosmologias”.52 O próprio Davi Kopenawa fala do perigo da queda do céu. Contudo parece-me evidente que o termo “queda” equivoca mais fortemente a tradição ibérica quando traduzido em português. O sentido de perda irreparável ou pecado originário do mundo (transformado) ganha etnocentrismo e perde riqueza. Face à catástrofe climática, o Papa Francisco tampouco menciona apocalipse

49 Eduardo Viveiros de Castro. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. In. Mana, V.2. No.2, (Rio de Janeiro: UFRJ, 1996), p. 115-144.

50 Para uma tentativa de discutir xamanismo e suicídio, ver Carlos Estellita-Lins. Mental health, indigenous suicide and shamanism in Brazil. In. Philip Kerrigan et al (Orgs.), Mental Health. Pasts, Current Trends and Futures. (York, UK/Bangalore, India: Orient Blackswan, 2017), p. 40-51.

51 Davi Kopenawa e Bruce Albert. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. (São Paulo: Editora Schwarcz/Companhia das Letras, 2015), p. 497.

52 Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. (Florianópolis: Cultura e Barbárie Editora, 2015), p. 106-107.

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ou escatologia, certamente não por falta de munição teórica, mas porque in-teressa ao argumento da Laudato Sí falar em uma “conversão ecológica” e no projeto de ecologia integral.53 Se a encíclica é uma pessimista condenação do consumismo, sua intervenção na “Querida Amazônia”, um pouco posterior, busca iniciar uma tematização do missionário. Trata-se de um problema po-lítico estratégico, de difícil transformação na tradição cristã, que recebe uma orientação mais telúrica do que angelical. Estamos mergulhados na questão dos modos de viver. Uma reflexão sobre a pobreza me parece oportuna e de caráter densamente filosófico ou teológico como desdobramento destas “no-vas teologias da queda”. Abolir o consumismo é mais que atitude, é um pro-grama político. Nenhum “way of life”, nem mesmo o conforto escravagista das máquinas e robôs, poderá abolir o acaso ou continuar impondo gastos extremos e desiguais de energia.

Pã, pan, pá, pão, pós!

O grande pã está morto. O grande pã voltou? O grande tema da escala, da dimensão sensível, da constituição do fenômeno, que assombra a filosofia con-tinental retornou em sua versão mais forte. O diferendo que separa a filosofia continental daquela analítica, ou as matemáticas intuicionistas das formais e platonizantes. Não que o infinitamente pequeno do vírus seja da mesma ordem que a microfísica, que o mergulho no infinitesimal seja igualmente profícuo, mas o campo biomédico encontrava no micróbio apenas um duplo miniaturizado. Quero dizer com isto que o microscópico e mesmo o ultra-microsópico inimaginável foram submetidos aos mesmos princípios de uma física dos estados sólidos. O micróbio é um duplo da lesão. No território das enfermidades, por exemplo, adivinha-se um adversário visível através da pato-logia, ou seja, de seu estrago no campo de guerra constituído pelos organismos humanos. Bactéria, verme, protozoário, vírus ou príon - todo ser minúsculo é um invasor. Não há ecossistemas, porém, inimigos adentrando território bélico. A biomedicina valorizou excessivamente o faitichismo dos inimigos na construção do conceito de doença infecciosa. Correlativamente fetichizou a tecnologia terapêutica, apresentando o progresso como panaceia, simplesmen-te por ser considerado inexorável e lucrativo. A tecnologia produz zoonoses e

53 Papa Francisco, Laudato Sí’ Louvado sejas. Sobre o cuidado da casa comum. Carta Encíclica do Sumo Pontífice. (São Paulo: Paullus/Edições Loyola Jesuítas, 2017), p. 125-128.

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pretende produzir vacinas para cada enfermidade zoonótica (em analogia com os transgênicos e sua escalada de agrotóxicos). A corrida das tecnociências atrás de antibióticos que não sejam conhecidos das bactérias assemelha-se a uma roda de Íxion. É mais um círculo vicioso da ignorância ecológica. Captu-radas no círculo virtuoso das commodities, as tecnociências acabam por reduzir a ecologia complexa das infecções praticando tiro ao alvo.

Esta proximidade enigmática do COVID-19, que é nossa fatia de imersão no problema, seu pathos incontornável, convida a compartilhar sua história, fazer sua teoria, descrever seus horizontes. A experiência da enfermidade guia a terapêutica, disse Canguilhem. Há um privilégio existenciário da dor e do sofrimento sobre o conhecimento positivo.54 O que tem sido viver com C19? Como é sobreviver tentando não contrair a enfermidade ou recuperar-se dela? A narrativa de doença se multiplica e torna-se uma obrigação para muitos. Talvez um ajuste de contas. Isso que se organizou como programa de pes-quisa nos últimos vinte anos torna-se também uma boa ferramenta para um silencioso e imóvel movimento de massas. Não sabemos se aqueles afetados pelo COVID-19 poderão formar grupos de pressão ou reivindicação política. Tampouco é possível entrever sob tantos confrontos políticos se esta produ-ção teórico-literária seria capaz de formar um povo, um bando, uma massa ou um grupelho.55 De qualquer modo, falo em massas no sentido de um povo por vir. Contar esta história significa reunir numa trama agenciamentos, fazer alianças transversais, arrebanhar ou aboiar fazendo conjunto e criando uma assembleia com multiplicidades. Ao tentar pensar a exfermidade infecciosa torna-se rico ir reagregando o social. Que povo se constitui neste processo e quais condições possibilitam sua reunião é uma questão cosmopolítica.

Que tal admitirmos que há um experimento coletivo ou talvez apenas de setor, nem sei, em curso? Trata-se da tarefa de dizer o que é C19 para si próprio,

54 O pathos antecede o pato-lógico. Georges Canguilhem. Normal e Patológico, Rio de Janeiro: Forense editora, 1981; Carlos Estellita-Lins. Saúde e doença na psicanálise: sobre Georges Can-guilhem e Donald W. Winnicott. In. Francisco Ortega e Benilton Bezerra (Orgs.), Winnicott e seus interlocutores, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2007, p. 363–384.

55 Meu testemunho pessoal acerca do campo de pesquisa das narrativas de doença é ambivalente. Desde as intervenções de Alexander Kleinman, Thomas Csordas, entre outros, à descoberta dos pa-thways to cure, a integração de várias narratividades, da narratologia e hermenêutica aos relatos de adoecimento em primeira pessoa, passou-se a uma verdadeira pescaria na produção intelectual ou estético-literária de testemunhos e depoimentos. Por outra via, assistimos a criação de ferramentas clínicas para investigação e incorporação das experiências narrativas às pesquisas clínicas de efetivi-dade. Toscos livros de auto-ajuda poderiam ser aproximados de elegantes performances em museus ou de estudos originais com entrevistas semi-estruturadas. Acredito que o apogeu do campo pode estar ocorrendo, quando a maioria dos habitantes do planeta tem algo a dizer sobre a crisecovid.

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para os que estiverem ao alcance, para testemunhar aos sobreviventes, talvez para o além em sua sobrenatureza. Este enunciado provém de um agenciamen-to coletivo de enunciação, assemblage, que pode incluir o medo de morrer jun-tamente com a gana do intelectual específico em fazer sua micropolítica (e ain-da, e ainda, e ainda...). Que não se possa duvidar que faço o mesmo por aqui.

Resumirei deste modo o problema: vive-se um experimento coletivo de desaceleração. Um murmúrio insistente cresce. A experiência de doença se faz acontecimento e contraria os “negócios de sempre” (BAU). O estranha-mento é importante. Neoliberais hiperdigitais pretendem superar o obstá-culo e prosseguir a grande marcha da humanidade. Militantes das guerras do Antropoceno tomam as anomalias provocadas pelo vírus como prova de que tudo pode ser diferente. A crise covid encerrou uma etapa escolhendo um novo mundo possível. A estranha disputa sobre a possibilidade de tudo retornar como era antes marca um fim de mundo possível. Ao ter que reco-meçar imediatamente será preciso decidir de que modo o mundo acabou. Se sua simultaneidade e unicidade são factícias, é um argumento que importa somente aos defensores dos modernos.

Junto com esta vertente, já adivinhamos a outra face ou variante. Depois da angústia que obriga ou ainda permite descrever, dar uma solução também se revela sob a forma de empuxo. Resolver. Teríamos entrado num grande-devir viral, virótico, virulento. Mais que metamorfose ou transformação. Arrastados pelo fascínio, ódio, medo e recusa do cachalote branco entramos num devir-

-baleia inexorável do qual sairemos menos humanos e mais virais. Este devir--cristal, mais do que um devir-animal, já transforma o vírus em sua co-evolução e sua relação com a mecanosfera. A criação e produção de vacinas, junto com sua logística, leva em consideração o desenvolvimento de mutações virais em escala planetária inédita. Nova aceleração que as soluções impõem e oferecem.56

Encerro recapitulando a obviedade do que foi dito. A C19 cria uma res-ponsabilidade diante do vírus e face à sua propagação. Fraturas, cismas, des-continuidades e rupturas face ao problema. Uma simples infecção tida por algo privado entre o doente e seu médico ganha novos sentidos. O caráter de problema científico recalcitrante se impõe. Numa sociedade aquecida,

56 Inspirados por Frederick Keck diriamos que a grande caça à baleia na Nova Inglaterra do século XVIII-XIX foi substituída por práticas de caça ao vírus no século XX-XXI. O devir-baleia é um modo privilegiado do devir-animal. Não se define apenas pelo ódio que liga Ahab ao cacha-lote ou pelas transformações da tripulação e dos animais envolvidos. Foi formulado por Deleuze e Guattari a partir dos impasses do existencialismo, buscando reunir ser e devir em um novo regime ontológico. cf. Deleuze, Gilles; Guattari, Félix, Mille Plateux. Capitalisme et Schizophrénie, Paris: Minuit, 1980.

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hiperconectada, baseada no poder de laços fracos aparece um desgaste ex-tremo neste vínculo. A contaminação não é mais um mero epifenômeno da ligação social, ao contrário, tende a se constituir como Outro radical da rela-ção. O contrário de laço social não seria anomia, mas contágio. Não só por ser um anti-laço letal, mas por também por estar produzindo “norma disruptiva”. As leis da imitação não produzem massas, maltas, bandos, turbas, mas seu contraditório, o acontecimento catastrófico. Aqui se percebe uma conversa com o micróbio, talvez a possibilidade de alguma negociação. A pandemia demanda respostas que são pequenas de fato, mas que se oferecem como muito gigantescas para o desafio de imaginar saídas: encontrar uma vacina, sintonizar em hospitalidade extrema, viver diferentemente, abandonar BAU, consolidar redes de apoio, acabar com combustíveis fósseis, fulcro da catás-trofe climática e negacionismo. Chamo atenção para a sintonia que se oferece entre a pandemia e as lutas do Antropoceno. Fora do negacionismo um acon-tecimento captura todos em volta dele.

Afetados por uma catástrofe em curso que não é sensível senão circuns-tancialmente, reemerge o desafio de abandonar a modernidade e as grandes narrativas libertadoras para tomar posição numa questão. Por um lado, os velhos esquemas escatológicos, morais e doutrinais chamam para uma mili-tância que sempre corre o risco de se tornar convencional e, portanto, par-cialmente fracassada. Permaculture, veganismo, conservacionismo, zelo com a água, produção de sua própria energia, reciclagem, abandono do papel, do plástico e do automóvel. Seu moralismo poderia estar escrevendo mais uma derradeira versão do niilismo.

Por outro lado, reativam-se lutas sociais, ecologia política, políticas das três ecologias, de ocupações, zonas por defender, desterritorializações, terras indígenas e quilombolas, que igualmente podem ser lidas na chave aceleracio-nista de lutas sociais antigas, devotadas ao estalinismo-maoísmo já conhecidos.

Neste caso, a política dos comuns destaca-se não como síntese dialética, mas, ao contrário, enquanto síntese disjuntiva e contraponto da escolha força-da. Para evocar a contribuição de Isabelle Stengers, acompanhamos a percepção de que não cabe curvar-se à “escolha infernal”, só há lugar para a procrastinação enlouquecida de Bartleby. Por uma ciência nômade! Por uma ciência lenta! Acrescentaria ela. A delonga está em respeitar impasses. Em admitir o “gesto especulativo” urdido na paciência do conceito. Neste panorama conflagrado te-mos tido guerras de ciências, guerras de religiões e guerras estético-perceptivas.

Mas o que acontece se o fim realmente estiver próximo como se lê em Isaías, 24, 17-19 ?

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Para acabar com fins

A reflexão de Jean-Luc Nancy sobre os comuns – comunismo e globalização – nos ajuda a encontrar o tema dos fins: “Não se trata de pesar ou inclinar-se pela destruição ou pela saúde. Pois nós nem mesmo sabemos o que um e ou-tro podem significar: nem isso que poderia ser uma outra civilização ou outra selvageria nascendo das ruínas do ocidente, nem o que pode ser “exceto” que não existe nenhum espaço fora da epidemia (deste ponto de vista a SIDA é exemplar, como igualmente sob outro registro são certas zoonoses. O porte do mundo, de suas técnicas e de seus habitus, eleva a uma altura incomensu-rável aquilo que outrora fez o terror das pestes)”.57

Uma vez colocada a situação do acontecimento COVID-19, passo a uma ideia antiga e abrangente que poderia ser examinada agora. A filosofia – ati-vidade crítica, tarefa do pensamento ou deriva ontológica – sempre enxerga longe. Trata-se menos de ver ao longe e mais de enxergar a partir do longe, prezar o distanciamento da coisa (Entfernung). No pensamento contemporâ-neo trata-se de percorrer saberes e práticas entrecruzados, sem respeito es-pecial por agendas exteriores ao que é pensado. História, arte, ciência, socie-dade, vida, tudo fornece matéria para a fogueira. Deste modo, admitiremos que a proximidade do vírus ativa nossa negociação com sua capacidade de se utilizar dos viventes, reconfigura os caminhos do pensamento nesta época. O vírus é perfeitamente capaz de nos utilizar para uma repetição bruta, idiota (de idion), sua auto-replicação parasitária. O vírus aparece enquanto veloci-dade de reprodução, exatamente na chave do capital, o que já foi dito. Assim como fazemos um PCR para centrifugar fragmentos do vírus, ampliá-lo como cópia fotográfica ou xerox, ele sempre se utiliza da reprodutibilidade técnica para atravessar de um ecossistema a outro, sem a aura de uma interação eco-lógica estável ou duradoura...

Por outro lado, Mesmo e Outro atravessam a história do pensamento e nos facultam copiar o vírus. Quando o pensamento filosófico progressiva-mente reconfigurou-se, seu próprio rastro passa a desafiar a historiografia: fi-losofia continental, fenomenologia, filosofia analítica, virada linguística, filo-sofias da diferença, virada ontológica, modos de existência no Antropoceno.58

57 Jean-Luc Nancy, La Création du Monde ou la Mondialization. (Paris, Galilée, 2002). p. 17.

58 Para uma outra perspectiva sobre a criação do mundo e as tecnologias que desnaturam, com ênfase na tecnologia metafísica do mesmo e da alteridade, ver Jean-Luc Nancy. La Création du Monde ou la mondialisation. (Paris: Galilée, 2002) p. 109-111.

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Igualmente, o discurso filosófico desconfigurou-se mais ainda ao buscar má-xima distância do sujeito, indivíduo, pessoa, ator, agente, enunciado, per-formance. Refiro-me especialmente à crítica do humanismo entendida como ultrapassagem da metafísica ou sua desconstrução, que assume pretensões inéditas com exigências de um descentramento perspectivista, vitalista, emer-gentista. Os grandes questionamentos do humanismo no pós-guerra são in-contornáveis. A razão iluminista encontra um impasse no prosseguimento do projeto moderno face ao horror e a destruição. Tanto o negacionismo do holocausto quanto a ascensão da alt-right neonazista confirmam este impasse pelo avesso. Mas, se o humano virou proposição ou experiência, de certo modo desumanizou-se, nem por isso desapareceu. Estruturalismo e pós-es-truturalismos são permeáveis ao horror da existência. De certo modo insiste uma questão sobre a normatividade vital na experiência de doença. A en-fermidade é uma afirmação do negativo, travessia do niilismo e a criação de valores por excelência. A Grande Saúde nos confronta com o pensamento mais pesado e o abismo mais sem fundo porque desponta um pensamento na doença que é pensamento da doença. Capacidade de pensar a enfermidade. Distância para retomada de uma reflexão. Exfermidade...

A antropologia das ciências não poderia deixar de se configurar como fi-losofia, especialmente enquanto ecologia política, no caso latouriano. Curio-samente, percebe-se no Latour dos modos de existência um certo flerte com teologias antigas... A tarefa de “reversão do antropocentrismo” poderia ser assemelhada a uma problematização da técnica, porém dedicada aos espaços operatórios seguros, num mundo em desequilíbrio antrópico. Trata-se de um colapso do moderno em suas pretensões critico modernistas, para falar como Latour. Mas agora assistido por animais, máquinas e anjos – pletora de não humanos. Talvez a tecnologia das tecnociências receba seus limites de Gaia. O que significa que não é nem uma deontologia nem uma ética, mas uma técnica dos vivos que pode orientar a política ambiental.

Podemos dizer que “jamais fomos modernos”, que a pós-modernidade é o moderno em seu impasse, que o projeto moderno é inacabado, mas talvez inter-minável; a rigor, tanto faz evocar as referências exatas neste ponto, pois é mais interessante assinalar “o tom apocalíptico” jamais adotado até então na filosofia.59 O pré-moderno ou não moderno admite dois regimes pelo menos: ontologias

59 O caminho adotado até aqui torna-se evidente: já que emerge o acontecimento com sua aura de único e definitivo, pego uma carona, pendurando nele projetos políticos e programas filosófi-cos que derivam da reflexão anterior sobre o mesmo. Aqui não há glosa mas paródia do texto de Derrida investigando o tom apocalíptico.

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múltiplas – com sociedades tradicionais e negociações produtivas – com vírus, animais, paisagens e deuses. No caso do pós-moderno, fazemos recurso ao su-blime a ao impasse do belo, apostando na imaginação. No caso do pré-moderno ou jamais moderno, recorremos ao imaginado desde sempre, apostando nos fluxos de imagens ininterruptos. Devemos admitir inclusive que o belo livro de São João foi pouco lido, ainda que fundamentalmente incrustado no pensa-mento agostiniano da escatologia, chegando até Hegel e Marx quase inalterado.

A história, que se desenrolava ou se enrolava em si própria de várias ma-neiras, salta do R2 geométrico e assume topologias insuspeitas. Não temos mais a meridiana oposição da reta versus o círculo. “Alles gerade lügt!” diz Zarathustra para o anão. A figura mais fácil é fornecida por uma família de objetos möbesianos derivados do plano projetivo, podendo ir até o Rn. Ambi-guidades e torções derivadas do Programa de Erlangen, do matemático Félix Klein, que modificaram radicalmente modos de tratar o espaço e eventual-mente o tempo. Zarathustra, às voltas com o instante (Augenblick), pode ser lido enquanto comentário preciso da uma tensão paradoxal do instante, evo-cada por Kant em seu texto intitulado O fim de todas as coisas (1794). A reta como figura da sucessão ou progressão vai esgotando-se.

O instante é a impossibilidade de ruptura do fluxo do tempo (“Geschiedene Zeiten sind aufeinander”) que o pensamento do eterno retorno do mesmo apre-senta como ruptura impossível ou pensamento abissal (Ab-grund). Pensamen-to mais pesado que desafia qualquer fundamento: circulus vitiosus deus. Pensar o instante em sua radicalidade é pensar o fim de todas as coisas, o que não há, inexiste, pois coisas são feitas da vontade de potência que as sustenta em seu eterno retorno. Não se trata de ciclo, nem de história. Não cabe nenhuma filosofia da história para Nietzsche, como propedêutica ao Retorno. O instante tende a tornar-se decisão, ruptura em lugar de conexão. Contudo, isto não é desprovido de tematização neokantiana. Do mesmo modo, seria preciso em Kant destrinchar o “ponto de vista cosmopolita” (realização do progresso no Direito) quanto à história, ou seja, esclarecer o que significa para ele o progres-so na história da liberdade, independente da história da natureza.

O pensamento do instante faz adoecer, porém é capaz de adiar o fim do mundo. Não consigo desenvolver estas duas teses belíssimas por aqui, mas estou me guiando por alguns de seus comentários. Neste sentido, compreen-de-se que uma das versões do eterno retorno seja uma trajetória de adoeci-mento – viagem por mar, náusea, sono letárgico, vômito, convalescença, can-to de realejo dos pássaros. Mesmo esta repetição factícia do ritornelo é criação

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em estado puro.60 A doença cria perspectivas e individualiza até destruir o Ser, até fazer a ontologia fundamental se curvar face ao acontecimento-apro-priação (Er-eignis). Enfermidade, acontecimento, condição de possibilidade de perspectiva: exfermidade. A história nem mesmo acabou – problema mal colocado – pois ela muda de sentido se não existe mais um futuro para a téc-nica se apropriando do planeta, ele-planeta que parecia infinito, interminável e inesgotável. O homem se revela um agente geológico – nem é mais natureza divina no homem, ou natureza humana, nem algum entrejogo de natureza naturada e natureza naturante. Muito pelo contrário, o homem torna-se uma mistura das mãos dos humanos (le geste et la parole) com a catástrofe plane-tária provocada por elas. Ao re-fabricar a natureza passa-se a reproduzir o conceito de natureza. Multinaturalismo, quatro ontologias, natureza desnatu-rada, multiverso, Naturpolitik: muitos são os mil nomes de Gaia. Entrevemos a mistura daquilo que valorizamos demasiado em nossa hybris pós-iluminista, nossos homúnculos, com aquilo que é pura exterioridade e coisa em si, de onde brota o múltiplo da intuição sensível.

O negacionismo climático (“tolice falar em fim da vida humana no pla-neta”) começa a ter seu fim com apoio de periódicos com fator de impacto próximo de 30, como Science ou Nature, e com a criação e o reconhecimento internacional do IPCC. Tomo como marco teórico a publicação do artigo de Paul Creutzen et al. (2009) que introduz o problema do safe operating space, pois me parece centrado no BAU como expressão do humano.61 Alguns es-tudos cientométricos de Naomi Oreskes, desde 2004 na Science, foram igual-mente impactantes por descrever a inserção profissional e má fé de cientistas que buscavam negar o aquecimento global. A expressão Merchants of a Doubt é de sua lavra. Em suma, há desequilíbrio suficiente no planeta para que a vida humana e seus modos de vida mais prevalentes e hegemônicos sejam impedidos, coartados, bloqueados. Ocorre agora o fim de espécies animais já

60 Caberia interpretar o platô ritornelo de Deleuze & Guattari (Mille Plateux) enquanto um comentário filosófico erudito, ainda que muito alusivo, que reúne as experiências do eterno retorno em Zarathustra com o tema dos animais, especialmente dos pássaros cantantes como realejos. Olivier Messiaen e Hölderlin/Schumann seriam as faces atonal e temperada do canto que os pássaros realizam junto com os poetas de modo a reunir um ponto cinza na terra com um buraco negro no Cosmos.

61 Neste sentido, o extenso coletivo autoral do paper evita a acusação de ter adotado um tom apocalíptico na argumentação. São apresentadas faixas de atuação para os humanos que podem ser seguras para a estabilidade do sistema terra, assinalando algumas já transgredidas, como a perda da biodiversidade. Ver Paul Creutzen. et al. A safe operating space for humanity, Nature, V. 461. No. 7263, (2009).

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tão pobres em mundo e deixando nosso mundo ainda mais pobre. Trata-se da sexta grande extinção das espécies provocada pelas garras e dentes do animal humano, a qual Nietzsche se refere como metáforas do conhecimento, Erkenntnissmetaphern. Ciclos de oxigênio, nitrogênio, gás carbônico foram criações dos viventes primitivos. Caso acabem os vivos, também acabará a atmosfera. O sistema Gaia compreende vivos, biosfera, mecanosfera. Ao apro-ximarmos uma enorme quantidade de humanos dos animais remanescentes e seus ecossistemas em desequilíbrio, propiciamos o pulo (“jump”) de micror-ganismos desconhecidos saindo de reservatórios, poços e sistemas tampão, diretamente para organismos de humanos vivendo em cidades globalizadas. As zoonoses funcionam deste modo.62

COVID19 é o mais recente exemplo de zoonose e a dengue foi a zoonose que, nesta década do planeta, mais contribuiu com a carga global de doença (Global Burden of Disease) e causou prejuízos. A vingança de Gaia torna-se um conceito filosófico maior e não apenas mais um problema científico. Não se trata simplesmente de aquecimento global ou de desequilíbrio entrópico irremediável, pois história e conhecimento são forçados a uma abertura para seu exterior. Existe uma extimidade da exfermidade.

A paleoclimatologia tem oferecido um panorama importante para a com-preensão do aquecimento global antrópico. A causa suficiente para que o pla-neta se modifique irreversivelmente é o próprio modo técnico de modificar o planeta, modo este que se tornou progressivamente teimoso, acelerado e irreversível (modo de produção, técnica, tecnologia, progresso). Seja porque ninguém pode mudar o capitalismo sem abandoná-lo, ou porque não se con-seguiu abandoná-lo com os socialismos reais, ou ainda, porque o curso das modificações já não comporta retorno e a mitigação também é incerta.

Os humanos tornaram-se agentes climáticos, doravante são agentes geo-lógicos: “A geo-história derruba qualquer reivindicação de se ter uma histó-ria orientada pelo humano”. A história se reencontra com a história natural revelando-se apenas um capítulo arrogante desta, como na fábula de Niet-zsche.63 Sua hybris-hightech consome energia de modo insustentável, empur-rando lixo, doenças e falta de água para os pobres, transformados aqui em

62 Thijs Kuiken. et al., Host Species Barriers to Influenza Virus Infections, Science, v. 312, n. 394, 2006.

63 Observe-se que em Sobre verdade e Mentira em sentido Extra-moral (1873) o planeta não se aquece, mas congela, desfecho mais coerente com os debates paleontológicos do século XIX. Além disto, o mosquito junto com a hybris do conhecimento perecem do mesmo modo, sem privilé-gios, simultaneamente. O antropomorfismo da linguagem e até um certo antropocentrismo são entendidos como artifícios, dotados do mesmo valor que quaisquer outros artifícios. Mais tarde,

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migrantes. A tecnologia, enquanto fé no progresso, não é solução, mas parte deste problema que preside uma tarefa crítica em segundo grau. Vivemos em

“zona crítica” segundo Peter Weibel, Bruno Latour ou Dipresh Chakrabarty. Em diálogo com Chakrabarty, Latour crê que a introdução da “dimensão planetária desencadeia um terremoto na filosofia da história: se o planetário emerge tão tardiamente, então todos os outros momentos do que costuma-va ser chamado “história” estão tomando lugar em um chão que perdeu a estabilidade. Nem Mundo, nem Globo, nem a Terra, nem o Global – para mencionar algumas das etapas que Chakrabarty menciona – são realmente os locais onde os humanos residem”.64 O fim de todas as coisas poderia ser reivindicado novamente aqui, numa contorção da crítica transformada em

“zonas críticas” (‘cause it went out of stream...).A reflexão de Bruno Latour oferece aqui uma espessura interessante, pois

evita colocar a tecnologia em questão. Em lugar de uma Gelassenheit, atitu-de do pensamento face à armação técnica, fica consolidada a tríade política, guerra, diplomacia das ciências, intrínseca à criação de mundos e aos mo-dos de habitá-los. Podemos supor que se trata de uma hábil transformação das perspectivas que buscavam julgar a técnica a partir do exterior, de fora, da filosofia olhando para a ciência sem sofrer exigências de simetria. Deste modo, estamos percorrendo com ele o rumo de Michel Serres, filósofo que entende que cabe um contrato com a natureza no lugar do contrato entre os homens, quando a natureza vem a reboque através da propriedade do solo ou da ciência moderna.65 A negociação com a natureza é fazer mundo (contrato natural). As ciências são porta-vozes das entidades naturais e também traba-lham para compor mundos e reordenar demandas (parlamento das coisas). Olha-se para a ciência fazendo mundos ao viver a vida de laboratório, ao percorrer etnografias do fazer científico, portanto é a ciência que olha para si mesma de modo filosófico. Por estar e permanecer pré-moderna não se es-mera em distinções acerca daquilo que seria propriamente filosófico. Admite cosmologias e multiplica naturezas. Trata-se de uma abertura para a virada ontológica da antropologia social.

a crítica nietzschiana do conceito de vontade irá reunir pedra, animal, humano e deuses numa só teoria da vontade de potência.

64 Bruno Latour e Dipesh Chakrabarty. Conflicts of planetary proportions – a conversation, Jour-nal of the Philosophy of History. V. 14. No. 3, (2020), p. 03-4.

65 Michel Serres. Le Contrat Naturel. (Paris: Flammarion/François Bourin, 1992), p. 49-85.

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Novíssimas e gnosticismo

Falando, resolvendo, reunindo, tomando a boa distância. Estaríamos habitando um instante feliz em que nada está decidido. Estranha relação com os fenôme-nos – mundo das catástrofes, calamidades, terremotos, inundações, tsunamis, vulcões, furacões, meteoros e quejandos. A primeira antinomia matemática da Crítica da Razão Pura, aquela das quantidades, ao tratar dos limites do mundo, nos adverte para as pretensões de pensar o extremo e o todo com nosso enten-dimento superlativo. Finitude é limitação necessária que habita entre o infinito e o findar. Interessa sacudir a razão da sonolência de sua convicção fictícia, sem lançá-la no desespero cético. Cabe examinar uma ideia religiosa que insiste em contrariar a estética transcendental pendendo para uma das teses da antinomia

– o problema do fim de todas as coisas. Estaríamos, portanto, num horizonte de juízo final, o dia caçulinha, novíssimo, apocalipse crítico ou escatologia secreta. O fim de todas as coisas espreitando de dentro da catástrofe climática faz rima com as ideias para afastar o fim do mundo.

O que isto teria a ver com o C19? Se acompanharmos Nancy: “Que o mundo se destrua não é uma hipótese: é num certo sentido a constatação de que se nutre hoje em dia todo o pensamento do mundo.”66

A querela acerca do sensível, incluindo todas as viúvas de Kant, pode ser diplomaticamente evitada se acompanharmos Latour e Stengers na “reto-mada crítica” da thing como assembleia das coisas em disputa, deslocando-

-nos dos matters of fact para as questões de concernimento, de preocupação e cuidado (matters of concern). Aqui teremos iniciativas de uma metafísica experimental e um gesto especulativo, aparentados com o empirismo trans-cendental (Husserl, Deleuze, etc.). Os sobreviventes do COVID-19 entraram num outro mundo, mundo novíssimo da escatologia agostiniana de onde nos acenam. Que tipo de aliança será possível fazer com este novo purgatório inaugurado? Não apenas bicicletas, aviões, exames PCR, enterros, escritórios, equipamentos de refrigeração ou ar condicionado, trens, entre outros encon-tram-se discutindo no parlamento das coisas. Há gente de ambos os lados da fronteira de um novo mundo em negociação.

Como se estabelece a relação de fim de mundo C19? Naturalmente, nem destruição nem tampouco mundo estão claramente determinados, e nem poderiam estar.

66 Jean-Luc Nancy, La Création du Monde ou la Mondialization, (Paris, Galilée, 2002), p. 17.

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Trata-se de uma zoonose, como já foi dito, portanto articula meio ambien-te e agência humana, sugerindo uma dedução empírica. A grande extinção dos animais não é percebida enquanto fim do mundo, mas apenas como o fim de seus mundos. Foram inclusive pensados a partir de sua suposta pobre-za em mundos. Gaia é considerada apenas mundo, com auxílio da má-temá-tica. Inerte, Gaia seria incapaz de vingança ou de produzir o fim-de-mundo.

Trata-se de um desafio para pensar o fim conjuntamente, como fundamento apriorístico, tangenciando o que seria uma dedução transcendental. A cau-salidade é dupla, reversa e bicameral. Mas, se com Kant aprendemos que o fim moral é compartilhado pela moral, o fim (Ende) substancial não pode ser compartilhado, pois nem mesmo poderia ser pensado. Afinal, admitindo que escatologia, apocalipse e juízo final colocam um problema para o mundo fenomênico, podemos segui-lo neste ponto: “Assim, a representação daquelas últimas coisas (die Vorstellung denen lezte Dinge), que devem acontecer depois do dia do juízo final (jüngste Tag), só pode ser considerada como contemplação deste último dia (versinnlichung des letztern), juntamente com suas consequên-cias morais, que aliás não podemos conceber teoricamente.” Pois, como pres-supõe Kant, “...como a ideia de um fim de todas as coisas não tem origem no raciocínio (Vernunfteln) sobre o curso físico (physischen) das coisas no mundo, porém sobre seu curso moral, unicamente sendo causada por ele, este último curso só pode ser relacionado com o supra sensível - compreensível apenas na esfera da moralidade - de que é parte a ideia de eternidade (Ewigkeit).”67

É preciso frisar que no pensamento kantiano assuntos de fim-das-coisas são ideias que a Razão cria para si mesma, num jogo. Quando se dispõe de algum objeto, ele está inteiramente fora do alcance da visão, ou seja, da sen-sibilidade. Há três possibilidades examinadas no famoso texto: o fim natural de todas as coisas; o fim místico sobrenatural das mesmas; e o fim invertido e antinatural das coisas.68 A primeira é dicotômica e pode ser conhecida do ponto de vista prático à medida que segue a ordem das finalidades morais da sabedoria divina (causa formal e material, ficando descartada esta última, pois o tempo não tem fim). A segunda se ordena pelas causas eficientes sobre as quais nada sabemos. A última é criada por nós por má compreensão (miss-verstehen) da finalidade última (Endzweck), isto é, a causa final escapa.

67 Immanuel Kant, O fim de todas as coisas. In. Immanuel Kant: textos seletos. (Petrópolis: Vozes, 1985), p. 158-159 ; A 499-500.

68 Immanuel Kant, O fim de todas as coisas. In. Immanuel Kant: textos seletos. (Petrópolis: Vozes, 1985), p. 166-167 ; A 508, 509.

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O anjo do Apocalipse que paralisa o tempo poderia tornar a natureza petri-ficada, sem transformação, contradizer o instante e apresentar uma eternidade como mero conceito negativo da duração eterna – a imaginação se rebela então contra isto!69 Uma saída moral remanescente estaria na mística, que os budistas e espinozistas praticam buscando satisfação com a quietude do nada. Engodo!70

A humanidade deveria largar a sandice de insistir no final das coisas, diz Kant, e admitir que sua fatia de sabedoria consiste simplesmente em poder mudar os planos e os fins, adaptando-se e aperfeiçoando-se. O projeto de fundar religiões nesta direção é contudo considerado ilegítimo, assim como a máxima, dura e verdadeira, que afirma: “Pobres mortais, entre vocês nada é estável senão a instabilidade!”71 Melhor seria aceitar a religião do amor e o pensamento liberal da escolha. Porém, é preciso acompanhar Kant e também Nietzsche no argumento surpreendente que o acaso fornece para o minucio-so exame kantiano do fim do mundo. Pondera ele que, se o cristianismo se tornasse indigno de amor, atrairia para si imediatamente uma repulsa moral, permitindo um reinado do Anticristo. Este governo seria curto, precursor do novíssimo Juízo Final. Ao que parece, neste caso haveria efetivamente um fim de todas as coisas, segundo a moralidade.72

Da inadequação em pensar o fim das coisas até sua insistência moral le-gítima, derivada da religião do amor, tal como o pietista Kant entende o cris-tianismo, pode-se supor que as antinomias da razão, da moral e do juízo reflexivo fizeram seu trabalho dialético. Diz a lenda que Schelling e Hegel trouxeram o problema do mundo de volta ao mundo e à ciência. Não seja por isso. O neokantismo retoma o problema e lega à fenomenologia uma tarefa maior que consiste exatamente naquele diferendo, na carne do mundo.

Quando diversos e distintos pensadores da Atombomb se dirigiram para a explosão das agências, concebendo o sujeito transcendental apertando bo-tões de destruição industrial, acabaram por explodir o fantasma do piloto de guerra. Refiro-me a Gunther Anders, Karl-Otto Appel e Jürgen Habermas que

69 Immanuel Kant, O fim de todas as coisas. In. Immanuel Kant: textos seletos. (Petrópolis: Vozes, 1985), p. 168-171 ; A 510, 511.

70 Immanuel Kant, O fim de todas as coisas. In. Immanuel Kant: textos seletos. (Petrópolis: Vozes, 1985), p. 172-173 ; A 514, 515.

71 Immanuel Kant, O fim de todas as coisas. In. Immanuel Kant: textos seletos. (Petrópolis: Vozes, 1985), p. 174-175 ; A 516, 517.

72 Immanuel Kant, O fim de todas as coisas. In. Immanuel Kant: textos seletos. (Petrópolis: Vozes, 1985), p. 180-181 (A 522).

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não deixaram de notar que o imperativo categórico ficaria doravante despo-jado daquela solidez iluminista por causa da criação de armas de destruição em massa. A destruição de Hiroshima e Nagasaki despertou o pensamento filosófico para o horror do aniquilamento da humanidade pela própria hu-manidade. A liberdade do agir e sua tendência ao dever, a responsabilidade, atingiriam definitivamente toda a humanidade e não mais simplesmente o próximo ou a comunidade moral humana. Lembremo-nos de que a química é uma ciência de destruição de massa, criação do antinatural inexistente, e neste sentido o fogo de cozinha ganha destaque prometeico.

Exfermidade

O fim de todas as coisas retorna. Uma “cegueira apocalíptica” seria denuncia-da por Anders. O agir não poderia mais ser separado da destruição de fato, empírica, do planeta, de seu novo compromisso com o fim de todas as coisas por ser adiado através de um pacto distinto. Acompanhando Appel, admiti-mos um colapso do imperativo categórico com a universalidade tornada dis-creta – um planeta ameaçado por um único ato num único instante (“não se restringe mais a micro ou mesoesfera de possíveis consequências”).73 O dever não seria formalmente universal, mas materialmente paradoxal. Uma agenda verde, centrada na poluição químico-radioativa foi um dos desdobramentos necessários deste raciocínio. O C19 pode ser entendido enquanto zoonose gerada pelas técnicas humanas que não cabem mais no planeta e destroem mundos terráqueos e terranos ao reivindicar mundos globalizados.

Uma trajetória da paranoia à metanoia nos faz desembarcar no cuidado. A morte e o medo narcísico da destruição, a finitude do conhecimento ao ser conformado àquilo que pode ser conhecido, a suspeita de que as coisas não seguem um rumo moral justo, o sentimento angustiado de Unheimlich, a vivência esquizofrênica de fim de mundo. Todas estas questões tão absolu-tamente diferenciadas podem ser trilhadas a partir da destruição do planeta. Caberia perguntar acerca da possibilidade de um mapa funcional. Por aqui busquei delinear uma picada, pequena trilha distinta dos Holzwege e mais próxima dos caminhos dos Mamaindê-Nambiquara na floresta. Programas de resistência no Antropoceno como: para “adiar o fim do mundo”; a inves-tigação sobre mundos possíveis; e o fim de todas as coisas; tampouco são

73 Karl-Otto Apel, Estudos de moral moderna. (Petrópolis: Vozes, 1994), p.73.

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29, n.47, p.192-237, jul.-dez.2020

equivalentes – apenas indicam um percurso. Acabar com o fim do mundo pode ser entendido como uma tarefa análoga ao projeto de Antonin Artaud de acabar com o juízo de Deus. Responde pelo noioso da peste.

O tema do fim do mundo ou do fim de todas as coisas poderia ser tão velho quanto o mundo ou da idade da terra e de seus vírus em devir permanente e desconhecido. Para acabar com o fim do mundo transforma-se sub-repticia-mente em adiar o fim-do-mundo, tornando-se uma palavra de ordem e uma exigência do pensamento. Parece-me que a enfermidade cria perspectivas in-contornáveis no instante, absolutamente duradouro, em que se fez exfermi-dade nesta pandemia. Sua conversa é ainda aquela do fim de todas as coisas.

Esta pandemia se deve a um personagem viral composto de uma capa sacular cheia de espinhos moleculares formando uma coroa, e em seu interior moléculas de proteína junto com algumas fitas de material auto-replicante feito de RNA, com estrutura reconhecida em muitos vírus do planeta. O CO-VID-19 tem elevada virulência, ou seja, alta taxa de contaminação, mortalida-de e morbidade. Isto se expressa pela SRAG e por algumas sequelas cada vez mais conhecidas, sejam vasculares (trombose, embolias, AVC, aneurismas), cardíacas (enfarte, miocardite morte súbita, cardiomiopatia, arritmias), pul-monares (fôlego curto, fibrose pulmonar, insuficiência respiratória) neuroló-gicas ou neurocognitivas (síndrome de fadiga, hipopraxia, amnesias, piora de-generativa) e psiquiátricas (depressão, carga de problemas em saúde mental).

O “micróbio”, neste caso uma entidade viral muito menor e bem diferente de uma bactéria, é absolutamente invisível sem a utilização de recursos técni-cos. Trata-se menos de ver ou sentir do que constatar sua presença e perseguir seus traços. Penso que há motivos suficientes para chamá-lo de actante (termo semiótico recobrindo humanos e não-humanos) e abandonar a racionalidade do agente infeccioso unicausal, orientado pela flecha do tempo unidirecional. A microbiologia antiga já pode se beneficiar de uma ecologia mais densa, admi-tindo uma rede de eventos e nuvem de causalidades.74 Vetor, agente infeccioso, hospedeiro são noções individualistas baseadas na ideia de uma causa eficiente. A vida nas cidades tem ensinado muito sobre os “micróbios”, microoganismos dotados de ecossistemas em escala que não podemos sentir ou habitar. Aliás, sua ecologia ganhou impulso através dos estudos do microbioma de mamíferos

74 Nos primórdios da teoria ator-rede (ANT), Bruno Latour entendia a “pasteurização” da França a partir de uma ênfase espinozista nas forças e potência do agente pastorialista. Guerra e paz não se configuravam como uma luta contra o micróbio mas enquanto parceria complexa incluindo Tolstói, Napoleão e prefeituras rurais. Bruno Latour, Les microbes. Guerre et Paix, suivi de Irreduc-tions, Paris: Éditions A. M. Métailié et Association Pandore, 1984.

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e humanos – determinando que inúmeros animais, vegetais e vírus micros-cópicos vivem em colônias dentro de nossos tubos, cavidades e órgãos. Não são meros invasores, mas comensais, parasitas, simbiontes e sobretudo compa-nheiros de saúde e doença. Cabe repensar noções antropocêntricas como para-sitismos, simbiose, comensalidade tentando abrir-se para etnografias multi-es-pécie, assim como para o descentramento do humano na medicina, que ainda insiste em tratar o organismo de mamíferos humanos como centro das ciências e modelo antrópico absoluto, incapaz de qualquer relativização.75 Igualmente, as fronteiras nacionais do Estado e do contrato social permanecem porosas demais para o vírus. Não foi possível discutir aqui se um vírus deve ser enten-dido como um vivente exatamente como outros, nem tampouco se constitui um híbrido, ou ainda um convidado especialíssimo. Esta visita de que tanto falamos parece demorar bem mais do que se esperava.

Agradecimentos a Aparecida Vilaça, Flávio Coelho Edler, Ximena Illarramen-di, José Nicolau Julião e Anna Hartmann Cavalcanti: companheiros em claus-tro, leitores gentis compartilhando devaneios.

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75 No caso dos cães farejadores de indivíduos contaminados por C19, o potencial semiológico de não-humanos recebe atenção lateral face ao parque tecnoindustrial da biomedicina. Perguntamo-

-nos se a cooperação de cães antidroga e antibomba não permitiria criar laboratórios de exames clínicos muito distintos.

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* Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Contato: [email protected]** Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Contato: [email protected]

Discurso filosófico e existência em Ricoeur:

filosofar após Kierkegaard1

O estilo filosófico da hermenêutica de Ricoeur é aquele de um pensamento itinerante que, sem jamais deixar de ser exercício reflexivo, se realiza e se reconhece na concretude existencial dos humanos que agem e sofrem. É um estilo de pensamento que, precisamente porque é reflexivo, se guarda da ten-tação da autossuficiência da reflexão ou, para usar uma bela fórmula de Pierre Thévenaz, do “autismo da razão filosófica”2 e que requer, portanto, o sustento, o auxílio, o nutrimento daquilo que nosso autor designa, repetidamente ao longo da carreira de pensador, não-filosofia3.

1 Este texto é uma tradução de um artigo original italiano: JERVOLINO, Domenico. DISCORSO FILOSOFICO ED ESISTENZA IN RICOEUR: FILOSOFARE DOPO KIERKEGAARD. In. LEO-NHARDT, Ruth Rieth; CORÁ, Elsio José. O legado de Ricoeur, Guarapuava: Unicentro, 2011, p. 57-69. Todas as notas de rodapé originais foram mantidas. Em caso contrário, indica-se com [N.T.].

2 Cf. Pierre Thévenaz, L’homme et as raison, 2 voll, La Baconnière, Neuchâtel, 1956 e Id., La condition de la raison philosophique, La Baconnière, Neuchâtel 1960. Sobre Thévenaz, contemporâneo e amigo de Ri-coeur, sua vida: Paul Ricoeur, Un philosophe protestant: Pierre Thévenaz in Id., Lectures 3. Aux frontiéres de la philosophie, Seuil, Paris, 1994, p. 245-259 (traduzido, Leituras 3: Nas fronteiras da filosofia, tradu-ção: Nicolás Nymi Campanário, Edições Loyola, São Paulo, 1996, p. 147-161) e Domenico Jervolino, Pierre Thévenaz e la “filosofia senza absolu”, in Le souci du passage. Mélanges offerts à Jean Greisch, organi-zado por: Capelle, G. Hébert e Popelard, Beauchesne, Paris, 2004, p. 180-190 e Pierre Thévenaz (1913-1955) et la condition humaine de la raison, Revue de Théologie et de Philosophie, 137, n. 2, 2005, p. 129-139.

3 Optamos por traduzir o termo non filosofia por não-filosofia, seguindo a tradução de Marcelo Perini e Nicolás Nymi de Leituras 2: a região dos filósofos, obra ricoeuriana onde este termo tam-bém está presente [N. T.].

Recebido em: 19/09/2020 - Aceito em: 20/12/2020

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29, n.47, p.238-246, jul.-dez.2020

A não-filosofia é o aporte indispensável dos diversos saberes, das ciências naturais e humanas, do trabalho literário, da cultura em toda sua extensão, sem o qual não há pesquisa filosófica verdadeiramente fecunda; mas não-fi-losofia é também o impacto da razão filosófica com os dramas e horrores da história, com a tragédia dos conflitos éticos, com os enigmas da condição humana, com a contingência do existir, com as lacerações da vida. A não-

-filosofia é a problemática que produz e aguça as perguntas que nasceram historicamente do terreno da fé bíblica e cristã: por que o mal, por que a dor do inocente, por que o triunfo do ímpio e o sofrimento do justo? O fato é que Ricoeur coloca estas questões e elas agem como estímulos para o surgimento de mal-entendidos sobre o caráter secular e racional de sua obra, algo que ele nunca deixa de reivindicar para seu filosofar. Nós não escapare-mos destes mal-entendidos, se não compreendermos que é a partir de uma relação estrutural e construtiva entre filosofia e não-filosofia que nosso autor assume o desafio colocado como outro, como provocação à razão filosófica: o desafio da semiologia e do inconsciente, podemos dizer, bem como o desafio do mal e da fé na justificação. Do ponto de vista do estatuto epistemológico do discurso filosófico, se trata da mesma estrutura tensional e dialética entre a razão filosófica e seu outro.

Essa problemática de derivação teológica tem, talvez, o privilégio único de trazer consigo os níveis mais altos de radicalidade desta tensão, auxiliando a razão filosófica a adquirir plena consciência de sua condição existencial; do interesse que ela suscita e da possibilidade de dar-lhe sentido para o filósofo não crente (enquanto essa consciência também pode se tornar uma pré-con-dição para o crente filósofo).

Ricoeur se volta repetidamente sobre a relação entre filosofia e não-fi-losofia, que faz com que exista embaraço na escolha a ser feita entre tantas citações possíveis, basta recordar as notas do seu primeiro escrito dos anos cinquenta na revista Esprit, dedicadas a temas como o profetismo e o trágico, que se encontram em Nas Fronteiras da Filosofia, recolocadas, agora, em Lei-turas 34. Mas, talvez, o texto mais claro e essencial para o nosso propósito é constituído pelo ensaio Filosofar após Kierkegaard, que vem após Kierkegaard e o Mal, duas conferências publicadas em 1963, gostaria de lembrar, na Revue de Théologie et de Philosophie que era promovida por Pierre Thévenaz e, agora, é republicada em Leituras 25.

4 Cf. Ricoeur, P. Lectures 3: Aux fronteires de la philosophie, Paris: Seuil, 1994, p. 153-209.

5 Cf. Ricoeur, P. Lectures 2: Contrée des philosophes, Paris: Seuil, 1993, p. 15-28 e 29-45.

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A primeira conferência ilustra com grande fineza analítica a posição de Kier-kegaard sobre o mal, refutando os modos de uma reconstrução de tipo biográfi-co e privilegiando a exegese dos textos fundamentais do pensador dinamarquês que são dedicados aos sentimentos de angústia e de desesperança (para poder trilhar eventualmente “do texto à vida”), dos quais resulta uma carga disruptiva do discurso kierkegaardiano em relação ao sistema filosófico de matriz hegelia-na, uma antidialética dialética existencial, que resulta da ignorância socrática em vista de uma exortação para o despertar cristão, uma linguagem poética na qual o que é dito deve ser desdito para assim realizar um tipo de aplicação do método de teologia negativa na antropologia da condição humana.

Sobre esse fundo se captura todo fluir interrogativo, que é o aspecto cen-tral da segunda conferência: “Como filosofar após Kierkegaard?”. Depois de ter descartado aquilo que ele considera os lugares comuns sobre um Kierke-gaard que seria o pai do existencialismo e o iniciador da era pós-filosófica, duas ideias, na sua opinião, discutíveis e privadas de conteúdos unívocos, Ricoeur articula sua resposta em três etapas:

1) Primeiramente, devemos deixar de lado os elementos propriamente irra-cionais de Kierkegaard, como existente singular, como exceção, como gênio estético-religioso. Neste sentido, a filosofia não pode nem refutar, nem incor-porar Kierkegaard, ela pode apenas deixar ele ser o que ele era; Kierkegaard, enquanto exceção, é alguma coisa que está diante da filosofia, como se ele fosse sempre o outro dela e com qual ela deve sempre acertar as contas. Kier-kegaard é o exemplo da não-filosofia.

A filosofia sempre tem a ver com a não-filosofia, porque a filosofia não tem objeto próprio. Ela reflete sobre a experiência, sobre toda experiência, sobre o todo da experiência: científica, ética, estética, religiosa. A filosofia tem suas fontes fora de si mesma. Digo suas fontes, não seu ponto de par-tida; a filosofia é responsável pelo seu ponto de partida, por seu método, por seu acabamento; a filosofia busca seu ponto de partida; ela vai para o seu ponto de partida; sobre isso, Pierre Thévenaz, nosso querido e sempre pranteado Thévenaz, disse coisas convincentes e decisivas: a filosofia tem seu ponto de partida diante dela. Mas, se ela busca seu ponto de partida, ela recebe suas fontes6.

6 Ibidem, p. 34, [trad. 1996, p. 34].

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29, n.47, p.238-246, jul.-dez.2020

Neste sentido, a filosofia está em debate com Kierkegaard como com qual-quer outro gênio não-filosófico.

2) Mas deste modo Kierkegaard seria exilado do domínio da filosofia, e se parássemos neste ponto, esse exílio seria percebido como injusto em relação a ele, pois ele não é uma mera exceção, um não-filósofo qualquer, ele é al-guém que invade o domínio da filosofia com seu estilo original, que ele confia aos pseudônimos sob os quais é travestido seu trabalho. O Kierkegaard dos pseudônimos argumenta, elabora conceitos, constrói uma antidialética feita de oposições irresolutas, de paradoxos; ademais, enquanto não-filósofo, ele interpreta o papel do hiper-filósofo, até o ponto da caricatura e da zombaria. Este aspecto do pensamento kierkegaardiano pode ser verificado, diz o nosso autor, somente mediante uma nova leitura da história do idealismo alemão, história ao qual Kierkegaard pertence; a função do paradoxo em Kierkegaard é próxima à função de limite em Kant, a crítica da existência segue o movimen-to da crítica kantiana e, assim, fornece uma resposta aos problemas da razão prática, que Kant, como nota Ricoeur, se equivocou ao pensar sob o modelo da razão teórica. As categorias da existência são as condições de possibilidade daquilo que é a experiência fundamental, a realização de nosso desejo e de nosso esforço de existir7. Quem conhece a centralidade desta noção de desejo e esforço de existir em Ricoeur não se surpreenderá se ele, imediatamente após Kant, aproxima o pensador dinamarquês ao Fichte do ato em oposição ao fato e ao último Schelling, filósofo da realidade finita. Essas três referências filosóficas fornecem, para ele, o instrumento para inserir o discurso paradoxal kierkegaardiano no universo argumentativo e da comunicação filosófica.

3) Estamos prontos, agora, para responder de uma nova maneira o confronto mais decisivo, aquele entre Hegel e Kierkegaard. Aqui, Ricoeur constrói uma dialética rígida, cujo sentido é mostrar não apenas a existência de um vínculo inseparável entre os dois pensadores e que um ajuda a compreender o outro, mas também que em tal relação cada um deles deve ser compreendido dife-rentemente. A disputa kierkegaardiana torna-se uma oportunidade para uma leitura alternativa de Hegel.

De um certo ponto de vista, Kierkegaard opera no interior do sistema hegeliano, na medida em que reproduz a figura da consciência infeliz, e é o movimento

7 Cf. Ibidem, p. 37-38.

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29, n.47, p.238-246, jul.-dez.2020

mesmo da fenomenologia do espírito que deixa aberta a possibilidade de uma discordância secreta entre uma história exemplar do espírito e uma lógica do absoluto. A extraordinária riqueza da primeira, que é o grande romance da hu-manidade, não excederia, talvez, a possibilidade de uma recapitulação exaus-tiva? E a oposição entre a dialética hegeliana e a dialética existencial não seria uma nova figura da dialética, que, por sua vez, requer ser compreendida? Se entrevê, aqui, a possibilidade de uma dialética quebrada, sem mediação defi-nitiva, mas também sem oposições absolutamente inconciliáveis: é o que será chamado, seguindo nosso autor no capítulo de Tempo e Narrativa dedicado à consciência histórica, mediação imperfeita e de dialética enquanto dialógica8.

Caso se aceite este cenário que vê a conexão Hegel-Kierkegaard como uma relação dialética que deve se tornar produtora de um desenvolvimento do discurso filosófico, se encontram outros dois pontos de convergência-ten-são. O primeiro ponto é constituído pela crítica de uma visão puramente éti-ca do mundo. Por visão ética do mundo, Ricoeur entende “[...] a tentativa de compreender cada vez mais estreitamente a liberdade e o mal um por meio do outro”9: Hegel crítico da moral kantiana e de toda a oposição entre ser e dever ser, entre céu e terra, e também Kierkegaard que critica a eticidade hegeliana em nome da fé do singular perante o Transcendente... A questão que se põe a partir de ambas as críticas é o sentido do estágio ético da exis-tência. Mais uma vez, Kierkegaard parece operar no interior do sistema hege-liano: de fato, a esperança subjetiva kierkegaardiana em que a fé é absorvida pela dialética hegeliana das categorias que atestam o triunfo da religião do Espírito, por meio da mediação da morte do Filho sobre a religião do Pai, dialética que perpassa toda Filosofia da religião. Mais uma vez, o fechamento do discurso do ponto de vista do sistema se torna problemático. A eticidade enquanto pensamento do geral e do impessoal deixa de fora de si mesma a razão da individualidade irrepetível. Hegel permanece na dimensão da etici-dade desmistificando o indivíduo ou o identificando, este mesmo indivíduo, de modo delirante com o Absoluto.

Aqui, também encontramos motivações que, sabemos, são caras a Ricoeur e que antecipam sua filosofia mais madura – notemos Ricoeur ao renunciar Hegel em Tempo e Narrativa10. O nosso autor assim comenta:

8 Cf. Ricoeur, P. Temps et récit, III, Paris: Seuil, 1985, p. 300-346.

9 Finitude et culpabilité, I, Paris: Aubier, 1960, p. 14.

10 Cf. Ricoeur, P. Lectures 2: Contrée des philosophes, Paris: Seuil, 1993, p. 280-299.

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29, n.47, p.238-246, jul.-dez.2020

Penso que essa oposição entre Hegel e Kierkegaard deve ser introduzida como tal no discurso filosófico. De um lado, a distância entre o totalmente outro e o homem não pode ser pensada sem a ideia de uma relação inclu-siva que põe fim a ideia de pura transcendência, pensa-se numa totalidade que envolve a relação entro o Outro e eu mesmo; nesse sentido, a ideia de transcendência se suprime a si própria. Hegel terá sempre razão contra toda pretensão de pensar a distância infinita entre o absolutamente outro e o homem; nesse sentido também, toda visão ética se nega a si mesma a partir do momento em que tenta se enunciar. De outro lado, esse ponto de vista sem ponto de vista onde se veria a identidade profunda entre o real e o racional, o existente e o significante, o indivíduo e o discurso não se encon-tram em parte alguma. É preciso sempre, com Kierkegaard, voltar a esse reconhecimento: eu não sou o discurso absoluto; existir é não saber, no sen-tido forte do termo; a singularidade renasce sempre à margem do discurso. É, portanto, necessário outro discurso que o leve em conta e que o diga11.

O segundo ponto de convergência-tensão entre Hegel e Kierkegaard verda-deiramente nos leva ao âmago mesmo da relação entre discurso filosófico e esperança cristã. À primeira vista, estamos diante de uma oposição irredutí-vel, não mediável: a religião enquanto pura, enquanto introdução à filosofia, enquanto destinada a superar a questão última, por um lado; por outro, a fé enquanto iniciativa de Deus que transcende toda possibilidade humana. Po-rém, a oposição torna-se uma tensão fecunda se colocada no interior daquilo que Ricoeur chama a verdadeira filosofia da religião de Hegel, o capítulo sétimo da Fenomenologia do Espírito, que põe o problema da linguagem reli-giosa e, em geral, da representação, problema que “[...] ilumina Kierkegaard e que é iluminado por Kierkegaard”12: “Em certo sentido, a religião não pode ser transcendida – pelo menos a que Hegel chama de religião verdadeira ou religião revelada – porque ela é, ao mesmo tempo, a agonia da representação e a representação da agonia, no limiar do saber absoluto”13.

Mas esse saber absoluto, [prossegue Ricoeur], não é o nosso; só podemos dizer o seguinte: existe o saber absoluto; eis porque a representação é, ao

11 Ibidem, p. 42-43 [trad. 1996, p. 42].

12 Ricoeur, P. Leituras 2: a região dos filósofos. Tradução: Marcelo Perini e Nicolás Nymi Campa-nário. São Paulo: Loyola, 1996, p. 43.

13 Idem.

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mesmo tempo, superada e mantida. Assim, a religião não pode ser abolida por algo exterior a ela; dela sendo o da sua própria supressão. Mas ela é, precisamente essa supressão, essa morte dos ídolos, das figuras, das repre-sentações, essa morte de Deus que ela deve viver e pensar com sua própria verdade, na comunidade religiosa e no culto./ Alcançamos assim o ponto no qual a oposição entre sistema hegeliano e o pensador subjetivo e passional tornou-se plenamente significante. A própria relação entre Hegel e Kier-kegaard tornou-se um paradoxo; a razão desse paradoxo reside na função filosófica da ideia de sistema; talvez tenhamos descoberto ou redescoberto que o sistema é, ao mesmo tempo, a exigência última da filosofia e sua meta inacessível. A religião é esse lugar do discurso filosófico onde a neces-sidade de transcender as imagens, as representações e os símbolos pode ser contemplada, ao mesmo tempo que a impossibilidade de desfazer-se delas. É aqui “o lugar” onde Hegel e Kierkegaard lutam um com o outro; mas essa luta faz, doravante, parte do discurso filosófico14 15.

A complexidade destas três respostas para a pergunta “Como filosofar após Kierkegaard?” convida-nos a ter cuidado ao lidar de maneira drástica com a alternativa entre racionalismo e existencialismo.

A ciência não é tudo. Mas, além da ciência, ainda existe pensamento. A questão da existência humana não significa a morte da linguagem e da ló-gica; ao contrário, ela requer um acréscimo de lucidez e de rigor. A questão:

“Que é existir?” não pode ser separada de outra questão: “Que é pensar?” A filosofia vive da unidade dessas duas questões e morre de sua separação16

O texto da segunda conferência sobre Kierkegaard, que acabamos de ler, ex-prime eficazmente as raízes existenciais do projeto filosófico ricoeuriano, raízes que fundamentam nelas sua formação filosófica, raízes que não são nunca rene-gadas, mas que talvez poderiam ter sido colocadas na sombra da complexidade própria da obra ricoeuriana e da multiplicidade dos encontros e dos confrontos que ele considerou necessários no prosseguimento de seu trabalho filosófico.

14 Ibidem, p. 43-44 [trad. 1996, p. 43].

15 Sobre o estatuto da representação na filosofia hegeliana da religião ver também o ensaio ricoeuriano de 1985, Le statut de la Vorstellung dans la philosophie hégélienne de la réligion, em Lectures 3, p. 41-62.

16 Ibidem, p. 45 [trad. 1996, p. 44].

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29, n.47, p.238-246, jul.-dez.2020

Relido, hoje, com a distância de algumas décadas, este texto ajuda a com-preender o sentido complexo do percurso ricoeuriano e seus desenvolvimen-tos na direção de uma fenomenologia hermenêutica do si. Desenvolvimentos que são de resto coerentes com aquela dimensão existencial da hermenêutica que vem à tona no primeiro plano na extensa pesquisa historiográfica sobre as origens da hermenêutica no início do século XX, entre o último Dilthey e o primeiríssimo Heidegger, uma dimensão, em certa medida, esquecida e mais radical do longo debate hermenêutica metódica versus hermenêutica não-me-tódica ou ontológica17. Relidas, hoje, estas páginas quase adquirem a espessura de um discurso do método de uma filosofia que se reconhece a si mesma enquanto hermenêutica e existencial, enquanto hermenêutica da vida, sem que, para isso, considere alguma forma de vitalismo irracional ou estetizante.

A filosofia não é voz do ser sem tempo, mas hermenêutica da vida dos seres humanos feitos de carne e de sangue, capazes de agir e de sofrer, de inter-agir e de com-partilhar. É sobre este fundo opaco, atormentado e pro-blemático do viver que se situa a linguagem com os seus múltiplos usos e com suas múltiplas formas, como prática social, como expressão de necessidades e de sentimentos, como canto, oração, história, como poder de interrogar e procura de sentido. No espaço da vida e da linguagem, à disciplina do discur-so significativo se conjuga a capacidade de ouvir e de decifrar os traços múl-tiplos e pluriformes da alteridade que a reflexão reencontra incessantemente no coração inquieto do si.

A filosofia não é mais origem, não é mais sem pressupostos. Ela comporta a condição humana da dor e da culpa e a busca do sentido no discurso fenome-nológico. E é somente a tensão que volta a equalizar a profundidade existencial das experiências vividas e leva a reflexão a se fazer hermenêutica, a fenomeno-logia a se tornar fenomenologia interpretante. O discurso fenomenológico-her-menêutico, por sua vez, não elimina mais a profundidade, a problemática den-sidade existencial da vida, da qual assim recebe alimento e impulso, enquanto introduz nela um elemento de clarividência, de discernimento, que não é a deslumbrante luminosidade total da autotransparência de uma razão absoluta e autofundante, mas a luz viva, envolta de sombras, conquista parcial e que sempre se renova, essa verdade no concreto, que é humana, somente humana.

17 Cf. Grondin, Jean. L’universalité de l’herméneutique, Puf, Paris, 1993; Id., L’horizon hermenéu-tique de la pensée contemporaine, Vrin, Paris, 1993; Greisch, Jean, Vers une herméneutique du soi. La voie courte e la voie longue, no volume coletivo Éthique et résponsabilité, Paul Ricoeur, La Bacon-nière, Neuchâtel, 1994; Id., Hermeneutik und Metaphysik, W. Fink, München, 1993, sobretudo, p. 177 ss. e p. 199 ss.; Id., Ricoeur. L’itinérance du sens, Millon, Grenoble, 2001.

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Passando pela via longa da reflexão e da linguagem, o si de Ricoeur é um si que se descreve, se narra, se reconhece objeto e sujeito do discurso ético, se interroga repetidamente sobre seu modo de ser. A vida do sujeito se torna discurso vivente, no qual de múltiplos modos se diz o si e seu outro. Por isso, a hermenêutica não pode deixar de fazer a análise da linguagem e a crítica da ideologia, coisas que são em geral contribuições da ciência do homem. Por isso, também, é um empenho cansativo, difícil e sempre retomado, que é o de se apropriar do próprio esforço e desejo de existir, de conquistar a própria identidade, aceitar, encontrar seu lugar na comunidade dos homens e na relação com o mundo.

Referências

RICOEUR, P. Finitude et culpabilité, I, Paris: Aubier, 1960.

______. Temps et récit, III, Paris: Seuil, 1985.

______. Lectures 2: Contrée des philosophes, Paris: Seuil, 1993.

______. Lectures 3: Aux fronteires de la philosophie, Paris: Seuil, 1994.

______. Leituras 2: a região dos filósofos. Tradução: Marcelo Perini e Nicolás Nymi Campanário. São Paulo: Loyola, 1996.

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29, n.47, p.247-257, jul.-dez.2020

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Entre filosofia e não-filosofia: a obra de Paul Ricoeur sob

o olhar de Domenico Jervolino

Between philosophy and non-philosophy: Paul Ricoeur's work

under the view of Domenico Jervolino

Resumo

O presente artigo é uma apresentação ao texto Discurso Filosófico e Existência em Ricoeur: Filosofar após Kierkegaard de Domenico Jervolino que tivemos a honra de trazer ao português. Para isso, dividimos nossa escrita em três partes. A primeira reflete sobre a recepção do pensamento de Paul Ricoeur no Brasil, em especial, com a tradução/interpretação de Hilton Japiassu. Em seguida, analisamos alguns aspectos da obra de Domenico Jervolino e o horizonte interpretativo que ela deixou para a reflexão do pensamento ricoeuriano. Por fim, buscamos pensar qual é o lugar que o texto que traduzimos ocupa, tanto no contexto da obra de Jervolino, quanto no contexto da nossa tradição sobre o pensamento de Paul Ricoeur.

Palavras-chave: Paul Ricoeur; Domenico Jervolino; Tradição Hermenêutica no Brasil.

Recebido em: 19/09/2020 - Aceito em: 20/12/2020

* Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Contato: [email protected]** Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Contato: [email protected]

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Abstract

This paper is an introduction to Domenico Jervolino’s Discurso Filosófico e Existência em Ricoeur: Filosofar após Kierkegaard that we have translated to Portuguese. The paper is divided into three main sections: firstly, we reflect upon the reception of Paul Ricoeur’s thought in Brazil, especially with the translation by/interpretation of Hilton Japiassu; secondly, we analyze some aspects of Domenico Jervolino’s work and the interpretive horizon that it left for the reflection upon of Ricoeurian thought; finally, we seek to think about the place that Discurso Filosófico e Existência em Ricoeur: Filosofar após Kierkegaard occupies in Jervolino’s work and in the context of Brazilian tradition on Ricoeur’s thought.

Keywords: Paul Ricoeur; Domenico Jervolino; Hermeneutic Tradition in Brazil;

Introdução

O texto de Domenico Jervolino, que na sequência traduzimos para o por-tuguês, é um artigo publicado em 2011, na obra O Legado de Ricoeur, orga-nizada por Ruth Rieth Leonhardt e Elsio José Corá e publicada pela editora Unicentro, sob o título Discorso filosofico ed esistenza in Ricoeur: filosofare dopo Kierkegaard. Agradecemos aos organizadores e à editora de tal obra, em espe-cial a Renata Daletese, que permitiram a realização de nosso trabalho.

O legado de Ricoeur é uma das mais importantes obras sobre o pensamento de Paul Ricoeur editadas no Brasil, pois reúne em um só livro 14 pesquisado-res de diferentes nações, como Marcelino Agis de Villaverde, da Espanha; Pa-tricio Mena, do Chile; Gaëlle Fiasse, do Canadá; Noeli Dutra Rossatto e José Batista Botton, do Brasil, etc., que analisam criticamente uma mesma temá-tica, o percurso filosófico de Ricoeur. Ora, tal temática é cara a toda obra de Jervolino e sua contribuição para este livro é um dos seus últimos textos sobre tal assunto. Sendo assim, Discurso filosófico e existência em Ricoeur: filosofar após Kierkegaard, o artigo de Jervolino presente em O Legado de Ricoeur, se in-sere em um triplo contexto: (i) da proposta da obra, que se compõe de diver-sas análises, feitas em diversos países, sobre a filosofia de Ricoeur; (ii) da obra de Jervolino, na qual é retomada em termos críticos uma análise que esteve presente desde os seus primeiros escritos; (iii) dos leitores “privilegiados”, no

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29, n.47, p.247-257, jul.-dez.2020

caso, os brasileiros. Sendo assim, uma das grandes questões que se impõe é aquela que perpassa a presente apresentação, a contribuição da obra de Jervo-lino, em especial o texto que traduzimos, para a pesquisa brasileira, feita em português, que possui uma tradição bem estabelecida, guiada, entre outras coisas, pela tradução/interpretação de Hilton Japiassu.

Sobre a recepção de Paul Ricoeur no Brasil

Como observa Jeanne-Marie Gagnebin, ao comentar a recepção da filosofia de Paul Ricoeur no Brasil, dois fatores favorecem a recepção de um autor em nosso país: (i) as traduções disponíveis de seus textos; (ii) as “modas” intelec-tuais que acontecem lá fora, nos países que são epicentros da filosofia, como Estados Unidos, França, Inglaterra e Alemanha1. Se, por um lado, nos anos 70, na França, o que estava em moda era a discussão sobre o estruturalismo e, neste cenário, Paul Ricoeur era considerado, como observa François Dosse, um “caduco”2; por outro lado, em outros países, aquela “caduquice” servia para o enfrentamento de outros problemas, como aqueles de ordem ideológica que mantinham a ditadura nesta época aqui no Brasil. Sendo assim, a recepção do pensamento de Ricoeur, um filósofo relegado às fronteiras, aqui no Brasil é exemplar, já que o recurso a tal estrangeiro não foi feito para compreender e solucionar os problemas de lá fora, mas os daqui de dentro. Prova disso está em um dos relatos de Hilton Japiassu, do qual ele conta como surgiu a obra Interpretação e Ideologias, publicada em 1977, que contém uma série de artigos traduzidos de Ricoeur, alguns deles inéditos3. O relato é o seguinte:

Trata-se de uma coletânea de textos publicados pelo autor em diversas re-vistas ou em obras coletivas. De forma alguma tais artigos constituem uma apresentação sistemática do pensamento do autor. Podemos dizer que são exposições condensadas, proferidas em diversas circunstâncias e escritas para responder a preocupações bem determinadas, relativas a um contexto

1 GAGNEBIN, J., Sobre a recepção da filosofia de Paul Ricoeur no Brasil, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra 2017, p. 231.

2 DOSSE, F., Paul Ricoeur: Os sentidos de uma vida (1913-2005), São Paulo: LiberArs, 2017, p. 405.

3 Assim comenta Gagnebin sobre Interpretação e Ideologias: “Japiassu escolhe alguns artigos de Ricœur e os traduz antes mesmo de sua reunião, pelo autor, em Du texte à l’action. Essais d’hermé-neutique II” (GAGNEBIN, J., op. cit., p. 230).

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específico. Na origem, não estavam destinadas a serem congregadas. Sua reunião num só volume deveu-se a uma iniciativa de minha parte. Numa conversa que mantive com o Prof. Ricoeur em Paris, no início de 1976, fiz-lhe ver a importância, para o público universitário brasileiro em geral, de um fácil acesso a uma série de textos dando conta da atualidade da questão hermenêutica em confronto com os problemas de ordem ideológi-ca. Ele se mostrou vivamente interessado na “divulgação” desses elementos e instrumentos de reflexão, fornecendo-me imediatamente vários de seus artigos para que os organizasse em um único volume. Após selecionar os textos que me pareceram mais significativos, submeti-os à apreciação do autor, que nada teve a objetar à ordem de apresentação por mim sugerida4

Podemos ver, aqui, que Hilton Japiassu compreende algo de fundamental da concepção de hermenêutica de Ricoeur, que “[...] não é a intenção do autor que conta, mas o que os leitores leem”5, ou seja, mais importante do que a direção imposta pelo autor, o contexto ao qual ele se dirige, é a direção que seus leitores identificam como destino da obra. Sendo assim, embora os tex-tos de Ricoeur tenham sido escritos em outro contexto, através da tradução e organização de Japiassu, eles ganham um novo contexto, um novo horizonte, uma nova interpretação, ou melhor, uma nova morada6. Como podemos no-tar em História e Verdade, segundo Paul Ricoeur, esta apropriação e reorienta-ção de sentido, que se dá por meio da hermenêutica e também da tradução, visto que toda tradução é uma interpretação, é que dá o verdadeiro sentido de existência a uma obra literária, incluindo a obra filosófica: “Em certo sentido, uma obra atinge a verdade de sua existência literária quando morre seu autor; toda publicação, toda edição inaugura a impiedosa relação dos homens vivos com o livro de um homem virtualmente morto”7. Sendo assim, o destino do pesquisador de uma filosofia e do tradutor desta filosofia é o mesmo, oferecer novos horizontes para obra filosófica trabalhada e o horizonte deixado por Hilton Japiassu tem como uma das raízes a seguinte interpretação da origina-lidade filosófica de Paul Ricoeur:

4 JAPIASSU, H., Apresentação, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977, p. 9-10.

5 RICOEUR, P., O único e o singular, São Paulo: UNESP, 2002, p. 30.

6 Paul Ricoeur denomina isto hospitalidade linguística (Cf. RICOEUR, P., Sobre a Tradução, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 30).

7 RICOEUR, P., História e Verdade, Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 135.

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29, n.47, p.247-257, jul.-dez.2020

A originalidade de Ricoeur está em não fazer filosofia a partir de filosofia. Não reflete a partir de ideias. É um pensamento que recria, que serve do pensamento dos outros como um instrumento. Evidentemente, sua filosofia não constitui uma criação ex nihilo, um círculo que se fecha em si mesmo, porque não pode haver filosofia sem pressuposições. Trata-se de um pensa-mento que se propõe a adotar um método reflexivo capaz de romper todo e qualquer idealismo8.

Diante deste cenário, nós queremos propor a seguinte inquietação enquanto apresentação do texto que traduzimos: em que medida o horizonte de nossa tradução de um dos maiores pesquisadores de Ricoeur se encontra com aquele deixado por Japiassu? Para responder a este questionamento, observemos e, em primeiro lugar, analisemos alguns aspectos da obra de Domenico Jervolino.

Domenico Jervolino e sua obra

Domenico Jervolino (1946-2018) é um importante filósofo e pesquisador de temáticas relacionadas ao pensamento de uma filosofia sem absoluto, à refle-xão do destino da subjetividade na contemporaneidade e, daí, à originalidade da obra de Paul Ricoeur. Suas principais obras são:

Il cogito e l’ermeneutica. La questione del soggetto in Ricoeur, Procaccini, Napoli 1984 (Traduzido em inglês por Kluwer, em 1990);

Pierre Thévenaz e la filosofia senza assoluto, Athena, Napoli 1984;

Logica del concreto ed ermeneutica della vita morale. Newman, Blondel, Piovani, Morano, Napoli 1994;

Ricoeur. L’amore difficile, Studium, Roma 1995;

Le parole della prassi. Saggi di ermeneutica, Città del sole, Napoli 1996;

Ricoeur. Une herméneutique de la condition humaine, Ellipses, Paris 2002;

8 JAPIASSU, H, op. cit., p. 1.

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Ricoeur. Herméneutique et traduction, Ellipses, Paris 2007, sua versão em italia-no, Per una filosofia della traduzione, Morcelliana, Brescia 20089 10;

Dois aspectos marcam profundamente sua obra: (i) a reflexão sobre a questão do sujeito sem cair na tentação de um conhecimento autossuficiente, como em Descartes; (ii) a busca por um fio condutor comum na vasta obra do filósofo francês Paul Ricoeur. Neste sentido, a procura por uma chave de leitura da obra de Ricoeur, que em Jervolino se dá a partir da questão do sujeito, é um instru-mento para compreender a obra do filósofo francês, mas, sobretudo, revela o coração de uma obra que vai além de Ricoeur, a obra do próprio Jervolino.

Em The Cogito and Hermeneutics: The Question of the Subject in Ricoeur, sua primeira grande obra sobre Paul Ricoeur, Domenico Jervolino, seguindo os passos de Vattimo, tem como ponto de arranque o diagnóstico de que a lin-guagem e a interpretação se tornaram o lugar onde toda a filosofia contempo-rânea se dá e busca refletir. A filosofia nascida em tal solo, a partir de Ricoeur, pode então ser um instrumento para o sujeito repensar a si mesmo. Esta ta-refa se faz necessária para que a hermenêutica não seja compreendida apenas como um paradigma que busca apresentar a tradição como se ela fosse fon-te de verdades eternas, como, por exemplo, em Gadamer, segundo a crítica de Habermas em Dialética e Hermenêutica: Para a crítica da hermenêutica em Gadamer. Mas como se daria uma hermenêutica que não ignora suas raízes, presentes em sua história e sua linguagem, e que, ao mesmo tempo, não seja uma apologia do passado?

Segundo Jervolino, Heidegger deixa um importante princípio para tra-çarmos um caminho, a saber, que simultaneamente a toda compreensão, o homem já se faz presente. “Toda relação com alguma coisa – querer, ter um ponto de vista, sentir (alguma coisa) – já é uma representação; são cogitans que traduzimos como pensamento”11. O que Gadamer não percebe e o que Heidegger não leva adiante, para além da própria filosofia, é que a verdade

9 Tal lista de obras está presente no currículo de Jervolino disponível no site da Universidade de Napoli Frederico II: <<http://www.filosofia.unina.it/materiali/curricula/k-pdf/k-iervolino-1.pdf>>

10 Infelizmente, destes livros citados, temos acesso apenas a uma tradução em português, a saber, Ricoeur. Une herméneutique de la condition humaine, que foi traduzido sob o título Introdução a Ricoeur, por José Bartolini, publicado em 2011, pela Paulus.

11 Tradução nossa de: “Every relation to something--willing, taking a point of view, sensing (so-mething)--is already representing; it is eogitans, which we translate as ‘thinking’” (JERVOLINO, D., The Cogito and Hermeneutics: The Question of the Subject in Ricoeur, Londres: Kluwer Academic Publishers, 1990, p. 6).

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não se dá em um caminho oposto ao método, mas necessariamente está sem-pre articulada com este; quem nos revela isso é a questão do sujeito que está subjacente a todas as questões. Sendo assim, Jervolino vê na obra de Paul Ri-coeur um modelo a ser seguido, uma vez que ela está atenta a este princípio e a todas as suas consequências. Porém, isso não está presente de uma maneira tão clara, visto que tal obra não aborda diretamente a questão do sujeito e, até este primeiro trabalho de Jervolino, não oferece uma chave de leitura que buscasse abarcar a sua totalidade e ilustrar esta questão que perpassa toda hermenêutica de Ricoeur. Graças ao diagnóstico do que a hermenêutica de-veria se atentar em nosso tempo e uma proposta de resposta vislumbrada na obra ricoeuriana, Jervolino consegue interpretar o papel da obra de Ricoeur, segundo o próprio filósofo francês, melhor do que seu autor.

Ricoeur escreve sobre este primeiro livro: “Já é uma grande sorte encon-trar-se a si mesmo compreendido pela leitura de alguém que é ao mesmo tempo exigente e benevolente. Sorte ainda maior, é ser melhor compreendido por outro do que por si mesmo”12. A justificativa deste elogio está na escolha da temática, o destino da subjetividade como questão fulcral da obra de Ri-coeur, e do método que é encontrar a posição de Ricoeur sempre entre dois polos: de um lado, Nietzsche e Heidegger; de outro lado, a semiologia, a psi-canálise e a crítica à ideologia13. Alguns anos depois, em 1990, Paul Ricoeur apresenta um livro que busca enfrentar o mesmo problema de Jervolino, O si-mesmo como outro. Assim o filósofo francês descreve a intenção de tal obra:

“Portanto, movendo-me contra a correnteza em relação às minhas preferências consolidadas, eu devia propor uma chave de leitura ao meu auditório. Desse desafio nasceu Soi-même comme un autre”14. O trabalho de Jervolino serve como um espelho para Paul Ricoeur, pois, ao se encontrar na obra de outro, o filósofo francês aponta, no prefácio, aquilo que ele considera os polos de toda sua obra: Descartes e Nietzsche, um cogito que se põe e um cogito ferido15.

Embora, com essas obras, saibamos que a questão do destino do sujeito pode ser considerada como subjacente aos quase 800 textos que compõem

12 Tradução nossa de: “It is already a piece of good fortune to find oneself understood by a reader who is at once demanding and benevolent. It is an even greater fortune to be better un-derstood by another than by one’s own self” (RICOEUR, P. Foreword, Londres: Kluwer Academic Publishers, 1990, p. XI).

13 Idem.

14 RICOEUR, P., O meu caminho filosófico, São Paulo: Paulus, 2011, p. 127-128.

15 Cf. RICOEUR, P., O si-mesmo como outro, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014, p. XI-XXXIX.

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a obra de Paul Ricoeur, temos um duplo problema a ser enfrentado: por um lado, a não repetição temática dos textos, por outro lado, as problemáticas fi-losóficas revisitadas pelas diferentes temáticas enfrentadas por Ricoeur. Jervo-lino, em outra obra16, traça uma dupla resposta para estas questões: primeiro, ele divide a obra ricoeuriana em três paradigmas: (i) do símbolo; (ii) do texto; (iii) da tradução17. A hipótese por detrás destes paradigmas é de que o pensa-mento de Ricoeur não é uma filosofia da linguagem, mas se faz através da lin-guagem. Sobre o símbolo, temos uma obra que se reflete em uma linguagem que sempre se dá por meio de múltiplos sentidos; sobre o texto, uma obra que se reflete em uma linguagem que se comunica sempre através da inter-subjetividade; sobre a tradução, uma obra que se reflete em uma linguagem que acolhe o desconhecido, o estrangeiro18. Se, em todos esses momentos, somos conduzidos por uma só questão, o destino da subjetividade, somos tentados a pensar em uma chave de leitura que desemboca em uma lógica em espiral, onde cada momento é enriquecido pelo outro19.

Os dois primeiros paradigmas, do símbolo e do texto, segundo Jervolino, já são identificados pelo próprio Ricoeur, por meio das expressões hermenêu-tica simbólica e hermenêutica textual20. Coube ao filósofo italiano identificar na reflexão ricoeuriana sobre a tradução um novo paradigma, isto é, uma nova hermenêutica que apreende da linguagem a importância da questão da identidade e sua relação com a alteridade. Apresentar a tradução como para-digma é reconhecer um novo ponto de arranque para compreender a obra de Ricoeur, da mesma maneira que também poderíamos considerar o símbolo e o texto. E é justamente esse horizonte que Jervolino aponta no texto que traduzimos, colocando a problemática do outro, a tensão entre filosofia e não-filosofia, como essencial para a leitura da obra ricoeuriana.

16 JERVOLINO, D. La Question de l’unité de l’ouvre de Ricoeur à la Lumière de ses Derniers Développe-ments: Le paradigme de la traduction. Archives de Philosophie, Paris, v. 67, n. 4, p. 659-668, 2004.

17 Adriane da Silva Machado Möbbs, em outro contexto, também apresenta uma reflexão sobre a tese de Jervolino de ler a obra de Paul Ricoeur a partir de três paradigmas (MÖBBS, A. A medição imperfeita em Paul Ricoeur, Pelotas: Editora UFPel, 2017, p. 155-159).

18 JERVOLINO, D. La Question de l’unité de l’ouvre de Ricoeur à la Lumière de ses Derniers Dévelo-ppements: Le paradigme de la traduction. Archives de Philosophie, Paris, v. 67, n. 4, p. 664, 2004.

19 Ibidem, p. 660.

20 Paul Ricoeur apresenta estas duas expressões em duas conferências, Hermenêutica e simbolismo, Hermenêutica e mundo do texto (Cf. RICOEUR, P. Escritos e Conferências 2 – hermenêutica, São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 15-35).

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O lugar do texto que traduzimos, Discurso Filosófica e Existência em Paul Ricoeur

Em Discurso filosófico e existência em Ricoeur: filosofar após Kierkeggard, Do-menico Jervolino identifica o pensamento filosófico de Paul Ricoeur como um exercício reflexivo da concretude existencial, que se guarda da tentação de autossuficiência, se nutrindo sempre da não-filosofia. Para analisar esta tensão germinal, entre filosofia e não-filosofia, de todo percurso filosófico de Ricoeur, Jervolino nos convida a reler um dos textos do filósofo francês dedi-cado ao pensamento de Kierkegaard, Como filosofar após Kierkegaard?. Após afastar interpretações que são guiadas pelos mistérios da vida de Kierkegaard e o consideram como iniciador de uma era pós-filosófica, Ricoeur, segundo Jervolino, articula sua análise em três etapas:

1) Identifica em Kierkegaard aspectos de um gênio estético-religioso, indican-do os elementos não-filosóficos que compõem a sua obra, os quais não somos capazes nem de refutar, nem de racionalizar.

2) Identifica em Kierkegaard, agora enquanto filósofo, mascarado em seus pseu-dônimos, seu confronto com os aspectos não-filosóficos de sua própria obra.

3) Confronta Kierkegaard com Hegel, mostrando o quanto o filósofo dina-marquês enriquece o sistema pensado pelo filósofo alemão.

A partir deste caminho, Jervolino encontra uma chave de leitura para com-preender a defesa que Ricoeur faz de um Kierkegaard que opera dentro do sistema hegeliano, nos levando a ler de uma maneira drástica a oposição entre racionalismo e existencialismo. Não há afastamento entre o racional e o existencial, entre o pensamento e a existência, um polo se nutre do outro, eles se sustentam reciprocamente; a oposição entre estes dois polos é o ponto de arranque daquilo que Ricoeur chama filosofia. Jervolino nos chama atenção que esta tensão, entre filosofia e não-filosofia, diz mais sobre a originalidade filosófica de Ricoeur do que a de Kierkegaard, uma vez que, ao contrário do filósofo dinamarquês, o filósofo francês não se cansa de trazer o alimento que provê uma reflexão existencial ao sistema. Sendo assim, há uma dimensão profunda que devemos nos atentar no debate filosófico sobre o pensamento ricoeuriano, a saber, a tensão que existe entre o discurso filosófico e seu outro, sobre o paradigma da tradução.

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Neste sentido, podemos dizer que em Discurso Filosófico e Existência em Ricoeur: Filosofar após Kierkegaard, Domenico Jervolino aponta para o quanto em Ricoeur a filosofia não é autossuficiente, tendo como nutrição a não-fi-losofia. Além disso, quando vemos esta questão sob o horizonte existencial, em especial, aquele deixado por Kierkegaard, percebemos que postular uma filosofia com pressupostos é postular uma filosofia viva, que se confronta com a concretude da existência, incluindo suas dores e culpas. Jervolino nos faz notar que ao acolher o outro, a filosofia hermenêutica de Ricoeur, por consequência, acolhe a existência, acolhe, ao seu modo, a vida.

Ora, se, em outro contexto, Japiassu identifica na filosofia de Ricoeur um pensamento reflexivo capaz de romper qualquer idealismo e que se faz a par-tir da ressignificação do pensamento dos outros. Domenico Jervolino, por sua vez, percebe que é na tensão da filosofia com seu outro que se encontra uma das principais raízes do pensamento filosófico existencial de Ricoeur. Sendo assim, por diferentes caminhos, ambos os filósofos, tanto o brasileiro, quanto o italiano, se encontram em um só lugar, na originalidade filosófica ricoeuriana enquanto acolhimento do outro, do estrangeiro, da não-filosofia. Cremos que é no ponto de intersecção destas duas interpretações que está uma das maiores contribuições do texto que traduzimos, a saber, a posição de que a necessidade do acolhimento do outro pela filosofia em Paul Ricoeur é a necessidade do acolhimento da concretude da existência, com suas dores e alegrias. Como podemos notar, Discurso Filosófico e Existência em Ricoeur: Filosofar após Kierke-gaard pode ser um valioso instrumento para reflexão da obra ricoeuriana e, em especial, para aprofundar as pesquisas da tradição de estudos em Ricoeur aqui no Brasil, que tem Hilton Japiassu como um dos seus grandes nomes.

Referências

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-Americana. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017. p. 229-236. Disponível em: <<http://hdl.handle.net/10316.2/43630>>.

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MÖBBS, A. D. S. M. A Mediação Imperfeita em Paul Ricoeur. Pelotas: Editora da UFPel, 2017. 190 p. Disponível em: <<https://wp.ufpel.edu.br/nepfil/files/2019/02/a-media-cao-imperfeita.pdf>>.

RICOEUR, P. História e Verdade. Rio de Janeiro: Forense, 1968.

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______. O meu caminho filosófico. In: JERVOLINO, D. Introdução a Ricoeur. Tradução de José Bertolini. São Paulo: Paulus, 2011.

______. Sobre a Tradução. Tradução de Patrícia Lavelle. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

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Drummond: événement et apparition d’un nouveau sujet – entretien avec Alain Badiou1

Drummond: acontecimento e surgimento de um novo sujeito –

entrevista com Alain Badiou

Drummond: event and emergence of a new subject –

interview with Alain Badiou

Introduction

Cet entretien avec Alain Badiou (1937- ), professeur émérite à l’Université de Paris 8, a eu lieu le matin du 7 février 2020, un vendredi, dans un appartement confortable, plein de livres, dans le quartier résidentiel du XIVe arrondissement de la capitale française. La demande, ainsi que les échanges, ont été médiatisés par la professeure de littérature et amie de longue date du philosophe, Isabelle Vodoz – qui est également l’hôtesse, à qui nous remercions les gentillesses. Après un mois d’attente, en novembre 2019, nous avons reçu le «oui» attendu et, dès lors, il n’a été question que de peaufiner les agendas. Une telle entreprise ne nous a été possible que grâce à la période où nous étions à l’Université de Rennes 2 (janvier-mars 2020), pour les recherches de la Chaire des Amériques, attribuée par la même institution et par l’Institut des Amériques, un consortium d’univer-sités françaises. Notre recherche alors, acceptée par le professeur Néstor Ponce, consistait à enquêter sur la relation entre la poésie et la philosophie à partir des

1 Cette présentation a été traduite du portugais vers le français par Marisa Guaranys. Présentation et entretien par Gustavo Chataignier (PUC-Rio, Communication Social, dans un séjour de recher-che au sein de la Chaire des Amériques, Université Rennes 2).

Recebido em: 24/11/2020 – Aceito em: 20/12/2020

* Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Contato: [email protected]

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O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29, n.47, p.258-284, jul.-dez.2020

vers de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Il s’agit du déroulement d’une précédente étude post-doctorale, dont «l’objet» analysé et déconstruit a été le poème «A Máquina do mundo» [La machine du monde], extrait du livre Claro enigma (1951)2 [Claire énigme]. Il s’agirait maintenant de penser le verset-univers drummondien en tant qu’«événement», une notion séminale de la pensée badiousienne. Notons que puisque ce n'est pas une philosophie qui opère dans le champ de la représentation et donc du «thème» véhiculé par telle ou telle poésie, la théorie de l'événement ne s’oppose pas à la description de la primauté de la différance derridienne; celle-ci, à son tour, gagne, pour ainsi dire, la «localisation» de l’événement dans le locus linguistique du poème. On pour-rait dire qu’il s’agit d’une perspective inclusive, au sens hégélien.

L’intérêt d’un tel débat – à savoir le dialogue entretenu entre la poésie de Carlos Drummond de Andrade et la philosophie d’Alain Badiou – ne se réduit cependant pas au cadre d’une recherche isolée. En plus d’un repère éditorial avec un statut de nouveauté, cet effort se justifie, à notre avis, en réunissant le célèbre poète brésilien, qui a traversé le modernisme et a établi sa propre dic-tion, avec l’un des plus grands représentants de la philosophie française d’après-guerre – particulièrement intéressé par la poésie comme événement, comme on le remarquera, et dont la théorie implique une rupture établissant des manières de voir et de sentir.3 Badiou médite sur la vérité du sujet, toujours une construc-tion a posteriori, tout en déplaçant la question du dit «sujet de la vérité».

Toujours en termes de justifications, Luiz Costa Lima souligne la position unique de Drummond au sein du modernisme brésilien. Le caractère affirmatif du mouvement dans la poétique drummondienne consiste en le passage de la poésie à la vie quotidienne et à la blague. À tel point que l’ironie prend une forme plus radicale, appelée par ce critique «corrosion». Observons les vers du «Poème aux sept faces»: «Quand je suis né, un ange tordu / de ceux qui vivent dans l’ombre / a dit: ‘Va, Carlos !, tu vas être gauche dans la vie’»4. La figure

2 Cf. «Máquinas Da Escritura: Devires Sensíveis». In: Revista Latinoamericana do Colégio In-ternacional de Filosofia. Org. Ceppas, et Chataignier. Valparaíso: Universidade de Valparaí-so, 2019, p.261-274 (disponible au http://www.revistalatinoamericana-ciph.org/wp-content/uploads/2020/01/18-Gustavo-Chataignier.pdf) et «Machines de l’écriture: des devenirs sensibles». In: 50 ans de déconstruction : vitalité et pertinence de l'œuvre de Derrida. Org. Ceppas; Chataignier; Ferté. Paris: L’Harmattan, 2020, p.183-196.

3 Permettons un bref commentaire. Nous espérons que cette courte introduction, couplée au brève entretien, nous permettra d’approfondir la notion d’événement dans la poésie de Carlos Drummond de Andrade.

4 Drummond de Andrade, Carlos. La machine du monde et autres poèmes. Traduction Didier La-maison. Paris : Gallimard, 2005, p.19.

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d’un ange en rien angélique indique la corrosion des habitudes, explique Costa Lima. L’ironie drummondienne revient sur soi-même avec une telle intensité (ironie «régressive»)5 qu’elle acquiert la fonction de dissiper le langage de ses certitudes. La simple ironie ferait de lui encore un poète moderne. Ainsi, un dialogue ambigu avec ses pairs6 a établi à la fois le cannibalisme des cultures étrangères et la critique comme corrosion. Cette procédure d’écriture se pose comme une perception de l’histoire tout en dévoilant le temps présent7. Un tel style conduit le lecteur à une fouille de lui-même, établissant une ouverture sur un avenir inconnu. C’est une ouverture pour l’avènement d’un sujet en sa vérité constituante, puisque les vers n’idéalisent pas les muses et les thèmes, invitant le lecteur à les interpréter. Ce que l’on y voit n’est possible qu’à cause de l’opacité, comme dans les versets d’ «Alliance». Le lien du sensible en quête d’intellec-tion atteint, dans le rêve et dans le poème, une «Vision fortuite de la grâce/ et science jamais apprise»: «l’homme, faisceau d’ombre,/ aurait désiré sceller/ avec la moindre clarté»8. Ou, même, si on lit les vers de «La mine de l’autre», dans lesquels un compromis s’établit entre les corps. Décrypter cette rencontre, l’or de l’autre – qui chez Badiou est responsable du terme «événement», peut-être aimant – est ce qui maintient le sujet. Un tel «contact» n’a lieu qu’au locus des versets, voici l’«engagement» (le «jamais appréhendé» dans lequel résonne «une autre voix», celle de l’événement):

5 Costa Lima, Luiz. Lira et antilira: Mário, Drummond e Cabral. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p.142-3. Cf. le «Nécrologe des désenchantés de l’amour»: «Les désenchantés de l’amour/ se tirent des balles dans le cœur./ De ma chambre j’entends les coups de feu./ Les bien-aimées se tordent de jouissance./ Oh que de matière pour les journaux./ (…) Les médecins procèdent à l’autopsie/ des désenchantés qui se sont tués./ Quels grands cœurs ils possédaient./ Des viscères immenses, des tripes sentimentales/ et un estomac tout rempli de poésie» (Drummond de Andrade. In: La machine du monde et autres poèmes. Op. cit., p.31-2).

6 L’échange épistolaire entre Drummond et Mário de Andrade est célèbre (cf. la lettre du 10 no-vembre 1924. In: A lição do amigo - Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Organisation André Botelho. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 19-28). Dans ce docu-ment, Mário critique le pessimisme du mineiro et son éloignement du débat national, alimenté principalement par les lectures d’Anatole France; sa position, en opposition, serait celle d’une solidarité entre classes dirigées par une avant-garde (cf. Santiago, Silviano. The Space In-Between: Essays on Latin American Culture. Traduction Anna Lucia Gazzola et Wander Mello Miranda. Du-nham et Londres: Duke University Press, 2001, p. 161).

7 Costa Lima. Lira e antilira, op. cit., p.129-31.

8 Drummond de Andrade. Novos poemas. In: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p.240-1.

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Le corps en soi: le nu, rideau/ d’un autre corps, jamais saisi,/ tout comme le mot cache une autre/ voix, première et vraie, dépourvue de sens./ Serait-il l’amour un engagement/ avec quelque chose de plus terrible que l’amour ?/

– se demande l’aimant penché sur la nuit aveugle,/ et rien ne lui répond, face à la magie:/ bruler la salamandre dans une flamme froide9.

Chronologiquement, et même thématiquement, le canon divise l’œuvre de Drummond comme suit: première phase moderniste et ironique; deuxième phase sociale ou engagée; troisième phase «métaphysique» et enfin une phase mémorialiste10. Or, c’est cette tendance métaphysique, toujours présente, si l’on est d’accord avec la «corrosion» répertoriée par Costa Lima, qui ouvre la poésie du poète d’Itabira à de nouvelles envolées philosophiques. Poète national, pour ainsi dire, et par conséquent doté d’une vaste fortune critique, Drummond ne semble pas avoir épuisé son sens. Il le confirme: «Et comme il est devenu ennuyeux d’être moderne./ Maintenant je serai éternel», dans la coexistence du Père éternel, avec le feu éternel et l’amour de Yayá Lindinha, figure d’affection personnelle et aussi une référence à Machado de Assis. Ni le poète, ni le sol qu’il foule: qu’il ne reste plus qu’un rythme11, aussi déconcer-tant que l’idée d’événement, voici le désir. Cela dit, comment la philosophie de Badiou pourrait-elle contribuer dans le commentaire de ce corpus ? Nous n’avons en aucun cas l’intention de remplacer le contenu de l’entretien qui suit. De toute façon, la théorie de l’événement qui rompt avec la normativité actuelle et ouvre l’espace à un sujet qui crée le sens dans le temps nous semble être un riche champ d’investigation (les procédures des formes génériques de la vérité): des pierres, des chemins pierreux, des apories et des suspensions de sens sont certains éléments qui corroborent cette approche.

Il convient donc de signaler au lecteur éventuel certains des lieux et des fonctions de la poésie au sein de la pensée d’Alain Badiou. Comme il l’a dit dans ses cours à l’École Normale Supérieure, la conversion existentielle doit s’accompagner d’un développement théorique. Pour autant, le «langage impossible» des débuts est la poésie; dire l’événement est une fonction de la poésie – indépendamment d’un référentiel empirique, puisqu’un poème est

9 Idem, Lição de coisas. In: Poesia completa, op. cit., p.475-6.

10 Cf. Merquior, José Guilherme. «A razão do poema». São Paulo: É Realizações, 2013, p.100; Santiago, Silviano. «Introdução à leitura dos poemas de Carlos Drummond de Andrade». In: Drummond de Andrade, Carlos. Poesia completa, op. cit., p. XXXVI-XL.

11 Drummond de Andrade, Fazendeiro do ar. In: Poesia completa, op. cit., p.407-9.

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une nouvelle organisation dans le code linguistique12. Au regard du pathos de l’événement, il n’y a pas de médiation conceptuelle passible de certitude po-sitive; le sujet est contraint, notamment par le désir et au hasard, de nommer la situation, au milieu de l’acte de création.

Bien sûr, il existe des entrées possibles dans cet univers. Le mini-cours, donné à l’Université Fédérale du Rio de Janeiro (UFRJ), Pour une nouvelle théorie du sujet13, résume didactiquement sa philosophie. Il faut souligner l’esprit pionnier de Nor-man Madarasz, également ancien étudiant, traducteur et chercheur canadien vivant au Brésil, ayant publié une série d’articles et le livre de caractère systématique, Le multiple sans un 14. Reprendre le sujet dépérissant et la notion discréditée de vérité, tout en critiquant le vitalisme15, n’a pas encore donné tous les fruits possibles.

Peter Hallward, dans sa correcte introduction en anglais à l’Éthique, le place au même niveau que Deleuze et Derrida16. On le sait, d’après des recherches sur Internet, c’est un penseur traduit en plusieurs langues. Son œuvre princi-pale, L’Être et l’événement17, originaire de 1988, heureusement, a été traduite parmi nous dans les années 1990. Cependant, ses suites, Logiques des mondes, Court traité d’ontologie transitoire et L’immanence des vérités, restent indisponibles (ainsi que les ouvrages fondateurs, comme Théorie du sujet, préalable à l’Être et l’événement, et Conditions, à caractère explicatif18). Ex-disciple d’Althusser, ayant fréquenté Sartre et les séminaires de Lacan, en plus de passer par Platon, Ba-diou propose un univers de chevauchement entre le philosophique et le non-

-philosophique qui mérite d’être exploré.

12 Lors du doctorat, notes du cours «Pour aujourd’hui, Platon!», 10 juin 2009, enseigné par Alain Badiou dans cette institution.

13 Badiou, Alain. Para uma nova teoria do sujeito: conferências brasileiras. Traduction Emerson Xavier da Silva et Gilda Sodré. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

14 Madarasz, Norman. O múltiplo sem um: uma apresentação do sistema de Alain Badiou. São Paulo: Ideias e Letras, 2011.

15 Badiou, Alain. A aventura da filosofia francesa no século XX. Traduction Antônio Teixeira et Gilson Iannini. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. Ndt: L’aventure de la philosophie française depuis les années 1960. Paris: La fabrique, 2012.

16 Hallward, Peter. «Translator’s introduction». In: Ethics – an essay on the understanding of evil. Badiou, Alain. Traduction Peter Hallward. Londres-New York: Verso, 2001, p.viii.

17 Badiou, Alain. O ser e o evento. Traduction Maria Luíza Borges. Rio: Jorge Zahar, 1996. Ndbt: L’Être et l’événement. Paris: Seuil: 1988.

18 Badiou, Alain. Logiques des mondes – l’Être et l’événement II. Paris: Seuil, 2006; Court traité d’on-tologie transitoire. Paris: Seuil, 1998; L’immanence des vérités – l’Être et l’événement III. Paris: Fayard, 2018; Théorie du sujet. Paris: Seuil, 1982; Conditions. Paris: Seuil, 1992.

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Notre lecture n’implique pas la mission ardue d’englober l’ensemble de l’œuvre d’Alain Badiou, ce serait bien au-delà de notre portée actuelle. La clé de lecture proposée est claire: nous partons de l’ontologie mathématique, dont la base incontournable est l’Être et l’événement, pour nous interroger sur l’in-vention nécessaire et incertaine du langage lors de l’irruption de l’événement et de sa recherche subjectivante ultérieure. Sans la capacité de rationaliser (autrement dit: nommer) le hasard et les figures de l’imprévisible et, de plus, d’établir formellement des étapes phénoménologiques, le geste badiousien est perdu. D’où la centralité de l’Être et l’événement dans sa carrière et de toute l’explication de l’événement qui génère le sujet. Il s’agit d’une incorporation de la vérité subjective. Dire le hasard qui nous forme est une théorie ration-nelle de la multiplicité, dont les bases ne résident que dans l’Être et l’événement. L’auteur lui-même déclare ne pas donner la priorité à la poésie dans son livre fondateur; cependant, son rôle théorique y est esquissé et se développe tout au long de sa production – avec quelques moments clés mentionnés par nous.

Une brève description de la situation peut-être aidera-t-elle le lecteur non pas tant à mieux comprendre le texte, mais plutôt à reconstituer le souffle de l’idée qui a visité ceux qui étaient là – et, nous l’espérons, le texte se dressera comme un point de subjectivation ou, encore, un pont pour la rencontre en-tre deux grandes références des dispositifs de l’art et de la philosophie. Après quoi, nous passerons à la brève évocation des principaux concepts d’Alain Badiou pour, enfin, atteindre l’interview – une édition d’un matériel d’une durée d’un peu plus d’une heure.

Revenons à la scène de l’entretien. Le philosophe a reçu une traduction française des poèmes de Drummond, de Didier Lamaison, La Machine du monde et autres poèmes19. Pour notre part, nous avons aimablement reçu un exemplaire de Trump20, son dernier travail. Courtois et souriant, du haut de ses presque deux mètres de hauteur, ce grand homme a avoué «avoir en-tendu» parler de Drummond. «Mais je sais que c’est l’un des grands», a-t-

-il immédiatement ajouté. «En lisant sur Pessoa, j’ai vu des commentaires très intéressants», qui comprenaient, a-t-il détaillé, Camões, un autre repère de la langue portugaise. Le lecteur ne doit pas penser qu’il s’est ensuivi un

19 Drummond de Andrade, Carlos. La Machine du monde et autres poèmes. Paris: Gallimard/ Poésie, [1990], 2005. En 1972, l’anthologie Réunion a été traduite en français, dans une édition bilingue, par le lusophone Jean-Michel Massa (Rennes 2, 1930-2012), avec le titre de Réunion (Idem, Paris: Aubier-Montaigne, 1972). En 2005, Mort dans l’avion et autres poèmes, est publié, également bilingue, traduit par Ariane Witowski (Idem, Paris: Chandeigne, 2005).

20 Badiou, Alain. Trump. Paris: PUF, 2020.

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ensemble de platitudes ou de commodités bien éduquées. Bien au contraire, ce à quoi on a assisté a été la parole d’un sujet interpellé par un code gramma-tical imbibé de la verve drummondienne, et donc réinventé, provoquant ainsi des déplacements au fur et à mesure que la lecture présentait les poèmes. Le commentaire tout fait, sans préparation supplémentaire, ne peut tout simple-ment pas être qualifié de spontané qu’en raison de la rigueur théorique. Nous expliquons: à la perception de l’apparence nue de l’œuvre, se chevauchent nécessairement les conditions de réception du temps, ce qui inclut les mo-bilisations, à la fois intentionnelles et inconscientes, du sujet. C’est vraiment un exercice de loucher, de s’en tenir à l’œuvre et de chercher la distance de l’aide conceptuelle. Eh bien, et le lecteur le verra, il nous semble que l’on a été témoin d’une des formes que peut prendre un événement esthétique littéraire, rendu lisible (conceptualisé) par le commentaire badiousien. Que quelque chose d’une telle fraîcheur soit conservé.

Ce qui émerge pose ses propres limites et, concomitamment, établit des relations, ce qui fait de son irruption un processus de différenciation. Dans une lecture plus simpliste, le cadre théorique de Badiou s’approprierait le matériel empirique du poète d’Itabira. Néanmoins, en rendant justice au pen-seur français, la question se poserait d’une autre manière.

Le multiple, le difforme encore sans nom, apparaît dans une scène locale de stabilité et d’indifférence entre les forces présentes, statiques. Son entrée en scène oblige à retravailler la normativité. Son entrée en scène oblige à réélaborer la normativité. Il y a une suspension de sens, un vide dans lequel le nouveau peut circuler. L’une des innovations de la production théorique de Badiou est l’articulation entre mathème et poème. Une utilisation philosophique et non instrumentale des mathématiques (non prévue ou non valorisée par les mathé-maticiens), comme il le souligne, vise à redéfinir l’ontologie, la théorie de l’être en tant qu’être. Les mathématiques comptent, donc montrent – c’est le rôle de la philosophie, si elle veut se débarrasser des diverses «sutures» ou prédétermi-nations qui l’ont historiquement dirigée, prédéterminant le sort du phénomène

– qui, à partir du multiple, devient une identité21. Il s’agit plutôt des «conditions»

21 La manière on comprend l’événement change. C’est pourquoi chaque époque a son épistémè, ainsi agencée: 1) de la Renaissance à la modernité (période «classique», de Leibniz à Descartes): les mathématiques / sciences comme condition de la philosophie; 2) Révolution française: histoire et politique comme conditions (de Rousseau à Hegel); 3) «Nihilisme»: l’art et la poésie remplacent la philosophie (Nietzsche et Heidegger), à l’époque dite «des poètes» (Idem, Manifeste pour la philo-sophie. Traduction MD Magno. Rio de Janeiro: Angélica, 1991, p.14-5). Dans toutes ces périodes, il y avait une identité entre la philosophie et ses conditions.

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de l’exercice de la philosophie22. La philosophie ne «fait» rien, pour ainsi dire; c’est un effort du sujet interpellé par un réel qui le dépasse. Par conséquent, l'événement, sous ses quatre formes ou en tant que «procédures génériques», précède la philosophie – ou, si vous voulez, la conjonction entre mathème et poème. Ce sont: l'art, l'amour, la politique et la science. De cette manière, le point local a le pouvoir d’universalisation – ou l’événement peut avoir son nom véhiculé, en promouvant des lieux de subjectivation. Nous avons anticipé que l’art en général et la poésie en particulier sont l’un des types d’événement. La philosophie n’est pas seulement une science ou un art, ni une vie psychique ou politique. La primauté de l’expérience, terme utilisé ici au sens large d’externa-lité non contrôlée par l’intention, à la fois créatrice du sujet et nommée par lui, impose une compossibilité des vérités, échappant ainsi à tout devoir-être (figure de la morale et de l’objectivité statique). En termes plus directement badiousiens, le multiple doit pouvoir s’exprimer sans être réduit à ses conditions. La compos-sibilité référencée consiste à postuler qu’il n’y a pas qu’une seule causalité pour expliquer le monde phénoménal et l’avènement des sujets (héritage lacan-al-thussérien du déplacement avec fusion et aussi de la surdétermination). En ce sens, le hasard est, dialectiquement, le hasard d’une situation, permettant un processus de différenciation et permettant son intelligibilité a posteriori.

Dépourvue de telos ou de sens a priori, il appartient à la philosophie de mon-trer et de rendre disponibles des processus d’incorporation subjective d’événe-ments. Pas seulement la politique, encore moins le déterminisme économique, ni la manipulation de la nature ou l’affectation par l’art, ni même le volontaris-me: les quatre conditions génériques pointent vers plusieurs mondes dans un même monde. Bref, la philosophie, post factum, ne produit pas de réalités.

Que retenir de ce qui a été soulevé ci-dessus ? Dans l’Être et l’événement23, Badiou attribue un rôle ontologique aux mathématiques. Sa fonction est

22 Dans Conditions, ouvrage de 1992 dont le but était d’expliquer les arguments d’Être et événe-ment et de réaffirmer l’antériorité de l’événement par rapport à la philosophie, Badiou utilise deux procédés de rupture en poésie, selon lui présents chez Mallarmé et chez Rimbaud – la soustrac-tion et l’interruption, respectivement (Idem, Paris: Seuil, 1992 p.108-154).

23 Nos notes, en général, sont inspirées de l’ouvrage référencé (Idem, traduction Maria Luíza Bor-ges. Rio: Jorge Zahar, [1988] 1996). Voir introduction, chapitres 1, 3, 4, 11, 16 et 20 – p.11-25, 29-34, 50-55, 105-109, 143-146 et 165-172 respectivement. Dans sa présentation, Badiou sépare les chapitres, ou, comme il les appelle, «méditations», en termes conceptuels, textuels et métaon-tologiques, et recommande de les lire ensemble, bien qu’il soit possible de le faire en suivant les axes énumérés ici (p.24). Il y a aussi un chapitre consacré à Mallarmé (p.157-162). Pour une in-troduction au système de Badiou, entendu non comme mécanisme, mais en tant qu’axiomatique du multiple, on consultera avec grand intérêt O múltiplo sem um [Le multiple sans l’un] (Madarasz, Norman. São Paulo: Ideias e Letras, 2011).

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d’établir une logique du possible. Si l’être est, il doit avoir droit au multiple. Inversion des postulats de la tradition, le non-être devient quelque chose. Ce qui apparaît et n’a pas encore été perçu et nommé est la condition de possi-bilité pour toute conceptualisation. En d’autres termes, peut-être plus clas-siquement, le non-savoir est le premier. Pour cela, Badiou utilise la théorie des ensembles de Cantor (1845-1912). Chaque ensemble a au moins deux éléments. Quels qu’ils soient, ce qui est montré et aussi le vide. Pour que quelque chose soit montré et compté, l’ensemble part de lui-même, c’est la neutralité des mathématiques. Le néant ne fait pas l’unité, cependant, il la permet et la nomme (incorporation). Toutefois, c’est toujours le multiple (le vide appartient à tous les ensembles). Le gain de cette théorie est un effet structurant, de création d'un champ de visibilité dans un comptage. Bref, le vide se contient. Le multiple vécu est disable dans une articulation, ce qui est garanti par l'intelligibilité de la structure, sans pour autant retomber sur la fermeture du structuralisme – la structure est de l’ordre de l’effet, l’effet d’une contingence. Suivant la tradition structuraliste, notamment en langue française, il n’y a du concret que grâce à l’abstrait.

La multiplicité n’est interrompue par aucune unité ou identité; son «au-tre» est le vide. Au cours de sa détermination, le contact avec l’autre la porte à l’altérité – pas au sens réflexif, de recueillir la totalité qui lui faisait face, ce qui se traduirait par un échange d’identité. On y voit un déplacement. Il ne s’agit pas du multiple de quelque chose, une simple réplication d'un modèle. Le multiple d’un élément reste le multiple de soi-même, peut varier, car il est habité par le vide. Rappelons-nous: l’ensemble dit quelque chose parce qu'il est vide et, ce faisant, il est encore vide (toutes les choses sont composées de multiplicités, d’origines différentes et d’organisation précaire). Le but est celui d’atteindre une exposition universelle de la multiplicité. Cela rend la contingence quelque peu irréductible à la causalité. Un élément rencontre son néant et perd son identité lorsqu’il est déplacé, lorsqu’il est forcé. Le «rien de quelque chose» est ce qui cause sa transformation. L’autre conduit à son propre vide et donc au changement (à l’autre de lui-même). La rencontre entre l’événement et le sujet, ou entre des éléments sans commune mesure, implique une torsion de la pensée. Le résultat est la production de nouvelles façons de voir et de ressentir. Comme l’effet possible de la rencontre, il y a un nouveau «discernement» capable de nouvelles «classifications» de la multiplicité phénoménale, grâce à la référence à l’événement. Si une «formu-le» est pertinente, on assiste à la recherche du sujet (mouvement d’enquête) pour classer les multiples. En un seul temps, on associe «un» (discernement subjectif) et «plusieurs» (classification externe), l’événement ayant le rôle de

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médiateur. Bref, détacher le vide logique du geste poétique de nommer, ca-dres de Badiou présents dans l’Être et Événement, consiste à laisser passer sous silence le fonctionnement intrinsèquement poétique de sa théorie.

La création en langage, et donc la présence nécessaire de la poésie, nomme sans garanties de certitude, produisant des effets performatifs et surdétermi-nant la situation avec un tel supplément. Attribuant une prépondérance à l’expérience, mais se détachant du sujet kantien dont la sensibilité est com-prise comme fermée sur elle-même, ce corps conceptuel s’érige comme la constitution des vérités contingentes qui forment la subjectivité. Intempo-rels et initiateurs de séries temporelles (universalisants), ce sont les procédés génériques: art, amour ou psyché, science et politique. Le sujet est fidèle à quelque chose qui le traverse; la fidélité opère des connexions en dehors des connaissances établies. Suivant la topique lacanienne24, après l’invasion du Réel, au moyen d’approximations répétées et d’identifications imaginaires partielles, le sujet construit un récit et se construit symboliquement dans le temps. Le modèle axiomatique cherche des conséquences (si on le souhaite, existentielles), au lieu de la clôture d’une définition, statique. Bref, ce qu’il y a de décisif c’est de changer la langue de la situation et de produire des éléments indiscernables - c’est le rôle du langage. Cela dit, on voit la centra-lité philosophique occupée sinon par la poésie comme objet historique, du moins par le langage dans son fonctionnement poétique de création.

L’événement poétique, particulièrement noté à l’époque dite «des poètes», se comprend sous la forme d’une expérience sans objet et d’une nomination sans imitation. Dans un texte de 1992, repris dans le recueil consacré à la poésie, Que pense le poème25, le philosophe introduit l’idée qu’au XIXe siècle la philosophie se voyait liée à l’une de ses conditions, notamment la poésie. Bien qu’il s’agisse d’une périodisation, entre 1870 et 1960, de Rimbaud à Ce-lan avec Hölderlin comme héraut (et, pour notre part, peut-être Drummond comme épigone), l’auteur souligne qu’il s’agit d’une catégorie philosophique, non créée par des poètes. Dans cette période, la philosophie perçoit un lien qui n’existait pas jusque-là entre elle et la production poétique. La combinaison de

24 Cf. Lacan, Jacques. «Simbólico, Imaginário e Real». In: Os Nomes do Pai. Traduction André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012, et Le séminaire XXII R.S.I (idem, Paris: Revue Ornicar, 1974). La-can est passé du privilège du symbolique à celui du réel. Voir Roudinesco, E., & Plon, M. Dicionário de psicanálise. Traduction Vera Ribeiro et Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.755. Un différend par rapport à Badiou serait son refus de comprendre l’inconscient structuré comme langage – ce qui bloquerait la théorie de l’événement, c’est-à-dire de la multiplicité pure.

25 Badiou, Alain. Que pense le poème. Paris: Nous, 2016.

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termes renvoie à la fois à un lieu de la philosophie (époque) et à sa qualifica-tion (des poètes) – précisément celle de la soumission de celle-là à celle-ci. La poésie y jouerait un rôle traditionnellement attribué à la philosophie26.

Ce qui caractériserait les poèmes de cette époque, c’est le fait que non seulement nous avons affaire à des événements de langage, mais aussi que la poésie s’élève à la tâche de penser et donc de penser la pensée – décrétant, par extension, la fin de la philosophie. Or, cela suppose que le poème construit une réponse à la question séminale «qu’est-ce que penser», et qu’il la conduit selon ses propres ressources. De manière «intrapoétique», la poésie offre des «maximes de pensée» selon lesquelles la poésie elle-même s’indique comme «pensée en général». Des «poèmes de méthode»27 émergent.

Fernando Pessoa proposait une métaphysique sans métaphysique, tandis qu’un de ses hétéronymes, Alberto Caeiro, postulait qu’il faisait de la prose à partir de ses propres vers28. L’annonce que la pensée-poème rompt avec son support, à savoir le poème, indiquerait la fin d’une telle époque. Comme la sophistique, le poème serait une non-pensée présentée dans la puissance linguistique d’une pensée possible. L’hypothèse d’une pensée du poème im-plique une pensée qui n’est pas séparée du sensible, «qui ne peut être discer-née ou séparée comme une pensée»29.

Badiou estime que le moment contemporain place la philosophie «(...) à égale distance par rapport à l’intemporalité historique du mathème et à la tem-poralité anhistorique du poème»30, évitant à la fois la suture à ses conditions et les grands récits. Tout commentaire poétique peut être formalisé et passe par une organisation de catégories, c’est la clarification philosophique, un expédient qui n’entend pas rivaliser avec le poème comme événement, un tournant qui produit de la subjectivité. Enfin, contrairement aux traditions philosophiques qui diagnostiquent l’identité de la philosophie avec les échecs historiques du XXe siècle31, Badiou reprend le geste rationnel de nommer en fonction de ce qui dépasse et génère le sujet. La poésie est l'un de ces événements.

26 Ibidem, p.29-31.

27 Ibidem, p.31-32, 39.

28 Apud ibidem, p.11 et 39.

29 Ibidem, p.39 et 65.

30 Ibidem, p.11.

31 Idem, O Século. Traduction Carlos Silveira Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2007.

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Que l’on pense à la pierre au milieu du chemin, au milieu de la vie, un mo-ment inoubliable qu’il est à peine permis de symboliser, dur. Ou, encore, à la machine du monde, rejetée dans sa magnitude et laissant un chemin pierreux à suivre. Dans les vers de «Recherche de la poésie», la discipline consistant à faire taire la magie des évocations et des projections égoïques, typiquement confessionnelles et réifiantes, afin d’entrevoir toute la puissance de nommer du langage. Dans «Considération du poème», on peut être sûr de l’éternité des vers, au-delà l’appréhension de l’objet par le sujet. Toute cette myriade d’inter-prétations est apportée avec élégance et passion par Alain Badiou.

Entretien

Gustavo Chataignie: Bonjour, Monsieur Badiou, Je vous remercie de m'avoir reçu. C’est un honneur, j’en suis très content. J'ai pris quelques notes d'après des lectures que je suis en train de faire.

Alain Badiou: Comme vous l'avez écrit, vous êtes pris dans la relation entre poésie et philosophie.

GC: Il y aurait pas mal de choses à vous poser. Mais d'après ces notes, j'aimerais commencer par quelques questions générales avant de poser celles liées plus directement à la poésie de Carlos Drummond de Andrade.

Badiou: Je vous en remercie. Allez-y.

GC: Bon, on sait que votre philosophie est marquée par un double tranchant de l'usage nécessaire et du mathème et du poème. L'usage des mathématiques en tant que l'ontologie soustractive a des conséquences philosophiques parfois non vues pour les mathématiciens. Cela vise à rendre justice aux multiples sans leur imposer un devoir être, à ceux multiplicités dépourvues des noms, qui nous apparaissent. Son devoir ne serait autre que de montrer ce qui surgit.

Alors moi, dans une discipline de philosophie française, j’essaye de montrer aux étudiants quelques idées de Rancière, de Deleuze et bien sûr de vous. Dans cet exercice, je me suis dit que la théorie du vide serait une philosophie de l’al-térité. Est-ce que le mathème chez vous pourrait être le garant d’une logique de l’altérité ? Enfin, est-ce que vous vous voyez comme un philosophe de la altérité ?

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Badiou: De l’altérité ? Oui, c'est-à-dire que d'une certaine manière, la question de l'altérité est évidemment une question tout à fait importante pour moi. Alors, est-ce que je suis un philosophe de l’altérité ? On peut le voir, mais dans le cadre de la théorie du multiple, la question de l’altérité est posée de la façon la plus nue, la plus essentielle. Parce que, en réalité, qu’est-ce que différencie deux multiplicités ? C’est toujours un problème assez compliqué, finalement.

Et vous avez raison de dire que, originellement, la seule altérité véritable à l’intérieur de la théorie du multiple, c’est le vide. Le vide est le point d’alté-rité, au regard de quoi se définit la multiplicité elle-même. Donc, je dirais oui, peut-être un théoricien de l’altérité – si je suis aussi un théoricien du rapport entre multiplicité pleine et vide, c’est certain. Ontologiquement, d’une cer-taine façon, c’est ma manière à moi de traiter le couple être et néant et donc le fondement ontologique de toute altérité, finalement. Par ailleurs, c’est un premier registre. Mais par ailleurs, il y en a un autre chez moi, sur l’altérité, qui est la question de l’événement, justement. Puisque l’événement, c’est au regard d’une situation, quelque chose qui n’est pas dans la situation, mais qui arrive dans la situation. L’altérité alors, là, c’est entre être et arriver, à se produire. Et donc on pourrait dire finalement, pour résumer tout ça, qu’il y a deux approches chez moi de la théorie de l’altérité.

La première au niveau ontologique pur, entre multiplicité pleine et vide. Et la deuxième, au niveau des vérités, entre situations multiples et évènements.

GC: Merci. Une autre question. Dans un certain sens, votre théorie pourrait prendre le relais de la théorie critique telle que définie par Horkheimer dans les années 30. Je crois buter contre quelque chose, parce que je sais bien qu’il y a toutes les distinctions nécessaires, des filiations philosophiques. Dans les Logiques du monde vous parlez d’une nouvelle dialectique, mais est-ce que les procédures des vérités à la fois locales et universelles ne pourraient pas justement se rappro-cher du projet critique de Horkheimer, d’Adorno, de faire en sorte qu’une cri-tique marxiste puisse se nourrir d’autres savoirs. Qu’en pensez-vous, soit de ces rapprochements exprès, mais sinon soit de cette tradition de la théorie critique ?

Badiou: Je pense que ce que je dis, ce que je serais ma discordance avec Adorno, c’est qu’il charge la négativité d’une positivité que je ne lui reconnais pas comme telle. Il a appelé sa dialectique une dialectique négative. Donc, il y a chez lui la conviction que l’échange de la dialectique, c’est la négativité. Mais pour moi, l’échange de l’être dialectique, ça n’est pas la négativité. C’est la possibilité affirmative que libère la négativité. Ce n’est pas la même chose.

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Exactement comme pour moi, la vérité, ce n’est pas l’événement. C’est une confusion qui a souvent été faite dans une interprétation notamment américaine de ma pensée. Et il y en a même ceux qui ont forgé le concept d’événement-vérité, avec un trait d’union.

Or, ce n’était pas mon orientation. Mon orientation est, au contraire, d’ap-préhender que le hasard évènementiel est à l’origine de la possible procé-dure de vérité, laquelle est une construction affirmative. Et il y a beaucoup d’analyses d’Adorno que je trouve tout à fait intéressantes. Bien sûr, il y a une proximité, évidemment. Il y a une proximité dialectique qui a rapport au marxiste, un tas de choses.

Je crois qu’il y a une différence métaphysique, si je puis dire, entre lui et moi que porte sur la position exacte de la négativité dans le processus, dans tous les processus, le processus de connaissance, mais aussi le postulat de la création de l’art, etc. Donc, je n’aurais pas l’idée d’appeler ma théorie comme théorie critique. Je l’appellerais plutôt une théorie affirmative.

GC: Je vois. Dans le sens que la critique serait incapable d’affirmer quelque chose.

Badiou: Exactement. Elle créerait des obstacles à la question de l'affirmation. Dans les problèmes politiques contemporains, tout à fait contemporains, même dans ce qui se passe ici, il y a une puissante négativité, mais qu’est-ce qu’il n’y a pas, c’est l’affirmation ? C’est la capacité de créer effectivement la vision de notre monde. Je pense que la faiblesse de la dialectique d’Adorno, c’est d’avoir au fond était gauchiste, disons. C’est-à-dire trop négatif, trop du côté de la puissance de la négation.

GC: Il lui manque un peu de poésie, peut-être ? Oui, parce que la poésie, justement, c’est la tentative d’une affirmation nouvelle dans la langue, de la faire circuler autrement.

Badiou: Exactement. Parce que la poésie est justement la tentative de faire une affirmation nouvelle dans la langue.

GC: De faire circuler un autre nom.

Badiou: Et de faire l'affirmation dans la langue de quelque chose dont on pensait que la langue n'était pas capable. Donc ce n’est pas de franchir les limites de la langue, la poésie. Ça, c'est une affirmation pure.

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GC: Franchir la théorie du sens ?

Badiou: Exactement.

GC: Bon, ça serait un arrière-fond, je dirais. En fait comme je présume que vous n'êtes pas très proche de ces poèmes, cela serait un peu, disons, bizarre d’en parler sans les avoir lus. Je vous propose de n’en voir que quelques ex-traits, voir quelques poèmes, pour ensuite essayer d’en parler.

Badiou: On voit que c'est un grand poète.

GC: Dans les années 30, il l'a fait son entrée très forte dans le milieu poétique, avec un poème qui est à la page 21, «Au milieu du chemin»32. Je ne sais pas pourquoi on a mis la première personne du singulier. Il n’y a pas de «je» en portugais. Il n’y a pas de pronoms personnels, ça change. Il a une destination ouverte qui manque à la traduction française, il me semble, même si je ne suis pas français, il y a cette impression-là.

Il a fait cette entrée magistrale. Je ne sais pas si c’est à la fin de l’âge des poètes.

Badiou: Oui, ça va être un épigone en langue portugaise.

GC: On peut les lire «Au milieu du chemin». Je vous cite : «la pensée assignée à la résidence, sans point de vision, du pur Il y a»33. Ce qu’il y a, c’est quelque chose qui résiste. Je ne sais pas si c’est un poème de la disparition, il me semble un poème de l’impossibilité de dire qui, pourtant, ne cesse pas de dire.

Badiou: Moi je le vois… Est-ce que, dans la phrase, il y a vraiment le mot événement ? En portugais, c’est comment ?

GC: Acontecimento.

32 «Au milieu du chemin j’avais une pierre/ j’avais une pierre au milieu du chemin/ j’avais une pierre/ au milieu du chemin j’avais une pierre./ Jamais je n’oublierai cet événement/ dans la vie de mes rétines tant fatiguées./ Jamais je n’oublierai qu’au milieu du chemin/ j’avais une pierre/ j’avais une pierre au milieu du chemin/ au milieu du chemin j’avais une pierre» (p.21). NB: tous les poèmes de Carlos Drummond de Andrade cités ici relèvent de l’édition qui suit : La Machine du monde et autres poèmes. Traduction Didier Lamaison. Paris: Gallimard/ Poésie, [1990], 2005.

33 Badiou, Alain. Que pense le poème ?, op. cit., p.48.

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Badiou: Parce que moi, je le lis tout de suite comme un poème de l'événement. Oui, oui, parce que d'abord, c'est au milieu du chemin. Un peu comme un événement, qu’on dit souvent qu’il est arrivé au milieu de la vie, hasardeux.

Isabelle Vodoz: Est-ce qu'il pensait à Dante ? Je pensais à Dante.

Badiou: Mais là aussi là, là aussi. Et je pense que le milieu du chemin de Dante, c’est au milieu du chemin de la vie. Oui, comme ça. Donc, au milieu du chemin de la vie, j’avais une pierre, il y avait une pierre au milieu. Alors, qu’est-ce qu’il y a ? Il y a le poème, au fond.

Parce que le poème, ses quatre premiers vers, c’est au milieu du chemin, j’avais une pierre. Il n’y a rien d’autre qu’il dit, rien d’autre. Et on sent bien que la répétition du dire signifie que quelque chose n’arrive pas à être dit. Et après ? Jamais je n’oublierai cet événement, «acontecimento». Et puis après, on reprend comme au début. Jamais je n’oublierai qu’au milieu du chemin… Donc ce qu’il y a, c’est qu’au fond, d’abord, il y a l’idée que ça arrive au milieu de la vie, qu’on ne peut pas l’oublier. C’est le deuxième thème. Le troisième, qu’on ne peut pas le dire puisqu’on ne peut dire j’avais une pierre et j’avais une pierre, ça veut dire quoi, qu’il y avait un obstacle. Il y avait quelque chose de compact. Donc pour moi, c’est impossible de l’événement.

On voit tous les aspects, y compris le fait que, au fond, la seule chose qu’on puisse faire de l’événement, c’est une création qui va lui être fidèle. Et là, jamais je n’oublierai cet événement. C’est la fidélité toute seule, la fidélité parfaite. Donc, on retrouve toutes les catégories. C’est pour ça que ça me frappe beaucoup. C’est le milieu de la vie. C’est quelque chose qui est un évè-nement qui arrive. C’est quelque chose dont on ne peut pas trouver le nom à proprement parler. J’avais une pierre. En plus, c’est l’idée que c’était moi qui l’avais. Donc c’est le sujet, le «je».

IV: Vous dites qu'il n'y a pas de pronoms personnels ? D'accord, mais dans le verbe, il est comment ?

GC: «Il y avait» une pierre au milieu du chemin. Ce n’est pas «j'avais» une pierre.

Badiou: Mais bien sûr que je n’oublierai cet événement extérieur. Là il y a le «je».

IV: Ça change tout.

Badiou: Ça change, mais c'est le seul pronom qui soit prononcé.

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GC: Et cela n’intervient qu’après coup.

Badiou : Mais justement. Exactement comme dans ma théorie. L'évènement produit la possibilité du sujet. Ce n’est pas le sujet qui est antérieur à l’évène-ment. Finalement, il se constitue, lui, comme sujet dans le poème. Vous avez parfaitement raison. Il ne faut mettre le pronom personnel que là où il est.

GC: Même si, en français, on a toujours cette habitude.

Badiou: Oui, oui, bien sûr. Voilà. Moi, je crois que c'est ça. C'est la réussite du fait qu’au milieu du chemin de la vie, je me suis constitué dans l'impossibilité d'oublier qu’il y avait une pierre. Voilà. Pierre est le nom anonyme de quelque chose qui a existé à ce moment-là, au milieu du chemin de la vie, dont la seule chose que je puisse faire, c’est quoi ? un poème.

GC: C’est écrire.

Badiou: Oui, écrire.

GC: Le poème est un événement dans le langage.

Badiou: Écrire, c'est un événement dans le langage. Ça devient un événement dans le langage. Le poème raconte qu’au milieu de la vie, il est arrivé quelque chose dont je ne peux rien faire d'autre qu’un poème. Que le raconter.

CG: Qui le dit c’est un sujet.

Badiou: Exactement. C'est une subjectivité dure qui ne peut rien faire d'autre qu'être fidèle, à ce point qu’il y a eu la pierre dans le chemin. Je vous remercie de m'avoir communiqué ce poème.

GC: Je suis tout à fait étonné. Voilà ce qui donne le titre à ce cette anthologie, La machine du monde34. En quelque sorte, elle reprend la figure de la pierre

34 «Et comme je parcourais vaguement/ une route du Minas, caillouteuse,/ et qu’au soir tombant une cloche rauque/ se confondait au bruit de mes souliers/ sec et posé; que des oiseaux planaient/ dans un ciel de plomb; que leurs formes sombres/ allaient s’estompant dans l’obscurité/ qui s’épaississait, venue des montagnes/ et de mon propre être désenchanté/ la machine du monde s’entrouvrit à des yeux las de vouloir la percer/ et qui pleuraient à sa seule pensée./ Elle s’ouvrit majestueuse et grave,/ sans émettre

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comme une pierre de touche, comme un événement. J’ai eu des difficultés parce qu’il me semble qu’il y a plusieurs chemins de d’interpréter ce que peut être cette pierre ou cette machine. Parce qu’on peut se poser qu’est-ce qu’il y a à l’affirmatif, là, sinon le poème ? Je crois que c’est un événement de langage parce que, justement, il reprend La machine du monde, un thème qui a été déjà écrit par Dante, vous avez tout à fait raison, par un autre poète portugais, Camões, qui a inspiré Fernando Pessoa, que vous connaissez très bien.

Badiou: Camões, je l’ai regardé davantage à cause de Pessoa.

GC: Pessoa essaye de refaire le geste camonien et même Joyce a repris ce mythe de la Renaissance selon lequel le monde est une machine avec des engrenages qui se rapportent les unes aux autres. Du coup, ça est sorti dans un livre dont le titre est très beau, Le claire énigme (1951). C’est peut-être une définition de la poésie.

aucun son qui fût impur/ ni un éclat plus grand que supportable/ à des pupilles usées à scruter/ sans fin douloureusement le désert,/ et à l’esprit fourbu de concevoir/ toute une réalité qui transcende/ sa propre image esquissée au visage/ du mystère, dans le fond des abîmes./ Elle s’ouvrit en calme pur, conviant/ sens et intuitions restant à celui/ auquel l’usage les avait fait perdre/ et qui ne voudrait pas les recouvrer,/ puisqu’en vain et toujours nous répétons sans but les mêmes tristes périples,/ les con-viant tous à la fois, en cohorte, à se donner l’inédite pâture/ de la nature mythique des choses,/ et me parla ainsi, bien que ni voix/ ni souffle, écho, ni moindre percussion/ n’indiquait que quelqu’un, sur la montagne,/ fût en train de s’adresser à quelqu’un autre/ nocturne et misérable créature:/ ‘Ce qu’en toi tu as cherché, ou hors de/ ton être étroit, qui n’a jamais paru,/ même en semblant se livrer ou se rendre,/ et sans cesse se dérobait plus loin,/ vois-le, fixe, ausculte : cette richesse/ excédant toute perle, cette science/ sublime et terrible, mais hermétique,/ cette entière explication de la vie,/ cette unique cohérence première,/ que tu ne peux plus même concevoir,/ tant elle échappa, fuyante, à l’ardente/ quête où tu t’es consumé… vois, contemple,/ ouvre ton cœur pour lui donner accueil’./ Les ponts et constructions les plus superbes,/ ce qui dans les ateliers s’élabore,/ ce qui fut pensé et atteint d’emblée/ distance supérieure à la pensée/ les ressources maîtrisées de la terre,/ et les passions, les transports, les tourments/ et tout ce dont est fait l’être terrestre/ ou qui jusqu’aux animaux se prolonge/ et même aux végétaux pour s’imbiber/ du rancunier sommeil des minéraux,/ qui fait le tour du monde puis replon-ge/ dans l’étrange ordre métrique du tout,/ et l’absurde originel, ses énigmes,/ ses vérités plus hautes que tous les/ monuments célébrant la vérité;/ et la mémoire des dieux, et le grave/ sens de la mort, qui germe dans la tige/ de l’existence la plus glorieuse,/ tout se rendit présent en ce coup d’œil/ et m’invita vers ce royaume auguste,/ enfin accessible à regard humain./ Mais comme je rechignais à répondre/ à cet appel de l’émerveillement,/ tant ma foi s’était attiédie, et même/ le désir, le plus petit espoir – cette/ envie de voir dissipée l’ombre épaisse/ qui crible encore les rayons du soleil;/ comme tôt invoquées en frémissant/ point n’apparaissaient les mortes croyances/ propres à ranimer la face neutre/ que par les chemins je vais arborant,/ et comme si un autre être, et non plus/ celui qui depuis tant d’années m’habite,/ prenait possession de ma volonté/ qui, de nature déjà versatile, se fermait comme ces fleurs réticentes/ en elles-mêmes décloses et closes;/ comme si un don tardif n’était plus/ désirable, mais digne de mépris,/ je baissai le regard, incurieux, las,/ dédaignant de cueillir la chose offerte/ comme un don gracieux à mon expertise./ Les ténèbres étaient déjà tombées/ sur la route du Minas, caillouteuse,/ et la machine du monde, éconduite,/ s’en alla peu à peu recomposant,/ et moi, mesurant quelle était ma perte,/ je m’en fus lentement, les bras ballants» (Drummond, 2002, p.155-158).

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Badiou: Oui, c'est clair.

GC: Ce qui se passe, c'est qu'il y a quelqu'un qui marche sans faire de trop d’attention, au début.

Badiou: La route avec des pierres… C’est très compliqué, hein ? Il faut que je le lise et que je vous écrive ce que je pense. C’est un poème magnifique. Là encore, je suis vraiment content, de grâce à vous, faire la connaissance de ce poème.

Aborder un poète nouveau c’est toujours une affaire très délicate. Il ne faut pas faire comme lui avec les bras. On pourrait dire que tout le poème est la machine elle-même, finalement. C’est un dispositif. Le poème raconte qu’il se détourne de ça et crée une subjectivité un peu vacante, un peu vide, les bras ballants, il reprend son chemin et suit son chemin.

C’est aussi l’image du refus de l’évènement, là. Si on dit que l’ouverture du monde a été ce qui s’est produit, cette fois sur le chemin de la vie, c’est aussi un évènement. Quelque chose s’est passé là et finalement, lui, en tant que pensée, le refuse. Le passage où il décrit le refus est assez compliqué. Il faut regarder de très près. D’autant que tout à la fin, il semble avoir un remords sur le refus quand-même.

GC: Il semble ne pas décider.

Badiou: Oui, et même pas sûr. Très, très complexe, la figure subjective est très complexe. Alors là aussi, effectivement, ça reprend un peu l’autre poème. Parce que c’est encore l’idée qu’au milieu du chemin, quelque chose arrive. Ce n’est pas quelque chose qui arrive dans le premier poème, c’est sur la figure un peu de l’obstacle. La pierre: on bute sur la pierre. Le chemin est caillouteux aussi. Il y a des pierres de plus. Ce qui arrive là, c’est une révélation. C’est le monde qui s’ouvre, qui se propose, qui se donne à lui, dans sa totalité. Lui, il ne veut pas de la totalité, continue son chemin. La création passe de l’autre côté, oui, oui.

C’est un poème sur la révélation et l’inappropriable, dont il faut se dé-tourner. En tout cas, dans cette subjectivité-là, se détourne. Et là, il y a quand même un élément comme un élément explicite de négation, c’est-à-dire quelque chose qui arrive et qui ne fait pas forcément événement. On doit décider si elle est événementielle ou pas. Dire ça, c’est le moment où le sujet décide de l’évènement comme événement. C’est-à-dire là l’évènement, effec-tivement, ça serait ce qui ouvrirait le monde. Et si on le refuse, le monde est refermé, c’est qu’il va continuer à être ce qu’il était. On va continuer le che-min caillouteux. Voilà, c’est très intéressant.

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Encore une théorie du sujet, en fait, une théorie du sujet dans sa capa-cité, y compris à refuser l’offre que lui est faite événementiellement d’une rencontre totale. J’ai l’impression que peut-être il y aurait dans ce poème le thème d’un refus de la totalité. Juste une chose comme ça, que la totalité n’est pas vraiment l’objet de son désir.

GC: Je crois que c'est comme épigraphe de ce livre, Claire énigme, où il a mis un vers de Paul-Valéry. Il utilise un terme qui vous est cher. Mais je crois que dans un autre sens. Il dit ceci: «les événements m’ennuient», mais je ne crois pas que ce soit l’événement comme Coupure, il me semble. Mais ça peut être la poursuite des jours à jour, la mode ou encore la téléologie etc.

Badiou: Oui, je pense. C'est les événements au sens faible, au sens de l'anglais event. Ok, c’est toujours le problème avec l’anglais. Ça ne veut pas du tout dire ce que le terme événement veut dire. C’est dans son sens événementiel dont on parle.

IV: C’est les organisateurs d’événements.

Badiou: Event, pour les Anglais, ça veut dire une soirée organisée, toute faite, l’exposition de peinture, une fête, un happening. Voilà ça. Au contraire, c’est quelque chose de tout à fait organisé et pas du tout quelque chose qui arrive et qui fait coupure. Du coup, quand ils traduisent mon œuvre, qu’ils mettent ça, il y a quelque chose qui ne fonctionne pas.

GC: À part ces deux grands poèmes, il y en a plusieurs. Mais il y en a deux autres sur ce qui peut être la poésie et deux autres sur l’événement en tant qu'amour, l'événement dans son versant des procédures amoureuses.

Badiou: C’est où ? «Recherche de la poésie»35.

35 “Ne fais pas de vers sur l’événement./ Il n’est de création ni de mort par-devant la poésie./ En sa présence, la vie est un soleil statique,/ qui ne chauffe ni n’éclaire./ Les affinités, les anniversaires, les anecdotes personnelles ne comptent pour rien./ Ne fais pas de poésie avec le corpos,/ cet excellent corps, complet et confortable, tellement incompatible avec l’effusion lyrique./ Ta goutte de bile, ta grimace de jouissance ou de douleur dans l’obscurité/ sont indifférentes./ Et ne me révèle pas non plus tes sentiments,/ car ils se prévalent de l’équivoque et tentent le long voyage./ Ce que penses et ressens, cela encore n’est pas poésie./ Ne chante pas ta ville, laisse-la en paix./ Le chant n’est pas le mouvement des machines ni le secret des maisons./ Il n’est pas la musique entendue en passant; ni la rumeur de la mer dans les rues longeant la ligne d’écume./ Le chant n’est pas la nature/ ni les hom-

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GC: Oui, tout un tas de négations, voilà, ce seraient les interdits de la poésie moderne.

Badiou: Mais il ne fait pas de vers sur l'événement. Il commence comme ça. Et puis «Il n’y a Pas de création ni de mort par Devant la poésie» ! Ni l’événe-ment, ni les corps, ni les sentiments.

GC: C'est peut-être une quête du néant. C'est très difficile de le mettre dans un moule parce que c'est le poème qui nous interpelle en quelque sorte et puis on essaye de le lire.

Badiou: Alors, comment interprétez-vous celui-là ?

GC: Je crois qu’il veut nier une certaine magie du langage ou certaines évocations, comme si à l’aide d’un nom propre on pourrait évoquer tout de suite une réalité ou le passé. Il veut nier le sens commun. Il termine par le mépris des mots, mais il dit avant «pénètre sourdement dans le royaume de mots. Là se trouve le poème en attente d’être écrit». Comme si c’était une ascèse à l’idée.

Badiou: Un poème ce n’est pas ni un aveu, ni une description, ni une description objective. C'est quand même la maxime du poète des diffuser des objets. Alors là, on sent quand même l’idée. Une idée que c’est une théo-rie du langage. Une théorie, comme le fait que le langage est le lieu absolu

mes en société./ Pour lui, pluie et nuit, lassitude et espérance ne signifient rien./ La poésie (n’extrais pas la poésie des choses)/ élide sujet et objet./ Ne dramatise pas, n’invoque pas,/ ne cherche pas. Ne perds pas de temps à mentir./ Ne te mets pas en peine./ Ton yacht en ivoire, ton soulier de diamant,/ vos mazurkas et vos erreurs, vos squelettes de famille,/ disparaissent dans la courbure du temps, ce sont choses impropres./ Ne recompose pas/ ton enfance ensevelie et mélancolieuse./ N’oscille pas entre le miroir et la/ mémoire en dissipation./ Ce qui s’est dissipé n’était poésie./ Ce qui s’est brisé, cristal point n’était./ Pénètre sourdement dans le royaume des mots./ Là se trouvent les poèmes en attente d’être écrits./ Ils sont figés, mais il n’y a pas de désespoir,/ il y a calme et fraîcheur sur leur surface intacte./ Les voici seuls et muets, à l’état de dictionnaire./ Vis avec tes poèmes, avant de les écrire./ Reste patient, s’ils sont obscurs. Calme, s’ils te provoquent. Attends que chacun se réalise et se consume/ avec son pouvoir de parler/ et son pouvoir de taire./ Ne force pas le poème à se dépren-dre des limbes./ Ne ramasse pas par terre le poème qui s’est égaré./ N’adule pas le poème. Accepte-le/ tout comme il acceptera sa forme définitive et concentrée dans l’espace./ Approche et contemple les mots./ Chacun d’eux/ a mille faces secrètes sous sa face neutre/ et te demande, sans égard pour la réponse,/ pauvre ou terrible, que tu luis feras:/ as-tu apporté la clé ?/ Regarde:/ désertés par la mélodie et par le concept,/ dans na nuit ils se sont réfugiés, les mots./ Encore humides et imprégnés de sommeil,/ ils roulent dans un fleuve difficile et se transforment en mépris» (Ibidem, p.57-59).

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du poème et qu’il ne faut pas orienter ce lieu, ni du côté de l’objectivité extérieure, ni du côté d’une intériorité supposée. Le poème est là, dans le langage comme tel.

C’est la proposition d’une ascèse poétique absolue, une ascèse qui ferait que le poème s’établirait dans les mots sans avoir à les raccrocher à une exté-riorité ou à une intériorité venue du dehors, en quelque sorte. Elle est aussi une espèce d’indifférence du langage. Le poème doit saisir le langage dans son indifférence, soit la nomination d’une extériorité, soit la révélation d’une intériorité. Ce souci d’abord. Et que ce n’est que comme ça que le poème va dire quelque chose de créateur.

Parce que s’il est référé à une extériorité ou une intériorité, il va être cap-turé en quelque sorte hors de lui-même, alors que la poésie, ça serait quelque chose qui se tiendrait dans la puissance du langage en tant que tel et en se gardant justement sur les deux bords subjectif et objectif. Au fond, ça évite de rendre le langage esclave de ce qui n’est pas lui. Finalement, le poème serait la révélation du langage comme tel. Sa puissance intrinsèque.

GC: Cette affirmation a donc besoin d'une négation.

Badiou: Voilà exactement. Il y a un côté Mallarmé, je dirais. Il y a manifestement un côté Mallarméen. Mais je pense à Mallarmé dans le hasard vaincu, mot par mot. C'est une de ses définitions du poème. Alors, ça peut être le hasard des événements. Ça peut être le hasard des impressions. Mais mot par mot, il faut remporter une victoire là, contre. Et finalement aussi, quand il dit le poème fait étant tout seul. Mais c’est très proche de ça, il a lieu tout seul.

GC: Un autre poème, c'est un peu pareil, «Considération du poème»36.

36 «Je ne ferrai pas rimer le mot sommeil/ avec l’incorrespondant mot vermeil./ Je le ferai rimer avec le mot chair,/ ou un autre, qu’importe, tous me conviennent./ Les mots ne naissent pas en-chaînés,/ ils sautent, s’embrassent, se dissolvent,/ dans le ciel libre parfois un dessin,/ ils sont purs, larges, authentiques, impénétrables./ Une pierre au milieu du chemin/ ou une trace seulement, il n’importe./ Mes poètes, les voici. De tout orgueil,/ de toute précision ils se sont incorporés/ à mon fatal flanc gauche./ Je chaparde à Vinícius/ sa plus limpide élégie. Je m’abreuve en Murilo./ Que Neruda me donne sa cravate/ flamboyante. Je me perds en Apollinaire. Adieu, Maïakovski./ Ce sont tous mes frères, ce ne sont pas des journaux/ ni un glissement de barque parmi les camélias: c’est toute ma vie que j’ai jouée./ Mes poèmes, les voici. C’est ma terre/ et c’est plus encore. C’est un homme quelconque/ à midi sur une place quelconque. C’est la lanterne/ devant une auberge quelconque, s’il en existe encore./ - Il y a des morts ? Il y a des marchés ? Il y a des maladies ?/ C’est tout à moi. Être explosif, sans frontières./ Par quelle fausse mesquinerie me déchirerais-je ?/ Que se déposent les baisers sur le visage blanc, sur les rides naissantes./ Le baiser est encore un signe, quoique perdu,/ d’absence de commerce,/ surnageant sur des temps infects./ Poète du fini

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Badiou: Là encore, de nouveau, la pierre est au milieu du chemin.

GC: C’est une fixation.

Badiou: On retrouve la même chose. En particulier là, je vois le début de la dernière strophe. Comment échapper au moindre des objets ? Et puis après, les sujets passent. On ne retrouve quand même ni sujet ni objet. Oui, je sais qu'ils passeront, mais toi, tu résiste. C’est le poème. Le poème doit échapper au moindre des objets. Comment il va se dérober, comment il va éviter de passer comme passent les sujets. J’ai tout perdu, je suis complet, je me destine à ça.

GC: Ce n’est pas un éloge de la mort, mais de l’idéalité du poème.

Badiou: Ce n’est pas du tout l'apologie de la mort. Et là, effectivement, c’est de nouveau l’idée que le poème, c’est habité du langage comme totalité autosuffi-sante. Savoir qu’il y a tout, ça dans la langue. Savoir qu’il y a tout et se mouvoir parmi des millions et des millions de formes rares, secrètes, dures. Donc le poème s’établit dans la capacité du langage lui-même à porter des millions et des millions de formes. Le seul mot forme les formes rares. Comment on dit en portugais ?

GC: Formas raras.

Badiou: Presque la même chose. Je pense que c’est une autre manière de dire qu’on retrouve en réalité, en effet, les mêmes orientations. Le poète ne doit être ni description ni introspection et subjectivité. Au fond, il doit s’établir dans le lan-gage comme on s’établit dans un million de formes rares, c’est à dire dans la res-source de formes belles, rares, secrètes, dures. C’est le côté pierre sur le chemin.

et de la matière,/ chantre sans piété, et oui, sans fragiles larmes,/ bouche si sèche, mais ardeur si chaste./ Donner tout pour la présence des lointains,/ sentir qu’il est des échos, peu nombreux, mais cristal,/ non roche seulement, poissons circulant/ sous le bateau qui emporte ce message,/ et oiseaux au long bec vérifiant/ leur défaite, et deux ou trois phares,/ les derniers ! espérance de la mer noire./ Ce voyage est mortel, et le commencer./ Savoir qu’il y a tout. Et se mouvoir parmi/ des millions et des millions de formes rares,/ secrètes, dures. Voilà mon chat./ Il est si bas que pas même ne l’entend/ l’oreille à ras de terre/ Mais il est si haut/ que les pierres l’absorbent. Il est sur la table/ ouverte en livres, lettres et remèdes./ Dans le mur il s’est infiltré. Le tramway, la rue,/ l’uniforme de collège se transforment,/ ce sont des ondes de tendresse t’enveloppant./ Comment échapper au moindre des objets,/ au grand comment se dérober ? Les sujets passent,/ je sais qu’ils passeront, mais toi, tu résistes,/ et grandis comme feu, comme maison,/ comme rosée entre les doigts,/ qui, dans l’herbe, se reposent./ Maintenant déjà je te suis en tous lieux,/ et te désire et te perds, je suis complet,/ je me destine, je me fais si sublime,/ si naturel et plein de secrets,/ si solide, si fidèle… Telle une lame,/ le peuple, mon poème, te traverse» (Ibidem, p.55-57).

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GC: Merci, Monsieur. Et pour finir, il y a deux poèmes, l'un a été traduit dans ce recueil à la page 127, il s'appelle «Mémoire»37.

Badiou: Il est subtil, celui-là, c'est très, très elliptique. Je pense comme vous que c'est la procédure amoureuse qui est en question par en dessous. Sans allusion directe, mais de la procédure amoureuse dans une figure de son passé. Quelque chose qui a été perdu. Ça c’est la première chose, aimer le perdu.

Il y a l’idée que l’oubli est inefficace, à la deuxième strophe. La première strophe explique que s’il y a eu procédure amoureuse perdue, on continue à ai-mer le perdu, que l’on continue à aimer l’amour, d’une certaine façon, en tant que perdu et comme dans une confusion, l’oubli est inefficace. La procédure amou-reuse ne peut pas s’oublier, même en face du défi absurde du non, de la négation.

Ce qui était de l’ordre du sensible disparaît. Troisième strophe. Néanmoins, les choses demeurent. Alors, là, qu’est-ce que c’est ? Les choses achevées, au-delà de la beauté. C’est un peu l’énigme. IV: Écoute, il se trouve que je suis tombée sur ce poème tout à fait extraordinaire. C'est ça avec ces trois derniers vers-là. À la page 226, «L'amour et son temps».

Badiou: Oui, justement, c'est un sonnet. Tu regardes cette découverte ! Alors je vais le lire, ce petit poème. Mais moi, je crois que c'est ça. C'est la mémoire de l'amour. Que voilà, c'est que finalement, le cœur est troublé par le fait que c’est perdu. Donc, ce qui est perdu ne devrait plus être, mais que ça c’est quand même, Mémoire. Et alors ? Il cherche à savoir qu’est-ce qui est le contenu réel de cette mémoire. Il dit cette mémoire, ce n’est pas des épisodes, ce n’est pas. Ce n’est pas le sensible lui-même. C’est l’au-delà de la beauté. C’est une idée parfaite. Cette idée parfaite demeure pour toujours.

Alors, maintenant, «L’amour et son temps»38. «L’amour est le privilège des gens mûrs». Ça nous convient parfaitement !. «Étendus sur le plus étroit des lits» se change en couches verdoyantes tout au long du corps. «Cela vaut le gain

37 «Aimer le perdu/ laisse confondu/ ce cœur qui est mien./ Rien ne peut l’oubli/ contre le défi/ absurde du Non./ Les choses tangibles/ se font insensibles/ à paume de main./ Mais les choses achevées,/ au-delà de la beauté/ celles-là demeureront» (Ibidem, p.127).

38 «L’amour est privilège de gens mûrs/ étendus sur le plus étroit des lits,/ qui se change en couche ample et verdoyante/ frôlant le ciel du corps en chaque pore./ C’est cela, l’amour: le gain non prévu,/ la prime souterraine et coruscante,/ lecture d’un éclaire énigmatique,/ décodage après quoi plus rien n’existe/ valant la peine et le prix du terrestre,/ fors la minute dorée de la montre/ minuscule vibrant au crépuscule./ L’amour est ce qui s’apprend en limite,/ une fois archivé tout le savoir/ hérité, reçu. L’amour tard commence» (Ibidem, p.226).

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non prévu». Ça, c’est très beau, le gain non prévu, il s’agit de l’inattendu. C’est d’ailleurs aussi l’événementiel. C’est la rencontre souterraine et Coruscante.

C’est très beau l’amour et ce qui s’apprend à la limite. Fantastique. Il faut archiver tout le savoir, le décrypter. C’est au-delà de tout le savoir, c’est la di-mension événementielle de la pensée, de sa nouveauté radicale. Et l’amour tard commence. Ça me rappelle la définition de la philosophie par Hegel, la chouette de Minerve. L’amour commence événementiellement, au-delà de toutes les considérations ordinaires. C’est pour cela, qu’il est le privilège des gens murs.

GC: Est-ce qu'on peut être mûr à 20 ans ?

IV: Oui, ça dépend. J'ai tendance à penser effectivement que souvent c'est effectivement le remariage qui apprend. Peut-être, le premier amour est plus difficile à gérer. Je pense d’une certaine manière que oui, bien tard plus tard. C’est intéressant, mais ça peut être tard. Le tard, ça peut être jeune quand même.

GC: Oui, ça dépend de la rencontre. Il y a un philosophe américain qui vient de décéder, Stanley Cavell.

Badiou: Il a écrit sur les comédies de remariage, oui, oui, oui, il a des films, non, des livres à ce sujet. Ça peut être plus authentique, plus intéressant. Et le poème dit à peu près quelque chose comme ça.

GC: Merci, Monsieur. Bon, je pourrais rester des heures avec vous, mais le programme a été rempli.

Badiou: Ç’a été merveilleux pour moi parce que c'est passionnant. C'est vraiment passionnant et c'est vrai que ça gravite autour, de façon essentielle, autour de la saisie événementielle. Il y a deux points d'événements. Le caillou sur le chemin, finalement, d'une certaine manière. Et d'autre part, l'autonomie absolue du poème. Et finalement, la poésie, c'est le lien entre les deux. Le lien entre l'événementiel et l'autonomie absolue du langage. Comment l'autonomie absolue du langage peut être suscitée par le caillou sur le chemin et il ne faut pas le confondre cela avec un savoir de la totalité, ça c’est basé sur la machine du monde.

GC: Il faut toutefois se séparer des sophistes, des mécanistes.

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283Drummond : événement et apparition d'un nouveau sujet – entretien avec Alain Badiou

O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29, n.47, p.258-284, jul.-dez.2020

Badiou: Exactement.

IV: Je vois des rapports aussi avec Celan. Sur les inconsistances s’appuyer.

Badiou: Il y a des rapports aussi.

GC: Il ne faut pas s'appuyer sur la machine.

Badiou: mais exactement sur les inconsistances, sur la fragilité. Peut-être sur l'obstacle pur, comme les cailloux sur le chemin. Ça suffit, je n’ai pas besoin que s’ouvre la machine du monde.

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Drummond: acontecimento e surgimento de um novo sujeito –

entrevista com Alain Badiou1

Drummond: event and emergence of a new subject –

interview with Alain Badiou

Introdução

A presente entrevista com Alain Badiou (1937- ), professor emérito da Uni-versidade de Paris 8, ocorreu na manhã do dia 7 de fevereiro de 2020, uma sexta-feira, em um confortável apartamento, repleto de livros, no residen-cial décimo quarto distrito, ou arrondissement, da capital francesa. O pedido, bem como as tratativas, foram mediados pela professora de literatura e amiga de longa data do filósofo, Isabelle Vodoz – igualmente anfitriã, a quem agra-decemos pelas gentilezas. Após um mês de espera, eis que em novembro de 2019 recebemos o esperado “sim”, restando a partir de então afinar agendas. Tal empreitada só nos foi possível graças ao período em que estivemos na Universidade de Rennes 2 (janeiro-março 2020), relativo às pesquisas da Chaire des Amériques [Cátedra das Américas], atribuída pela mesma institui-ção e pelo Institut des Amériques [Instituto das Américas], um consórcio de

1 Apresentação e entrevista por Gustavo Chataignier (PUC-Rio, Comunicação Social, quando de um estágio de pesquisa na Chaire des Amériques [Cátedra das Américas], da Universidade de Rennes 2.

Recebido em: 24/11/2020 – Aceito em: 20/12/2020

* Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Contato: [email protected]

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universidades francesas. Nossa pesquisa de então, acolhida pelo professor Néstor Ponce, consistia na investigação das relações entre poesia e filosofia a partir dos versos de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Trata-

-se de desdobramento de estudo anterior de pós-doutoramento, cujo “ob-jeto” analisado e desconstruído foi o poema “A Máquina do mundo”, do livro Claro enigma (1951)2. Agora seria questão de pensar o verso-universo drummondiano enquanto “acontecimento”, noção seminal do pensamento badiousiano. Note-se que por não se tratar de uma filosofia que opera no campo da representação e portanto do “tema” veiculado por tal ou tal poesia, a teoria do acontecimento não se opõe à descrição da primazia da diferência derridiana; esta, por seu turno, ganha, por assim dizer, a “localização” do acontecimento no locus linguístico do poema. Dir-se-ia se tratar de uma pers-pectiva englobante, no sentido hegeliano.

O interesse em tal debate – a saber, o diálogo entretido entre a poesia de Carlos Drummond de Andrade e a filosofia de Alain Badiou – não se reduz, não obstante, ao âmbito de uma pesquisa isolada. Para além de marco edito-rial com status de novidade, tal empreitada se justifica ao nosso ver por reunir consagrado poeta brasileiro, que atravessou o modernismo e estabeleceu uma dicção própria, com um dos maiores expoentes da filosofia francesa do pós-

-guerra – cuja teoria implica a ruptura instauradora de modos de ver e sentir, particularmente interessado na poesia enquanto acontecimento, como se o notará3. Badiou pensa na verdade do sujeito, sempre a posteriori, deslocando a questão do “sujeito da verdade”.

Ainda no que tangem as justificativas, Luiz Costa Lima aponta uma po-sição única de Drummond no seio do modernismo brasileiro. O caráter afir-mativo do movimento na poética drummondiana consiste na passagem da poesia ao cotidiano e à blague. A tal ponto que a ironia ganha uma forma mais radical, chamada por esse crítico de “corrosão”. Vejamos os versos do “Poema de sete faces”: “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/

2 Cf. “Máquinas Da Escritura: Devires Sensíveis”. In: Revista Latinoamericana do Colégio In-ternacional de Filosofia. Org. Ceppas, e Chataignier. Valparaíso: Universidade de Valparaí-so, 2019, p.261-274 (disponível em http://www.revistalatinoamericana-ciph.org/wp-content/uploads/2020/01/18-Gustavo-Chataignier.pdf) e “Machines de l’écriture: des devenirs sensibles”. In: 50 ans de déconstruction : vitalité et pertinence de l’œuvre de Derrida. Org. Ceppas; Chataignier; Ferté. Paris: L’Harmattan, 2020, p.183-196.

3 Que se nos permita um breve comentário. Nossa esperança é de que a presente e curta in-trodução, aliada à breve entrevista, nos permitam ulteriores estudos mais aprofundados sobre o acontecimento na poesia de Carlos Drummond de Andrade.

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disse: Vai, Carlos!, ser gauche na vida”4. A figura de um anjo em nada angelical aponta para a corrosão do hábito, nos explica Costa Lima. A ironia drum-mondiana volta a si com tal intensidade (ironia “regressiva”)5, que ganha a função de dissipar a linguagem de suas certezas. A simples ironia o faria mais um poeta moderno. Assim, o diálogo ambíguo com seus pares6 estabeleceu tanto o canibalismo das culturas estrangeiras quanto a crítica como corrosão. Este procedimento de escrita erige-se como percepção da história enquanto desvelamento do tempo presente7. Tal estilo leva o leitor a uma escavação de si, estabelecendo uma abertura a um futuro desconhecido. Trata-se de uma abertura para o advento de um sujeito em sua verdade constituinte, já que os versos não idealizam musas e temas, convidando o leitor à interpretação. O que se vê não é possível senão pela opacidade, como nos versos de “Aliança”. O elo do sensível em busca de intelecção alcança, no sonho e no poema, “vi-são de graça fortuita/ e ciência não ensinada”: “O homem, feixe de sombra,/ desejaria pactuar/ com a menor claridade”8. Ou, ainda, que leiamos os versos da “Mineração do outro”, na qual se estabelece um compromisso entre cor-pos. Decifrar esse encontro, o ouro do outro – o que em Badiou responde pelo termo “acontecimento”, quiçá amoroso – é o que mantém o sujeito. Tal

“contato” não se dá senão no locus dos versos, eis o “compromisso” (o “jamais apreendido” no qual ressoa “outra voz”, a do acontecimento):

4 Drummond de Andrade, Carlos. “Alguma poesia”. In: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p.5.

5 Costa Lima, Luiz. Lira e antilira: Mário, Drummond e Cabral. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p.142-3. Cf. “Necrológio dos desiludidos do amor”: “Os desiludidos do amor/ estão desfechando tiros no peito./ Do meu quarto ouço a fuzilaria./ As amadas torcem-se de gozo./ Oh quanta matéria para os jornais./ (...) Os médicos estão fazendo a autópsia/ dos desiludidos que se mataram./ Que grandes corações eles possuíam./ Vísceras imensas, tripas sentimentais/ e um estômago cheio de poesia...” (Drummond de Andrade, Carlos. “Brejo das almas”. In: Poesia completa, op. cit., p.59-60).

6 É célebre a troca epistolar entre Drummond e Mário de Andrade (cf. a carta de 10 novembro de 1924. In: A lição do amigo - Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Orga-nização André Botelho. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p.19-28). Nela, Mário critica o pessimismo do mineiro e sua distância em relação ao debate nacional, alimentado sobretudo pelas leituras de Anatole France; sua posição, em oposição, seria a de uma solidariedade entre as clas-ses encabeçada por uma vanguarda (cf. Santiago, Silviano. The Space In-Between: Essays on Latin American Culture. Tradução Anna Lucia Gazzola e Wander Mello Miranda. Dunham e Londres: Duke University Press, 2001, p. 161).

7 Costa Lima. Lira e antilira, op. cit., p.129-31.

8 Drummond. Novos poemas. In: Poesia completa, op. cit., p.240-1.

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O corpo em si, mistério: o nu, cortina/ de outro corpo, jamais apreendido,/ assim como a palavra esconde outra/ voz, prima e vera, ausente de senti-do./ Amor é compromisso/ com algo mais terrível do que amor?/ – pergunta o amante curvo à noite cega,/ e nada lhe responde, ante a magia:/ arder a salamandra em chama fria9

Cronológica, e mesmo tematicamente, o cânone divide a obra drummondia-na da seguinte forma: primeira fase modernista e irônica; segunda fase social ou engajada; terceira fase “metafísica” e por fim uma fase memorialista10. Ora, é esse pendor metafísico, sempre presente, se concordarmos com a “corrosão” elencada por Costa Lima, que abre a poesia do itabirano para novos voos na filosofia. Poeta nacional, por assim dizer, consequentemente com vasta fortu-na crítica, Drummond não nos parece ter seu sentido esgotado. Ele o confir-ma: “E como ficou chato ser moderno./ Agora serei eterno”, na convivência do Padre eterno, com o fogo eterno e o amor de Yayá Lindinha, figura de afeto pessoal e também referência a Machado de Assis. Nem o poeta, e tampouco o chão que pisa: que não reste senão um ritmo11, desconcertante qual a ideia de acontecimento, eis o anelo. Dito isso, como a filosofia badiousiana pode-ria contribuir no comentário desse corpus? Não é de maneira alguma nosso intuito substituir o teor da entrevista que se segue. De todo modo, a teoria do acontecimento que rompe com a normatividade presente e abre o espaço para um sujeito que cria o sentido no tempo (os procedimentos das formas genéricas de verdade) nos parece ser uma rica seara de investigação: pedras, caminhos pedregosos, aporias e suspensões de sentido são alguns elementos que corroboram tal aproximação.

Assim sendo, cabe indicar ao eventual leitor alguns dos lugares e funciona-mentos da poesia no seio do pensamento de Alain Badiou. Como dizia em seus cursos na École Normale Supérieure, a conversão existencial deve ser acompa-nhada de um desenvolvimento teórico. Para tanto, a “impossível língua” dos começos é a poesia, dizer o acontecimento é função da poesia – independente de uma referencialidade empírica, já que um poema é uma nova organização

9 Idem, Lição de coisas. In: Poesia completa, op. cit., p.475-6.

10 Cf. Merquior, José Guilherme. A razão do poema. São Paulo: É Realizações, 2013, p.100; San-tiago, Silviano. “Introdução à leitura dos poemas de Carlos Drummond de Andrade”. In: Drum-mond de Andrade, Carlos. Poesia completa, op. cit., p.XXXVI-XL.

11 Drummond de Andrade, Fazendeiro do ar. In: Poesia completa, op. cit., p.407-9.

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no código linguístico12. Ante o pathos do acontecimento, não há mediação conceitual passível de certeza positiva; o sujeito se vê forçado, notadamente pelo desejo e ao acaso, a nomear a situação, em pleno ato de criação.

Claro está que há algumas entradas possíveis nesse universo. O mini-cur-so, dado na UFRJ, Para uma nova teoria do sujeito13, resume didaticamente sua filosofia. Que se assinale o pioneirismo do também ex-aluno, tradutor e pesquisador canadense radicado no Brasil, Norman Madarasz, com uma série de artigos e o livro de caráter sistematizador, O múltiplo sem um14. Retomar o combalido sujeito e a desacreditada noção de verdade, criticando o vitalis-mo15, ainda não rendeu todos frutos possíveis.

Peter Hallward, em sua correta introdução em língua inglesa à Ética, o co-loca no mesmo patamar de Deleuze e Derrida16. Sabe-se, com pesquisas na in-ternet, ser pensador traduzido em diversas línguas. Sua principal obra, O Ser e o evento17, originalmente de 1988, felizmente, foi vertida entre nós nos anos 1990. Todavia, suas continuações, Logiques des mondes [Lógicas dos mundos], Court traité d’ontologie transitoire [Curto tratado de ontologia transitória] e L’immance des vérités [A imanência das verdades] permanecem indisponíveis (bem como obras seminais, como Théorie du sujet [Teoria do sujeito], anterior a O Ser e O acontecimento, e Conditions [Condições], de cunho explicativo18). Ex-discípulo de Althusser, frequentador de Sartre e dos seminários de Lacan, além de passar por Platão, Badiou propõe um universo de imbricamentos entre o filosófico e o não filosófico que merece ser explorado.

12 Notas, durante o doutoramento, do curso « Pour aujourd’hui, Platon ! » [Para hoje, Platão!], 10 de junho de 2009, ministrado por Alain Badiou na referida instituição.

13 Badiou, Alain. Para uma nova teoria do sujeito: conferências brasileiras. Tradução Emerson Xa-vier da Silva e Gilda Sodré. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

14 Madarasz, Norman. O múltiplo sem um: uma apresentação do sistema de Alain Badiou. São Paulo: Ideias e Letras, 2011.

15 Badiou, Alain. A aventura da filosofia francesa no século XX. Tradução Antônio Teixeira e Gilson Iannini. Belo Horizonte: Autêntica, 2015

16 Hallward, Peter. “Translator’s introduction”. In: Ethics – an essay on the understanding of evil. Badiou, Alain. Tradução Peter Hallward. Londres-Nova Iorque: Verso, 2001, p.viii.

17 Badiou, Alain. O ser e o evento. Tradução Maria Luíza Borges. Rio: Jorge Zahar,1996. Outra tradução possível seria por “acontecimento”, evitando confusão com uma semântica do entreteni-mento, como recomenda o autor na entrevista.

18 Badiou, Alain. Logiques des mondes – l’Être et l’événement II. Paris : Seuil, 2006 ; Court traité d’ontologie transitoire. Paris : Seuil, 1998 ; L’immanence des vérités – l’Être et l’événement III. Paris : Fayard, 2018 ; Théorie du sujet. Paris : Seuil, 1982 ; Conditions. Paris : Seuil, 1992.

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Nossa leitura não se arroga a árdua missão de abarcar toda a obra de Alain Badiou, fugiria por demais de nosso escopo presente. A chave de leitura pro-posta é clara: partimos da ontologia matemática, cuja base incontornável é O Ser e o evento, para nos indagar sobre necessária e incerta invenção de lingua-gem quando da irrupção do acontecimento e sua posterior busca subjetivante. Sem a capacidade de racionalizar (leia-se: dizer, nomear) o acaso e as figuras do imprevisível e, além disso, se estabelecer formalmente etapas fenomenoló-gicas, o gesto badiousiano se perde. Donde a centralidade de O Ser e o evento em sua carreira e de toda explicação do acontecimento gerador de sujeito. Trata-se de uma incorporação da verdade subjetiva. Dizer o acaso que nos for-ma é uma teoria racional da multiplicidade, cujas bases não jazem senão em O Ser e o evento. O próprio autor afirma não dar prioridade à poesia em seu livro fundador; todavia, seu papel teórico está ali traçado e é desenvolvido ao longo de sua produção – com alguns momentos-chave por nós evocados.

Acreditamos que uma breve descrição da situação auxilie o leitor não tan-to a melhor compreender o texto, mas, antes, quiçá a reconstituir o sopro da ideia que visitou os que ali estavam – e, assim o esperamos, se erija como ponto de subjetivação ou, ainda, ponte para o encontro entre duas grandes referências dos dispositivos de arte e filosofia. Após o que, passaremos a breve evocação dos principais conceitos de Alain Badiou para, por fim, chegarmos à entrevista – uma edição de material com pouco mais de uma hora de duração.

Retornemos à cena da entrevista. O filósofo foi presenteado com uma tra-dução francesa dos poemas de Drummond, de Didier Lamaison, La Machine du monde et autres poèmes [A máquina do mundo e outros poemas]19. De nossa parte, gentilmente ganhamos um exemplar de Trump20, sua mais recente obra. Cortês e sorridente, do alto de quase dois metros de altura, esse grande ho-mem confessou “ter ouvido falar” de Drummond. “Mas sei que é dos grandes”, de pronto emendou. “Ao ler sobre Pessoa vi comentários muito interessantes”, o que incluía, detalhou, Camões, outro marco da língua portuguesa. Não pen-se o leitor que daí resultou um conjunto de platitudes ou amenidades bem-e-ducadas. Muito pelo contrário, o que ali se presenciou foi a fala de um sujeito interpelado por um código gramatical embebido pela verve drummondiana,

19 Drummond de Andrade, Carlos. La Machine du monde et autres poèmes. Paris: Gallimard/ Poésie, [1990], 2005. Em 1972 a antologia Reunião foi vertida ao francês, em edição bilíngue, pelo lusófo-no Jean-Michel Massa (Rennes 2, 1930-2012), com o título de Réunion (Idem, Paris: Aubier-Mon-taigne, 1972). Já em 2005 publicou-se Mort dans l’avion et autres poèmes [Morte no avião e outros poemas], também bilíngue, traduzido por Ariane Witowski (Idem, Paris: Chandeigne, 2005).

20 Badiou, Alain. Trump. Paris: PUF, 2020.

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e portanto reinventado, provocando assim deslocamentos à medida em que a leitura apresentava os poemas. O comentário fabricado de pronto, sem maio-res preparos, só não pode ser caracterizado como espontâneo por rigor teórico. Explicamo-nos: à percepção do aparecer nu da obra se justapõem, forçosa-mente, as condições de recepção da época, o que inclui as mobilizações, tanto intencionais quanto inconscientes, do sujeito. É mesmo um exercício estrábi-co, ater-se à obra e buscar a distância do auxílio conceitual. Pois bem, e o leitor o verá, parece-nos que se presenciou uma das formas que pode assumir um acontecimento estético literário, tornado legível (conceituado) pelo comentá-rio badiousiano. Que algo de um tal frescor seja preservado.

Aquilo que aparece põe seus próprios limites e, concomitantemente, con-trai relações, o que torna sua irrupção um processo de diferenciação. Em nosso contexto, o referencial teórico de Badiou se apropriaria do material empírico do poeta de Itabira. Não obstante, ao se fazer justiça ao pensador francês, a questão se colocaria de outra maneira.

O múltiplo, o disforme ainda sem nome, surge em um cenário local de estabilidade e de indiferença entre as forças presentes, estáticas. Sua entrada em cena força a reelaboração da normatividade. Há uma suspensão de sentido, um vazio em meio ao qual o novo pode circular. Uma das inovações da produ-ção teórica de Badiou consiste na articulação entre matema e poema. Um uso filosófico e não instrumental da matemática (não previsto ou não valorizado pelos matemáticos), como o ressalta, tem a pretensão de redefinir a ontologia, a teoria do ser enquanto ser. A ontologia mostra, subtrai algo (a forma ideal e subjetiva) do objeto. A matemática conta, portanto mostra – eis o papel da filosofia, se esta quiser se livrar das diversas “suturas” ou pré-determinações que historicamente a direcionaram, predeterminando o destino do fenômeno

– que, de múltiplo, passa a uma identidade21. Antes, é questão das “condições” para o exercício da filosofia22. A filosofia não “faz” nada, por assim dizer; ela é um esforço do sujeito interpelado por um real que o ultrapassa. Assim sendo,

21 A maneira pela qual se compreende o acontecimento muda. Por isso cada época tem sua episteme, assim disposta: 1) do Renascimento à modernidade (período “clássico”, de Leibniz a Descartes): ma-temática/ciência como condição da filosofia; 2) Revolução francesa: história e política como condições (de Rousseau a Hegel); 3) “Niilismo”: arte e poesia substituindo a filosofia (Nietzsche e Heidegger), na chamada “era dos poetas” (Idem, Manifesto pela filosofia. Tradução M. D. Magno. Rio de Janeiro: Angélica, 1991, p.14-5). Em todos esses períodos, havia identidade entre a filosofia e suas condições.

22 Em Conditions, livro de 1992 cujo intuito era o de explicar os argumentos de O ser e o aconte-cimento e o de reafirmar a anterioridade do acontecimento em relação à filosofia, Badiou recorre a dois procedimentos de ruptura na poesia, segundo ele presentes em Mallarmé e em Rimbaud

– respectivamente a subtração e a interrupção (Idem, Paris: Seuil, 1992 p.108-154).

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o acontecimento, em suas quatro formas ou enquanto “procedimentos genéri-cos”, antecedem a filosofia – ou, se se quiser, a conjunção entre matema e poe-ma. São eles: arte, amor, política e ciência. Dessa maneira, o ponto local tem a potência de universalização – ou o acontecimento pode ter seu nome veicu-lado, promovendo lugares de subjetivação. A primazia da experiência, termo usado aqui no sentido amplo de exterioridade não controlada pela intenção, em um só tempo criadora do sujeito e por ele nomeada, impõe uma compos-sibilidade de verdades, fugindo assim de todo dever-ser (figura da moral e da objetividade estática). Em termos mais diretamente badiousianos, o múltiplo deve poder se expressar, não sendo reduzido às suas condições. A referida compossibilidade consiste em postular que não há apenas uma causalidade a explicar o mundo fenomênico e o advento dos sujeitos (herança lacano-

-althusseriana de deslocamento com fusão e também de sobredeterminação). Nesse sentido, o acaso é, dialeticamente, o acaso de uma situação, permitindo um processo de diferenciação e ensejando a posteriori sua inteligibilidade.

Destituída de telos ou sentido a priorístico, cabe à filosofia mostrar e tor-nar disponíveis processos de incorporação subjetiva de acontecimentos. Nem só política, muito menos determinismo econômico, e tampouco manipulação da natureza ou afetação pela arte ou, ainda, voluntarismo: as quatro condi-ções genéricas apontam para vários mundos dentro de um mundo. Em suma, a filosofia, ocorrendo post factum, não produz realidades.

O que reter do que foi ventilado acima? Em O ser e o evento23, Badiou atri-bui papel ontológico à matemática. Sua função é estabelecer uma lógica dos possíveis. Se o ser é, ele deve fazer jus ao múltiplo. Invertendo postulados da tradição, o não ser passa a ser: o que aparece e ainda não foi percebido e nomeado é a condição de possibilidade para toda e qualquer conceituação. Dito de outra maneira, talvez mais classicamente, o não saber é primeiro. Para tanto, Badiou lança mão da teoria dos conjuntos de Cantor (1845-1912). Todo conjunto dispõe de, no mínimo, dois elementos. Quais sejam, o que é mostrado e também o vazio. Para que algo seja mostrado e contado, o con-junto parte de si, eis a neutralidade da matemática. O nada não faz unidade,

23 Nossos apontamentos, de modo geral, inspiram-se da referida obra (O ser e o evento, op. cit.). Cf. introdução, capítulos 1, 3, 4, 11, 16 e 20 – respectivamente p.11-25, 29-34, 50-55, 105-109, 143-146 e 165-172. Em sua apresentação, Badiou separa os capítulos, ou, como os chama, “me-ditações”, em conceituais, textuais e metaontológicas, e recomenda a leitura em conjunto, ainda que seja possível fazê-la seguindo os eixos ora elencados (p.24). Há, ainda, um capítulo consa-grado a Mallarmé (p.157-162). Para uma introdução ao sistema de Badiou, entendido não como mecanicismo, mas axiomática do múltiplo, consultar-se-á com bastante interesse O múltiplo sem um (Madarasz, op. cit.).

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contudo, a permite e a nomeia (incorporação). Porém, ainda é o múltiplo (o vazio pertence a todos os conjuntos). O ganho dessa teoria é um efeito de es-truturação, de criação de campo de visibilidade em uma contagem. Em suma, o vazio se contém. O múltiplo experenciado é dizível em uma articulação, o que é garantido pela inteligibilidade da estrutura, sem, porém, o fechamento do estruturalismo – a estrutura é da ordem do efeito, o efeito de uma contin-gência. Em se seguindo a tradição estruturalista, sobretudo de língua francesa, só há o concreto graças ao abstrato.

A multiplicidade não é interrompida por unidade ou identidade alguma; seu “outro” é o vazio. No curso de sua determinação, o contato com o outro a leva à sua alteridade – não no sentido reflexivo, de recolher a totalidade que lhe fez face, o que redundaria em uma troca de identidade. Vê-se um deslo-camento. Não se trata do múltiplo de alguma coisa, uma mera replicação de um modelo. O múltiplo de um elemento é múltiplo de si mesmo, pode variar, pois é habitado pelo vazio. Lembremo-nos: o conjunto diz algo porque é vazio e, ao fazê-lo, não deixa de ser vazio (todas as coisas são compostas de multiplicidades, de proveniências distintas e com organização precária). O intuito é o de se chegar a uma exposição universal da multiplicidade. Isso torna a contingência algo irredutível a uma causalidade. Um elemento se encontra com seu nada e perde sua identidade quando é tirado do lugar, quando é forçado. O “nada de alguma coisa” é o que faz com que haja trans-formação. O outro leva ao próprio vazio e, assim, à mudança (ao outro de si). O encontro entre acontecimento e sujeito, ou entre elementos sem medida comum, implica uma torsão no pensamento. O resultado é a produção de novas maneiras de se ver e sentir. Enquanto efeito possível do encontro, tem-

-se um novo “discernimento” apto a novas “classificações” da multiplicidade fenomenal, graças à referência ao acontecimento. Caso alguma “fórmula” seja pertinente, assiste-se à busca do sujeito (movimento de enquete) a classificar os múltiplos. Em um só tempo, há a combinação do “um” (discernimento subjetivo) e do “vários” (classificação exterior), cabendo ao acontecimento o papel de mediador. Em suma, desvincular o vazio lógico do gesto poético de nomeação, arcabouços de Badiou presentes em O Ser e o evento, recai em dei-xar passar em silêncio o funcionamento intrinsicamente poético de sua teoria.

A criação na linguagem, e assim a necessária presença da poesia, nomeia sem garantias de certeza, produzindo efeitos performativos e sobredetermi-nando a situação com tal suplemento. Atribuindo preponderância à experiên-cia, mas se desvinculando do sujeito kantiano cuja sensibilidade a priori é entendida como fechada sobre si, tal corpo conceitual se erige enquanto a

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constituição das verdades contingentes formadoras da subjetividade. Atempo-rais e iniciadores de séries temporais (universalizantes), eis os procedimentos genéricos: arte, amor ou psiquismo, ciência e política. O sujeito é fiel a algo que o atravessa; a fidelidade opera conexões exteriores aos saberes estabeleci-dos. Em se seguindo a tópica lacaniana24, após a invasão do Real, por meio de seguidas aproximações e identificações imaginárias parciais, o sujeito constrói uma narrativa e se constrói simbolicamente, no tempo. O modelo axiomático busca consequências (se se quiser, existenciais), ao invés do fechamento de uma definição, estática. Em suma, o decisivo é mudar a língua da situação e produzir elementos indiscerníveis – este o papel da linguagem. Vê-se, isso posto, a centralidade filosófica ocupada senão pela poesia enquanto objeto histórico ao menos pela linguagem em seu funcionamento poético de criação.

O acontecimento poético, particularmente notado na chamada “era dos poetas”, se deixa compreender na forma de uma experiência sem objeto e de uma nominação sem imitação. Em texto de 1992, retomado na coletânea dedicada à poesia, Que pense le poème? [O que pensa o poema?]25, o filósofo introduz a ideia segundo a qual no século XIX a filosofia se via ligada a uma de suas condições, notadamente a poesia. Ainda que se trate de uma periodi-zação, entre 1870 e 1960, de Rimbaud a Celan tendo Hölderlin como anun-ciador (e, de nossa parte, quem sabe Drummond como epígono), o autor frisa se tratar de uma categoria filosófica, não criada pelos poetas. No dito período, a filosofia percebe um laço até então inexistente entre si mesma e a produção poética. A junção dos termos remete tanto a uma localização da filosofia (era) e sua qualificação (dos poetas) – justamente a de submissão daquela a esta. A poesia desempenharia aí função tradicionalmente atribuída à filosofia26.

O que caracterizaria os poemas de tal período é o fato de que não só se lida com acontecimentos de linguagem, mas também que a poesia se arroga a tarefa de se pensar e assim pensar o pensamento – decretando, por exten-são, o fim da filosofia. Ora, isso supõe que o poema construa uma resposta à pergunta seminal “o que é pensar”, e que a conduza segundo seus próprios

24 Cf. Lacan, Jacques. “Simbólico, Imaginário e Real”. In: Os Nomes do Pai. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012, e Le séminaire XXII R.S.I (idem, Paris: Revue Ornicar, 1974). La-can passou do privilégio do simbólico ao do Real. Consultar Roudinesco, E., & Plon, M. Dicionário de psicanálise. Tradução Vera Ribeiro e Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.755. Um diferendo em relação a Badiou seria a recusa deste em compreender o inconsciente estruturado como linguagem – o que engessaria a teoria do acontecimento, ou seja, da pura multiplicidade.

25 Badiou, Alain. Que pense le poème. Paris: Nous, 2016.

26 Ibidem, p.29-31.

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recursos. De maneira “intrapoética”, a poesia disponibiliza “máximas de pen-samento” segundo as quais a poesia ela mesma se indica como o “pensamento em geral”. Surgem os “poemas do método”27.

Fernando Pessoa propunha a metafísica sem metafísica, ao passo que um de seus heterônimos, Alberto Caeiro, postulava que fazia prosa dos próprios ver-sos28. O anúncio de que o pensamento-poema rompe com seu suporte, a saber, o poema, indicaria o término de tal era. Como a sofística, o poema seria um não-pensamento apresentado na potência linguística de um pensamento possí-vel. A hipótese de um pensamento do poema implica um pensamento não se-parado do sensível, “que não se pode discernir ou separar como pensamento”29.

Badiou acredita que o momento contemporâneo situa a filosofia “(...) em equidistância em relação à intemporalidade histórica do matema e à tempo-ralidade a-histórica do poema”30, evitando tanto a sutura a suas condições quanto as grandes narrativas. Todo comentário poético pode ser formalizado e passa por uma organização de categorias, eis o esclarecimento filosófico, expe-diente que não pretende rivalizar com o poema enquanto acontecimento, di-visor de águas produtor de subjetividade. Por fim, contrariamente a tradições filosóficas que diagnosticam a identidade da filosofia com os malogros histó-ricos do século XX31, Badiou retoma o gesto racional de nomeação em função daquilo que ultrapassa e gera o sujeito. A poesia é um desses acontecimentos.

Que se pense na pedra no meio do caminho, no meio da vida, inesque-cível momento que mal se deixa simbolizar, duro. Ou, ainda, na máquina do mundo, rejeitada em sua magnitude e deixando pedregoso caminho a se trilhar. Nos versos de “Em busca da poesia” segue-se a disciplina de calar a mágica das evocações e projeções egóicas, tipicamente confessionais e reifi-cantes, para se entrever toda a potência de nomeação da linguagem. Já em

“Consideração sobre o poema” tem-se a certeza da eternidade dos versos, para além da apreensão do objeto por parte do sujeito. Toda essa miríade de inter-pretações são elegante e apaixonadamente trazidas por Alain Badiou.

27 Ibidem, p.31-32, 39.

28 Apud ibidem, p.11 e 39.

29 Ibidem, p.39 e 65.

30 Ibidem, p.11.

31 Idem, O Século. Tradução Carlos Silveira Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2007.

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Entrevista

Gustavo Chataignier: Bom dia, professor Badiou. Agradeço-lhe muito ter me recebido, é uma honra e estou muito contente. Tomei algumas notas segundo leituras que tenho feito ultimamente.

Alain Badiou: Como escreveu, você foi pego na relação entre a filosofia e a poesia.

GC: Haveria muitas questões a lhe fazer. Porém, seguindo as anotações, gosta-ria de começar por perguntas mais gerais, antes de fazer as mais diretamente ligadas à poesia de Carlos Drummond de Andrade.

Badiou: Eu que lhe agradeço. Pode começar.

GC: Bem, sabe-se que sua filosofia é marcada por dois gumes, o uso neces-sário do matema e do poema. O uso das matemáticas enquanto ontologia subtrativa acarreta consequências filosóficas por vezes não vistas pelos mate-máticos. Isso visa a fazer justiça aos múltiplos, sem que se lhes imponha um dever ser, múltiplos estes desprovidos de nome e que aparecem para nós. Seu dever não seria outro senão mostrar o que surge.

Em uma disciplina sobre filosofia francesa, tenho mostrado aos alunos algumas ideias de Rancière, Deleuze e, claro, suas. Nesse exercício, disse-me que a teoria do vazio seria uma filosofia da alteridade. O matema, no seu corpus teórico, poderia ser o fiador de uma lógica da alteridade? Enfim, você se vê como um filósofo da alteridade?

Badiou: Da alteridade? Sim, quer dizer, de uma certa maneira, a questão da alteridade é uma questão totalmente importante para mim. Então, será que sou um filósofo da alteridade? Pode-se vê-lo, mas no quadro de uma teoria do múltiplo, a questão da alteridade é posta da maneira mais desnuda, a mais essencial. Pois, na realidade, o que diferencia duas multiplicidades? É sempre um problema muito complicado.

E você tem razão ao dizer que, originalmente, a única verdadeira alterida-de no interior da teoria do múltiplo é o vazio. O vazio é o ponto de alteridade, em função do qual se define a própria multiplicidade. Portanto, diria que sim, talvez um teórico da alteridade – caso seja um teórico da relação entre multiplicidade plena e vazio, é certo. Ontologicamente, de um certo modo, é minha maneira de tratar a dupla ser e nada e, portanto, o fundamento

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ontológico de toda alteridade, finalmente. Além disso, é um primeiro re-gistro. Além do mais, há um outro registro meu sobre a alteridade, que jaz justamente na questão do acontecimento. Posto que o acontecimento se dá em relação a uma situação, alguma coisa que não está na situação, mas que chega a ela. A alteridade, então, aí, se dá entre ser e chegar, é a se produzir. E portanto se diria, por fim, para resumir tudo disso, que em minha teoria há duas abordagens da teoria da alteridade.

A primeira, ao nível ontológico puro, entre multiplicidade plena e vazio; a segunda, ao nível das verdades, entre situações múltiplas e acontecimentos.

GC: Obrigado. Uma outra questão. Em um certo sentido, sua teoria poderia dar prosseguimento à teoria crítica, tal como definida por Horkheimer nos anos 30. Creio que luto contra algo, pois estou a par da existência de distin-ções necessárias e de filiações filosóficas. Em Lógicas dos mundos você fala de uma nova dialética. Mas será que os procedimentos de verdade, em um só tempo locais e universais, não poderiam justamente se aproximar do projeto crítico de Horkheimer e de Adorno, de modo que uma crítica marxista possa se alimentar de outros saberes? O que você pensa, quer seja de aproximações voluntárias ou então quer seja da tradição da teoria crítica?

Badiou: Creio que o que digo, o que seria a minha discordância com Ador-no, é que ele atribui à negatividade uma positividade que não reconheço enquanto tal. Ele chama sua dialética de dialética negativa, é a negatividade. Portanto, há nele a convicção de que a troca da dialética é a negatividade. No entanto, para mim, a mudança do ser dialético, isso não é a negatividade. É a possibilidade afirmativa que libera a negatividade. Isso não é a mesma coisa.

Exatamente como, para mim, a verdade não é o acontecimento. É uma confusão frequentemente feita em uma interpretação americana de meu pen-samento. E ainda assim existem aqueles que criaram o conceito de aconteci-mento-verdade, com hífen.

Ora, essa não era minha orientação. Minha orientação é, ao contrário, apreender que o acaso de acontecimento [événementiel] se encontra na origem do possível procedimento de verdade, o qual é uma construção afirmativa. E há diversas análises de Adorno que acho muito interessantes. Claro, há uma proximidade, evidentemente. Há uma proximidade dialética que tem relação com o marxismo, várias coisas.

Acho que há uma diferença metafísica, se posso assim dizer, entre ele e eu que trata da posição exata da negatividade no processo, em todos os

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processos, o processo de conhecimento, mas também o postulado da criação da arte etc. Portanto, não passaria por minha cabeça chamar minha teoria de teoria crítica. Eu a chamaria, antes, de uma teoria afirmativa.

GC: Entendo. No sentido em que a crítica seria incapaz de afirmar algo.

Badiou: Exatamente. Ela criaria obstáculos à questão da afirmação. Nos proble-mas políticos contemporâneos, totalmente contemporâneos, mesmo no que se passa aqui, há uma negatividade potente, mas o que não existe é a afirmação? É a capacidade de criar efetivamente a visão de nosso mundo. Penso que a fra-queza da dialética de Adorno é de, no fundo, ser esquerdista, digamos. Quer dizer, negativa demais, demasiadamente do lado da potência da negação.

GC: Falta-lhe um pouco de poesia, talvez? Sim, pois a poesia é a tentativa de uma nova afirmação na língua, de fazê-la circular de outra maneira.

Badiou: Exatamente. Porque a poesia é de fato a tentativa de fazer circular uma nova afirmação na língua.

GC: De fazer circular um outro nome.

Badiou: E de fazer a afirmação de alguma coisa na língua, da qual se pensava que a língua não era capaz. Portanto isso não é atravessar o sentido da língua. Isso é uma pura afirmação.

GC: Atravessar a teoria do sentido?

Badiou: Exatamente.

GC: Bom, isso seria um pano de fundo, diria. Na verdade, presumo que você não seja próximo a esses poemas. Poderia soar um tanto estranho falar deles sem os ter lido. Proponho-lhe de ler alguns fragmentos, ou alguns poemas, para em seguida interpretá-los.

Badiou: Vê-se ser um grande poeta.

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GC: Nos anos 30, ele fez sua entrada marcante no meio poético, com um poe-ma que está na página 21, “No meio do caminho” 32. Não entendo por que se colocou a primeira pessoa do singular [na tradução francesa]. Não há “eu” em português. Não há pronomes pessoais, isso modifica o poema. Ele tem uma destinação aberta, parece-me, digo mesmo sem ser francês, há essa impressão.

Ele fez tal entrada magistral. Não sei se é o fim da era dos poetas.

Badiou: Sim, será um epígono em língua portuguesa.

GC: Podemos ler “No meio do caminho”. Eu lhe cito: “o pensamento assina-lado à residência, sem ponto de visão, do puro haver”33. O que há é algo que resiste. Não sei se é um poema do desaparecimento, me soa como um poema da impossibilidade de se dizer que, não obstante, não cessa de dizer.

Badiou: Eu vejo… Será que, na frase, há mesmo a palavra “acontecimento”? Como é em português?

GC: Acontecimento.

Badiou: Porque eu o leio imediatamente como um poema do acontecimento. Sim, sim, pois, de início, é no meio do caminho. Um pouco como um acon-tecimento, que frequentemente se diz ter chegado no meio da via, aleatório.

Isabelle Vodoz: Ele pensava em Dante? Eu estava pensando em Dante.

Badiou: Mas lá também, lá também. E creio que o meio do caminho de Dante é o meio do caminho da vida. Sim, dessa maneira. Portanto, no meio do ca-minho da vida, eu tinha uma pedra, havia uma pedra no meio. Então, o que há? No fundo, há o poema.

Pois o poema, seus quatro primeiros versos, são no meio do caminho, tinha uma pedra. Não há nada além disso que diz, nada além. Sente-se bem

32 “No meio do caminho tinha uma pedra/ Tinha uma pedra no meio do caminho/ Tinha uma pedra/ No meio do caminho tinha uma pedra/ Nunca me esquecerei desse acontecimento/ Na vida de minhas retinas tão fatigadas/ Nunca me esquecerei que no meio do caminho/ Tinha uma pedra/ Tinha uma pedra no meio do caminho/ No meio do caminho tinha uma pedra” (p.16). Todas as referências às poesias de Carlos Drummond de Andrade, em português, se encontram no volume Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

33 Badiou, Alain. Que pense le poème?, op. cit., p.48.

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que a repetição do dizer significa que algo não chega a ser dito. E após? Ja-mais me esquecerei desse acontecimento, acontecimento [em português no original]. Em seguida, se volta como no começo. Jamais esquecerei que no meio do caminho... Portanto, no fundo, primeiramente, existe a ideia de que isso ocorre no meio da vida, que não se pode esquecer. É o segundo tema. O terceiro, que não se pode dizê-lo, já que não se pode dizer que eu tinha uma pedra, eu tinha uma pedra. Quer dizer o quê? Que havia um obstáculo. Havia alguma coisa de compacto. Logo, para mim, é o impossível do acontecimento.

Veem-se todos os aspectos, incluindo o fato de que, no fundo, a única coisa que se pode fazer do acontecimento é uma criação que lhe será fiel. E aí, jamais esquecerei esse acontecimento. É a fidelidade totalmente só, a fi-delidade perfeita. Portanto, encontram-se todas as categorias. Eis porque me toca tanto. É no meio da vida. É algo da ordem do acontecimento que ocorre. É alguma coisa da qual não se pode encontrar nome propriamente dito. Eu tinha uma pedra. Ademais, é a ideia segundo a qual era eu que a tinha. Por-tanto, é o sujeito, o “eu”.

IV: Você diz que não há pronomes pessoais? Ok, mas como é o verbo?

GC: “Tinha” uma pedra no meio do caminho. Não é “eu tinha” uma pedra.

Badiou: Mas com certeza não me esquecerei desse acontecimento exterior. Lá há o “eu”

IV: Isso muda tudo.

Badiou: Isso muda, mas é o único pronome pronunciado.

GC: E só ocorre no fim.

Badiou: Isso mesmo. Exatamente como na minha teoria. O acontecimento produz a possibilidade do sujeito. Não é o sujeito que é anterior ao aconteci-mento. Por fim, ele se constitui como sujeito no poema. Você tem razão. Não se deve colocar o pronome pessoal senão onde ele se encontra.

GC: Ainda que, em francês, sempre haja esse hábito.

Badiou: Sim, sim, claro. Eis aqui. Eu creio que é isso. É o êxito diante do fato de que no meio do caminho da vida me constituí na impossibilidade de

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esquecer que havia uma pedra. Isso. Pedra é o nome anônimo de qualquer coisa que existiu nesse momento, no meio do caminho da vida, cuja única coisa que posso fazer é o quê? Um poema.

GC: É escrever.

Badiou: Sim, escrever.

GC: O poema é um acontecimento na linguagem.

Badiou: Escrever é um acontecimento na linguagem. Torna-se um aconteci-mento na linguagem. O poema conta que no meio do caminho a vida, ocor-reu alguma coisa da qual não posso fazer nada senão um poema. Contá-la.

CG: Quem o diz é um sujeito.

Badiou: Exato. É uma subjetividade dura que não pode fazer nada, senão ser fiel, no momento em que houve a pedra no caminho. Agradeço-lhe de me ter comunicado esse poema.

GC: Eis o título dessa antologia [francesa], A máquina do mundo34. De alguma

34 “E como eu palmilhasse vagamente/ uma estrada de Minas, pedregosa,/ e no fecho da tarde um sino rouco/ se misturasse ao som de meus sapatos/ que era pausado e seco; e aves pairassem/ no céu de chumbo, e suas formas pretas/

lentamente se fossem diluindo/ na escuridão maior, vinda dos montes/ e de meu próprio ser desen-ganado,/ a máquina do mundo se entreabriu/ para quem de a romper já se esquivava/ e só de o ter pensado se carpia./ Abriu-se majestosa e circunspecta,/ sem emitir um som que fosse impuro/ nem um clarão maior que o tolerável/ pelas pupilas gastas na inspeção/ contínua e dolorosa do deserto,/ e pela mente exausta de mentar/ toda uma realidade que transcende/ a própria imagem sua debuxa-da/ no rosto do mistério, nos abismos./ Abriu-se em calma pura, e convidando/ quantos sentidos e intuições restavam/ a quem de os ter usado os já perdera/ e nem desejaria recobrá-los,/ se em vão e para sempre repetimos/ os mesmos sem roteiro tristes périplos,/ convidando-os a todos, em coorte,/ a se aplicarem sobre o pasto inédito/ da natureza mítica das coisas,/ assim me disse, embora voz alguma/ ou sopro ou eco ou simples percussão/ atestasse que alguém, sobre a montanha,/ a outro alguém, noturno e miserável,/ em colóquio se estava dirigindo:/ “O que procuraste em ti ou fora de/ teu ser restrito e nunca se mostrou,/ mesmo afetando dar-se ou se rendendo,/ e a cada instante mais se retraindo,/ olha, repara, ausculta: essa riqueza/ sobrante a toda pérola, essa ciência/

sublime e formidável, mas hermética,/ essa total explicação da vida,/ esse nexo primeiro e singu-lar,/ que nem concebes mais, pois tão esquivo/ se revelou ante a pesquisa ardente/ em que te con-sumiste... vê, contempla,/ abre teu peito para agasalhá-lo.”/ As mais soberbas pontes e edifícios,/ o que nas oficinas se elabora,/ o que pensado foi e logo atinge/ distância superior ao pensamento,/ os recursos da terra dominados,/ e as paixões e os impulsos e os tormentos/ e tudo que define o

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maneira, esse poema retoma a figura da pedra como pedra de toque, como acontecimento. Tive dificuldades porque há várias maneiras de se interpretar o que pode ser essa pedra ou essa máquina.

Porque, pode-se indagar, o que há de afirmativo ali, senão o poema? Creio ser um acontecimento de linguagem pois, precisamente, retoma a má-quina do mundo, tema já escrito por Dante, vocês têm completa razão, por um outro poeta português, Camões, que inspirou Fernando Pessoa, que você conhece muito bem.

Badiou: Consultei bastante Camões por causa de Pessoa.

GC: Pessoa tentou refazer o gesto camoniano e até Joyce retomou esse mito da Renascença, segundo o qual o mundo é uma máquina com engrenagens que se ligam umas às outras. Dito isso, o poema foi publicado em um livro cujo título é belo, Claro enigma (1951). É talvez uma definição da poesia.

Badiou: Sim, claro.

GC: O que ocorre é que há alguém que anda sem prestar muito atenção, no início.

Badiou: A estrada com pedras... É bem complicado, não? É preciso que eu leia e que lhe escreva o que penso. É um poema magnífico. Aqui ainda estou verdadeiramente contente de, graças a você, conhecer esse poema.

Abordar um novo poeta é sempre um assunto delicado. É preciso não fazer como o personagem e abaixar os braços. Poderíamos dizer que todo o

ser terrestre/ ou se prolonga até nos animais/ e chega às plantas para se embeber/ no sono ran-coroso dos minérios,/ dá volta ao mundo e torna a se engolfar/ na estranha ordem geométrica de tudo,/ e o absurdo original e seus enigmas,/ suas verdades altas mais que tantos/ monumentos erguidos à verdade;/ e a memória dos deuses, e o solene/ sentimento de morte, que floresce/ no caule da existência mais gloriosa,/ tudo se apresentou nesse relance/ e me chamou para seu reino augusto,/ afinal submetido à vista humana./ Mas, como eu relutasse em responder/ a tal apelo assim maravilhoso,/ pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,/ a esperança mais mínima — esse anelo/ de ver desvanecida a treva espessa/ que entre os raios do sol inda se filtra;/ como defuntas crenças convocadas/ presto e fremente não se produzissem/ a de novo tingir a neutra face/ que vou pelos caminhos demonstrando,/ e como se outro ser, não mais aquele/ habitante de mim há tantos anos,/ passasse a comandar minha vontade/ que, já de si volúvel, se cerrava/ semelhante a essas flores reticentes/ em si mesmas abertas e fechadas;/ como se um dom tardio já não fora/ apetecível, antes despiciendo,/ baixei os olhos, incurioso, lasso,/ desdenhando colher a coisa oferta/ que se abria gratuita a meu engenho./ A treva mais estrita já pousara/ sobre a estrada de Minas, pedrego-sa,/ e a máquina do mundo, repelida,/ se foi miudamente recompondo,/ enquanto eu, avaliando o que perdera,/ seguia vagaroso, de mãos pensas” (Drummond, 2002, p.301-305).

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poema é a própria máquina, finalmente. É um dispositivo. O poema conta que ele se desvia disso e cria uma subjetividade um tanto disponível, um pouco vazia, as mãos pensas, retoma seu caminho e o segue.

É aí também a imagem da recusa do acontecimento. Se dissermos que a abertura do mundo foi o que se produziu, dessa vez no caminho da vida, é também um acontecimento. Algo ocorreu ali e finalmente ele, em pensamento, o recusa. A passagem na qual se descreve a recusa é bastante complicada. É preciso analisar de muito perto. Tanto que, ao final, parece haver, apesar de tudo, um remorso a respeito da recusa.

GC: Ele parece não decidir.

Badiou: Sim, e tampouco tem certeza. Muito, muito complexa, a figura sub-jetiva é muito complexa. Aí então, efetivamente, retoma-se um pouco o outro poema. Porque é ainda a ideia de que no meio do caminho algo ocorre. Não é alguma coisa que chega no primeiro poema, é um pouco a figura de um obstáculo. A pedra: luta-se contra a pedra. O caminho é também pedregoso. Há mais pedras. O que ocorre aqui é uma revelação. É o mundo que se abre, se oferece, se dá a ele, em sua totalidade. Ele não quer a totalidade, continua seu caminho. A criação passa ao largo, sim.

É um poema sobre a revelação e o inapropriável, do qual é preciso se desviar. Em todo caso, nessa subjetividade, se desvia. E aí, existe apesar de tudo um elemento como algo explícito da negação, quer dizer, alguma coisa que ocorre que não faz necessariamente acontecimento. Deve-se decidir se é da ordem do acontecimento ou não. Dizer isso é o momento no qual o sujeito decide sobre o acontecimento enquanto acontecimento. Quer dizer, o acontecimento aí, efetivamente, seria o que abriria o mundo. E se se o recusa, o mundo se fecha, é porque ele continuará a ser o que era. Continua-se o caminho pedregoso. É isso, muito interessante.

Uma vez mais uma teoria do sujeito, na verdade, uma teoria do sujeito em sua capacidade, incluindo a de recusar a oferta que lhe é feita como aconteci-mento de um encontro total. Tenho a impressão que talvez haja nesse poema o tema de uma recusa da totalidade. Apenas algo assim, que a totalidade não é o objeto de seu desejo.

GC: Acho que é como a epígrafe desse livro, Claro enigma, na qual ele colo-cou um verso de Paul Valéry. Ele utiliza um termo que lhe é caro. Mas creio que em outro sentido. Ele diz isso: “os acontecimentos me entediam” [les

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événements m’ennuient, em francês no original], mas não entendo que seja o acontecimento como corte, me parece. Mas talvez seja a busca do dia a dia, a moda ou ainda a teleologia etc.

Badiou: Sim, acho. São os acontecimentos no sentido fraco, no sentido do inglês event. Ok, é sempre o problema com o inglês. Isso não quer dizer de maneira alguma aquilo que o termo acontecimento [événement] quer dizer. É em seu sentido de evento que se fala.

IV: São os organizadores de evento.

Badiou: Event, para os ingleses, quer dizer uma noitada organizada, toda produ-zida, uma exposição de pintura, uma festa, um happening. Tudo isso. Muito pelo contrário, é algo totalmente organizado que ocorre e que não corta. Além disso, quando traduzem minha obra, colocam esse termo, e há algo que não funciona.

GC: Além desses dois grandes poemas, existem muitos outros. Mas há dois so-bre o que talvez seja a poesia e mais dois sobre o acontecimento enquanto amor, o acontecimento na vertente dos procedimentos amorosos. “Procura da poesia”.

Badiou: Onde está? “Procura da poesia” 35.

GC: Sim. Toda uma séria de negações. Seriam os interditos da poesia moderna.

35 “Não faças versos sobre acontecimentos./ Não há criação nem morte perante a poesia./ Diante dela, a vida é um sol estático,/ não aquece nem ilumina./ As afinidades, os aniversários, os inciden-tes pessoais não contam./ Não faças poesia com o corpo,/ esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica./ Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro/ são indiferentes./ Não me reveles teus sentimentos,/ que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem./ O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia./ Não cantes tua cidade, deixa-a em paz./ O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas./ Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma./ O canto não é a natureza/ nem os homens em sociedade./ Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam./ A poesia (não tires poesia das coisas)/ elide sujeito e objeto./ Não dramatizes, não invoques,/ não indagues. Não percas tempo em mentir./ Não te aborreças./ Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,/ vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família/ desaparecem na curva do tempo, é algo impres-tável./ Não recomponhas/ tua sepultada e merencória infância./ Não osciles entre o espelho e a/ memória em dissipação./ Que se dissipou, não era poesia./ Que se partiu, cristal não era./ Penetra surdamente no reino das palavras./Lá estão os poemas que esperam ser escritos./ Estão paralisados, mas não há desespero,/ há calma e frescura na superfície intata./ Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário./ Convive com teus

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Badiou: Mas ele não faz versos sobre o acontecimento. Ele começa assim. E depois “não há criação nem morte diante da poesia”! Nem acontecimento, nem corpo, nem sentimentos.

GC: É talvez uma busca do nada. É muito difícil de colocá-lo em uma forma, pois é o poema que de alguma maneira nos interpela e em seguida tentamos lê-lo.

Badiou: Então, como você o interpreta?

GC: Creio que ele quer negar uma certa magia da linguagem, ou algumas evo-cações, como se com um nome próprio se pudesse evocar imediatamente uma realidade ou o passado. Ele quer negar o senso comum e termina com o des-prezo das palavras. Mas antes diz “penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos”. Como se fosse uma ascese à ideia.

Badiou: Um poema não é nem uma confissão, nem uma descrição, e tampouco uma descrição objetiva. A máxima do poeta é, apesar de tudo, difundir objetos. Então aí se sente a ideia. Uma ideia que é uma teoria da linguagem, digamos. Uma teoria da linguagem, como o fato de que a linguagem é o lugar absoluto do poema e de que não é preciso orientar esse lugar, nem do lado da objetivi-dade externa, nem do lado de uma suposta interioridade. O poema se encontra lá, na linguagem enquanto tal.

É a proposição de uma ascese poética absoluta, uma ascese que faria com que o poema se estabelecesse nas palavras sem ter de ligá-las a uma exterioridade ou a uma interioridade vinda de fora, de alguma maneira. Ela é também uma espécie de indiferença da linguagem. O poema deve captar a linguagem em sua indiferença, quer seja a nominação de uma exterioridade, quer seja a revelação de uma interioridade. Esse cuidado, primeiramente. E só assim que o poema dirá algo de seu criador.

poemas, antes de escrevê-los./ Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam./ Espera que cada um se realize e consume/ com seu poder de palavra/e seu poder de silêncio./ Não forces o poema a desprender-se do limbo./ Não colhas no chão o poema que se perdeu./Não adules o poema. Aceita-o/ como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada/ no espaço./ Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta,/pobre ou terrível que lhe deres:/ Trouxeste a chave?/ Repara:/ ermas de melodia e conceito/ elas se refugiaram na noite, as palavras./ Ainda úmidas e impregnadas de sono,/ rolam num rio difícil e se transformam em desprezo” (Ibidem, p.117-118).

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Porque se ele se refere a uma exterioridade ou uma interioridade, será capturado, de algum modo, fora de si, enquanto a poesia seria algo que se mantém na potência da linguagem enquanto tal e se conserva nos dois extre-mos subjetivo e objetivo. No fundo, isso evita que o poema se torne escravo daquilo que ele não é. Finalmente, o poema seria a revelação da linguagem enquanto tal. Sua potência intrínseca.

GC: Essa afirmação necessita, portanto, de uma negação.

Badiou: Sim, exato. Há um lado Mallarmé, diria. Há manifestamente um lado mallarmeano. Mas penso em Mallarmé no acaso vencido, palavra por pala-vra. É uma de suas definições do poema. Então, isso pode ser o acaso dos acontecimentos. Pode ser o acaso das impressões. Mas, palavra por palavra, é preciso levar daí uma vitória, contra. E finalmente também quando diz que o poema permanece só. Mas é bem próximo disso, ocorre só.

GC: Um outro poema, um pouco parecido, “Consideração do poema”36.

Badiou: Novamente aí, a pedra no meio do caminho.

36 “Não rimarei a palavra sono/ com a incorrespondente palavra outono./ Rimarei com a palavra carne/ ou qualquer outra, que todas me convém./ As palavras não nascem amarradas,/ elas saltam, se beijam, se dissolvem,/ no céu livre por vezes um desenho,/ são puras, largas, autênticas, inde-vassáveis./ Uma pedra no meio do caminho/ ou apenas um rastro, não importa./ Estes poetas são meus. De todo o orgulho,/ de toda a precisão se incorporaram/ ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinícius/ sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo./ Que Neruda me dê sua gravata/ chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski./ São todos meus irmãos, não são jornais/ nem des-lizar de lancha entre camélias:/ é toda a minha vida que joguei./ Estes poemas são meus. É minha terra/ e é ainda mais do que ela. É qualquer homem/ ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna/ em qualquer estalagem, se ainda as há./ — Há mortos? há mercados? há doenças?/ É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,/ por que falsa mesquinhez me rasgaria?/ Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugas./ O beijo ainda é um sinal, perdido embora,/ da ausência de comércio,/ boiando em tempos sujos./ Poeta do finito e da matéria,/ cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,/ boca tão seca, mas ardor tão casto./ Dar tudo pela presença dos longínquos,/ sentir que há ecos, poucos, mas cristal,/ não rocha apenas, peixes circulando/ sob o navio que leva esta mensagem,/ e aves de bico longo conferindo/ sua derrota, e dois ou três faróis,/ últimos! espe-rança do mar negro./ Essa viagem é mortal, e começá-la./ Saber que há tudo. E mover-se em meio/ a milhões e milhões de formas raras,/ secretas, duras. Eis ai meu canto./ Ele é tão baixo que sequer o escuta/ ouvido rente ao chão. Mas é tão alto/ que as pedras o absorvem. Está na mesa/ aberta em livros, cartas e remédios./ Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,/ o uniforme de colégio se trans-formam,/ são ondas de carinho te envolvendo./ Como fugir ao mínimo objeto/ ou recusar-se ao grande? Os temas passam,/ eu sei que passarão, mas tu resistes,/ e cresces como fogo, como casa,/ como orvalho entre dedos, na grama, que repousam./ Já agora te sigo a toda parte,/ e te desejo e te perco, estou completo,/ me destino, me faço tão sublime,/ tão natural e cheio de segredos,/ tão firme, tão fiel… Tal uma lâmina,/ o povo, meu poema, te atravessa” (Ibidem, 115-116).

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GC: É uma fixação.

Badiou: Encontra-se a mesma coisa. Aí, em particular, vejo o começo da úl-tima estrofe. Como escapar ao menor dos objetos? Em seguida, depois, os temas [sujets] passam. Não se encontra, de todo modo, nem sujeito, nem objeto. Sim, sei que passam, mas tu, tu resistes. É o poema. O poema deve escapar ao menor dos objetos. Como vai se livrar, como vai evitar de passar como passam os temas [sujets]. Perdi tudo, estou completo, me destino a isso.

GC: Não é um elogio à morte, mas à idealidade do poema.

Badiou: Não é de forma alguma a apologia da morte. Aí, efetivamente, é no-vamente a ideia de que o poema é habitado pela linguagem como totalidade autossuficiente. Saber que há tudo, isso na linguagem. Saber que existe tudo e se mover em meio a milhões e milhões de formas raras, secretas, duras. Portanto o poema se estabelece na capacidade da própria linguagem a car-regar milhões e milhões de formas. Apenas a palavra forma as formas raras. Como se diz em português?

GC: Formas raras [em português no original].

Badiou: Quase a mesma coisa. Penso que é uma outra maneira de se dizer que se encontraram, na verdade, as mesmas orientações. O poema não deve ser nem descrição, nem introspecção e subjetividade. No fundo, ele deve se estabelecer na linguagem como se estabelece em um milhão de formas raras, quer dizer, na fonte das formas belas, raras, secretas, duras. É o lado pedra no meio do caminho.

GC: Obrigado, professor. E para terminar, há dois poemas. Um foi traduzido nessa antologia à página 217, e se chama “Memória”37.

Badiou: Esse é sutil, é muito, muito elíptico. Penso como você que é o pro-cedimento amoroso do qual é questão, sub-repticiamente. Sem alusão direta, mas do procedimento amoroso em uma figura de seu passado. Algo que foi perdido. É a primeira coisa, amar o perdido.

37 “Amar o perdido/ deixa confundido/ este coração./ Nada pode o olvido/ contra o sem sentido/ apelo do Não./ As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis/ à palma da mão./ Mas as coisas findas,/ muito mais que lindas,/ essas ficarão” (Ibidem, p.252).

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Há a ideia de que o esquecimento é ineficaz, na segunda estrofe. A pri-meira estrofe explica que, se houve um procedimento amoroso perdido, se continua a amá-lo, se continua a amar o amor, de uma certa maneira, enquan-to perdido e, em uma confusão, o esquecimento é ineficaz. O procedimento amoroso não pode ser esquecido, mesmo diante do absurdo desafio do não, da negação. O que era da ordem do sensível desaparece. Terceira estrofe. To-davia, as coisas permanecem. Então, aí, o que é? As coisas findas, para além da beleza. É um pouco o enigma.

IV: Escute, acontece que achei por acaso esse poema absolutamente extraordi-nário. É isso com os três últimos versos. Na página 226, “Amor e seu tempo”.

Badiou: Sim, isso. É um soneto. Olhe só essa descoberta! Então vou lê-lo, esse pequeno poema. Mas acho que é isso. É a memória do amor. Que no fim das contas o coração está abalado pelo fato de que foi perdido. Portanto, o que foi perdido não deveria mais ser, mas, apesar de tudo, ainda é. Memória. E então? Ele tenta saber o que é o conteúdo real dessa memória. Ele diz que essa memó-ria não é feita por episódios, não é. Não é o sensível ele mesmo. É o para além da beleza. É uma ideia perfeita. Essa ideia perfeita permanece para sempre.

Então, agora, “Amor e seu tempo” 38. “O amor é o privilégio de maduros”. Isso nos convém perfeitamente! “Estendidos na mais estreita cama” se modifi-ca para camadas verdejantes por todo corpo. Isso vale o “ganho não previsto”. Isso é muito bonito, o ganho não previsto, trata-se do inesperado. É, aliás, também da ordem do acontecimento. É o encontro “subterrâneo e coruscante”.

É muito belo o amor e o que se aprende no limite. Fantástico. É preciso arquivar todo o saber, decriptá-lo. Está para além de todo o saber, é a dimen-são de acontecimento do pensamento, de sua novidade radical. E o amor começa tarde. Isso me lembra a definição de filosofia dada por Hegel, a coruja de Minerva. O amor começa como acontecimento, além de todas as conside-rações ordinárias. É por isso que é privilégio de gente madura.

GC: Será que se pode ser maduro com vinte anos?

38 “Amor é privilégio de maduros/ estendidos na mais estreita cama,/ que se torna a mais larga e mais relvosa,/ roçando, em cada poro, o céu do corpo./ É isto, amor: o ganho não previsto,/ o prêmio subterrâneo e coruscante,/ leitura de relâmpago cifrado,/ que, decifrado, nada mais existe/ valendo a pena e o preço terrestre,/ salvo o minuto de ouro no relógio/ minúsculo, vibrando no crepúsculo./ Amor é o que se aprende no limite,/ depois de se arquivar toda a ciênciaherdada, ouvida. Amor começa tarde” (Ibidem, p.728).

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IV: Sim, depende. Tenho tendência a pensar que no mais das vezes é na ver-dade um recasamento que o ensina. Talvez o primeiro amor seja mais difícil de se administrar. Penso, de uma certa maneira, sim, bem tarde, mais tarde. É interessante, mas pode ser tarde. O tarde pode ser jovem, ainda assim.

GC: Sim, depende do encontro. Há um filósofo americano que faleceu há pouco, Stanley Cavell.

Badiou: Ele escreveu sobre as comédias de recasamento, sim, sim. Há filmes, não, livros, sobre esse tema. Pode ser mais autêntico, mais interessante. E o poema diz mais ou menos algo assim.

GC: Obrigado, professor. Bem, poderia passar horas com vocês, mas o pro-grama foi cumprido.

Badiou: Foi maravilhoso para mim porque é apaixonante. É apaixonante de fato e é verdade que isso orbita em torno, de maneira essencial, da apreensão do acontecimento. Há dois pontos de acontecimento. A pedra no meio do ca-minho, por fim, de alguma maneira. E por outro lado, a autonomia absoluta do poema. E assim, a poesia é a ligação entre ambos. O elo entre o que é da ordem do acontecimento e a autonomia absoluta da linguagem. Como a autonomia absoluta da linguagem pode ser suscitada pela pedra no meio do caminho, e é preciso não confundir isso com um saber sobre a totalidade, isso está baseado sobre a máquina do mundo.

GC: É preciso, no entanto, se apartar dos sofistas e dos mecanicistas.

Badiou: Exatamente.

IV: Percebo relações também com Celan. Apoiar-se nas inconsistências.

Badiou: Há relações também.

GC: É preciso não se apoiar na máquina.

Badiou: Mas precisamente sobre as inconsistências, sobre a fragilidade. Talvez sobre o obstáculo puro, as pedras no meio do caminho. Isso basta, não neces-sito que se abra a máquina do mundo.

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