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Textos de apoio 3º módulo: Cultura e Educação
intersecção e limites
20 e 21 de maio
Danilo Santos de Miranda
Lydia Hortélio
Ana Mae Barbosa
Sesc São José dos Campos
Fundação Cultural Cassiano Ricardo
2014
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Quando cultura e educação se aproximam Danilo Santos de Miranda
O que significa sublinhar a aproximação entre cultura e educação? Quais as
acepções que damos à cultura e à educação quando apontamos essa convergência? Cabe
começar por essas definições, para em seguida indagar em quais sentidos podem ser
vislumbradas inclinações educativas nos processos culturais.
A tradição ocidental identificou a noção de cultura com significações
distintas ao longo do tempo. Desde a origem romana, atrelada ao contexto material de
“cultivo da terra”, passando pela influência helênica que acrescentou uma conotação
prospectiva ao sentido original de “cultura”, muitas apropriações conceituais se
alternaram. Dentre elas, duas ganharam destaque: a cultura pensada como estágio de
civilização e a cultura como sinônimo de cânone artístico. Ambas sugeriam uma
hierarquia segundo a qual seriam comparadas as sociedades ou as manifestações dentro
de determinado contexto.
Ao longo do século XX, o quadro tornou-se mais complexo. Amadureceu a
acepção antropológica de cultura, que diria respeito ao amplo conjunto de modos de ser,
conviver e se expressar de uma coletividade. Paralelamente, perde força a justificativa
de celebração exclusiva de um panteão de obras em detrimento de proposições
simbólicas aparentemente triviais. Por fim, consolidou-se a ideia da diversidade cultural
como valor da humanidade.
Se é verdade que o conceito de cultura ampliou-se a ponto de abarcar, além
das linguagens artísticas, manifestações ligadas a contextos tradicionais, midiáticos e
especializados, bem como as maneiras variadas (crenças, técnicas, costumes, leis etc.)
pelas quais o ser humano dá sentido ao mundo, vale prevenir que apenas uma parte
desse escopo configura-se como objeto das políticas culturais. O gestor cultural opera a
partir das expressões deliberadamente simbólicas da cultura, que vão além das fronteiras
da arte, mas que não abrangem a totalidade do campo cultural.
A cultura assim concebida aproxima-se de uma concepção expandida de
educação, não restrita a espaços, tempos e públicos específicos. Três facetas marcam o
que se denomina educação permanente: a complementaridade em relação aos processos
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educativos formais; a continuidade para além de determinadas faixas etárias; e a não-
formalidade, por meio da qual a educação manifesta de modo explícito sua intimidade
com a cultura.
É fato que o sistema escolar não detém a exclusividade no trato das
demandas educativas: há um compromisso educativo atrelado às instituições, dentre as
quais aquelas dedicadas à cultura. Centros culturais precisam, cada vez mais, se haver
com a expectativa da sociedade de encontrar, em seus espaços e programações, modos
diversos de conhecimento. Mas em quais sentidos é legítimo afirmar que a cultura
educa?
A cultura explicita sua aptidão para a educação, em primeira instância, ao
alargar o campo de possíveis dos indivíduos e coletividades. Participar da vida cultural
pode significar a proximidade com uma diversidade de expressões que favoreça
apreensões complexas da realidade. Há, aqui, potencial cognitivo, quando o resultado é
uma postura crítica em relação a modelos prévios. Além disso, a cultura é instância
possível para o encontro com o diferente pois, embora abrigue tensões evidentes, é
também terreno no qual convergências, improváveis em outras esferas, se efetivam.
Ao mesmo tempo em que há ampliação de limites, existe o convite para um refinamento
na percepção das especificidades de cada linguagem, de cada tradição, de cada material.
É comum que o convívio com a cultura estimule uma visão apurada da realidade, na
qual relações mais precisas e contextualizadas ganham evidência.
Há, ainda, uma disposição emancipatória na cultura: manter uma vida
cultural permite que indivíduos superem tanto uma visão classista de cultura, como uma
acepção idealizada do trabalho no campo do simbólico: trata-se de um processo de
desvendamento das camadas de obscuridade que cercam o debate cultural.
Se há vocação educativa na cultura, cabe por fim uma observação: uma vez
que parece cabível indagar em que medida a cultura seria convertida em mero meio ao
ser manejada como recurso para demandas sociais e econômicas, o mesmo não se aplica
à relação cultura-educação. São intrínsecos os liames que marcam tal relação, já que
eles se estabelecem pelas próprias características do campo cultural. Mas isto não pode
ficar restrito à esfera do discurso; é imperativo que se atualize em práticas, pois é dessas
práticas que a cultura se constitui.
Danilo Santos de Miranda, Diretor Regional do Sesc São Paulo, é especialista em
ação cultural. Formado em Filosofia e Ciências Sociais, foi presidente do Comitê
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Diretor do Fórum Cultural Mundial em 2004 e presidente do comissariado brasileiro
do Ano da França no Brasil em 2009. Entre suas obras, como organizador, encontram-
se: Ética e Cultura (2001), O Parque e a Arquitetura (2004), Cultura e Alimentação.
Saberes Alimentares e Sabores Culturais (2007) e Memória e Cultura. A importância
da memória na formação cultural humana (2007).
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O Presépio ou O Baile de Deus Menino:
Um Natal brasileiro Lydia Hortélio
Origem / Pesquisa e Documentação / Reconstrução/ A Festa
A experiência que aqui apresentamos tem como inspiração “O Presépio ou
O Baile de Deus Menino”, uma manifestação cultural que acontece ainda hoje na
Fazenda Grota Funda, uma comunidade rural no município de Serrinha/BA.
Este fato cultural foi documentado em imagem e som nos anos 1968-1969,
no âmbito de uma pesquisa mais ampla que registrou as festas de trabalho e de culto e
os brinquedos das mulheres, dos homens e das crianças daquela comunidade.
O culto de Deus Menino é encontrado em todo o território nacional, seja nas
Festas do Divino, durante as quais um menino é coroado “Imperador do Mundo”, seja
nas várias formas de pastoris e presépios realizados não só durante o ciclo natalino.
Tradição com profundo significado, ela é representativa da índole do povo brasileiro,
tão naturalmente afeito à criança, e pronto a ver nela a grande inspiração.
Legado português, o Presépio ou 0 Baile de Deus Menino chegou aos
nossos dias com sinais significativos das três culturas de origem, miscigenadas na
espontaneidade e bem-querer do convívio de nossos meninos ao longo dos séculos..
A pesquisa acima referida serviu de base ao projeto: ”O Presépio ou O Baile
de Deus Menino: um Natal brasileiro”, que vem sendo realizado em várias escolas
públicas e experiências em educação desde 1980, e tem como objetivo viabilizar a Festa
do Natal segundo a tradição brasileira de louvação ao Menino. Pensado a partir de uma
ideia de educação com identidade cultural, esperamos contribuir com este trabalho para
o processo de manifestação da índole e vocação verdadeira do povo brasileiro.
A presente proposta de reconstrução do presépio prevê várias atividades que
levam a trabalhar a Festa do Natal passando por um aprendizado amplo e espontâneo:
seja na experiência de alegria que acompanha sua realização; seja no aprendizado das
cantigas e loas, revestidas de música elementar e textos poéticos; no exercício de várias
linguagens plásticas como o desenho, a pintura, a modelagem que servem de suporte às
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representações da história do Menino Jesus; na confecção de adereços e acessórios dos
pastores e pastorinhas; na construção e ornamentação da lapinha; nas práticas corporais
expressivas, vividas através das danças e evoluções do Terno e na representação dos
vários personagens dos entremeios; no acompanhamento instrumental que inclui
sanfona e pandeiro, originalmente, ou suas substituições, e nas palmas características
das diversas marchas, acompanhadas pela comunidade presente durante todo o
percurso; e, finalmente, no fato extraordinário que é viver esta festa, do começo ao fim,
verdadeiro ritual de alegria que integra a comunidade escolar e as famílias das crianças,
culminando com a celebração do Natal nesta sua forma brasileira: o Baile de Deus
Menino...
Durante a preparação do Baile... a festa vai sendo tecida a cada dia, até
chegar o momento da louvação que acontece diante de uma lapinha ornada com um
Menino Jesus verdadeiro, como diria o poeta Fernando Pessoa. A presença, na lapinha,
de uma criança de verdade, nascida na comunidade, muitas vezes um irmão ou irmã de
algum pastor ou pastorinha, constitui-se, evidentemente, o foco principal do
acontecimento, motivo de muito carinho, inclusividade, alegria... virtudes estas que não
são normalmente previstas em nossos currículos, mas que precisam ser vividas,
manifestadas, se quisermos favorecer uma vida em plenitude, de beleza e encantamento,
e afirmar o movimento próprio da ALMA BRASILEIRA, em toda sua graça e pujança.
É preciso salvaguardar a infância e a juventude do nosso país, apontar caminhos para
uma educação sensível, inteligente, generosa, alegre, e encarar a vida como o espaço
sagrado de construção dos nossos sonhos.
Lydia Hortélio é formada em Música e especialista em etnomusicologia, com estudos
no Brasil, Alemanha, Portugal e Suíça. Dedica-se à pesquisa e documentação de
Cultura Popular e Cultura da Criança.
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Arte, Educação e Cultura Ana Mae Barbosa
Vivemos hoje sob o signo da Virada Cultural em todas as áreas do
conhecimento. A Virada Cultural do século XXI é consequência direta do pós-
modernismo e mostrou resultados especialmente transformadores no Ensino da Arte,
ampliando a expressão pessoal em direção à inclusão e interpretação da cultura. A
Abordagem Triangular (fazer, ler, contextualizar) foi um dos suportes desta
transformação no ensino das Artes Visuais. A AT propõe uma intimidade e uma
capacidade crítica com a imagem e a cultura que poucos podiam alcançar. Portanto, foi
modificada, desprezada, xingada, mas também usada, modificada, reinterpretada,
desconstruída e reconstruída, gerando muitas metodologias.
Somente a ação inteligente e empática do professor pode tornar a arte
ingrediente essencial para favorecer o crescimento individual e o comportamento de
cidadão como fruidor de cultura e conhecedor da construção de sua própria nação. No
ensino da arte, nenhuma abordagem metodológica dá bons resultados sem a paixão e a
ação transformadora do professor.
Portanto, os poderes públicos, além de reservarem um lugar para a arte no
currículo e se preocuparem em como a arte é ensinada, precisam propiciar meios para
que os professores desenvolvam a capacidade de compreender, conceber e fruir arte.
Sem a experiência do prazer da arte, por parte de professores e alunos, nenhuma teoria
de Arte/Educação será reconstrutora.
Em minha experiência, tenho visto que as artes visuais ainda estão sendo
ensinadas como desenho geométrico, seguindo a tradição positivista, ou continuam
sendo utilizadas principalmente numa produção estereotipada.. A chamada livre-
expressão ainda é uma alternativa melhor que as anteriores, mas sabemos que o
espontaneismo apenas não basta, pois o mundo de hoje e a arte de hoje exigem um leitor
informado e um produtor consciente. A falta de uma preparação de pessoal para
entender arte antes de ensiná-la é um problema crucial, levando-nos muitas vezes a
confundir improvisação com criatividade. Embora já exista boa produção teórica e um
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grande número de pesquisas nas universidades (mais de 200 teses) é necessário ampliar
o número de cursos de pós- graduação com linhas específicas em Arte/ Educação.
Para saber o que pensam os professores sobre a virada cultural na educação,
especialmente na Arte/Educação, aproveitei dois cursos que ministrei para professores
de arte, um em Minas (PUC-PREPES) e outro em São Paulo (NACE-NUPAE- USP), e
formulei perguntas que apontavam nas seguintes direções:
Como as mudanças no ensino/aprendizagem da arte estão sendo percebidas
pelos professores, agentes dessa mudança? Que mudanças são essas? Quais os aspectos
dessa mudança que são mais problemáticos, pouco entendíveis e mais difíceis de
implementar?
Vejamos em que sentido mudou a Arte /Educação e como as mudanças
estão sendo percebidas pelos professores:
1 - Maior compromisso com a cultura e com a história. Até os inícios dos anos 80 o
compromisso da arte na escola era apenas com o desenvolvimento da expressão pessoal
do aluno. Hoje, à livre-expressão, à Arte/Educação acrescenta a livre-interpretação da
obra de arte como objetivo do ensino.
2 - Ênfase na interrelação entre o fazer, a leitura da obra, o campo do sentido da arte de
qualquer categoria e a contextualização histórica, social, antropológica e estética do que
é lido e do que é feito.
3 - Não mais, pretende-se desenvolver, não apenas uma vaga sensibilidade nos alunos
por meio da arte, mas se aspira influir positivamente no desenvolvimento cultural dos
estudantes. Não podemos entender a cultura de um país sem conhecer sua arte.
A arte na educação, como expressão pessoal e como cultura, é um importante
instrumento para a identificação cultural e o desenvolvimento individual. Por meio da
arte é possível desenvolver a percepção e a imaginação, apreender a realidade do meio
ambiente, desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada.
4 - O conceito de criatividade também se ampliou. Pretende-se não só desenvolver a
criatividade por meio do fazer arte, mas também através das leituras e interpretações das
obras de arte.
5 - A necessidade de alfabetização visual vem confirmando a importância do papel da
arte na escola. A leitura do discurso visual, que não se resume só a uma análise de
forma, cor, linha, volume, equilíbrio, movimento, ritmo, é centrada principalmente na
significação.
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6 - O compromisso com a diversidade cultural é enfatizado pela Arte/Educação pós-
moderna. Para definir diversidade cultural, nós temos que navegar através de uma
complexa rede de termos. Enquanto os termos “Multicultural” e “Pluricultural”
significam a coexistência e mútuo entendimento de diferentes culturas na mesma
sociedade, o termo “Intercultural” significa a interação entre as diferentes culturas e este
deveria ser o objetivo da Arte/Educação interessada no desenvolvimento humano.
Ana Mae Barbosa é Prof. Titular aposentada da USP e doutora em Arte - Educação.
Atua no doutorado em ensino/aprendizagem de arte na Escola de Comunicação e
Artes/USP.