João Barcellos
UM OLHAR DE PAZ
NO INFERNO DA
GUERRA
Um Romance Na Celebração De
Amílcar Cabral
CEHC
Portugal & América Latina
Prólogo
“[...] E sempre que o gina rompe
o espaço vindo do Bijagós, as cubatas
das tabancas baloiçam e... oxalá!
Súbito, o estrondo do fiat não é luz
mas fogo em jeito de estrondo. Nem capuz
ajuda, nem aquilo que além reluz
é oiro... É um tudo ou nada que acolá
e aqui nos mata e faz tremer como as cubatas,
mas... nossa dignidade não é coisa que
se compre!
J. C. Macedo
– “Um Poema Para Miriam (Colega
guineense ´perdida´ em Guimarães)”, 1973.
Os estrondos que os povos cabo-verdeano e guineense gostaram de ouvir saíram para
o espaço na voz de Amílcar Cabral e não das bombas lançadas pelos caças FIAT (os
´gina´), que tentaram calar a voz dessa África quando a infantaria e a cavalaria tiveram
que recuar a partir de Madina do Boé para não perderem de vez o controle daquela
possessão ultramarina.
Infelizmente, “[...] uma parte dos cabo-verdianos não quis observar que a unidade
com os guineenses, proposta por Amílcar Cabral, é a única via social e política que
poderá consolidar a luta pela liberdade. Pensaram na proposta como um lirismo
ideológico, mas a palavra de Amílcar Cabral é mais do que política, é uma aposta de
estruturas sociais para anular o efeito nefasto do colonialismo português no pensamento
africano [...]. Pensaram que o grande obreiro do PAIGC queria ser mais um caudilho
num ´império´ com algumas ilhas, e os próprios camaradas, insanos e prenhos da
alienação soba-rei, criaram a cilada. Agora, o africanista e libertador Amílcar Cabral jaz
em nossa memória para sempre!” [MACEDO, J. C. – in “É Preciso Dialogar Para
Libertar”. Artigo, assinado “Eolo”, em panflo da TJIA, lançado na região do Minho.
Guimarães, 1973]. E assim foi, na análise do poeta português, que aquela parte da
África perdeu uma grande oportunidade de ser um exemplo de unidade geopolítica para
todos os povos do continente. E quem esteve na edição de 1973 do Cascais Jazz, pôde
verificar que entre a máxima “podem fazer tudo, mas não chamem a polícia” e a
apresentação de Sarah Vaughan (com Carl Shroeder, John Gianelli e Jimmy Cobb), fez
daquele novembro jazzístico também uma marcação contra o belicismo colonial
português com a bandeira do PAIGC a passar de mão em mão como mensagem cultural
de um povo que repudiava a famigerada Guerra Colonial. Existiam muitas pessoas,
então, contrárias ao espírito salazarista-caetanista de fazer diplomacia ultramarina em
África, uma diplomacia com alguns apoios de intelectuais da elite branca brasileira, mas
“[...] um punhado de cabo-verdianos falsamente nacionalistas pensou apenas no próprio
umbigo e fez o serviço sujo que qualquer agente da PIDE gostaria de ter feito. Não que
a contrainformação da PIDE estivesse por fora do caso, deve ter-se apropriado das
informações internas do PAIGC, em Conakry (e os atuais dirigentes do PAIGC, tanto
tempo depois, devem uma explicação pública e internacional...), para deixar à vontade
os candidatos a soba-rei... Pensar em Amílcar Cabral é fazer jus a uma política
libertadora que ouvimos nos cânticos de Zeca Afonso e recebemos na estética do
gingado das danças insulares, mas é preciso mais do que pensar, é preciso agir...”, como
afirmou J. C. Macedo [“Eolo”] no panflo da TJIA [Braga, Dezembro de 1973].
A ação de Amílcar Cabral foi “um olhar de paz no inferno da guerra” e pinço essa
frase de J. C. Macedo, inserta naquele panflo citado, para intitular a novela que escrevi e
vos deixo ao sabor dos ventos libertadores que sopram no humanismo crítico das
pessoas de bem.
O Autor
[Ilustrações: fotos publicamente exibidas na Web.]
Parte Um
Capítulo 1
O tempo está no corpo de Benjamim, velho metalúrgico, filho de mineiro escravo e
neto e bisneto de minerador escravo. O seu corpo é a moldura de uma alma que carreia a
força da África em sua plenitude criativa. Cada dobra na sua pele é um traço do mapa da
vida que levou os seus ancestrais da N´Gola, peritos em fazer do ferro obras de arte,
para os confins da América e, além do paredão da costa atlântica, darem o suor e o
sangue no Cerro Berassucaba, na velha rota guarani chamada Piabiyu, a oeste da
jesuítica Sam Paulo dos Campu de Piratin, como os escrivães gostavam de registrar nas
atas municipais.
Benjamim foi e ainda é o tipo “pau pra toda obra a ser feita com a maestria do saber da
vida”.
Livre dos equipamentos de tortura e prisão, mas ainda um negro, sempre escutou o
seu avô Domingues dizer que “se existe uma história do Brasil essa é a história dos que
fizeram das minas de ferro a alavanca da indústria na América”. E ele sabia-o muito
bem, pois, frequentara cursos técnicos e, sempre que podia, escapava para as bibliotecas
públicas para saber “como foi que o Affonso Sardinha fez a primeira usina de ferro da
América, no longínquo Berassucaba, e como o barão de Mauá se fez o primeiro grande
empreendedor do Brasil”. Porque na escola ninguém sabia como o Brasil industrial
havia acontecido, e os professores olhavam com desconfiança aquele “negão metido a
intelectual”. Na família, era o único alfabetizado e com curso médio. “Bem, mas no
Brasil como na África, negro estudado continua negro socialmente banido, mas pode até
ser respeitado como ´branco´ quando põe gravata de executivo ou farda de policial”,
murmurava amiúde entre companheiros de escola e, principalmente, com os
companheiros de sindicalismo anarquista na grande e multirracial cidade de São Paulo.
Naquela metrópole singular, onda cada pessoa é por si mesma entre cimento e aço,
percebera que deveria ir além de mero “negão pra todo serviço, mesmo o de ´enfiar´ em
madame a querer matar curiosidade sobre a ´coisa preta´”. Tinha facilidade para
entender as letras e os números, era só aprender a jogar no quadro negro e entender cada
vez mais...
Agora, o seu olhar perde-se nos campos de cultivo rudimentar de onde as pobres
famílias de Madina do Boé tiram o sustento.
– Ah, estás aí...
– Ai, Maria. Cara, nem senti ocê de tão mansinho que chegou até mim!
Ele levanta-se do tronco em que estivera a refletir sobre si e o mundo, e diz: – Cara –
já está há três anos na Guiné dominada pelos portugueses, mas não perdeu a gíria
brasileira –, que aflição é essa?!
A mulher tem no olhar uma angústia que corta a alma de Benjamim. É coisa muito
grave, pensou.
Olhou-a atentamente. Raras foram as vezes em que a viu em tal estado de angústia. A
mais triste foi quando a polícia política da Província de São Paulo apanhou um grupo de
anarco-sindicalistas dos setores gráfico e metalúrgico e encarcerou-o quebrando a
resistência com violentos golpes de cassetete e coronhadas: entre os elementos
subversivos estava ele. E ela, na praça próxima, com um minúsculo objeto esculpido a
representar os seus antepassados nas mãos: – Ó, meu irã, ajuda meu homem... –
implorava, enquanto assistia a tudo sem poder fazer fosse o que fosse para tirar o seu
homem dali. A minha fula é mulher brava, lembra ele a cena, enquanto a abraça. –
Maria, que aflição é essa?! – repete.
– Estão a dizer por aí, ao longo do Corubal, que o tal brigadeiro Spínola vai reforçar
os quartéis da tropa portuguesa...
– Ah, sim... – diz ele. É uma fala calma, mas forte. Sem deixar de abraçar Maria, olha
o além com preocupação. – Era de prever, porque os guerrilheiros do Cabral fazem
desta região uma espécie de quartel-general, e os embates vão ser cada vez mais duros
por aqui...
Ela olha-o bem nos olhos, e questiona: – E nós?
1969.
Salazar recusara várias propostas de solução pacífica oriundas de nacionalistas
africanos. A sociedade portuguesa, apesar dos esforços espirituais da cristandade
católica como pilar ideológico, começa a recusar a Guerra Colonial como pensamento e
ação do Todo português e, aos poucos, o próprio Salazar vê-se acuado, mas não
desarma, ajoelha com os igrejistas diante do fracasso e não desiste. Faz como Hitler e
como Franco: é a nação que tem de se mover, os dirigentes apenas dirigem! Já com
Salazar hospitalizado e incapaz, o presidente Américo Thomaz chama Marcello
Caetano, em 1968, mas na substituição o regime prossegue na caminhada desfavorável
ao diálogo político e focado na contenda militarista e policialesca.
Diante da dificuldade encontrada em fazer frente à subversão desencadeada por
nacionalistas africanos, a tropa portuguesa opta por reforçar as unidades mais
estratégicas situadas na Guiné, entre Bissau e as colinas do Boé, até porque o imenso
corredor atlântico entre as ilhotas do Bijagós favorece a ligação com Cabo Verde,
corredor de difícil vigilância. A tropa salazarista-caetanista está quase isolada em
Madina do Boé enquanto a tropa africanista de guerrilheiros cabo-verdianos e
guineenses avança com apoios logísticos a partir de Conakry na fronteira com a Guiné,
ainda com controle português, mas também com apoios de Dakar. O domínio português
em Angola, Moçambique e S. Tomé e Príncipe tem um ritmo político-militar
estabilizado, mas o governo de Lisboa já pressente que a perda de mais de metade do
território na Guiné é um fator de desestabilização, e tem no experiente Spínola a
esperança para uma mudança nesse teatro bélico que opõe o colonialismo ao
africanismo libertário.
As primeiras grandes manifestações guineenses contra a presença colonial dos
portugueses tinham acontecido no cais de Pindjiguiti, em Bissau, onde rapidamente
chegavam as notícias de uma África que se libertava de vez dos grilhões europeus, a
começar pelo Gana, e logo a Guiné Conakry e o Senegal. O importante cais de Bissau,
que para os portugueses sempre foi uma feitoria mercantil, era já um centro de
atividades anarco-sindicalistas que a polícia política de Salazar tinha debaixo de olho.
Logo após a independência do Gana, em 1957, os trabalhadores do Pindjiguiti fizeram a
primeira greve política sob a orientação de um jovem ativista nascido na guiné, mas
filho de cabo-verdiano: Amílcar Cabral.
Tudo seria diferente para os militares portugueses a partir dos atos de rebeldia
verificados naquele cais.
Numa primeira fase, tanto guineenses como cabo-verdeanos uniram-se para dizer não à
gestão colonialista de Portugal e atuavam segundo a cartilha ideológica de um
africanista nato que, havendo estudado em Lisboa, conhecia muito bem a dinâmica
política do ideal ultramarino defendido pelo primeiro-ministro Salazar. – Já prevendo a
subversão na África portuguesa depois da libertação do Gana, o governo salazarista
colocou parte da chefia da PIDE sob o comando de oficiais militares para ter a absoluta
certeza de que entre a inteligentzia e a tropa não haveria furos... – alertara Cabral em
reunião de guerrilheiros. A reação portuguesa à rebelião em Pindjiguiti foi extrema:
muitos trabalhadores presos e algumas dezenas de mortos. Um erro estratégico do
Governo de Lisboa, porque, politicamente, Pindjiguiti passou a ser a bandeira anti-
colonial que os nacionalistas africanos fizeram esvoaçar em todo o mundo. O
isolamento do ideal ultramarino salazarista começou na Guiné e ali teria continuidade,
apesar do combativo, mas, algumas vezes, diplomático Spínola.
A sua Maria, da etnia fula, deixara a Guiné para ser costureira na metrópole São
Paulo. De entre as colinas do Boé foi para uma das ilhas paradisíacas do Bijagós e ficou
por dois meses entre as matriarcas de Orango. Encontrou outro olhar, outro viver a vida,
e com elas aprendeu algo que lhe traria muita felicidade alguns anos depois...
Entretanto, na sua terra, embora a costura seja um ofício masculino, aprendera com o
avô aquela arte em meio ao cultivo do arroz. Era tão prendada a pretinha dos olhos
grandes que na metrópole brasileira foi imediatamente recolhida por uma família da
elite local e tratada como escrava, mas, ainda assim, conseguira estudar à noite com o
apoio de uma jovem costureira portuguesa, também ela a trabalhar em casa de família e
a receber gorjetas em vez de salário. Num desses cursos profissionalizantes e de
alfabetização para adultos, Maria conheceu Benjamim, que ali distribuía panfletos
contra as oligarquias getulistas e a monarquia que subsistia nos coronéis rurais e
industriais. No primeiro encontro político ficou a conhecer as palavras e as ações do
agrônomo Cabral, o cara que está a dar a combate aos portugueses na África. Ela não
tinha nem noção dessa coisa: – Me fala dessa coisa, ah... colonialismo, quero saber tudo
e por que esse cara, o Cabral, põe a cabeça a prêmio em nosso nome! – quis saber,
alguns dias depois e ainda a digerir tanta informação sobre a sua África. E ele percebeu
que ela tentava esconder a vergonha por não estar a par do assunto. – Não sinta
vergonha, Maria, ninguém nasce com a sabedoria! – disse-lhe. Gente africana de
origens diferentes, ele angolano e ela guineense, mas com a mesma fé islâmica e a
esperança de voltarem para uma África livre, puramente africana. Gostavam do samba e
praticar a capoeira tão tradicional no ritual das meninas africanas que assim escolhem o
seu homem, mas que os brasileiros dizem ser ritual seu. Num final de tarde e
percebendo que ele gostava de sua presença, a fula cozinhou uma refeição de peixe à
moda guineense para o amigo n´gola. E ele gostou, repetiu. – Se ele gostar é o teu
homem! – ensinaram-lhe as mulheres de Orango. O amor uniu-os e fortaleceu no casal o
africanismo que Amílcar Cabral dilatava em suas andanças políticas, e já conversadas
entre anarco-sindicalistas portugueses e brasileiros, até porque os portugueses tinham,
então, forte influência no estabelecimento desse sindicalismo anti-soviético, tanto no
Rio de Janeiro como em São Paulo. Nem sempre o problema dos anarcas estava na
polícia política getulista, também na traição de classe promovida pelos sindicalistas
ligados aos partidos comunistas que atuavam sob a ótica soviética. E logo, Maria deixou
as algemas da aristocracia coronelística paulistana para se juntar aos quadros
anarquistas em luta por um Brasil livre de racismo e caudilhos fascistas, nos governos e
nas empresas. Em poucos meses, a guineense das bandas de Madina do Boé era uma das
militantes mais ativas, e o seu N´Gola um apaixonado muito orgulhoso.
Benjamim enfrenta o olhar dela.
– Eh, meu bem – começa ele, pausadamente –, essa retirada significa que já
determinaram ser a nossa região o foco principal da guerrilha. Daqui a pouco vão estar
por aqui apenas em rusgas de comandos especiais com cobertura aérea...
– Ou seja – interrompe, esperta –, com os quarteis por aqui eles conheciam a gente e
apenas policiavam, agora, vão matar indiscriminadamente, porque guerrilheiro bom é
turra morto, como dizem.
– Sim, é isso mesmo, meu bem. – Apesar da mansidão da fala, Benjamim demonstra
uma enorme preocupação em seu olhar, e continuou: – Nós já somos vigiados por
sermos brasileiros anarcas, embora por aqui sejamos unicamente lavradores. Cara,
quando olho a águas do Corubal tenho a impressão que Madina do Boé já é um
território livre, inacessível às estratégias do colonialismo de Salazar e seus generais.
Faz-me lembrar aquelas gentes paulistas diante do ditador Vargas... Às vezes, o Poder é
tão podre e tão comprometido com o niilismo que acaba por se minar e implodir. É o
que me parece que acontece agora com as tropas portuguesas diante da fortaleza do
idealismo que move o Cabral e a sua (que também é nossa, verdade seja dita...) bandeira
africanista.
*
Benjamim teve na Sampa um professor e um amigo. Era técnico especialista em
manutenção de aeronaves, em Berlin, mas fugiu para a África em navio e aportou
clandestinamente na Lourenço Marques, a velha e bela Maputo do valoroso povo
moçambicano, para logo cruzar o oceano de novo rumo ao Brasil. Esse técnico esteve
na equipe que estudou o FIAT G9, aeronave recém chegada à Alemanha para aplicação
tática e, com os engenheiros militares, desenvolveu outros sistemas.
Na longa viagem até Moçambique travou conhecimento com Idalécio, um cabo-
verdeano de meia idade que fazia todos os serviços no navio de carga com bandeira
brasileira. O homem era a revolta em pessoa. E escutou dele a existência de campos de
concentração em Bissau, da tirania dos governadores portugueses. – Eu não vou morrer
sem ver esses portugueses fugirem com o rabo entre as pernas. Temos uma resistência
passiva, sabe. Aproveitamos até a administração portuguesa para aprendermos, mas
quando eles percebem que estamos mui inteligentes, como dizem, isolam a gente ou
matam – disse Idalécio, num inglês de cartilha, mas perfeitamente compreensível e que
deixou o alemão quase boquiaberto. E ele soube, então, que a África se movia, não o
fim do mundo tão apregoado pelos ocidentais. Depois, no cais de Santos, convenceu o
cabo-verdeano a ficar em terras brasileiras, de onde poderia ajudar o seu povo. – Eu
estou marcado para morrer por ter feito oposição ao governador, lá da Praia, e ao Vaz
Monteiro, lá em Bissau, pois, ele dirigia os campos de concentração em Safim e outros
como se fosse o próprio Hitler. Não posso ficar por aí à vista... – revelou. – Está bem,
mas aqui é o Brasil, você pode recomeçar como meu ajudante na oficina de mecânica
que vou abrir em São Paulo. Se você passar fome, eu também vou... – propôs o alemão.
Foi nessa oficina que Benjamim iniciou a carreira proletária quando concluiu o curso de
mecânica, indicado por um dos mestres ao alemão, por ser “um cara que manja mesmo
do negócio e quer aprender mais”. E ali conheceu o africanista Idalécio, já um anarco-
sindicalista negro ilustrado e cineclubista. – Olhe seu Walter, se um dia eu voltar para
África, e sei que vai acontecer, nunca esquecerei as lições de vida e de política que
recebi nesta oficina! – agradeceu Benjamim. Entretanto, o alemão estava preocupado,
pois, sabia que no dia do retorno de Benjamim, o seu companheiro de jornada, Idalécio,
estaria com ele. – Sim, e eu sei que não você não irá só! – constatou, com um sorriso e
uma olhada de soslaio para Idalécio. O alemão fizera de Idalécio seu sócio na oficina
para calar os preconceitos da clientela burguesa daquela São Paulo ainda dominada pelo
espírito colonialista vivido por muitos empresários portugueses – e, mais difícil de
engolir, mui salazarista... Por várias vezes a polícia secreta do getulismo invadiu a
oficina em busca de “um negão anarquista, elemento dito Idalécio”, mas tempos depois
passou a ´achar´ dois e o alemão teve que se explicar, mas saiu-se sempre bem da
enrascada ao apresentar-se com documentação falsa de um judeu berlinense com quem
trabalhou num dos campos de aviação.
*
Maria afasta-se do abraço, amorosa, mira o horizonte e parece não desarmar: – Pode
ser como ocê fala, bem, mas acho eu que em ambas as margens do Corubal vamos viver
uma guerra louca se o Cabral não conseguir armamento moderno para o PAIGC
enfrentar os caças FIAT que Portugal comprou da Itália...
– Ah, é verdade! – exclama ele, surpreso consigo mesmo. – Já me ia esquecendo,
cara, e esses caças (cara, os nazis chamavam esse caça italiano de gina, talvez por
causa de o modelo ser G9..., fala-se gi naine...) foi projetado para a NATO como
aeronave tática, mas, é óbvio que agora, depois que a Grande Guerra terminou, o único
país a utilizar o gina em missões de bélicas é Portugal. Lembra o mecânico, o Walter,
bem? Aquele que me deu trabalho e, depois, cobertura para a nossa saída do Brasil... – e
vê que ela, após breve hesitação, diz que sim com a cabeça –, pois é, caramba!, ele
trabalhou com essas aeronaves na Luftwaffe quando projetaram tanques externos de
combustível para as asas: eram tanques modificados para, com pressurização, expelirem
uma mistura d´água com carbonato de cálcio que chegava ao solo como um spray para
simular um ataque de armas químicas. “Aquilo foi uma loucura quase carnavalesca, e
deu certo!”, disse-me ele, ainda exuberante depois de tantos anos. Isso quer dizer (e
temos que passar esta informação à turma do Cabral) que o gina não será apenas uma
arma tática, pelo menos aqui na Guiné, e em particular nesta região do Boé.
– Benjamim – havia certo temor nos olhos de Maria –, isso significa que vão
bombardear Madina do Boé até o PAIGC desaparecer...
Ele solta um risada franca e diz: – Isso é o que o Salazar gostaria que acontecesse.
Mas não será assim. Olha, bem, olha para a topografia deste lugar – e movimenta a mão
direita num círculo à sua frente –, é mais fácil uma metralha antiaérea instalada numa
tabanca abater o gina que o Salazar sorrir de vitória em sua cama no hospital!
A muitos quilômetros do Boé, oficiais da tropa portuguesa rediscutiam
posicionamentos.
– Isto aqui não é só canoa artesanal no Corubal, nem peças de artesanato de papiro ou
irãs, meus senhores – diz um major comando da elite militar, e continua –, é também a
parte insular de Bijagós, de difícil vigilância pelas muitas ilhas que ali existem, e a parte
continental com duas áreas agrícolas e planaltos que favorecem uma grande
produtividade, e aí estão pessoas nativas e, com elas, o esconderijo natural dos turras
que o Cabral ideologiza agora, além de que os rios Geba e Corubal fazem a ligação
natural com o interior da Guiné. Ora, senhores, canoas e jangadas são importantes meio
de transporte para o IN, então, as NT têm que entender isto de uma vez, porque não
estamos aqui para fazer turismo entre o QG de Bissau, onde estamos, e os esconderijos
de folhagem dos turras que se comunicam, ainda... imaginem!, além do rádio, por
assobios codificados para cada tipo de situação, ou seja, senhores, um assobio no meio
da mata ou entre roças não é apenas um som, é um sinal do IN que observa as NT.
– Outra questão, senhores – interrompe um capitão da arma de comunicações,
apagando o cigarro que fumou pela metade –, chama-se rádio. Tanto em Dakar como
em Conakry os turras emitem mensagens públicas contra Portugal com o total apoio
dos governos locais, e já agora, também em Casablanca, assim, a situação que
enfrentamos é uma geopolítica de interesses que vai muito além dos guerrilheiros do
PAIGC e do lirismo socialista de Amílcar Cabral, e se nem a PIDE consegue gerar
contrainformação em tempo real, por enquanto, as NT precisem mesmo agir com todas
as precauções e trilhar terrenos já sinalizados pelos batedores. Alguns dos nossos
homens, por exemplo, esquecem que os crocodilos do Bijagós avançam também pelos
rios...
A presença militar é a defesa ideológica dos “Cinco séculos de Portugal na África”
que na cartilha política de Salazar orienta uma falsa questão. E foi essa falsa questão
que muitos jovens africanos dessas regiões começaram a debater e contrariar nas
universidades de Lisboa, Porto e Coimbra, a partir da década de 1940. Estudantes
africanos como o angolano Agostinho Neto, o cabo-verdeano Cabral, o santomense José
Tenreiro, a moçambicana Noémia de Sousa e também Marcelino dos Santos, o
guineense Vasco Cabral, entre muitos outros e outras. A cartilha salazarista tentou
falsificar a história portuguesa, primeiro, com a invenção de uma “escola náutica em
Sagres dirigida pelo infante Henrique” e, não bastasse tamanha grosseria, apareceu com
os “Cinco Séculos de Portugal na África”... que o são de fato, mas não de colonialismo.
– Entre as descobertas marítimas dos Séculos XV e XVI e o colonialismo do século XX
existe uma diferença que se choca com a própria história, e não podemos encarar
povoamento de região com dominação militar, nem mesmo a relação mercantil
(escravos, ouro, etc.) de outros pontos com o desejo militarista de minar e aniquilar a
liberdade dos povos africanos que, durante séculos, aprenderam a conviver com os
portugueses e a sua língua – afirmara Amílcar Cabral, em um dos seus encontros com
estudantes universitários.
Para os jovens estudantes africanos em Portugal, tudo conta a partir da partilha da
África pelas potências na Conferência de Berlim, no final do século XIX, embora só
anos depois tenha Portugal iniciado a ocupação político-militar efetiva da sua área
ultramarina e tendo como escudo as decisões daquela conferência. A possessão
ultramarina era uma feitoria mercantil diversa para o governo de Lisboa, e foi o povo da
Guiné quem mais pagou pela determinação colonial lusa: após quase 80 anos de
chacinas, Portugal neutralizou a resistência das nações locai e seus sobas-reis. Então,
para os jovens africanos ilustrados nas escolas de Portugal e conhecedores da história,
“A presença colonial portuguesa na África deve ser combatida exemplarmente com
acções de resistência armada, uma vez que Salazar recusa-se a dialogar pacificamente.
Cada uma das nações deve ser uma secção da resistência pela libertação da África, e o
momento é óptimo para se se desencadear a batalha”, explicava um panfleto que
circulou nos campus de Coimbra e Lisboa, em 1959. Pelo tipo de mensagem
ideologizada todos sabiam, e a PIDE também, que a autoria só poderia ser de um
agrônomo cabo-verdeano...
– Esse agrônomo formado em Portugal, chamado Amílcar Cabral – continua o capitão
– personaliza a mais alta traição aos princípios da convivência pacífica. Ora, senhores,
nós damos educação a esses turras e eles voltam-se contra nós... Bandidos armados!
O mais jovem oficial presente, um alferes da cavalaria, levanta a mão direita e diz: – É
por isso que temos de estudar muito bem a característica geo-militar desses bandidos
armados, pois, eles atuam preferencialmente em cima das nossas falhas e do nosso
desconhecimento no teatro operacional.
Não é a cartilha salazarista que os oficiais da tropa portuguesa leem e discutem, mas é
já a influência spinolista que aqui se manifesta, principalmente entre jovens oficiais do
quadro permanente aquartelados na região guineense. A messe do oficialato em Bissau
é um ninho de descontentamento com a hierarquia obtusa e irredutível de Lisboa, mas a
ação é passiva, cautelosa. “Ninguém vence uma batalha se não se aplicar com
inteligência no estudo de cada pormenor”, afirmara ele anos antes na escola de cadetes
em Mafra. “Às vezes, um recuo táctico vale uma vitória a longo-prazo”, escreveu num
artigo em revista militar. A questão “recuo” não é uma estratégia bem recebida no alto
comando militar e alguns generais, como Costa Gomes, defendem o continuísmo de
ações diretas como força estratégica única num esforço geral das forças armadas para
recompor o controle nas áreas de atuação dos nacionalistas africanos. Em algumas
decisões o brigadeiro Spínola é um homem só, e conta apenas com os seus homens mais
chegados para ter a certeza do cumprimento das ordens.
Conscientes de que “não enfrentamos na África grupos de maltrapilhos nem
ignorantes em matéria castrense”, os oficiais têm nas palavras de Spínola uma
orientação que lhes transmite segurança.
– O mais importante seria o Walter nos dar instruções de como sabotar esse gina – diz
Maria, muito preocupada com o assunto.
Benjamim não parece tão assustado. Faz novamente aquele gesto com mão e assevera:
– Meu bem, até a nossa roça de cana d´açúcar e arroz é para eles uma suposta armadilha
montada pela guerrilha.
E ela atalha, nervosa: – Então, Benjamim, os portugueses devem achar que
produzimos alimentos para a guerrilha...?
Com uma risada, Benjamim abraça Maria com força sem deixar de ser carinhoso. –
Enquanto os esbirros do Salazar, não, agora são do Caetano..., pensam e agem assim
com a gente, os guerrilheiros continuam as suas tarefas. E depois, cara, tanto a tropa
como a PIDE não sabem como encarar a Guiné de frente e, aos poucos (e olha que o
brigadeiro do monóculo já anotou esta realidade..., pelos discursos dele à sua tropa)
serão empurrados para Bissau... por isso, Maria, minha fula, é que eles vão atravessar o
Corubal e fortalecer unidades que antes eram pontes logísticas.
– Caramba, bem – diz ela, subitamente com outro brilho no olhar –, eu nem tinha
pensado nisso. Sim, o povo guineense combate por ele mesmo e tem uma aliada
poderosa: a terra.
Sorrindo, ele emenda a conversa: – E outro pormenor: o Walter foi para a Luftwaffe,
mas, obrigado pelas leis do Hitler, como obrigados pelas leis do Salazar aqui estão
soldados, sargentos e oficiais milicianos..., cumprem uma ordem nacionalista, e se não o
fizerem ou são presos ou terão de fugir de Portugal. E mesmo entre o generalato
salazarista existem pensamentos opostos, pois, Gomes da Costa quer aqui uma guerra
aberta, quase suicida, e o Spínola acha que o tempo militar já acabou e que é preciso
achar um fim político para esta contenda! Pode até ser que a PIDE faça uma bala
perdida aniquilar o pensamento pouco salazarista do homem do monóculo, como fez
com o general sem medo Humberto Delgado!
Ainda no Quartel-General da tropa portuguesa, em Bissau, o mesmo major comando
dá a palavra a um tenente-coronel aviador, que pilota um gina. – Senhores, temos ainda
um tempo de atuação com o gina, pois, em breve o IN terá misseis terra-ar fornecidos
pelos comunistas da Rússia e da China, ou comprados mesmo nos EUA, porque na
guerra o dinheiro não tem ideologia, tem peso monetário... Temos a informação de uma
conversa de Amílcar Cabral com um agente soviético no sentido de enviar um grupo de
turras para treinamento, ou em Cuba ou na Rússia, e a PIDE acha que um Vietnam
pode acontecer por aqui em breve se não conseguirmos neutralizar as ações dos turras
nas colinas do Boé.
O tenente-coronel lança o olhar para a porta e fulmina o furriel que entrara sem bater.
– Esssttaaa..., sargento miliciano, é uma reunião de oficiais do Estado-Maior!
O furriel, da arma de comunicações, meio desleixado, parecendo alheio ao comentário
e sem se dar ao luxo de responder, avançou pela sala e entregou ao oficial um bilhete,
dizendo: – Não preciso aguardar resposta, senhor!
– Estes rapazes milicianos acham que podem fazer o que querem só porque estão na
peluda – quase gritou o major, e o seu olhar mostra uma vontade enorme de dar uma
lição no jovem mensageiro.
Pálido, o tenente-coronel levanta a mão esquerda e pede silêncio. O que acabara de ler
deixou-o entre a perplexidade e o enjoo. Alguns oficiais à sua frente pensaram que ia
vomitar, ou desmaiar. Mas logo se recompôs com dois movimentos bruscos de ombros,
como que a endireitar a coluna.
– Senhores, na passagem norte do rio Corubal, no Che-Che, onde efetuamos recuo
para novas instalações da NT, uma balsa afundou neste dia 6 de Fevereiro e levou com
ela mais de 40 elementos nossos – anuncia. O papel treme na sua mão direita. – Ainda
não se sabe o que realmente aconteceu ali. Um minuto de silêncio em memória dos
nossos!
E os 14 oficiais de Estado-Maior levantam-se imediatamente. O silêncio corta o ar
como lâmina de sabre.
Capítulo 2
Depois de reuniões na Guiné Conakry, o agrônomo Amílcar Cabral está em Cabo
Verde, na ilha de Santiago, terra do seu pai, para se inteirar do progresso organizacional
da guerrilha contra Portugal.
Reuniões em Conakry e em Dacar, após uma viagem por Paris e Roma, deram-lhe a
certeza de que “a aventura africanista pela liberdade deixou de ser um projeto e assenta
agora na certeza da vitória que já une os povos de Cabo Verde e da Guiné”, como
acabara de afirmar num encontro com os outros dirigentes no mais natural dos
esconderijos da região: o Arquipélago dos Bijagós.
– Não sabemos se é bom que Amílcar continue com essas cartas ao Salazar exigindo o
fim da guerra, cartas que ele nem lê, ou se lê... limpa alguma coisa nelas! Por outro
lado, camaradas, Cabo Verde é uma realidade e a Guiné é outra realidade: são povos
diferentes... E também, não devemos esquecer que os portugueses estão aqui porque
querem ficar, ou não teriam feito a guerra de chacinas que fizeram no império de Gaza
para acabar com Gungunhana, não teriam feito da Guiné um cemitério a céu aberto,
nem teriam reaberto o campo de concentração de Tarrafal...
– Ora, camarada – intervém Amílcar Cabral, sem se mostrar preocupado com a crítica
–, concordo que querem ficar! Mas isso depende muito da nossa união... É certo que são
culturas diferentes, mas a luta por uma África livre é a mesma, e a curta distância em
que estes dois povos vivem permite organizar e estabilizar uma resistência conjunta e,
quem sabe, no futuro, viverem sob a mesma bandeira. Lembrem-se que a Guiné
Conakry, por exemplo, é resultado da união de várias etnias proposta por Touré e que
vivem agora sob uma única bandeira. Já quanto ao Salazar, é do nosso interesse político
e diplomático esse tipo de instrumentos que servem para mostrar ao mundo que não
somos nem incultos nem meros selvícolas! E deixem-me dizer-vos: se alguma coisa me
acontecer, ela será executada por pessoas que estão entre nós!
Na sala pequena nos fundos de uma padaria faz-se silêncio. Parece que a cidade da
Praia se fechou entre aquelas pessoas e nem o murmúrio marítimo consegue passar a
barreira.
– Se quisermos sobreviver ao policiamento político de Salazar e à sua tropa, teremos
que estar unidos! – atira uma das duas mulheres presentes ao encontro. É a companheira
de Amílcar, que em algumas situações faz ponte de comunicação.
– Não sei qual será o futuro, mas sei que neste momento é mais importante a união de
cabo-verdeanos e guineenses do que discutir quem é mais nacionalista e africanista
diante do colonialismo! – diz um dos militantes mais ativos entre os trabalhadores do
cais de Pindjiguiti e que não esconde diferenças ideológicas com Cabral. – Eu sou cabo-
verdeano, nasci aqui e vou morrer cabo-verdeano, não serei nunca guineense com todo
o respeito que esse povo me merece. Entanto, camaradas, neste momento, interessa
apenas que somos africanos e temos que sobreviver como tais até derrotarmos o Salazar
e os seus malditos cães de guerra, pois..., e agora o Caetano!
O grupo fechou o acordo de “luta unida contra o Portugal salazarista” e Cabral passou
a orientar as etapas de ação, em ter elas, a cooptação de 20 cabo-verdeanos e guineenses
para treinamento com novas armas na URSS, como já acontecera na China.
E logo, em Londres, o intelectual Basil Davidson inicia a publicação de artigos acerca
da situação calamitosa da África colonizada por franceses, portugueses, holandeses e
ingleses. Cabral utiliza o codinome Abel Djassi no campo político, enquanto que no
cultural assina ensaios e poemas como Larbac, um anagrama utilizado desde os tempos
de universitário em Portugal. O político e o intelectual passam a ser a bandeira maior
entre os africanistas que apostam na África livre.
– Os nacionalistas de Cabo Verde acenderam um estopim para acabar contigo. Alguns
querem é trabalhar para os portugueses...
Amílcar Cabral e a companheira caminham esgueirando-se até uma casa próxima. –
Eu sei, eu sei que é difícil! Alguns deles são grumetes, querem só uma oportunidade
para estar Poder, nem que seja na esfera do colonialismo português!
– Parece que às vezes o inimigo não é o salazarismo de Marcello Caetano, mas
camaradas que sentam conosco...
Ele escuta-a apreensivo. A situação de ruptura regional foi contornada mais uma vez,
mas ele não sabe até quando. – O meu receio é que isto chegue aos ouvidos da PIDE, e
essa gente é esperta o suficiente para transformar estas diferenças numa arma contra
nós!
– Por enquanto, a ala cabo-verdeana do PAIGC depende muito do sucesso da ala
guineense, e é lá que vamos derrotando o salazarismo.
O casal entra arfando pelos fundos da casa depois de verificar, por uns minutos, que
não havia movimentação estranha nas proximidades.
A cada movimento do casal em Cabo Verde a região vulcânica treme de novo para
uma erupção tão localizada quanto os desejos que os salazaristas têm para eliminá-lo.
Os agentes da PIDE alternam-se na busca ao casal de acadêmicos. Após trabalhar
como agrônomo e aproveitar a situação para conhecer melhor as realidades dos povos
daquela região africana de língua portuguesa, Amílcar Cabral coligiu as anotações para
aproveitar o potencial de resistência e nele projetar a batalha contra a presença colonial
portuguesa.
Aquele jovem acadêmico, que um dia o Benfica quis como jogador de futebol, da
mesma maneira que investiu no moçambicano Eusébio, tinha outra visão social e
preferiu a luta para ser livre. Gostava de se exprimir com a poesia, mas era também um
bom orador e habituou-se a estar na linha da frente de todos os atos em que participava.
Gostava de uma boa conversa e captava a simpatia das pessoas com muita facilidade. –
O engenheiro Cabral sabe falar com a gente e a gente o entende muito bem – diziam, e
dizem, pessoas que têm de trabalhar a sol a sol para sobreviverem. Essa era também
uma característica que o impôs como dirigente do processo pela formação do PAIGC. A
minha luta pode levar-me ao Tarrafal da morte lenta ou à morte em ação, mas o meu
povo cabo-verdeano e guineense não me verá humilhado pela derrota, decidira o jovem
agrônomo quando pôs de lado a profissão e enveredou pela política de combate a quem
não o queria como africano livre.
Sabia dos interesses da URSS e da China na região, assim como da ponte operacional
soviética montada em Cuba, e foram os soviéticos e os cubanos quem o ouviram
primeiro e lhe abriram as portas para diálogos internacionais sobre a situação de
pobreza e humilhação a que Portugal submete os africanos de Cabo Verde e da Guiné.
E assim falava na abertura de todas as reuniões na Europa e na África, e ali, em
Conakry e no Senegal, encontrou as regiões para montar os pontos de ação guerrilheira
que logo avançaram e assentaram praça além da Praia e além de Bissau. Após o sucesso
da campanha política no cais de Pinbdjiguiti, ele passou a ser considerado pedra de
toque para a libertação daquele pedaço da África colonizada.
Logo que o casal entra na casa, ela retira um pedaço de madeira do chão e vê um
papel dobrado.
– Mensagem, aqui... – Ela mostra-se assustada.
O último local para uma mensagem urgente dirigida a Cabral é a “casa da Praia,
alugada à esposa de um militar português”. – Conakry em 3 dias – lê ele a mensagem
cifrada.
– Então é verdade – comenta ela, mais aliviada, mas ainda tensa. – Até o Sèkou Touré
quer discutir o teu plano de unidade para cabo-verdeanos e guineenses, ele, que para ser
o que é teve que reunir os povos para formar uma nação!
– Sim – diz, com certa secura. – E ele já conversou sobre isso até na RDA, imagina!
Mas, seja como for, ele é o nosso maior aliado e é em Conakry que temos a nossa base
de orientação operacional para o PAIGC. Ele anda ressabiado por causa do Spínola... O
gajo do monóculo teve encontros secretos com Lèopold Senghor, lá no Senegal...
imagina!, e é claro que o Sèkou Touré não quer encontro com esse gajo, quer é vingar-
se da Operação Mar Verde que o gajo do monóculo comandou invadindo Conakry... Na
verdade, há um estremecimento de relações entre Senghor e Touré por causa desse
secretismo diplomático que não leva a lado algum! Neste aspecto, o apoio do Touré é
um trunfo que temos contra o gajo do monóculo.
Capítulo 3
As incursões dos guerrilheiros pelas margens do Corubal e do Geba passam a ser tão
rotineiras que a tropa portuguesa fica sitiada em Madina do Boé. E os guerrilheiros
acompanham de perto a retirada sem intervir. – Vamos deixá-los ir. Vão pôr minas na
retirada, mas saberemos onde. Precisamos desta área livre. Quem não vai voltar aqui são
eles, com medo das próprias minas! – argumentou um dos chefes de guerrilha, em
Conakry. As balsas fizeram o transbordo de muito material pesado e centenas de
soldados armados, também eles muito pesados.
Os oficiais estavam cientes da primeira parte de um despacho recente de Spínola: “É
intenção do Comando-Chefe remodelar com maior brevidade o dispositivo das Nossas
Tropas (NT) na região do Boé, transferindo o aquartelamento de Madina do Boé para
local mais adequado, na região do Che-Che”. E sabiam que a palavra “brevidade”
significava “agora”. Carregar tudo e depois destruir o que não poderia ser aproveitado
era tarefa demorada para uma “brevidade” plenamente ligada a outra palavra:
“segurança”.
Composta de três embarcações puxadas por barco com motor de bordo, uma das
balsas, a última, transporta, não a humilhação da retirada, mas o alívio no olhar de cada
militar que por muito tempo aguardou a morte entre as colinas do Boé. Noites mal
dormidas, assombradas, fazem os militares portugueses pisar na balsa como ponte para
a libertação. Súbito, no meio do Corubal, a cem metros da margem, e na precisa
lentidão da viagem derradeira, uma das embarcações inclina... Vários militares
escorregam para o rio. – Cuidado, atenção! – grita um alferes miliciano, em pânico. Na
tentativa de fazer voltar a embarcação à posição a tropa quase pula para o outro lado, e
por momentos estabiliza. – Ei, tá a virar, merda! Ai, meu Deus!... – berra um sargento
que não consegue se segurar e cai no rio. Com ele muitos outros.
Do outro lado da margem o pânico não é menor. Oficiais tentam organizar de
imediato o socorro. – É tanto peso preso no corpo que nenhum deles vai sair do rio... –
comenta um alferes, visivelmente transtornado com a cena de afogamento.
São momentos em que a tristeza e quase impossibilidade de socorro se misturam e
quase tiram o ânimo de quem ainda pode fazer algo.
Em alguns pontos do Corubal borbulhas tingidas de vermelho chamam a atenção.
Na tropa já confinada na margem o horror age em campo aberto. Quem pensou já ter
visto tudo por aqui, vê algo que nunca sonhou.
– Crocodilos...! – Murmura o mesmo alferes.
É a estação da seca, que vai de Novembro a Maio, e o rio é um caudal para um olhar
turístico, prazeroso. Mas é também a época em que alguns crocodilos do Bijagós
gostam de subir o rio.
De botas, espingarda, capacete, bornal, ração, granadas, pistola e outras quinquilharias
bélicas, cada militar atirado no rio afundou imediatamente junto com equipamentos e
viaturas. Na pacífica estação de raros acontecimentos, os crocodilos foram chamados
para algo inusitado. E logo bagunçaram o leito do Corubal.
A tropa só se dá conta da imensidão da tragédia quando a balsa, finalmente, atraca na
margem... sem algumas dezenas de militares.
Se os guerrilheiros do PAIGC estão por perto, e isso é quase certo, apenas observam o
desespero da tropa inimiga. As baixas são muitas e o restante da tropa está sem ânimo.
Conseguem retirar do rio alguns corpos, mas os oficiais já pedem socorro aéreo
imediato para se evitar qualquer ataque do inimigo a uma tropa em frangalhos nesta área
do Che-Che.
– A pressa deles em fugir para longe de nós fez com que esquecessem pormenores de
segurança na quantidade de homens e equipamentos a carregar na balsa – observa um
guineense de meia idade, habituado a conduzir balsas, numa tabanca próxima ao
acidente. – E...
Ele não continua, porque outro homem, armado com metralhadora russa, diz: –
Deixemos essa gente tratar dos seus mortos. Atenção aos helicópteros que vão chegar,
não podem nem desconfiar que esta tabanca é um quartel!... –E ordenou: – Tu e mais
duas mulheres aproximem-se, ajudem em alguma coisa, mesmo com a vossa canoa, eles
têm de continuar a ignorar que estamos aqui!
A região do Che-Che, com algumas tabancas de poucas cubatas, a montante de
Bissau, está praticamente tomada pelos guerrilheiros e, agora, minada... mas, sob o
olhar de quem conhece as picadas.
Alguns soldados estão deitados na margem, não têm ânimo nem para olhar o rio que
levou os seus camaradas de armas. Alguns, ainda apontam a espingarda para o meio do
rio na pretensão de atirar num dos crocodilos, mas um dos oficiais aconselha-os a não
ampliarem a tragédia. Um furriel de comunicações solicita a imediata presença de
unidades do Alouette, o helicóptero turbinado de grande ajuda em operações de resgate.
Capítulo 4
– Ei, Mansur! – exclama Benjamim. – Cara, que ocê faz aqui?
Benjamim e Maria estão realmente admirados com a presença do velho jangadeiro do
Che-Che, que manca um pouco. – Deveria estar na pesca, agora, meu irmão velho... –
comenta Maria.
– Sim, minha irmã – diz, abraçando Maria. E logo Benjamim. – Sim, mas a pesca,
hoje, foi dos crocodilos.
É um homem de idade avançada. Ganha a vida a fazer a travessia do Corubal com
uma jangada feita por ele mesmo, mas é também ferreiro quando cata metal largado
pela tropa portuguesa, e então, faz a fornalha artesanal produzir faca, panela, o que
aquela borra incandescente permitir ele faz.
Ai, meu irmão velho. Quanto eu te devo de vida e de prazer..., diz ela para si mesma.
Foi ele quem a levou, menina a olhar a vida e cheia de esperanças, para os Bijagós e lá
fez a conversação que tiraria a irmã mais nova da miséria e outros problemas africanos.
– Um dia eu volto, meu irmão velho, e virei para ajudar! – prometeu. No dia em que a
viu de novo, no braço de Benjamim, ele nem quis acreditar que a menina dos olhos
grandes do oceano é mulher e é feliz. E toda a África era uma alegria só. Cantaram e
bailaram durante dias numa celebração que só quem vive teluricamente tem direito. Mas
aquela África não era só alegria, havia desconfianças pela sua ida ao Brasil antes das
férias escolares... Assim, tão de repente e deixando o irmão velho do lado de cá do mar.
Sim, mas Maria sabia agradecer, e o que o irmão velho fez não tinha paga, só tinha
amor, bem querer. Agora, olha-o, e sabe que o vê feliz, por ter realizado o sonho de
menina mais romântica do que ele.
– O que ocê bebeu?!
Ele encara a risada de Benjamim, triste. E o outro percebe que a coisa é séria.
– Fala! – impacienta-se Maria.
Ele suspira fundo e desenrola a língua: – Não gosto de ver morrer pessoas por um
desastre natural, sabem. Olhem, os portugueses calcularam mal o peso a levar na
jangada e a última virou para um lado e virou para outro, aí, cuspiu tropa nos dois lados.
Foram ao fundo uns 50 soldados da tropa que estava em retirada daqui. E como
crocodilo gosta de descansar no rio durante a seca, alguns soldados foram caçados lá no
fundo.
Ele leva a mão esquerda à batata da perna e Maria exclama: – Ai, nem me fales disso,
irmão velho. Quase que um deles comeu tu inteirinho, não fosse o avô te puxar logo
para terra...!
Ele mostra a ferida a Benjamim. – Quase que um crocodilo me levou!
– E a nossa tropa, viu?
– Ah, sim, Benjamim. Viu mas não agiu. Tudo menos dar a entender que uma
daquelas tabancas é quartel... Uma das cubatas tem até bandeirinha de Portugal, só para
enganar!
– Isso vai bater fundo na moral da tropa do Spínola, que ordenou a retirada às
pressas... Mas, sabemos que não foi “às pressas”, mas um golpe para segurar o PAIGC
lá em Conakry! Mas não contavam com um desastre tão grande assim... Hum, acho que
os gina vão passar por aqui mais amiúde, agora! – diz Benjamim, em jeito de
pensamento alto.
– Ah!... – o irmão velho de Maria faz um gesto de desconsolo. – Ah, já ia esquecer: o
Lec, que vocês conhecem como Idalécio, mandou dizer que está bem e comanda o
núcleo de manutenção do PAIGC, lá em Conakry.
Benjamim e Maria entreolham-se de tal maneira espantados com a notícia que
assustam o homem.
– Falei alguma coisa que não deveria? Só trouxe um recado!
Recuperando-se do espanto, Maria diz: – Não, nada disso, irmão velho! É que esse
Lec, quer dizer, Idalécio, esteve com a gente no Brasil e veio com a gente, mas quando
desembarcamos em Bissau ele desapareceu e nunca mais tivemos notícia dele.
– Eh, pensamos que a PIDE lhe tinha posto as algemas, assassinado, ou trancafiado o
cara no Tarrafal! – comenta Benjamim.
Mais aliviado, o outro fala quase a cantar: – Inda bem, inda bem. Olhem, o gajo tá
vivinho e a fazer um bom trabalho para nós todos, conforme dizem outras pessoas. Ele é
conhecido como brasuca. E outra informação: ele mandou dizer que o alemão Walter
morreu de pneumonia lá no Brasil...
Benjamim conhecia os problemas de respiração que incomodavam, e muito, o seu
amigo alemão. – Até que ele aguentou muito tempo com aquele catarro imundo sempre
a cortar a respiração!
Parte Dois
Capítulo 5
O argelino Bem Bella e o tanzanês Julius Nyerere são dirigentes africanos que se
envolvem também no apoio logístico e financeiro aos grupos que combatem a tropa
portuguesa. Com eles mantém Cabral uma linha diplomática intensa, que se junta a
partidos políticos e sindicatos de toda a Europa.
A ação ideológica do cabo-verdeano transforma a Guerra Colonial numa questão de
política de grande alcance e já há quem exija uma punição internacional e exemplar para
Salazar e o Governo português. Os diplomatas salazaristas, já órfãos, pois Salazar é
moribundo no hospital e Caetano apenas uma tênue luz naquela escuridão ideológica,
percebem-se cada vez mais isolados no contexto da ONU. O cerco do turra agrônomo
nos corredores diplomáticos tem um resultado altamente desfavorável a Portugal que
parece não saber como trabalhar politicamente com a situação.
Mas...
Não é cómoda a situação de Amílcar Cabral. Também ele enfrenta tentativas de
isolamento político e militar no seu meio operacional. – Parece que tenho de lutar em
duas frentes ao mesmo tempo. Tenho sangue cabo-verdeano e guineense e posso
defender os dois povos com a mesma integridade moral e política! – desabafou numa
jornada de barco pelas ilhotas do Bijagós
Alguns dirigentes não querem saber de unidade política entre povos, etnias distintas,
preferem a resistência feita por cada povo em seu solo próprio. – Tu, camarada Amílcar
Cabral, és filho de cabo-verdeano e nasceste em Cabo Verde, mas por teres mãe
guineense achas que tens o direito de proclamar uma nação com bandeira única para os
dois povos! Isso é estar cego diante das etnias que também se confrontam... Basta o
sangue derramado contra os portugueses! Ou tu achas que existem poucos africanos do
lado dos portugueses? Só continuam por aqui porque existe uma África que os ajuda,
que bate picadas e os guia na nossa terra! É melhor parares com essa ilusão, porque me
parece um suicídio o que estás a fazer... – comentara e alertara um velho companheiro
das jornadas de Lisboa, outro amante do futebol que poderia ter ficado num grande
clube e gozar plenamente a cidadania portuguesa. Mas, de braço dado com Cabral,
preferiu a plena luta pela liberdade de ser africano na África.
Mais intimamente, ele escuta outro comentário. – Vejo que há um cerco a ti e pode ter
o gajo de Conakry como apoio. O que vejo, também, é que a PIDE já sabe deste caso e
está na distância a aguardar o desfecho, pois, seja qual for esse desfecho, a nossa prisão
ou a nossa morte, será favorável aos salazaristas... – diz, pela segunda vez, a sua
companheira.
Estão em Conakry e participam de várias reuniões, algumas delas enfadonhas pelos
conteúdos repetitivos e longos discursos ideológicos entre fumaça de tabaco e cerveja.
Amílcar Cabral gosta de conversar, mas não é do tipo intelectual masoquista. Sabemos
que isto é assim, sabemos que temos de agir assim!, costuma rematar deste jeito as suas
colocações.
Capítulo 5
1973.
Enquanto o velho Salazar definha e, finalmente, em 1970, entrega o corpo à mortalha
ideológica que o consagrou como um dos maiores tiranos da história ibérica e europeia,
a guerrilha africanista prossegue a sua ação e encurrala de vez a tropa portuguesa em
Cabo Verde e na Guiné.
Em poucos anos, depois do que ficou conhecido como Desastre do Che-Che pelo
histórico da tropa portuguesa, o PAIGC passou a dominar mais de três partes do
território em disputa. No início de 1973, os guerrilheiros africanos dispõem de misseis
terra-ar do tipo Strella, de fabrico soviético, e os pilotos do gina ficam de sobreaviso.
Na messe do Comando da Zona Aérea de Cabo verde e Guiné, um encontro de
especialistas prepara a defesa das aeronaves.
– Senhores – pede a palavra um capitão de engenharia –, recebemos da PIDE material
sobre o Strella, e o modelo que os turras têm podem operar com velocidade de até 500
metros por segundo para alvos até cerca de 4000 metros devido ao motor de propulsão
que os russos introduziram e que não existia no modelo de 1968. Isto quer dizer que o
FIAT gina está em desvantagem...
– ... senhor – corta, com respeito, um alferes aviador –, podemos alterar a pintura da
fuselagem e colocar material que dificulte a identificação térmica feita pelos misseis!
– Muito bem, esse era um dos pormenores que queria conversar com todos. Muito
bem, alferes. Vamos lá... – concorda o capitão que, pelo semblante, foi apanhado de
surpresa ou não está habituado a parcerias.
Na roça, entre colinas, num terreno meio plano meio inclinado, uma casa térrea de
quatro cómodos, que fora de um colono francês, Benjamim ouve o ronco dos gina e
observa os voos de reconhecimento e os de ataque.
Três dias antes, duas unidades de tropa comando entraram numa tabanca e arrasaram
tudo o que fosse pessoa fora e dentro da cubatas. – Aqui não tem mais turra do PAIGC,
tem comando e com comando manda Portugal! – vociferava um sargento após degolar
um idoso e fazer daquela cabeça bola de futebol.
Do morro próximo, o brasuca preparava umas armadilhas de caça quando dois gina
passaram rasando a tabanca e, ainda o ronco estava no ambiente, já a tropa comando
cercava e assentava a destruição naquele lugar. Um erro de contrainformação levou os
portugueses a pensarem que “Cabral e os seus turras terão encontro logístico na oitava
tabanca”. Homens e mulheres foram trucidados pela máquina de guerra oleada por
dados de uma inteligentzia em operação precária. Resultado? Um cenário macabro que
servia de circo para psicopatas em delírio bélico. E perto, muito perto de Benjamim,
uma base para lançamento de misseis acabara de ser instalada. – O riso criminoso dessa
corja tem os dias contados! – murmurou, enquanto via guerrilheiros disfarçados de
camponeses em suas tarefas de camuflagem. Ainda no meio do barulho de tiros e
granadas observou uma coluna de fumo perto da casa. O corpo pareceu-lhe dilacerado
por uma torrente d´agua gelada. O coração parou? Não sabia. Mas correu de tal maneira
morro abaixo que chegou lá com a língua de fora. Perto da casa, Maria queimava
material que não poderia mais utilizado. – Caaarraa!, pensei que tivesse sido bomba
dos gina quando vi a fumaça! – disse, sem fôlego, diante do olhar assustado da sua fula.
A seu lado está Maria, aterrorizada. Ao olhar a companheira lembrou: – Ah, a Mara,
mulher do Tônio (hum... o casal se foi no horror daquele dia...), olha, bem, ela veio
perguntar por que tu fugiste do Boé naquela idade. Eu não respondi, pois, não sabia o
que responder. Nem sei. Algum segredo de família...?!
– Eu recebi muito prazer em viver contigo, meu bem, mas também dei muito prazer a
ti – diz ela, entre a gaiatice e a zombaria.
– Ai, bem, nada de segredinhos agooorraa! Desembucha que agora quero saber.
Ela senta sob uma árvore e ele faz o mesmo.
– Durante as férias escolares o povo fula, e assim como outros povos da nossa África,
e até o teu, meu n´gola, prepara meninos e meninas para vida... sem prazer!
– Ai, o fanado...
Ele fica indignado consigo mesmo. Mas, como é que eu esqueci?...
– Então, cara, o teu irmão velho tirou a irmãzinha da cerimônia do fanado...
– Sim, e tu gostou de viver a alegria que a tua fula tinha no corpo e na alma. Mas, e
ainda hoje, ninguém pode saber que eu sou uma mulher fula que sente prazer. Aprendi
tudo com as matriarcas do Bijagós...
– ... as de Orango?! Ai, mas como é que às vezes eu não penso? Sim, claro,
claríssimo, bem..., aquele peixe estava uma delícia, mas a sobremesa fula dura até hoje!
Maria e Benjamim desatam uma risada que parecia retida há muito tempo, e ficam
assim num abraço hilário por alguns segundos.
Ainda na messe, o capitão e o alferes conversam após a reunião de comando.
Refrescam a garganta com cerveja gelada.
– Capitão, o senhor acha mesmo que teremos como fazer frente a essas armas russas
do PAIGC?
– Difícil dizer sim, mas vamos tentar – responde, e atira: – Mas, também sabemos que
existe uma espécie de depuração dentro do PAIGC que pode eliminar alguns dos
cabeças que queremos neutralizar.
– Sim esse rumor circula entre os oficiais de Estado Maior, mas é só murmúrio... Ah,
por falar em murmúrio: ouvi dizer que o gajo do pingalim está a escrever um livro só
para contrariar a corja do Caetano e do Costa Gomes...
– Meu caro alferes – o capitão fala baixo e olha de soslaio para a piscina do QG onde
muitos oficiais se refrescam como se estivessem em Lisboa –, vamos devagar com esse
andor que o santo é oco, hein!, e se você se dirige a mim para falar do nosso general
Spínola com o termo gajo do pingalim é porque já sabe que ele está a par da
movimentação dos oficiais em Lisboa e das cartas que já circulam em Bissau sobre o
descontentamento da tropa...
– Nem a PIDE sabe como parar as coisas. Do jeito que estão o Marcello Caetano vai
ter que dançar conforme a nossa música, e está tão encurralado que o Thomaz já o
avisou para nem pensar em demissão! E por aqui, nós também poderemos dançar a
qualquer momento a última dança que o PAIGC irradiar, mesmo com o Amílcar Cabral
em guerra com os seus generais da Guiné contrários à união com Cabo Verde!
A poucos metros, oficiais do Estado Maior continuam a descansar os corpos e as
mentes numa piscina que recebe os que estão de passagem, os que se juntam ao
comando e os que, por acaso, têm algumas horas de gozo na alegria de estarem a um
passo da peluda; e, outros ainda, que participam da tímida, mas importante ruptura
hierárquica com o Poder centrado no Terreiro do Paço. – O vigoroso Portugal
ultramarino e colonialista começa a perder o seu pilar que são as forças armadas e não a
polícia secreta montada pelo Salazar. E tudo a partir daqui, desta Bissau que deveria ser
a sua joia de estimação... – remata o capitão.
Capítulo 6
1973.
Janeiro, madrugada do dia 20.
Numa zona rural de Conakry, com sinal de cansaço no olhar, assim como a
companheira, Amílcar Cabral manobra o carro Volkswagen e estaciona debaixo de um
telheiro. Estão próximos à casa térrea naturalmente enfeitada com uma grande árvore, a
mangueira que habitualmente dá sombra para algumas horas de leitura ou reflexão do
grande dirigente.
Cabral percebe que a sua vida está por um fio, mas precisa dar continuidade ao seu
projeto de vida: ser e estar militante pela liberdade. – Podem matar-nos, mas não terão o
gostinho de nos humilhar com a prisão e um julgamento interno. Podemos morrer, mas
a batalha pela África livre é uma realidade que não pode ser desativada! – decidira ele
horas antes. Alguns companheiros de primeira jornada revoltaram-se contra a ideia de
uma África unida a partir de Cabo Verde e Guiné, têm-no agora como inimigo, quiçá,
mais perigoso que os colonialistas que estupram, torturam e matam suas irmãs, suas
mães, suas mulheres, suas filhas. Eles “pensam como os sobas sempre pensaram e
agiram: viver em clãs e longe da civilização”, analisou numa das últimas reuniões. Um
desaforo para os seus detratores que, então, o juraram de morte...
Da escuridão alguns faróis de carro iluminaram a noite com foco no Volkswagen. –
Amarrem o Amílcar! – alguém ordenou, atrás dos faróis.
– São eles! – a companheira de Cabral logo reconhece a voz que ouvira tantas vezes
discutir com Amílcar.
O casal é cercado, mas Cabral resiste em ser amarrado como criminoso. – Não me
amarrem! – grita, querendo se libertar da ofensa à sua dignidade.
Na sua frente está o camarada guineense Inocêncio Kani. – Podes atirar, não vais
levar-me amarrado! – grita Cabral de novo. Kani dispara e uma bala atinge o fígado. –
Por que é que a liberdade não pode ser conversada? – quer saber, em meio à dor que
sente. A sua companheira é arrastada para longe do local, mas vê o bárbaro operacional
apontar a arma para a cabeça do companheiro. O seu grito é abafado pela metralhadora
de Kani: uma rajada despeja algumas balas na cabeça do homem que se tornara bandeira
da luta libertadora pela África. Guineenses ensandecidos cospem sangue na alma que os
ensinou a respirar liberdade, e na inconsciência do mando de um poder temporário
descem à profundeza do mal que só escuta o silêncio da destruição humana.
Ninguém é o que é
na África sem saber de si,
das raízes e da comunhão na fé
de cada grupo. Não se está por aí
pelo que parece que é,
mas pela força do ser aqui!
O guerreiro espiritual canta aqui
a liberdade e a leva por aí...
J. C. Macedo
– “Um Poema Para Amílcar Cabral”.
Guimarães, 1973.
A mortalha do horror cobre a África em 20 de Janeiro de 1973 e um grito de angústia
percorre uma humanidade perplexa.
Entre as colinas do Boé, dois dias depois.
O irmão velho de Maria chega esbaforido na roça. – Ei, Maria. Ei! – grita.
Ela e Benjamim estão do outro lado da casa. Dois helis Alouette sobrevoam um alvo a
menos de mil metros de distância, ou prestam socorro. É o que o casal observa quando
escutam aquela voz conhecida. – O que o cara faz aqui?! – assustou-se ele.
Dão a volta na casa e encontram-no já sentado e à sombra de uma árvore. – Ai, meu
irã..., vou buscar água fresca! – diz Maria e corre para o interior. Benjamim observa o
rosto desconsolado de Mansur. Este cara não está assim por causa do cansaço da
caminhada..., pensa. – Toma, beb´água! – escuta Maria, que passa ao irmão uma caneca
de alumínio recolhida entre material largado na mata pela tropa portuguesa.
Com o casal visivelmente perturbado na sua frente, Mansur desata a chorar e murmura
a custo: – A nossa gente, guerrilheiros da Guiné!, mataram o camarada Amílcar Cabral,
lá em Conakry...
Maria e Benjamim não sabem se choram, se riem, ou se pegam naquele corpo
desanimado e o sacodem para ver se aquela lenga-lenga é ou não alucinação de velho
com os pés para a cova.
– É, eu também fiquei assim quando soube! – diz, ainda balbuciando.
– Ai, meu irã, meu irmão velho, mas quem fez isso, quem teve essa ousadia?
– O nosso engenheiro da liberdade foi morto por uma rajada na cabeça. Quem puxou
o gatilho? O camarada Kani.
A perplexidade toma conta da irmã e de Benjamim. Sabiam que as dificuldades de
entendimento entre comandantes da Praia e de Bissau eram graves, mas não se mata por
diferenças ideológicas, conversa-se.
– O grupo de Kani queria prender e julgar Cabral, mas ele recusou-se em ser
humilhado e o Kani não teve nem piedade e desfez a cabeça do Cabral na frente da
companheira. Sei que o presidente Touré, em Conakry, já prendeu o grupo do Kani e
que vai ser julgado por essa barbaridade política.
– Mas esse Kani não agiu a mando da PIDE e da tropa portuguesa para facilitar o
caminho da resistência ao nosso combate?
Mansur encara Maria e diz: – É o que pensamos, mas... E enquanto prensamos, a
nossa batalha continua, pois, em uma semana as bases de misseis estarão operacionais e
esses Aloette e esses FIAT gina vão ter a nossa resposta, mesmo que os portugueses não
tenham a ver com a morte do nosso engenheiro da liberdade!
Entre as tropas portuguesas, em Bissau, a notícia da morte de Amílcar Cabral não é
uma bomba, o oficialato sabia das encrencas internas do PAIGC que podem neutralizar
os esforços políticos de terrorismo contra as NT por parte de Amílcar Cabral, mas
também sabia que a neutralização interna do turra engenheiro não vai parar o IN, pelo
que todos, os da situação salazarista e os spinolistas descontentes, concluíram que iriam
enfrentar combates mais intensos em Cabo Verde e na Guiné.
Bissau, a capital e o QG da tropa portuguesa.
– E agora?
– Olá, capitão – cumprimenta o alferes. – E agora? Ah, pois... Tudo na mesma como
no quartel d´Abrantes!
– E a PIDE?
– Quietinha, como se nem tivesse escutado a notícia de Conakry...
– Ou seja, alferes: o problema fica sempre para a tropa! Ninguém gosta de sujar as
mãos quando um acontecimento internacional se espalha como merda na ventoinha...
Nas colinas do Boé, o casal Maria e Benjamim observa Mansur entrar na mata e
seguir o rumo que a batalha pela liberdade traça para as pessoas corajosas. Ele ergue os
dois dedos de uma mão em forma de “V” e o casal responde com o mesmo sinal na
esperança de uma vitória pela paz e a justiça.
Os ginas já não passam pelas colinas tão rotineiramente como antes e até os
helicópteros deixaram de aparecer. Os portugueses sabem que qualquer voo entre as
colinas do Boé será um voo curto. Os nossos russos, como chamam os especialistas que
foram na URSS aprender a operar com os misseis Strella, já estão a postos.
Além do abraço do casal está uma África prenhe de si mesma e pronta para se mostrar
ao mundo com todas as suas cores e falas. Não é uma nova tropicália, como querem os
intelectuais brancos do Brasil racista e aliados do salazarismo católico, é uma África
livre que já se insinua na saudade de Amílcar Cabral que paira e espraia pelo continente
e pelo mundo pluralista e dialogante.
NOTAS
AHMED SÈKOU TOURÉ – Presidente da Guiné-Conakry, que ali implantou um governo ao estilo soviético, com dominação de partido político único e fuzilamento ou encarceramento de quaisquer tipos de opositores. Conakry serviu de base (e ligação com Dakar) para diversos grupos montarem suas ações contra as tropas portuguesas
aquarteladas em Angola [MPLA], S. Tomé e Príncipe [MLSTP], Moçambique [FRELIMO], Guiné e Cabo Verde [PAIGC]. AMÍLCAR CABRAL – Obreiro intelectual do PAIGC e o mais conhecido dirigente africanista da época anti-
colonial, morto em 20 de Janeiro de 1973 em Conakry, por diferenças geopolíticas em processo e ruptura no próprio
PAIGC, e não pela polícia política de Salazar.
ANTÓNIO SPÍNOLA – “Oficial general das Forças Armadas portugueses, nomeado comandante e governador-
geral para a Guiné enquanto brigadeiro, onde percebeu que a denominada Guerra Colonial era já um caso perdido
para Portugal. Além de ter respeitado as etnias africanas, fez diplomacia secreta com Léopold Senghor, presidente do
Senegal, mas também comandou a Operação Mar Verde invadindo Conakry. Convidado por Marcello Caetano para
um cargo ministerial, em 1973, rejeitou em nome das recusas salazaristas em rever a política colonial. Afastado do
comando, publicou em 1974, antes de 25 de Abril, o livro ´Portugal e o Futuro ,́ considerado um ataque ao
salazarismo-caetanismo. Foi um militar essencialmente anti-comunista e tentou, em 1975, um contra-golpe em
Lisboa para minar a democracia que se instalava em Portugal, mas teve que se refugiar na Espanha. Como a memória
é curta, veio a ser premiado com o posto de marechal anos depois... Alguns dos militares e políticos da ´sua´
intentona refugiaram-se no Brasil, como já tinham feito muitos agentes da PIDE” [J. C. Macedo. Coimbra, 1975].
CUBATA – Cabana de pau e colmo.
FANADO – Cerimónia contra o prazer sexual, para meninos e meninas, que pode durar, dependendo das tribos,
semanas ou vários meses, e envolve a transmissão de uma série de conhecimentos dos mais velhos para os mais
novos. O ritual termina com a realização da excisão feminina e da circuncisão masculina. Normalmente, o fanado
decorre em período de férias escolares, entre Julho e Setembro.
GRUMETE – Elementos da elite cabo-verdeana que acenavam com apoio aos nacionalistas, mas não desdenhavam a
possibilidade de ocupar cargos na administração colonial portuguesa.
GUERRA COLONIAL – “Termo utilizado para designar o período de 1961 a 1974 no qual as tropas portuguesas
tiveram que se confrontar com as tropas de guerrilheiros nacionalistas em todas as possessões coloniais, ou
ultramarinas, sob seu controle político e administrativo desde a época das Descobertas Marítimas, iniciadas no Século
XV pela costa africana. O golpe militar de oficiais descontentes com os rumos de Portugal, ação que começou em
Bissau e que teve nos spinolistas Otelo e Eanes importantes apoios, derrubou o regime salazarista-caetanista [Salazar
e seu substituto Marcello Caetano] e a PIDE, em 25 de Abril de 1974, pondo fim a esse período de confrontações e,
logo, tiveram início os processos de independência sovietizada de Angola, S. Tomé e Príncipe, Guiné, Cabo Verde e
Moçambique, dando origem a uma fuga de portugueses e africanos para Lisboa, movimento que ficou conhecido
como os retornados da descolonização com marcar psicológicas tão graves quanto as causadas pela própria Guerra
Colonial” [J. C. Macedo. Coimbra, 1975].
IGREJISTAS – Termo utilizado pelo poeta J. C. Macedo para se referir aos dirigentes das igrejas institucionalizadas
como Poder político-administrativo e muitas vezes parte do Poder no esforço das guerras.
IN – Abreviatura de Inimigo.
NATO – ou OTAN, Organização do Tratado Atlântico Norte, constituída para defender militarmente os interesses
ocidentais-cristãos diante do PACTO DE VARSÓVIA, o tratado afim constituído pela URSS para defender seus
próprios interesses após a partilha internacional feita entre a potências vencedoras da II GG.
N´GOLA – Antigo reino africano que originou Angola. Dessa região saíram os principais negros-ferreiros para
operarem minas no Brasil, a partir da mina da Família Sardinha no Cerro Berassucaba, no final do Século XVI.
ONU – Organização das Nações Unidas.
PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde.
PELUDA – Expressão utilizada pela tropa miliciana portuguesa para designar os últimos meses de serviço militar
obrigatório, quando os soldados deixavam crescer a barba e o cabelo, e desleixavam mesmo o serviço nessa época.
PICADAS – Estradas de terra no meio da floresta e entre rios.
PIDE – Polícia Internacional de Defesa do Estado. Polícia secreta portuguesa que o Governo salazarista transformou
numa máquina de torturar e matar contra opositores do seu regime católico-fascista. Foram agentes da PIDE que
arquitetaram uma emboscada e assassinaram, em Espanha, o general Humberto Delgado e sua secretária brasileira. O
mando político foi de Salazar.
NT – Abreviatura de Nossas Tropas.
RDA – República Democrática Alemã. “RDA foi parte do bloco da URSS onde muitos grupos e personalidades do
mundo tiveram apoio para estruturarem a resistência contra ditaduras fascistas em seus países, sem contudo
questionarem a ditadura soviética, de igual modo violenta e sanguinária, também vigente na pseudo democracia
alemã na cortina de ferro” [J. C. Macedo. Guimarães, 1981].
SALAZAR – António de Oliveira Salazar, primeiro-ministro de Portugal, que fez do país a sua casa e o quintal da
Igreja católica, da qual era um servo qualificado.
TABANCA - Aldeia
TARRAFAL – “A penitenciária de Tarrafal sempre identificou os serviços de acondicionamento político de
opositores com a tortura, e com a chegada dos opositores africanos e metropolitanos, a partir de 1961, o
estabelecimento transformou-se em campo de concentraçãopara morte lenta, no pior estilo nazista. Uma nódoa, entre
outras, na história política portuguesa” [J. C. Macedo. Coimbra, 1975]. Neste estabelecimento situado na Ilha do Sal,
em Cabo Verde, estiveram encarcerados, entre 1936 e 1954, 357 anti-fascistas, na sua maioria portugueses e, depois
da sua reabertura entre 1961 e 1974, foram aprisionados 227 militantes e combatentes dos movimentos africanos anti-
coloniais de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde, quando morreram 36 presos. O campo foi fechado após o golpe de
Estado de 25 de Abril de 1974, em Lisboa.
TJIA – Turma de Jovens Intelectuais Anarquitas, fundada no norte de Portugal, com ações de panfletagem anti-
fascista e anti-colonial nas regiões do Minho e Douro.
TURRA – Expressão que entre os militares e políticos portugueses ligados ao regime salazarista designava pessoa
africana.