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| ENTREVISTA |

Padre João Claudio Nascimento

“Quando me ordenei padre,fizeram apostas que eu nãoduraria nem dois anos”_Com 27 tatuagens, padre carioca que é lutador de jiu-jítsu e apaixonadopor carnaval transformou em fenômeno missa em devoção a São Miguel

PAULA [email protected]

Ele é forte, usa roupasgrunge e cabelo no estilomoicano, tem mais de 20tatuagens espalhadas pe-lo corpo, é campeão dejiu-jítsu e apaixonado pe-lo carnaval. Quem o vêcom esse jeitão “bad boy”não imagina que ele é pa-dre. “Para alguns sou umpouco exótico sim”, ad-mite João Claudio Nasci-mento, 44 anos.

Embora concilie a vidano tatame com a do altar, écom a batina e não com okimonoqueelecumpresualuta mais árdua. O padrechamou a atenção por cau-sa das missas lotadas quecomanda numa paróquiaem Niterói, no Rio de Ja-neiro.Antes,a igrejaestavavazia.Agora,atrai cadavezmais fiéis, de diversas re-ligiões, a maioria devotosde São Miguel Arcanjo.

Esse fenômeno é conta-do no recém-lançado livro“Uma vida de luta: a in-crível história do padre queresgatou a devoção a SãoMiguel” (Editora Máquinade Livros). A obra não ficasó nisso. Narra a trajetóriacheia de altos e baixos dopadreJoãoCláudio,quete-ve que vencer uma senten-ça de morte após um diag-nóstico falso de câncer ter-minal. Confira um poucomais dessa figura curiosa.

O senhor é uma figurabemdiferente,nãoé,pa-dre?É verdade (risos). Para

alguns, sou um pouco

exótico.

Semprepraticoujiu-jítsu?Sempre. Eu sou a tercei-

ra geração da minha fa-mília dentro do jiu-jítsu.Praticamente, nasci den-tro de um tatame. Meustiosemeupai tinhamaca-demia lá na década de1970. Com um ano deidade, eu colocava o ki-monoeiaparaotatame.Eminha infância e adoles-cência passei dentro detatame de jiu-jítsu e de ju-dô também. Interrompiquando entrei no seminá-rio e só fazia ocasional-

mente, nas férias. Depois,quando me ordenei pa-dre, em 2001, passei porum processo de depres-são, síndrome do pânico,por uma estafa. Foi quan-do meu tio me levou parapraticar jiu-jítsu de novo,para me ajudar no trata-mento. Depois de recupe-rado, retomei minha vidasacerdotal.

O senhor participava decompetições?Sim. Até que uma vez

competi, mas estava com160 quilos. Perdi a lutapara mim mesmo. E re-

solvi operar o estômago.O jiu-jítsu foi importantepara mim quando recebium diagnóstico errado decâncer terminal, em2016. Me deram sete me-ses de vida, e resolvi en-cerrar meus últimos me-ses retomando atividadesque eu fazia. O jiu-jítsu,por exemplo. Voltei a trei-nar sério, aproveitando opouco tempo que acheique tinha. Cheguei a sercampeão na minha cate-goria numa copa aqui emSão Gonçalo, e fui vi-ce-campeão na liga dedesportos e jiu-jítsu. Só

fui vice porque lutei can-sado. Havia celebradoduas missas e um batiza-do. Não estava preparadofisicamente. É difícil con-ciliar a vida de atleta coma de paróquia.

Como foi essa históriadedepressão?Eu já era padre re-

cém-ordenado. Tinhacom 24 anos, era muitonovo e fazia muitas ati-vidades ao mesmo tem-po. Fazia mestrado emTeologia na PUC, tinha ostrabalhos na paróquia eoutros trabalhos pasto-

rais. Tive um cansaçomental muito forte quegerou depressão e síndro-me de pânico. Foi por ex-cesso de trabalho mesmo.Eu não tinha carro e pas-sava muitas horas por diadentro de ônibus.

Ninguém pensa que umpadre pode ter depres-são...Já ouviu falar na síndro-

medeBurnout?Ébemco-mum em padres. É con-siderada uma síndromeque ataca religiosos porcausa da pressão grande,não poder errar. Não é fal-ta de fé, desespero. Nósreligiosos também somossuscetíveis a problemasfísicos. O padre Fábio deMelo e o padre MarceloRossi já tiveram depres-são.Noanopassado,maisde 10 padres se suicida-ram por causa disso. Tiveuma prostração forte, ecansaço se transformouem tristeza, e a tristezaem medo. Eu não sabiamuito bem explicar o queaconteceu. Fui me dei-xando levar.

Comosaiudessa?Foi uma das coisas que

me levaram a voltar parao esporte. Meus paro-quianos e as autoridadesda igreja me apoiaram.Porque a gente precisa terqualidade de vida paraservir. Além do jiu-jítsu,que me ajudou muito, meajudou muito, tive gran-de surpresa com a CançãoNova. Um dos meus tra-balhos além da paróquia

era contato com CançãoNova de São Paulo. Umdia, o fundador, padre Jo-nas Abib, me ligou. Atépensei que fosse trote!Eledisse: “pode me encon-trar amanhã às 10 horasem São Paulo?”. Eu fui.Ele me fez o convite paraficar na Canção Nova fa-zendo tratamento de saú-de com médicos. Era paraficar pouco tempo, mas fi-quei quatro meses e fizminha recuperação lá.

Como foi o tratamento,commedicamento?Era uma terapia alternati-

va, com oração com médi-cos, terapia e trabalho. Nãotinharemédioalgum.Eues-crevia.Eraaúnicacoisama-nual que fiz, foi escrever eatender confissões. À noite,os médicos me rezavam.Nosso corpo tem limite.Temos que cuidar da alma,da mente e do corpo. Oequilíbrio dos três é muitoimportante. Hoje prezopelas minhas férias, pelasfolgasque tenho,parades-cansar meu corpo. No es-porte, a gente aprende eter disciplina nesse senti-do. E a oração para mim éfundamental, junto com otreino de jiu-jítsu, que façodiariamente.

Depois veio outro ba-que,anotíciadocâncer.Em2007, fizabariátrica.

Depois de uma cirurgia

dessa, a gente tem que fi-car em acompanhamen-to. Em 2009, repeti osexames. E em 2014 tam-bém. Na época, chegou aacusar algo, fiz biópsia,mas não deu nada. Em2016, procurei meu mé-dico e fui a uma clínica,onde fiz todos os exames.Quando fui buscar, o di-retor me chamou e deu anotícia assim na lata. Eleachava que eu era maispreparado para isso, porser padre. Disse que nãoadiantava fazer cirurgia.Era um câncer no pân-creas que havia se espa-lhado para o estômago.Fiquei atônito. Não quisnem contar para minhamãe, que morava comigoe era idosa. Fui a um mor-ro atrás da igreja lá nobairro e queimei todos osexames. Pensei: vou mor-rer. E comecei a me pre-parar para a morte.

Só que não era verda-de...O exame não era meu. Es-

tava em meu nome, masnão era meu. Nunca penseina vida que médico errasse.Até que eu descobrisse isso,emagreci 15 quilos. Vivi to-do um processo emocional.Fui para a terapia. Eu só“confessei” isso para umapsicóloga, que me ajudoumuito na época. Dentro daminhaespiritualidade,esta-va consciente. Deus é muito

sábiodenãonosdizerquan-do vamos morrer. Mas pen-sei: não vou me entregar,não! Comecei a fazer jiu-jít-su, mudei minha alimenta-ção. Esse período de incer-teza durou quase cinco me-ses. De julho de2016 ao iní-cio de dezembro. Nesse pe-ríodo, surgiu a oportunida-de de viajar com o cardeal,dequemeueraassessor,pa-raRoma.Fuinemtantoparatrabalhar, mas para rezar,medespedir,ondetiveopri-vilégio, numa das maioresprovidências de vida, de darum abraço no papa Fran-cisco. Era meu sonho!

Comofoi isso?Um padre me deu um

convite para encerramen-to do ano da misericórdia,umamissacomopapa.Lá,

meu amigo, que conheciaum dos guardas, foi dis-traí-lo. Nesse momento,me meti no meio dos pa-dres que iam falar com opapa.Chegueipertodeleedisse: “O senhor salvouminha fé”. E o papa res-pondeu: “Obrigado. Euprecisava ouvir isso hoje”.Nós nos abraçamos poruns dois minutos. E euchorei. Passei a mão norosto dele, no anel. A gen-tenão queria se largar.Ro-lou uma conexão muitoforte. Até que o guardapercebeu, e meu amigogritou “João, larga ele!”(risos).Osguardasvierampara cima de mim! O papadisse: “Reza por mim”. Foio maior presente da mi-nha vida.

Mas como descobriuquenão iriamorrer?Quando eu voltei, o car-

deal me chamou, disse queme achava triste, que viaque eu não comia direito.Contei para ele do câncer. Eele falou: “Mas João, vocênão parece estar morrendo.Será que não houve um er-ro?”. Nisso, fui até a casa deumajovemquefrequentavaa missa e estava no terceirocâncer dela. Perguntei dadoença, queria ver os exa-mes... Ela foimemostrandodocumentos. Até que mos-trou um que disse ter sidotrocado na clínica. Por coin-cidência, era a mesma clí-

nica que a minha, o mesmomédico, que ela estava atéprocessando. Decidi ir atéduasclínicasdiferentesere-fiz todososexamesemcadauma delas. Ambos deram omesmo diagnóstico. Achoquealguémquedeviaacharque estava ótimo deve termorrido, porque o exameveio para mim.

E as tatuagens vieramnessaépoca?Sim.Comecei a fazeras ta-

tuagens e gostei. Era coisacaracterística familiar. Masas minhas têm motivos re-ligiosos e familiares. TenhoSão Miguel no braço es-querdo. Uma medalha deSão Bento no peito esquer-do.Umterço,umaoutrade-dicada à Nossa Senhora doSagrado Coração de Jesus,que é uma devoção parti-cular minha. No lado direi-to, tenho umas em home-nagem à minha família. Porexemplo, ao meu pai, queera policial militar e foi as-sassinado em serviço quan-do eu tinha 9 anos. Fiz umburacodebalaparalembrara violência, uma caveira,que representa a morte, en-tre outras.

As tatuagens não causa-ramproblemasnaigreja?Antes de fazê-las, consul-

tei o Código de Direito Ca-nônico, onde não havia ne-nhuma restrição a tatua-gem. Sou mestre em Direi-to Canônico pela Univer-sidade Gregoriana de Ro-ma e em Teoria DogmáticapelaPUC.Masclaroqueto-do mundo me olhou estra-nho. Achavam um absur-do, aindamaisparaumpa-dre que trabalhava direta-mente com o cardeal. Sofrimuito bullying, sobretudonas redes sociais, que são aforma mais covarde que aspessoas têm de atacarumas às outras. Muitos pa-dres têm tatuagem, mas fi-cam no anonimato. Nãomostram. Têm medo. Achoque fui o primeiro a mos-trar. Não levanto bandeira.Graças a Deus o Papa Fran-cisco fezumdiscurso falan-do de tatuagem, dizendoque é um costume cristãoantigo, que não há mal al-gum, desde que não sejacontra a fé. Hoje tenho 27tatuagens, mas pode serque faça mais.

Os fiéis procuram o se-nhor para abençoar astatuagens?Temdezanosquefaçoisso,

principalmente tatuagensde São Miguel. Recebo pes-soas que não entravam naigrejahavia30anos,quesãotatuadas, são de outras re-ligiões, são umbandistas,kardecistas. Faço um traba-lho de evangelização dife-

rente. Tive uma experiênciacom a Igreja Católica e re-solvi ser católico. Mas os co-legas de seminário faziamapostas. Me achavam dife-rente mesmo, autêntico. Eusemprefuimuitoeu.Meen-quadrava nas normas, mastinha meu jeito de ser.Quando me ordenei, tam-bém fizeram apostas, di-ziam que eu não iria durardois anos no sacerdócio.Vou fazer 20 anos como pa-dreeestoumuito feliz.Amooquefaço,amorezarmissa,receber as pessoas.

Eoamorpelosamba,co-mosurgiu?Um dia tive um sonho em

que São Miguel me diziaque a Viradouro só iria ga-nhar o carnaval no dia emqueeleentrassenaavenida.Contei para um pessoal daescola, que me levou parafazer uma missa, para daruma bênção lá na quadra,no barracão. Quando che-guei lá, me surpreendi coma quantidade de católicosque frequentavam minhamissa.Mesenti emcasaesecriou um laço afetivo. Porcoincidênciaounão,naque-le ano, em 2014, entrei naavenida segurando o santo,eaescolaganhou.Temqua-tro anos que desfilo. Vou naala da velha guarda.

Como surgiu a ideia dolivro?Faço essa missa para São

Miguel há dez anos. Antesnão tinha tanta devoção. Evirou coqueluche.Vemgen-tedeoutrosEstadosatéparaamissa.GentedeSãoPaulo,de Minas, de Fortaleza e Es-pírito Santo também. SãoMiguel é o arcanjo mensa-geiro de Deus. Ele tem de-votosnãosónocatolicismo,mas também entre judeus,evangélicoseatémuçulma-nos. Começamos a missapor causa da Campanha daFraternidade, em 2008, cu-jo tema era segurança pú-blica. Quem no céu era ogeneral?SãoMiguel.Então,bora nos apegarmos a ele,pedir proteção! E a devoçãocomeçou a crescer! A missatrouxe à comunidade cora-gemparaenfrentaromedo,a insegurança. Temos mui-tos testemunhos de livra-mentodeassalto,de tiro,desequestro. Fazemos a missade dia porque as pessoasnão querem sair de casa ànoite. E ainda é transmitidapela Internet, até para o ex-terior. A missa do dia 29 desetembro foi acompanhadapor200milpessoaspela In-ternet.Daíveioahistóriadolivro, onde resolvemos con-tar sobre a missa a partir daminha vida. Tem 10 anosque escuto testemunhos,mas não havia dado o meuainda.

FOTOS: DIVULGAÇÃO

A missa trouxeà comunidadea coragem paraenfrentar omedo, ainsegurançaem relação àviolênciano Rio”