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Vida & ciência. | 28 SÁBADO, 08 DE DEZEMBRO DE 2018 | 27 SÁBADO, 08 DE DEZEMBRO DE 2018 WhatsApp: (27) 98135.8261 | Telefone: (27) 3321.8446 ATENDIMENTO AO ASSINANTE: (27) 3321-8699 Editora: Daniella Zanotti z [email protected] | ENTREVISTA | Padre João Claudio Nascimento “Quando me ordenei padre, fizeram apostas que eu não duraria nem dois anos” _Com 27 tatuagens, padre carioca que é lutador de jiu-jítsu e apaixonado por carnaval transformou em fenômeno missa em devoção a São Miguel PAULA STANGE [email protected] Ele é forte, usa roupas grunge e cabelo no estilo moicano, tem mais de 20 tatuagens espalhadas pe- lo corpo, é campeão de jiu-jítsu e apaixonado pe- lo carnaval. Quem o vê com esse jeitão “bad boy” não imagina que ele é pa- dre. “Para alguns sou um pouco exótico sim”, ad- mite João Claudio Nasci- mento, 44 anos. Embora concilie a vida no tatame com a do altar, é com a batina e não com o kimono que ele cumpre sua luta mais árdua. O padre chamou a atenção por cau- sa das missas lotadas que comanda numa paróquia em Niterói, no Rio de Ja- neiro. Antes, a igreja estava vazia. Agora, atrai cada vez mais fiéis, de diversas re- ligiões, a maioria devotos de São Miguel Arcanjo. Esse fenômeno é conta- do no recém-lançado livro “Uma vida de luta: a in- crível história do padre que resgatou a devoção a São Miguel” (Editora Máquina de Livros). A obra não fica só nisso. Narra a trajetória cheia de altos e baixos do padre João Cláudio, que te- ve que vencer uma senten- ça de morte após um diag- nóstico falso de câncer ter- minal. Confira um pouco mais dessa figura curiosa. O senhor é uma figura bemdiferente,nãoé,pa- dre? É verdade (risos). Para alguns, sou um pouco exótico. Sempre praticou jiu-jítsu? Sempre. Eu sou a tercei- ra geração da minha fa- mília dentro do jiu-jítsu. Praticamente, nasci den- tro de um tatame. Meus tios e meu pai tinham aca- demia lá na década de 1970. Com um ano de idade, eu colocava o ki- mono e ia para o tatame. E minha infância e adoles- cência passei dentro de tatame de jiu-jítsu e de ju- dô também. Interrompi quando entrei no seminá- rio e só fazia ocasional- mente, nas férias. Depois, quando me ordenei pa- dre, em 2001, passei por um processo de depres- são, síndrome do pânico, por uma estafa. Foi quan- do meu tio me levou para praticar jiu-jítsu de novo, para me ajudar no trata- mento. Depois de recupe- rado, retomei minha vida sacerdotal. O senhor participava de competições? Sim. Até que uma vez competi, mas estava com 160 quilos. Perdi a luta para mim mesmo. E re- solvi operar o estômago. O jiu-jítsu foi importante para mim quando recebi um diagnóstico errado de câncer terminal, em 2016. Me deram sete me- ses de vida, e resolvi en- cerrar meus últimos me- ses retomando atividades que eu fazia. O jiu-jítsu, por exemplo. Voltei a trei- nar sério, aproveitando o pouco tempo que achei que tinha. Cheguei a ser campeão na minha cate- goria numa copa aqui em São Gonçalo, e fui vi- ce-campeão na liga de desportos e jiu-jítsu. Só fui vice porque lutei can- sado. Havia celebrado duas missas e um batiza- do. Não estava preparado fisicamente. É difícil con- ciliar a vida de atleta com a de paróquia. Como foi essa história de depressão? Eu era padre re- cém-ordenado. Tinha com 24 anos, era muito novo e fazia muitas ati- vidades ao mesmo tem- po. Fazia mestrado em Teologia na PUC, tinha os trabalhos na paróquia e outros trabalhos pasto- rais. Tive um cansaço mental muito forte que gerou depressão e síndro- me de pânico. Foi por ex- cesso de trabalho mesmo. Eu não tinha carro e pas- sava muitas horas por dia dentro de ônibus. Ninguém pensa que um padre pode ter depres- são... Já ouviu falar na síndro- me de Burnout? É bem co- mum em padres. É con- siderada uma síndrome que ataca religiosos por causa da pressão grande, não poder errar. Não é fal- ta de fé, desespero. Nós religiosos também somos suscetíveis a problemas físicos. O padre Fábio de Melo e o padre Marcelo Rossi já tiveram depres- são. No ano passado, mais de 10 padres se suicida- ram por causa disso. Tive uma prostração forte, e cansaço se transformou em tristeza, e a tristeza em medo. Eu não sabia muito bem explicar o que aconteceu. Fui me dei- xando levar. Como saiu dessa? Foi uma das coisas que me levaram a voltar para o esporte. Meus paro- quianos e as autoridades da igreja me apoiaram. Porque a gente precisa ter qualidade de vida para servir. Além do jiu-jítsu, que me ajudou muito, me ajudou muito, tive gran- de surpresa com a Canção Nova. Um dos meus tra- balhos além da paróquia era contato com Canção Nova de São Paulo. Um dia, o fundador, padre Jo- nas Abib, me ligou. Até pensei que fosse trote! Ele disse: “pode me encon- trar amanhã às 10 horas em São Paulo?”. Eu fui. Ele me fez o convite para ficar na Canção Nova fa- zendo tratamento de saú- de com médicos. Era para ficar pouco tempo, mas fi- quei quatro meses e fiz minha recuperação lá. Como foi o tratamento, com medicamento? Era uma terapia alternati- va, com oração com médi- cos, terapia e trabalho. Não tinha remédio algum. Eu es- crevia. Era a única coisa ma- nual que fiz, foi escrever e atender confissões. À noite, os médicos me rezavam. Nosso corpo tem limite. Temos que cuidar da alma, da mente e do corpo. O equilíbrio dos três é muito importante. Hoje prezo pelas minhas férias, pelas folgas que tenho, para des- cansar meu corpo. No es- porte, a gente aprende e ter disciplina nesse senti- do. E a oração para mim é fundamental, junto com o treino de jiu-jítsu, que faço diariamente. Depois veio outro ba- que, a notícia do câncer. Em 2007, fiz a bariátrica. Depois de uma cirurgia dessa, a gente tem que fi- car em acompanhamen- to. Em 2009, repeti os exames. E em 2014 tam- bém. Na época, chegou a acusar algo, fiz biópsia, mas não deu nada. Em 2016, procurei meu mé- dico e fui a uma clínica, onde fiz todos os exames. Quando fui buscar, o di- retor me chamou e deu a notícia assim na lata. Ele achava que eu era mais preparado para isso, por ser padre. Disse que não adiantava fazer cirurgia. Era um câncer no pân- creas que havia se espa- lhado para o estômago. Fiquei atônito. Não quis nem contar para minha mãe, que morava comigo e era idosa. Fui a um mor- ro atrás da igreja lá no bairro e queimei todos os exames. Pensei: vou mor- rer. E comecei a me pre- parar para a morte. Só que não era verda- de... O exame não era meu. Es- tava em meu nome, mas não era meu. Nunca pensei na vida que médico errasse. Até que eu descobrisse isso, emagreci 15 quilos. Vivi to- do um processo emocional. Fui para a terapia. Eu só “confessei” isso para uma psicóloga, que me ajudou muito na época. Dentro da minha espiritualidade, esta- va consciente. Deus é muito sábio de não nos dizer quan- do vamos morrer. Mas pen- sei: não vou me entregar, não! Comecei a fazer jiu-jít- su, mudei minha alimenta- ção. Esse período de incer- teza durou quase cinco me- ses. De julho de 2016 ao iní- cio de dezembro. Nesse pe- ríodo, surgiu a oportunida- de de viajar com o cardeal, de quem eu era assessor, pa- ra Roma. Fui nem tanto para trabalhar, mas para rezar, me despedir, onde tive o pri- vilégio, numa das maiores providências de vida, de dar um abraço no papa Fran- cisco. Era meu sonho! Como foi isso? Um padre me deu um convite para encerramen- to do ano da misericórdia, uma missa com o papa. Lá, meu amigo, que conhecia um dos guardas, foi dis- traí-lo. Nesse momento, me meti no meio dos pa- dres que iam falar com o papa. Cheguei perto dele e disse: “O senhor salvou minha fé”. E o papa res- pondeu: “Obrigado. Eu precisava ouvir isso hoje”. Nós nos abraçamos por uns dois minutos. E eu chorei. Passei a mão no rosto dele, no anel. A gen- te não queria se largar. Ro- lou uma conexão muito forte. Até que o guarda percebeu, e meu amigo gritou “João, larga ele!” (risos). Os guardas vieram para cima de mim! O papa disse: “Reza por mim”. Foi o maior presente da mi- nha vida. Mas como descobriu que não iria morrer? Quando eu voltei, o car- deal me chamou, disse que me achava triste, que via que eu não comia direito. Contei para ele do câncer. E ele falou: “Mas João, você não parece estar morrendo. Será que não houve um er- ro?”. Nisso, fui até a casa de uma jovem que frequentava a missa e estava no terceiro câncer dela. Perguntei da doença, queria ver os exa- mes... Ela foi me mostrando documentos. Até que mos- trou um que disse ter sido trocado na clínica. Por coin- cidência, era a mesma clí- nica que a minha, o mesmo médico, que ela estava até processando. Decidi ir até duas clínicas diferentes e re- fiz todos os exames em cada uma delas. Ambos deram o mesmo diagnóstico. Acho que alguém que devia achar que estava ótimo deve ter morrido, porque o exame veio para mim. E as tatuagens vieram nessa época? Sim. Comecei a fazer as ta- tuagens e gostei. Era coisa característica familiar. Mas as minhas têm motivos re- ligiosos e familiares. Tenho São Miguel no braço es- querdo. Uma medalha de São Bento no peito esquer- do. Um terço, uma outra de- dicada à Nossa Senhora do Sagrado Coração de Jesus, que é uma devoção parti- cular minha. No lado direi- to, tenho umas em home- nagem à minha família. Por exemplo, ao meu pai, que era policial militar e foi as- sassinado em serviço quan- do eu tinha 9 anos. Fiz um buraco de bala para lembrar a violência, uma caveira, que representa a morte, en- tre outras. As tatuagens não causa- ram problemas na igreja? Antes de fazê-las, consul- tei o Código de Direito Ca- nônico, onde não havia ne- nhuma restrição a tatua- gem. Sou mestre em Direi- to Canônico pela Univer- sidade Gregoriana de Ro- ma e em Teoria Dogmática pela PUC. Mas claro que to- do mundo me olhou estra- nho. Achavam um absur- do, ainda mais para um pa- dre que trabalhava direta- mente com o cardeal. Sofri muito bullying, sobretudo nas redes sociais, que são a forma mais covarde que as pessoas têm de atacar umas às outras. Muitos pa- dres têm tatuagem, mas fi- cam no anonimato. Não mostram. Têm medo. Acho que fui o primeiro a mos- trar. Não levanto bandeira. Graças a Deus o Papa Fran- cisco fez um discurso falan- do de tatuagem, dizendo que é um costume cristão antigo, que não há mal al- gum, desde que não seja contra a fé. Hoje tenho 27 tatuagens, mas pode ser que faça mais. Os fiéis procuram o se- nhor para abençoar as tatuagens? Tem dez anos que faço isso, principalmente tatuagens de São Miguel. Recebo pes- soas que não entravam na igreja havia 30 anos, que são tatuadas, são de outras re- ligiões, são umbandistas, kardecistas. Faço um traba- lho de evangelização dife- rente. Tive uma experiência com a Igreja Católica e re- solvi ser católico. Mas os co- legas de seminário faziam apostas. Me achavam dife- rente mesmo, autêntico. Eu sempre fui muito eu. Me en- quadrava nas normas, mas tinha meu jeito de ser. Quando me ordenei, tam- bém fizeram apostas, di- ziam que eu não iria durar dois anos no sacerdócio. Vou fazer 20 anos como pa- dre e estou muito feliz. Amo o que faço, amo rezar missa, receber as pessoas. E o amor pelo samba, co- mo surgiu? Um dia tive um sonho em que São Miguel me dizia que a Viradouro só iria ga- nhar o carnaval no dia em que ele entrasse na avenida. Contei para um pessoal da escola, que me levou para fazer uma missa, para dar uma bênção lá na quadra, no barracão. Quando che- guei lá, me surpreendi com a quantidade de católicos que frequentavam minha missa. Me senti em casa e se criou um laço afetivo. Por coincidência ou não, naque- le ano, em 2014, entrei na avenida segurando o santo, e a escola ganhou. Tem qua- tro anos que desfilo. Vou na ala da velha guarda. Como surgiu a ideia do livro? Faço essa missa para São Miguel há dez anos. Antes não tinha tanta devoção. E virou coqueluche. Vem gen- te de outros Estados até para a missa. Gente de São Paulo, de Minas, de Fortaleza e Es- pírito Santo também. São Miguel é o arcanjo mensa- geiro de Deus. Ele tem de- votos não só no catolicismo, mas também entre judeus, evangélicos e até muçulma- nos. Começamos a missa por causa da Campanha da Fraternidade, em 2008, cu- jo tema era segurança pú- blica. Quem no céu era o general? São Miguel. Então, bora nos apegarmos a ele, pedir proteção! E a devoção começou a crescer! A missa trouxe à comunidade cora- gem para enfrentar o medo, a insegurança. Temos mui- tos testemunhos de livra- mento de assalto, de tiro, de sequestro. Fazemos a missa de dia porque as pessoas não querem sair de casa à noite. E ainda é transmitida pela Internet, até para o ex- terior. A missa do dia 29 de setembro foi acompanhada por 200 mil pessoas pela In- ternet. Daí veio a história do livro, onde resolvemos con- tar sobre a missa a partir da minha vida. Tem 10 anos que escuto testemunhos, mas não havia dado o meu ainda. FOTOS: DIVULGAÇÃO A missa trouxe à comunidade a coragem para enfrentar o medo, a insegurança em relação à violência no Rio”

Vida ciência. Daniella Zanotti WhatsApp: SÁBADO, … › press › PADRE_2018_12...Vida&ciência. SÁBADO, 08 DE DEZEMBRO DE 2018 | 27 SÁBADO, 08 DE DEZEMBRO DE 2018 | 28 WhatsApp:

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Vida &ciência. | 28SÁBADO, 08 DE DEZEMBRO DE 2018| 27SÁBADO, 08 DE DEZEMBRO DE 2018

WhatsApp: (27) 98135.8261 | Telefone: (27) 3321.8446ATENDIMENTO AO ASSINANTE: (27) 3321-8699

Editora: Daniella Zanotti z [email protected]

| ENTREVISTA |

Padre João Claudio Nascimento

“Quando me ordenei padre,fizeram apostas que eu nãoduraria nem dois anos”_Com 27 tatuagens, padre carioca que é lutador de jiu-jítsu e apaixonadopor carnaval transformou em fenômeno missa em devoção a São Miguel

PAULA [email protected]

Ele é forte, usa roupasgrunge e cabelo no estilomoicano, tem mais de 20tatuagens espalhadas pe-lo corpo, é campeão dejiu-jítsu e apaixonado pe-lo carnaval. Quem o vêcom esse jeitão “bad boy”não imagina que ele é pa-dre. “Para alguns sou umpouco exótico sim”, ad-mite João Claudio Nasci-mento, 44 anos.

Embora concilie a vidano tatame com a do altar, écom a batina e não com okimonoqueelecumpresualuta mais árdua. O padrechamou a atenção por cau-sa das missas lotadas quecomanda numa paróquiaem Niterói, no Rio de Ja-neiro.Antes,a igrejaestavavazia.Agora,atrai cadavezmais fiéis, de diversas re-ligiões, a maioria devotosde São Miguel Arcanjo.

Esse fenômeno é conta-do no recém-lançado livro“Uma vida de luta: a in-crível história do padre queresgatou a devoção a SãoMiguel” (Editora Máquinade Livros). A obra não ficasó nisso. Narra a trajetóriacheia de altos e baixos dopadreJoãoCláudio,quete-ve que vencer uma senten-ça de morte após um diag-nóstico falso de câncer ter-minal. Confira um poucomais dessa figura curiosa.

O senhor é uma figurabemdiferente,nãoé,pa-dre?É verdade (risos). Para

alguns, sou um pouco

exótico.

Semprepraticoujiu-jítsu?Sempre. Eu sou a tercei-

ra geração da minha fa-mília dentro do jiu-jítsu.Praticamente, nasci den-tro de um tatame. Meustiosemeupai tinhamaca-demia lá na década de1970. Com um ano deidade, eu colocava o ki-monoeiaparaotatame.Eminha infância e adoles-cência passei dentro detatame de jiu-jítsu e de ju-dô também. Interrompiquando entrei no seminá-rio e só fazia ocasional-

mente, nas férias. Depois,quando me ordenei pa-dre, em 2001, passei porum processo de depres-são, síndrome do pânico,por uma estafa. Foi quan-do meu tio me levou parapraticar jiu-jítsu de novo,para me ajudar no trata-mento. Depois de recupe-rado, retomei minha vidasacerdotal.

O senhor participava decompetições?Sim. Até que uma vez

competi, mas estava com160 quilos. Perdi a lutapara mim mesmo. E re-

solvi operar o estômago.O jiu-jítsu foi importantepara mim quando recebium diagnóstico errado decâncer terminal, em2016. Me deram sete me-ses de vida, e resolvi en-cerrar meus últimos me-ses retomando atividadesque eu fazia. O jiu-jítsu,por exemplo. Voltei a trei-nar sério, aproveitando opouco tempo que acheique tinha. Cheguei a sercampeão na minha cate-goria numa copa aqui emSão Gonçalo, e fui vi-ce-campeão na liga dedesportos e jiu-jítsu. Só

fui vice porque lutei can-sado. Havia celebradoduas missas e um batiza-do. Não estava preparadofisicamente. É difícil con-ciliar a vida de atleta coma de paróquia.

Como foi essa históriadedepressão?Eu já era padre re-

cém-ordenado. Tinhacom 24 anos, era muitonovo e fazia muitas ati-vidades ao mesmo tem-po. Fazia mestrado emTeologia na PUC, tinha ostrabalhos na paróquia eoutros trabalhos pasto-

rais. Tive um cansaçomental muito forte quegerou depressão e síndro-me de pânico. Foi por ex-cesso de trabalho mesmo.Eu não tinha carro e pas-sava muitas horas por diadentro de ônibus.

Ninguém pensa que umpadre pode ter depres-são...Já ouviu falar na síndro-

medeBurnout?Ébemco-mum em padres. É con-siderada uma síndromeque ataca religiosos porcausa da pressão grande,não poder errar. Não é fal-ta de fé, desespero. Nósreligiosos também somossuscetíveis a problemasfísicos. O padre Fábio deMelo e o padre MarceloRossi já tiveram depres-são.Noanopassado,maisde 10 padres se suicida-ram por causa disso. Tiveuma prostração forte, ecansaço se transformouem tristeza, e a tristezaem medo. Eu não sabiamuito bem explicar o queaconteceu. Fui me dei-xando levar.

Comosaiudessa?Foi uma das coisas que

me levaram a voltar parao esporte. Meus paro-quianos e as autoridadesda igreja me apoiaram.Porque a gente precisa terqualidade de vida paraservir. Além do jiu-jítsu,que me ajudou muito, meajudou muito, tive gran-de surpresa com a CançãoNova. Um dos meus tra-balhos além da paróquia

era contato com CançãoNova de São Paulo. Umdia, o fundador, padre Jo-nas Abib, me ligou. Atépensei que fosse trote!Eledisse: “pode me encon-trar amanhã às 10 horasem São Paulo?”. Eu fui.Ele me fez o convite paraficar na Canção Nova fa-zendo tratamento de saú-de com médicos. Era paraficar pouco tempo, mas fi-quei quatro meses e fizminha recuperação lá.

Como foi o tratamento,commedicamento?Era uma terapia alternati-

va, com oração com médi-cos, terapia e trabalho. Nãotinharemédioalgum.Eues-crevia.Eraaúnicacoisama-nual que fiz, foi escrever eatender confissões. À noite,os médicos me rezavam.Nosso corpo tem limite.Temos que cuidar da alma,da mente e do corpo. Oequilíbrio dos três é muitoimportante. Hoje prezopelas minhas férias, pelasfolgasque tenho,parades-cansar meu corpo. No es-porte, a gente aprende eter disciplina nesse senti-do. E a oração para mim éfundamental, junto com otreino de jiu-jítsu, que façodiariamente.

Depois veio outro ba-que,anotíciadocâncer.Em2007, fizabariátrica.

Depois de uma cirurgia

dessa, a gente tem que fi-car em acompanhamen-to. Em 2009, repeti osexames. E em 2014 tam-bém. Na época, chegou aacusar algo, fiz biópsia,mas não deu nada. Em2016, procurei meu mé-dico e fui a uma clínica,onde fiz todos os exames.Quando fui buscar, o di-retor me chamou e deu anotícia assim na lata. Eleachava que eu era maispreparado para isso, porser padre. Disse que nãoadiantava fazer cirurgia.Era um câncer no pân-creas que havia se espa-lhado para o estômago.Fiquei atônito. Não quisnem contar para minhamãe, que morava comigoe era idosa. Fui a um mor-ro atrás da igreja lá nobairro e queimei todos osexames. Pensei: vou mor-rer. E comecei a me pre-parar para a morte.

Só que não era verda-de...O exame não era meu. Es-

tava em meu nome, masnão era meu. Nunca penseina vida que médico errasse.Até que eu descobrisse isso,emagreci 15 quilos. Vivi to-do um processo emocional.Fui para a terapia. Eu só“confessei” isso para umapsicóloga, que me ajudoumuito na época. Dentro daminhaespiritualidade,esta-va consciente. Deus é muito

sábiodenãonosdizerquan-do vamos morrer. Mas pen-sei: não vou me entregar,não! Comecei a fazer jiu-jít-su, mudei minha alimenta-ção. Esse período de incer-teza durou quase cinco me-ses. De julho de2016 ao iní-cio de dezembro. Nesse pe-ríodo, surgiu a oportunida-de de viajar com o cardeal,dequemeueraassessor,pa-raRoma.Fuinemtantoparatrabalhar, mas para rezar,medespedir,ondetiveopri-vilégio, numa das maioresprovidências de vida, de darum abraço no papa Fran-cisco. Era meu sonho!

Comofoi isso?Um padre me deu um

convite para encerramen-to do ano da misericórdia,umamissacomopapa.Lá,

meu amigo, que conheciaum dos guardas, foi dis-traí-lo. Nesse momento,me meti no meio dos pa-dres que iam falar com opapa.Chegueipertodeleedisse: “O senhor salvouminha fé”. E o papa res-pondeu: “Obrigado. Euprecisava ouvir isso hoje”.Nós nos abraçamos poruns dois minutos. E euchorei. Passei a mão norosto dele, no anel. A gen-tenão queria se largar.Ro-lou uma conexão muitoforte. Até que o guardapercebeu, e meu amigogritou “João, larga ele!”(risos).Osguardasvierampara cima de mim! O papadisse: “Reza por mim”. Foio maior presente da mi-nha vida.

Mas como descobriuquenão iriamorrer?Quando eu voltei, o car-

deal me chamou, disse queme achava triste, que viaque eu não comia direito.Contei para ele do câncer. Eele falou: “Mas João, vocênão parece estar morrendo.Será que não houve um er-ro?”. Nisso, fui até a casa deumajovemquefrequentavaa missa e estava no terceirocâncer dela. Perguntei dadoença, queria ver os exa-mes... Ela foimemostrandodocumentos. Até que mos-trou um que disse ter sidotrocado na clínica. Por coin-cidência, era a mesma clí-

nica que a minha, o mesmomédico, que ela estava atéprocessando. Decidi ir atéduasclínicasdiferentesere-fiz todososexamesemcadauma delas. Ambos deram omesmo diagnóstico. Achoquealguémquedeviaacharque estava ótimo deve termorrido, porque o exameveio para mim.

E as tatuagens vieramnessaépoca?Sim.Comecei a fazeras ta-

tuagens e gostei. Era coisacaracterística familiar. Masas minhas têm motivos re-ligiosos e familiares. TenhoSão Miguel no braço es-querdo. Uma medalha deSão Bento no peito esquer-do.Umterço,umaoutrade-dicada à Nossa Senhora doSagrado Coração de Jesus,que é uma devoção parti-cular minha. No lado direi-to, tenho umas em home-nagem à minha família. Porexemplo, ao meu pai, queera policial militar e foi as-sassinado em serviço quan-do eu tinha 9 anos. Fiz umburacodebalaparalembrara violência, uma caveira,que representa a morte, en-tre outras.

As tatuagens não causa-ramproblemasnaigreja?Antes de fazê-las, consul-

tei o Código de Direito Ca-nônico, onde não havia ne-nhuma restrição a tatua-gem. Sou mestre em Direi-to Canônico pela Univer-sidade Gregoriana de Ro-ma e em Teoria DogmáticapelaPUC.Masclaroqueto-do mundo me olhou estra-nho. Achavam um absur-do, aindamaisparaumpa-dre que trabalhava direta-mente com o cardeal. Sofrimuito bullying, sobretudonas redes sociais, que são aforma mais covarde que aspessoas têm de atacarumas às outras. Muitos pa-dres têm tatuagem, mas fi-cam no anonimato. Nãomostram. Têm medo. Achoque fui o primeiro a mos-trar. Não levanto bandeira.Graças a Deus o Papa Fran-cisco fezumdiscurso falan-do de tatuagem, dizendoque é um costume cristãoantigo, que não há mal al-gum, desde que não sejacontra a fé. Hoje tenho 27tatuagens, mas pode serque faça mais.

Os fiéis procuram o se-nhor para abençoar astatuagens?Temdezanosquefaçoisso,

principalmente tatuagensde São Miguel. Recebo pes-soas que não entravam naigrejahavia30anos,quesãotatuadas, são de outras re-ligiões, são umbandistas,kardecistas. Faço um traba-lho de evangelização dife-

rente. Tive uma experiênciacom a Igreja Católica e re-solvi ser católico. Mas os co-legas de seminário faziamapostas. Me achavam dife-rente mesmo, autêntico. Eusemprefuimuitoeu.Meen-quadrava nas normas, mastinha meu jeito de ser.Quando me ordenei, tam-bém fizeram apostas, di-ziam que eu não iria durardois anos no sacerdócio.Vou fazer 20 anos como pa-dreeestoumuito feliz.Amooquefaço,amorezarmissa,receber as pessoas.

Eoamorpelosamba,co-mosurgiu?Um dia tive um sonho em

que São Miguel me diziaque a Viradouro só iria ga-nhar o carnaval no dia emqueeleentrassenaavenida.Contei para um pessoal daescola, que me levou parafazer uma missa, para daruma bênção lá na quadra,no barracão. Quando che-guei lá, me surpreendi coma quantidade de católicosque frequentavam minhamissa.Mesenti emcasaesecriou um laço afetivo. Porcoincidênciaounão,naque-le ano, em 2014, entrei naavenida segurando o santo,eaescolaganhou.Temqua-tro anos que desfilo. Vou naala da velha guarda.

Como surgiu a ideia dolivro?Faço essa missa para São

Miguel há dez anos. Antesnão tinha tanta devoção. Evirou coqueluche.Vemgen-tedeoutrosEstadosatéparaamissa.GentedeSãoPaulo,de Minas, de Fortaleza e Es-pírito Santo também. SãoMiguel é o arcanjo mensa-geiro de Deus. Ele tem de-votosnãosónocatolicismo,mas também entre judeus,evangélicoseatémuçulma-nos. Começamos a missapor causa da Campanha daFraternidade, em 2008, cu-jo tema era segurança pú-blica. Quem no céu era ogeneral?SãoMiguel.Então,bora nos apegarmos a ele,pedir proteção! E a devoçãocomeçou a crescer! A missatrouxe à comunidade cora-gemparaenfrentaromedo,a insegurança. Temos mui-tos testemunhos de livra-mentodeassalto,de tiro,desequestro. Fazemos a missade dia porque as pessoasnão querem sair de casa ànoite. E ainda é transmitidapela Internet, até para o ex-terior. A missa do dia 29 desetembro foi acompanhadapor200milpessoaspela In-ternet.Daíveioahistóriadolivro, onde resolvemos con-tar sobre a missa a partir daminha vida. Tem 10 anosque escuto testemunhos,mas não havia dado o meuainda.

FOTOS: DIVULGAÇÃO

A missa trouxeà comunidadea coragem paraenfrentar omedo, ainsegurançaem relação àviolênciano Rio”