32
Texto para Discussão 021 | 2016 Discussion Paper 021 | 2016 Desenvolvimento Econômico e Provisão de Bens e Serviços Públicos: Aspectos Teóricos deste Debate Bruno Rodas Oliveira Doutorando em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro PPGE/IE Carlos Pinkusfeld Bastos Professor do Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro This paper can be downloaded without charge from http://www.ie.ufrj.br/index.php/index-publicacoes/textos-para-discussao

Desenvolvimento Econômico e Provisão de Bens e Serviços Públicos: Aspectos Teóricos deste Debate

Embed Size (px)

Citation preview

Texto para Discussão 021 | 2016

Discussion Paper 021 | 2016

Desenvolvimento Econômico e Provisão de Bens e Serviços Públicos: Aspectos Teóricos deste Debate

Bruno Rodas Oliveira Doutorando em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGE/IE

Carlos Pinkusfeld Bastos

Professor do Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro

This paper can be downloaded without charge from

http://www.ie.ufrj.br/index.php/index-publicacoes/textos-para-discussao

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 2

Desenvolvimento Econômico e Provisão de Bens e Serviços Públicos: Aspectos Teóricos deste Debate

Junho, 2016

Bruno Rodas Oliveira Doutorando em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGE/IE

Carlos Pinkusfeld Bastos

Professor do Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

Entendendo que o acesso a determinados bens e serviços públicos é crucial para um processo de desenvolvimento que preze pela igualdade social, e que este tema nem sempre recebeu a devida atenção, particularmente dentro da Teoria do Desenvolvimento, procura-se, inicialmente, investigar como tal questão é abordada pelos autores deste campo teórico, assim como o porquê de não o terem explorado de forma sistemática. Em parte isso parece decorrer de uma excessiva confiança de que os problemas sociais seriam solucionados de forma mais ou menos automática por um processo de acumulação capitalista que resultasse num nível suficientemente alto da renda per capita, algo que historicamente não parece se confirmar. Buscando corroborar os pontos levantados, explicita-se, a seguir, a importância da provisão de bens e serviços públicos para um desenvolvimento mais igualitário, apoiando-se para tanto inclusive em abordagens fora da Teoria do Desenvolvimento clássica que reconhecem essa relação em suas análises.

Palavras-chave: bens e serviços públicos; Teoria do Desenvolvimento; desenvolvimento;

JEL: O10, B20, O15

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 3

Introdução

A questão do desenvolvimento econômico passa a ocupar papel central e autônomo

dentro da teoria econômica a partir do pós-Segunda Guerra Mundial. A relevância deste

tema no debate acadêmico surge como reflexo do contexto histórico daquele período.

Num cenário de descolonização e de Guerra Fria, as ideias desenvolvimentistas

respondiam a uma necessidade sociopolítica de se estimular o crescimento e possibilitar

o catch up de países atrasados aos desenvolvidos (BASTOS e D’AVILA, 2009). Observa-

se, então, a uma mudança de paradigma, com a emergência nas décadas de 1940 e 1950

de um “consenso do desenvolvimento”, ilustrado pelo apoio dos órgãos internacionais

oficiais a políticas pró-desenvolvimento, sendo a criação da Cepal em 1948, um dos

maiores exemplos desta mudança.

A estrutura teórica geral da heterodoxia latino-americana, a qual se funda com o artigo

seminal de Raul Prebisch, de 1949 (PREBISCH, 1949), é herdada da Teoria do

Desenvolvimento nascida nos anos 1940. Uma das principais características desta

abordagem reside no reconhecimento da oferta ilimitada de mão de obra em vários países

ao redor do mundo. Tal ideia é formalizada em 1954 no clássico trabalho de Arthur Lewis,

“O desenvolvimento econômico com oferta ilimitada de mão de obra”.

Diferenças à parte, prevalecia entre as principais vertentes surgidas então a crença de que

a acumulação de capital decorrente do processo de industrialização terminaria por

absorver o excedente estrutural de mão de obra no setor moderno e de maior

produtividade per capita da economia, eliminando assim o subemprego e,

principalmente, a heterogeneidade estrutural, ao cabo levando à superação do

subdesenvolvimento. Mesmo a teoria da Cepal, mais cética quanto a essas possibilidades

a partir dos anos 1960, em geral confere um peso excessivo à industrialização capitalista

como saída para o desenvolvimento e para a homogeneização social. Embora a atuação

do Estado seja central no planejamento desse processo, pouco se fala de seu papel como

provedor de determinados bens e serviços públicos à população e, portanto, como fator

chave para a homogeneização dos padrões de consumo e redução das desigualdades

sociais, tendo em vista o caráter básico desses serviços e o impacto que normalmente têm

no orçamento das famílias mais pobres.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 4

Este trabalho pretende aprofundar tal discussão, qual seja, a de situar a questão dos bens

e serviços públicos dentro da Teoria do Desenvolvimento nascida nos anos 1940, assim

como enfatizar a importância da atuação do Estado nesta frente para um processo de

desenvolvimento que preze pela igualdade social. Para tanto, inicialmente serão

analisadas, numa primeira seção, os elementos analíticos centrais da Teoria do

Desenvolvimento, que, como veremos, em geral estão relacionados ao processo de

acumulação de capital; a seguir, serão discutidas as principais ideias prevalecentes nesse

campo teórico acerca da distribuição de renda e do bem-estar; a questão da relevância da

provisão de bens e serviços públicos pelo Estado na análise dos autores da Teoria do

Desenvolvimento será discutida numa terceira seção; a seção 4 sintetiza e questiona

algumas das crenças que poderiam ter levado os teóricos do desenvolvimento a

desconsiderar ou subestimar a importância social da provisão de bens e serviços públicos,

além de explorar a relação entre estes últimos, bem-estar e desigualdade; na seção 5 serão

consideradas algumas abordagens alternativas que reconhecem a importância do Estado

na provisão dos mencionados bens; a última seção conclui.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 5

1 Elementos Analíticos Centrais da Teoria do Desenvolvimento

A partir do entendimento de que o desenvolvimento se constitui num processo de

acumulação de capital com mudanças estruturais, a teoria formulada pelos autores que se

incluem na Teoria do Desenvolvimento, embora em diferentes intensidades, costuma

girar em torno de algumas questões centrais que se relacionam a este processo. Uma delas,

de pouquíssima divergência entre seus autores, é a questão da restrição de poupança,

refletindo a influência do pensamento clássico e, por conseguinte, a ideia de que a

velocidade de acumulação na economia se relaciona diretamente com a capacidade de

poupar ou com a parcela do excedente que não é consumida. Uma das principais

referências a esse respeito é o trabalho de Lewis (1954), em que a elevação da

produtividade per capita da economia é vista como crucial por possibilitar um aumento

da poupança potencial1 e, logo, dado que se pressupõe a Lei de Say, do investimento,

acelerando o processo de acumulação de capital.

Este último aspecto se relaciona a um segundo ponto central na Teoria do

Desenvolvimento, qual seja o das externalidades. Ainda que aqui se encontre elementos

comuns à teoria marginalista (a aproximação a um paradigma geral de “falhas de

mercado”), o enfoque da Teoria do Desenvolvimento se afasta do daquela (e se aproxima

da análise dos teóricos clássicos), ao recair sobre os impactos positivos que determinada

atividade econômica gera para o conjunto da economia (os chamados efeitos spill over) e

especificamente a existência de retornos crescentes de escala que dão origem a

mecanismos de causação cumulativa. Esse ponto é tratado ou por uma análise semelhante

à do Big Push de Rosenstein-Rodan, na qual as externalidades poderiam ter uma natureza

horizontal, isto é, atingiriam em simultâneo a demanda tanto setorial quanto agregada

com a coordenação do investimento multissetorial, ou pela abordagem dos modelos de

crescimento desequilibrado de Hirschman, em que as externalidades têm uma natureza

vertical, afetando as relações de produção/utilização de insumos específicos.

1 Dado que se supõe que o salário no setor moderno da economia, de maior produtividade per capita,

permanece próximo ao de subsistência, exogenamente determinado, e que, portanto, o aumento do

excedente per capita decorrente da expansão do setor moderno é apropriado como lucro. O modelo de dois

setores de Lewis (1954) será discutido em maior detalhe na seção 2.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 6

Por fim, outro ponto de destaque na análise dos autores da Teoria de Desenvolvimento,

que, no entanto, não suscita a mesma convergência que os dois anteriores, se refere à

questão externa, mais especificamente à restrição ao potencial de crescimento que advém

de uma inserção internacional menos dinâmica. Este tema se encontra especialmente

desenvolvido na análise centro-periferia da Cepal. De forma geral, segundo os autores

que se incluem nesta corrente, o problema deste tipo de inserção menos dinâmica, baseada

na exportação de produtos primários, é que, além de estes produtos possuírem elasticidade

renda da demanda menor que a dos manufaturados, seus preços tendem a se deteriorar

em relação aos destes últimos e a estarem mais sujeitos às oscilações associadas à

conjuntura internacional. O resultado seria uma forte tendência a crises na Balança de

Transações Correntes (BTC) e a preservação de uma relação de dependência tecnológica

e financeira (para financiar a BTC) em relação ao centro. De forma geral, a solução para

os problemas acima passaria, segundo a visão cepalina, por um processo de

industrialização por substituição de importações, liderado pelo Estado, que permitisse

superar a tendência ao déficit estrutural na BTC - via redução da dependência de

importações de manufaturados, e aumento de exportações de produtos de maior

elasticidade renda, menos vulneráveis ao cenário externo - e levar ao desenvolvimento.

Percebe-se, pela característica dessa abordagem teórica, que questões de natureza

distributiva e mesmo de bem-estar - e o potencial impacto positivo que o Estado teria

nesse quesito através da provisão de bens e serviços públicos - no geral, não são tratadas

de forma prioritária por seus autores clássicos, o que pode sugerir uma excessiva

confiança no processo de acumulação de capital como solução de certo modo natural para

os problemas sociais. A seção seguinte procurará averiguar e desenvolver esse

argumento.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 7

2 Distribuição de Renda e Bem-Estar na Teoria do Desenvolvimento

A Teoria do Desenvolvimento como apresentada acima tem como foco a acumulação de

capital e as mudanças estruturais que acompanham este processo. Outras questões, que

com o tempo ganharam destaque no debate sobre desenvolvimento econômico e social,

como distribuição de renda, desigualdade e pobreza surgem nas contribuições originais

de forma indireta, ou seja, como consequência teórica das mudanças estruturais inerentes

ao processo de desenvolvimento econômico. A ênfase da atuação do Estado em ações

ligadas aos três tópicos acima – restrição de poupança, externalidades e restrição externa

- decorre em boa medida da crença de que o bem-estar geral da população viria como

consequência natural do processo de industrialização.

O texto clássico de Lewis, “O desenvolvimento econômico com oferta ilimitada de mão-

de-obra” (LEWIS, 1954), descreve um processo de concentração funcional da renda. À

medida que ocorre a industrialização com consequente migração da mão de obra de um

setor pouco capitalizado para outro mais capitalizado, dado que o salário permanece

próximo ao de subsistência observado no setor não capitalizado, o maior excedente por

trabalhador é apropriado como lucro do empresário. Esta tendência à concentração

funcional da renda tinha como consequência macroeconômica a aceleração do processo

de acumulação de capital, uma vez que a Lei de Say clássica é hipótese implícita do

modelo e, logo, maiores lucros resultam em maior investimento e assim mais rápida

acumulação de capital. Tal processo cessaria quando o excedente estrutural de mão de

obra fosse escasseando, ocorrendo então a virada lewisiana, ou seja, a aproximação do

salário real à produtividade marginal do trabalho. O final desse processo seria uma

situação de equilíbrio marginalista na qual a distribuição funcional da renda seria dada

pela produtividade marginal de cada fator numa situação de pleno emprego de suas

respectivas ofertas.

Levado ao extremo, esse raciocínio prevê que primeiro seria necessário crescer, para

depois distribuir os benefícios do crescimento através do “gotejamento” (“trickle-down”)

da riqueza dos mais ricos para os mais pobres. A passagem abaixo de Lewis (1954)

exprime essa ideia, ao indicar que a acumulação de capital, necessária ao

desenvolvimento, pressupõe um aumento da poupança que se tornaria viável com a

concentração de renda nas camadas mais altas:

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 8

O problema central do desenvolvimento econômico é que a distribuição do

rendimento se altere em benefício da classe poupadora.

Praticamente toda a poupança provém daqueles que têm lucros ou

rendimentos. A poupança dos trabalhadores é muito pequena [...] Se a

poupança nos interessa, devemos concentrar a nossa atenção nos lucros e nos

rendimentos. (LEWIS, 1954: 17/18)

É importante salientar, entretanto, que a teoria de Lewis não é normativa, isto é, não

defende ou propõe um processo de concentração de renda para o aumento da acumulação

de capital. Apenas constata, com a combinação dos mecanismos de formação do salário

real, as mudanças estruturais setoriais e a adoção da Lei de Say, que tal concentração leva

a um maior crescimento.

Outro texto clássico quanto à trajetória da distribuição de renda é o de Simon Kuznets de

1955, “Economic Growth and Income Inequality” (KUZNETS, 1955), o qual trata não

mais da distribuição funcional, mas sim da distribuição pessoal da renda. Partindo de uma

análise empírica da experiência dos principais países desenvolvidos de então, de algumas

hipóteses sobre variáveis distributivas, e de características que são intrínsecas às

mudanças estruturais que acompanhariam o processo de industrialização2, ou o moderno

crescimento econômico, Kuznets (1955) chega à conclusão de que tal crescimento leva

inicialmente a uma concentração e depois a uma desconcentração da renda pessoal. Essa

relação entre desigualdade de renda e crescimento do produto ficou conhecida como

“curva de Kuznets”.

O raciocínio por trás de tal curva poderia ser sintetizado da seguinte maneira: nas fases

iniciais do crescimento econômico, quando haveria uma rápida transição rumo a uma

sociedade industrial e urbana, a desigualdade de renda se elevaria. Isto ocorre

basicamente devido ao fato de o setor industrial ser mais concentrado do que o de

agricultura3, como mencionado na nota de rodapé 2. Assim, o primeiro efeito de uma

2 Estas hipóteses seriam uma renda per capita maior no setor não agrícola que o agrícola, uma distribuição

de renda ou igual ou nunca mais igualitária no setor não agrícola, e uma queda progressiva da participação

do setor agrícola no total da economia. 3 Haveria, ainda, um efeito concentrador de renda advindo da concentração da poupança nas camadas mais

altas. Seu efeito cumulativo seria uma concentração crescente da parcela de ativos (income-yiealding) nas

mãos dos mais ricos.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 9

transferência considerável de população do campo para a cidade seria uma piora na

distribuição de renda. À medida que a industrialização e urbanização avançam, todavia,

haveria uma série de forças que atuariam em favor dos quintis mais pobres da população

urbana. Por exemplo, a maior organização e adaptação destes às condições da cidade

aumentariam suas possibilidades de incrementar sua participação na renda total. Ademais,

caso se elevasse o poder de barganha dessas camadas e isso se traduzisse em novas leis

de proteção que visassem compensar os efeitos negativos da rápida industrialização e

urbanização, como ocorreu em diversos países desenvolvidos principalmente a partir do

final do século XIX e início do século XX, a distribuição de renda também tenderia a

melhorar.

Ao contrário do que encontramos em Lewis (1954), a discussão que relaciona a

concentração de renda, a maior propensão a poupar e o feedback da propriedade dos ativos

resultantes de tal poupança na trajetória da concentração de renda são tratados dentro da

própria discussão sobre distribuição de renda, sendo que não se faz uma relação de

causalidade macroeconômica direta com o processo de acumulação de capital, ou

aceleração da acumulação de capital, a partir de uma maior concentração de renda.

A hipótese lewisiana quanto ao aumento da participação dos lucros na renda/poupança à

medida que avança o processo de industrialização, é relativizada pela hipótese de que o

consumo conspícuo das classes que poupam (ver Nurkse (1951) e Furtado (1952)), ao

diminuir a parcela dedicada ao investimento, reduziria também a taxa de crescimento.

Vale observar que, em relação à distribuição de renda, tal hipótese de consumo conspícuo

“excessivo” não tem nenhum efeito. Seu impacto de suposta redução do crescimento

econômico com a apropriação de parte do excedente que poderia ser investido necessita,

ademais, que se assuma a validade da Lei de Say, segundo a qual a parcela não consumida

da renda gera um investimento de igual montante.

Entretanto, eliminando-se a adoção da Lei de Say, a mesma hipótese de excessivo

consumo conspícuo pode vir a ter impactos sobre a distribuição de renda através da teoria

da poupança forçada. Agora, frente a um investimento autônomo dado, seria possível

existir uma poupança voluntária menor que a necessária, de modo que a igualação entre

investimento autônomo e poupança efetiva somente seria possível através da redução das

rendas contratuais (i.e. salários), ou seja, através de um processo de concentração de renda

que resultasse na elevação da propensão a poupar da economia. Essa hipótese da

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 10

poupança forçada, que faz parte da estrutura lógica dos chamados modelos de crescimento

de Cambridge4, tornou-se usual na literatura brasileira e em princípio relacionava

concentração de renda e crescimento econômico. Uma hipótese de política econômica

que forneceria uma alternativa a este processo de concentração de renda seria a taxação

dos extratos de renda mais alta e que incorreriam em tal consumo conspícuo.

Finalmente, dentro da tradição desenvolvimentista brasileira, Furtado (1965, 1968)

procurou acrescentar mais um elemento aos problemas de crescimento, ao relacionar a

tendência à concentração de renda e de sofisticação do padrão de consumo (já explorada

em trabalhos anteriores), à elevação da relação capital produto. Em decorrência de seu

padrão de concentração de renda, estagnação de salários, e padrão de consumo de bens

sofisticados, a economia brasileira apresentaria uma tendência também à elevação da

relação capital produto, o que, dado determinado nível de poupança, reduziria seu

crescimento (BASTOS e D’AVILA, 2009). Com isso, o autor procura incorporar um

caráter dinâmico a sua hipótese com uma conexão entre concentração de renda e estrutura

produtiva. Segue, em princípio, o modelo de Lewis (1954) de salário determinado

exogenamente e cuja evolução não acompanharia os ganhos de produtividade dos setores

modernos/capitalizados. Entretanto, para o autor, este processo de concentração de renda

teria como consequência a montagem de uma estrutura de oferta de bens de mais alto

valor unitário com elevada relação capital produto e baixa demanda por trabalho. O

impacto dessa elevação da relação capital produto levaria à queda da acumulação, e a

pressão sobre os salários formaria um efeito de retroalimentação que no limite poderia

gerar estagnação econômica. A solução para tal problema passaria por uma reestruturação

do perfil de demanda, resultando numa ampliação do consumo de massa (que

supostamente teria características estruturais opostas ao consumo suntuário): “como

[segundo essa visão de Furtado] é a estrutura da demanda que condiciona o processo

produtivo, a proposta de desconcentração de renda passa prioritariamente pela

reestruturação do perfil da demanda, e não por alterações no aparelho produtivo”

(COUTINHO, 1979: 6).

4 A referência clássica deste tema é Kaldor (1956). Serrano (2001) oferece uma apresentação sintética do

tema inserindo-o no debate do desenvolvimento na América Latina.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 11

Como breve resumo das principais tendências aqui apresentadas se pode ver que, na

origem da tradição desenvolvimentista, a questão do aumento da concentração de renda,

seja funcional ou pessoal, é descrita como uma consequência estrutural do processo de

industrialização e que pelo menos no caso de Lewis (1954) será superada com a elevação

do salário real. É razoável perceber subjacente uma hipótese de trickle down. Kuznets

(1955), por seu lado, ao fazer uma análise histórica nota que há uma tendência a se

estabelecer nos países mais ricos políticas tributárias redistributivistas que teriam um

efeito de reverter a tendência à concentração de renda dos primeiros estágios da

industrialização. A questão da tributação dos extratos de alta renda, cujo excessivo

consumo conspícuo reduz a capacidade de investimento nos modelos que seguem a Lei

de Say, em certo sentido pode ser considerada como uma opção socialmente mais justa

que um mecanismo de poupança forçada, e ao mesmo tempo, também, economicamente

menos instabilizadora por evitar a deflagração de processos inflacionários.

Assim, no núcleo duro da tradição desenvolvimentista existe uma associação entre a

questão da distribuição de renda e o processo de acumulação de capital e, por exemplo,

em Furtado (1965, 1968), a melhoria desta, através de mudanças na estrutura sociopolítica

e de propriedade, teria um impacto direto sobre a continuação do processo de acumulação.

Em suma, supostamente, mesmo que a partir de alterações na distribuição de ativos ou

mesmo da estrutura tributária, o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas é

compreendido, ou pelo menos subentendido, como passível de gerar uma situação

socialmente menos polarizada.

Curiosamente, a questão da importância dos bens e serviços públicos para a composição

da cesta de bens das populações de mais baixa renda não parece ocupar lugar de destaque

nesta abordagem. É esta constatação que se pretende explorar na seção seguinte.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 12

3 Bens e Serviços Públicos na Teoria do Desenvolvimento

Não obstante a questão dos bens públicos seja um tema pouco explorado pela literatura

do desenvolvimento, não significa que não o seja. Uma rara exceção se encontra no

trabalho de Anibal Pinto “Notas sobre la distribuición del ingreso y la estratégia de la

distribuición”, publicado em 1962. Ao se deparar com a elevada e muitas vezes crescente

concentração de renda nos países latino-americanos, Pinto (1962) ressalta a importância

de algumas medidas que pudessem contribuir para se atingir um desenvolvimento mais

igualitário. Além da desconcentração da propriedade e de políticas tradicionais como a

fiscal (tributação mais progressiva, etc.) e de salários, afirma ser necessário um papel

mais ativo do Estado nas decisões que influenciam a capacidade produtiva e a difusão do

progresso técnico, de modo a possibilitar uma ampliação/melhora na oferta dos bens e

serviços que tenham maior “peso” no orçamento dos trabalhadores. Tanto o barateamento

de wage goods, como a provisão gratuita ou subsidiada pelo Estado de serviços básicos,

contribuiriam para aumentar o salário real e diminuir as desigualdades sociais:

Evidentemente, uma política que tenha em vista uma maior igualdade (e um

desenvolvimento mais satisfatório de um ponto de vista social e,

provavelmente, com maior potencial expansivo) terá que retificar com

profundidade essas realidades. Desse modo, se os recursos são desviados para

as atividades que produzem wage goods ou são complementárias às mesmas,

não só haverá uma expansão adequada da oferta, mas também, os ganhos de

produtividade tenderão a diminuir os preços relativos dos mesmos,

acrescentando um melhoramento da renda real das massas.(...)Na experiência

britânica do pós-guerra, por exemplo, à influência da tributação se somou uma

mudança bastante apreciável no sistema de preços, a qual implicou a prestação

gratuita ou a diminuição relativa do custo de bens e serviços básicos e o

encarecimento considerável de outros que têm importância significativa no

padrão de gastos dos setores de altas rendas. No desenvolvimento soviético,

dentro de seu marco original, também se percebe a um fenômeno dessa

natureza. (PINTO, 1962: 214, tradução nossa).

Outro autor, também da Cepal, a ressaltar a importância da provisão de bens e serviços

públicos gratuitos ou subsidiados pelo Estado como estratégia para a redução das

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 13

desigualdades sociais, é o chileno Pedro Vuskovic. Em um trabalho de 19645 , intitulado

“Una politica económica popular”, o autor busca mapear os principais determinantes da

crescente desigualdade no Chile, assim como propor um programa de governo popular

que pudesse contrarrestar a tendência à polarização da riqueza, propiciando à economia

chilena um desenvolvimento mais igualitário.

O mencionado programa, denominado Plan de Acción del Gobierno Popular, pretendia

reduzir a elevada desigualdade de renda através de uma série de medidas redistributivas,

dentre as quais inclui a produção de bens padronizados e de baixos preços para os

assalariados, a fixação dos preços dos produtos essenciais, e os programas estatais de

serviços básicos que beneficiam a massa da população, como os de educação, saúde,

moradia, etc6.

Embora considerasse que o maior impacto redistributivo proviesse das políticas salariais

e de redistribuição da propriedade, Vuskovic (1964) deixa claro que a provisão direta de

bens e serviços básicos pelo Estado se configura como um importante instrumento para a

homogeneização social:

Pelo lado dos gastos estatais, é evidente que um maior aumento na construção

de moradias para assalariados com seus serviços urbanos correspondentes, a

ampliação da educação gratuita primária, a criação de fundos para bolsas de

estudos à educação média e superior a filhos de famílias humildes, a

eliminação dos subsídios a colégios particulares pagos, a racionalização do

sistema de pensões, as reformas no abono familiar, os sistemas de férias para

operários e empregados humildes, a ampliação e melhoramento dos serviços

de saúde, etc., contribuirão de forma importante para tornar mais eficiente o

efeito redistributivo desses gastos. (VUSKOVIC, 1964: 81, tradução nossa)

5 Nessa época, Pedro Vuskovic ainda estava na Cepal. Deixaria seu cargo nesta instituição somente em

1970 para assumir o ministério da economia no governo de Salvador Allende. 6 As demais medidas propostas são: redistribuição da propriedade, a política de salários, a política tributária,

a distribuição equitativa do crédito, um sistema de previdência social mais justo, o fortalecimento do poder

de negociação dos assalariados, e mudanças na estrutura da produção e do abastecimento externo.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 14

Por fim, Arthur Lewis também chega a reconhecer a importância do acesso a

determinados bens e serviços públicos para o bem-estar da classe trabalhadora. Em seu

livro de 1955, “The Theory of Economic Growth”, pode-se destacar a seguinte passagem:

Nem há qualquer desculpa para não desenvolver uma gama adequada de

serviços sociais – serviços médicos, auxílio desemprego, pensões e similares –

na ausência dos quais o trabalhador industrial é forçado a manter um pé no

vilarejo de forma que possa retornar a este em caso de necessidade. O efeito

seria uma mão de obra mais saudável, mais estabelecida e mais ansiosa por

melhorias em seu trabalho. Esses serviços custam mais, porém também são

compensados em produtividade extra, assim como em felicidade humana.

(LEWIS, 1955 em: LEWIS, 1984: 131, tradução nossa)

Mais tarde, comentando sobre a passagem acima, Lewis (1984) deixa ainda mais clara

qual era sua intenção àquela época (1955):

Minha preocupação naqueles dias não era com o montante de dinheiro pago

aos trabalhadores urbanos, o que eu presumo que estaria diretamente

relacionado à produtividade de pequenos camponeses, mas ao invés, com o

salário social, especialmente educação, serviços médicos, abastecimento de

água, compensação por acidente de trabalho, auxílio desemprego, pensões, etc.

Essa rede de provisão social me pareceu, como um social democrata, ser um

dos melhores produtos dos últimos 100 anos. Agora como então eu destaco a

educação, sobre a qual eu escrevi em 1955 no decurso de um capítulo de trinta

e cinco páginas sobre “Conhecimento”, que estava clamando por atenção: “A

dificuldade que a educação levanta é que ela é tanto um serviço de consumo

como de investimento. Na medida em que é um investimento, contribui

diretamente para aumentar o produto”. (LEWIS, 1984: 131, tradução nossa)

Fica clara a preocupação de Lewis à época com a “felicidade humana” (“human

happiness”) que adviria de uma maior acesso a serviços como saúde, saneamento e

educação, ainda que também coloque grande ênfase no aspecto econômico resultante, isto

é, no aumento da produtividade que tais serviços proporcionariam. Isso fica explícito

quando afirma ter conferido especial atenção à educação, dado seu elevado potencial de

retorno.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 15

Cabe reiterar, todavia, que esses são exemplos isolados. No geral esses temas não ganham

a devida atenção, nem mesmo nas obras desses próprios autores (mais na obra de Pedro

Vuskovic do que nas de Anibal Pinto e Arthur Lewis, porém a primeira certamente é

menos influente dentro da Teoria do Desenvolvimento). Uma hipótese para a falta de

atenção conferida pela Cepal à questão dos bens e serviços públicos talvez esteja ligada

ao fato de seus autores considerarem inviável financeiramente a provisão gratuita de tais

serviços pelo Estado, dada a baixa renda per capita dos países periféricos à época. É o

que se parece depreender do seguinte relatório assinado pela Cepal:

(...) os países com renda per capita equiparável à que os grandes centros

industriais possuem desde longa data tendem a imitar as formas atuais de

consumo destes últimos, e, como também procuram assimilar sua técnica

produtiva, que exige uma grande poupança per capita, não é de surpreender

que, sendo relativamente escassa a sua renda, esta se veja sujeita a tensões

fortíssimas entre a grande propensão a consumir e a necessidade peremptória

de capitalizar, e que essas tensões sejam freqüentemente resolvidas através de

arbítrios inflacionários. Isso se acentua ainda mais quando a essas formas

avançadas de consumo direto vem somar-se o crescimento dos serviços do

Estado, igualmente exposto, por força das circunstâncias, à sugestão exercida

pelas novas modalidades de gastos praticadas nos países de renda elevada,

quando não à assimilação de formas avançadas de defesa. Esta última

circunstância torna ainda mais imperativo o problema de aumentar a

produtividade geral dos países que assim se empenham em adotar formas de

consumo próprias do centro. (CEPAL, 1949: 176-7, grifo nosso)

Isto é, à semelhança do ocorrido nos países desenvolvidos, um incremento satisfatório

dos gastos públicos nos países periféricos somente seria viável após uma elevação

considerável da produtividade. O crescimento dos serviços do Estado num cenário de

baixa renda per capital, por mais importante que fosse, acentuaria as já grandes tensões

entre o consumo e a necessidade prioritária, como vimos, de se elevar a acumulação.

Talvez por isso desconsiderassem a ação direta do Estado na provisão de serviços básicos

como parte da estratégia de superação do subdesenvolvimento.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 16

4 Bens e Serviços Públicos e Igualdade Social

O ponto central que buscamos ressaltar até o momento é que a questão do acesso a bens

e serviços públicos e o do bem-estar a eles relacionado não entrava como um tema central

na Teoria do Desenvolvimento. O que esta de fato se propunha era investigar o problema

do subdesenvolvimento, cuja solução, de modo geral, passaria por um processo de

industrialização capaz de eliminar o excedente estrutural de mão de obra. Ao ignorar, ou

subvalorizar, o papel do Estado na provisão dos serviços básicos mencionados, os

principais teóricos desta corrente parecem depositar uma excessiva fé nos mecanismos de

mercado, ou seja, no processo de acumulação capitalista, como solução para os problemas

sociais. Os seguintes trechos do clássico “O Desenvolvimento Econômico da América

Latina e Alguns de seus Principais Problemas” de Raúl Prebisch parecem apontar nesse

sentido:

Daí a importância fundamental da industrialização dos novos países. Ela não

constitui um fim em si, mas é o único meio de que estes dispõem para ir

captando uma parte do fruto do progresso técnico e elevando progressivamente

o padrão de vida das massas. (PREBISCH,1949: 72, grifo nosso)

(...)

Do ponto de vista do desenvolvimento econômico, a elevação máxima do

padrão de vida [consumo] depende da produtividade, e esta depende, em

grande parte, de máquinas mais eficientes [tecnologia]. (PREBISCH, 1949:

135)

Embora ainda assim bastante influente, a ausência de uma teoria sólida do bem-estar,

associada a esse otimismo na industrialização para resolver os problemas sociais, acabam

por enfraquecer a Teoria do Desenvolvimento como um todo. Especialmente frente às

evidências empíricas de que a industrialização e a elevação da renda per capita não

necessariamente levam a uma melhora na desigualdade social. Podemos citar como

exemplo emblemático o caso do Brasil, que de 1950 a 1980 passa por um intenso processo

de industrialização, com taxas médias de crescimento do PIB recordes, sem, contudo,

apresentar qualquer melhora na distribuição de renda. Com efeito, o oposto se deu em

subperíodos desta trajetória. E mesmo que houvesse melhora na distribuição de renda,

isto não significaria necessariamente uma melhora na desigualdade social num sentido

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 17

mais amplo. O acesso a alguns serviços básicos pelas camadas mais pobres, como, por

exemplo, à infraestrutura e serviços de saneamento básico, ou ao transporte público, não

decorre automaticamente do aumento na renda disponível ou da distribuição de renda.

Depende, sim, da provisão pública e da forma como esta será direcionada.

De um ponto de vista mais teórico, como já insinuado, é razoável especular que a falta de

atenção direcionada pela Teoria do Desenvolvimento à questão dos bens e serviços

públicos esteja relacionada a sua crença na Lei de Say e, consequentemente, na ideia de

que o aumento do gasto público comprometeria a suposta limitada poupança dos países

em desenvolvimento e, logo, seu nível de investimento. Entretanto, se, alternativamente,

se considera o Princípio da Demanda Efetiva (PDE) como válido, esse trade off direto

entre gasto público e poupança privada não necessariamente se verifica. Aliás, supõe-se

o oposto, que situações de permanente excesso de demanda sejam mais exceções que

regra em uma economia capitalista. Afinal, nestas, as quais são capazes de produzir um

excedente significativo acima dos padrões de subsistência normais7, a produção

normalmente se limita pelo nível de demanda efetiva, seja no curto ou no longo prazo.

Pela operação do PDE, as decisões de investir geram poupança agregada por variações

na renda e no produto; a acumulação de capital, portanto, depende não das decisões de

poupar, mas do crescimento do investimento, o qual, por sua vez, depende do nível e da

taxa de crescimento da demanda final (SERRANO e MEDEIROS, 2004). Não há porque

se esperar, desse modo, que uma redução no gasto público com aumento da poupança

potencial leve automaticamente a uma elevação no investimento. De fato, coeteris

paribus, ocorreria o inverso: uma queda nos gastos do governo levaria a uma redução da

demanda agregada com impacto negativo sobre a indução do investimento e,

consequentemente, sobre a própria trajetória de acumulação de capital.

Por outro lado, parte da “desatenção” quanto ao papel do Estado na promoção de uma via

de desenvolvimento mais igualitária parece encontrar respaldo na crença, ou na percepção

de que os países ditos centrais alcançaram o desenvolvimento – aumentando o bem-estar

geral e reduzindo as desigualdades sociais de forma mais ou menos automática – através

7 Tal como admitiam os cepalinos para o caso da América Latina (SERRANO e MEDEIROS, 2004).

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 18

de um processo bem sucedido de industrialização que resultou num nível alto o suficiente

da renda per capita.

Porém, como demonstrado em Oliveira (2015), isso não parece ser verdade. Analisando

as experiências da Grã-Bretanha e dos EUA entre meados do século XIX e início do XX,

o autor verifica que tanto no caso da Grã-Bretanha como no dos EUA a intensificação da

industrialização e a rápida urbanização que se seguiu, inicialmente resultaram em uma

deterioração das condições de vida nas cidades, expressa pelo descompasso entre a

demanda e a oferta de determinados bens e serviços de cunho essencial. Os problemas

relacionados às precárias condições de habitação e saneamento, por exemplo, eram

patentes ao longo do século XIX.

Esforços efetivos para suprir esse déficit só vieram ao final deste século e início do XX

(na Grã-Bretanha antes do que nos EUA), quando já havia algum tempo, a renda tinha

alcançado patamares relativamente altos. A existência de um excedente social elevado é,

sem dúvida, um componente material importante para garantir uma capacidade produtiva

compatível com os programas abrangentes e custosos, mas apesar de condição

facilitadora de tal processo a decisão política de sua adoção depende de um conjunto de

fatores politicamente determinados. Em ambos os casos a pressão popular foi crucial,

especialmente para a difusão do acesso aos sistemas de água encanada e esgotos, após

graves surtos de cólera e tifoide8.

Ou seja, de forma alguma o aumento do bem-estar geral veio como consequência

automática do processo de acumulação capitalista, como uma leitura mais linear de alguns

teóricos do desenvolvimento parece sugerir9. Não só houve certa defasagem entre a

8 A este respeito, ver Fisher, Cotton e Reed (2005) para o caso da Grã-Bretanha; e Larsen (1969) para o dos

EUA.

9 Sempre se pode argumentar que os autores do desenvolvimento podem ter “pecado por omissão” pelo fato

da discussão de bens públicos sociais não ser objeto estrito do objeto de seu campo. Ainda que se aceite ao

menos em parte tal argumento não há dúvida que a narrativa criada pela Teoria do Desenvolvimento acabou

por diminuir a importância, ao nível do debate intelectual da área, da provisão de tais bens para que ocorra

um verdadeiro desenvolvimento econômico e social.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 19

expansão da renda per capita resultante e a melhora na qualidade de vida das massas

decorrente do maior acesso a bens e serviços públicos, como a provisão destes últimos

dependeu de uma série de fatores, entre os quais a capacidade mobilizatória da classe

trabalhadora parece ocupar papel de destaque.

A ação do Estado no que se refere ao aumento do bem-estar geral, embora necessária na

visão de alguns teóricos do desenvolvimento mencionados, nem sempre é defendida

como eixo central do processo de desenvolvimento e, normalmente se daria

indiretamente, através do estímulo, planejamento e regulação do processo de

industrialização. Apesar de representarem necessidades básicas, o acesso a bens e

serviços como saneamento, moradia, saúde, educação e transporte ainda permanece longe

de ser universal na quase totalidade do mundo subdesenvolvido, seja porque a provisão

pública é insuficiente, seja porque os preços da provisão privada, excludentes. Uma

provisão adequada pelo Estado não só estenderia o acesso a parcelas antes excluídas,

como também liberaria parte importante do orçamento das famílias mais pobres para o

consumo privado, contribuindo para a diversificação deste.

O efeito líquido da provisão de determinados serviços públicos (que entram como bens-

salários) pelo Estado sobre o salário real total - entendido como o salário ou consumo real

privado, mais o salário real social, ou o consumo real de bens públicos - portanto uma

boa proxy para bem-estar dos trabalhadores, dependerá em grande medida da forma como

for financiada (taxação ou dívida pública), associada ao conflito distributivo sobre

determinado nível de produto (CESARATTO, 2005)

Caso o Estado financie o aumento da produção via elevação da tributação, e o salário real

já estiver no nível de subsistência (historicamente determinado)10, o efeito da taxação

direta ou indireta recairá somente sobre os lucros. Nesse caso, o efeito sobre o bem-estar

dos trabalhadores certamente será positivo, uma vez que o acesso a serviços públicos terá

10 De acordo com a abordagem clássica do excedente, o conceito de salário de subsistência remete às

necessidades básicas dos trabalhadores, determinadas por condições históricas e não fisiológicas. Para

Ricardo, esse nível de subsistência (ou consumo necessário), por depender dos “hábitos do país”, “podem

variar não só de país para país, mas também num mesmo país nos ‘diferentes estágios de melhoria

nacional’” (GAREGNANI, 1984: 294, tradução nossa).

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 20

aumentado e o consumo real privado se mantido no nível de subsistência, ou até mesmo

se expandido, caso o serviço agora disponível gratuitamente fizesse parte do consumo

privado. Se, por outro lado, o salário real estiver um pouco acima do nível de subsistência,

uma maior taxação poderá se traduzir em uma queda do salário real privado, a depender

da correlação de forças entre trabalho e capital. O fato é que, mesmo nesse caso, o mais

provável é que o bem-estar dos trabalhadores, ou seja, seu salário (consumo) real total,

frente ao aumento da provisão de bens e serviços públicos pelo Estado, ainda assim

aumente. Isto porque o Estado deverá prover bens anteriormente inacessíveis a um preço

menor (quando não nulo) que o praticado normalmente no setor privado.

Isso sem mencionar o impacto da criação direta de empregos públicos envolvida nesse

processo, impacto este expresso na redução do desemprego e da informalidade, e na maior

sustentabilidade financeira da própria provisão pública de bens e serviços, tendo em vista

o possível efeito positivo sobre a receita tributária (KERSTENETZKY, 2011).

A característica mão de obra intensiva de muitos desses bens e serviços sociais contribui

para aumentar o emprego e a renda e, por conseguinte, reduzir o excedente estrutural de

mão de obra, problema central para os autores citados acima. Por exemplo, tanto Nurkse

(1951), como principalmente Furtado (1952), afirmavam que um dos principais

problemas para o desenvolvimento, como já mencionado, consistia na incorporação nos

países periféricos de padrões de consumo sofisticados associados a técnicas do mundo

desenvolvido intensivas em capital, o que impediria a absorção do excedente estrutural

de mão de obra e, logo, o aumento do nível de salários dos trabalhadores. O aumento na

oferta pública de serviços tais como educação e saúde deveria, por essa lógica, ser

estimulado, uma vez que são intensivos em mão de obra.

Este tema se mostra especialmente relevante quando verificamos ainda hoje as

disparidades observadas nos padrões de consumo inclusive em países desenvolvidos

como os EUA. Se por um lado as camadas mais pobres têm acesso cada vez maior a bens

privados de luxo, seja por meio de crédito ou pela redução nos preços destes, por outro,

se veem muitas vezes à margem do consumo de serviços básicos como saúde e educação.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 21

5 Bens e Serviços Públicos Fora da Teoria do Desenvolvimento Clássica

Embora a relevância da questão dos bens e serviços públicos tenha sido pouco apreciada

dentro da Teoria do Desenvolvimento Clássica, conforme demonstrado acima, outras

abordagens, fora deste campo teórico específico, assimilaram a importância deste tema

para um processo de desenvolvimento mais igualitário, e, portanto, merecem ser

analisadas em maior detalhe. Um dos poucos autores à época da Teoria do

Desenvolvimento Clássica que se inclui nesse grupo de abordagens foi John Kenneth

Galbraith11. Mais recentemente, podemos destacar as análises de alguns autores

brasileiros, para os quais a atuação do Estado nessa frente também é vista como central.

5.1 John Kenneth Galbraith

Analisando a economia norte-americana ao final dos anos 1950, Galbraith (1958) atenta

para dois problemas inter-relacionados, cuja solução dependeria, impreterivelmente, da

intervenção estatal, mais especificamente do aumento da oferta de bens e serviços

públicos gratuitos ou subsidiados.

Em primeiro lugar, constata uma tendência ao desequilíbrio entre a oferta de bens e

serviços privados de um lado, e a dos públicos de outro. Isto porque a produção de bens

privados tenderia a correr na frente da dos públicos. Os consumidores de bens privados

são frequentemente induzidos a comprar mais e mais por estratégias de marketing e pelo

estímulo à emulação do consumo alheio. Com o auxílio dessas “forças”, a oferta de

11 A esse respeito, convém notar que a ideia do acesso gratuito universal a determinados bens e serviços

públicos de cunho social já estava contida em outras iniciativas de discussão de políticas tais como no

relatório que deu origem ao Plano Beverigde na Inglaterra, no início de 1940. Tal plano, que legitimou em

1946 um sistema nacional, universal e gratuito de assistência médica na Inglaterra (National Heath Service),

propunha combater o que definia como os cinco grandes males da sociedade: a vontade, a doença, a miséria,

a ignorância, e a ociosidade, o que seria feito, segundo Gough (2005), através, respectivamente, da proteção

social e transferência de renda, de serviços de saúde (tanto preventivo como curativo), da moradia e

planejamento urbano, da educação, e de políticas de emprego. Para uma análise mais detalhada da evolução

das ideias sociais que culminaram na formação dos Welfare State dos pós-guerra, ver Dedecca (2014).

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 22

determinados bens privados acaba por gerar um potencial de expansão da demanda,

central no entendimento da expansão das economias capitalistas. A oferta de bens

públicos, no entanto, não opera desta maneira e, portanto, tenderá a ficar, tudo o mais

constante, para trás. Seu aumento dependerá muito mais de aspectos políticos,

estruturalmente mais complexos e associados à correlação de forças entre os setores da

sociedade. Sua tendência será, dessa forma, de caminhar sempre atrás da oferta de bens e

serviços privados.

Segundo Galbraith (1958), a provisão de bens e serviços públicos deveria, contudo,

evoluir conjuntamente à de bens privados, pelos menos a níveis mínimos capazes de

manter certo equilíbrio social (chama essa relação satisfatória entre a oferta privada e

pública de “Social Balance”). Caso isso não ocorra (ou seja, haja um “Social Imbalance”),

haverá uma tendência à desordem social, afetando inclusive a performance econômica.

Um exemplo óbvio desse tipo de desequilíbrio se verificaria com um aumento no

consumo de bens privados - e, logo, no descarte de embalagens - sem que haja uma

infraestrutura e serviços adequados de saneamento:

Quanto maior a quantidade de bens que as pessoas procuram, maior a

quantidade de embalagens que elas descartam e maior a quantidade de lixo que

terá que ser carregada. Se os serviços apropriados de saneamento não são

providos, a contrapartida da crescente opulência será a profunda imundice.

(GALBRAITH, 1958: 45, tradução nossa)

Obviamente que esses desequilíbrios tendem a afetar desproporcionalmente as parcelas

mais pobres da população, seja porque não têm condições financeiras para buscar alguns

desses serviços no setor privado, quando disponível, seja porque seu poder de barganha

frente ao governo é menor: quando este tiver a oportunidade de prover, ou expandir a

provisão de, determinado serviço básico, certamente o fará primeiro nos bairros mais

nobres para depois chegar aos mais pobres. Isso sem contar a priorização de determinados

serviços públicos que beneficiam diretamente as grandes empresas industriais, como a

provisão de estradas para os carros da poderosa indústria automobilística, ou as

encomendas às indústrias de armas com o pretexto de defesa nacional. Segundo Galbraith

(1973), esta distorção de prioridades é reflexo claro da influência que os estratos mais

poderosos do setor privado têm sobre o setor público. Não seria apenas um erro

excepcional num sistema excelente, mas sim “uma característica tão intrínseca da

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 23

economia moderna quanto o movimento errático num bêbado” (GALBRAITH, 1973:

296).

Essa constatação nos leva a um segundo ponto para o qual Galbraith (1973) chama à

atenção. Não obstante o intenso processo de desenvolvimento pelo qual passou a

economia norte-americana nas décadas precedentes a 1950 e a significativa redução na

taxa de pobreza que o acompanhou, esta ainda persistia em determinados estratos da

população. Por mais que o nível de renda per capita seja considerado alto, muito acima

do nível estabelecido para a linha da pobreza, isso não significa que a distribuição daquela

(renda) se dará de modo a eliminar esta última (pobreza), ou até minimizá-la,

automaticamente. A atuação do Estado na garantia de condições adequadas de vida à

população mais pobre se faz crucial, segundo o autor, para melhorar o bem-estar dessas

camadas e romper com o ciclo de pobreza intergeracional que o capitalismo por si só

tende a preservar:

(...) Se os filhos das famílias pobres tiverem escolas de bom nível e se a

frequência for garantida; se as crianças, embora mal alimentadas em casa,

receberem boa comida na escola; se a comunidade se dispuser de serviços de

saúde adequados e se o estado físico das crianças for mantido sob rigorosa

observação; se houver oportunidades, para os que mostrarem capacidade, de

receber um grau maior de instrução independentemente do meios; e se, de

modo especial, no caso de comunidades urbanas, a moradia for ampla e os

padrões de habitação forem obedecidos, se as ruas forem limpas, as leis

cumpridas e a recreação suficiente - então haverá boas possibilidades de que

os filhos dos muito pobres cheguem à idade adulta sem desvantagens

inibidoras.(...)A pobreza é autoperpetuável porque as comunidades mais

pobres são mais pobres nos serviços que a eliminariam. Para erradicar a

pobreza eficientemente, precisamos, de fato, investir além da proporção nas

crianças das comunidades pobres. É lá que escolas do melhor nível, serviços

de saúde de alta qualidade, condições de nutrição e recreação são mais

necessários a fim de compensar o baixíssimo investimento que as famílias

podem fazer em sua própria prole. (GALBRAITH, 1973: 307-8)

Além de possibilitar uma maior diversificação da cesta de consumo, ao funcionar como

um salário indireto, liberando renda para o consumo privado, proporciona às crianças das

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 24

comunidades pobres melhores condições para no futuro romperem com a pobreza

intergeracional.

Concluindo, para Galbraith (1973), tanto o desequilíbrio entre a oferta de bens e serviços

públicos e privados (“Social Imbalance”), como o problema a ele relacionado da pobreza

e desigualdade exigem uma ampla provisão de bens e serviços públicos gratuitos ou

subsidiados pelo Estado, especialmente para as camadas menos favorecidas:

Ficará claro que, em excepcional medida, o remédio para a pobreza conduz às

mesmas necessidades que o equilíbrio social. As limitações que confinam as

pessoas no gueto são as que resultam de investimentos insuficientes no setor

público. E os meios para escapar dessas limitações e romper a cadeia em

gerações futuras – melhor nutrição e saúde, melhor educação, mais e melhores

moradias, melhor transporte público, um ambiente inspirador de uma

participação social eficaz – todos, com raras exceções, demandam um

investimento maciçamente superior no setor público. (GALBRAITH, 1973:

308)

5.2 Abordagens Brasileiras Recentes

Dentre as abordagens mais recentes, as de autores brasileiros como Lavinas (2007, 2013a,

2013b), Fagnani (2014) e Draibe (1997) são bastante categóricas quanto à importância da

provisão de bens e serviços públicos pelo Estado. De forma geral defendem que uma

estratégia efetiva de combate à pobreza e à desigualdade não deveria estar centrada em

programas de transferência de renda monetária a um determinado público alvo, como

tendeu a ocorrer na América Latina recentemente, mas sim em um amplo sistema de

proteção social que incluísse também o acesso universal a uma gama de bens e serviços

considerados essenciais.

Com um enfoque um pouco diferente, Carlos Medeiros também vem insistindo na questão

dos bens públicos em diversos trabalhos (MEDEIROS, 2003, 2005, 2012, entre outros).

Seu argumento parte da constatação de que a oferta de certos tipos de infraestrutura e de

serviços não pode ser atendida pelo setor privado, pois não seria do ponto de vista

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 25

mercantil suficientemente atrativo. Assim, por mais desenvolvido que for o domínio

privado, o papel do Estado nesse quesito é fundamental, seja na produção direta ou no

estímulo à produção dos mencionados bens e serviços sociais. Adicionalmente, alguns

serviços essenciais, quando providos privadamente, sob a lógica do mercado, se tornam

excludentes à parcela mais pobre da população, ou comprometem excessivamente seu

orçamento, prejudicando o consumo de outros itens.

O autor observa, então, que uma melhora sustentável na desigualdade social requer tanto

avanços no mercado de trabalho (queda do desemprego, redução da informalidade etc),

associados a ganhos salariais - principalmente nos estratos inferiores - e a transferências

nominais de renda, como também investimentos públicos em infraestrutura e serviços

básicos. As maiores dificuldades costumam se encontrar nesta última frente:

Mas, na maioria dos países, o maior desafio contemporâneo situa-se na difusão

para o conjunto da população de condições adequadas de moradia, infra-

estrutura e bens coletivos. A simples distribuição de renda que advém de um

aumento nos salários, ou em pensões, ou em outra transferência nominal de

renda, não se traduz num acesso completo a estes serviços. Sua demanda não

pode ser atendida por forças de mercado porque eles dependem de

investimentos públicos em infra-estrutura. (MEDEIROS, 2005: 475)

Quanto maior o peso no orçamento das famílias de mais baixa renda, maior será o impacto

redistributivo de provisão pública, gratuita ou subsidiada, do bem em questão, uma vez

que representará um aumento real no poder aquisitivo desses estratos. Esse tipo de

medida é crucial para a diversificação do consumo privado e, logo, para o aumento do

bem-estar geral. Conforme salienta, foi a expansão das transferências “in kind” nos países

industriais um dos principais fatores a possibilitar o desenvolvimento da uma sociedade

de consumo de massa:

Na maioria das sociedades industrializadas, a provisão de subsídios e construção de

infraestrutura de habitação e transportes ao lado da expansão de serviços públicos nas

áreas de educação e saúde foi a base para a evolução e modernização dos padrões de

consumo.

Com efeito, a difusão de um padrão de consumo privado socialmente

homogêneo para a maioria da população se deu num contexto e dinâmica social

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 26

que eliminou a miséria e a pobreza com a construção do estado de bem-estar e

com a provisão direta ou subsidiada de bens e serviços públicos (estratégicos)

na educação, saúde, eletrificação, saneamento básico, setores não fordistas.

(MEDEIROS, 2012: 6)

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 27

Considerações finais

Buscou-se com este trabalho discutir a relevância da provisão de bens e serviços públicos

na teoria econômica e para o processo de desenvolvimento econômico e social.

Inicialmente, o foco residiu em situar esse debate dentro da literatura heterodoxa da

Teoria do Desenvolvimento, bem como questionar a limitada atenção conferida por esta

a um tema que nos parece ser de extrema importância.

Diversos fatores parecem ter contribuído para essa “desatenção”, sejam de ordem teórica,

por exemplo, ao adotar a Lei de Say como princípio de determinação da renda no longo

prazo, sejam por não considerarem, de fato, que a provisão pública fosse de tamanha

relevância para o bem-estar da população, ou ainda por centrarem suas atenções em outras

questões. O ponto é que, mesmo nas análises mais heterodoxas da Teoria do

Desenvolvimento, como a da Cepal e de seus teóricos, o foco não recaía diretamente sobre

o bem-estar e as desigualdades sociais. Assim, ao tratarem da questão da distribuição de

renda, permanecia subentendido que o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas

fosse capaz de conceber uma sociedade mais homogênea. Isto é, passa-se uma ideia

implícita de excessiva fé nos mecanismos de mercado para se resolver os problemas

sociais. Ao subestimar, ou mesmo ignorar essa dimensão do desenvolvimento econômico

e social, a Teoria do Desenvolvimento parece não incorporar em sua reflexão a verdadeira

natureza histórica das mudanças dos padrões de desenvolvimento socioeconômicos

ocorridas nos países que se industrializaram no século XIX. Como analisado

detalhadamente em Oliveira (2015), a experiência da Grã-Bretanha e dos EUA demonstra

que o aumento do bem-estar das massas ao final do século XIX e início de XX, longe de

vir como consequência automática do processo de acumulação capitalista, dependeu,

também, da provisão de bens e serviços públicos de cunho social já então e que este

aumento, por sua vez, refletiu em grande medida a maior capacidade de organização de

movimentos sociais e trabalhistas.

Como consequência (ou mesmo causa) desse raciocínio, a relação entre a distribuição de

renda e o bem-estar na Teoria do Desenvolvimento aparece um pouco nebulosa. Um

aumento no salário real das camadas mais baixas decorrente do uma elevação na

produtividade média do sistema e que gere uma redução na pobreza e na desigualdade de

renda certamente elevará o bem-estar dessas pessoas, na medida em que possibilita certa

diversificação em seus padrões de consumo privado. Entretanto, como se buscou enfatizar

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 28

ao longo do exposto acima, inclusive a partir de análises que se encontram fora da Teoria

do Desenvolvimento Clássica, a oferta de alguns bens e serviços (saneamento, por

exemplo), essenciais para níveis mínimos de vida, somente é viável pela via estatal e,

portanto, o acesso a estes dependerá de outros fatores que não a renda monetária e sua

distribuição entre os estratos da sociedade. E mesmo nos casos em que a oferta é atrativa

ao setor privado (saúde, educação, etc.) e seus preços acessíveis a algumas camadas de

menor renda, a provisão estatal tenderá a ser mais vantajosa: quando não gratuita,

normalmente apresentará preços menores, dada a ausência de compromisso com o lucro.

Assim, o aumento do bem-estar decorrente do acesso a bens e serviços públicos, gratuitos

ou subsidiados, poderá se dar ou diretamente pelo acesso a serviços antes inacessíveis

(seja pelos preços elevados no setor privado ou pela oferta pública inexistente), ou

indiretamente pelo aumento do salário real que a provisão pública possibilita, ao

apresentar preços menores que o setor privado, ou mesmo nulos.

Daí a importância da intervenção do Estado nesse âmbito. O caminho para um

desenvolvimento mais inclusivo, que efetivamente leve a uma sociedade mais igualitária,

deve prezar não só pela segurança monetária, mas também pelo acesso universal a

condições adequadas de vida, incluindo bens e serviços como saneamento básico,

moradia, transporte, saúde e educação.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 29

Referências

BASTOS, C. P.; D’AVILA, J. G. “O Debate do Desenvolvimento na Tradição

Heterodoxa Brasileira”. Revista de Economia Contemporânea, v.13, n.2, p.173-199, Rio

de Janeiro, 2009.

CEPAL (1949) “Estudo econômico da América Latina”, In: BIELCHOWSKY, Ricardo

(org). “Cinqüenta Anos de Pensamento na Cepal. Volume 1”. Rio de Janeiro: Record,

2000.

CESARATTO, S. “Pension Reform and Economic Theory. A Non-Orthodox Analisys”.

Edward Elgar Publishing Limited. 2005.

COUTINHO, M. “Distribuição de Renda e Padrões de Consumo: Alguns autores em

torno da tradição cepalina”, ensaios FEE, v-1 n-1, 1979.

DEDECCA, C. S. “A Redução da Desigualdade e Seus Desafios”. In: CALIXTRE, A.

B.; BIANCARELLI, A. M.; CINTRA, M. A. M. “Presente e Futuro do Desenvolvimento

Brasileiro”. Brasília : IPEA, 2014.

DRAIBE, S. M. “Uma Nova Institucionalidade das Políticas Sociais? Reflexões a

propósito da experiência latino-americana recente de reformas dos programas sociais”.

São Paulo em Perspectiva, 1997.

FAGNANI, E. “Fragmentação da luta política e agenda de desenvolvimento”. Instituto

de Economia UNICAMP, Julho 2014.

FISHER, J.; COTTON, A. P.; REED, B. J. “Learning from the past: delivery of water and

sanitation services to the poor in 19th century Britain”. WELL Briefing Note 9, 2005.

FURTADO, C (1952). “Formação de Capital e Desenvolvimento Econômico”. Em:

CENTRO INTERNACIONAL CELSO FURTADO DE POLITICAS PARA O

DESENVOLVIMENTO. Memórias do Desenvolvimento, ano 1, número 1, junho de

2007.

FURTADO, C. “Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina”. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1965.

FURTADO, C. “Um projeto para o Brasil”. Rio de Janeiro, Saga, 1968.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 30

GALBRAITH, J. K. (1958) “The Case for Social Balance – The Affluent Society”. In:

The Essential Galbraith, Houthton Mifflin Company, Boston – New York, 2001.

GALBRAITH, J. K. (1973) “A Economia e o Interesse do Setor Público”. São Paulo,

Pioneira, 1988.

GAREGNANI, P. “Value and Distribution in the Classical Economists and Marx”.

Oxford Economic Papers 36, p.291-325, 1984.

GOUGH, Ian “European Welfare States: Explanations and Lessons for Developing

Countries”. Arusha Conference, “New Frontiers of Social Policy”, 2005.

KALDOR, N. (1956). “Alternative Theories of Distribution”. Review of Economic

Studies, vol. 23, No2, 83-100, 2006.

KERSTENETZKY, C. L. “Políticas sociais sob a perspectiva do Estado de Bem-Estar

Social: desafios e oportunidades para o “catching up” social brasileiro”. CEDE, UFF,

Niterói, 2011.

KUZNETS, S. “Economic Growth and Income Inequality”. The American Economic

Review, Volume XLV, Number One, March, 1955.

LARSEN, L. H. "Nineteenth-Century Street Sanitation: A Study of Filth and Frustration."

Wisconsin Magazine of History 52: 239-247; No. 3, Spring 1969.

LAVINAS, L. “Gasto social no Brasil: programas de transferência de renda versus

investimento social”. Ciência e Saúde Coletiva, 2007.

LAVINAS, L. “21ST CENTURY WELFARE”. New Left Review, Nov. Dec. 2013a.

LAVINAS, L. “Latin America: Anti-Poverty Schemes Instead of Social Protection”.

desiguALdades.net, Working Paper Series 51, Berlin: desiguALdades.net International

Research Network on Independent Inequalities In Latin America, 2013b.

LEWIS, W. A. (1954) “O desenvolvimento econômico com oferta ilimitada de mão-

de-obra”. In: AGARWALA, A. N.; SINGH, S. P. (Org.). A economia do

subdesenvolvimento. Forense, 1969.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 31

LEWIS, W. A. “Development Economics in the 1950s”. In: MEIER, G. M.; DUDLEY,

S. “Pioneers in Development”. Published for the World Bank. Oxford University Press.

1984.

MEDEIROS, C. A. “Desenvolvimento econômico e estratégias de redução da pobreza e

das desigualdades no Brasil”. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 24, n. 2, p. 323-350, 2003.

MEDEIROS, Carlos Aguiar. Liberalização Comercial e Financeira e seus Efeitos sobre

Crescimento, Emprego e Distribuição de Renda nos Países Latino-Americanos. Rio de

Janeiro: Revista Brasileira de Economia Contemporânea, vol. 9, No 3, 2005.

MEDEIROS, C. A. “A Evolução da Composição da Demanda das Famílias Brasileiras

entre 2003-2009”, dez. 2012.

NURKSE, R. (1951). “Problemas da Formação de Capitais em Países

Subdesenvolvidos”. Em: CENTRO INTERNACIONAL CELSO FURTADO DE

POLITICAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Memórias do Desenvolvimento, ano 1,

número 1, junho de 2007.

OLIVEIRA, B. R. “Desenvolvimento Econômico e Provisão de Bens e Serviços Públicos:

Considerações Teóricas e Evidência Histórica”. Dissertação de Mestrado, Programa de

Pós-Graduação em Economia (PPGE), UFRJ – IE, 2015.

PINTO, A. “Notas sobre la Distribución del Ingreso y la Estrategia de la Distribución”.

El Trimestre Económico, núm. 115, julio-septiembre de 1962.

PREBISCH, R. (1949), “O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de

problemas principais”. In: BIELSCHOWSKY, R. (Org.). Cinquenta anos do pensamento

na Cepal. [S.1.]: Record, 2000, v. 1.

SERRANO, F. “Acumulação e Gasto Improdutivo na Economia do Desenvolvimento”.

In: FIORI, J. L.; MEDEIROS, C. (Orgs.). Polarização Mundial e Crescimento. Rio de

Janeiro: Vozes, 2001.

SERRANO, F.; MEDEIROS, C. “O Desenvolvimento Econômico e a Retomada da

Abordagem Clássica do Excedente”. Revista de Economia Política, vol. 24, No (94),

p.238-256, abril-junho/2004.

IE-UFRJ DISCUSSION PAPER: OLIVEIRA; BASTOS, TD 021 - 2016. 32

VUSKOVIC, P. (1964) “Una política económica popular”, In: “Pedro Vuskovic Bravo,

Obras Escogidas Sobre Chile (1964-1992)”, Compilador: Raúl Maldonado. Caracol

Servicios Editoriales, 1993.