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A introjeção do racismo e a não identidade étnica e racial do negro brasileiro Um autor que explicou muito bem como se dá esse processo de introjeção do racismo foi Helio Santos (2001). Em seu livro A Busca de um Caminho para o Brasil: A Trilha do Círculo Vicioso, ele defende a ideia de que o racismo no Brasil ocorre segundo uma metáfora da “centopeia de duas cabeças”: pensando na pequena lacraia, que ao invés de cabeça de uma lado, e rabo de outro, teria então duas cabeças, sendo uma a do branco, e outra a do negro. Vamos explicar melhor do que se trata. Acompanhe o raciocínio nas palavras do próprio autor (Santos, 2001, pp. 148-149): A centopeia é um bicho conhecido também pelo nome de lacraia e costuma ser inofensivo. A inovação que a nossa teoria traz à anatomia desse bichinho é incluir outra cabeça, onde deveria estar seu rabo. Com duas cabeças, imaginamos que ela possa mover-se em sentidos opostos. Usamos essa alegoria para poder explicar o que se dá no campo racial em nosso país. Em um sentido, a sociedade, fortalecida pelos meios de comunicação, destila seu racismo e constrói os seus preconceitos contra os negros e seus valores. Os valores do negro são a sua cultura. Em um sentido contrário, temos o próprio negro-descendente vindo e assumindo (em sua cabeça), como se fosse verdade, aquelas ideias armadas contra si. Se lembrarmos aquilo que já colocamos nos módulos anteriores, de que os negros correspondem a mais de 50% da população brasileira atualmente, não é difícil compreendermos que, como integrante da sociedade civil, mesmo não fazendo parte da sociedade dominante, os negro-descendentes também colaboram na visão corrente em nossa sociedade, ao mesmo tempo em que passam a introjetar contra si aspectos desfavoráveis. Hélio Santos tem certeza em afirmar que se trata de uma “monumental contradição” (2001, p. 149) e, por isso, um processo não tão simples de ser compreendido, como você já deve ter percebido. Mas, por favor, prossiga com o raciocínio de nosso autor: Em primeiro lugar, a sociedade que discrimina a população de ascendência negra, se supõe branco-europeia. Contudo, não o é. Em segundo lugar, essa sociedade discriminadora é marcadamente negra em termos culturais. Vive, consome e tem internalizados em sua cultura valores negros. Estranho, não? Flagramos agora uma ironia peculiar da terra-brasilis: aqui, os brancos (ou supostos), quando agridem os negros, ofendem a si mesmos. Isso porque eles também são meio negros, meio brancos, curtindo e vivenciando a cultura negra. (Ibidem). Baseados nessas concepções, podemos dizer que somos historicamente mestiços. Para compreender essa ideia é muito simples: onde poderíamos verdadeiramente encontrar um “branco-europeu-puro”? Se a própria história de conquistas e revoluções ocorridas nos últimos milênios na Europa é fruto de intensa miscigenação (talvez possamos até dizer que o povo mais mestiço da terra seja o próprio europeu). Dá para acreditar que essa verdade histórica da miscigenação europeia foi apagada de maneira tão eficaz e

A introjeção do racismo e a não identidade étnica e racial do negro brasileiro

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A introjeção do racismo e a não identidade étnica e racial do negro brasileiro

Um autor que explicou muito bem como se dá esse processo de introjeção do racismo foi Helio Santos (2001). Em seu livro A Busca de um Caminho para o Brasil: A Trilha do Círculo Vicioso, ele defende a ideia de que o racismo no Brasil ocorre segundo uma metáfora da “centopeia de duas cabeças”: pensando na pequena lacraia, que ao invés de cabeça de uma lado, e rabo de outro, teria então duas cabeças, sendo uma a do branco, e outra a do negro. Vamos explicar melhor do que se trata. Acompanhe o raciocínio nas palavras do próprio autor (Santos, 2001, pp. 148-149):

A centopeia é um bicho conhecido também pelo nome de lacraia e costuma ser inofensivo. A inovação que a nossa teoria traz à anatomia desse bichinho é incluir outra cabeça, onde deveria estar seu rabo. Com duas cabeças, imaginamos que ela possa mover-se em sentidos opostos. Usamos essa alegoria para poder explicar o que se dá no campo racial em nosso país. Em um sentido, a sociedade, fortalecida pelos meios de comunicação, destila seu racismo e constrói os seus preconceitos contra os negros e seus valores. Os valores do negro são a sua cultura. Em um sentido contrário, temos o próprio negro-descendente vindo e assumindo (em sua cabeça), como se fosse verdade, aquelas ideias armadas contra si.

Se lembrarmos aquilo que já colocamos nos módulos anteriores, de que os negros correspondem a mais de 50% da população brasileira atualmente, não é difícil compreendermos que, como integrante da sociedade civil, mesmo não fazendo parte da sociedade dominante, os negro-descendentes também colaboram na visão corrente em nossa sociedade, ao mesmo tempo em que passam a introjetar contra si aspectos desfavoráveis. Hélio Santos tem certeza em afirmar que se trata de uma “monumental contradição” (2001, p. 149) e, por isso, um processo não tão simples de ser compreendido, como você já deve ter percebido. Mas, por favor, prossiga com o raciocínio de nosso autor:

Em primeiro lugar, a sociedade que discrimina a população de ascendência negra, se supõe branco-europeia. Contudo, não o é. Em segundo lugar, essa sociedade discriminadora é marcadamente negra em termos culturais. Vive, consome e tem internalizados em sua cultura valores negros. Estranho, não? Flagramos agora uma ironia peculiar da terra-brasilis: aqui, os brancos (ou supostos), quando agridem os negros, ofendem a si mesmos. Isso porque eles também são meio negros, meio brancos, curtindo e vivenciando a cultura negra. (Ibidem).

Baseados nessas concepções, podemos dizer que somos historicamente mestiços. Para compreender essa ideia é muito simples: onde poderíamos verdadeiramente encontrar um “branco-europeu-puro”? Se a própria história de conquistas e revoluções ocorridas nos últimos milênios na Europa é fruto de intensa miscigenação (talvez possamos até dizer que o povo mais mestiço da terra seja o próprio europeu). Dá para acreditar que essa verdade histórica da miscigenação europeia foi apagada de maneira tão eficaz e

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definitiva? E mais grave ainda, que nós (em especial, os brasileiros-brancos) tenhamos uma percepção absolutamente imaginária (e ilusória) de que somos de alguma forma descendentes de uma “linhagem europeia pura”?

Trata-se de um engano tão cristalizado e enraizado em nossa “cultura de povo colonizado”, que já tomou ares de verdade. É preciso atentar, de uma vez por todas, para o fato de que não podemos separar os seres humanos em brancos, negros, amarelos etc. Historicamente (e geneticamente) somos o resultado da infinita mistura de uma única raça: a raça humana. Portanto, as diferenças são construídas social e politicamente, ou seja, são fruto do processo identitário.

Assim, se construímos para nós uma cultura hierarquizada e dividida imaginariamente entre brancos, negros e índios, estamos marchando contra nós mesmos, visto que somos, todos, um pouco branco, um pouco negro, um pouco índio e assim por diante. Esse é o sentido da centopéia de duas cabeças da qual falava Helio Santos. É como se todas as cabeças pensassem num único sentido: contra nós mesmos. Veja que triste situação nos encontramos.

MÓDULO 6 - MOVIMENTOS SOCIAIS E AÇÕES AFIRMATIVAS: É POSSÍVEL ACELERAR O PROCESSO DE MUDANÇA?

Após estudarmos o livro de Hélio Santos, e compreendermos a complexa interpretação que este autor nos fornece sobre a trilha do circulo vicioso do racismo brasileiro, você deve estar se perguntando: mas, afinal, será possível reverter esse processo perverso?

Pois a nossa tese é: Sim! Isso é possível! A partir deste módulo, começaremos a apresentar algumas dessas possibilidades, partindo dos movimentos negros que tradicionalmente lutam contra o racismo e por igualdade de condições, e passando à definição de ações afirmativas e suas principais implicações.

Movimentos negros na luta contra o racismo: para uma nova condição afrodescendente

Muitos de nós, ao longo de nossa trajetória escolar, já devemos ter nos deparado com algumas das seguintes explicações para a escravização do negro e para a posição que este ocupa até hoje em nossa sociedade:

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a) Durante o processo de colonização do Brasil feita pelos portugueses, a escravização do negro foi “preferível” à do índio, pois aquele sempre fora mais “passivo”, “aceitando” de forma mais mansa sua própria escravização;

b) Ou então: o negro, por ser mais “preguiçoso”, se acomodava à sua condição de escravo, o que fez com que permanecesse nela por quase 400 anos. São ideias que sustentam ideologicamente concepções naturalizantes da condição do negro como escravo, como se os africanos já tivessem nascido escravos, numa tentativa de apagar todo o processo econômico e social de escravização de pessoas negro-africanas por escravizadores portugueses brancos;

c) Ou ainda: os negros estão na situação em que estão hoje porque querem, porque não têm “competência” para “conquistar” o que os brancos conquistaram.

São explicações esdrúxulas e indignantes, mas que infelizmente todos nós já ouvimos pelo menos uma vez na vida. Para que a crítica que estamos realizando fique mais clara, pedimos que você reflita sobre os seguintes questionamentos:

Será mesmo que alguém pode se “acomodar” à condição de escravizado ou toda a história da resistência negra sempre foi propositalmente esquecida pelos historiadores?

Será que o negro realmente “aceitou passivamente” sua escravização ou se organizou em inúmeros movimentos ao longo da história colonial, imperial e republicana brasileira, movimentos esses nunca citados nos livros de História?

Será que as estatísticas que insistentemente mostramos anteriormente confirmam a “superioridade” e “competência” do branco em relação à “falta de capacidade” do negro ou são o reflexo da sociedade desigual, aristocrática e racista na qual vivemos?

É lógico que você já percebeu que nossa tese nesta disciplina procura confirmar sempre a segunda parte das perguntas anteriores, não é? Neste módulo, queremos reforçar o papel do movimento negro contemporâneo na luta contra as desigualdades raciais no Brasil, bem como na promoção de outra condição para os afrodescendentes, a partir, principalmente, de uma tomada de consciência dessas questões, e da implantação de políticas de ações afirmativas, das quais falaremos em seguida.

Destacamos, ainda, a importância de que as crianças aprendam nas escolas uma outra história do Brasil, uma história recontada, que desta vez, leve em consideração esse personagem que, mesmo tão importante, foi tão estigmatizado em nossos livros tradicionais, sendo tomado apenas como “escravo”. Após a implantação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, muitos incentivos foram dados à produção bibliográfica, para que grupos temáticos fossem formados e passassem a escrever um farto material pedagógico sobre a história da África e dos negros no Brasil. Muitos desses materiais estão disponíveis na íntegra para downloads na Internet; outros se encontram à venda

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nas livrarias, ou ainda sendo distribuídos gratuitamente, seja por órgãos públicos, seja por organizações não governamentais, com o apoio da iniciativa privada.

A especificidade das Ações Afirmativas para negros no Brasil

A força do movimento negro contra todas as formas de discriminação por raça ou cor, e pela garantia de direitos sociais fundamentais da população afro-brasileira acabou por se traduzir basicamente em duas formas na legislação antirracista vigente atualmente no Brasil: de um lado, através de uma legislação penal que pune todo ato discriminatório; por outro, a partir da promoção de igualdade de oportunidades a grupos desfavorecidos socialmente, através das chamadas ações afirmativas.

Neste subtópico, vamos nos aprofundar apenas nessa última, procurando mostrar um pouco da discussão em torno de um tema ainda tão polêmico no Brasil, que mexe com os ânimos de intelectuais, ativistas e políticos, tanto de esquerda, quanto de direita, com negros, brancos e amarelos, com as pessoas de modo geral, professores, alunos, profissionais, donas de casa etc. O debate em torno das ações afirmativas é capaz de mobilizar opiniões em qualquer âmbito social ou contexto cultural, principalmente porque fazem parte delas algumas políticas que procuram garantir cotas para afrodescendentes em universidades e empresas, visando à inclusão justa desse segmento populacional. Mas, afinal, o que são as ações afirmativas? De acordo com Bernardino (2002, p. 256-257):

(...) são entendidas como políticas públicas que pretendem corrigir desigualdades socioeconômicas procedentes de discriminação, atual ou histórica, sofrida por algum grupo de pessoas. Para tanto, concedem-se vantagens competitivas para membros de certos grupos que vivenciam uma situação de inferioridade a fim de que, num futuro estipulado, esta situação seja revertida. Assim, as políticas de ação afirmativa buscam, por meio de um tratamento temporariamente diferenciado, promover a equidade entre os grupos que compõem a sociedade.

A discussão sobre as ações afirmativas procedem dos Estados Unidos, onde o movimento negro lutou e conseguiu a garantia de leis que promovessem, ao mesmo tempo: primeiro, um “ ressarcimento” às perdas de oportunidades vividas pelos negros naquele país em consequência de políticas segregacionais; segundo, uma “aceleração” do lento processo histórico, para a inclusão social a curto prazo desse segmento populacional, bem como a ascendência de minorias étnicas, raciais e sexuais. Em ambos os casos, segundo Guimarães (2009, p. 170), são ações “para remediar uma situação considerada socialmente indesejável”.

Claro que “remediar” não é o ideal de nenhuma realidade verdadeiramente democrática. Assim, é preciso considerar as ações afirmativas como uma medida paliativa, transitória e, portanto, temporária, devendo ser extinta assim que as condições sociais estiverem

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mais equilibradas para grupos sociais em desvantagem, como negros, indígenas e mulheres, por exemplo.

Ações afirmativas são, nesse sentido, uma espécie de “discriminação ao contrário”, também denominada como “discriminação positiva”, no sentido de proporcionar algumas vantagens aos grupos historicamente em desvantagem (e por isso considerados “minorias”), como negros, idosos, mulheres, indígenas, crianças, adolescentes etc., oferecendo-lhes facilidades temporárias para um acesso mais rápido aos direitos sociais básicos que lhes foram por tanto tempo sistematicamente negados. Para o Direito, esse recurso é denominado “mitigação de danos”, previsto em legislação brasileira, inclusive.

Fonte: online.unip.br (acesso exclusivo aos alunos)

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mais equilibradas para grupos sociais em desvantagem, como negros, indígenas e mulheres, por exemplo.

Ações afirmativas são, nesse sentido, uma espécie de “discriminação ao contrário”, também denominada como “discriminação positiva”, no sentido de proporcionar algumas vantagens aos grupos historicamente em desvantagem (e por isso considerados “minorias”), como negros, idosos, mulheres, indígenas, crianças, adolescentes etc., oferecendo-lhes facilidades temporárias para um acesso mais rápido aos direitos sociais básicos que lhes foram por tanto tempo sistematicamente negados. Para o Direito, esse recurso é denominado “mitigação de danos”, previsto em legislação brasileira, inclusive.

Fonte: online.unip.br (acesso exclusivo aos alunos)