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Do terremoto de Lisboa à Independência do Brasil Lilia Moritz Schwarcz com Paulo César de Azevedo e Angela Marques da Costa

A longa viagem da biblioteca dos reis - Lilia Schwarcz

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Do terremoto de Lisboa à Independência do Brasil

Lilia Moritz Schwarcz

com Paulo César de Azevedo e Angela Marques da Costa

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SUMÁRIO

Acervos pesquisados e suas abreviaturas, 9

Agradecimentos, 11

1. Terremoto ou "o mal está na terra", 15

2. A antiga Lisboa e sua Real Biblioteca, 37

3. Tempos de Pombal e os limites do Iluminismo português, 81

4. Uma nova biblioteca: um novo espírito, 119

5. Na "Viradeira": política e cultura no reinado de d. Maria, 153

6. Hora de sair de casa: a difícil neutralidade e a fuga para o Brasil, 183

7. Enfim nos trópicos: a chegada, a festa, a instalação, 225

8. O destino da biblioteca em terras brasileiras, 261

9. D. João e sua corte do Rio de Janeiro: cumprindo o calendário, 287

10. O retorno de d. João: vai o pai e ficam o filho e a biblioteca, 343

11. Pagando caro, 387

Os livros e o diabo, 417

Epílogo, 425

Notas, 433

Cronologia, 475

Bibliografia, 487

Créditos das ilustrações, 521

índice remissivo, 543

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ACERVOS PESQUISADOS E SUAS ABREVIATURAS

Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCJR)

Arquivo Nacional da Torre do Tombo — Lisboa (ATT) Arquivo Histórico do Palácio do Itamaraty— Rio de Janeiro (AI) Arquivo Nacional — Rio de Janeiro (AN) Biblioteca da Ajuda — Lisboa (BA) Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL) Biblioteca Municipal Mário de Andrade — São Paulo (BMMA)

Divisão de Documentação Fotográfica — Lisboa (DDF) Fundação Biblioteca Nacional — Rio de Janeiro (FBN)

Divisão de Manuscritos (FBN/MSS)

Divisão de Obras Raras (FBN/SOR)

Divisão de Obras Gerais (FBN/SOC,)

Divisão de Iconografia (FBN/SI)

Divisão de Música (FBN/SM)

Gabinete Português de Leitura — Rio de Janeiro (CPB) Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB) Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPH) Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro — Rio de Janeiro (IHGB)

Instituto Português do Patrimônio Arquitetônico — Rio de Janeiro (IPPAR)

•Museu da Cidade — Lisboa (MC) • Museu Histórico Nacional — Rio de Janeiro (MHN) /Museu Imperial de Petrópolis (ML) /Museu Nacional de Arte Antiga — Lisboa (MAA) • Museu Nacional de Belas Artes — Rio de Janeiro (MNBA)

/Museu Nacional dos Coches — Lisboa (MNC) , Museu Paulista/Ipiranga (MP) Palácio Nacional de Mafra (PNM) Palácio Nacional de Queluz (PNQ)

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AGRADECIMENTOS

Este livro é resultado de um amplo projeto desenvolvido durante £uatro_anos com o apoio da Odebrgiiií, em parceria com a Fundação Biblioteca Nacional Seu objetivo maior é recuperar o imenso acervo da Real Biblioteca — hoje pertencen-te à Biblioteca Nacional —, cuja origem remonta à própria história da monarquia portuguesa. A longmdagízm da biblioteca dosséis, o primeiro produto desse longo processo, conta a história da Biblioteca — suas aventuras, suas políticas, seus reve-

Lses. — e dos profissionais que por ela passaram. Aiém dele, serão produzidos um CD-ROM com as referências bibliográficas da Real Biblioteca — que estão sendo clas-sificados, como um todo, pela primeira vez — e um livro de arte no qual serão reproduzidos tesouros dessa coleção de 60 mil volumes.

Foi a empresa Odebreçht, na pessoa de Márcio Polidoro, quem viabilizou toda a pesquisa, subsidiando viagens, contratando pesquisadotgs_ejinanciando o proje-;to como um todo. Sem esse auxílio uma boa idéia não teria saído do papel.

A Fundação Biblioteca Nacional disponibilizou to da sua infra-estrutura para o. bom andamento do projeto. Na verdade, este é mesmo um livro de equipe, pois contamos com a incansável ajuda dos funcionários da instituição. Tantos foram aqueles que nos auxiliaram que citamos apenas alguns, na tentativa de agradecer a todos. Georgina Staneck esteve do nosso lado desde a concepção inicial e foi sem-pre a mais animada das incentivadoras. Suely Dias ofereceu apoio inconteste e nos fez acreditar em uma série de idéias ainda sem chão. Vilma Gomes de Melo, secre-tária da coordenadoria, incumbiu-se dos recados e préstimos desses longos anos de trabalho. Carmem Tereza Coelho Moreno, Vera Lúcia Miranda Faillace, Taiza Ca-bral Fernandes e Lúcia Nolasco Ferreira, dentre tantos outros funcionários da Di-visão de Manuscritos, encontraram documentos impossíveis e empenharam-se para achar tantos outros. Celina Coelho de Jesus, além de trabalhar na classificação dos documentos da Real Biblioteca, nos permitiu ler garranchos indecifráveis. Na Di-visão de Obras Raras contamos com a amizade de Rejane Araújo Benning e sua de-dicada equipe — que, além de providenciar um eterno vaivém de obras, não parou de fazer sugestões — e, em especial, com a ajuda diária de Maria do Rosário de Fátima Martins Cardoso Martinho e de Claudia Cristiane da Fonseca Mayrink.

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Glícia Campos, da Divisão de Música, apresentou partituras desconhecidas, obras e documentos raros de sua área. Na Divisão de Obras Gerais, Vera Califfa e Ana Naldi emprestaram sua experiência para que conseguíssemos localizar uma série de obras de difícil acesso. Ana Lígia Medeiros e Amanda Lopes Ares coordenaram com profissionalismo a pesquisa na Biblioteca Nacional. Na Cartografia tivemos a atenção de Praxides Silva das Dores, Maria Dulce de Faria e Dulcila Maria Castel-lo Branco Gomes. Na Divisão de Iconografia, Joaquim Marcai, Mônica Carreiro Alves e Léia Pereira da Cruz trouxeram novo ânimo à pesquisa, apresentando do-cumentos importantes e auxiliando na descoberta de outros; a iconografia deste livro deve muito a eles. Por fim, e principalmente, agradecemos ao professor Eduar-do Mattos Portella, presidente da Fundação Biblioteca Nacional, que desde o iní-cio do projeto foi referência e inspiração.

Também na Biblioteca Nacional e em outros acervos cariocas, convivemos com diversos pesquisadores que sugeriram leituras, deram informações e abriram novas perspectivas de análise — como Nireu de Oliveira Cavalcanti, Regina Wan-derley, Oswaldo Munteal Filho, entre tantos outros.

A pesquisa alcançou ainda o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, onde tivemos o auxílio de Pedro Tórtima, que nos guiou por entre as Revistas do Insti-tuto, bem como pelas inúmeras obras que compõem aquele rico acervo. Além dele lembramos dos nomes de Lúcia Alba da Silva, com quem trocamos idéias logo no início da pesquisa, e de José Luiz de Souza.

No Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, encontramos novos "conselheiros" estratégicos, dos quais destacamos apenas alguns: Jaime Antunes, Mary dei Priore e Mauro Lerner Markowski.

Foram investigados também os acervos do Arquivo Histórico do Palácio do Itamaraty; do Gabinete Português de Leitura — onde contamos com o auxílio de Francisco Luiz Borges Silveira e das bibliotecárias Vera Lúcia de Almeida e Carla Rosa Martins Gonçalves — e do Museu Histórico Nacional, sendo que lá tivemos a acolhida atenciosa de José Neves Bittencourt.

Em Portugal fizemos amigos que já parecem antigos. Na Biblioteca Nacional de Lisboa, dra. Manuela D. Domingos foi a mais generosa anfitriã que poderíamos ter; nos deu pistas, indicações e fez de tudo para que a pesquisa seguisse a conten-to. Ela é basicamente a fada madrinha honorária desta pesquisa. Na Seção de Ico-nografia, dra. Graça Garcia fez milagres, mostrando em uma semana um acervo que deveria ser visto em mais de dois meses. Ana Maria Farinha garantiu a repro-dução de imagens — retratos e desenhos portugueses — que propiciaram um panorama mais amplo para este livro. Por fim, agradecemos ao diretor, dr, Carlos Reis, e à subdiretora, dra. Fernanda Campos, que nos receberam em sua institui-ção com grande cordialidade.

Não poderíamos ter tido acolhida mais profissional e competente no Museu da Cidade.de Lisboa. Somos gratos à dra. Ana Cristina Leite e em especial à dra. Maria do Rosário e à dra. Maria de Lourdes Garcia, que permitiram o acesso a imagens que se encontram reproduzidas neste livro. No IPPAR Instituto Português do Patri-

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mônio Arquitetônico contamos com o apoio valioso do dr. Luís Calado e da dra. Paula Delgado, que providenciaram várias reproduções iconográficas dos acervos de museus portugueses. Na Biblioteca da Ajuda, além da recepção do dr. Francisco Leão, tivemos a ajuda da dra. Cristina Pinto Bastos, que nos guiou por entre fichá-rios labirínticos. No Museu Nacional de Arte Antiga obtivernos autorização para reproduzir imagens a partir da confiança de seu diretor, o dr. José Luís Porfírio, e do dr. Dagoberto Markl. Por fim, na Documentação de Divisão Fotográfica conhece-mos a dra. Tania Olim, que prontamente selecionou as ilustrações requeridas.

Ao longo desta pesquisa trabalhamos com três consultores que cumprirão um papel ainda mais evidente no outro livro vinculado a este projeto — uma obra que contará com muitas imagens, em boa parte inéditas, do acervo da Real Biblioteca. No entanto, seus conselhos e sugestões extrapolaram os limites precisos de suas tarefas e acabaram influenciando, também, no formato desta edição. São eles; Lorenzo Mammi, Pedro Corrêa do Lago e Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha. D. Lygia, com sua inestimável experiência na Biblioteca Nacional e nesse mundo dos livros, amparou dúvidas, deu pistas, indicou caminhos.

Agradecemos ainda à Universidade de São Paulo pelo apoio à pesquisa e pelo amparo de sempre dos amigos do Departamento de Antropologia.

Essa pesquisa contou com a sorte de ter duas grandes pesquisadoras acompa-nhando o trabalho, tal qual anjos da guarda. Lúcia Garcia esteve presente pratica-mente desde o início do projeto, e fez de tudo um pouco e muito; investigadora incansável, dona de um grande senso de equipe, levantou a documentação, checou os textos finais, refez a bibliografia e ajudou nas legendas. Fernanda Terra selecio-nou a iconografia existente na Biblioteca Nacional, responsabilizou-se por todas as intermináveis "438 legendas", e trabalhou com a maior dedicação, apesar do tempo exíguo. Nessa seara ainda, contamos com as lentes espertas de Jaime Acioli, que cli-cou todas as infindáveis imagens colhidas na Biblioteca Nacional. Maria Carolina ]. Graciottu, na Reminiscências, cuidou de não esquecer dos recados do dia-a-dia.

O pessoal da editora Companhia das Letras, como um todo, mas especialmen-te Maria Emília Bender, Elisa Braga, Fabiana Roncoroni, Rita Aguiar, Cristina Yamazaki, Cíntia Lublanski, Eliane Trombini, Paulo Werneck e Salete Leão, desdo-brou-se — com a competência e o carinho necessários — para que este livro fosse editado no tempo certo. Fernando Nuno Rodrigues acabou se revelando um ótimo conselheiro das letras. Hélio de Almeida, Sylvia e Nelson Mielnik mais uma vez mos-traram como um livro como este é mesmo obra conjunta e uma ação entre amigos.

Por fim, resta lembrar do auxílio de foro íntimo, que é essencial. Carmen Lúcia de Azevedo esteve conosco na primeira viagem a Portugal e, além de driblar os dedos com tanto xerox, foi apoio de todas as horas. Cristina Zahar foi mais uma vez anfitriã e confidente, dividindo dúvidas e inquietações. Renato Prado Guima-rães leu parte dos capítulos 6 e 7 e fez correções e sugestões pertinentes. Os amigos e familiares — Pedro (sempre presente com suas questões), Lelé, Noni, Beto, Titi (e por meio deles todos os Moritz e coligados), Doca e Guga, Camila e Thiago, Helò, Sérgio, Teca, Guita, Any — deram dicas e sugestões sempre acertadas.

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Este livro teve, ainda, três leitores assíduos que acompanharam cada página e reclamaram de muitas: Luiz Henrique foi leitor crítico de conteúdos, vírgulas e pontos. Julia já é fiel companheira; além de ler tudo ainda ajudou com as imagens. Luiz anotou o original inteiro, mais uma vez com a crítica, o carinho e a criativi-dade que lhe são tão próprios; devemos um epílogo a ele e muito mais.

Mas um livro como este nâo se encerra e ponto. Assim como as infinitas clas-sificações e projetos de nossa Real Biblioteca, este livro que acaba de ser finalizado, pelos seus Agradecimentos, parece não ter fim.

São Bento do Sapucaí, 9 de agosto de 2002

P. S.: Em meio ao processo de edição deste livro, já com o texto terminado e com os deta-lhes editoriais quase definidos, Paulo César adoeceu gravemente. Faleceu em 11 de agosto de 2002, e infelizmente não pôde ver concluído o trabalho — para o qual tanto contribuiu. Com este livro, guardamos a memória de um amigo que deixa tanta saudade.

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TERREMOTO OU "O MAL ESTÁ NA TERRA"

1. Vista de Lisboa: uma "jóia" na Europa com o Tejo a seus pés. Pierre A. Vander, FBN

2. Alegoria de um casal à frente de Lisboa: a alegria e a calma não sinalizavam o mau agouro do que estava por vir.

Pierre A. Vander, FBN

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Bem podia compor muitos volumes do que reduzo a poucas pági-nas; porém um reino todo metido em confusão e desordem, uma capital enterrada, nas suas mesmas ruínas, um povo inteiro como presa das chamas, quarenta mil pessoas subitamente feridas do último golpe da morte, a fortuna de duzentos mil vassalos destruí-da; uma perda geral de mais de dois mil milhões, representando um triste quadro da inconstância das coisas humanas deve ser mais emprego da imaginação que trabalho da. pena; por cuja razão me pareceu melhor reduzir a relação deste acontecimento ao aconteci-mento mesmo.

Enviado holandês anônimo, 1765'

Philosophes trompés, qui criez Toutest bien, Accourez, contemplez, ces ruines affreuses, Ces débris, ces lambeaux, ces cendres malhereuses. Ces femmes, ces enfans, l 'un sur l 'autre entassés, Sous ces marbres rompus ces membres dispersés; Cent mille infortunés que la terre devore, Qui sanglans, déchirés et palpitam encore, Entérrés sous leurs toits, terminant sans secours, Dans 1'horreur des tourmens, leurs lamentables jours. Lisbonne qui nest plus, eut-elle plus de vices Que Londres, que Paris plongés dans les délices? Lisbonne est abimée, et l'on danse à Paris. Tranquilles spectateurs, intrépides esprits, De vos frères niourans contemplam les naufrages, Vous recherchez en paix les causes des orages; Mais du sort ennemi quand vous sen tez les coups, Devenus plus humains, vous pleurez comme nous.*

Voltaire, Le desastre de Lisbonne, 1756

* "Filósofos iludidos, vós, que proclamais: 'Tudo está bem' acorrei, contemplai estas ruínas medonhas, estes destroços, estes farrapos, estas cinzas desafortunadas, estas mulheres, estas crianças empilhadas umas sobre as outras, estes membros dispersos sobre os mármores despedaçados; cem mil infelizes que a terra devora, ensangüentados, dilacerados e de corpos ainda palpitantes, enterra-dos sob os tetos de suas casas, terminando sem assistência alguma, no horror dos tormentos, sua vida lamentável. Lisboa que não mais existe, teria ela mais vícios que Londres, que Paris, mergulhadas no prazer? Lisboa está destruída, e dançam em Paris. Repousados espectadores, espíritos intrépidos, a contemplar o naufrágio de seus irmãos moribundos, buscam tranqüilamente as causas do desastre; porém, quando sentem na carne os golpes da sorte inimiga, tornam-se mais humanos, choram como nós." (N. E.)

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Era o dia de Todos os Santos, lg de novembro, de 1755. A manhã se anuncia-va promissora: o céu límpido, a temperatura amena de 17,5 graus e o ar tépido — nada fazia entrever a catástrofe que se aproximava. Ao contrário, a jornada apre-sentava-se própria para o "cuidado das almas" e as igrejas, apinhadas de gente, faziam badalar os campanários, ao mesmo tempo que os sinos soavam pelos qua-tro cantos da cidade de Lisboa, chamando a população para a missa. Tudo lem-

I brava calmaria — a orquestração de preces, as nuvens de incenso de cheiro tão

peculiar, as roupas caprichadas dos dias feriados e os cumprimentos amistosos entre vizinhos. Tudo fazia daquele de novembro um dia santificado, próprio para a exaltação da glória de Deus, naquela capital tão afeita a demonstrações religiosas.

Por isso mesmo, o primeiro alarde soou como um aviso dos céus, um sinal de que o mau agouro vinha para ficar. Dizem as testemunhas que o que se seguiu foi rápido e vigoroso: um apavorante trovão subterrâneo, um ronco surdo que surgia das profundezas. Como uma manada de elefantes, o movimento levou tudo consi-go: paredes se moviam e tombavam, de repente frágeis, imagens se deslocavam, as pessoas fugiam desordenadamente e, no chão, acumulavam-se os corpos de gente esmagada, pisoteada e morta.

As agruras do dia, porém, estavam só por começar. Após três abalos consecu-tivos, que duraram poucos minutos, um fogo devastador incendiou o que restava para destruir: consumiu edifícios, derreteu riquezas e matou aqueles que estavam dentro de casa. Por sinal, foram as chamas as culpadas da maior parte dos prejuí-zos. Uma testemunha escreveu que, "se a cidade o não tivesse sofrido, a sua ruína teria sido rapidamente reparada".2 O fato é que depois do fogo só se ouviam mur-múrios e preces: tudo soava como um grande pedido de misericórdia. Castigo divi-no ou sinal dos céus, ali estava uma mensagem difícil de ser decifrada por essa gente tão dada a superstições e alardes de ordem sobrenatural.

Um enviado holandês lamentava a má sorte, assim como anotava uma série de "coincidências", divinas ou de outra grandeza: A A ' ' ; % \

Não há sobre a terra monarquia jhnais sujeita a grandes revoluções que esta de Portugal que se acha cheia de notáveis acontecimentos. Se se passa a História se vê que nenhu-ma Nação na Europa tem sido exposta a fenômenos mais extraordinários. Tem-se visto Lisboa muitas vezes destruída por causas sobrenaturais: fogos subterrâneos saindo da terra [...], formidáveis furacões [...].'

Um súdito português,4 usando o pseudônimo de Amador Patrício de Lisboa, também reclamava da triste sorte de sua nação: "No dia 1 de novembro de 1755, ano eternamente fatal na História Portuguesa [...] se viu Lisboa surpreendida com um terremoto dos mais horrorosos que a tradição conserva, ou descrevem os livros".5

Nos versos de José Moreira de Azevedo sobrava uma mistura confusa de sen-sações:

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6. "Fantasias do terremoto de 1755" (versão holandesa): o Tejo devolveu tudo aquilo que lá se depositara. FBN

7. "Fantasias do terremoto de 1755": Vista alemã da cidade de Lisboa. A estampa superior representa uma vista rasantepanorâmica da cidade antes do terremoto.

A inferior é uma vista da cidade na ocasião do terremoto e do incêndio que se lhe seguiu: na representação, a imagem estampada do pânico. FBN

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Vem um sábado festivo; O sol vivifica as flores; As aves cantam amores Com requebro alternativo: Vestes a gala, ó íascivo, Vais a Igreja profanar; E sem de Deus te lembrar Treme o templo horrorizado, Cai e castiga o pecado, Que nele vens a pagar [...]*

Diferente e conciso é o relato legado pelo cônsul britânico Edward Hay, que, duas semanas após o terremoto, tentou dimensionar, sem tantos devaneios, o impacto do cataclismo: "O primeiro abalo começou às quinze para as dez da manhã e, pelo que pude calcular, durou seis ou sete minutos e depois de quatro horas esta grande cidade estava em ruínas".7 O horário exato variava, na pena dos mais ou menos afoitos.8 O que não mudava era a descrição da tragédia que se ins-talou naquela ocasião: prédios destruídos, cadáveres nas ruas e pessoas que peram-bulavam de um lado a outro à procura de parentes desaparecidos ou fugindo de não se sabe o quê.

Mas a sucessão de horrores continuava. Após os abalos, enquanto o incêndio continuava vigoroso, as águas do Tejo subiram rapidamente de seis a nove metros. Ou seja, em torno de uma hora após o primeiro tremor, alguns sobreviventes, ainda atônitos, olharam para o porto e notaram que as águas pareciam vazar para o oceano: tratava-se de um refluxo motivado pelo terremoto que estourara em alto-mar. Segundo os testemunhos, a zona portuária teria ficado quase seca, e seu leito um tanto lodoso. Ao certo, ninguém pode afirmar o que aconteceu; sabe-se porém que, em poucos minutos, o legendário Tejo elevou-se a uma altura inacreditável. Assim, aqueles que haviam resolvido fugir do fogo correndo para as águas não tive-ram melhor sorte, uma vez que estas, de tal maneira agitadas, trouxeram de volta barcos, despojos e, com eles, corpos já sem vida.

O resultado desse acúmulo de desastres é que, logo depois do incidente, pouco se via além de escombros. Pior ainda: ao invés do pacato cotidiano lisboeta, o com-panhe i r o de todas as horas passou a ser o pânico — rixas, rapinas e toda sorte de violência estouraram nas ruas, enquanto a desordem tomava conta da cidade e o descontrole fazia das suas. Isso tudo porque aqueles que continuaram vivos apro-veitaram a oportunidade para pegar o que não era seu, já que em menos de um minuto o que tinha dono ficou sem.

As mortes foram tantas e tão repentinas que nunca se soube ao certo o seu número. Os documentos oscilam nas avaliações, mais ou menos otimistas, e mui-tos revelam as falácias do governo português ao mensurar não só a mortandade, mas também o próprio número de sobreviventes. Alguns estrangeiros chegaram a arriscar, já na época, suas projeções. No entanto, vigorou a absoluta falta de regis-tros oficiais. Conforme dizia um documento:

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este acontecimento escondera para sempre a verdadeira soma dos males que causou; e certamente jamais se saberá neste Reino nem em algum outro da Europa o preciso número de homens que pereceram em tão horrível terremoto.

Por outra parte, em termos políticos se constituía um novo embaraço:

sendo Portugal um Reino bastante despovoado, esta nova diminuição de vassalos po-dia fornecer a qualquer Estado vizinho uma oportuna ocasião de alguma empresa so-bre ele: era logo do seu interesse esconder o número real que acabava de perder.

Com efeito, apesar de momentaneamente serenada, a situação política euro-péia estava longe da calmaria, e os anos de guerra, assim como as lembranças dos tempos da Uniào Ibérica (de 1580 a 1640), permaneciam bastante vivos.9

De todos os ângulos que se observasse, parecia melhor para o governo portu-guês esconder ou aliviar o número de mortes, uma vez que a situação fragilizava a já instável posição de Portugal no cenário europeu. Por isso, as poucas relações existentes foram escritas, em sua maior parte, pelos ministros estrangeiros, que faziam subir o número de falecimentos à casa dos 100 mil, passando a impressão geral de que a morte rondava de perto. Como relata o viajante holandês, "um que escapou nesta ocasião julgou que tudo tinha perecido e que só ele ficara salvo, escrevendo logo que se viu seguro".10

Diante de tamanha confusão os números dançavam. O núncio papal calculou em 40 mil o número de mortos, outros falavam em 70 ou 90 mil, o futuro marquês de Pombal reduziu o cálculo a 6 ou 8 mil." Cartas escritas logo depois do evento se referem a cifras que oscilam entre 70 e 85 mil mortos; o capitão de um navio sueco, ancorado nas redondezas, chegou a arriscar o número de 90 mil para os fale-cimentos.13 O certo é que, numa população estimada pelo historiador José França em 250 mil habitantes, pelo menos entre 15 e 20 mil teriam sido mortos — isso sem contar toda uma outra parte diretamente afetada pelos abalos e desastres sucessivos.

Entretanto, nesse quesito a tragédia não agiu com igualdade, e alguns tiveram pior sorte do que outros. O povo foi mais castigado, pois assistia à missa logo de manhã, como era o costume nos dias santos de guarda. Por estranhos caminhos, o que até então era lugar de devoção se transformava, inesperadamente, em arma de destruição. Afinal, são muitos os relatos que descrevem como as abóbadas das igre-jas e capelas vieram abaixo, matando fiéis concentrados em suas orações:

Como fosse dia de Todos-os-Santos tinha eu ido à missa à Igreja do Carmo — dizia Jácome Ratton — cujo teto era de abóbada de pedra e matou de muito povo que ali se achava, de cujo perigo escapei por ter ido mais cedo [...] O descampado daquele alto que estava dava lugar à vista do mais horrível espetáculo das chamas que a devoravam cujo clarão alumiava, como se fosse dia, não só a mesma cidade, mas todos os seus contornos, não se ouvindo senão choros, lamentações e coros entoando o Bendito, ladainhas e Miserere [..,].13

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Mas, se o número de mortos foi grande, poderia ter sido maior, já que, para felici-dade de alguns, não era ainda a hora da missa principal nas paróquias, que só começava em Lisboa depois das dez horas. Por isso, boa parte da nobreza escapou, além de muitos representantes do clero, pois "gente de distinção" costumava fre-qüentar a missa a partir das onze da manhã.

Também um outro tipo de fortuna fez com que muitos vassalos se Livrassem da má sina: o clima do país levou vários súditos a prolongar sua permanência no campo.

Aqueles que têm estado em Portugal e principalmente em Lisboa sabem que ainda ali não há estações ou para melhor dizer que não há mais que uma perpétua primavera. Ora, o mês de novembro em este Reino corresponde ao mês de abril em França e é reservado para cada um viver no campo sem vir à cidade, porque em cada casa de campo há capelas.14

Parte significativa da população, sobretudo entre os nobres, encontrava-se fora de Lisboa e ouvira falar do desastre de longe, sem ter sido atingida pela mor-tandade geral.

Outro desígnio, ainda, marcou a história dessa catástrofe. Todos os ministros estrangeiros, com exceção do representante da Espanha, se salvaram. O ministro da França, que não perdeu uma só propriedade, conseguiu até retirar seus objetos mais preciosos e mesmo seus móveis ordinários. Os próprios testemunhos comen-tavam com certo escárnio a fortuna dos representantes estrangeiros:

Desde a criação do mundo pode ser não houvesse infelicidade, permita-se-me dizer assim mais feliz para os estrangeiros. Em toda a extensão [...] não em tudo mais que três ou quatro estrangeiros que perecessem e assim em outros bairros.15

Praticamente toda a Casa Real foi preservada, uma vez que, o tempo estando bom, os monarcas ficaram em Belém (que distava onze quilômetros do Paço da Ribeira), "tomando a fresca". Conta-se até que o rei d. José demorou a se dar conta da extensão da tragédia que arrasara a capital de seu Império. O fato é que os so-beranos escaparam de morte certa, já que o Palácio da Ribeira, sua morada em Lisboa, veio abaixo: era a velha "sorte dos reis". Notou-se, ainda na época, que o fla-gelo recaíra inteiramente sobre o chamado "povo miúdo", como se a natureza mi-rasse alvo certeiro.

Assim, a despeito de tantos infortúnios, alguns poucos alívios restavam: a corte estava fora da cidade, só oito fidalgos constavam da lista de falecimentos, e grande parte do próprio povo teria sido de alguma maneira poupada, em função da hora matutina do acontecimento e do dia feriado, Um informante anônimo dessa maneira, resumiu a situação: "Talvez nunca tivesse havido, desde a criação do Mundo, mais feliz desgraça".16

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8. Belém: vista do porto, da igreja, da torre e de Cascais. Pierre A. Vander, FBN

A dimensão e as repercussões do acidente não ficaram, porém, restritas ao local em que tudo aconteceu: afinal, um desastre semelhante jamais havia ocor-rido numa cidade tão populosa como Lisboa. Por isso mesmo, gerou um debate, em que as posições oscilavam. De um lado, explicações mais racionalistas atri-buíam a catástrofe a desígnios de ordem natural: estavam na natureza e em seus caprichos as explicações para o sucedido. De outro, ganhavam força interpreta-ções que recuperavam superstições locais e entendiam a tragédia sob lentes mais místicas.

Em Portugal, o momento parecia propício para profecias de toda ordem, so-bretudo diante de uma população dada a presságios e augúrios. O terremoto atin-gia em cheio o corpo do sebastianismo — conjunto de crenças daqueles que acre-ditavam no retorno de d. Sebastião, rei português desaparecido em 1578, aos 24 anos, durante uma cruzada no Marrocos, e desde então vinculado aos tempos glo-riosos do Império — e ensejava a retomada de falas messiânicas, mais se asseme-lhando a um episódio já previsto: uma nova desgraça que surgia como parte da cartilha dessa religiosidade de fundo popular. A fúria do cataclismo, na pena dos mais supersticiosos, tomava a forma de um velho ajuste de contas, tantas vezes nomeado nos livros do sapateiro Bandarra; se originalmente ele profetizara a volta de um Rei Encoberto, nesse contexto o fenômeno virava novamente matéria de premonição:

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Na era que tem dois cincos Entre madeiras armadas, Vejo dar umas passadas E uma galinha com pintos Prognostica grandes gritos De gente despedaçada. Não deito mais longe a barra Fico batendo na testa {...] Cuidem-me agora nesta Profecia de Bandarra."

Nessas horas, como era de esperar, os presságios apareciam por todo lado, narrando boca a boca histórias, casos e exemplos daqueles que muito tempo antes teriam previsto tal catástrofe. Na cidade de Louriçai, uma freira de nome Maria Joana teria recebido Cristo, e este lhe haveria dito que chegara a hora de os habi-tantes de Lisboa serem castigados por suas maldades. Outra freira teria segredado a seu confessor, mais de cinco vezes, que Lisboa estava condenada e que nada mais restava a seu povo que orar pela salvação. Um terceiro profeta, devoto sebastianis-ta, chegou a proclamar que a cidade seria destruída no dia de Todos os Santos, Ia de novembro, de 1752, e que na primavera seguinte d. Sebastião voltaria como mes-sias. Por sinal, aqueles que conheciam tal história aguardaram qualquer aconteci-mento no fatídico ano, e também em 1753 e em 1754 — e nada. Na própria manhã do primeiro dia de novembro de 1755, o padre Manuel Portal acordou tomado por um pesadelo: Lisboa seria esmagada por um grande terremoto e seu mosteiro se desfaria em ruínas, exatamente como aconteceu. O religioso se levan-tou, foi à missa orar c logo depois tudo ocorreu como num sonho: em poucas horas, quase nada sobrava de sua igreja; o padre teve uma das pernas esmagada, mas sobreviveu para contar suas visões, assim como para ouvir confissões e dar absolvições.18

Até mesmo os mais céticos, que proclamavam nâo acreditar em presságios, acabavam, por vezes, enredados na teia que procuravam desfazer. Em documento anônimo, datado de 1756 e intitulado Carta em que se mostra a falsa profecia,19 o autor confessa "que as profecias que se não ouvem, antes de completas não persua-dem", como que reconhecendo uma certa inclinação para vaticínios. E acrescenta: "Grande profeta é aquele que consegue acomodar qualquer profecia". Com efeito, uma série de casos pareciam ser suficientes para que nosso amigo anônimo con-cluísse que "o povo tudo crê, e o nosso está pronto até para acrescentar quanto for notícia triste, pois entre nós de qualquer eco se faz trovão". De toda maneira, a carta revela como nem todos eram afeitos a explicações de ordem sobrenatural, e, ao contrário, procuravam alertar o rei sobre os perigos desse tipo de explicação: "Desculpe V. M. a pobreza das notícias, porque depois do terremoto só me ficaram esses montes de livros [...] em que estudo os tristes desenganos do mundo e as flo-res do campo, em que leio as agradáveis lisonjas do Céu. Ele guarde a V. M. e nos

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livre dos sebastianistas para sossego da república, crédito da Pátria e respeito do trono"2"

Motivo de muitas encenações, o acidente também fez, de algumas histórias particulares, lendas de alcance maior. Conta-se que um certo conde da Ribera cor-tejara durante nove anos uma jovem donzela, sendo plenamente correspondido. Contudo, o pai da jovem não se mostrava favorável ao enlace e só permitiu o casa-mento quando, vencido, notou que o casal não abandonava seu propósito. Os noi-vos mal haviam recebido a bênção do sacerdote quando ouviram o primeiro abalo provocado pelo terremoto. O jovem casal fugiu do local e pensou que escaparia com vida a bordo de uma embarcação. No entanto, e como sabemos, as águas se levan-taram e tragaram as embarcações, inclusive a dos recém-casados. Entre o mito e a realidade, fiquemos com os dois: o caso do conde da Ribera é um bom pretexto para incendiar as imaginações da segunda metade do século xvni.2'

Com efeito, logo após o terremoto, os casos e as interpretações eram muitos. José Moreira de Azevedo escreveu no ano de 1756 um opúsculo dedicado a "Jesus Cristo Crucificado", e o intitulou Desterro da iniqüidade sobre o espantoso terre-moto com que a Divina Justiça avisou aos pecadores, isso sem esquecer de oferecê-lo a si próprio, uma vez que a boa sina lhe permitira escapar da Ira Divina.22 O folheto discorria sobre o alívio dos sobreviventes, mas também acerca dos temo-res perante aquela "figura irada", que bem podia ter sido a responsável por tanto infortúnio. Não obstante, para garantir seu sustento, o autor não se esquecera de, ao final da obra, deixar registrado onde se podia comprá-la: "Vende-se na mesma Oficina na Calçada de Santa Anna, defronte de Nossa Senhora da Pena". Afinal, quando o assunto implicava fé, não faltavam clientes para agradecer o desconto feito por Deus.

Também não foram poucas as polêmicas relativas ao teor dos primeiros rela-tos. Na Carta anatômica [anônima] que escreve um amigo do Porto a outro de Coimbra, em que se faz juízo da carta, que saiu dando notícias do terremoto de Lisboa, o autor estabelece alguns reparos às observações de uma testemunha. Por exemplo: "quando se disse 'a terra se abriu em Cavernas profundas' essa é espécie de notícia para se mandar para o Japão! O que nós presenciamos foram umas pequenas fen-das nos lugares de Riba-Tejo e em outros onde o impulso da terra foi mais vigoro-so. O mais é ópio".'1

Contudo, o tom geral era diferente. Diante de tanta desgraça, e com o passa-do que tinham, os portugueses pareciam pouco dispostos a ficar sem milagres. Pretextos não faltavam. Milagre foi a imagem de Nossa Senhora do Carmo ter se conservado dentro de um convento arruinado pelo fogo, um padre ter sobrevivido à destruição de sua igreja, ou uma criança ter permanecido viva nos braços de sua mãe morta. Exemplos e casos eram muitos, e infinitamente superiores às demons-trações de racionalidade. Por outro lado, os versos que se ouviam nas ruas logo após a tragédia só comprovam como se espalhavam os sentimentos religiosos e o medo diante desse Deus, agora, vingativo:

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W T C O L L E C A O

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9. Ruínas do terremoto: quando a destruição já é parte até da imaginação. Imagens de Jacques Philippe Les Bas (1707-1783), FBN

10. Ruínas da torre de São Roque. FBN

11. Ruínas da igreja de São Paulo. FBN

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12. A até então grandiosa praça da Patriarcal. FBN

14. O que restou do recém-inaugurado 15. Sobras da igreja de São Nicolau. FBN Teatro da Ópera. FBN

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Geme a terra insensível, dando gritos, Nas côncavas cavernas, quando admira,

Que por altos decretos in finitos, Irado contra o mundo, um Deus conspira. Uma terra inculpável, sem delitos, O castigo receia, teme a ira, E não receia os golpes desta espada, A que deve temer ser castigada.24

Não era, porém, só em Portugal, pais marcado por religiosidade extrema, que o fenômeno ganhava novas proporções. Até no estrangeiro a tragédia parecia reper-cutir na imaginação dos contemporâneos, que também viram abaladas suas certe-zas nas obras de um Deus benevolente. Vasta bibliografia sobre o tema foi publica-da em países como Alemanha, Holanda, Inglaterra, Itália, Espanha e França. Goethe, que em 1755 tinha apenas seis anos, ainda aos sessenta se lembrava do terremoto, em suas memórias: "Porventura em tempo algum o demônio do terror espalhou-se por toda a Terra com tamanha força e rapidez, o arrepio do medo". Longe da determinação da natureza e de seus desígnios, a notícia de que uma das afamadas cidades da Europa havia sido reduzida a ruínas parecia tocar de perto a todos. "Em 1Q de novembro de 1755", escreveria Goethe em Poesia e verdade, "deu-se o terremoto de Lisboa e, num mundo que já se habituara à paz e à tranqüilidade, espalhou-se imenso terror."25 A conclusão do futuro autor de Fausto era que Deus "não se mostrara nada paternal ao abandonar os justos e os ímpios a uma des-truição semelhante. Em vão minha mente juvenil procurava fortalecer-se contra as impressões. E isso era ainda menos possível na medida em que os homens doutos, versados na Escritura, não conseguiam chegar a um acordo sobre como encarar aquele fenômeno".26

A catástrofe de Lisboa acirrava o debate sobre a questão do otimismo, além de gerar questionamentos acerca da existência de Deus, e de sua força moral, como regenerador do universo. Enquanto alguns pensadores insistiam em jogar para as vítimas a culpa de todas as desgraças, outros, como Voltaire, rejeitavam tais dog-mas, mostrando que "o mal está na terra". O filósofo, que costumava caracterizar Portugal como uma terra de catástrofes absurdas e atolada por superstições, ironi-zou a situação em sua obra Cândido ou o otimismo-. "As autoridades portuguesas não conseguiram pensar em nada melhor do que dar ao povo um esplêndido auto-de-fé".27 O tema, no entanto, não parecia propício a piadas e chistes. Em seu poema "O desastre de Lisboa" (1756), Voltaire se dirigia aos "filósofos enganados que gri-tam que tudo é bom", e provocava todos aqueles que se resignavam às certezas dos céus e da terra.

Jean-Jacques Rousseau, quase vinte anos mais novo do que Voltaire e seu vizi-nho em Genebra, aproveitou o momento para refutar as idéias do colega, retoman-do a premissa de um Deus bom. Segundo sua interpretação, tal assertiva deveria ser entendida como lei, não podendo ser invalidada nem mesmo por uma força

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natural que destruíra dezenas de milhares de seres humanos. Para começar, per-guntava o jovem filósofo, "por que estavam todas aquelas pessoas atravancadas em Lisboa?".211 Dessa maneira, se a natureza era boa, nenhum evento natural poderia ser de todo ruim, Assim, contrapondo-se ao ceticismo de Voltaire, Rousseau enten-dia que até os terremotos teriam seu papel na ordem natural. Como se vê, uma vasta literatura internacional ocupou-se do acontecimento, figurado também em numerosas gravuras que se espalharam por todos os cantos — mesmo porque, quando se trata de tragédia, a curiosidade é sempre aguçada.

Bastante diferente era, porém, a situação vivida em Portugal, sobretudo em face das enormes perdas materiais. Sob esse ângulo, pouca serventia tinham tais embates. Muitos edifícios, documentos e tesouros artísticos desapareceram, consu-midos pelo fogo que ardeu durante seis dias no centro da cidade de Lisboa, preci-samente na zona em que se concentravam palácios e monumentos históricos. Comentava-se que cerca de metade das casas haviam sido arruinadas, além de pré-dios públicos, igrejas, conventos, residências de estrangeiros, palácios de muitos fidalgos e, finalmente, o próprio palácio real. Todo o conjunto monumental — que compreendia o palácio construído no século xvi e aumentado na época de d. João V (1689-1750), o Teatro da Ópera, inaugurado pouco antes da catástrofe, e a cape-la real — erguido desde d. Manuel i, e ampliado por tantos reis portugueses até d. José, tudo ficou irremediavelmente destruído. Além disso, calcula-se que um terço da cidade tenha sido arrasado, não só pelos abalos do terremoto como também pelo fogo e pelo maremoto que a ele se seguiram.

Os destroços foram ainda maiores em certas regiões, que quase desaparece-ram do mapa, transformando-se em um amontoado de detritos e lixo acumulado pelas ruas. Assim, se o número de vidas humanas perdidas, apesar de elevado, foi menor do que poderia ter sido, o de edificações destruídas foi superior ao imagi-nado. De forma geral, toda a cidade de Lisboa foi atingida. Apesar de certos bair-ros terem sido poupados, comentava-se, com respeito às habitações, que mais da metade ruíra e que até mesmo as casas preservadas pelo terremoto tiveram seus ali-cerces abalados, Isso sem falar dos principais edifícios — o Palácio Real, a Igreja Patriarcal, a Alfândega, o antigo monumento onde se vendia o trigo, a carniceira, a Casa do Peixe, o Palácio da Inquisição, o Teatro Real —, que, em função de sua estrutura mais delicada, ficaram totalmente arruinados.

Tampouco as paróquias escaparam.29 Das quarenta igrejas paroquiais de Lisboa, 35 desmoronaram, arderam ou ficaram em ruínas; apenas onze conventos dos 65 existentes continuaram habitáveis, embora com danos.3" Era sabido que, na época, Espanha e Portugal possuíam grande quantidade de templos, cuja magnifi-cência era conhecida até no exterior. No período de d. João V, mais que em todos os outros, o reino foi adornado por igrejas ricamente decoradas com ouro e prata espalhadas por boa parte do país. Porém, tanta riqueza não se constituiu em segu-ro eficaz para evitar a destruição. Ao contrário, em poucos instantes todos os tesouros desapareceram, tragados pelo cataclismo. Segundo os relatos:

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Mais de 1000 alumpedas de prata que tinham custado somas imensas, tanto pe!o tra-balho, como pela mão-de-obra foram enterrados ou fundidos. Além de 6000 candeei-ros entre grandes e pequenos do mesmo metal que tiveram a mesma sorte. A perda dos vasos sagrados segue a mesma proporção. A dos ornamentos de Igreja foi imensa assim como a dos retábulos.31

Também uma série de palácios sucumbiu sem que o terremoto distinguisse local ou condição. Foram perdidas, além dos edifícios, preciosidades que se encon-travam depositadas dentro de cada um deles. É impossível avaliar com exatidão o montante da perda, mesmo porque a descoberta das minas de ouro no Brasil havia alterado os padrões locais: cada palácio abrigava um tesouro particular, tanto em painéis e tapeçarias como em outros objetos preciosos.

Por outro lado, ainda que o Reino de Portugal fosse reconhecidamente pobre, havia particulares enriquecidos vivendo em Lisboa, e mesmo alguns brasileiros, chamados de mineiros, cujas riquezas em ouro foram enterradas ou queimadas em sua maior parte. Além do mais, a corte de Lisboa era bastante rica em pedras pre-ciosas, em grande medida provenientes do Brasil. No entanto, de nada adiantou tanto brilho diante do desastre: dizia-se com escárnio que a própria rainha e as princesas não ficaram com outros diamantes senão aqueles com que se achavam então enfeitadas.

Como disse frei Antônio de São José, no poema "Canto fúnebre", publicado em 1756,

[...] AÍ casas de seus vastos territórios Trabalhas a expelir como importunas E assim se arrasam dos ismos fundamentos Palácios, casas, Templos e Conventos,32

Deixando de iado os detalhes, o certo é que o resumo dos estragos era, no mínimo, sinistro: dois terços das ruas ficaram inabitáveis, e apenas 3 mil casas das 20 mil existentes sobreviveram ao incêndio. Nenhum dos seis hospitais se salvou do fogo, e todas as cadeias tombaram, assim como o Palácio da Inquisição, além de 33 palácios das maiores famílias do reino.33

Passados os primeiros dias, percebeu-se que as perdas eram, mesmo, incomen-suráveis. Os prejuízos públicos e privados somavam-se, isso sem falar do próprio Paço Real, que ao fmal da tragédia se apresentava arruinado e com todas as suas riquezas perdidas. O desastre não poderia ter sido pior para a imagem interna do reino: a ruína da capital e a morte de parcela significativa da população represen-tavam o ponto final de uma ladainha já por si calamitosa. O terremoto encontrou o Império empobrecido pelo estado da sua agricultura, com um comércio enfra-quecido e uma indústria inexistente. Diante de tantos sinais negativos, a ruína da corte só fez abater, ainda mais, os ânimos e acirrar o saudosismo, que se voltava para os tempos dos grandes descobrimentos e do ouro farto.

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16. Vistas do Palácio Real: da praça, de uma festa de touros, do Palácio do conde de Aveiro, do embarque da princesa Catarina de Portugal: só recordações. Pierre A. Vander, FBN

A história de Lisboa e de todo o reino ficaria para sempre marcada por esse terremoto, que destruiu a maior parte da cidade velha e quase tudo o que lembra-va a antiga opulência do Império. Não que se desconhecessem episódios como esse em séculos anteriores: particularmente em 1531 e 1597, dois outros terremotos assolaram Portugal. Nenhum deles, porém, teve a magnitude do cataclismo de 1755, que, pela primeira vez,34 incidia sobre uma cidade tão tradicional e populo-sa. A despeito das cifras comparativamente pouco confiáveis, dizia-se que, em 1750, Lisboa era a quinta cidade européia em população, só ultrapassada por Londres, Paris, Nápoles e Amsterdã.35

Não se quer com isso afirmar que Lisboa fosse uma cidade monumental: ela crescera, desde os tempos medievais, dentro e fora de duas sucessivas muralhas, a dos mouros e a de d. Fernando; concentrara-se na planura, perto do Tejo, a poen-te do castelo que a defendera; e espalhara-se pelas colinas.36 De toda maneira, porém, guardava o mistério de ruas sinuosas que se misturavam a algumas edificações mais altaneiras e vielas esguias que falavam de sua história, cantada e saudosamen-te lembrada pelas esquinas.

Não à toa lamentou-se, e muito, a perda de monumentos que registravam uma memória local feita de tantas glórias passadas. Assim, se a nota geral era dada pela destruição, e as relações de edifícios arrasados aumentava sem parar, alguns monumentos foram lembrados ainda mais do que outros. Desapareceram vários

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palácios: o dos duques de Bragança e do duque de Cadaval, o do marquês de Louriçal, dono de uma rara coleção de manuscritos e livros antigos, e os dos mar-queses de Gouveia, de Távora e de Nisa. Também vieram abaixo as livrarias dos dominicanos e do convento de São Francisco, sem esquecer do Paço da Ribeira e da sua Real Biblioteca. Menina-dos-olhos dos monarcas portugueses, que lá cole-taram, cuidadosamente, 70 mil volumes — que incluíam obras raras, documentos selecionados, códices, incunábulos, gravuras, partituras e mapas —, a Real Bi-blioteca "ajuntava" tudo o que uma livraria régia, símbolo do saber acumulado do Império, poderia comportar. Entretanto, tudo desaparecera de uma hora para a outra: logo após o terremoto, o próprio Palácio Real, onde ficava instalada a biblio-teca, mais parecia um amontoado de materiais derretidos. Conforme o desabafo de uma testemunha: "Se visses somente o palácio real, que singular espetáculo, meu irmão! Os varões de ferro torcidos como vimes, as cantarias estaladas como vidro!".37 Se com relação aos edifícios o incêndio mostrou sua capacidade de des-truição, diante dos papéis, secularmente acumulados, o fogo foi ainda mais impie-doso e repetiu a sina de uma série de bibliotecas que, como a de Alexandria, termi-naram decompostas pelas chamas.

E no caso de Portugal a perda era igualmente de monta, uma vez que a Real Biblioteca fazia parte dos louros e da própria representação oficial do Estado. Herdeira de muitos reinados, das vicissitudes e dos gostos de diferentes soberanos, a "livraria régia", como era também conhecida, expressava o interesse dos monar-cas portugueses pelo livro ou, ao menos, pelas vantagens políticas e simbólicas que um acervo como aquele trazia. Alguns monarcas mandavam comprar obras em terras longínquas; outros pediam que seus diplomatas "caçassem" bons exempla-res; outros ainda ordenavam que acervos inteiros fossem deslocados. O fato é que a Real Livraria38 personificava o orgulho nacional diante de sua cultura, assim acu-mulada, e enchia os olhos daqueles reis carentes de sinais que indicassem progres-so num Império tão visivelmente distanciado do restante da Europa.

Com efeito, a tradição real dos livros "ajuntados no Paço" remontava a d. João II (1477-95), que, por sua vez, reunira até os livros dos primeiros monarcas da dinastia de Avis: d. João i (1385-1433)39 e d. Duarte (1433-8).'™ Mas foi mesmo com d. João V (1706-50) que a Biblioteca Real adquiriu proporções grandiosas, à altura das aspirações desse soberano que, por meio do teatro da política, pretendia cons-truir de forma espetacular o absolutismo real. E para a execução de uma tarefa de tal monta não se mediram esforços: livreiros estrangeiros, agentes diplomáticos, acadêmicos de renome... todos pareciam envolvidos no mesmo objetivo de satisfa-zer as necessidades reais, cada vez mais imperativas, insaciáveis e urgentes. Com-pravam-se bibliotecas inteiras no estrangeiro, coleções particulares e verdadeiras preciosidades, que eram recebidas tal qual troféus.

Ao mesmo tempo que se montava essa verdadeira operação de guerra — que implicava adquirir livros, manuscritos, gravuras e até moedas e medalhas no exte-rior —, uma estrutura mais apropriada era erguida no reino para receber tantos

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tesouros. As crônicas portuguesas registram a relevância dessa coleção de livros para o rei português, que costumava dizer que sua "Livraria" teria para ele a mesma importância que o ouro enviado do Brasil.4' Não se desconhecia a ligação afetiva de d. João V com sua coleção, assim como se comentava a magnificência da Real Biblioteca, que era comparada às grandes do gênero:

[...] entre tão excessiva abundância de cousas preciosas, admiráveis e raras, escolhidas pelo seu bom gosto, a tudo excede, como sábio, o gênio dos livros, de que faz maior estimação, do que dos grandes tributos dos diamantes e ouros das Minas. Assim tem uma numerosa e admirável Livraria, em que se vêem as edições mais raras, grande número de manuscritos, instrumentos matemáticos, admiráveis relógios, e outras muitas cousas raras, que ocupam muitas casas e gabinetes. Não havia no Paço mais que um pequeno resto da Livraria antiga da Sereníssima Casa de Bragança: El Rey [d. João vj o fez colocar em esta Real Biblioteca, que se compõem de muitos mil volumes, que quase não cabem no grande edifício chamado o Forte [...].'42

A "Livraria Real" era, dessa maneira, vinculada à figura de El Rey, aquinhoan-do o soberano português com a cultura necessária a qualquer monarca que se pre-tendia ilustrado. Símbolos diletos, os livros e documentos raros "decoravam" a monarquia portuguesa, a qual lutava para se afastar das imagens recorrentes que sobre ela incidiam, reafirmando o atraso intelectual e o predomínio da superstição e do fervor religioso.

E a Biblioteca foi sendo aparelhada, ao mesmo tempo que eram chamados doutos e experientes acadêmicos, que, com o fito de ordená-la, acabaram dividin-do as tarefas a partir de suas próprias especialidades. Afinal, ela possuía não só um rico acervo de livros e manuscritos, que cobriam diferentes áreas do conhecimen-to — desde a religião, passando pelos clássicos, e chegando aos historiadores por-tugueses —, como coleções preciosas de iconografia, compostas de estampas de escolas européias. Estas eram montadas em folhas com tarjas, formando volumes especiais em cuja encadernação se destacava o brasão real, estampado a ouro sobre um fundo de marroquim vermelho.43

Antônio Ribeiro dos Santos, que na época ocupava o cargo de bibliotecário -mor da Universidade de Coimbra, oferece informações minuciosas (descontados os exageros das descrições de época) sobre a Biblioteca do Palácio, numa carta que remeteu a um contemporâneo:

a Biblioteca Real começou a ser rica de cinqüenta mil volumes a que chegou o Senhor Manoel, o qual havia leito entrar nela as melhores edições do seu tempo, e todas as pri-meiras dos Clássicos Gregos e Latinos: cresceu depois em mais cabedal de livros, que foram nela entrando nos tempos seguintes até o Reinado do Sr. Rei d. José. Pedro Gen-dron, mercador de livros e homem erudito em conhecimentos bibliográficos, e que tinha visto muitas Bibliotecas da Europa, afirmava que nenhuma vira provida de tan-tas edições antigas como ela,44

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17. Lisboa e seu famoso porto: por lá passava o mundo. Ueighes Picart, FBN

Com efeito, pela década de 1750, a Livraria Real era tratada como uma espé-cie de ícone da monarquia; seus cerca de 70 mil livros faziam dela uma das melho-res do gênero: tudo contribuía para encontrar no estabelecimento um retrato raro do que se era ou do que se pretendia ser. Se a consideramos isoladamente, Por-tugal nada devia aos demais centros europetis que guardavam para si a marca da "civilização".

Mas o fogo teimou em ser democrático e destruiu a todos e a tudo: diante do papel, as chamas foram implacáveis, reduzindo os documentos a cinza e pó. Depois do terremoto, Portugal acordou em luto por suas gentes, em pranto por suas mora-das e monumentos — e com certeza menos culto: foram-se os livros e documentos e ficaram apenas as lembranças desse catálogo maravilhoso, dessa biblioteca exímia em classificações e nas lógicas que opunham de forma cartesiana títulos, temas e formatos.

Este livro conta a história da reconstrução dessa biblioteca — planos, utopias e projeções — e ao mesmo tempo narra suas aventuras. Refeita logo após o terre-moto — por uma questão de honra —, a Livraria participa, de perto, de uma série de eventos que fizeram a história de Portugal e também a do Brasil. Sua restaura-ção estará incluída entre as tarefas emergenciais que visavam reconstruir Lisboa após o acidente de 1755, como se os livros fossem estratégicos e carregassem uma razão simbólica e um capital cultural dignos dos mais importantes negócios do Estado. Figurará, também, entre os pertences que o regente d. João arrolou para levar consigo quando se mudou de mala e cuia para o Brasil, em 1807, diante da iminente invasão das tropas francesas a Lisboa. É certo que a listou mas não a levou, pois os livros, esquecidos em caixotes no porto, na confusão do embarque, tiveram que retornar a sua morada original, para só começarem a partir dois anos depois. Contudo, a própria operação de fuga da corte foi muito mais planejada do que se imagina.

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Estranha é, portanto, a ladainha que corre até hoje entre nós e que conta e reconta a história de ura monarca que escapou às pressas de seu reino, sem plane-jamento nenhum. Difícil imaginar tal cenário, diante de tantos documentos que provam o contrário e evidenciam uma estratégia que implicou, entre outros, o fato de a biblioteca viajar logo em seguida ao monarca. Ao que tudo indica, a fuga não foi tão de última hora, e, entre tantas riquezas, a Real Livraria atravessaria o ocea-no, distribuída por algumas centenas de caixotes e em três etapas: uma viagem em 1810 e outras duas em 1811. A Real Livraria estaria, ainda, bem no centro do lití-gio político que iria se travar anos mais tarde entre Portugal e Brasil: com a Re-volução Liberal do Porto, em 1820, não só se impediu uma nova remessa de livros como d. João vt e depois seu bibliotecário retornariam a Lisboa apenas com a parte dos manuscritos referente à história de Portugal.

Por fim, a biblioteca fará parte das negociações da independência; depois da emancipação política, o governo brasileiro não quis devolver a rica coleção de li-vros. A "disputa bibliográfica" não foi, assim, um detalhe passageiro. A partir dela pode-se ter idéia da importância capital dos livros e do empenho do governo por-tuguês com vistas a proteger sua Biblioteca ante as invasões francesas e mesmo pro-curar, já nos anos 1820, levá-la de volta ao lugar original. Essa última batalha o Brasil venceu, mas pagou caro por ela. O valor da biblioteca tornou-se motivo de cláusulas e atos diplomáticos de consolidação da emancipação. Com a Convenção Adicional ao Tratado de Paz e Amizade de 29 de agosto de 1825, d. Pedro I, impe-rador do Brasil, concorda em indenizar a Família Real portuguesa pelos bens e pro-priedades deixados no país, e entre os diferentes itens constava a Real Biblioteca. Dessa maneira, se o país começou sua vida autônoma pagando um preço elevado à ex-metrópole — 2 milhões de libras esterlinas, tomadas de empréstimo por Portugal à Coroa britânica, com juros de 5% ao ano —, a biblioteca não ficou por menos: foi avaliada em 800 contos de réis, um preço alto, muito alto para um país recém-independente.

O fato é que a biblioteca passou a fazer parte da nação emancipada, que aos poucos lhe adicionou novas aquisições, conferindo-lhe uma feição particular. Sob a forma de uma coleção de coleções, a "Real" restou como um local privilegiado onde se guardava uma história: uma história do saber, ou então uma história que seleciona formas de saber e maneiras de esquecer.

A longa viagem da biblioteca dos reis fala dessa sina. Por meio dos livros vemos desfilar os eventos políticos, são eles os condutores da narrativa — e foi com eles, e em caixotes, que a Ilustração aportou no Brasil. E mais: junto com os livros, e através deles, o país se faria independente. Como um bom símbolo, as bibliotecas sempre deram muito que falar e pensar e valem, por si sós, uma boa viagem.

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18. Partida de d. João e da Família Real para o Brasil: nas imagens oficiais, a fuga ligeira transformava-se em ato glorioso. FBN

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A ANTIGA LISBOA E SUA REAL BIBLIOTECA

1. A bela Lisboa dos tempos fartos de d, João V. Antoine Aveline (1691-1743), FBN

Considerando a cidade de Lisboa, a respeito das partes do Mundo, nenhuma das referidas lhe faz vantagem; e não errará quem afir-mar que a todas excede; porque ela está situada no mais Ocidental da Europa, tendo diante de si o grande Oceano, o qual entrando pela terra, faz uma larga enseada, que termina no Cabo de Finis Terraepela parte Norte, e pela do Meio Dia no de S, Vicente, fican-do esses dois promontórios como duas Baías de grande beleza, mos-trando com a larga porta, que abrem ao mar, que toda a abundân-cia do Mundo deve entrar nela.

L. M. Vasconcelos, 1786.

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Enfiada entre sete colinas na margem norte do rio Tejo, Lisboa até parecia eterna — segundo alguns relatos mais orgulhosos, e ainda distantes do terremoto que destruiu a cidade. Contava-se que Ulisses teria vagado por lá após o saque de Tróia, e que os romanos chamavam o local de Olissipo, de onde teria advindo o nome de Olissipona, mais tarde abreviado para Lisboa. Antiga cidade dos visigo-dos, e mais tarde dos mouros, Lisboa era considerada uma das grandes capitais da Europa nos anos 1750. O momento sinalizava, porém, certo declínio e decadência. De um lado, os ditames e vogas de Iluminismo filosófico, político e econômico, que vinham revolucionando o resto da Europa, foram mantidos relativamente apar-tados, em função da influência da Inquisição e até mesmo do fervor religioso difundido pelo reino. Com isso, Portugal distanciava-se a olhos vistos das demais metrópoles européias, que cada vez mais reagiam com escárnio às demonstra-ções de fanatismo oficial e popular tão presentes naquele país. Por outro lado, se o ouro do Brasil continuava a afluir, os gastos extremados da corte e o desperdício evidenciavam a idéia de que as minas não eram perenes e que a riqueza fácil tinha lá seus limites.1

Além do mais, as façanhas gloriosas de Henrique, o Navegador, e de Vasco da Gama não passavam, àquela altura, de lembranças dos tempos gloriosos. O contex-to era realmente outro, já que, livre desde 1640 do longo domínio espanhol de ses-senta anos, Portugal ainda lutava para não ser caracterizado como um apêndice daquele reino, ou então como colônia econômica da Grã-Bretanha. Até os próprios testemunhos da época notavam, atônitos, a dependência financeira que se abatia sobre o Império:

2. Desembarque do soberano espanhol Filipe II em frente ao Terreiro do Paço: imagens e ritual, tudo alimenta a iconografia da realeza. João Baptista Lavanha (1555-1624), FBN

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4. Cidade de Lisboa, com o Castelo de São Jorge e o Convento dos Jerônimos. A gravura corresponderia a uma visão do profeta Daniel. FBN

não encontrar um edifício que mereça a maior atenção". "Uma cidade de África", dizia um cronista francês; uma "formosa estrivaria", acrescentava, de seu exílio lon-drino, o cavaleiro de Oliveira.4

Literalmente debruçada à beira do estuário do Tejo — na boca do Atlânti-co —, Lisboa se estendia até o cume de colinas próximas, cobertas de casarios, e era em geral descrita a partir de suas ruas estreitas, que pareciam não ter saída ou des-tino. Destacava-se o famoso Castelo de São Jorge, exposto ao olhar de todos numa dessas colinas, imponente nas suas espessas muralhas e nas formas medievais que mais lembravam uma coroa.5

A oeste ficava o Bairro Alto, de traçado quase regular, prova de construção mais recente. Esse deveria ser o local mais nobre, arejado pelos ventos e limpo pelas chuvas que escoavam para o rio. Praças, só havia duas (e próximas entre si) dignas de destaque: o Rossio e o Terreiro do Paço — e era ao redor delas que boa parte da vida lisboeta girava. No Rossio realizavam-se os poucos espetáculos públicos, assim como as touradas. Também era lá que se assistia habitualmente aos autos-de-fé ou, em tempos de calma, onde se liam em alto e bom som os editais. Já o Terreiro do Paço — praça ampla que teria na época 620 passos por duzentos — era o verdadeiro centro político, cultural e financeiro da capital, onde se loca-lizava não só boa parte do comércio local como o próprio Paço da Ribeira, mora-da oficial dos soberanos da terra. Além disso, a diferença entre os dois locais era também política: enquanto o Terreiro do Paço, a praça nova, estava mais ligado à

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corte que à vida municipal, o Rossio, espécie de fórum da cidade, com seus men-digos, hospitais e mercados, permanecia vinculado sobretudo à tradição popular. O Rossio era o local de reunião do povo; o Terreiro do Paço constituía-se em palco para outras encenações: já em 1510 ali se realizavam touradas, e lá se ergueram os primeiros arcos do triunfo em homenagem a Filipe i, primeiro rei espanhol de Portugal.6

A cerca de onze quilômetros para oeste encontrava-se Belém,

lugar ribeirinho que tem um aspecto risonho, havendo ali magníficas casas de campo chamadas quintas e suntuosos conventos entre os quais um mosteiro da ordem de são Jerônimo (começado em 1502 e considerado um marco da arquitetura manuelina), vasto, soberbamente construído...7

Completava a paisagem uma imponente torre (construída entre 1515 e 1519), que recebera o nome do lugar, testemunho de tantas glórias e ponto de partida dos primeiros navegadores.

O estuário do Tejo era ainda motivo para muitos comentários. Se havia exa-gero nas descrições mais ufanistas, é certo que um grande número de navios, das mais diversas nacionalidades, freqüentava o porto. Por sinal, o intenso tráfego marítimo não só dava imenso retorno financeiro ao Império como animava a cida-de e lhe conferia aspecto mais cosmopolita. Essa era, sem sombra de dúvida, uma das maiores vantagens de Lisboa. Sua localização geográfica ihe garantia posição portuária privilegiada — à "boca do Atlântico" —, além de um clima ameno, des-crito e elogiado por praticamente todos os viajantes que por lá passaram. "Sujeita a tal clima que parece estar sempre em primavera"8 — aí estava a visão de um poeta anônimo, sintetizando as impressões mais gerais que, se falavam mal da sujeira e da escuridão das ruas, em uníssono louvavam as belezas e as dádivas da natureza local. A generosidade do clima estendia-se até o inverno:

[...] o frio é tão ligeiro que, nas casas, não existem chaminés a não ser nas cozinhas, e até o uso das braseiras não é tão vulgar como em Madrid. As senhoras, em lugar de se aquecerem ao lume, contentam-se em usar, por casa, xales e os homens usam apenas capote ou roupão de baeta inglesa, espécie de flanela felpuda.9

No entanto, os tesouros vindos do Brasil e de outras partes do Império — que fizeram de Lisboa o terceiro porto mais movimentado da Europa, superado apenas por Londres e Amsterdã — poucos benefícios trouxeram para a maior parte da po-pulação local. Já nessa época o rico comércio era dominado pelos ingleses, que gozavam de privilégios tarifários não concedidos a nenhuma outra nação. Con-forme uma testemunha mais desconfiada: "Computa-se que num ano entram no Tejo mais barcos ingleses que portugueses e de outras nações em conjunto".1" Dessa maneira, o ouro e as demais riquezas acabavam escoando de Portugal — isso por-que a ausência absoluta de manufaturas fazia com que a balança comercia! entre

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5. Vista da entrada da barra de Lisboa por volta de 1726: calmaria antes do desastre. FBN

7. O convento de São Jerônimo, 8. A torre e a entrada da barra de Belém: a pri-em Belém. Dirck Stoop, FBN meira visão dos navegadores. Dirck Stoop, FBN

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9. Vista geral de Lisboa em 1752: uma

verdadeira capital européia à altura dos

projetos reais. FBN

10. Lisboa e o desembarque do rei Carlos com a frota

inglesa e holandesa: grandes demonstrações.

Pieter Husson, FBN

os dois países tendesse sempre para o lado inglês. A cidade crescia, mas se ressen-tia da falta de investimento e de estrutura.

Se o clima merecia reverência, bastante diferentes eram as descrições acerca da escassez de água, da falta de comodidade das casas e da pouca personalidade dos palácios locais, que revelavam não só uma arquitetura pobre como a falta de cui-dado que recaía sobre a capital. Os edifícios, pouco originais, pareciam representar um exemplo do descaso reinante. Feitos de tijolo e madeira, eram quase sempre compostos de dois andares (embora alguns poucos chegassem a três), apresenta-vam uma fachada sóbria e sem maiores decorações ou detalhes. No plano baixo, apenas uma porta de entrada simples e algumas janelas com gradeamento comple-tavam o cenário um tanto austero. Já nos andares superiores protegiam-se as jane-las com gelosias, uma vez que vidros eram raros em Lisboa. Se a decoração exterior era reduzida, a mesma sobriedade se verificava no interior: uns tantos azulejos decoravam o ambiente, de tetos retos e com poucos móveis.

Nessa época, um total de 250 mil pessoas viviam em Lisboa, aglomeradas em cerca de 20 mil casas, todas aninhadas entre as sete colinas. Faltava, contudo, uma infra-estrutura maior para dar conta dessa relativa densidade populacional. As mo-radas eram simples e escassas, e as ruas, apesar de pavimentadas, eram bastante es-treitas e sujas: "São, porém, muito enxovalhadas, não sendo varridas senão de três

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11. Vista interna de uma casa em Portugal antes do terremoto; idealização dos bons tempos. James Cavanah Murphy, FBN

12. Viajando numa liteira: transportes dijíceis mas "caprichados" na representação. James Cavanah Murphy, FBN

ou de quatro em quatro dias, só então se limpando da lama"." As ruas eram tão estreitas que nelas quase não passava um animal de carga; além disso o piso, que pouco resistia ao uso constante de mulas e cavalos, se encontrava em mau estado de conservação. Desde o século xvn, com a utilização do coche em larga escala, a situação tornou-se alarmante. Já nessa época, as discussões entre condutores de coches que vinham em direções contrárias eram tão freqüentes que medidas legis-lativas foram tomadas com vistas a contemporizar conflitos, determinando priori-dades e privilégios nos cruzamentos. Tais providências, entretanto, apesar de acer-tadas, estavam longe de resolver o problema. Os veículos da época eram pesados, grandes, vagarosos e pouco adaptados a uma cidade como Lisboa — cheia de la-deiras, esburacada e populosa.

Mesmo assim, naquele local de riquezas fáceis, os coches se convertiam em objetos de luxo e eram ambicionados por todos aqueles que queriam ser reconhe-cidos como senhores. E era corrente o costume de certos galanteadores acompanha-rem as damas pendurados nos estribos: ganhava-se um coração, mas o ato estor-vava o já atrapalhado trânsito da capital portuguesa. Outros veículos tornavam o quadro ainda mais caótico: as liteiras carregavam casais acompanhados de dois ou três criados, e as cadeirinhas, utilizadas individualmente, chegavam a mais de sete-centas.'2 Como se não bastasse, havia ainda as portas de entrada da cidade, verda-deiros gargalos, que complicavam o tráfego local.

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Mas os problemas de Lisboa não se restringiam ao trânsito e à sujeira das ruas. Em uníssono, as testemunhas de época referem-se à escuridão que recaía sobre to-da a cidade, tão logo o sol se punha. O breu só não era total nas noites de lua cheia, ou por conta das luzinhas trêmulas dos oratórios e nichos. Por isso, poucos lisboe-tas se arriscavam a sair à noite, e quando o faziam levavam consigo suas armas, por medida de segurança.

Essa grande cidade não tem iluminação durante a noite, por via do que acontece fre-qüentemente perder-se um sujeito, correndo o risco de ficar enxovalhado com as imundices que é uso despejarem das janelas às ruas, pois as casas não têm latrinas. Todo mundo é obrigado, para dizer a verdade, a levar as imundices para o rio e há uma quantidade de negras que fazem esse trabalho por pouco, mas essa ordem não é exa-tamente cumprida, principalmente pelo povo.

Como conseqüência da escuridão surgia, portanto, o problema da higiene, que não parecia constituir, no meio do breu, preocupação de ninguém. Além de se arriscar a ficar imundo por causa das sujeiras alheias, aquele que enfrentasse as ruas de Lisboa fora das luzes do sol se sujeitava a mais:

De noite não se anda nas ruas com bastante segurança, a não ser que seja, na língua do país, "embuçado", ou seja que se vista um capote, ou um grande manto, que cubra da testa até o pé: esta vestimenta bizarra, comum a todos, mesmo aos príncipes, faz com que qualquer um se ferva, tendo o privilégio dc ser respeitada. O respeito que se tem por esta espécie de máscara vem do fato de impedir que seja conhecido e que oculte a possibilidade de estar armado e capaz de reagir a quem se atreve a interceptá-lo.13

Não eram poucos os estrangeiros que se queixavam da falta de segurança e de policiamento na capital. Roubos e assaltos eram freqüentes, acobertados que eram pela escuridão das ruas. Furtava-se de tudo — dinheiro, alimentos e até cha-péus: "Um homem se arrisca hoje a perder seu chapéu, objeto que os portugueses roubam durante a noite e descaradamente ostentam no dia seguinte, pavonean-do-se pelas ruas como se andassem a mostrar coisa honradamente adquirida...".14

A saída era portar uma arma e usar casacos pretos e longos, que disfarçavam a condição e garantiam discrição a todo aquele que decidisse enfrentar as ruas ao anoitecer.

Vestimenta: aí estava matéria atravessada por uma etiqueta e um código que, em meio a essa sociedade muito pouco letrada, tornavam públicas e visíveis as hie-rarquias e divisões sociais. O homem do povo, por exemplo, usava habitualmente chapéu de abas largas, casaco até o meio da perna apertado na cintura, e sapatos e meia alta. Já o burguês costumava portar um chapéu redondo com abas de largu-ra média, casaco preso na cintura e calças com roda, terminando abaixo do joelho, onde eram atadas fitas. O traje dos fidalgos também variava, e sinalizava maior ou menor opulência: rendas, fitas e bordados eram usados com mais ou menos pro-fusão, sempre de acordo com a colocação na hierarquia social.

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13. Mais uma vista da cidade de Lisboa, tantas vezes retratada. Lisboa, a sempre orgulhosa Lisboa. Lowis Meunier, FBN

Assim, embora a corte de Lisboa não fosse Versalhes, não esquecia os luxos e adereços. Rendas eram apreciadas, e aplicadas nos mais diferentes lugares: punhos, gargantilhas, decotes. As perucas eram igualmente estimadas, a ponto de um con-temporâneo ironizar: "Há cabeleiras para casa, para passeio, para vestir de corte, para trajar à soldado e estou vendo quando se compram cabeleiras para deitar na cama e para a hora de morrer".15 Outro ornamento dileto eram as fitas, em cores e formatos diversos, mais parecendo verdadeiros ramalhetes. A maquiagem saía do teatro e ganhava as festas dos fidalgos: ali estavam as pintas nos locais estratégicos, o avermelhado na maçã do rosto ou um ar pálido, quando a ocasião pedia. Tantos requintes e artes viravam matéria para comentários e ironias, mas eram seguidos à risca. Afinal, bom sinal é aquele que pode ser decodificado, e os luxos da corte fa-ziam parte dessa cartilha bem decorada.

A riqueza também era medida com base no número de criados, que se mistu-ravam aos escravos. Estes últimos podiam ser vistos com facilidade nas ruas de Lisboa e muitas vezes eram preferidos aos demais domésticos:

A maioria da criadagem é composta por escravos negros, sobretudo em casa daque-les portugueses que estão em condições de os comprar. Eles preferem-nos aos criados brancos por serem mais dóceis, amansados pelo temor de serem vendidos para tra-balhar nas minas. No geral, os criados brancos são mais patifes e mais insoientes [...] Também se vêem muitas pretas e muitos donos que as possuem em número relativa-mente grande, não para seu serviço mas como instrumentos de uma exploração lucrativa.16

O autor se refere, nesse caso, ao trabalho por dia, que permitia ao patrão reco-lher o ganho de uma jornada inteira. Com tantas facilidades, um bom fidalgo cos-tumava ter pelo menos uma dezena de empregados e, muitas vezes, desfilava pelas ruas, fazendo-se seguir por seu séquito de domésticos.

Mas "tomar as ruas" era, basicamente, um programa masculino. As mulheres portuguesas, admiradas pela beleza, viviam em autêntica reclusão. É claro que nas classes mais populares tal regra pouco se aplicava, uma vez que o trabalho as cha-mava para as ruas. O mesmo se podia dizer das criadas, que saíam das casas para levar recados ou fazer compras. Quanto mais se subia na escala social, porém, mais se ficava condenada a permanecer encerrada no lar. Uma visita à igreja nos dias

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santos podia resultar em uma pequena e legítima escapada; no entanto, no restan-te dos dias nada mais havia a fazer senão permanecer entretida nas tarefas caseiras. Como disse um viajante acerca das damas locais:

A sua sorte é triste, por tal forma vive enclausurada que é vulgar haver simples merca-dores com capela em casa e missa privada, a fim de não darem a suas mulheres e filhas o único pretexto que podem ter para pôr o pé na rua. Quanto à conversação com homens, as mulheres portuguesas só podem falar com frades e com padres e quanto à recreação não lhes é permitida outra que não seja a de espreitar, através das rótulas das janelas, quem passa ao alcance da vista. Em Lisboa as mulheres só se podem ver no caminho que medeia entre a casa e a Igreja, ou então na Igreja, onde ocupavam a nave, separada da dos homens.1 '

As fontes históricas do tempo de d. João v revelam a existência de um grande pavor: o das doenças. Atribuía-se, muitas vezes, aos maus odores das ruas da capi-tal a causa maior das moléstias que assolavam sem dó os lisboetas. O certo é que a falta de encanamento, o hábito de "jogar as imundices por terra" e as temperaturas um pouco mais elevadas não contribuíam para a saúde da população. Nos do-cumentos, como uma obsessão, não poucos se queixam das "inchações, defluxos, pro-blemas gástricos, quartas sincopais, febres, sezões, pleuris que afetavam a vida das pessoas".18 E, assim, quem podia passava o verão nos arredores de Lisboa, para evi-tar as angústias do mal físico.

Outro tema recorrente era a falta de água, que, pesadelo constante, ocorria nos momentos mais inesperados — e as soluções pareciam sempre muito duvido-sas. Até procissões eram organizadas com a esperança de resolver esse problema crucial. Mas, enquanto a solução não vinha, o lisboeta pagava caro pela água que consumia. Existiam apenas três fontes potáveis na cidade; o preço era exorbitan-te e a qualidade, sofrível. Por essa razão, d. João inaugurou com pompa seu novo aqueduto.

A demanda era tão premente que o nome desse soberano ficou vinculado à construção do Aqueduto das Águas Livres, em Lisboa, empreendimento que, ape-sar de um tanto alheio à iniciativa real, lhe deu muita popularidade. A escassez da água (extensiva a outras cidades) é só um dos muitos exemplos que falam da frá-gil estrutura urbana de Lisboa, onde faltava quase tudo.

As riquezas tampouco convergiam para as vias: não havia um só palmo de estrada boa em Portugal. Quem resolvesse passar pelo país deveria gastar um mês ou semanas por mar, correndo o risco de ser apanhado por piratas. A alternativa por terra não era mais estimulante: enfrentava-se a inclemência de ser roubado por ladrões e salteadores. Não é.mera coincidência o fato de poucos viajantes se atre-verem a visitar a cidade; ademais, quando o faziam, deixavam sempre um bom tes-tamento antes de se exporem à jornada.19

Não se comia mal em Lisboa, a despeito da instabilidade e da insegurança no fornecimento de víveres, Ocorriam faltas agudas de trigo, e crises constantes de

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14. Idealização do Aqueduto das Águas Livres em fins do século XVIII: milagre régio diante da falta de água. Desenhos de C. Boilleau e gravação de F. Bartolozzi, FBN

abastecimento aparecem registradas. Era comentário geral que o país dava do me-lhor trigo da Europa, mas a produção não supria mais da metade das necessidades do consumo.20 Não obstante, de maneira geral, a oferta de alimentos era até farta e realizada em pontos fixos de comércio. O trigo, por exemplo, era vendido em um terreiro que ganhara o seu nome: Terreiro do Trigo. Junto a esse local ficava a Ribeira, reconhecida não só por sediar o Paço Real como por ser o mais importan-te local de venda de gêneros alimentícios da cidade. Barracas coloridas e dispostas ao redor da praça ofereciam de tudo: sal, frutas, caças — perdizes, coelhos, gali-nhas, perus, frangos, cabritos, pombos, patos — e ovos. Logo ao lado ficava a Praça do Peixe, onde, protegidas por chapéus-de-sol, quase uma centena de vendedoras, escamadeiras e outras profissionais especializadas na salga da sardinha efetuavam seu ofício. Ainda perto dessa praça estavam dispostas outras cabanas, nas quais se vendia fruta verde e seca: peras, nozes, avelãs, figos, castanhas, uvas e damascos. Não faltavam cabanas de hortaliças, de pães ou especializadas em mariscos e ou-tros crustáceos; e nas proximidades, situava-se a alfândega do tabaco. Por fim, tam-bém nos arredores localizava-se a rua das "Carneçarias ou das Carniceiras Velhas". A principal loja estava estabelecida no próprio Terreiro do Paço e era conhecida por suas paredes interiores revestidas de azulejos e cobertas de peças de carne, pen-duradas na altura de seis pés.2' Mas nem todo o comércio era realizado em pontos fixos. Vendedores ambulantes corriam as ruas da cidade, ofertando um pouco de tudo: doces, frutas, flores e até tabaco.22

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Os víveres portugueses guardavam outra vantagem: com exceção do pão e das aves, eram consideravelmente baratos e acessíveis à população de maneira geral. Com tanta oferta, criavam-se gosto e paladar. A sardinha, por exemplo, era imorta-lizada nos versos de um poeta anônimo: "Mas é bem que se celebre,/ Quem mais que todos sustenta./ E por ser mais abundante,/ É fartura da pobreza./ A saborosa sardinha/ Que a divina providência/ Na abundância e qualidade/ No sabor e em ser pequena".23 Por sinal, o peixe tinha um papel importante na dieta do lisboeta, que se orgulhava também do consumo de bacalhau, que lá custava pouco.

A cerveja era bastante apreciada, assim como o vinho, que podia ser encontra-do com certa facilidade: o nacional por preços módicos, os importados com valo-res mais salgados. Bebia-se também água, nas poucas fontes, e, desde o sécuio xvi, esperava-se pela venda ambulante de neve (o gelo em pedaços), preparada com as frutas locais, em especial o limão, e consumida nos dias quentes.

Não escaparam aos olhos curiosos e gulosos dos viajantes estrangeiros as igua-rias que ocupavam a mesa dos lisboetas. À entrada, seguiam-se os cozidos, o assa-do e por fim várias sobremesas: manjar-branco, geléias, doces à base de gemas de ovos. "Os doces líquidos", comentava maravilhado um francês de passagem pela terra, "comem-nos à colher e num abrir e fechar de olhos ingerem uma libra deles, Em cima bebem água e depois voltam a comer outras espécies de doces."24

A fartura era tal que animava banquetes, regados por dezenas de pratos e qui-tutes em que se misturava de tudo. Nas receitas de bolo, por exemplo, recomenda-va-se que se dispensasse nas vasilhas uma dúzia de ovos para um arrátel de açúcar e mais quatro onças de amêndoas, untadas com uma quarta de manteiga.25 A jun-ção de tantas iguarias em uma mesma ceia não era, por certo, invenção portugue-sa. Mas lá, no seio da corte portuguesa, parecia combinar com um desejo difundi-do de ostentação, que, nesse caso, implicava apresentar uma mesa repleta, tomada por uma quantidade fantástica de especialidades locais. Pobres e fartos estômagos setecentistas.

O cozinheiro de d. João V, que publicou a Arfe de cozinhar, aconselhava que se oferecesse aos convidados uma série de cardápios, adaptados aos diferentes dias da semana. Aos domingos, por exemplo, a sugestão era a seguinte:

1- iguaria — Tigelas de caldo de galinha com sua gema de ovo e canela por cima e logo sopas de vaca 2- iguaria — Perdigões assados, guarnecidos com lingüiça 3S iguaria — Coelhos de João Pires 4a iguaria — Um ou dois peitos de vitela de conserva, guarnecidos com torrijas de vitela 5a iguaria — Pastelões de várias carnes, redondos, lavrados 6S iguaria — Pastéis fritos, pequenos, de carneiro, com açúcar e canela 7* iguaria — Olha castelhana, a saber, vaca, carneiro, mãos de porco, presuntos, grãos, nabos, pimentões, de todos os adubos amarelos com açafrão Manjar-branco em pilas assado Doces fritos e frutas do tempo'6

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A longa relação continuava fixando um cardápio para cada dia. Variava-se um pouco, mas a estrutura permanecia a mesma: começava-se com as sopas, seguiam-se as caças (sempre em número de três), depois empadas e pastéis, cujo recheio podia e devia variar, e por fim doces e frutas. A exceção ficava por conta das sextas e sábados, quando os peixes substituíam as carnes, dominantes nos demais dias da semana.

Embora o valor dos alimentos fosse camarada, as boas hospedarias, quase todas estrangeiras, custavam caro. A explicação para os preços exorbitantes pare-cia, já na época, bastante lógica: "O elevado preço destas hospedarias leva à pouca freguesia [...] hospedam-se em casas de amigos ou alugam quartos",27

Apesar disso, aquele que se aventurasse a enfrentar um hotel desse tipo raramen-te ficava satisfeito: "As hospedarias de Lisboa são autênticas cavernas e nelas se fica pessimamente alojado. É preferível compartilhar da cama de um amigo a alojar-me em qualquer delas".28 Parece que esse era um artifício corriqueiro para os estrangeiros, que "procuravam hospedar-se em casa de qualquer francês ou inglês (pois um português não os receberia), passando a comer onde encontrar o que [comer]".29

No entanto, a verdadeira paixão nacional era mesmo o fervor religioso. Lisboa estava banhada de instituições religiosas que iam da catedral patriarcal do século XII até a rede de capelas locais. Comentavam os viajantes que as igrejas de Portugal eram revestidas de talha e reluziam a ouro, Além do ouro e da prata, muitos qua-dros, feitos de mármore e de baixos-relevos, decoravam as igrejas locais. Nicolau de Oliveira legou uma relação das instituições monásticas existentes em 1620, cujos números são reveladores: os conventos masculinos seriam 24, correspondendo a 1365 frades, ao passo que os conventos femininos, em número de dezoito, alberga-vam 1832 freiras.™

Próximo do ano do terremoto, só os franciscanos contavam com quatro con-ventos para seus monges e mais quatro para freiras; os dominicanos tinham na cidade seis conventos e quase 150 irmandades.31 Mas essa situação não era motivo de regozijo. Ao contrário, o tema merecia cautela e várias cartas régias avaliavam que o número excessivo de conventos e casas de recolhimento não só custava de-mais aos cofres do Estado como tirava braços saudáveis do trabalho. Dizia um co-mentarista, em meados dos anos 1700:

Pode-se dizer que os reis, pelas tolerâncias desses abusos [...] se têm privado de uma infinidade de súditos que teriam povoado todas as províncias de Portugal e suas colô-nias, as quais por falta de braços não produzem mais que uma pequena parte dos ren-dimentos que podiam dar."

Os conventos ficariam famosos, porém, não apenas pela quantidade e por suas virtudes religiosas. Muitos viajantes divertiam-se descrevendo o ambiente de relaxamento que reinava naqueles recintos. Alguns lembravam os inúmeros pedi-dos das freiras, que demandavam "sapatos picados, roçados de seda, de tesum, five-

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Ias cie OLiro, de prata e de pedras preciosas". Outros reproduziam reprimendas dos padres, que aconselhavam as religiosas a "não usarem luvas, leques, alvaiades, nem quererem passar por abadessas".33 Até peças de teatro eram representadas nos con-ventos, com temas os mais vulgares.

Não obstante, e apesar dos escândalos freqüentes, o ambiente geral era mesmo propício ao aumento da religiosidade. Relíquias que lembravam milagres fantásticos estavam espalhadas entre as diversas igrejas da cidade, e pelo menos vinte imagens de Cristo ganharam fama prometendo poderes de cura. Presépios cresciam em personagens na mesma proporção em que aumentava a fé religiosa. As beatificações e canonizações, freqüentes e vulgares nos tempos de d. João v, implicavam somas elevadas que passavam dos cofres portugueses para os tesouros de Roma. Soberanos, homens da corte, exemplos da história ou santos locais eram motivo para a abertura de novos processos e lembrança de novas figuras a serem santificadas.34

Procissões varriam o calendário da cidade, e o perfil dos participantes va-riava: religiosos, penitentes, condenados ou populares em veneração a santo Antônio, o santo padroeiro de Portugal, e são Vicente, o padroeiro de Lisboa. Confrarias e irmandades, como a da Misericórdia, também faziam parte do cotidiano local, e, segundo as testemunhas, nenhum português que se prezasse, incluindo o rei, deixaria de vincular-se a uma instituição como essa. A Igreja

15. D. João V, gravura alegórica: 16. D. João Vestia cortefaustosa. FBN nas imagens, a projeção

da civilização desejada. FBN

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constituía, portanto, o grande centro da vida religiosa, mas também social e mun-dana. Lá se misturavam assistentes cheios de fé, conversadores inveterados, pares amorosos e negociantes, como se o espaço fosse propício para os mais diferentes propósitos.

Mas essa descrição não estaria completa sem que se mencionassem os autos-de-fé que enchiam o cotidiano lisboeta, na falta de outras atividades. O Tribunal da Inquisição continuava tão atuante como no início de seu funcionamento, no século xvi, condenando e jogando à fogueira hereges e infiéis, Em 19 de maio de 1755, menos de seis meses antes do terremoto que abalou Lisboa, o rei d. José e sua rainha Maria Ana haviam comparecido ao Rossio e presenciado um "cristão-novo", de nome João Ramos, ser entregue às chamas, condenado como "confitente, revo-gante e impenitente".

Os exemplos são muitos, e a cada anúncio de um auto-de-fé a multidão acorria, acostumada como estava a demonstrações públicas desse tipo, E não era para menos; tais rituais deviam constituir o aspecto mais imponente e teatral da vida religiosa se-tecentista e ocupavam as grandes praças — como o Rossio e o Terreiro do Paço. Ao que tudo indica, esses momentos, aguardados com ansiedade, transformavam-se em verdadeiras festas, causando estranhamento aos viajantes, que, apesar de pouco acos-tumados a rituais como esses, nem por isso deixavam de tomar parte:

17. Procissão de auto-de-fé, confissão e condenação: uma das poucas "diversões" da corte portuguesa. Pierre A. Vander, FBN

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Voltei a Lisboa para assistir à festa. Chamo festa a essa horrível cerimônia por ela cons-tituir para os portugueses um verdadeiro divertimento. Nesse dia podem as senhoras estar à janela adornadas com jóias e enfeites como se fosse o dia do Corpo de Deus ou as procissões da Quaresma,35

Os processos chegavam, muitas vezes, a mais de cem, e por esse motivo o ritual, que se iniciava às seis horas da manhã, podia prolongar-se até as seis da tarde. Parece que era do gosto local deixar o último ato para o anoitecer, quando as fogueiras iluminariam o céu de Lisboa e lembrariam a todos a solenidade da ocasião. Os acusados compareciam vestidos de branco, empunhando uma vela e uma cruz pendente. O desfile dos condenados era silencioso, acompanhado pelos representantes do Santo Ofício e precedido pelos padres. As sentenças eram lidas em voz alta e endereçadas aos prisioneiros, que as escutavam de joelhos. Os pri-meiros a serem julgados eram os heréticos — acusados de feitiçaria, bigamia e outros pecados considerados "antinaturais" —, seguidos pelos judeus, A cerimô-nia terminava com a execução dos castigos, o ápice tão aguardado pela multidão que se espremia nos locais a ela destinados. Narravam as testemunhas que a aglo-meração era tal que a impressão que se tinha era de que boa parte da cidade lá se encontrava reunida, pronta para assistir àqueles grandes e complexos rituais, que não raro assumiam o papel de representações repetitivas da força da Igreja naque-le reino.36

Mas as atividades públicas religiosas não se resumiam aos autos-de-fé. As pro-cissões estavam na ordem do dia, e no reinado de d. João V não faltava boa ocasião:

20 de janeiro, S. Sebastião; 29 de janeiro, S. Vicente; 17 de abril, Ação de Graças; 25 de abril, Ladainha Maior; 5 de maio, Primeira Ladainha; 6 de maio, Segunda Ladainha; 7 de maio, Terceira Ladainha; 13 de maio, Nossa Senhora dos Mártires; 13 de junho, Santo Antônio; 2 de julho, Visitação de Nossa Senhora; 20 de julho, Anjo Custódio; 14 de agosto, De Ação de Graças; 15 de setembro, Da feliz restauração; 16 de setembro, Transladação de S. Vicente; 1 de outubro, Santos Mártires; 25 de outubro, De Ação de Graças; 9 de novembro, Patrocínio de Nossa Senhora.'7

Resta mencionar as procissões de Corpus Christi — a maior de todas —, a das Candeias, a da Senhora da Saúde, a do Desagravo e tantas outras que não tinham data certa para sair. Nos dias de procissão as ruas se enfeitavam, osten-tavam-se colchas coloridas nas janelas, areia vermelha pelo chão e flores em todos os lugares. Eram seguidas a pé, em carros ou a cavalo, em forma solene ou des-contraída, guardando a marcha ou dançando com outros passistas. Na verdade, as procissões eram pretexto para u m pouco de tudo e, muitas vezes, davam vazão ao fanatismo local: "Nas procissões da quaresma flagelam-se horrivelmente, arrastam correias, caminham de joelhos, carregam barras de ferro em forma de cruz e fazem outras semelhantes penitências". Todo esse fervor, inscrito em gestos e atos extremos, não impedia, porém, expressões que revelavam outros tipos de

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motivação: "Muitos põem fitas nos ombros para serem reconhecidos por suas amadas, outros fazem namoro por sinais e ali passam com destreza bilhetinhos de amor",38 De uma forma ou de outra, as procissões desempenhavam um papel dileto na arquitetura religiosa local: era por meio delas que se dava expressão a uma experiência popular, marcada por um discurso de fundo religioso ou até milagreiro.

Nem todas as festas estavam vinculadas a motivos expressamente religiosos. Festas ptíblicas havia em profusão, e a suntuosidade devia exceder o que se conhe-ce nos dias de hoje. É certo que a maior parte dos festejos guardava motivos reli-giosos, mas natalícios de reis ou dias cívicos também serviam de pretexto para procissões. E, já que uma certa teatralidade política desfilava, despendia-se muito na realização desses eventos. Atenção especial era endereçada à construção de arcos, ao apontar das luminárias, às ornamentações provisórias, às decorações de flores e ao planejamento dos fogos de artifício. Afinal, as festas vinham no lugar dos poucos divertimentos públicos locais. A festa de touros, por exemplo, era rea-lizada no Terreiro do Paço e ajuntava a população que se habituara a acomodar tais atividades ao lado de motivos cívicos. Muitas vezes, o aniversário dos monar-cas portugueses era comemorado com touradas e, como a corte preferia assistir às apresentações acomodada nas janelas do Paço da Ribeira, aos poucos foi se dando preferência a esse local, em detrimento do Rossio. Entretanto, até mesmo essas corridas foram suprimidas pela influência da rainha, que temia que acontecesse algum desastre com o príncipe, adepto da brincadeira de pegar os touros pelo corno.

A CADA PAÇO A SUA CORTE

Lisboa não possuía muitos palácios grandiosos ou originais em sua arquitetu-ra. Destes, os mais importantes eram os,da família Corte Real, do duque de Bra-gança, do conde de Vila Franca e o da Anunciada. Tudo era, porém, pouco signifi-cativo, quer na variedade, quer no número de peças de mobiliário ou nos objetos decorativos: não passavam de grandes casarões, com pouco recheio e vida.39 Quase "casas de fachada", esses paços eram antes símbolos de uma nobreza que buscava se afirmar, tendo como modelo próximo uma "Europa civilizada", mas que se deparava com muitas carências também sociais. A ausência de palácios dignos de nota é no mínimo paradoxal se lembrarmos que a vida de Lisboa era regida, nesse momento, pela corte faustosa de d. João v — que subiu ao trono em 1706, com dezesseis anos —, ao mesmo tempo que entravam ouro, diamantes, madeiras ra-ras, açúcar e couros vindos do Brasil. No entanto, a liberalização que se impunha nos costumes da corte, alimentada por tantas riquezas e pela influência francesa, não se traduzia em mudanças estruturais. A fraca arquitetura tentava ser compen-sada por uma decoração apenas ostentatória, a pintura era substituída pelo azule-jo, a escultura pela talha, e Portugal continuava a apresentar uma arte pobre e sem

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18. D. João V cercado de símbolos de erudição: carência na realidade, sobra na representação. FBN

nomes destacados. Nesse sentido, foram infrutíferas as tentativas de d. João V, que buscou incentivar a criação de um grupo de artistas, fundando em Roma uma espécie de academia portuguesa: nada foi em frente."0

Até mesmo o Palácio da Ribeira — o Paço Real —, apesar de antigo, apresen-tava de original apenas o torreão que Terzi construíra para o encontro de embai-xadores.41 Com efeito, a história desse palácio remonta aos tempos de d. Manuel (1495-1521), que teria mandado edificar paços reais para a segurança dos sobera-nos. Construído entre 1500 e 1510, era um palácio vagamente traçado no gosto do Renascimento, com muitas arcadas, e que foi prolongado mais tarde com um gran-de terraço que se abria sobre o estuário do Tejo. Um enviado de Veneza descrevia-o de maneira desfavorável já em 1504: "Não se gastou muito com ele; é uma constru-ção muito baixa, com pouco desenho e pobre".42

E as gerações de monarcas portugueses sucederam-se: se d. João II! (1521-57) se esforçou por ampliar suas dependências, já d. Sebastião (1568-80) pouco ficou por lá. Foi do Paço que partiu esse monarca, em um sábado, 14 de junho de 1578, acompanhado de cavaleiros, nobres de primeira grandeza e todos os fidalgos, para nunca mais voltar.43 Por incrível que pareça, foi idéia de Filipe li, durante o domí-nio espanhol, "mandar fazer obras importantes nos seus paços da Ribeira". Sob a direção do arquiteto Filipe Terzi e à custa das rendas da cidade, entre tantos outros projetos aprovou a realização do famoso torreão, que ficava de frente para o mar e era considerado "obra mui grande, forte e custosa".44

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19. Paço da Ribeira e Palácio Corte Real na primeira metade do século XVIII: em destaque, o torreão do arquiteto italiano Terzi. Gravada e editada por Pieter van den Berge, FBN

É difícil precisar a importância do Palácio Real, sempre sujeito a descrições mais ou menos imaginosas. Alguns viajantes lamentaram a desproporção entre a cidade, a monarquia e seu Paço, e falaram dele sem manifestar nenhum entusias-mo : 4 ^ uma multitude de batimentos dispostos sem gosto e sem arquitetura [...] É antes um amontoado de pedras do que um palácio".'11 Outros cantaram-lhe louvo-res destacando, ao contrário, sua elegância e posição. Erguia-se na mais bela praça de Lisboa, no lado oeste do Terreiro do Paço, de onde o rei podia contemplar os barcos ancorados no rio ou avaliar o movimento do porto. A localização do Paço era, mesmo, dadivosa. Era o primeiro a ser visto por todo aquele que chegava a Lisboa pelos lados do Tejo e ficava quase à beira da água.

Embora o local fosse privilegiado, seu conjunto arquitetônico parecia decep-cionar. O grosso das descrições e desenhos de época apresenta o Palácio Real como um grande edifício de pedra, quadrado, com a altura de quatro andares, contando com quatro pavilhões e dois torreões, uma cobertura abobadada e "provido de sa-las e câmaras no seu interior".'16 Como decoração externa o edifício ostentava tão-somente um friso fino, rodeando a parte superior do torreão e os demais corpos, além das janelas — único elemento que chamava a atenção, em meio ao largo bloco de pedra. De resto, o Paço parecia uma edificação monótona, pesada, sem muita decoração e de reduzida elegância, a despeito dos alargamentos e benfeito-rias providenciados por d. João v: uma nova ala com pórticos, paralela ao rio, e uma torre de relógio.

Na opinião dos poucos viajantes que tiveram o privilégio de conhecer os apo-sentos reais, pelo menos os quartos pareciam agradáveis. Diz Merveilleux, um mé-

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20. D. Manuel I, 14* rei de Portugal, responsável pela construção de paços para os soberanos portugueses. FBN

22. Filipe I, rei de Portugal durante a União Ibérica {Filipe II da Espanha). FBN

24. D. Sebastião I: o rei esperado. FBN

21. D. Filipe l, rei espanhol de Portugal. FBN

23. IX João III: ampliações no Palácio Real. FBN

25. Dona Maria Ana, a esposa religiosa de d. João V. FBN

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26. A bela vista do Palácio Real de Lisboa: nas gravuras, um suvenir à venda. Pierre A. Vander, FBN

dico naturalista que prestou serviço no Exército francês, que o palácio era aconche-gante no seu interior: "No inverno as salas estão revestidas de tapeçarias que se reti-ram no verão. Refiro-me apenas às salas que antecedem os aposentos do rei e os da rainha. Logo que começa o anoitecer, coloca-se em cada sala um grande candelabro de prata cuja base se assemelha a uma caldeira emborcada". A não ser pela qualida-de da iluminação, que era feita com grandes tocheiros de prata, todo o resto desper-tava pouco interesse: "Os aposentos do rei, assim como os da rainha estão atravan-cados de móveis de toda espécie, podendo bem dizer-se que parecem armazéns".47

É certo que alguns analistas portugueses esforçaram-se em descrever os mó-veis do palácio, os tapetes e as pinturas que adornavam o Paço.48 Não obstante, a impressão geral era de que o Palácio Real pouco se destacava de outros edifícios, com seu desenho quadrado, previsível, como era moda no local. Assim como as demais moradas, o Palácio da Ribeira carecia de maiores cuidados com a limpeza: "Uma coisa, porém, me chocou; as escadarias e fachadas do palácio estão sujas e as primeiras cheias de lixo".49

Ocupava o monarca d. João v o chamado quarto do Forte, no andar superior do grande torreão. De lá, avistava o Tejo até a barra, em aposentos bastante confor-táveis e, esses sim, repletos de adornos só imagináveis por um rei dado à ostenta-ção.5" Já a Capela Real, contígua a um dos lados do Palácio e disposta em um pátio interno, era adornada de ouro, prata e pedras preciosas. A riqueza parecia estar por toda parte, mas a capela deveria se converter em um dos símbolos máximos de todo esse luxo. Embora a arquitetura e as pinturas fossem descritas como vulgares, o templo parecia impressionar por sua vastidão. Para além do altar-mor, bem no topo do coro, havia doze outros altares, todos ricamente ornados.

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27. Lançamento de uma nau ao Tejo. No meio, a embarcação; à esquerda, d. João V e a Família Real debaixo de um dossel, acompanhados da corte.

Por toda parte vê-se o povo, no Arsenal, às janelas e até nos telhados das casas, ou em pequenos barcos, no rio: a imagem de uma monarquia abençoada. FBN

Bem em frente ao Paço, podia-se ver um jardim de plantas tropicais, advindas das diferentes colônias do Império. Por fim, d. João houve por bem mandar cons-truir um Teatro da Ópera. Com sua morte, em 1750, coube ao filho d. José a con-clusão da obra, localizada em uma casa próxima ao torreão. Em 1753, um novo teatro foi levantado no outro extremo do Paço e inaugurado naquele mesmo ano, com a pompa que a ocasião pedia. Contudo, como faltavam atores e cantores lo-cais, a carência foi sanada com a contratação de profissionais italianos.

A pouca personalidade do Paço só se comparava à mediocridade da vida da corte. Nessa época a influência francesa penetrava decisivamente no país, pondo fim ao antigo predomínio espanhol. No que diz respeito aos costumes, por exem-plo, a moda francesa, que ditava o uso de vestidos longos e decotados e de cabelei-ras postiças, fazia o gosto da alta nobreza local. A corte portuguesa, porém, apesar de buscar seguir à risca as vogas da época, estava muito distante do modelo que admirava. Como dizia uma testemunha:

De resto, a corte de Lisboa é triste: não há nenhum concurso de nobreza, o rei come sozinho, raramente com a rainha, jamais em público. Ele sai pouco. Às vezes vai a "Salvaterra" fazer a caça [...] Nada é mais simples do que ver o rei de Portugal saindo na sua carruagem com seis cavalos, acompanhado do príncipe don Antonio (seu irmão), do duque Jaime e sua escolta não é maior do que cinco pessoas a cavalo [,..].Si

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Contava o viajante inglês Costigan que o rei d. João V passava o tempo todo na companhia de padres e mulheres e, não contente com isso, "erigiu a igreja de Lisboa, o Patriarcado, deixou seu exército reduzir-se a nada e protegeu o beatário, a Inquisição e a Nobreza". Descontando-se a visão deturpada dos viajantes, não poucos foram os testemunhos sobre a conduta pessoal do soberano, ou comentá-rios a respeito de sua proximidade com freiras reclusas nos conventos que se espa-lhavam pelo país, sobretudo Pauía Teresa, mais conhecida como a freírinha de Odivelas. Chegava a algumas dezenas o número de filhos bastardos do rei, assim como se acreditava que os excessos por ele cometidos é que teriam gerado proble-mas na sua saúde. Conforme dizia o inglês: "A fim de se tornar mais tempo apto na companhia das mulheres, tomou cantáridas, cuja ação o enfraqueceu tanto que o pôs num doentio estado de languidez".52 Os "amores freiráticos" estavam por toda parte e d. João não foi o único a dar vazão aos baixos sentimentos religiosos. As parteiras chamavam aos recém-nascidos de "conegozinhos da patriarcal" ou "frei-rinhas capuchas"; toda a gente se regalava com doces mais conhecidos como "bar-rigas de freiras", "papos-de-anjo" e "toucinhos do céu", especialidades dos conven-tos locais.5-1

Não é o caso de entrar no coro dos que viam apenas o lado caricato do rei; vale, sim, revelar como as questões mais pessoais do monarca transformavam-se em tema de Estado e geravam polêmica. Sobretudo porque já na época se sabia que a enfermidade do soberano representava uma mina para os frades e as confrarias. Ou seja, desde o tempo em que foi acometido do primeiro ataque de paralisia, co-meçaram logo as preces, procissões, donativos e gratificações.54

De maneira geral, os diferentes relatos encontrados legam uma visão um tanto bizarra desse soberano. Contava Courtils: "O rei tem um tamanho médio e é um pouco gordo. Não há nem um pouco de graça na sua figura. Lhe faltam dois den-tes na boca, que aparecem muito"35 Já Saussure, viajante francês que esteve na corte portuguesa nos anos 1730, não deixava por menos: "O rei é tido por pessoa espirituosa e de engenho, mas é completamente destituído de cultura [...] Ama excessivamente a magnificência e a ostentação".56

Destacar o gosto pela ostentação fazia parte dos diários desses viajantes, que, apesar de se encantarem com os excessos dessa corte, não se esqueciam de ironi-zar tanto luxo e desperdício. As construções reais deixavam transparecer um gosto faustoso, e ao mesmo tempo se ressentiam da falta de uma cultura mais antenada com os novos espíritos ilustrados. O convento-palácio-igreja de Mafra, por exem-plo, obra maior do "rei-sol" português, parecia desproporcional em toda a sua majestade, resultado de uma arte feita por encomenda, com materiais de fora e sob os cuidados de artistas estrangeiros. Mafra é mesmo a realização que mais ime-diatamente lembra o nome de d. João v, com seu projeto que previa a construção de um edifício gigantesco que excederia tudo que até então se conhecia em Portugal. Conta a história que foi a preocupação do rei com a falta de herdeiros — decorridos três anos de casamento com d. Maria Ana de Áustria — que o levou a dar ouvidos a freí Antônio de São José. "Ele terá filhos se quiser" teria sido a pro-

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28. Convento de Mafra: imagem e semelhança dos tempos fartos de d. João V. FBN

29. D. João V numa imagem alegórica com 30. Plano geral do Real Palácio índios, que representam a diversidade de seu e convento de Mafra, 1865: grandiosidade vasto império. Pierre Antoine Quillard, FBN a qualquer custo. FBN

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fecia, que implicava também uma régia retribuição: a edificação de um templo, como era de uso. O rei anuiu ao pedido e, com a previsão realizada, a promessa foi cumprida com requintes da enriquecida corte portuguesa.57 O episódio serviu de propósito para narrativas diferentes, mais ou menos justificadas pela docu-mentação. O escritor José Saramago, em seu livro Memorial do convento, desta maneira inicia a sua história: "D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, d. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou. Já se murmura na corte, dentro e fora do palácio, que a rainha, pro-vavelmente, tem a madre seca, insinuação muito resguardada de orelhas e bocas delatoras e que só entre íntimos se confia".5!! Se o que se narra é mito ou metá-fora, pouco importa; vale mais entender o tamanho das pretensões impressas nesse edifício.

A escala colossal da obra e os meios para realizá-la excederam tudo quanto se conhecia na época. Carpinteiros, entalhadores, torneiros, serralheiros, pedreiros, vídraceiros foram arregimentados, sendo estimado em cerca de 45 mil o número de trabalhadores empregados nas obras,59 de maneira livre ou mesmo à força. No entanto, para a realização de tal plano mais uma vez foi necessário recorrer ao auxí-lio externo: artistas, obras de arte e esculturas vieram de fora. Além do mais, falta-va de tudo e, com exceção da pedra, todos os outros materiais foram trazidos do estrangeiro. Mas eram sobretudo os sinos o feitiço dos olhos de d. João V. Em Mafra colocaram-se 114 sinos, dispostos pelas ventanas e no interior das torres suspensos em grossas vigas.6" O conjunto dos carrilhões era monumental e cada torre contava com seus sinos e sua função: um para as refeições, um para ofícios divinos, outro para marcar os diferentes horários do dia. Com tanto acúmulo, as badaladas eram ouvidas a quilômetros de distância, como se não fosse possível esquecer o monu-mento e, com ele, os feitos do monarca.

As obras, iniciadas em 1716, só terminaram em 1750, e a sagração da basílica se deu em 1730, no dia do aniversário do rei. Mafra se montava e era exibida tal qual cenário ideal para a afirmação da realeza portuguesa. Com seus mármores vindos da Itália, a madeira proveniente do Brasil e seu imenso campanário, o con-vento foi um ícone fiel dessa nova riqueza fácil. Dizia Alexandre Herculano:

é um monumento rico mas sem poesia, e por isso sem verdadeira grandeza. É um monumento de uma nação que dormita após um banquete [...] e sob outro aspecto é a beataria duma velha tonta, afetando a linguagem da fé ardente e profunda.61

Mafra era com efeito, e sem contestação, uma espécie de troféu maravilhoso, um presente de um rei abastado e, ainda melhor, um exemplo do que foi Portugal nos tempos anteriores ao terremoto de 1755.

A imponência do palácio-convento era tal que a representação do rei acabou se misturando à sina do edifício, sendo ambos lembrados mais pelo desperdício do que em função da projeção cultural. O fato é que a lenda de um d. João V freiráti-

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31. Alegoria para a chegada da esposa do rei João V a Lisboa em 1708. FBN

co, devasso e balofo, um monarca novo-rico e alheio aos problemas locais, foi au-mentando. Para piorar, com a idade avançada, outras imagens foram juntando-se à figura desse monarca, então apresentado como um soberano simples e receptivo: "Era um velho de setenta anos de idade que recebia os estrangeiros com cortesia e benignidade e como se não tivesse mais nada que se ocupar".62 Melhor do que desempatar a partida é ficar com esse conjunto de definições.

Tampouco a rainha, apesar de mais reclusa, escapava aos comentários: "a des-peito de ser alta e elegante, é muito devota e se ocupa exclusivamente da educação dos príncipes".63 Ironizavam-se ainda as poucas aparições públicas da soberana:

A rainha também sai raramente. Ela vai todos os sábados depois do jantar a um con-vento, em devoção [...] A carruagem da rainha é precedida de uns pajens que seguem a pé e um comandante a cavalo. Nas sextas feiras santas a rainha, seguida de parte da corte vaí à pé visitar as Igrejas [...].64

Na visão deixada pelos viajantes, o que mais chamava a atenção na figura da rainha era sua religiosidade extremada, que vinha no lugar da pouca elegância: "Recuso-me a acreditar que ela alguma vez tivesse tido beleza e a ascendência da Casa da Áustria reveia-se-lhe nos beiços grossos".65

Mas não há rei sem nobreza e essa, em Portugal, era também sujeita a olhares impiedosos e maledicentes. Dividia-se em três ordens: a primeira a dos duques, a segunda a dos marqueses, a terceira a dos condes. Era dentre eles que o rei escolhia

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os que haviam de se ocupar dos principais cargos na corte, da guerra e dos gover-nos ultramarinos. Duques eram apenas quatro e os demais possuíam essa dignida-de a título de mercê, o que significava que não passavam a graça aos descendentes. Os marqueses eram em número de dez e os condes chegavam a trinta.

Essa corte mais diminuta tinha o direito de cercar o rei, ao lado dos oficiais que compunham a Casa Real: o mordomo-mor, seguido do estribeiro-mor, quatro camaristas (cujo serviço era semanal),66 um grande número de servidores meno-res, criados de quarto, pajens, porteiros... Desses todos, o cargo mais importante era o do mordomo-mor, que se mantinha vago desde 1724. Contava-se à boca pequena que o senhor que desempenhava tais funções teria fugido com uma das mais belas mulheres do reino, esposa de um fidalgo. O rei mandou persegui-lo, mas como não tinha mudas para seus cavalos acabou por jamais alcançá-los. O desenlace ficou famoso em todo o reino:

O marido da fugitiva tomou luto logo que teve conhecimento do rapto e em conformi-dade com os preconceitos do país, ou, como dizem os portugueses, se tem barbas não poderá aparecer sem primeiro matar o raptor e matar ou enclausurar a adúltera,67

De maneira geral, o monarca português era bem servido em sua criadagem. Vários viajantes descrevem a quantidade de serviçais que protegiam o rei e o seguiam pelas ruas. Lindenberg, um viajante que esteve em Portugal nesse contex-to, esmerou-se em relacionar os diferentes profissionais da corte. Além do mor-domo-mor havia uma seqüência de subordinados: capelão-mor, deão da capela; esmoleiro-mor (distribui as esmolas); professor do rei, camareiro-mor (veste e desveste o rei); estribeiro-mor (conserva e inspeciona os coches e cavalos da Casa Real); porteiro-mor; veador (controla a mesa do rei na falta do grande maitre); mestre-sala (mestre-de-cerimônias, conduz ao quarto do rei os embaixadores e políticos); reposteiro-mor (avança a cadeira e a poltrona quando o rei se senta); copeiro-mor (prova o vinho e serve a água); armeiro-mor (cuida das armas reais); trinchante-mor (corta as carnes e serve o rei); monteiro-mor (cuida das florestas e das caças do rei); apresentador-mor (cuida dos animais do rei entre outros); almo-tacel-mor (cuida das roupas do rei); pajens de lança (levam as armas e lanças do rei quando ele vai à guerra); três capitães da guarda e uma companhia de 45 arqueiros; provedor das obras (faz os edifícios dos palácios e casas de campo); con-destável (maior autoridade no exército), admirai (tem a mesma jurisdição sobre a marinha que o condestável no exército); marechal, coronel-mor (comanda o regi-mento); alferes-mor; meirinho-mor (juiz régio encarregado de dar execução às sentenças do soberano), cozinheiro-mor (supervisiona todas as cozinhas reais); chamberllans (cavalheiros que compõem a polícia).

A corte contava ainda com funcionários da casa da rainha, proporcional-mente arregimentados à criadagem do rei. A esse circuito íntimo somavam-se um embaixador da Espanha, um enviado da Inglaterra, um residente da Prússia e ou-tro da Holanda. A França costumava mandar representantes oficiais, mas o último

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l. Bíblia de Mogúncia, com encadernação do século XIX: a primeira a trazer data lugar de impressão e nome do impressor. FBN

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6. O Príncipe Perfeito. Emblemas de d. João de Soiorzano, parafraseados . em sonetos c oferecidos ao príncipe d. João pelo bacharel Francisco. Antônio

de Novaes Campos, no ano de 1790. FBN

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7. Livro de horas, séculos XIV-XV. Miniaturas

representando figuras humanas, anjos e animais

fantásticos. FBN

8. Livro de horas, século XIV, 1378. São Jorge matando um animal

fantástico. FBN

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9. Frei Manuel de Cenáculo, da Real Mesa Censória egrande mecenas no mundo dos livros. BNL

10. Dr. Antônio Ribeiro dos Santos, bibliotecário responsável pela Real Biblioteca Pública. BNL

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PERSONAGENS PORTUGUESES

23. Camponeses em Portugal e exemplo de desembargador:

pólos opostos dessa sociedade. William Morgan Kinsey, FBN

24. Monges franciscanos. William Bradford[ FBN

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25. Um nobre português. Cuillaume Bradford, FBN

26. Costume militar português Guillaume Bradford, FBN

27. Casal português. Gravura de Jacques Grassei Sainl-Sauveur, FBN

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que chegara em 1724 teria se desentendido por conta do protocolo português. Havia ainda a figura do núncio, que acumulava as principais funções religiosas dentro da hierarquia do Estado.

Destacado era, também, o papel dos diversos conselhos que cercavam o rei e compunham o governo. Desses, o mais relevante era o Conselho de Estado, criado já na época de d. João III mas estabelecido no reinado de d. Sebastião, por meio do alvará de 8 de setembro de 1569. Era o órgão que propunha, em tempos de paz e de guerra, as grandes medidas do governo. A ele seguiam-se outros três: o Con-selho da Guerra, o da Fazenda e o dos Três Estados, que, de certa maneira, corres-pondiam às secretarias do Estado, nos tempos de d. João v.

A despeito dessa hierarquia bastante estabelecida, no conjunto a visão da corte era pouco animada, sobretudo quando comparada aos reluzentes modelos euro-peus de então. Oficialmente o rei saía pouco, e quando o fazia levava apenas qua-tro ou cinco pessoas para acompanhá-lo a cavalo. A rainha se afastava ainda menos do Paço. Com tamanho comedimento, Lisboa se convertia em uma capital sem grandes divertimentos, ao menos na visão dos estrangeiros:

Lisboa não tem nenhuma diversão a não ser a Comédia Espanhola. Os Gentis-homens costumam ir a esse entretenimento e consomem o resto do dia a passear em suas car-ruagens, e vão em direção do Rossio aonde ficam até de noite sem sair de seus carros.68

A fidalguia, por sinal, era bem discreta em seus modos e costumes: "Não é rica apesar de viver com pompa; veste-se bem e imita de perto os franceses".69 Além

33. O palácio do infante d. Pedro em Lisboa. Dirck Stoop, FBN

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disso, e conforme comentávamos, as diversões eram poucas; apenas a caça e um pouco de música, na ópera. Por isso mesmo, o quadro geral não parecia muito ani-mador, ainda mais para o estrangeiro acostumado à vida solta e ao brilho de Versalhes.

Não há ponto de comparação entre a corte em Portugal e da França, Nós não vemos jamais comer, nem o rei, nem a rainha. Nenhuma pessoa vê o rei se levantar, nem se deitar. A rainha não tem toalete pública [...] Suas Majestades vivem em sua corte como particulares [...].70

Faltava o teatro da corte e de uma realeza que fazia da sua vida privada um evento público, digno de ser lembrado.

Admiravam-se os viajantes, porem, de que nem por isso os nobres lisboetas deixassem de ostentar certa grandeza, assim como o rei, que para muitos não pas-sava de um "novo-rico da realeza". Comentava-se que até simples artífices se vestiam como grandes senhores. Significativo é o episódio relatado por Saussure, referente à visita de um barbeiro a seus aposentos. Depois de requisitar um profissional, teve de aguardar um quarto de hora, quando viu adentrar o recinto um sujeito que mais se confundia com um fidalgo da corte. Vestia casaca preta, uma capa de seda da mesma cor, portava uma longa cabeleira negra e uma bela espada. O que mais impressionou o viajante foi "um grande e excelente par de lunetas que trazia enca-valitado no nariz, embora não aparentasse ter mais de trinta anos".71 O barbeiro exe-cutou o serviço, apesar do aparato todo, e serviu de pretexto para reflexões sobre a nobreza local, que, carente de cultura, gostava de portar óculos para dar a impressão de muita leitura. Segundo o mesmo observador, a mania de ostentação revelava-se não só no traje "como também no desejo de passarem por sábios, embora, na reali-dade, sejam ignorantes completos. Os eclesiásticos, os jurisconsultos, os médicos, membros da nobreza e muitos outros desejam aparentar de estudiosos, Para dar tal efeito usam todos, qualquer a idade que tenham, um grande par de lunetas que nunca tiram quer vão a pé, a cavalo ou de coche, quer estejam à mesa ou em sim-ples conversa [...]".72

Com óculos ou sem, pode-se dizer que os relatos dos viajantes estrangeiros interessados nesse reino mais distante e excêntrico convergem nos elogios e nas crí-ticas. Boa parte das qualificações positivas recai sobre o clima ameno de Portugal, a despeito da falta de chuva. No entanto, no tocante à situação econômica era o esta-do ruinoso do país que se impunha, opinião compartilhada por alguns portugueses mais ilustrados. As terras estavam incultas, os caminhos impraticáveis, as manufa-turas arruinadas e uma terça parte do reino dominada pela Igreja, que não contri-buía para as despesas. Além do mais, parcela significativa do que se comia e vestia, as madeiras para a construção e boa parte do que era necessário para a vida cotidia-na vinham de fora: da Inglaterra e da Holanda. Para onde quer que se olhasse, o cenário parecia pouco animador, acima de tudo quando comparado às demais monarquias européias, contaminadas pelos ares da Ilustração. Como concluía um

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Mas é possível lembrar mais. Vários viajantes comentavam a respeito da Bi-blioteca Real, pertencente ao Paço da Ribeira, não sem antes revelar o estranha-mento perante um acervo que parecia pouco combinar com o aspecto mais taca-nho do reino. Ficava situada no terceiro piso do Paço, onde os livros eram guardados com esmero e repartidos em muitos compartimentos pequenos de madeira de nogueira. Vamos a ela...

A "LIVRARIA REAL": UM ESPELHO POUCO TRANSLÚCIDO

Localizada em ponto estratégico do Palácio, a biblioteca não escapava aos dife-rentes testemunhos, que, em uníssono, destacavam a quantidade de livros lá acu-mulados, assim como sua qualidade. Por sinal, aí estaria um dos grandes feitos desse reinado. Apesar da reconhecida pouca cultura e erudição de d. João v, deve-se a esse monarca o reerguimento da Real Livraria, que sob seu reinado experimentou uma verdadeira política de aquisição de manuscritos, livros, gravuras e mapas.

Na verdade, a iniciativa de reunir uma série de obras e conformar uma bi-blioteca real não foi idéia de d. João V — fez parte da própria história moderna da realeza portuguesa. A despeito da instabilidade política, desde d. João I ("O da Boa Memória", 1385-1433), na época da reconqLÜsta aos mouros, começou-se a cole-cionar obras que servissem de esteio para a educação dos infantes de Avis. Com d. Duarte ("O Eloqüente", 1433-8), o rei escritor, a tarefa teve continuidade, visando sobretudo recuperar a história daquele reino. Entretanto, se coube a esses dois soberanos o mérito de organizar o primeiro núcleo da biblioteca e assim aumen-tá-lo, foi d. Afonso v ("O Africano", 1438-81) quem libertou a Livraria de seu caráter exclusivamente limitado ao Paço e a colocou à disposição dos estudiosos e da secularização da cultura.™ Além do mais, esse mesmo rei, percebendo a importância da tarefa, concedeu prerrogativas especiais aos livreiros, isentando-os de taxas de importação e de circulação de livros. Diz Ruy Pina, na sua Crônica do Senhor Rei D. Afonso V, que "ele foi o primeiro rei destes reinos que ajuntou bons livros e fez livraria em seus paços".77 Não é o caso de tomar o documento ao pé da letra; o mais certo é supor que esse soberano incrementou a biblioteca e a franqueou aos eruditos e pessoas da corte mais ligadas ao estudo. A biblioteca também não poderia ser considerada pública; o que existia, sim, era um espaço separado, com algumas mesas destinadas à leitura. Nada como recorrer a um exemplo, neste caso uma carta isolada de quitação de despesas do castelo, em que aparece a seguinte referência: "Item deu e pagou cinqüenta e cinco réis a Simon carpinteiro do feitio de duas mesas, que fez para a casa onde está a nossa livraria, que foram postos em ela",78

Documentos da época revelam que a biblioteca contava com algum pessoal a seu serviço: um escrivão de livros, dois iluminadores e dois calígrafos. Foi ainda nos tempos de d. Afonso v que ocorreu um dos feitos mais importantes nessas áreas: a difusão da imprensa.79 De fato, com isso muito mais facilmente se enche-

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ram as estantes da biblioteca, assim como se abriu um comércio de livros em esca-la bem mais ampla. E não foram apenas os franceses que iniciaram os portugueses na arte de Gutenberg; livreiros locais seguiram quase imediatamente os passos e as vogas européias. O monarca, mais uma vez, eximiu tais profissionais de taxas e sisas, tudo em nome "dos bens proveitosos ao reino".30 Por essas e por outras é que a Livraria Real iria aumentar sucessivamente, correspondendo não só ao gosto mais ou menos apurado dos monarcas como também ao progresso intelectual, vinculado ao descobrimento da arte tipográfica.

Nessa já longa sucessão de nomes e feitos falta lembrar a atuação de d. Manuel ("O Venturoso", 1495-1521), que, seguindo a tradição de d. Afonso V, manteve as regalias concedidas aos livreiros e as estendeu aos i.mpressores. O problema é que se conhece pouco acerca do conteúdo dessa primeira biblioteca, uma vez que qua-se não restaram listas das obras então existentes no acervo real. Sabe-se porém que esse rei tinha por prática fazer partilhas e doações de seus livros, como prova de sua magnificência real, e também como mostra do grau de elevação do poderio português.

Ao papa fascinava com o esplendor das maravilhas orientais; ao potentado africano ofuscava com os produtos da civilização do ocidente. Entre os objetos remetidos ao negus — o soberano da Etiópia — figuravam ricas peças de vestuário e de ornamen-tação palaciana, armas e instrumentos de guerras, paramentos e baixelas de culto, retá-bulos, sinos, órgãos, uma oficina tipográfica e livros.81

Dessa maneira, fica-se sabendo não só da existência de livros no Paço como de suas constantes baixas. D. Manuel esmerou-se na encadernação dos livros per-tencentes à sua biblioteca e é bom que se diga que o valor venal das obras estava, então, ligado não só ao conteúdo e à raridade como também à concepção artísti-ca: iluminuras, encadernações e ornamentos.

Até mesmo d. João m ("O Piedoso", 1521-57), cujo nome ficou vinculado à introdução do Santo Ofício no país, a despeito de seu reconhecido fanatismo, con-tinuou protegendo a biblioteca.82 No entanto, no período da União Ibérica (1580-1640), a biblioteca foi pouco valorizada, o que acarretou roubos e perdas. Parece ter sido prática dos soberanos espanhóis levar livros de Portugal para seu país, como expressa o trecho de uma carta que Filipe II (de Portugal, M da Espanha, "O Pio", 1598-1621) endereçou à sua filha em 4 de julho de 1582: "Diga que tenho comigo livros de pintura que deve levar quando se for".83

Assim sendo, a atitude de João !V ("O Restaurador", 1640-56) de refazer a Livraria Real, graças aos livros retirados de uma coleção existente em Vila Viçosa, foi motivo para nota e comentário. Em 1648, oito anos depois de restaurada a monarquia, d. João IV tratou de transferir a biblioteca para Lisboa, até por moti-vos de segurança,84 Era vistosa a Livraria de Música, que contava com funcionários especiais, Isto é, o pessoal da Biblioteca não se limitava ao bibliotecário, seu aju-dante e aos serventes encarregados da limpeza e da arrumação; havia dois indiví-duos responsáveis pela reforma da livraria da solfa, ou melhor, encarregados de copiar as partituras.85

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lhante à biblioteca da corte de Viena. Em uma das salas foi instalada a "Casa de Música" e em outra imediata estavam depositados 6 mil títulos, das mais antigas e raras edições: relíquias da Casa de Bragança. Aí ficavam também os manuscritos que o rei começava a mandar comprar em várias cortes da Europa.87 Comentava-se na época que o monarca projetara tornar pública a sua Livraria, construindo para isso um compartimento próprio, mas que teria desistido ao verificar que pre-judicava a galeria do Paço, tirando-lhe a vista para o rio.S8

De todo modo, o plano de reconstrução parecia estratégico, tanto que d. João passou a preocupar-se com a dimensão das grandes bibliotecas européias. Nos pri-meiros meses de 1727 foram enviadas ordens solicitando dados e material sobre bibliotecas públicas e particulares, consideradas nos seus diversos aspectos: as ins-talações, as estantes, a conservação dos livros, a organização e o funcionamento. O fato é que o rei parecia saber que a comparação e a experiência acumuladas rever-tiam em um saber inestimável sobre o tema e acerca da organização e classificação de uma biblioteca. O conde de Tarouca, por exemplo, enviaria diretamente de Viena muitos livros, além de tapeçarias de Gobelins, meias de seda, librés, vestuários, ar-tefatos de ouro e prata para serviço de mesa e para a toalete do rei. A fama de mece-nas do rei português era tal que o conde de Tarouca se queixava de não ter tempo para atender a todos os que o procuravam: tecelões e tapeceiros, engenheiros e ma-temáticos, físicos, mecânicos e médicos, e ainda autores, impressores e livreiros que ofereciam livros e manuscritos.89

Já Francisco Mendes de Góis, agente em Paris de 1730 a 1735, satisfez cons-tantes pedidos do monarca, fornecendo manuscritos, desenhos e livros. Sebastião José de Carvalho, o futuro marquês de Pombal, ainda na Inglaterra, remetia em 1743 uma coleção de bíblias hebraicas e outras obras referentes a essa religião. Manuel Pereira de Sampaio, representante de Portugal junto à Santa Sé, teve como tarefa copiar documentos existentes nos arquivos e bibliotecas da Cúria Romana,90

Já Antônio Galvão de Castelo Branco, enviado a Londres desde 1721, garantia que bibliotecas como as de Oxford e Cambridge diferiam, e muito, das dos conventos portugueses. Chegando a esses locais, não deixou por menos: descreveu os edifí-cios, as salas, os pavimentos, tetos e janelas. Falava dos mobiliários, do material que revestia as estantes e das escadas mais apropriadas. Estranhava ainda a ausência de livros proibidos e o fato de apenas as obras raras ficarem presas com correntes. Bichos também pareciam não incomodar na conservação daqueles acervos; a umi-dade — prontamente combatida com a alocação de braseiros e fogões, espalhados pelas salas — representava perigo maior. O enviado oferecia detalhes acerca dos funcionários, horários, iluminação, globos e objetos decorativos; entre bustos, re-tratos de benfeitores e fundadores.'" Enfim, no documento descrevia-se, em deta-lhes, tudo o que compunha a estrutura de uma boa biblioteca. Na mesma época, outro emissário corria os Países Baixos, com igual missão.

Da corte partiam listas de pedidos e os livreiros forneciam catálogos conten-do obras isoladas, lotes importantes ou até bibliotecas inteiras. Foram comprados livros de temas religiosos, políticos, militares, econômicos, científicos e técnicos,

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incluindo um tratado da construção e principais usos de instrumentos matemáti-cos. Da Inglaterra e da França vieram coleções valiosas de manuscritos. E muitas vezes eram os próprios cientistas estrangeiros e os diplomatas portugueses que tomavam a iniciativa de remeter livros ou de sugerir sua aquisição.92

Em face disso, comerciantes especializados no mercado livreiro e atentos ao mecenato do rei português passaram a freqüentar a corte a partir dos anos 1720. Esse é o caso dos negociantes Lerzo e Morganti, que trouxeram do estrangeiro, e conforme se depreende de documentos legados por esses profissionais, "livros pre-ciosíssimos e raríssimos dos reis antigos, objetos de rara encadernação e coleções inteiras de livros"."

O encargo seria mais tarde centralizado pelo jesuíta João Batista Carbone, que se incumbiu de organizar as diferentes remessas. Muita verba real foi então gasta em encomendas de livros, cópias de manuscritos, estampas, atlas, músicas sacras... em suma, uma longa lista de peças de erudição, proporcional ao ouro que escorria do Brasil, e aos tempos que acenavam com a paz, após o longo período de guerra da Restauração.^4

Nessa época, chegaram à Real Biblioteca a primeira edição de livros como o Catholicon de frei João de Janua, feita no ano de 1460; a Bíblia impressa em Mogúncia em 1462; estampas e estudos de Rafael, Ticiano, Michelangelo; escultu-ras como as de Regaut, e manuscritos relativos à história de Portugal. Mas as peças de estimação eram os Livros de horas que haviam pertencido a Francisco i, rei da França, com estampas de muitas iluminuras. Além das raridades adquiridas, o íoberano mandava fazer cópias, no exterior, de tratados e obras relevantes para os interesses políticos do reino. Era também vastíssima a coleção de "livros harmôni-cos de todas as funções eclesiásticas", para uso da capela.95

O fato é que a Livraria foi aumentando até chegar a ser considerada "uma das maiores bibliotecas da Europa" em número e na qualidade dos livros, "das mais preciosas" que se conheciam no continente,96 composta de muitos milhares de volumes, que abrangiam vastos domínios do saber — Teologia, Filosofia, História, Direito Canônico e Civil, Filologia, Literatura, Medicina e Ciências. Por sinal, tor-naram-se famosas as coleções de gravuras que constituíam, indubitavelmente, uma das maiores preciosidades da Real Biblioteca. Foi em 1724 que os representantes diplomáticos de d. João V nas principais cortes européias receberam ordem de Lisboa para formar e remeter desses países coleções de estampas aparecidas nos últimos trinta anos, limite cronológico que foi logo alargado, visando a um perfil mais enciclopédico do acervo. Até 1728 chegaram a Portugal, por intermédio de d. Luís da Cunha e Francisco Mendes de Góis, cerca de 150 volumes de gravuras francesas, organizados pelos célebres gravadores e mercadores parisienses Mariette pai e filho) e decorados por A. M. Padeloup, futuro encadernador de Luís xv. A essa

compra acrescentou d. Luís da Cunha oito tomos contendo a obra gravada de Rubens, adquirida por ele em Bruxelas e também devidamente ordenada pelos Mariette. Conhecidos comerciantes e profissionais especializados nesse mercado, Jean e Pierre-Jean Mariette, famosos por colaborar com outras bibliotecas reais,

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foram logo contatados por emissários de d. João v. A idéia era trazer para Lisboa a decoração e o modelo áulico franceses, que implicavam possuir gravuras e obras para alegrar as paredes e as livrarias reais. A partir do primeiro contato, uma cor-respondência freqüente foi estabelecida, tendo por fim a formação de uma boa co-leção de estampas em Portugal. O resultado imediato foi a expedição de 21 volumes em 1727 e de onze outros em I728.'7

Mas a operação era mais complexa, pois acarretava a escolha e a organização das estampas, a redação de um índice, a montagem, a caligrafia e a encadernação de um total de 106 volumes da coleção. Esse trabalho tomou quatro longos anos, e foi realizado por especialistas vinculados a Jean Mariette, que garantia não apenas o fornecimento como também a sistematização do material, já era si volumoso. José de Figueiredo, que acompanhou a organização do acervo em Lisboa, afirmava que "Rubens, Rembrandt, Callot ocupavam, cada um, muitos tomos {só de Callot existiam 1439 gravuras agrupadas em dois volumes) e que a obra gravada após Rubens compreendia oito volumes". Chegou ainda, após a remessa expedida por Jean Mariette, outro gabinete, composto de setenta pinturas de 45 mestres da esco-la nórdica do século xvn, ao que o mercador associou outros 34 pintores, afirman-do que esses artistas seriam necessários para completar a "perspectiva da coleção".98

Todo esse material ganhou encadernação própria e recebeu a cor de marro-quim, como as armas reais de d. João V, confirmando a propriedade e os vínculos da política cultural desse monarca com os ditames das vogas européias nesses cam-pos. Afinal, e como afirmava um contemporâneo, essa parecia ser "uma das mais amplas e melhores escolhidas coleções qLie se podem encontrar".99 Com efeito, d. João tinha como pretensão estabelecer, em curto espaço de tempo, um acervo que condissesse com a qualidade e os rigores metodológicos das demais livrarias reais, que, como tais, pareciam atestar importância e ilustração.

Nesse meio-tempo, o conde de Tarouca comprou na Holanda a coleção de estampas conhecida por Atlas Boendermaker, nome do seu organizador, constituí-da por mais de uma centena de volumes.1110 Pouco antes do terremoto haviam che-gado 42 volumes de gravuras inglesas, mandados por Antônio Galvão de Castelo Branco, enviado português em Londres. Com tantas aquisições, o acervo de icono-grafias estava finalizado em meados do século xvm, revelando algumas preferên-cias. Além de poucos quadros de mestres como Rembrandt, Rubens e Van Dyck, a grande incidência era de obras flamengas de gênero e de paisagem, de pintores que trabalharam na Itália durante o século XVfi, como Paul Bril, Jean Brueghei de Velours ou David Teniers, o Velho. Estavam presentes, também, alguns pintores holandeses, comprados em lojas londrinas; a ausência sentida era a dos italianos, re-presentados apenas por três pintores isolados: o bolonhês Francesco Albani, Filippo Lauri e Luca Giordano.

A tarefa tornava, assim, amplitude desmesurada para os padrões locais e reve-lava a intenção de d. João v de caracterizar sua Biblioteca como um "ganho da civi-lização". Era sem dúvida esse um dos maiores motes do soberano, que, respaldado por d. Luís da Cunha, seguia à risca uma política que visava dar proteção a artis-

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tas, tal qual outros grandes colecionadores europeus da época: a rainha Cristina, o duque de Orleans, o grão-duque da Toscana, o príncipe Eugênio da Savóia. Como diplomata, d. Luís da Cunha levava ao reino uma política esclarecida e mais cos-mopolita, que implicava fazer da curiosidade cultural um ato político. Com ela, d. João conheceu e adquiriu não só artigos de luxo, tão ao gosto de sua corte dada ao fausto, como se iniciou em um movimento mais aristocrático de abertura à cultu-ra européia, que lhe era contemporânea. Tal movimento, mais evidente durante a primeira parte de seu reino, foi então denominado "As luzes joaninas" e gerou esse vasto programa de renovação de bibliotecas, particularmente traduzido na Real Livraria. É nela que se inscreverá esse caráter enciclopédico e didático presente nas coleções de livros e de estampas.

Ali estavam reunidos milhares de volumes, colocados à disposição dos erudi-tos e de alguns poucos homens de letras, que recebiam por esse gesto um exemplo do que era considerado um favor insigne. Com a morte do bibliotecário Antônio Marques Lésbio, d. João V nomeou para seu lugar Manuel de Sousa Pereira, que deu continuidade aos trabalhas de catalogação e de compra de livros e obras para o acervo da Real Livraria.

Não obstante, tantos elementos favoráveis levam a perceber certa oscilação nos comentários que cercam o soberano, sobretudo quando se trata de lembrar e exaltar seus feitos concernentes à Real Biblioteca. São os cronistas locais que se en-carregaram de destacar o gosto do rei pelos livros, como se, assim, apagassem outra representação, mais negativa. Panegíricos e demais documentos oficiais cantam louvores ao soberano e a seu cuidado para com a Livraria:

Estimou como verdadeiro sábio os livros mais do que quantas preciosidades lhe comu-nicou felizmente a fortuna, não se contentando sem os ter no próprio Palácio. Havia nele só um pequeno resto da Livraria antiga da Sereníssima Casa de Bragança; mas o mesmo Rei, o Senhor d. João v a aLimentou com muitos volumes, que mal cabem em uma grandíssima sala no edifício chamado o Forte, não obstante estar toda pelo meio dividida em estantes para se poderem acomodar. Louvam-se nela as edições mais raras, e um grande número de manLiscritos, além de imensidade de livros políticos e eclesiás-ticos, que fez tirar de todos os estados da Itália e entre eles se acham Diários Pontifícios, Rituais, e Cerimônias que todos fazem um avultadíssimo corpo [..,].""

As opiniões se dividiam, pois, em dois grupos. De um lado, estrangeiros como o genovês Viganego, agente da França em Lisboa durante cinco anos, traça-vam descrições impiedosas com relação à formação do monarca: "Um bom na-tural, não lhe faltando senso de espírito, falta-lhe porém educação [...] tem mais interesse pelas cerimônias religiosas do que pelos negócios políticos".102 Na verda-de, não foram poucos os viajantes que, inspirados na má fama do soberano por-tuguês, o caracterizaram como uma personagem movida somente por caprichos. Em 1729, o francês Silhouette lembrava a infinidade de objetos preciosos que o rei mandara comprar no estrangeiro, incluindo livros raros e manuscritos, mas re-cordava-se também do pouco cuidado que dedicava aos objetos depois de adqui-

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ri-los, como se a compra fosse mais importante para a reputação do que o desfru-te de seu uso.103 Por outro lado, as fontes portuguesas tendiam a fazer o oposto: exageravam as aptidões régias, destacando a formação do rei em latim, espanhol, francês e italiano.

Não vamos aqui chegar a um veredicto final sobre os conhecimentos de d. João. Mais importa destacar como, a despeito dos problemas, é inegável a vontade áulica de apoiar uma renovação científica em Portugal. No que se refere aos livros, o interesse particular do monarca ievou-o a subsidiar publicações e a incentivar a arte da impressão e da encadernação no país. Assim, se é possível dizer que os livros constituíam uma espécie de ornamento do Paço, ao lado das pinturas e tapeçarias e de toda a ostentação que celebrizou o nome de d. João v, não se pode arriscar ficar exclusivamente nessa chave.

D. João era mesmo movido pela preocupação com o prestígio que advinha dos seus atos públicos, assim como era permeável ao espírito de imitação relativo aos modelos que não faltavam em outras cortes européias. Contudo, seria redutor acreditar que o monarca se limitou a ver nos livros troféus ou jóias reluzentes para seu reinado. Mesmo descontados os excessos dos panegíricos e documentos ofi-ciais, nota-se como, já pouco depois de ocupar o trono português, d, João revelava aplicação no estudo que fazia de escritos históricos e políticos. Por sinal, gostava das histórias dos reis seus antepassados, nas quais procurava encontar exemplos de galhardia e honradez. Alguns cronistas locais arriscavam até afirmar que essa incli-nação era tal que chegava a ser excessiva, ou assim se entendeu na época, quando em 1712 o jovem soberano sofria de "flatos hipocondríacos" com acessos de melancolia e insõnias, o que levou os médicos a proibi-lo de ler.104 Por certo a lei-tura não era a causa do mal estomacal que afligia o rei e também ele parece ter duvidado dessa hipótese, visto que dois anos depois o secretário de Estado anun-ciava ao conde de Tarouca a chegada de uns livros "com os quais S. M. está mui gostoso e divertido". Mas a imagem vingou. O cônsul francês Duverger comunica-va à sua corte, em 1715, que d. João se dedicava tanto a tal atividade que chegava a ler durante nove horas, sendo de temer um prejuízo à sua saúde.

Se alguns testemunhos não viam no rei nenhum laivo de erudição, outros des-tacavam sua relação íntima com os livros. Em 1726, um estrangeiro afirmava que o monarca "se diverte muito dentro de sua biblioteca". Alguns de seus seguidores comentavam que sua maior ocupação era aprender a lição dos livros, enfronhan-do-se nela de tal modo que, no dizer pitoresco de um biógrafo coevo, "algumas vezes jantou depois das quatro horas da tarde, cuidando ser muito mais cedo".105

Representantes da corte comentavam, ainda, como d. João v teria utilizado o sistema da leitura oral, sobretudo durante a doença que o afligiu nos últimos anos de vida. Outros testemunhos afirmavam ser extraordinário o número de obras lidas por esse rei e que todas as matérias o interessavam, predominando, no entan-to, a curiosidade por temas religiosos e históricos. Em julho de 1744, quando se encontrava em tratamento nas Caldas da Rainha, o soberano sofreu três problemas de saúde e houve quem tivesse considerado que esses "talvez fossem causados por

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excessos de ler e mandar ler, perdendo o sono [...]".106 Pelo sim, pelo não, o fato é que, além de cartas, o monarca teria legado alguns escritos de sua autoria: "Re~ flexoens para o inalterável exercido da Justiça; Advertências e apontamentos para melhor execução de muitos ritos, e Cerimônias da Igreja e Para negócios políticos em que a Regalia da Coroa ficasse justamente sublimada".'07

Fazendo um balanço das diferentes posições, fica a certeza de que a imagem da "Real" combinava pouco com a representação do soberano e por isso mesmo parecia fundamental em seus planos, sem deixar de lado as demais livrarias. A Bi-blioteca da Universidade de Coimbra crescia a olhos vistos e estava equipada para albergar "mais que todos os livros do país";108 já a de Mafra tomava novas propor-ções, uma vez que se localizava em ponto estratégico: entre o Palácio Real e o con-vento. Tinha de comprimento 380 palmos e era grande se comparada às outras. Famosa era a figura da cruz, que surgia como reflexo bem no meio da Livraria e lhe conferia a santidade que tanto procurava. Existiam, ainda, as bibliotecas convém tuais, que também recebiam favores régios e eram visitadas pelo soberano com alguma freqüência. Outras funcionavam junto aos centros de ensino mais presti-giosos do país — sendo eles universitários ou não — ou à sombra das ordens reli-giosas, como era o caso das livrarias vinculadas aos colégios da Companhia de Jesus (até sua extinção em 1759), da Ordem dos Pregadores, dos Clérigos Regulares da Divina Providência e mais tarde da Congregação do Oratório e da Ordem Terceira da Penitência.109

Para melhorar a situação, certas bibliotecas, como a dos dominicanos — que parece ter sido a primeira a franquear a entrada diariamente —, foram se abrindo para o público externo, composto basicamente de interessados e estudiosos. Por sinal, diante desse cenário comentava-se com certa insistência como existia em Lisboa um bom número desses estabelecimentos, que "faziam boa figura" quando se tratava de caracterizai" a capital do Império. E para alimentar tantos estabeleci-mentos chegava à cidade uma avalanche de livros adquiridos no exterior, que eram logo distribuídos, recebendo atenção especial a Real Biblioteca, a qual, instalada bem no centro do reino, se convertia em uma espécie de templo dos livros, admi-rada dentro e fora do Império.

No entanto, uma biblioteca dessa natureza e amplitude não apresentava ape-nas problemas de acomodação; era necessário torná-la utilizável, garantindo sua conservação e organização internas. Por essa razão, por volta de 1720 a tarefa foi entregue a Pina Proença e Martinho de Mendonça, estudiosos que já em 1722 tra-balhavam na elaboração de um catálogo. Por sua vez, os livros de teologia foram ordenados pelo cardeal da Mota, um especialista no tema.

Devido à grandeza da tarefa, vários profissionais ligados à corte empenharam-se, em períodos distintos, na sua classificação. Coube ao padre Manuel Caetano de Sousa a organização do material bíblico e de seus comentadores; a João da Mola e Silva, a teologia;110 a Paulo de Carvalho e Ataíde, o direito canônico e civil; ao médi-co Francisco Xavier Leitão, a filosofia e a medicina; ao marquês de Alegrete (Fernão Teles da Silva), a filologia; ao marquês de Abrantes (d. Rodrigo de Sá e Meneses), a

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história; e ao quarto conde de Ericeira (d. Francisco Xavier e Meneses), a matemá-tica e as outras artes.111

A catalogação estava pronta em 1735, apesar de não existirem registros con-fiáveis acerca do processo completo. Depois de tanto empenho, a Biblioteca de d. João v seria avaliada em 60 mil exemplares, número que combina bem com a gene-rosidade esbanjadora do "Rei Magnânimo", cuja biblioteca era comparada à do Vaticano e à do soberano da França, as grandes no gênero."2 Além do mais, com o estabelecimento da Biblioteca criavam-se funções paralelas, necessárias ao bom funcionamento de um centro desse tipo. Ao que tudo indica, a Livraria de d. João v possuía uma oficina de encadernador e dourador, sendo seus livros reconhecidos peío ouro nas lombadas e pelos castelos ilustrados que apareciam nos quatro can-tos das obras, A Real Livraria tinha também uma oficina tipográfica, estabelecida no Paço. Era lá que o rei mandava compor e imprimir obras na sua presença, tendo favorecido, particularmente, os trabalhos da Academia de História, igualmente fun-dada e subsidiada pelo bolso real.113

Foi assim que a Biblioteca de d. João v foi crescendo, enquanto aumentava o fascínio desse monarca pela ostentação. Rei Sol português, d. João v fez do ouro do Brasil uma riqueza suficiente para dourar seu reino e seus livros e para lhe garan-tir o apelido de "Magnânimo". Tal fartura encontrava-se, porém, e conforme cos-tumava dizer o próprio secretário de d. João V, Alexandre de Gusmão, bem no meio de "um mar de superstições e de ignorância", que embaçava a imagem do rei. É sob esse ponto de vista, portanto, que a Livraria Real cumpriu um papel impor-tante na memória que se colou a esse monarca. Pensando sincronicamente, é pos-sível concluir que a Biblioteca, associada ao nome de d. João v, rebatia a imagem inculta que o monarca ganhava nas crônicas de seu tempo. No lugar do soberano avesso à Ilustração surgiam relatos que louvavam sua atuação na constituição desse acervo ilustrado e seu apego inusitado à leitura. É possível, ainda, arriscar uma interpretação diacrônica: após sua morte, os panegíricos vão se concentrar na atuação do rei junto à Biblioteca e esquecerão seus atos mais mundanos e amores freiráticos. Ademais, com o desaparecimento da Livraria, depois do terremoto, a própria memória mostrará seu lado perverso. Nesse movimento de lembrar pouco e esquecer muito, a dimensão da Livraria e o papel de d. João tenderão a se ampliar, assim como se tornava "memorável" o acervo destruído pelo acidente. De inculto e esbanjador, d. João v ressurgia, nas lembranças, agora associado à "biblioteca per-dida de Lisboa".

A metade do século guardava, contudo, surpresas para a capital do Império Português. O rei morreria em 31 de julho de 1750, depois que uma paralisia galo-pante, motivada pelo que hoje os médicos denominariam "edema pulmonar", o transformara em não mais do que uma sombra de si próprio."4 Após ter reinado com tanto luxo, faleceu d. João v sem saber que faltavam nos cofres públicos recur-sos mínimos para cobrir as despesas de seu funeral, ou crédito para empréstimos. A ele sucedeu d. José 1, o qual, ao que tudo indica, não foi contaminado pela febre do pai, O filho, que tinha pouco interesse pela política, também não encontrava muito sentido na companhia dos livros. Mas a essas alturas a Biblioteca já andava

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com pernas próprias. Segundo documentos da época, não havia muito que fazer no acervo. José Caetano gozava o emprego de bibliotecário da Livraria do Paço, "posto que desde o ano de 1768 por estar o Suplicante de ordem de V. Excia. entre-gue da custódia e arrumação dela, nenhum exercício tivesse no dito emprego".115

Trabalho não havia, mas o salário era seguro e o funcionário cobrava 30$000 reis por mês, sendo 10S000 de ração.

O susto maior, porém, estava por chegar. O terremoto de 1755 destruiria Lisboa e faria do Paço da Ribeira um acúmulo de destroços. Com ele iam também os livros amealhados por tantos reis e os poucos registros dessa primeira Real Biblioteca, que o incêndio tratou de sepultar. Sobraram apenas informações dis-persas, legadas pelo padre fosé Caetano de Almeida — ao tempo bibliotecário —, notícias de pessoas responsáveis pela catalogação e o testemunho de viajantes que tiveram oportunidade de visitá-la. Tudo isso é muito pouco, mas revela a preguiça de quem não tinha medo do futuro.

Antes do acidente, nada parecia indicar que uma catástrofe estava para arrui-nar a capital do Império Português. Paradoxalmente, depois de destruída Lisboa passaria a fazer parte dos domínios da lenda e seria descrita como uma cidade labulosa; quase uma ilha afortunada desaparecida nas brumas do Atlântico. E a memória faz dessas: como do dia para a noite, a outrora criticada Lisboa de mea-dos do Setecentos passaria a merecer adjetivações sem fim: "jóia da Europa", "capi-tal magnífica", "cidade esplendorosa", "uma ilha de beatitude"116

Mas deixemos esse tipo de julgamento para os homens presos ao seu tempo. Conforme dizia um viajante, um pouco antes do desastre: "Raramente há trovoa-das e muitos anos aqui se passa sem que haja notícia de ter caído faísca. De quan-do em quando treme a terra, mas não há nesse lugar sinal de maior perigo e vio-lência"."7 E essa não era visão isolada. Na verdade, como um relato era lido e imitado pelos demais, a moda pegou e também outro estrangeiro arriscou afirmar que "de vez em quando existem tremores de terra, mas que não são muito consi-deráveis".118 Pena que muitas vezes os vaticínios falhem.119

42. Visla do Palácio Real: um símbolo da monarquia. In Le Granei Theatre de l Univers, FBN

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CAPÍTULO

TEMPOS DE POMBAL E OS LIMITES DO ÍLUMINISMO PORTUGUÊS

i

1. Pombal emoldurado por seus planos e projetos. Litogravura de ]. G. da Costa, FBN

Uma monarquia consumida por uma série de revoluções, desunida por seitas clandestinas e empobrecida por suas próprias riquezas, um povo consumido pela mais grosseira superstição, uma nação cujos costumes afaziam parecer com os bárbaros, um estado gover-nado por usos asiáticos, não tendo ele europeu mais o nome, de monarquia [...] as minas de ouro do Brasil pertenciam inteiramen-te à Inglaterra e os Portugueses não eram mais que uns econômicos distribuidores das suas próprias riquezas [...] o Estado estava cheio de negociantes portugueses, que verdadeiramente possuíam todo o bem do reino, não tendo nada próprio. Em tais circunstâncias um espantoso fenômeno veio a suprir a falta de sua política. Abriu-se a terra e devorou aqueles que mesmo que parece a queriam comer. Da sua infelicidade pode Portugal tirar uma grande vantagem [...].

Enviado holandês anônimOj 1765'

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A.P.: ANTES DE POMBAL

O terremoto remexeu em estruturas até então bastante rígidas de poder. Desde 1667,2 inaugurara-se em Portugal um período de estabilidade política, abo-nada por três reinados consecutivos: o de d. Pedro II (de 1667 a 1706, primeiro como regente e depois como rei); o longo domínio de d. João v, que cobriu a prir meira metade do século xvm (1706-50), durante o qual afluíram grandes riquezas advindas do Brasil — a "vaca leiteira de Portugal"3 —; e o de d. José i (1750-77), assinalado pelo predomínio de um ex-diplomata, Sebastião José de Carvalho e Melo, a quem o soberano concederia títulos sucessivos — conde de Oeiras (1759) e marquês de Pombal (1769) —, que correspondiam à ascensão do ministro den-tro da lógica do Estado.

Mas o século xvm permite mais: oferece uma boa moldura para pensar nos contrastes colocados em cena, diante da relativa calmaria política experimentada por Portugal: a luta entre a religiosidade imperante e os novos modelos racionalis-tas, que preconizavam a lógica, por oposição às crendices; o conflito entre agentes que pediam mudanças e outros que lembravam a tradição; o desejo reinante de voltar a ser grandioso, tendo como base as riquezas da colônia americana, e a nos-talgia das glórias passadas; o embate entre a adoção de meios despóticos e a opção por objetivos mais racionais, aos moldes dos monarcas esclarecidos. E foi justa-mente dentro desse quadro tenso que se destacaram os grandes eventos da época:

2. Imagem de engenho no Brasil: de onde aflliía parte das riquezas. Pierre A. Vander, FBN

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a exploração da colônia brasileira, a descoberta do ouro no Brasil, os espetáculos cruéis da Inquisição, o terremoto de 1755, a reconstrução de Lisboa e a expulsão dos jesuítas.4

Além do mais, como ocorria em toda a Europa, também Portugal conheceu, no século XVIII, u m período de crescimento demográfico. A população local, que havia alcançado a ordem de 2 milhões de pessoas em 1732, já em 1758 chegara aos 2,5 milhões e subiu, ainda, a 3 milhões em 1780.5 No entanto, se a estabilidade garan-tiu períodos de maior crescimento, favoreceu por outro lado um certo conservado-rismo político e a rotina de quem quer preservar tudo como está. Nesse processo, dependia-se cada vez mais da figura do soberano, da atuação de seu ministro e, sobretudo, das circunstâncias políticas características de cada momento.

Boa parte da historiografia portuguesa situa no reinado de d. Pedro n o esta-belecimento da monarquia absoluta no país, uma vez que foi nesse período que pela última vez se reuniram as Cortes no reino.6 Ocorre porém que, com o domí-nio espanhol a partir de 1580, essa tendência foi interrompida, sendo retomada só com a Restauração, em 1640, quando os monarcas portugueses passaram a mirar os modelos de absolutismo régio vigentes em países vizinhos. Mas a realidade sem-pre foi mais complicada. Apesar de os reis portugueses poderem exercer seu poder, a partir de então, sem recorrer às Cortes, isso não fez deles monarcas absolutos no sentido tradicional do termo. Por certo, agiam de maneira absoluta em relação ao Terceiro Estado, mas subsistiam outras instâncias de poder que limitavam o arbí-trio real. A Inquisição, por exemplo, manteve-se durante muito tempo longe do manto da monarquia, e seus representantes opuseram-se com freqüência às vonta-des do rei. Por outro lado, com as finanças controladas pela nobreza, o monarca português tornava-se frágil diante de uma máquina administrativa que impunha uma série de apertos financeiros.

A situação só se altera mesmo com a administração do marquês de Pombal, na segunda metade do século xvm. A domesticação da nobreza, a expulsão dos jesuítas, a transformação da Inquisição em instrumento do Estado, a repressão vio-lenta a manifestações populares, puseram fim a antigos obstáculos ao poder abso-luto dos monarcas portugueses. Como um bom paradoxo,7 a história da adminis-tração de Pomba! serve como antídoto para um tipo de interpretação que entende o Duminismo do século xvm apenas de forma linear. O exemplo português, em con-trapartida, oferece um caso interessante para pensar numa versão estatizante dessa filosofia e para que se questionem vínculos por demais imediatos entre essa teoria e visões de liberdade. Nesse caso, o Iluminismo aplicado à educação não implicou o final da Inquisição e a entrada de novas idéias não levou ao final da censura e do cerceamento das práticas individuais. É hora de falar de Pombal.

UMA ARITMÉTICA POLÍTICA

O contexto internacional, já em meados do século, estava longe da calmaria. Portugal, por sua parte, procurava insistentemente imprimir uma marca de "neu-

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3. O poderoso marquês de Pombal, primeiro conde de Oeiras. FBN

tralidade", o que implicava imiscuir-se o mínimo possível nos conflitos, a fim de evitar represálias, retaliações e, sobretudo, danos em seu vasto império. Como demonstra o historiador Fernando Novais, o século XVItl se abre apresentando uma situação internacional bastante definida. Duas grandes potências — Inglaterra e França — dominavam o cenário: a primeira, com vantagens no mundo ultramari-no; a segunda, preponderante ainda, mas já revelando sinais de declínio no conti-nente europeu. Foi a rivalidade entre essas duas nações (amortecida até 1740 e mais agressiva na segunda metade do século) que garantiu, no limite, a sobrevivência de aliados menores, como Portugal e Espanha, e a manutenção dos respectivos domí-nios coloniais. Afinal, para Portugal o esquecimento inglês e francês era saudável (e não o contrário) e fez com que sua atenção se voltasse cada vez mais para o eixo Atlântico: a colônia americana e a costa africana. Paradoxalmente, porém, concen-trando esforços em seu Império, o governo de Lisboa acabou consolidando um sis-tema de alianças que levou à cristalização da dependência do apoio inglês e a vín-culos comerciais fortes e desiguais entre os dois países.8

A própria situação financeira do Estado português não era das melhores e já em meados do Seiscentos o momento sinalizava uma grave depressão. O Conselho da Fazenda em 1657 dava um quadro sombrio do Império:

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Em 1699 chegava a Lisboa o primeiro carregamento de ouro, que correspon-dia a 500 quilos. E a quantidade aumentou nos anos subseqüentes, até alcançar em 1720 a marca de 25 mil quilos. Existe uma oscilação nos cálculos que procuram recuperar a quantidade de ouro que teria entrado na capital do Império: estimati-vas mais ou menos otimistas referem-se a números que variam de mil a 3 mil to-neladas. De toda maneira, importa mais assinalar como o minério continuava chegando a Portugal, mediante a implementação de uma política cada vez mais abusiva de impostos11 e que alterava o frágil cenário das finanças portuguesas. O ouro brasileiro ajustava-se como uma luva ao fraco modelo mercantilista aplicado em Portugal, que, nesse caso, implicava o aproveitamento das riquezas dos domí-nios ultramarinos sem o correspondente investimento em uma política de amplia-ção da infra-estrutura interna, da própria metrópole.

Além disso, após 1729 foram descobertas jazidas de diamante na área seten-trional de Minas Gerais, o que resultou no aumento do fluxo de bens que aporta-vam em Portugal e dali dirigiam-se para Amsterdã.12 O ouro, o diamante, mas tam-bém o açúcar e o tabaco, formaram a base do complexo comercial do Atlântico Sul. O quadro se completava com o lucrativo comércio de escravos, que se manteve atuante até os anos de 1850.13

A explosão do ouro teve conseqüências políticas e materiais na capital do Império. Após sua independência da Espanha em 1640 e do reconhecimento do duque de Bragança como rei, faltava a Portugal a riqueza necessária para que recuperasse sua posição na Europa. Por outro lado, os monarcas portugueses sou-beram usar a seu favor a nova situação financeira, e, assim, o século xvm conhe-ceu o apogeu do Estado absolutista em Portugal, a despeito de sua feição um tanto particular,

O ouro brasileiro não modificaria, porém, certas estruturas e atrasos resultan-tes da conjuntura local. Em Portugal, tudo quanto exigisse maior técnica era im-portado, uma vez que sua manufatura era pouco desenvolvida. No início do sé-culo xvm comprou-se até roupa velha, não obstante a indignação da Câmara de Lisboa, que reagia dizendo que as casacas, camisas e lençóis poderiam ter perten-cido a tísicos e leprosos. A cidade de Lisboa estava inundada por produtos do exte-rior e a voga, que começara com as elites, chegava inclusive aos gostos populares. Os portugueses buscavam mais e mais viver e se vestir à européia, costume qrie não levava a um incremento imediato nas técnicas de produção. Isto é, o mercantilis-mo, política econômica que visava manter uma balança superavitária, estava longe de ser uma realidade em terras lusitanas.

O dinheiro fácil tampouco alterava os costumes. Faltavam quadros empresa-riais e a filosofia então imperante parecia supor que a entrada contínua de rique-zas tornaria desnecessárias políticas de investimento local. Riqueza não gerava riqueza, e Portugal se contentava em sugar suas colônias de maneira bastante para-sitária. José da Cunha Brochado, diplomata português na época, desenha um qua-dro triste das elites portuguesas:

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Em Portugal não há ciência, nem há política, nem há economia, nem há educação, nem há nobreza e não há corte. As letras estão desterradas; nos conventos só se sabe rezar o ofício divino [...] Sobre a economia da cidade não há nenhuma atenção; vivem com aquilo que casualmente tem, sem saberem se podem ter mais, ou viver melhor.1*1

Se os próprios portugueses reconheciam o parco desenvolvimento das artes e ciências no país, a representação no exterior não era melhor.13 No restante do con-tinente europeu guardava-se uma imagem um tanto negativa do reino lusitano; muitas vezes, escritores racionalistas recorriam ao caso português quando queriam fazer troça ou falar mal da religiosidade popular. Voltaire, por exemplo, dizia que o monarca d. João v, apesar de toda a riqueza de seu reino, permanecia atado a com-portamentos atrasados: "Quando queria uma festa, ordenava um desfile religioso. Quando queria uma construção nova, erigia um convento. Quando queria uma amante, arrumava uma freira".16 Se nem tudo é verdade, o certo é que sempre sobra um pouco de realidade em um chiste, D. João v não só manteve relacionamentos com freiras, como deles nasceram descendentes ilegítimos com d. Madalena de Miranda (mãe do príncipe Gaspar, depois arcebispo de Braga) e com madre Paula

Teresa da Silva), cujo filho, d. José, tornou-se anos depois inquisidor-geral. Para dar conta de tanta culpa o rei doava alto à Santa Sé, e era também recompensado por Roma: o papa concedeu-lhe o título de Fidelíssimo e realizou o desejo do sobe-rano, que queria que Lisboa se tornasse sede não apenas de um arcebispado mas também de um patriarcado.

Além do mais, já na época se comentava à solta acerca das grandes somas que o monarca português gastara com a construção de Mafra, do exército formado por religiosos ou do efeito pernicioso da Inquisição. Os portugueses julgaram e conde-naram réus à fogueira, em cerimônias públicas, até o ano de 1761, e eram conhe-cidos os processos e métodos que levavam os condenados ao ato fina!.17

Voltaire, no Cândido, revoltava-se contra a decisão dos "sábios" da Univer-sidade de Coimbra, que, depois do terremoto de Lisboa, acharam por bem realizar um auto-de-fé: "O espetáculo de algumas pessoas queimadas em fogo lento, em grande cerimonial, era um meio infalível de impedir a terra de tremer".1" Não con-tente com a ironia, em seu Dicionário filosófico, no verbete consagrado a "In-quisição", o filósofo concluiu ser o tribunal "uma invenção admirável e absoluta-mente cristã destinada a tornar o papa e os monges mais poderosos e a tornar todo um reino mais hipócrita".19 Esse mesmo tipo de juízo mais negativo, dirigido à carolice portuguesa e à sua instituição máxima •—• a Inquisição —, despontava em outros livros da época, em que se desconfiava do tribunal e de seus critérios, nem sempre religiosos.20 Ironia e até mesmo indignação eram reações comuns àqueles que de fora acompanhavam os progressos dessa instituição, que associava cada vez mais a Igreja ao Estado português.

Por outro lado, não se desconhecia como entre os portugueses vingava uma visão sacralizada do mundo, que os levava a dar guarida não só ao anticientifícis-mo como a discursos milenaristas de toda ordem. Famosas eram as antigas profe-

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5. Representação de um auto-de-fé: críticas externas aos espetáculos cotidianos de rua. BNL

cias do padre Antônio Vieira, que previu a instalação do Quinto Império com capi-tal em Lisboa — reino temporal e espiritual —; do herético Pedro Rates Hene-quim; ou mesmo do sapateiro de Trancoso, Gonçalo Anes Bandarra, que, unindo elementos judaicos e cristãos, proclamou a chegada próxima de um Rei Encoberto, que estabeleceria uma monarquia mundial.21

Avolumavam-se assim os motivos do atraso que distinguiam Portugal dos de-mais países europeus, em especial a Inglaterra, a França e a Holanda.22 Talvez seja por isso que, já em finais do século xvn, e a despeito de a península Ibérica continuar cumprindo o papel de consumidora intelectual de idéias e valores,23 tenham surgi-do os primeiros movimentos de reforma na educação e na cultura do reino. Foi a partir da segunda metade do xvin que Portugal passou a ser mais permeável às idéias da Ilustração, ainda que circulassem entre um grupo restrito e com uma men-talidade particular. Da mesma forma que havia ocorrido na Espanha e na Itália, também em Portugal a Ilustração ganhou uma feição mais católica. Buscou-se, assim, a conciliação de elementos teoricamente pouco harmoniosos — como fé e ciência, teocentrismo e antropocentrismo —, o que permitiu uma releitura singu-lar do mesmo ideário.

Esses estímulos partiram principalmente de portugueses residentes no estran-geiro, alguns deles alocados em funções diplomáticas, como Cunha Brochado, Cava-leiro de Oliveira, d. Luís da Cunha, Luís Antônio Verney, Alexandre de Gusmão e o próprio Pombal; e ainda de outros, acusados de judaizantes e perseguidos pela Inquisição, como é o caso de Jacob de Castro Sarmento e Ribeiro Sanches. A esse

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grupo, que convivia com um ambiente diferenciado daquele de Portugal, deu-se o nome de "estrangeirados", e a eles costuma-se vincular a introdução do Iluminis-^10, do empirismo e do utilitarismo em Portugal. Atribuíam o atraso do Império à íilta de cultura e, em conseqüência, defendiam a chegada "das luzes da razão moderna" como única maneira de garantir o progresso nacional. Os locais de atua-ção seriam muitos, mas deveriam se concentrar na educação, até então considera-da especulativa e dogmática, uma vez que o ensino das humanidades (os estudos vré-universitários) continuava monopolizado pelos jesuítas, que, por sua vez, man-tinham-se fiéis à autoridade aristotélica, contrária à experimentação e a métodos mais empíricos de fazer ciência.

De forma geral, diz-se que Portugal e Espanha, já entrados na época moderna européia, possuíam uma conformação intelectual muito peculiar, quando compa-rada à do resto da Europa, e essa situação perduraria até o Oitocentos: o século das Luzes. Em solo ibérico a teologia conhecera um desenvolvimento extraordinário, so-bretudo com a Segunda Escolástica ou Neo-Escolástica, cujas concepções predomina-ram até meados do século XVI!, permanecendo influentes inclusive no século XVIII 24

Essas noções, derivadas também dos escritos de santo Tomás, repudiavam a teoria de Maquiavei e as idéias luteranas, circunscrevendo a esfera humana à divina, na concepção do próprio Estado. Segundo essa visão, Deus seria a fonte primeira do direito e expressão da condição natural do homem. Impunha-se, portanto, uma su-bordinação absoluta à "lei eterna", enquanto o próprio Estado se submetia à juris-dição da Igreja.25

Esse modelo seria alvo de uma ofensiva tímida — iniciada nos últimos anos do reinado de d. João —, que advogava a adoção de hipóteses passíveis de obser-vação, das experiências físicas e de leis resultantes de vias indutivas. Bacon e Newton vinham em lugar de Aristóteles, assim como entrava em voga a utilização de apa-relhos modernos de laboratório. Em 1746, Luís Antônio Verney escreveu o livro Verdadeiro método de estudar, que continha as bases de uma profunda reforma nos

estudos, afastada dos filósofos antigos. Contra eles diz o autor:

[...] Antigamente os filósofos não viam nos animais senão aquilo que os carniceiros podem observar; nas árvores aquilo que sabem os carpinteiros; nem dos metais sabiam mais do que sabe o fundidor. Mas hoje os filósofos fazem a anatomia em todas as coisas [...] Esse meio é o único para descobrir a verdade.26

No entanto, e apesar das iniciativas mais ou menos isoladas, os resultados revelaram-se bastante medíocres. Na verdade, os momentos finais do governo de d. João v foram marcados pela desagregação do poder central, pela queda nos ren-dimentos provenientes do Brasil, e pelo abalo da saúde do rei. Este, já paralítico, tinha a seu lado ministros igualmente desgastados pela idade avançada. Somente Alexandre de Gusmão parecia criticar a superstição reinante e, mesmo assim, sem sucesso. O fim dos dias de d. João v era aguardado, tal qual se espera por uma mor-te anunciada ou algo cujo desenlace se sabe de cor.

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Com a morte de d. João v, em 1750, seu filho d, José renovou todo o ministé-rio e se apoiou diretamente, sobretudo após o terremoto, em Sebastião José de Car-valho e Melo, o futuro marquês de Pombal. Ao lado de um monarca que, segundo se dizia, preferia a ópera e a caça ao governo, Pombal foi paulatinamente contro-lando o reino, ao mesmo tempo que liquidava qualquer oposição. Aí estariam os sinais de uma nova "aritmética política" — arte aplicada peio ministro com o es-mero de quem a conhece e domina.27

A ERA DE POMBAL

Sebastião José de Carvalho e Melo foi figura polêmica e controversa já em seu tempo.28 Nasceu em 1699, numa família nobre mas não rica, que se dedicou à magistratura, sem ter conseguido fama ou fortuna. O estadista poderia ser situado na fronteira que separa a burguesia da nobreza, ou então no pleno direito de uma nobreza de toga, que ascende a partir de critérios que não dizem respeito ao nas-cimento e sim ao capital e aos vínculos sociais. Tais condicionantes explicam, de certa maneira, a atitude ambígua de Pombal, que ora retocava genealogias para se fazer passar por fidalgo, ora patrocinava atitudes antiaristocráticas e favoráveis à burguesia ascendente, ciasse que acabou protegendo e que lhe serviu de suporte político. A família possuía umas poucas propriedades em Lisboa, que compreen-diam o lugar onde Pombal nasceu e outra área em Oeiras, mais tarde herdadas pelo

6. D. José I: um monarca apagado 7. Depois do terremoto se inicia diante de seu poderoso ministro. FBN a era de Pombal. FBN

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Para o futuro marquês de Pombal, a ameaça representada pela Inglaterra com relação aos domínios portugueses na América era motivo de preocupação: ltA inve-ja do nosso Brasil, tão forte nos corações britânicos, no final irá levá-los a atacar a América Portuguesa".33 Considerava de extrema importância sua missão no exte-rior e dizia, para quem quisesse ouvir, que Portugal deveria vigiar diligentemente os passos do governo de Londres, assim como faziam os demais representantes: "Todas as nações da Europa engrandecem hoje pela imitação recíproca, cada uma vigiando cuidadosamente a ação das outras".34

Permaneceu em Londres de 1739 a 1743, e de lá saiu instruído por leituras políticas, mas sem ter aprendido a língua. Quem sabe Carvalho e Melo tenha aber-to mão da aprendizagem do vernáculo em função da antipatia que sempre devo-tou à Inglaterra? Quem sabe a estranheza diante do idioma pouco usado dos ingle-ses tenha vencido, o que o forçou a optar pelo francês, língua da diplomacia e das Cortes? Quem sabe, ainda, a vida diplomática não representasse mais do que um estágio passageiro na concepção desse estadista, que nunca escondeu sua preferên-cia pela política realizada em terras portuguesas? O fato é que em 1743 Pombal voltou a Lisboa, ainda que mantendo formalmente o cargo em Londres. Tomado por antigos achaques, que os rigores do clima londrino só agravaram, pediu e obteve licença para deixar temporariamente a embaixada. Mal podia imaginar que assim terminava sua estada na corte inglesa. Já em dezembro de 1744 uma nova missão lhe era atribuída. Dessa feita, partia como emissário português rumo à corte da Áustria. No entanto, mais uma vez o trabalho diplomático deixou de garantir os louros que imaginava: Carvalho e Melo não obteve renome em Viena; muito pelo contrário, ao retornar a Portugal, como ele mesmo bem definia, sua reputação era "problemática e litigiosa",35 não merecendo comendas, beija-mãos ou cargos de destaque. Mas a estada teve ganhos; foi lá que conheceu sua segunda esposa,36 Maria Leonor Ernestina Daun, que mantinha boas relações não só com a imperatriz Maria Teresa como também com a esposa austríaca de d. João v, d. Maria Ana. O velho rei português, porém, não dedicava nenhuma atenção ao esta-dista, postura que levou Carvalho e Melo a acreditar que teria que esperar a mor-te do soberano para receber algum cargo ou posição de maior evidência na corte de Lisboa.

Com efeito, nos últimos anos de d. João v reinava em Portugal um fanatismo disseminado e a Inquisição conquistava mais espaços, regendo normas e condutas. Poucos eram aqueles que se opunham aos ditames religiosos da época, e até mes-mo o monarca acentuava sua dependência para com a Igreja, conforme a idade avançava. A delação se transformava em modelo e o fanatismo religioso em moeda de avaliação,37

Alexandre de Gusmão, diplomata esclarecido e secretário do rei, não se furta-va a apontar as mazelas administrativas e os erros de gerência econômica que se impunham no Império, e provocava: "Não se esqueça dos amigos que aqui deixou lutando com as ondas, no mar de superstição e da ignorância [...]".3S Pombal não era Gusmão — sua formação se dera em Coimbra, em um ambiente intelectual

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rnais limitado —, mas tinha a seu favor a convivência em Londres, que lhe per-mitira um certo distanciamento para refletir sobre os problemas portugueses e lhe mostrara como era necessária a adoção de novos modelos econômicos e polí-ticos.39

E Carvalho e Melo foi obrigado a aguardar com paciência: foram oito longos anos até a morte de d. João v, sem que conseguisse obter os postos que almejava. No entanto, e como já tivemos oportunidade de lembrar, em maio de 1750 o rei, cada vez mais agarrado a seus bentinhos e imagens, agonizava. A tarefa de gover-nar restava nas mãos de políticos como Pedro da Mota e Silva, que àquela alturas se encontrava igualmente inválido, e frei Gaspar da Encarnação, que a todos pare-cia ainda mais ignorante. Com essa equipe, Pombal não poderia pretender prote-ção; restava-lhe a esperança do breve desfalecer do rei. O primeiro sinal, contudo, veio antes do que imaginava. A rainha, d. Maria Ana da Áustria, assumira a regên-cia e lhe pediu um parecer sobre a questão da importação e comércio do trigo. O assunto tinha a ver com as relações com a Inglaterra e, sobre o tema, Pombai era pessoa competente.

Nesse meio-tempo faleceu o soberano português: no dia 31 de julho de 1750. Seu filho, d. José, o príncipe herdeiro da Coroa, na época com 36 anos, parecia ter poucos motivos para confiar nos velhos ministros de seu pai, ainda mais diante da frágil situação financeira então experimentada pelo reino. Precisava pois de novos ministros, e as simpatias recaíram sobre Carvalho e Melo, que foi indicado secre-tário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, para surpresa geral da corte.40

No dia 3 de agosto a nomeação do novo secretário foi divulgada, ao mesmo tempo que Alexandre de Gusmão era relegado ao Conselho Ultramarino e, assim, afastado do círculo mais imediato da corte. E a política acenava para o lado de Pombal: o primeiro negócio que o rei lhe entregou foi o das minas do Brasil. O rico comércio ameaçava soçobrar e o secretário esforçou-se em recuperar as finanças: reorganizou o processo de cobrança e, a despeito da queda na produção, manteve o nível de entrada.41 Também os comércios do tabaco e do açúcar foram estimula-dos, e o estanco com relação à produção de diamantes for estabelecido.

Ainda nos anos de 1750 outros eventos chamaram a atenção do secretário: a execução do tratado de limites no Brasil, o estabelecimento da Companhia do Grão-Pará e Maranhão e a Declaração de Liberdade dos Indígenas na América (decretada no Grão-Pará e Maranhão em 1755 e no Brasil inteiro em 1758). Quase todos esses atos antecederam o terremoto de 1755 e explicam, cada um à sua ma-neira, os motivos da luta que empreenderá Carvalho e Melo contra os jesuítas, seus inimigos mais diletos dentro da lógica do Estado. Em questão estava o papel polí-tico da Igreja, ou melhor, o papel hegemônico que a Igreja ocupava, e os jesuítas eram um meio para Pombal, mas não um fim em si mesmos.42 Tal política repre-sentava uma ponta-de-lança para a retomada de um Estado laico, distanciado do poder espiritual, objetivo maior da nova administração.

Mas antes de entrarmos na política pombalina propriamente dita fica uma advertência. Como mostrou o historiador Francisco Falcon, avaliar Pombal como

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um .ministro que sozinho tomou em suas mãos uma tarefa hercúlea não passa de mito. Entendido somente nessa perspectiva tradicional, tal personagem nem ao menos teria existido. Entretanto, "uma coisa é esse mito, outra, bem diversa, é a época", portanto, não há como dissolver tal contexto ou negar as alterações que estavam por ocorrer. Assim, se é frágil a perspectiva que centra exclusivamente na atuação — boa ou má — de Pombal o destino de Portugal, igualmente problemá-tica é a interpretação que procura negar as transformações e rupturas que mar-caram seu governo.43 Um período histórico é lembrado não só pelas ações do seu presente como por aquilo que o precede e, sobretudo, por aquilo que vem depois. Nada como continuar nossa narrativa, depois deste breve parêntese: os homens refletem sua história, mas, em alguns casos, estão bem no centro dela, prontos a produzi-la.

USANDO POLITICAMENTE O TERREMOTO

Não se pretende dizer que o predomínio político de Pombal tenha começado com o terremoto. Ao contrário, já antes dele Carvalho e Melo governava com certa autonomia e procurava resolver impasses à sua maneira. Além disso, o exame da legislação publicada revela como, pouco a pouco, ele foi assumindo a direção da pasta de outros ministros. No entanto, sua atuação ficou mesmo conhecida após o desastre, quando se associou à figura do ministro uma série de atos emergenciais que visaram retomar a ordem em Lisboa. Verdade ou não, o fato é que essa inter-pretação continua cômoda e permite datar o surgimento de um "despotismo pombalino".

A situação, alarmante, pedia medidas urgentes, conforme comentavam as tes-temunhas: "Quem naqueles dias visse Lisboa com as suas ruas alastradas de mor-tos, e cobrindo com suas ruínas a outro maior número de cadáveres, justamente devia temer [,..]".44 Peste, fome, lepra: aí estavam os fantasmas que perseguiam aqueles que, mal refeitos do susto, temiam nova seqüência de fatalidades.

Nessa ocasião, d. José 1 mandou que o duque de Lafões — regedor das Justiças, neto de d. Pedro 11, e portanto seu primo — implementasse as seguintes determi-nações:

Que todos os Ministros da Cidade façam que os cadáveres dos homens, e animais, sejam logo sepultados, convocando para isto as companhias militares, que obriguem aos que repugnarem, ajudem aos que obedecerem: Que [...] ajuntem os forneiros, e padeiros que o medo havia dispersos, procurem trigos, e que o ouro, e prata, assim em moeda como em peças, sejam levados para o depósito geral, para depois se entregar a seus próprios donos.45

No mesmo dia o marquês de Marialva, general da província da Estremadura, foi encarregado de reunir uma série de regimentos, para que, todos juntos, organi-

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9. Nesta representação, d. José I encontra-se diante das ruínas de Portugal, mostrando, por meio da imagem, a sua futura e "esperada" recuperação. Johann Simon Negges, BNL

zassem presídios e auxiliassem cidadãos aflitos. Era preciso dar jeito nos mortos e ütender os vivos que padeciam novas privações, assolados por ladrões e espertos de última hora.

O terremoto mais parecia o final do mundo, e dessa hecatombe nasceram o poder e o espectro do futuro marquês de Pombal. Carvalho e Melo — na frase sín-:ética que lhe foi atribuída — tratou de "cuidar dos vivos e enterrar os mortos" e, como na maior parte dos casos, o dito fez-se maior que a realidade. Opções não havia muitas e as saídas não tinham como tardar, Era preciso controlar a entrada de mantimentos na cidade, eliminar impostos, fixar preços de alimentos para evi-tar especulação e ainda chamar regimentos das demais províncias a fim de prender >a!teadores. Além disso, e para garantir a ordem, forcas foram levantadas em qua-"ro pontos da cidade, visando coibir aqueles que, aproveitando-se da confusão rei-nante, passaram a atentar contra a vida dos demais.46

Não foram poucos, também, os socorros que chegaram ao reino, incluindo otertas do Brasil e das cortes estrangeiras, víveres da Inglaterra, materiais de cons-trução de Hamburgo e dinheiro. O comércio de Lisboa ofereceu ao rei, em 2 de aneiro, um imposto de 4% sobre os direitos que incidiam nas mercadorias despa-

chadas na alfândega.47 E outras medidas foram implementadas pelo ministro nos meses de novembro e dezembro: a retirada de entulho das ruas, a drenagem das águas paradas, a acomodação dos escombros para nivelamento, a avaliação das

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praças, ruas, casas e edifícios públicos. Em 3 de dezembro determinou-se que nenhuma construção poderia ser erguida além dos limites antigos da cidade, proi-bição confirmada por novo decreto, datado do dia 30 do mesmo mês, que impedia toda e qualquer construção enquanto o inventário das propriedades não estivesse terminado.48

Para além das medidas de ordem mais prática, Carvalho e Melo compreendeu logo que a calamidade poderia render frutos políticos. Não por coincidência, no seu Discurso político sobre as vantagens que o reino de Portugal pode alcançar da sua desgraça por ocasião do memorável Terramoto do Ia de novembro de 1755,'™ Pombal explicitamente afirma:

A política não é sempre a causa das revoluções de Estado. Fenômenos espantosos mudam freqüentemente a face dos Impérios. Pode dizer-se que esses descartes da na-tureza são algumas vezes necessários porque eles podem mais do que qualquer outra coisa contribuir a aniquilar certos sistemas que se encaminham a invadir o universal Império [...] Porém dirão é necessário que sobre a terra se transportem províncias, que se subvertam cidades para dissipar as cegueiras de certas nações, ilustrá-las no co-nhecimento dos seus verdadeiros interesses. Sim, atrevidamente o digo, em um certo sentido assim é necessário.™

Em um longo manifesto, o ministro descrevia a situação de penúria vivencia-da por Portugal, denunciava a dependência com relação à Inglaterra51 e anunciava a "utilidade" do terremoto:

Da mesma forma que as inundações são necessárias aos rios extravasados para os fazer correr no natural leito donde tinham saído, pode haver casos onde, para restabelecer um Estado, é necessário que um Estado seja em parte aniquilado, e que o seja por algum acontecimento extraordinário. Depois do "fenômeno", uma nova claridade se derramou sobre os espíritos, havendo o tremor que experimentou o Governo político e civil destruído os prejuízos.

O "fenômeno" é nada mais nada menos do que o terremoto, que, visto sob esse ponto de vista, seria mais positivo do que negativo: teria promovido uma revi-ravolta na situação vigente, mal disfarçados os desejos e intentos do futuro mar-quês de Pombal. Mostrando frieza e distanciamento, sobretudo se registrarmos que a lembrança do terremoto era fresca, o ministro insistia sempre no mesmo argumento: "O fenômeno não caiu mais que nos materiais que bem ionge de ser causa da grandeza do Estado eram pelo contrário fonte de sua ruína".

A saída era, portanto, "tirar a monarquia das mãos dos ingleses", introduzir indústrias no país, tornar o comércio rentável e, ainda, conseguir o melhor provei-to do ouro que vinha do Brasil. Era a adoção de medidas de caráter mercantilista que o futuro marquês de Pombal propugnava, assim como a introdução de uma nova política, vinculando o mercantilismo comercial ao poder absoluto real. A des-

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graça possibilitaria um grande recomeço, "um Portugal nascente",52 e a oportuni-dade para que Carvalho e Melo se imiscuísse com mais força na política local.

Apesar de o rei ter incumbido outros da tarefa de reedificar Lisboa, Pombal acabou chamando a responsabilidade para si, mesmo porque, reagindo à catástro-fe, alguns ministros fugiram de Lisboa,53 enquanto outros passaram a evitar a pre-^nça do rei. Nas Memórias das principais providências o ministro procurou sistema-tizar suas 230 ordens. As primeiras datam de Ia de novembro, quando autorizou o marquês de Algarves a recorrer aos militares para auxiliar nas emergências tam-pouco economizou esforços para encontrar o corpo do embaixador da Espanha, que sucumbira em meio aos escombros da embaixada. Já os ofícios 2 e 3 tratam de temas variados: medidas contra a peste, repressão a bandidos e ladrões, enterramen-tos em massa, abastecimento da capital, alojamento das vítimas, proibição da saída da população, montagem de cabanas para os desabrigados...

É preciso, porém, distinguir a intenção política de Pombal de sua atuação mais imediata. Se o ministro agiu de forma rápida, também tratou de controlar a histo-riografia oficial, reservando para si a imagem da glorificação. Jácome Ratton, por exemplo, empresário e testemunha do terremoto, em suas Recordações perpetuaria i figura do futuro marquês de Pombal como aquele que, com sangue-frio, decre-: ou que era hora de agir.™ Mas Ratton não seria o único a cantar as glórias do ministro. Também Giuseppe Gorabi, um viajante italiano, teria relatado em suas memórias um episódio dramático envolvendo o próprio rei de Portugal. Diz o ita-. ano que d. José 1 implorara, de joelhos, que seu irmão, o infante d. Pedro, tomas-se para si a coroa. De sua parte, o infante, pelos mesmos motivos, afirmava que a coroa lhe seria pesada demais. Nesse ínterim, Carvalho e Melo teria entrado em cena e convencido o rei a não renunciar e a apoiá-lo na tarefa de tirar Lisboa do caos.55 Exagerado ou não, o fato é que esse tipo de relato tendeu a creditar todas as ações a Pombal, omitindo que, ao seu lado, operava uma equipe imediatamen-te vinculada ao Estado. A favor do ministro, contudo, restam certas evidências de ascensão política: se na época imediatamente anterior ao terremoto atuava como >ecretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, seis meses depois, em 1756, já se encontrava na posição de secretário de Estado dos Negócios do Reino, com plenos poderes: a mais alta colocação que poderia almejar.56 A subida de Carvalho e Meio não representa, entretanto, apenas a conquista pessoal de um político de carreira fulminante. Era também a vitória de um certo ideal administrativo e de um grupo que soube apresentar, no momento certo, uma série de saídas emergenciais.37

Engenheiros militares e topógrafos, liderados pelo octogenário engenheiro-chefe, general Manuel Maia, pelo coronel Mardel e pelo capitão Eugênio Santos, ficaram responsáveis pelas edificações e pela implementação de uma miríade de decisões práticas para assegurar que as operações sanitárias fossem levadas a cabo com segurança. Foram ainda encarregados de desenhar as plantas para a nova cida-de e representaram a assim chamada mentalidade prática que imperou na arquite-tura e no urbanismo pombalino.58 Contando com o apoio do ministro, aprovou-

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espessura das paredes ou o recurso às engenhosas "gaiolas", que correspondiam a estruturas de madeira que, em função de sua elasticidade, deveriam se adaptar a possíveis movimentos de terra.

A reforma implicava também o combate a costumes estabelecidos e àqueles que começavam a se estabelecer. O conceito de civilidade, por exemplo, parecia se coadunar com o de saúde pública, e foi em nome desses princípios que em 1771 :entou-se tornar obrigatórios os cemitérios, ou que em 1776 insistiu-se no tema da unidade geral: as ruas deveriam ser iluminadas e limpas, assim como as casas, que passaram a se submeter aos interesses do Estado. O estilo pombalino que então se -firmava era sobretudo funcional e ideológico, prático em seu modelo e pronto para encenar a grandiosidade de d. José I e de seu ministro. Como dizia um escul-tor da época: "Se esta grande mestra — a Natureza — ensina que os tímpanos devem ser feitos com três linhas retas em triângulos, sendo a base horizontal, por que fazer-lhes as linhas dos lados tortuosas?".60

Assim, enquanto no resto da Europa o terremoto gerava debates de teor mais filosófico, em Portugal a reação era mais prática e visava afirmar a independência econômica de um Estado que, renascido das chamas e dos tremores, revelava sua nova face, racional e planejada. Por vezes o ministro discordou de sua equipe, menos afeita a tanto pragmatismo. Manuel Maia, ao contrário de Pombal, pensa-va no rei em termos "joaninos", e acreditava que um palácio real seria o principal -imbolo de poder de d. José I. O arquiteto pretendia até subordinar seu projeto à decisão do soberano, que oscilava entre localizar seu palácio na Ajuda, próximo de Belém, ou no centro de Lisboa, em local vizinho do velho Paço da Ribeira. O monarca, traumatizado pelo acidente, evitava escolher qualquer projeto mais sóli-do e consolava-se com uma barraca — uma barraca real —, que foi logo instalada na Ajuda.

Mas, se o rei oscilava, Pombal percebia na reforma urbana de Lisboa uma ala-vanca para sua atuação absolutista. Começava então o período conhecido como ^despotismo esclarecido", doutrina que se manteve dominante até a revolução libe-ral de 1820. O seu grande idealizador foi o próprio Carvalho e Melo, que adotou os princípios teóricos de alguns pensadores portugueses que haviam vivido no estrangeiro. O sistema tendia a nivelar todos os estamentos perante o poder do rei, abolindo privilégios baseados na hereditariedade e na tradição. Os organismos po-.iticos e sociais ficariam subordinados à administração do poder central; no campo religioso se propugnava a existência de uma Igreja independente de Roma.'1 Não ror acaso, nos primeiros anos do reinado de d. José estourou uma série de confli-:os entre o poder temporal e o espiritual, uma vez que se defendia a autonomia da Coroa em face da Igreja, mesmo garantindo-se que o Estado representava o braço secular da instituição religiosa. Nessa nova feição, os direitos reais não se separa-vam da pessoa do soberano, e eram acima de tudo sua prerrogativa. Concentra-vam-se, assim, os poderes; se d. José 1 era a personagem principal, Pombal ocupa-va todo o imenso bastidor. No entanto, apesar de absoluta, a prática política continuava tradicional, assim como o reino mantinha-se permeável aos discursos e justificativas de ordem religiosa.

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11. Uma alegoria ao marquês: busto em umplinto, rodeado das figuras da Fama, da História, da Justiça e outras. "À memória do marquês de Pombal." "Vir neque silendus

neque dicendus sene cura." Antonio F. Roiz, FBN

Unificado ctessa maneira, cabia ao poder, expresso pelo lógica de Pombal, dei-xar visíveis suas marcas. O ministro do Estado, fortalecido pelos incidentes natu-rais, mostrou rapidamente como trataria da oposição. Reprimiu, prendeu, julgou manifestantes populares, e usou de igual energia com a nobreza. Aproveitando os boatos que corriam sobre um atentado contra o rei, desferiu um duro golpe con-tra esse estamento, autorizando a morte, com requintes de crueldade, de alguns de seus mais conhecidos representantes. Dizem os relatos que quando d. José regres-sava do palácio, após uma visita vespertina à sua amante, a esposa do marquês Luís Bernardo de Távora, foi ferido com tal gravidade que teve que afastar-se do poder. Depois da convalescença de alguns meses a reação foi imediata: todo um grupo de aristocratas foi preso, sobretudo membros da família Távora, entre eles o duque de Aveiro e o conde de Atouguia. A 12 de janeiro os prisioneiros foram sentencia-dos, tendo sido considerados culpados do crime de lesa-majestade, traição e rebe-lião contra o rei. O duque de Aveiro, despedaçado vivo, teve seus braços e pernas esmagados e foi queimado em seguida, assim como o marquês de Távora Velho. Na seqüência, a marquesa de Távora seria também decapitada, enquanto outros mem-bros da família, após serem estrangulados, tiveram pernas e braços quebrados na roda.62 A sentença foi cumprida em Belém e causou comoção, mas não tanto por-que o costume estivesse em desacordo com as normas européias do século xvm. A causa para tamanho alarde era a posição social das vítimas: o duque de Aveiro fica-

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13. "O trabalho perdido." Propaganda política pombalina contra os jesuítas. Texto da figura: "Desta árvore divina cujo antigo/ Eterno tronco e cruel ferezaí Pretende derribar o braço inimigo

j...| debaixo do seu peso e turba infida/ fique despedaçada e confundida". A direita, os jesuítas Sanches e Molina serram a árvore que representa a Igreja Católica. Outros jesuítas tentam

derrubá-la. Joaquim Carneiro da Silva, BNL

antes, com a criação da Companhia cio Grão-Pará e Maranhão e com a acusação de que os jesuítas lá preparavam um império de gentes ferozes e sem controle. Nesse caso, eram os interesses do Estado que entravam em choque com a política prote-cionista empreendida pelos jesuítas para com os índios.64 Mas o estopim foi mesmo o ataque regicida de 1758 e a cumplicidade atribuída aos padres. O duque de Aveiros — o principal suspeito do atentado — teria indicado, durante torturas rea-lizadas em seu interrogatório, nomes de religiosos envolvidos e que teriam instiga-do o crime; com esse processo matavam-se dois coelhos com uma só cajadada. De um lado, atingia-se a Companhia de Jesus, que até então parecia intocável em seu poder. De outro, acertava-se em cheio a nobreza, mote dileto das ações do ministro, que havia um bom tempo vinha empreendendo uma política de nobiiitação de ele-mentos ligados à indústria e ao comércio. O movimento de mudança em favor da nova nobreza foi longo e, durante os 27 anos do governo de Pombal, 23 novos títu-los foram concedidos e 23 foram extintos, sempre privilegiando o sangue novo.®5

Quanto aos jesuítas, no dia anterior à punição dos aristocratas, oito religiosos foram presos por suposta cumplicidade, mas nunca julgados. Por Fim, em 3 de setembro de 1759, data em que se completava um ano do frustrado regicídio, foi publicada a lei que considerava os jesuítas "notórios rebeldes, traidores, adversários e agressores",'3(5 e assim os expulsava de Portugal e de seus domínios.67 No mesmo

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ano, foram ordenadas a prisão e a exprilsão dos jesuítas do Brasil. Entre março e abril de 1760, 119 religiosos foram banidos do Rio de Janeiro, 117 da Bahia, 119 do Recife, e suas propriedades expropriadas em Portugal e em todo o seu Império.6* So-bre eles, recaíram todas as culpas; até mesmo a de terem exaltado os ânimos, anun-ciando castigos do céu por ocasião do terremoto. Em tempos agitados como aque-les, não faltava quem quisesse atirar a última pedra.

A morte por garrote e fogueira do jesuíta Malagrida, já velho e meio louco, em 20 de setembro de 1761, no Rossio, veiculou Europa afora a imagem de um Por-tugal atrasado e dominado pela tirania de um ministro com plenos poderes. É no mínimo irônico que a última condenação da Inquisição à fogueira individual te-nha sido contra um padre, membro de uma ordem que havia ocupado o papel principal na Contra-Reforma. Acusado de ter afirmado que o terremoto era uma punição divina a Portugal — que abandonara a verdadeira religião —, Malagrida foi morto de maneira tão irracional como eram consideradas suas conclusões acer-ca de catástrofes naturais.69 O racionalismo iluminista português punia em nome da lógica, mas acabava com a liberdade de expressão que pretendia professar ou adotava os mesmos métodos aos quais garantia se opor.

Presos em todo o país e também na América, na Ásia e na África, os jesuítas assistiram ao fechamento de suas escolas e ao confisco de seus bens, isso quando não foram encarcerados e enviados a Roma. Nesse momento, porém, a luta contra esses religiosos já se revelava como uma das muitas faces de um conflito maior, que impli-cava o combate ao poder político da Igreja e a tentativa de submetê-la ao Estado.70

O papa Clemente XIV, que até então não se manifestara, diante da aliança com outros países de tradição católica, resolveu estabelecer a paz em seus domínios mediante o sacrifício da ordem religiosa fundada por santo Inácio de Loiola. Só se explica o fato de a disputa em Portugal ter servido de elemento catalisador para a expulsão dos jesuítas na Espanha, e depois na França, por conta da política ambí-gua da Igreja e da aquiescência dos monarcas católicos. Mas a roda da sorte virava e em 1773 foi publicada a bula papal que extinguia a Companhia de Jesus e decre-tava nova vitória de Pombal, que, dessa feita, se estendia muito além dos territórios portugueses.71 Em Portugal os ganhos políticos eram claros: secularizava-se o poder, reduzindo o papei político da Igreja e submetendo-a de forma progressiva ao Estado.72 Até o poder do niíncio local foi controlado pelo ministro, que passou a legislar somente sobre o número de missas que se deviam dizer pelos mortos e o preço de cada uma. Além disso, e ajuizando que "as casas religiosas além de priva-rem o Estado de um grande número de vassalos úteis e diminuir a povoação do reino, estavam em um tal estado de abundância e riqueza que se duvidava qual das duas vendas era maior, se a do rei, se a da Igreja",73 Pombal estabeleceu um claro privilégio do Estado sobre o poder secular.

E, com a expulsão dos jesuítas, novas alterações foram introduzidas também no campo do ensino, até então dominado pela Companhia. Desde o século xvi os jesuítas controlavam uma rede de colégios em todo o país, e sua saída geraria um vácuo na estrutura educativa portuguesa. A partir de então, a palavra de ordem —

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14. Inácio de Loiola, 1556: mentor da ordem que seria perseguida por Pombal. FBN

16. ".Alegoria dos malefícios dos jesuítas." Em enquadramento retangular, aparece um

medalhão na parte superior sobre inscrição de arco e flechas. No medalhão destaca-se a figura de um jesuíta sentado, ensinando uma criança, e aconselhado por um monstro incendiário. Ao

fundo, outro jesuíta incendeia um edifício. BNL

15. A acusação formal aos jesuítas: Gabriel

Malagrida, João de Matos e João Alexandre. BNL

17. "Portugallia Renascens." Birsfo de d. José I: "pai dos Portugueses

e exterminador dos jesuítas criminosos de lesa-majestade". Os jesuítas como

bodes expiatórios diletos do Estado. BNL

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quer no ensino primário, quer no secundário — passava a ser propugnar uma edu-cação nacional que priorizasse a integração do indivíduo no Estado. Nas vilas e comarcas foram instituídos lugares de mestres de Literatura Latina, Retórica, Gramática Grega e também Língua Hebraica. Por outro lado, já em 1761 foi cria-do em Lisboa o Colégio dos Nobres, que tinha por objetivo proporcionar aos des-cendentes das famílias aristocráticas uma formação mais moderna, com novo elen-co de matérias, afastado do modelo jesuítico. E, para que não restassem dúvidas, em 1772 foi publicada uma lei que definia as linhas gerais do sistema português.

Também nesse ano são promulgados os novos estatutos da Universidade de Coimbra. A reforma pombalina na universidade foi bastante radical, tanto no que se refere ao planejamento do curso e à escolha das matérias como em relação à definição de métodos de ensino e da filosofia que regeria a instituição. Na época, assim se pronunciou Pombal: "A Universidade estava reduzida a um estado caído inteiramente nas mãos de uns poucos padres ignorantes e que sem respeito à sua instituição olhavam mais para os lucros qLie daqui lhe podiam nascer".74 A despei-to da interpretação impiedosa do ministro, o fato é que a universidade parecia se constituir em sinaleiro de mudanças mais evidentes nas bases da educação. Duas novas faculdades foram então criadas — Matemática e Filosofia —, e alterações notáveis puderam ser percebidas sobretudo em outros cursos. Enquanto no ensi-no do Direito tornava-se dominante o modelo histórico, na Medicina vigorava o método experimental, com a valorização da importância do contato entre alunos e doentes de hospitais públicos, que passavam a fazer parte das dependências da universidade. Além do mais, foram introduzidos laboratórios de química e física, assim como instrumentos científicos para demonstração prática. Afinal, a essência dessa renovação consistia na introdução de novo método que priorizava a obser-vação e não a autoridade; sobrepunha a razão à fé.

Ao lado das reformas educacionais, era posta em curso uma ampla campanha visando atingir a opinião pública, envolvendo a imprensa e as artes em geral. Tal propaganda de Estado acabou por incentivar numerosos escritos doutrinários, pinturas, gravuras e vasta literatura. Por sinal, é também na literatura que Carvalho e Melo encontrará um ponto de apoio e propaganda. Apesar da relação tensa que estabeleceu com a Arcádia Lusitana, cuja fundação presidiu em 1756 mas de cuja fidelidade sempre duvidou, Pombal acabou por apoiar um grupo de jovens escri-tores, entre eles brasileiros vindos de Minas Gerais. Era o mecenato pombalino que começava a se estabelecer a partir da eleição de estudantes como José Basílio da Gama, que apresentaria ao ministro, no mínimo, outros três colegas brasileiros: Alvarenga Peixoto, Silva Alvarenga e Joaquim de Seixas Brandão.73 Basílio da Gama não só submeteria diversas obras ao ministro, como faria um longo poema sobre o futuro marquês de Pombal, incorporando sua ação numa trama ficcional. Tra-tava-se de O Uraguai, que transpunha a história de Portugal para a América e pre-via um desenlace em que se exaltavam as decisões do ministro. Também em O de-sertor, de Silva Alvarenga, editado em 1774, a figura de Pombal aparece destacada. Em determinado momento da trama, o ministro é apresentado de forma triunfal,

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18. Planta geral da Universidade de Coimbra, cuja execução foi ordenada por Pombal. FBN

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i 9. O Uraguai, cie José Basílio da Cama, dedicado a Pombal literatura e propaganda política. FBN

entrando na Universidade de Coimbra, em 2 de setembro de 1772, por ocasião da reforma do ensino:

Já o invicto Marquês, com régia pompa, Da risonha Cidade avista os muros [...] Troveja por espaços a Justiça Fecunda mãe da Paz e da Abundância Vem a seu lado as Filhas da memória, Digna, imortal coroa lhe oferecem, Prêmios de seus trabalhos as Ciências Tornam com ele aos ares do Mondego; E a Verdade, entre júbilos, o aclama Restaurador de seu Império antigo,76

Como se vê, com o apelo à literatura, os limiLes entre realidade e Ficção pare-ciam dissolver-se. No entanto, se a forma ganhava novo lustro, o conteúdo conti-nuava frágil. Uma reforma por decreto não tinha como alterar os velhos lentes, imbuídos do antigo espírito docente. A profunda mudança nas estruturas educa-cionais não retirava os professores das salas de aula e, a despeito do importante papel que desempenhavam, seus limites ficavam um tanto abreviados.77 De toda maneira, e apesar da falta de especialistas preparados e dos entraves de ordem eco-nômica, os reflexos no campo da cultura foram bastante favoráveis. Talvez esse tenha sido um dos muitos sinais de um rompimento com as antigas alianças peninaulares, na mesma medida em que o barroco espanhol foi sendo substituído pelo neoclassicismo francês e o italiano, ou o francês passou a competir com o espanhol na condição de segunda língua nacional.

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Também o jornalismo, apesar de não ser livre, tomou impulso. Até mesmo o modesto movimento cientifico local não deixou de ser significativo: livros sobre ciên-cia e tecnologia foram publicados, além de tratados e adaptações de manuais estran-geiros. Essas novas formas de arejamento não implicavam, porém, liberdade cultu-ral. Não se tratava mais de censura religiosa, mas sim de ordem política, e aí estavam concentrados os limites do Iluminismo português, que pregava a introdução das novas idéias nas salas de atila, mas praticava a repressão à liberdade de expressão. Tudo em nome do Estado — até mesmo a sua contradição.

Igualmente relevante nos planos do Estado e para a sua propaganda foi a secularização da Inquisição empreendida pelo governo de Pombal. Os poderes da polícia dessa instituição foram apropriados pelo novo intendente-geral, em 1768, e transferidos da Igreja para o Estado. Pombal aboliu, ainda, as distinções entre cristãos-velhos e novos (intentando reintegrar esse grupo, muito enfraquecido por conta da Inquisição e que se dedicava a um lucrativo comércio), enquanto o papel de censor de livros, antes responsabilidade inquisitorial, foi confiado, nesse mesmo ano, à recém-criada Real Mesa Censória. Por fim, em 1769, o governo vol-tou-se mais diretamente contra a própria Inquisição, retirando-lhe o poder como tribunal independente, submetendo-a ao Estado e ordenando que todas as pro-priedades confiscadas pelo Santo Ofício passassem para o Tesouro Nacional. À rrente do tribunal Pombal designou seu irmão Paulo de Carvalho, que assumiu a runção de inquisidor-geral. Para terminar, revogaram-se os autos-de-fé públicos

20. Procissão em auto-de-fé: uma verdadeira mania local. Juan Alvarez de Colmenar, FBN

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e a pena de morte, medidas que visavam alterar a imagem negativa do país no exterior.73 Com o alvará de 1774, a Inquisição não era destruída, mas claramente mirrava.

Vale a pena olhar mais de perto o papel da Real Mesa Censória, criada nesse contexto. Em Portugal ela cumpriria o papel de secularizar o controle e as proibi-ções religiosas, que havia longo tempo restringiam a entrada de idéias no país. A situação era paradoxal: a Real Mesa Censória fora introduzida com o intuito de tirar da Inquisição seu antigo papel, mas se transformava em um novo tribunal a impedir o livre fluxo de livros no país. Eram proibidas obras que defendessem idéias contra o catolicismo, que descrevessem cenas obscenas, práticas mágicas e astrológicas, ou ainda que se manifestassem negativamente com relação ao gover-no e a seus soberanos. Além disso, os novos censores tinham lá suas preocupações concernentes a tudo o que lembrasse a Ilustração. Aí estava um equilíbrio difícil dentro do reformismo português, que advogava a entrada do pensamento crítico das Luzes, porém pretendia conter seus "excessos" mais danosos — entre outros, a contestação ao absolutismo real e ao sistema colonial. Também desse ponto de vista secularizavam-se as relações, mas não se alteravam radicalmente as estrutu-ras: o acesso a obras de caráter mais filosófico continuava dificultado, assim como a livre circulação de tratados científicos.

Até mesmo a atuação da Mesa Censória é paradoxal, uma vez que sistemati-camente liberava para seus proprietários ou livreiros títulos antes banidos pela In-quisição. Entre tantos podem-se citar Oeuvres, de Voltaire (sobretudo as obras de teatro), Patnela, de Richardson, Esprit des lois, de Montesquieu, e Essays on human understanding, de Locke.79 Em 1769, por exemplo, a Real Mesa Censória ordenou que todas as livrarias, gráficas, editoras e bibliotecas entregassem relações conten-do os livros e manuscritos existentes em seus acervos. E, nesse processo, continua-vam condenadas obras que divulgassem conteúdos de "irreligião e a falsa filosofia dos livros dos chamados 'filósofos5"®0 Com tantas idas e vindas, livros de autores como Voltaire, Diderot e Rousseau estavam sempre sujeitos a interditos imediatos, ou futuros.81

Era, portanto, um Iluminismo complexo esse que entrava em Portugal, ani-mando a leitura de algumas obras e mantendo a proibição de outras. No entanto, a própria conformação interna dos membros da Real Mesa permitia alguma espe-rança. Os principais censores provinham da ala mais reformista da Igreja, desta-cando-se o frei Manuel Cenáculo Vilas Boas (1724-1814),B2 confessor do príncipe d. José; o padre Inácio de São Caetano, confessor da princesa Maria; o padre Antônio Pereira de Figueiredo; o brasileiro doutor Francisco de Lemos e seu irmão, o jurista João Pereira de Azevedo Coutinho. Mesmo assim, novamente a noção de liberdade, tão cara ao século xvtil, ficava comprometida diante da atividade de cen-sura da nova instituição, que trazia como novidade a idéia de que se velava pela doutrina católica, de acordo com o poder real (seu protetor), e não tendo Roma como referência imediata. Para ter uma idéia do montante de livros apreendidos, basta lembrar que a Real Biblioteca Pública, criada por decreto em 1775, foi basi-

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junho de 1759, a designação "Praça do Comércio" surgiu em um aviso de Pombal a propósito da reconstrução do lugar, como se a praça fosse havia muito reconhe-cida por essa designação. Por vezes o nome fora traduzido como "Real Praça do Comércio", mas o certo é que havia intencionalidade política nesse detalhe. A nova praça deveria simbolizar o modelo de cidade que então se arquitetava, e seu nome não era de somenos importância. Substituindo a vida de corte de outrora por uma "vida moderna", ou melhor, útil, comercial e distinta do palácio real, o Terreiro do Paço, agora rebatizado, representaria o fórum da nova Lisboa. Ali estavam a Alfândega, a Bolsa dos Comerciantes, os Tribunais, os Serviços Piiblicos; enfim, todas as instituições que marcavam a recente orientação mercantilista, sob a forma de um grande teatro do comércio de Portugal.S5 E pouco espaço sobrava para o palácio do rei d. José, que ficaria mesmo em outro local, mais apartado desse cen-tro de decisões.

Em meio a uma vasta praça exposta sobre o rio, um novo cenário se abria, coadunado com os novos tempos. Nela estariam, não só os edifícios do governo e da administração, ou um belo arco triunfal, como ainda uma vistosa estátua eqües-tre de d. José, troféu merecido dos feitos do monarca. Com relação ao monumen-to, as posições oscilavam: enquanto a estátua era a menina-dos-olhos de Pombal, já ao rei parecia pouco importar. Na verdade, tratava-se mais de um elemento a comprovar a proeminência do ministro na atuação do Estado. Para tanto, basta observar a presença do marquês em um medalhão próximo ao rei e disposto iogo abaixo no pedestal da estátua. Por sinal, tal piano teria se originado togo no início da reconstrução de Lisboa, ainda nos anos de 1750, e serviria, na visão de Pombal, como alegoria do término triunfal das obras. Tomando o final pelo começo, Carvalho e Melo já imaginava a glória de seu projeto urbanístico, sem tempo para temer insucessos.

Por outro lado, é bom que se diga que a idéia de construir um monumento em homenagem às glórias do presente não era nada original. A estátua eqüestre de Lisboa poderia ser inscrita dentro da tradição francesa, definida entre Henrique iv e Luís x iv , seguida na Europa do século XVIII Mas a particularidade portuguesa fica-va por conta de sua mensagem: em nenhum outro local uma obra capturou tanto para si as esperanças na reconstrução nacional. A estátua, que seria "a última pedra" da Lisboa pombalina, era também o símbolo, por excelência, de um novo Portugal, e fazia parte dos planos do ministro, que já nos primeiros desenhos, confiados ao arquiteto Eugênio dos Santos, fez questão de imprimir sua assinatura. Os rascunhos originais não traziam, isso é certo, o medalhão com a efígie de Carvalho e Melo, que tanto motivo de polêmica causariam. Mas a história redimiria a falha.

Para a construção foi escolhido o modelo de Joaquim Machado de Castro, es-cultor que contou com tempo curto para executar a tarefa. Apesar disso, o cavalo e o cavaleiro perderam o ar atarracado que tinham nos primeiros projetos, a arma-dura tornou-se mais fina, as pregas do manto adquiriram movimento, e a cabeça do cavalo e a do rei foram levemente inclinadas para a direita, a fim de perder a rigidez inicial. O artista foi ainda mais longe: não podendo tirar a veste romana do

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23. Estátua eqüestre de d. José I: com ela iniciava-se uma nova era. FBN

24. "O escultor Joaquim Machado de Castro apresenta ao marquês de Pombal o modelo

da estátua eqüestre recebendo elogios e tendo sua obra aprovada." Em tempos de Pombal

tudo virava matéria para a divulgação dos feitos do Estado. Maurício José

do Carmo Sendim, BNL

rei e seu elmo, fez desaparecer o leão que o cavalo pisava, substituindo-se por ser-pentes, que ajudaram a conferir à estátua um ar ainda mais acadêmico e coaduna-do com os cânones da época. Por fim, introduziu-se o medalhão com a feição do ministro, prova de seus vínculos imediatos com o Estado.

Sua inauguração deu-se em 6 de julho de 1775, dia em que o rei completava 61 anos. D. José i pôde então ver-se fundido em bronze, em cima do seu cavalo, metido em uma armadura bélica, que jamais usara. A construção da praça e a da estátua, que andavam muito atrasadas, deveriam marcar o centro de tudo, e, além disso, simbolizariam os trabalhos que estavam por vir. Três mil operários trabalha-ram dia e noite para garantir essa bela realização teatral, que tinha data para estrear. O espetáculo foi idealizado com tal rigor de detalhes que o rei e sua famí-lia (a rainha, os quatro filhos, o genro, o irmão e os netos) estiveram ausentes da cerimônia; ou melhor, permaneceram formalmente ausentes, uma vez que assisti-ram a tudo da Alfândega, para onde foram discretamente conduzidos. Não se pode afirmar com certeza se a medida fora motivada por receios de um novo atentado, ou se tivera como causa a fraqueza física do rei, ou ainda o medo do próprio so-berano, que sempre evitou aparecer em público. O certo é que, sem o soberano, restava a estátua, e os regimentos passavam em frente às janelas fingindo ignorar a presença de quem lá estava, quando não optavam por reverenciar com gestos pro-fundos e sinceros o novo monumento de bronze.

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O ministro ganhou, então, o centro das atenções e inaugurou a estátua que se erguia no meio da Praça do Comércio, e não numa praça chamada "Real". Es-cusado será dizer que foram Pombal e o filho que puxaram os cordões para desco-brir a nova obra. Os festejos dura ram três dias e apresentaram fogos de artifício, exercícios militares, i luminação pública, espetáculos de ópera, um baile e um ban-quete para o povo. Tudo foi comandado, presenciado e comemorado por Pombal, que era o autor dos cultos que a si próprio tributava, e aproveitava a ocasião:

Depois de terem os suntuosos e bem delineados edifícios de Lisboa acreditado tanto a arquitetura, a portentosa estátua eqüestre, o soberbo e delicado pedestal dela, a eleva-ção e colocação daqueles incomportáveis pesos e a primorosa estampa que sucessiva-mente manifestou ao público os merecimentos daquelas dificílimas obras, todas feitas por mãos de portugueses.85

Pombal, porém, envolto pela alegria da festa, concluiu rápido demais; nem a reconstrução de Lisboa era uma realidade e muito menos havia no reino ambien-te propício ao desenvolvimento cultural e artístico.

Em suma, Pombal, que nessa época teria f rus t rado um atentado contra a sua pessoa, não se esqueceu de utilizar polit icamente o evento, e não esperou muito para fazê-lo.k7 Oito dias após a inauguração da estátua, o ministro entregou ao rei

25. Mapa ou gráfico circular das despesas durante a construção da estátua eqüestre. Indicação das despesas das cerimônias de inauguração inserida em medalhão suspenso de varão com fitas. Dois medalhões de dimensões menores, igualmente suspensos por fitas, delimitam o escudo real e as armas da cidade de Lisboa. Encimando o medalhão central, a representação da estátua de d. José I. Especificam-se gêneros, mão-de-obra, transportes, criação, cozinha. Manoel Gomes Vieira, BNL

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um documento em que expunha a importância simbólica das festas de inaugura-ção. Tratava-se das Observações secretíssimas,88 texto em que desenvolvia uma idéia básica: a inauguração da estátua representava um novo tempo, a inauguração de um Portugal grandioso, que remetia à época de d. Manuel e d. João m. O manus-crito trazia explícita a "aritmética política" de Pombal e os princípios básicos de seu Estado, nove no total: o desenvolvimento da cultura geral, o incremento das indús-trias, o progresso das artes, o progresso das letras, o progresso científico, a vitalida-de do comércio interno, a riqueza do comércio externo, a paz política, a elevação do nível de riqueza e bem-estar.89 Num exercício de autopromoção, Pombal subli-nhava as mudanças empreendidas por ele e, tendo estabelecido as estruturas de seu governo, passava a mostrar como boa parte dessas metas já havia sido lograda e que, portanto, era preciso olhar para Portugal com novos óculos e lentes. O texto, superlativo, revelava os alicerces da ação do ministro de Estado. Nele estavam con-tidas as bases desse exercício de patr iot ismo exacerbado, desse desejo de autono-mia econômica, da preocupação com uma imagem externa que afastasse Portugal da associação com o atraso, do apoio à alta burguesia, da supressão dos conflitos de classe em nome da unicidade da vontade do rei e de um sentido estético apri-morado, que impunha uma aparência grandiosa, mesmo que às custas da miséria escondida e da falta de recursos. Um absolutismo ilustrado e reiterativo se instau-rava, consolidando padrões da elite, secularizando o Estado, mas mantendo a cren-ça em Deus e em seus desígnios.

O recurso ao teatro da política parece ter sido uma constante na atuação de Pombal, que, ao que tudo indica, confiou na dimensão simbólica do exercício polí-tico e de sua efetivação ritual. Se as finanças saneadas consti tuíam os alicerces de um governo forte, o lustro da cultura estatal garantia brilho fácil e aparecia sinte-tizado nas Observações, que representa o governo pombal ino em sua perspectiva triunfalista. Era como se um projeto carregasse consigo a qualidade de converter Lisboa numa "cidade esclarecida", ou então que o p lane jamento racional e o traça-do das ruas a régua garantissem novos espíritos.

No desenho geométrico das ruas, na arquitetura monumenta l , no perfil homo-gêneo dos edifícios ficavam refletidas as concepções de Pombal sobre Estado e socie-dade: traços iguais, linhas retas, regras fixas... Para completar a tarefa, regulariza-ram-se as funções da polícia, de modo a permitir maior segurança nas ruas. Nas rrgulhosas palavras do marquês, que tributava tudo à sua própria administração:

Lisboa que antes da administração do marquês era muito notada pela sua má polícia, que era perigoso andar pelas ruas de noite depois de ser escuro, onde os assassínios eram considerados como acidentes comuns, se acha hoje tão mudada, [... ] que creio acontecem agora menos desordens nas Ruas de Lisboa do que em outra qualquer cida-de Capital da Europa.90

No entanto, por mais absoluta que fosse, a atuação de Pombal não era consen-sual. O própr io rei, afeito a sugestões de fanatismo, parecia mais compromet ido com a ação divina do que com os desígnios humanos . O susto, ainda al imentado

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por novos pequenos tremores de terra, dava opor tunidade para o recrudescimen-to da religiosidade, p ron tamente aproveitado pelos setores que se opunham a Pombal. O ministro, porém, continuava sustentando que o terremoto era resulta-do da natureza e não da explosão da cólera divina. Insistia nas reformas urbanas, educacionais e culturais, enquanto parte do Senado se preocupava em aprovar que, em todo o reino, se realizassem procissões em honra da Virgem; isto é, "enquanto o mundo durasse".91 O problema tinha várias faces. De um lado, o poder estava de tal forma vinculado à figura do ministro que quase com ele se confundia . De outro, a aceleração rumo à secularização da sociedade pagava um preço caro:92 o fanatis-mo continuava geral, e o descontentamento popular clamava por programas so-ciais, com maior suporte moral.

Até a Família Real andava carente de sinais que demonstrassem prosperidade ou simples lustro. Aliás, nessa época, não havia exatamente corte. O próprio sobe-rano se acomodara em casas de madeira, com inúmeras e mal articuladas depen-dências, cuja pobreza era disfarçada apenas por alguma tapeçaria e pouca prataria. De vistoso sobrara só um pequeno Jardim Botânico, que, apesar de criado dentro do espírito científico, com o tempo e por conta de alguns poucos arranjos luxuo-sos teria indignado Pombal. Por outro lado, a nobreza portuguesa se apagara de vez com a política do ministro, que cortara as cabeças mais altivas, fizera desaparecer numerosos titulares e prendera outros tantos.

26. "A Lysia apresenta às quatro partes do mundo o retrato do grande marquês de Pombal que sustentam a amizade, a memória grata aos benefícios que dele recebeu a nação portuguesa. A um lado se vê a Justiça mandando à História que escreva os atos públicos de tão grande ministro e a Inveja precipitando-se

furiosa por não poder macular o seu insigne merecimento: do lado oposto os apresenta a Fama, que voando publica ao universo os memoráveis fatos que assinalarão a sua sábia e ilustrada administração e que tanto influirão na prosperidade e grandeza de Portugal." Por meio das imagens, Pombal assegurava seus feitos e a perpetuação de sua memória. Maurício José do Carmo Sendim, BNL

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Mas os t remores que haviam derrubado e incendiado o antigo palácio real, e t ambém sua moral, não derrotaram de vez os anseios da corte. Além da recons-trução de Lisboa, com seus novos palácios, igrejas e chafarizes, ergueu uma luxuo-sa residência de campo para a Família Real em Queluz, onde se copiou em escala reduzida o estilo do Palácio de Versalhes, da França. Assim, se a nova Lisboa era a imagem do marquês e da classe burguesa em que se apoiava, a corte criou sua pró-pria obra, afastada do modelo ascético do ministro. Cada vez mais fechado em si mesmo, isolado do mundo nacional que se alterava de forma acelerada, o Palácio de Queluz t ransformava-se em palácio de veraneio da corte, antes de se converter em centro da reação contra o mundo que Pombal arquitetou.93 Lá estava um fenô-meno oposto à Lisboa reconstruída; um local onde se inscrevia a pouca originali-dade artística da corte portuguesa, mas t ambém onde se deixava transparecer a representação de dessa nobreza que trazia o rocaille a Portugal, na segunda metade do século XVIII. Tal qual um barroco tardio, nele manifestava-se a tradição áulica inscrita na mediocridade e de um mundo que estava para terminar. Mas Queluz, com seu gosto cortesão mais fictício do que real,94 ainda tomaria a desforra sobre Lisboa, e para isso temos que esperar ainda um pouco.

Antes disso, voltemos ao Palácio da Ajuda, residência oficial da monarquia . Ali ficariam morando, de forma precária, os soberanos portugueses e seus filhos, acos-tumados agora a pouco luxo e comodidade. Dizia-se até que o monarca teria opta-do por moradias menos estáveis, com medo de novos terremotos e da quantidade de mármore que sobraria sobre sua real cabeça. A moda pegou e a própria nobreza se acostumou aos famosos "barracões", emblema de uma época marcada pela insta-bilidade.

27. O Palácio Real da Ajuda em Lisboa se converteria na nova residência

do rei em tempos de pós-terremoto. Alexandre de Michellis, BNL

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Os tempos eram, porém, de reconstrução, e, assim como se aparelhava a corte, novos projetos ganhariam destaque. Se o Paço Real parecia se constituir apenas em um cenário menor do Estado, agora caracterizado por sua racionalidade burguesa, sua "Livraria" começava a merecer outro tipo de atenção. Pombal com certeza ouvira falar da antiga Real Biblioteca, e não desconhecia a importância prática e mesmo simbólica de uma instituição como aquela. De fato, a Real Livraria, bem como muitas outras, t inha sido alvo de comentários de viajantes e eruditos da época. O padre Louis Jacob, por exemplo, cita-as no seu célebre livro Traicté des plus belles bibliothèques publiques e particulières [...] dans le monde, publicado em 1644 e especialmente escrito para a reedição do texto de Gabriel Naudé — Advis

pour dresser une bibliothèque —, espécie de "manual" dos bibliógrafos da época. Por outro lado, e como sabemos, fora notório o trabalho despendido por d. João v e seus antecessores. Antônio Ribeiro dos Santos — na época bibl iotecário-mor da Universidade de Coimbra e que viria a ser o pr imeiro da Real Biblioteca Pública da Corte —, a despeito do exagero nas estimativas, oferece informações relevantes numa carta enviada a um contemporâneo:

a Biblioteca começou a ser rica de cinqüenta mil volumes, a que chegou o Sr. D. Manoel, o qual havia feito entrar nela as melhores edições de seu tempo, e todas as pri-meiras dos Clássicos Gregos e Latinos: cresceu depois em mais cabedal de livros que foram nela entrando nos tempos seguintes até o reinado do Sr. Rei d. José. Pedro Gendron, mercador de livros e homem erudito em conhecimentos bibliográficos e que tinha visto muitas bibliotecas da Europa, afirmava que nenhuma vira provida de tan-tas edições antigas como ela.95

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O fato é que dentro da gramática política do ministro ganha lugar o plano de reconstruir duas livrarias reais. Enquanto a Real Biblioteca Pública da Corte surgi-ria como resultado imediato dos trabalhos da Real Mesa Censória, a Real Biblioteca, que nos interessa mais de perto, seria refeita com o fito de substituir a antiga cole-ção, a juntada por tantos monarcas portugueses. Para tanto, reservou-se um novo espaço — o Palácio da Ajuda —, e se buscou guardar o formato da anterior. Ali esta-riam reunidas, a bem da verdade, duas coleções diferentes: a Livraria Real (bibliote-ca privativa dos monarcas e, no limite, da própria nação) e a do Infantado (especia-lizada na formação dos filhos dos soberanos). Cuidava-se, assim, da educação dos novos monarcas, garantia-se documentação para casos de limites e fronteiras e, de quebra, caprichava-se na imagem de uma nação que se queria erudita e civilizada.

O reaparelhamento da biblioteca fazia parte dos planos da monarquia portugue-sa e combinava com as aspirações do Iluminismo pombalino. Se a questão era cons-truir cenários, mostrar pujança e cultura, aí estava um no qual valia a pena investir.

29. Representação que mostra, sempre deforma grandiosa, Pombal sendo avisado de que suas

ordens haviam sido cumpridas e todos os jesuítas, embarcados. Maurício José do Carmo Sendim, BNL

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CAPITULO

UMA NOVA BIBLIOTECA: UM NOVO ESPÍRITO

1. A extensa livraria de Lackington. FBN

Esses exemplos permitiram a um bibliotecário de gênio descobrir a

lei fundamental da biblioteca. Esse pensador observou que todos os

livros, por mais diversos que sejam, comportam iguais elementos: o

espaço, o ponto, a vírgula, as 22 letras do alfabeto. Ele trata, tam-

bém, de um fato que todos os viajantes confirmaram: não há, na

vasta biblioteca, dois livros idênticos. Dessas premissas incontrover-

sas ele deduziu que a biblioteca é total, e que as suas prateleiras con-

signam todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos

ortográficos (número, ainda que vastíssimo, não infinito), quer di-

zer, tudo aquilo que é possível exprimir em todas as línguas. Tudo,

a história minuciosa do porvir, as autobiografias dos arcanjos, o ca-

tálogo fiel da biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a de-

monstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia

do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comen-

tário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho,

o relato verídico de tua morte, a tradução de cada livro em todas as

línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros. Quando

se proclamou que a biblioteca guardava todos os livros, a primeira

reação foi de uma felicidade extravagante.

Jorge Luis Borges, "A biblioteca de Babel", in Ficções

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Umber to Eco, em O nome da Rosa,] conta uma história que se passa n u m mosteiro medieval, em que se vivia a maior parte do tempo entre livros. Monges copistas, grandes estudiosos e leitores de textos religiosos reuniam-se naquele local — de culto a Deus, bem como a algumas de suas obras mais grandiosas, ins-critas em manuscr i tos maravilhosos espalhados por mesas e estantes. Não é o caso de resumir a t rama e mui to menos a sucessão de assassinatos que f izeram daquele local santif icado uma mostra do que se é capaz de realizar e destruir no m u n d o dos homens . Impor ta mais guardar a situação em si e t a m b é m a figura central da narrativa: Jorge, o monge cego responsável pela grande biblioteca, dono de seus segredos e das lógicas de classificação que organizavam o recinto. E o romance diz mais: examina o poder de uma biblioteca e a au tor idade advin-da de quem a controla. Uma biblioteca como aquela condensaria "todo o saber acumulado no m u n d o " e daria a seus f reqüentadores uma importância só avalia-da pelos eruditos que, de fato, conheciam de perto as potencial idades de um te-souro como aquele. Mas ainda falta falar um pouco mais de Jorge: autor idade máxima naquele mundo de livros, a percorrer corredores e prateleiras do mostei-ro sem a a juda dos olhos, mas com a destreza de um exímio equilibrista. Melhor ainda é perceber o calibre da metáfora contida nessa personagem poderosa e se-nhora de todas as sabedorias. O homenageado é jus tamente Jorge Luis Borges, um mago das letras que com sua pouca visão desnudava a lógica ilógica das classifi-cações, um exercício que faz parte da prática de qualquer biblioteca, esses gran-des acervos de acervos, verdadeiros projetos universais capazes de conter uma miríade de combinações.

A história das bibliotecas e do sonho de acumular todos os pensadores, obras e ciências em um espaço delimitado faz parte da própria história do Ocidente. Em nome dessa utopia idealizaram-se acervos — particulares, estatais, principescos ou eclesiásticos —, t rans formou-se a busca de edições raras ou de livros desapareci-dos em "questão de segurança", e ergueram-se majestosos edifícios que ostentavam em seu visual a força e a imponência que a empreitada pretendia representar.

Não é fácil, portanto, definir uma biblioteca: essa história é longa e se perde — como o labirinto de suas estantes — por entre versões e modelos distintos. A saída mais rápida seria lembrar exclusivamente aquelas que se conhecem e, assim, recordar seu papel na conservação da memória e do pa t r imônio literário, artístico e intelectual, ou o diálogo que estabelecem entre um passado bem guardado e o presente, sempre reelaborado.

Esse local labiríntico é, entretanto, e acima de tudo, uma instituição, onde se desenham desígnios intelectuais, realizam-se políticas de conservação, elaboram-se modelos de recolha de textos e de imagens. Mais do que um edifício com pratelei-ras, uma biblioteca representa uma coleção e seu projeto. Afinal, qualquer acervo não só traz embutida uma concepção implícita de cultura e saber, como desempe-nha diferentes funções, dependendo da sociedade em que se insere.

Nesse sentido, as bibliotecas do Ocidente, além de cumprir um importante papel na história do pensamento, apontaram limites da tradição, evidenciaram a

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2. Uma loja onde se vendiam livros e outros artigos. FBN

organização de escolas e revelaram divisões internas e conflitos. Talvez por isso mesmo tenham se convertido, muitas vezes, em ins t rumentos de poder. Quer por meio da influência espiritual da Igreja, quer em nome da força temporal do rei, dos príncipes, da aristocracia, da nação ou da República, o fato é que as bibliotecas se t r ans fo rmam, facilmente, em moeda de prestígio e geram concorrência entre aque-les que detêm seu controle.

Há t a m b é m coincidências na história comum das bibliotecas. Ela seria mar-cada por um mito que aglutina as imagens de Babel e Alexandria, dois pólos máximos da mesma representação.2 De um lado, a biblioteca aparece como metáfora do inf ini to e do universal, desse saber que gera o própr io descontrole, de um tempo sem movimen to em que as palavras, p ronunciadas em sincronia, acabam perdendo o sentido e a própria possibilidade da comunicação. De outro lado, sob a constante ameaça de incêndio, aparece como s inônimo da destruição e da perda total. Nos inúmeros regulamentos, nas regras internas aos func ioná -rios, nos tantos lembretes que fa lam do perigo do fogo... aí estariam acumuladas algumas das muitas pistas deixadas pelos bibliotecários, indícios de como o exemplo de Alexandria não representa um caso isolado e muito menos o passa-do distante.

O temor da perda não se limitou, porém, ao fogo; ele incentivou a busca de textos ameaçados, a cópia de livros considerados preciosos, a impressão de ma-nuscritos e a construção de grandes edifícios capazes de armazenar impressos,

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3. Biblioteca da Universidade de Leiden em 1610: um modelo para as demais. FBN

originais, mas t a m b é m mapas e estampas. E os perigos sempre fo ram muitos. Havia problemas com a qualidade da cópia e a corrupção dos textos — a própria mão do escriba que os conservava era responsável por novos erros —, e lamenta-va-se, sempre, o excesso: excesso de manuscri tos, de livros, de códices... Na fala queixosa dos bibliotecários, a "falta" foi tema constante, além do "acúmulo" e da impossível classificação desses acervos, cuja meta principal era jus tamente reco-lher e guardar.

Surgiram projetos, projeções e respostas distintas, que se inscreveram no per-fil original de cada acervo. Não obstante, é preciso confessar que só conhece-mos, e mais ou menos bem, a história de um pequeno número de bibliotecas clás-sicas. Afinal, tomadas como conjunto , as bibliotecas da Antigüidade não passam de uma série de fundações , catástrofes e reconstruções. E, se as públicas foram as mais atingidas — pois quase sempre se localizavam junto da morada dos reis e autoridades —, deve-se às part iculares, na maior parte das vezes, a responsabili-dade e a herança dessa lembrança feita de textos. Foram esses pequenos acervos que pe rcor re ram a história, guardando as idiossincrasias de seus propr ie tár ios ; preservados da atenção externa, conservaram a d imensão e as características das bibliotecas de outrora, al tamente castigadas, pelo fogo ou pela ira da guerra e dos homens .

Vale a pena, portanto, tentar recuperar os passos dessa história, cuja memória foi guardada por pequenos f ragmentos dispersos. O próprio termo já revela deter-minada procedência e especificidade. Biblios e poster iormente biblion são palavras

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de origem grega que significam "livro", ou então, "casca, película de papiro". Por sua vez, o termo "biblioteca" surgiu da união de duas palavras gregas — biblio e têke— que teriam o significado conjun to de "prateleira ou depósito para guardar livros, escritos, rolos de papiros e de pergaminho a r rumados em estantes". Hoje em dia uma biblioteca é essencialmente uma coleção de livros — em geral aberta ao públi-co —, mas seu sentido nem sempre foi esse. As bibliotecas mais antigas nasceram no Oriente, e abrigaram basicamente documentos gravados em pedra. No entan-to, com o surgimento do pergaminho e a maior disseminação da escrita, funda -ram-se os primeiros estabelecimentos de formato semelhante ao que hoje conhe-cemos. Mas essas instituições não eram -— nem obrigatoriamente e muito menos em sua maioria — devotadas ao público; pelo contrário, eram freqüentadas por estudiosos que, dentro de um círculo muito fechado, consumiam e produziam conhecimento.

Todavia, não se pode pretender contar a história das bibliotecas sem vinculá-la ao destino de Alexandria. Essa, por sua vez, não se parecia com as salas de leitu-ra atuais: tratava-se de uma biblioteca sem público, cuja finalidade era menos a difusão do saber e antes a realização de uma utopia antiga que supunha o acúmu-lo de todos os textos da terra, bem no centro do palácio real.3 Não por acaso a biblioteca se converteu em ícone; não tanto por conta de sua arqui te tura ou de seu tamanho descomunal, mas sobretudo em função da decisão política de con-gregar num mesmo lugar os livros do presente e do passado, dos gregos e dos po-vos bárbaros. Alcançava-se um modelo de universalidade, no qual cabiam os co-nhecimentos de si e do "outro"; aquele a quem domino, con taminando-me do seu conhecimento.

A origem de Alexandria remonta ao ano de 331 a.C., quando Alexandre o Magno f u n d o u a cidade a oeste do Nilo e a t r ans fo rmou em capital do reino do Egito. Assim, como "cidade nova", Alexandria — centro urbano grego e de cultura helênica em terras egípcias — deveria criar sua própria memória . Sua biblioteca, que se unia a um museu e ao túmulo do imperador, nascia em meio a imagens múltiplas, que acomodavam o conhecimento laico, com uma memória sagrada e uma noção pouco terrena do tempo. Com efeito, boa parte das bibliotecas da Antigüidade situa-se em templos, sem ter, contudo, função eminentemente religio-sa. Segundo os especialistas, só com Aristóteles (384-322 a.C.) é que se alteraria a definição dos livros, reconhecendo-se sua importância como fonte de in formação e de ensino.4

Para ir de Atenas a Alexandria deve-se, porém, dar mais do que um passeio breve. De propr iedade privada, integrada a uma escola filosófica independente da cidade de Atenas e f inanciada pela generosidade dos estudantes e pela for tuna pes-soal, a biblioteca se convertia, em Alexandria, em negócio de Estado, custeado, controlado e definido pelo soberano. E ainda mais: de seletiva passava a universal, ao menos como projeto. Em vez de permitir a exposição do pensamento e das má-ximas de um só grupo, ela se apresentava como um ponto de convergência, inde-pendente de clivagens e concorrências intelectuais. No lugar do escolarca temos o

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4. Porto de Alexandria: é lá que nossa história começou. FBN

rei; a justa medida deixa de ser o conhecimento possível, para almejar grandes totalidades.

Falta entender por que uma biblioteca se mostrava tão estratégica para os pro-pósitos reais. Sua eficácia parecia estar atrelada ao papel dos livros como bens sim-bólicos; suportes importantes capazes de ser revertidos em grandes ganhos políti-cos. No caso de Alexandria, por exemplo, tratava-se de valorizar uma cidade nova, formada por imigrados e contraposta à tradição grega. Dessa maneira, a margina-lidade geográfica e cultural era compensada por uma nova centralidade simbólica, que premiava o local com "toda a memór ia do mundo" e o t ransformava em refe-rência para intelectuais e eruditos do Mediterrâneo helenístico e greco-romano. Além do mais, estabeleceu-se ém Alexandria um efeito ilusório entre a cidade e a biblioteca, já que os cinco bairros foram batizados tendo como critério as letras do alfabeto: Alfa, Beta, Gama, Delta e Épsilon. A cidade convertia-se, assim, em paró-dia e ganhava uma mensagem do tamanho das aspirações reais: Alexandros Basileus Genos Dios Ektisen (polin amiméton), "o rei Alexandre, da raça de Zeus, f u n d o u uma cidade inimitável".5

Engana-se, porém, aquele que acredita que o livro nasceu feito. Naquele momento , ele não era nem ao menos um códice (que implica vários documentos avulsos reunidos e costurados num só volume) que se pudesse folhear. Era antes um volume que se desenrolava com a mão direita e se enrolava com a esquerda. Por sinal, não deveria ser fácil a tarefa de redigir e ler esses rolos frágeis de papiro, que variavam entre 2,5 e 12 metros de comprimento , com altura média de 16 a 30 centímetros. Para piorar, o texto era apresentado em colunas paralelas, o que fazia com que, conforme o gesto, se tivesse pela frente muitas linhas dispostas simulta-neamente. Por fim, ao se terminar a leitura, o texto estava enrolado ao avesso, o

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5. Rolos de papiro e seu comércio: leituras de muitas formas. FBN

que, ao invés de constituir problema, poderia ser solução: como o rolo trazia texto de ambos os lados, ele se prestava a uma leitura continua, que permit ia um cons-tante recomeçar e a elaboração sucessiva de novas interpretações.

Essa leitura que pedia o uso das duas mãos trazia, entretanto, algumas limita-ções. Entre elas, impedia que um autor escrevesse ao mesmo tempo que lia, o que implicava duas saídas diferentes: ou os textos deveriam ser ditados em voz alta, ou o rolo deveria ser fechado, para dar continuidade às anotações. Além do mais, difi-cilmente se podiam comparar ou cotejar diferentes f ragmentos de textos, fosse por conta da desajeitada tarefa de enrolar e desenrolar extremidades sobre dois supor-tes de madeira, fosse por causa da extensão dos documentos.6

É bem possível imaginar as dificuldades da empreitada, uma vez que cerca de 500 mil rolos (entre "não misturados" e "misturados" — um livro ou vários em um mesmo rolo) c o m p u n h a m a biblioteca de Alexandria. É certo que todos eram clas-sificados e que pequenas etiquetas coladas em seu dorso, sobressalente à prateleira, permit iam a identificação do autor e do título do livro. No entanto, esses catálogos só faziam sentido para quem os conhecesse previamente, o que tornava a classifi-cação um exercício de metaexegese.

Essa moda se expandiu, e outras bibliotecas em Pérgamo e Antioquia fo ram tomando forma, ao mesmo tempo que ocorreu o desenvolvimento de bibliotecas públicas em Roma, nos anos de governo de Júlio César. Na Grécia, de maneira geral, coletavam-se livros em número elevado, e na Roma Imperial chegavam a 28 as bibliotecas públicas. E, com o aumento dessas instituições, outras inovações iam sendo processadas. De um lado, desde o século n, manuscri tos da Bíblia foram encontrados sob a fo rma de códices escritos sobre papiros. De outro, com relação aos textos gregos, literários e científicos, a adoção da nova forma de livro e códice tardou: apenas entre os séculos 111 e iv nota-se certa tendência nesse sentido. E não

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eram poucas as vantagens do códice: a utilização dos dois lados do suporte, a dimi-nuição do módulo da escrita, a redução das margens, a reunião de um número maior de textos em um volume menor e a manipulação mais prática. Permitia, ainda, a comparação de uma passagem com outra ou o exame do livro em sua inte-gridade, o que de algum modo explica a adaptação da nova forma de livro às neces-sidades do cristianismo, cada vez mais dominante, e que previa a confrontação dos Evangelhos e citações da palavra divina.7

Essa situação tendeu a se af irmar com a queda do Império, quando os acervos medievais f icaram quase que restritos aos conventos e mosteiros, que se converte-ram em locais privilegiados para a compilação e conservação de livros. Com isso, esse tipo de poder ficaria crescentemente nas mãos da Igreja, que se dedicava à tarefa dando prioridade aos textos religiosos e ao segredo de sua posse. Durante boa parte da Idade Média, os monges estiveram de tal maneira associados às bi-bliotecas que prat icamente se converteram em sinônimos entre si. Como se dizia na época, Clastrum sine biblioteca quase castrum sine armamentaria: "Um mostei-ro sem livros é uma praça de guerra sem provisões".8

Esses religiosos praticavam tanto a leitura coletiva, como a individual. Por sinal, muitas eram as formas de leitura. A "leitura intensiva" era aquela que se rea-lizava com poucos livros, que eram absorvidos de maneira reverenciai e respeito-sa. Como se tinha acesso a um número pequeno de obras — em geral a Bíblia e uma ou duas outras obras religiosas —, os monges liam os mesmos livros inúme-ras vezes, geralmente em voz alta e em grupos. O pressuposto, porém, era que a lei-tura reiterada levava a novas interpretações e aprofundava conhecimentos. Por sua vez, a "leitura extensiva" implicava o consumo de muitos textos, passando-se de um a outro sem lhes conferir nenhuma sacralidade. Existia, por fim, uma leitura da intimidade, da solidão e da clausura, contraposta à coletiva, feita nos espaços comunitários.9

Nesse momento estava-se diante de uma mudança fundamenta l : a passagem de uma leitura necessariamente oralizada, indispensável ao leitor para a compreen-são do sentido, a uma outra, possivelmente silenciosa e visual. Essa revolução foi lenta, durou toda a longa Idade Média, quando a leitura mais quieta, mais caracte-rística dos séculos vn ao ix e de certa maneira restrita aos scriptoria monásticos, ganhou o mundo das escolas e das universidades no século xn e, dois séculos mais tarde, as aristocracias leigas. Prova disso é que as primeiras regras a impor silêncio nas bibliotecas não datam senão dos séculos xm e xiv, quando os leitores que po-diam ler sem murmura r se to rnam mais numerosos. Até então, os livros contavam mais com ouvintes do que com leitores.

Caso à parte são os Livros de horas, manuscri tos medievais utilizados para a oração na vida cotidiana, contendo sempre muitas i luminuras. Para além dos dife-rentes ofícios das horas canônicas, esses livros pequenos e portáteis pertenciam ao domínio da devoção privada e estavam diretamente ligados à evolução nas práti-cas de leitura da baixa Idade Média. Feitos de pergaminho e geralmente envoltos

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em veludo carmesim ou chapeados de metais preciosos, os Livros de horas tes temu-nhavam o fervor religioso de seus proprietários, que os folheavam de joelhos, con-fiando-lhes suas mágoas, mas t ambém os sonhos mais inomináveis. Era nesses li-vros que o i luminador desafogava mais livremente seu talento, e com cores fortes e ações vivas associava cenas bíblicas à observação sincera de atos profanos.1 0 Além disso, tais objetos pareciam transmit ir poderes taumatúrgicos: o milagre passava do texto às mãos do leitor, provavelmente o único dono do livro.11 Esse tipo de ati-tude criava uma intimidade inédita entre aquele que rezava e a própria obra, prá-tica que estimulava a devoção individual. A conseqüência mais imediata foi uma reação oficial que gerou maior controle do conteúdo e das imagens desses livros, ou mesmo um processo que culminaria com a Reforma Católica e seu desejo de censurar os produtos da t ipografia.

Mas voltemos um pouco mais ao tempo dos mosteiros, quando os livros ma-nipulados pelos monges ou se referiam à vida dos santos, ou às Collationes de Cassia-no, e à Bíblia.12 Cada mosteiro possuía uma pequena biblioteca, sempre enriqueci-da pelo trabalho dos escribas, que atuavam por fé, por obrigação ou, ainda, para evitar o tédio. As cópias eram vendidas ou mantidas no acervo, guardando-se um ri tmo ascético e um modelo metódico marcado pela clausura e pelo pouco conta-to externo. O resultado é que cada mosteiro era quase uma editora, garantida pelo trabalho cativo dos monges e de suas obrigações, que, de uma maneira ou de outra, permi t i ram a sobrevivência e a difusão dos livros. No mosteiro o livro não era copiado para ser lido; o saber permanecia entesourado, tal qual um bem patr imo-nial, e revestido de uso religioso.13

Uma ruptura essencial pode ser localizada no século xn, quando a escrita deixa de cumprir apenas função de memorização e conservação, e passa a ser en-tendida como trabalho intelectual. Será só com as universidades e escolas que um modelo escolástico substituirá o antigo formato monástico de escrita. Será t ambém nesse momento , e com o ressurgimento das cidades e das universidades na Europa, que as bibliotecas ganharão novos espaços para além dos mosteiros, que continua-vam muito ativos. Aos poucos, tudo mudaria: o lugar de produção passa do scrip-torium à loja do comerciante, os formatos dos livros vão sendo alterados, assim como as práticas de leitura, cada vez mais ampliadas pelas aptidões individuais. O livro recebe, assim, uma forma mais definitiva como códice — com seu formato diminuído e os cadernos de folhas presos e unidos —, e, com o fortalecimento do humani smo e do poder real, será nas mãos dos príncipes e em seus domínios que irão se concentrar as novas instituições. Não se sabe muito sobre a formação das bibliotecas do Quattrocento, mas o bastante para apreender sua importância na vida cotidiana da corte. Os textos escritos faziam parte da base da cultura, mesmo que essa fosse mais oral do que escrita.14 Além disso, se a inspiração era clássica, coube a tais bibliotecas uma abertura para o mundo dos livros, assim como a cor-respondente mudança de assentadas hegemonias: agora era o poder secular que surgia por detrás das obras.

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Com a invenção do tipo móvel e da impressão, a partir do século xv, com Gutenberg, o livro se t ransforma em objeto de ampla veiculação. As sociedades oci-dentais podem então ser definidas como culturas de objetos impressos, dada a importância e o impacto dessa invenção. Afinal, com a introdução da tipografia, os produtos do prelo deixariam de ser reservados, alcançando um âmbito maior de interessados, instalando-se no foro privado e também no público.'5 Passariam a conviver com maior intensidade não só diferentes formas de leitura como maneiras diversas de encarar essa prática. As pessoas liam para salvar suas almas, refinar seus modos, consertar suas máquinas, seduzir amantes, informar-se sobre a atualidade, aprender um novo oficio, ou, simplesmente, pretendiam se entreter."

É possível afirmar que a difusão do uso cotidiano do papel e a invenção da impressão também acarretaram transformações importantes na formação de cole-ções e bibliotecas. A meados de 1450 só era possível reproduzir um texto copian-do-o à mão; a partir de então, uma nova técnica, baseada nos tipos17 móveis e na prensa, transfigurou a relação com a cultura escrita. O custo do livro caiu, distri-buído entre a totalidade da tiragem (que costumava variar de mil a 1500 exempla-res), assim como o tempo da reprodução do texto foi reduzido, graças ao trabalho nas oficinas tipográficas.

Mas a proporção dessa mudança precisa ser relativizada. Um livro manuscri-to e um outro pós-Gutenberg baseavam-se nas mesmas estruturas fundamentais ,

6. Uma sala de leituras: no reino

da ordem e das classificações. FBN

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7. Extrato da arte de impressão

por Johann Gutenberg. FBN

g.

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8. Cartas de baralho com alegorias de livros: difusão e novas vogas. FBN

pautadas no códice. Ambos eram compostos por folhas dobradas um certo núme-ro de vezes, o que determinava o formato do livro e a sucessão dos cadernos. Esses mesmos cadernos eram montados, costurados uns aos outros e protegidos com uma encadernação externa. Além do mais, uma série de recursos como a pagina-ção, a numeração, os índices e sumários re tomavam características já presentes nos antigos manuscritos. Há, portanto, uma cont inuidade entre o livro manuscri to e o impresso; verifica-se, inclusive, a sobrevivência do livro copiado à mão, quando se tratava de obras dedicadas a uso secreto ou censurado, de circulação mais restrita.18

A nova revolução trouxe conseqüências. Data dessa época o surgimento da noção de autoria intelectual. Com efeito, durante boa parte da Idade Média defi-niu-se a autoria por contraposição à originalidade, à criação pessoal. Acreditava-se que o escritor não passava de um escriba cuja inspiração vinha de Deus e que não tinha maior valor senão o de desenvolver, comentar e glosar. O fato é que o autor surge com a censura, até mesmo com o Index da Contra-Reforma, quando era ne-cessário nomear o contraventor e imputar a responsabilidade penal.19

Mas se a definição de autor era difícil, igualmente complexa parecia ser a deli-mitação de uma biblioteca. Locais de saber universal, agora devotados aos reis, esses novos estabelecimentos passavam a discutir critérios de inclusão e de classi-ficação de livros. A separação entre obras imprescindíveis ou não começava a se t ransformar num bom mote para que se constatasse a impossível universalidade

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das bibliotecas, mesmo na sua nova definição como "lugar onde se conservam livros". Esta é a acepção presente no Dicionário de Furetière, de 1690: "Biblioteca: aposento ou lugar onde se colocam livros; galeria, construção cheia de livros. Diz-se t ambém de livros que são geralmente a r rumados sob as construções compridas e em arcos".20 Nessa época, portanto, as bibliotecas perder iam em decoração o que ganhariam em tamanho e comprimento , e na capacidade de armazenar livros.

Há, porém, um segundo sentido para o termo, que designa não mais um espa-ço, mas um outro "livro": "Biblioteca é t ambém uma coleção, uma compilação de várias obras da mesma natureza ou de autores que compilaram tudo o que se sabe sobre o tema".21 Assim, com a agilidade da produção livreira, a partir do século XVIII, introduzem-se novas iniciativas editoriais — "bibliotecas" que, ao modo de Borges, são catálogos de catálogos, livros de livros.

No entanto, foram as bibliotecas "em carne e osso" que mais prol iferaram nesse contexto. Sobretudo entre os séculos xv e XVIII não são poucos os exemplos que demons t ram a importância crescente desse tipo de instituição: a Vaticana ( funda-da em 1455), a Colombina de Sevilha (criada em 1551), a Ambrosiana de Milão (datada de 1609), a Biblioteca de Oxford, a Mazarina em Paris (1643) e a Biblioteca de Cambridge. No século XVIII será a vez da Biblioteca de Madri, da fundação da British Library e da famosa Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, aberta ao

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10. Uma vendedora de estampas: 11. Um comerciante ambulante

quando a moda pega. FBN de estampas. FBN

público em 1789. A maior democratização das bibliotecas pedia, t ambém, novos critérios de emprést imo e de func ionamento , além de horários mais largos e algum conforto para a leitura e consulta. Curiosamente, os registros da Bibliothèque du Roi em Paris most ram que, embora o bibliotecário só abrisse as portas para o público duas manhãs por semana, ele oferecia uma refeição antes de despedi-lo no final do expediente.22

Tamanho acúmulo de obras exigia novos modelos de organização e classifi-cação, assim como toda uma sistemática de inclusão nas prateleiras. No Vaticano, por exemplo, o catálogo de 1841 distinguia quatro salas: biblioteca latina, biblio-teca grega, biblioteca secreta (para os manuscr i tos mais preciosos) e biblioteca pont i f ica i . " Também formalizou-se outro tipo de divisão lógica separando os ma-nuscritos dos impressos, como é o caso, em 1538, da biblioteca universitária de Cambridge.

Exercícios não faltaram e as bibliotecas, mais e mais, se converteram em espa-ços nobres para o exercício da classificação. No catálogo da biblioteca de Le Tellier, em 1693 na França, afirmava-se que todo o conhecimento podia ser equacionado em cinco rubricas: theologiam, jurisprudentiam, historiam, philosophiam & humaniores litteras [teologia, jurisprudência, história, filosofia e letras]. No entanto, a cada uma dessas categorias juntavam-se até 23 novas subdivisões, o que t ransformava a ativi-dade em um jogo de combinatórias infinitas.

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12. Vista da Biblioteca Bodleian: silêncio e ordem. FBN

É ainda nesse momento , e a partir da supremacia do poder monárquico, que t omam forma diferentes "bibliotecas reais" — em Paris, na Áustria e até mesmo em Portugal —, mais consagradas à utilidade pública do que ao prazer do soberano. Gabriel Naudé, em seu Advis pour dresser une bibliotèque [Conselhos para organi-zar uma biblioteca], publicado em 1627, indica, com clareza, essa "nova missão":

Não há nenhum meio mais honesto e seguro para adquirir uma grande fama entre os povos que construir belas e magníficas bibliotecas, para depois votá-las e consagrá-las ao uso público [... ] E não quero outras provas e testemunhos de minhas afirmações além desses grandes reis do Egito e de Pérgamo, esses Xerxes, esse Augusto, Lúculo, Carlos Magno e esse grande rei Francisco I, que todos, sem exceção, gostaram e pro-curaram particularmente [...] acumular grande número de livros e mandar construir bibliotecas muito curiosas e bem providas.2*

As bibliotecas humanistas não poder iam ser definidas como locais de retiro solitário e gozos secretos. Suas coleções apresentavam-se como propaganda de Estado ou como forma operante de a elas vincular sua imagem. Para tanto, era de b o m - t o m não revelar ou nomear a origem e a proveniência dos lotes e livros. No caso francês, por exemplo, as bibliotecas do monarca se enriqueceram em virtude de recursos diversos: pelo confisco de guerra, pelos acervos de membros da famí-lia real, pela obrigação do depósito de exemplares por parte de livreiros e impres-sores, por troca, por aquisição, ou ainda por doação.25

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A dedicatória deixada por todo aquele que ofertava um livro se converteu, assim, em uma prática dileta de fomento das bibliotecas reais, uma vez que o ato individual era tudo menos um gesto de exclusiva vontade. A dedicatória pedia pro-teção, reclamava parcialidade, granjeava benevolência e incitava rivalidades. Como um ato de reciprocidade — "dar implica receber" —, o ritual se repetia na lógica da corte, feita de tantos deveres e direitos. As modalidades de oferta variavam — um livro, um pergaminho ou uma obra r icamente encadernada —, mas em comum trocava-se o ato de vontade por proteção e aliança com o rei. No entanto, a reciprocidade, apesar de recorrente, era, no limite, falsa, uma vez que, na ótica real, só se oferecia ao príncipe o que ele de fato já possuía. O escritor que doava uma obra reconhecia o príncipe como autor, pois, se ele não escrevera o livro, a "intenção de" encontrava-se contida em seu espírito.2 ' Afinal, o poder divino do monarca lhe garantia a autoria de todas as obras que, embora não fossem de seu próprio punho, respondiam sempre a seu domínio. Novamente, é a autoria que está em questão: se não no terreno do sagrado, agora expressa na autoridade secu-lar, configurada no rei.27

Mesmo com a crescente importância dos livros, e a conversão progressiva da leitura em tarefa silenciosa e individual, não se pode esquecer de que uma das ati-vidades mais associadas às bibliotecas da corte era a leitura em voz alta, feita para deleite do soberano. Na França do século xvi chegou-se a nomear um responsável oficial, que recebia o título de "leitor habitual do rei" e em geral se apresentava em uma das salas da biblioteca. Essa situação repetia-se na inglaterra, onde a posição de "leitor de Sua Majestade" era bastante disputada.2-

Tornavam-se distintas realidades que teoricamente nasceram unidas: de um lado as bibliotecas reais, cuja função era pública; de outro a coleção privada dos mo-narcas, composta de poucos e seletos livros. Talvez seja essa a referência de Shake-speare em A tempestade, peça representada em l2 de novembro de 1611, diante do rei Jaime i. Em um momento central do drama é introduzida a cena em que Próspero, duque de Milão, opta pela companhia dos livros em vez de se devotar à arte do governo. O príncipe dedica seu tempo ao estudo dos saberes secretos, per-manecendo longe dos deveres de Estado: "Para mim, pobre homem, minha biblio-teca era um ducado bastante grande".29 A t rama é densa, e, se não há tempo para resumi-la, basta mencionar que a atitude de Próspero gera desordens políticas e cósmicas. Antônio, i rmão de Próspero, rouba-lhe o governo e acaba por destruir a cidade. Por sua vez, ante a usurpação humana , a natureza se revolta e produz a tempestade. Próspero se t ransforma, então, num mago poderoso, mas de um reino distante e exilado em uma ilha desconhecida. Os livros estão por toda parte, ainda que cumpr indo um papel paradoxal: na mesma medida em que dão força a quem os possui, podem fazer perder um trono e, por que não, a própria cabeça. A restau-ração do poder pede a renúncia aos livros: "[...] Quebrarei minha vara, irei sepul-tá-la muitas braças embaixo da terra, e mais f undo do que jamais ressoou a sonda afogarei meu livro".20

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Secreta e pessoal, a biblioteca de Próspero é de sua propriedade, diferente das bibliotecas reais, que, a despeito da rubrica, são tão públicas como a figura do rei. No fundo , o monarca, nascido na condição de pessoa pública, pouco revela (se é que a conhece) sua face mais pessoal. É antes como ator em tempo integral, como peça-chave em uma maquinar ia teatral, que o soberano é visto e reconhecido. E não é muito diferente a situação de uma biblioteca real. A chancela era do mo-narca, o rei conferia eficácia, mas seu desígnio era dado pelos leitores, súditos do soberano.

Portugal não ficou de fora dessa voga que fez com que os Estados modernos criassem suas próprias bibliotecas. Será, também, por meio da sua Real Biblioteca que os monarcas portugueses irão se lembrar e se vangloriar de suas glórias passa-das, de suas memórias longínquas e da cultura de uma nação que, afastada dos cen-tros de decisão, distante dos padrões humanis tas e afeita a demonstrações de fer-vor religioso, procurava chamar para si uma imagem de erudição. Com tantos livros para exibir, Portugal pretendia diminuir seu afastamento e mostrar como, redimido pela cultura, fazia parte de um idioma comum e europeu. Nada como "expulsar a barbár ie"com base na construção de uma biblioteca ideal.

UMA BIBLIOTECA PARA PORTUGAL E OS LIMITES DA CENSURA

Já sabemos que em Portugal a tradição dos "livros a juntados" remonta ao pas-sado. De d. João i a d. Duarte, passando por d. Afonso e tantos mais, assim cami-nhou a tradição; já nos tempos de d. João v a livraria era reconhecida como uma das mais famosas e completas do Velho Mundo. Mas não se podem transpor f ron-teiras com a mesma facilidade com que se pula um pequeno obstáculo. A história de Portugal, e mais especificamente dos livros em Portugal, seria muito marcada pela Inquisição, pela censura, pelo espírito da Cont ra -Reforma e pelas deliberações do Concilio de Trento, que visavam tanto aculturar o rebanho católico como re-primir qualquer tipo de heresia.

A partir da introdução do tr ibunal do Santo Ofício em Portugal, em 1536, os livros passaram a estar sujeitos à censura eclesiástica, o que significava dizer que nenhuma obra chegava ao público sem a aprovação de um "qualificador inquisito-rial". Tal processo tendeu a recrudescer quando o irmão do rei, o cardeal infante d. Henrique, começou a exercer, em 1539, a função de inquisidor-mor, exigindo que toda publicação portuguesa fosse submetida ao crivo de uma comissão formada por três membros: o bispo local, um representante do Santo Ofício e outro da Coroa, que era representada pelo desembargador do Paço. Em 1578 t ambém os livros vindos do exterior começaram a ser fiscalizados, não podendo ser postos à venda sem a prévia licença dos inquisidores.

Tal movimento, que procurava controlar a expansão da religião protestante, e em especial a luterana, encontrava nos livros local acertado para repressão. Já em

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aos bons costumes. Promulgada inicialmente pelo papa Pio v, essa medida intro-duzia normas para o controle de publicações, criando uma censura prévia e duas condutas básicas diante das obras liberadas: o Nihil obstat ("nada impede") e o Imprimatur ("para publicar"), termos que sinalizavam os próximos passos da edi-ção. No entanto, o Index ficou mesmo famoso em função dos livros que impediu de circular. Para se ter uma idéia do alcance dessa relação, basta tomar sua intro-dução, que permite perceber as evidentes intenções: "porque algumas pessoas não deixam de ter ou ler livros proibidos por não saberem quais são estes livros. Por isso, mandamos imprimir o rol deles. Mandamos a todas as pessoas de qualquer estado ou condição que [...] não tenha em seu poder, nem leia os livros abaixo sem a nossa especial licença. E os tantos que vierem a seu poder, que os apresente aos inquisidores".'2

Ficavam, assim, sujeitos à prisão não só aqueles que publicassem livros sem permissão, mas t ambém os que possuíssem tais obras ou delas tivessem conheci-mento e não o relatassem aos inquisidores ou à autoridade competente. Dizia-se, na época, que a leitura "tirava o juízo" e que a censura era necessária para evitar a satanlzação das almas, que, com os livros nas mãos, se afastavam da fé cristã. Apreender livros tornava-se atividade tão recorrente que multas vezes levava à rea-ção oposta: aguçava o desejo da leitura. É isso que mostra um poema irônico da época, desfazendo da Inquisição:

Teus versos horríveis são!

Crede: jamais serão lidos!

Ainda que sejam proibidos

Pela Santa Inquisição.33

Com o objetivo de tornar mais efetiva a retirada dos livros considerados peri-gosos, estabeleceu-se uma série de categorias que a judavam na apreensão e denún-cia dos implicados: "autores ateus, autores protestantes que combatessem o poder espiritual do papa e dos bispos ou atacassem os artigos da fé católica, autores que negassem a obediência ao papa, livros de feitiçaria, quiromancia, magia e astrolo-gia, livros que, apoiados num falso fervor religioso, levassem à superstição ou ao fanatismo, livros obscenos, livros infamatórios, livros que contlvessem sugestões de que se siga per turbação do estado político e civil e desprezando os justos e pruden-tes ditames dos direitos divinos, natural e das gentes, ou permi t i rem ao soberano tudo contra o bem comum do vassalo, ou vão na outra extremidade fomentar a abominável seita dos sacrilégios monárquicos que tudo concedem ao Povo contra as Sagradas e invioláveis pessoas dos Príncipes, livros que utilizam os textos das Sagradas Escrituras em sentido diferente do usado pela Igreja, autores que mistu-rassem artigos de fé com os de mera disciplina, autores que impugnassem os direi-tos, leis, costumes, privilégios etc. da Coroa e dos vassalos, obras dos pervertidos filósofos destes últ imos tempos, livros publicados na Holanda e na Suíça, atrlbuí-dos a advogados do Parlamento da França e que t ratam da separação entre o Sa-

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cerdóclo e o Império, obras de autores jesuítas baseadas na autoridade extrínseca da razão particular, livros compostos para o Ensino das Escolas Menores que forem contrários ao sistema estabelecido na lei anterior".'4

A lista era imensa e o modelo vinha, mesmo, de fora. Até o ano de 1768, as relações de livros proibidos em Portugal eram f reqüentemente cópias daquelas fixadas em Sorbonne, Louvaln, Roma e Espanha. Chegou-se inclusive a promover reimpressões de índices tridentinos e romanos em 1551,1564 e 1597. Havia, porém, certas particularidades: a Inquisição portuguesa proibiu mais obras doutr inárias e foi mais tolerante com as literárias, apesar de garantir a interdição da leitura da Bíblia em português. '5

Ainda que retidos, os livros não saíam totalmente de circulação; pe rmanec iam acessíveis aos inquisidores, que podiam apreciar as obras e até conceder licença a outras pessoas — teólogos, peritos e doutores — ligadas ao ofício. De toda manei-ra, durante muitos anos todas as publicações estiveram sujeitas à censura dos in-quisidores e nos livros devia constar a declaração que afiançava o assentlmento do conselho superior do Santo Ofício. Em virtude das deliberações do Concilio Trlden-tlno (1545-6 ' ) , os livros ficaram também sujeitos à sanção da figura do "Ordinário", que representava mais uma instância de avaliação. Depois interveio o Paço Real, e nos séculos XVII e XVIII, sobretudo neste último, era comum os livros es tamparem extensas aprovações, em que os censores desenvolviam, cada um à sua maneira, todo o arsenal da sua erudição.

Se examinarmos o documento Epitaphio Métrico consagrado ao Sumptuoso Mausoléu do fidelíssimo e Augustíssimo Rey de Portugal D. João V, aqui escolhido aleatoriamente, pode-se recuperar o processo a que se submetia uma obra em Portugal ." Em primeiro lugar, o folheto caía na mãos do "qualificador", em geral um religioso pertencente ao Tribunal do Santo Ofício, que emitia o primeiro parecer:

Eminentíssimo e Reverendísslmo Senhor: Vi o Epitáfio Métrico composto por Féllx da Sylva Freire e julgo ser obra digna da licença que se pede para se imprimir, porque além de ser merecedora de aplauso pelo singular estilo e vasta erudição do autor nela concorre a mais estlmável circunstância de não conter coisa alguma contra a Nossa Santa Fé e bons costumes. Carmo de Lisboa 10 de Setembro de 1750. Doutor Fr. Joseph P. de Santa Ana. Vista a informação, pode imprimir-se a obra de que se trata e depois voltará conferi-da para se dar licença que corra, sem a qual não correrá. Lisboa 11 de Setembro de 1750.

Fr. R. Alencastre. Sylva. Almeida. Trogozo.

A primeira avaliação julgava a erudição, mas era sobretudo responsável pelo aspecto religioso e moral da obra. Feito isso, era hora de o processo partir para as mãos do Ordinário, que emitia novo arrazoado:

Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor. Os papéis inclusos não contêm alguma coisa contrária à religião, antes merecem a licença, pelo alto assunto de que tratam e por sua

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elegância com que estão escritos. Vossa Excelência mandará o que for servido. Lisboa 13 de setembro de 1750. Ignacio Barbosa Machado. Vista a informação pode-se impri-mir o papel de que se trata e depois de impresso torne conferido para se lhe dar licen-ça que corra. Lisboa 22 de setembro de 1750. D. F. Are. de Laced.

Desta vez, o tema é a religião, mas aproveita-se para recomendar a qualidade do texto. Faltava, porém, o procedimento final. Para que a obra chegasse às ruas e ganhasse o comércio era preciso que o documento fosse remetido ao Paço e rece-besse o ajuizado final: nesse caso, valia analisar a questão do Estado, e a imagem do rei é que estava em questão.

Senhor: A obra intitulada Epitáfio Métrico, que Vossa Majestade me manda ver, com-posta por Felix da Silva Freire, merece pelo assunto e pelo estilo e não menos porque não contém coisa alguma contra o Real Serviço de Vossa Majestade, que se divulgue e eternize nas luzes do prelo: e com esta nobre produção dos seus estudos poéticos, acrescentará o sábio Cultor do Parnaso Lusitano, que a escreveu, nova glória e novos elogios à sua ilustre fama. Lisboa 17 de Setembro de 1750. Filipe Joseph da Gama. Que se possa imprimir, vistas as licenças do Santo Ofício e Ordinário, e depois de impres-so tornará a esta Mesa para se conferir e taxar e dar licença para correr, sem a qual não correrá. Lisboa 17 de Setembro de 1750. Marquez P. Atayde. Almeida. Castro.

Como se vê, a operação toda, apesar de complexa, poderia ser rápida, como no caso acima, em que t ranscorreram basicamente sete dias entre o primeiro e o úl t imo parecer. Esse tipo de condução mais ligeira era, contudo, exceção e se limi-tava a documentos desse tipo, meros panegíricos ao rei. Os processos poder iam ser intermináveis — quando a obra era considerada herética ou de "valor moral duvi-doso" —, ou tomar um tempo mais longo, a despeito do final favorável. Não obs-tante, sempre passavam por chancelas distintas. O primeiro juízo, que partia da Igreja, era em geral breve, uma vez que se limitava a avaliar as implicações da obra para os ditames do Santo Ofício; já o segundo revia tudo sob os olhos do Estado. O terceiro texto, por sua vez, era aquele que deveria revelar maior erudição, uma vez que, para desempenhar o cargo de "revedores de livros", eram incumbidas pes-soas de reconhecido saber e grandes teólogos — excetuando-se a literatura profa-na, sempre sujeita ao rigoroso exame dos padres, é claro.

De toda maneira, a censura dividida entre três instâncias, cada qual contando com dois ou mais examinadores, era normalmente morosa em sua aprovação. Além do mais, o resultado dos três diferentes exames revelava a falta de critérios e a arbi-trariedade que já era parte constituinte do processo. O primeiro livro português em que apareceu a garra da censura do Santo Ofício foi o Insino Cristão, impresso por Luís Rodrigues em 1539, sob alegação de que a obra não correspondia aos ensi-namentos da verdadeira religião.'7 A partir de então, pouco escapava da censura: muitas obras que saíram sem referência de licença inquisitorial, ou sem o reparo necessário, foram mais tarde proibidas ou censuradas. Esse foi o caso do livro de

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Gll Vicente, publicado originalmente em 1562 e cujas cópias fo ram mutiladas em 1586,'8 ou de Os lusíadas, que tendo ficado incólume em 1572 foi emendado na edição de 1584.'9

Nem todos os censores eram exclusivamente opressores intransigentes da liber-dade de pensamento,4 0 mas não há como negar que esse tipo de atividade acarretou uma ingerência extremada da Igreja até mesmo sobre as atividades do Estado. Por essa razão a história de Portugal seria muito marcada pelo conflito entre o poder do soberano e a Ordem Eclesiástica. A Inquisição era uma arma política de que o poder real se servia, embora às vezes tivesse de amargurar- lhe o peso.41

Os caminhos dos livros são, porém, estranhos. As mesmas obras apreendidas ficavam sob custódia do Estado e eram assim preservadas.42 Isto é, os livros que o Estado por tuguês e a Igreja apris ionavam permanec iam guardados em acervos que não paravam de crescer. E não se pense apenas nos títulos religiosos ou con-siderados heréticos: havia ainda as obras de pensadores humanis tas , sobretudo franceses, que pouco escapavam dos cortes bem-fei tos pelos inquisidores. Mal de alguns, sorte de outros. . . Por linhas tortas o acervo da Real Biblioteca enrlque-cia-se com alguns exemplares proibidos e tornava-se representativo até mesmo do pensamento humanista que o Estado buscava combater.4 ' No entanto, com esse his-tórico nas costas, pode-se imaginar como eram limitadas as perspectivas e os pro-jetos intelectuais da Real Livraria nos anos imediatamente anteriores ao terremo-to. Para além dos inúmeros entraves impostos pelo Santo Ofício, o própr io poder do monarca e seus vínculos com os ditames religiosos consti tuíam amarras fortes para o livre desenvolvimento e a circulação de obras que os reis tanto se orgulha-vam de possuir.

UMA NOVA REAL BIBLIOTECA PARA UMA NOVA LISBOA

A sina dessa biblioteca começaria a mudar, não só em função do cataclismo como t ambém da nova orientação a que ela seria sujeita. Vimos que no dia Ia de novembro de 1755 o fogo gerado pelo ter remoto destruiu o acervo coletado duran-te tanto tempo em Lisboa. O Palácio Real foi reduzido a pó e, com ele, quase toda a Real Biblioteca. Mas, assim como não há monarquia sem sua Real Livraria, logo depois do incêndio, j un to com os trabalhos que começavam a reconstruir e a rein-ventar a velha Lisboa, d. José i, sempre amparado por seu ministro Pombal, empe-nhou-se em juntar o pouco que sobrara e deu início a uma nova coleção. Com a compra de acervos privados, da requisição de coleções esquecidas em mosteiros e abandonadas às pressas pelos jesuítas, ou até de generosas doações, a nova Bi-blioteca Real, agora situada no Palácio da Ajuda, não parou de crescer. Para coor-denar os trabalhos foi nomeado o padre José Caetano de Almeida, que se transfe-riu para a Ajuda em 1756 e lá ficou até 1768.

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Havia originalidade no modelo português. Em vez de um único acervo, duas grandes bibliotecas foram idealizadas. Ao mesmo tempo que se reorganizava a Real Biblioteca, jun to ao novo Paço da Ajuda, erguia-se, de forma autônoma, a Real Bi-blioteca Pública.44 Criada no âmbito da Real Mesa Censórla e dimensionada na medida das grandes bibliotecas européias, já de início a Biblioteca Pública contava com um núcleo composto pelas muitas livrarias dos colégios da Companhia de }esus, extinta desde 1759. Dessa maneira, utilizava-se a expulsão para conformar mais um acervo, contando com o ju lgamento da Mesa Censória, que cuidaria de reverter o catálogo em favor da nova orientação das reformas de estudos empreen-didas no governo de Pombal. Assim, por meio do decreto de 2 de outubro de 1775, determinou-se a instalação dessa nova "Livraria", logo na ala ocidental do Terreiro do Paço, t ambém em vias de construção. A proposta não era inédita, pois já em 1771 frei Manuel de Cenáculo lançara a idéia da conformar um novo acervo, liga-do aos trabalhos da Real Mesa Censórla — que, a essas alturas, representava uma espécie de "memória bibliográfica" do reino, salva do terremoto. O ato, no entan-to, velo mesmo em 1775, quando se passou a lidar com problemas concretos de instalação, e com as verbas que deveriam ser aplicadas numa biblioteca desse por-te. Entretanto, nas décadas seguintes, as circunstâncias políticas e culturais não se mos t ra ram favoráveis à continuidade do projeto, que ficou engavetado durante al-gum tempo.45

16. D. frei Manuel do Cenáculo. Presidente da Real Mesa

Censória e grande mecenas no mundo dos livros. FBN

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Não é, porém, dessa biblioteca que se pretende agora tratar, mesmo porque os trabalhos da "Pública" permaneceram um tanto t rancados. As maiores atenções parece que se voltaram, logo após o terremoto, para a "Real Biblioteca", que já fazia parte da tradição da monarquia portuguesa. D. José, mal refeito do susto, e já ins-talado no seu incipiente paço de madeira, levantado na Quinta de Cima do lugar de Nossa Senhora da Ajuda, determinou de imediato, e com o auxílio do valido, a reconstrução de uma nova biblioteca, num edifício de pedra e cal, que seria insta-lado no própr io palácio. Em seu fo rmato inicial, a "Livraria" teria três dependên-cias e estaria localizada junto da torre da sineira: bem próxima ao rei.*6

Como não existe biblioteca sem livros, os trabalhos fo ram reiniciados, com a busca de coleções. Logo em 1756 são intentadas negociações para a aquisição da coleção do bibliófilo doutor Nicolau Francisco Xavier da Silva, que possuía um valioso acervo de manuscri tos e livros. Mas não haviam sobrado muitas bibliote-cas privadas após o terremoto; talvez uma das mais importantes tenha sido aquela adquirida da condessa de Redondo, cuja coleção honrar ia qualquer instituição do gênero, a despeito da carência de opções. A livraria que pertencera ao conde de Re-dondo era famosa pelo volume de livros e pela qualidade dos manuscri tos de his-tória.*7 A correspondência trocada entre d. José e os dois proprietários permite per-ceber não só a importância da empreitada como a capacidade do soberano de negociar. Diante da demanda da condessa — que pedia 3 mil cruzados em dinhei-ro e seis em padrão de juro —, o monarca fez saber que, embora as condições polí-ticas fossem desfavoráveis, cada livro tinha seu preço.

Segue-se a essas aquisições a compra da livraria do dono de um jorna l por tu-guês, o gazeteiro José Maria Monterroio de Mascarenhas, conhecida por apresen-tar grande número de dicionários e livros genealógicos de origem castelhana, in-glesa e portuguesa. Vieram juntar-se ao acervo, ainda, as "livrarias" do cardeal Mota e de seu irmão, além de outras pequenas e disponíveis no mercado.

Mas a grande coleção aquinhoada nesse momen to foi a do abade Diogo Bar-bosa Machado, de cuja negociação tomou parte frei Manuel do Cenáculo Vilas-Boas (1724-1814), religioso da Ordem Terceira da Penitência e cuja importância cultural era evidente: além de presidente da Real Mesa Censória, dirigia os Estudos Secundários e o Colégio dos Nobres. Era, também, presidente da Junta de Subsídio Literário, t rabalhara na reforma da Universidade de Coimbra — era professor na instituição —, além de ser preceptor do príncipe d. José, neto do monarca. Falta ainda lembrar o principal: Cenáculo era um bibliófilo apaixonado, uma espécie de mecenas local, tendo criado uma série de bibliotecas na segunda metade do sé-culo XVIII Conhecedor da vida intelectual de outros centros europeus, mant inha correspondência com pensadores da época e contatos freqüentes com o mundo das bibliotecas. Nas suas memórias, recordando-se da importância dessas instituições, assim escreveu: "As famosas bibliotecas que se apresentavam à nossa curiosidade nas cidades eruditas da nossa passagem levavam milhares de idéias que se começa-ram a reproduzir como o tempo ia permi t indo" . -

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A CADA COLEÇÃO A SUA PERSONALIDADE: O ACERVO DE DIOGO BARBOSA MACHADO

Pouco valeria a atuação de Cenáculo se a coleção do abade de Santo Adrião de Sever, Diogo Barbosa Machado,49 não valesse a pena. A operação foi demorada e realizou-se entre os anos de 1770 e 1773. Afinal, a livraria contava com 4301 obras, divididas em 5764 volumes. O acervo abrangia diferentes ramos do conhe-cimento e incluía, ainda, coleções especiais de retratos, álbuns de estampas de cará-ter religioso, mapas e um conjunto de folhetos agrupados por temas.50

Cenáculo teve papel central nessa negociação e, com o padre Francisco José da Serra Xavier, que depois seria bibliotecário da Real Biblioteca, t ratou de per-suadir seu velho amigo Barbosa Machado a doar sua biblioteca. Nada como dar voz a Cenáculo para que ele comente a fel icidade da aquisição: "[...] Foi para a Biblioteca Real que passou a escolhida e rara do erudito Barbosa Machado. Ele a ofereceu a el-rei com generosidade para depósito seguro de fadigas de mais de oitenta anos em formar sua estimável coleção. O senhor rei d. José, que com esta quarta livraria, além de outras aquisições, ia compensando a enorme perda da antiga Biblioteca Real, fez ao abade Barbosa a graça de aceitação de uma tença vita-lícia de seiscentos mil-réis, e sobrevivência a algumas pessoas de obrigação do mesmo abade". Em seguida, e como recompensa pelo ato, o soberano lhe entregou

17. O abade Diogo Barbosa Machado: enfim, uma grande coleção. FBN

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uma pensão de 600 mil-réis anuais, de 1Q de maio de 1870 em diante, "para os re-ceber enquanto vivo for, e deles dispor, em vida, ou por morte, a favor dos seus familiares".51

Não era por acaso que a esperada livraria gerava tanto alarde. Lá estava a saída para a Real Biblioteca, que, carente de uma coleção mais valiosa, soçobrava aos ven-tos da sorte e de compras mais ou menos importantes . A biblioteca de Diogo Bar-bosa, ao contrário, trazia um pouco de tudo e, principalmente, muito para quem nada possuía. O cuidado era tal que o deslocamento dos livros foi tratado como questão prioritária do Estado. Foi incumbido da tarefa um responsável especial: Nicolau Pagliarini, que, além de diretor da Tipografia Régia e encarregado das li-vrarias do Paço das Necessidades e do Colégio dos Nobres, era, de quebra, conhe-cido por sua campanha antijesuítica.52 Da troca de correspondência entre ambos, t ransbordam os cuidados de parte a parte e as idiossincrasias do bibliófilo Barbosa Machado. Vejamos, como quem entra em segredos alheios, a missiva do abade: "Sr. Nicolau Pagliarini. Meu senhor, não me foi possível segundo o meu desejo fazer mais cedo o aviso de que as seis primeiras caixas estão prontas para se conduzirem à Real Biblioteca. Não esqueci o que Vossa Majestade me determinou, que se me-tessem os livros e que em cada caixa fosse a Folha dos Livros que cada uma levava; porém, querendo-se reduzir isso a prática e segundo a capacidade das caixas, não foi possível fazer-se assim, porque v inham os livros a ser poucos e os vazios mais que os mesmos Livros: nesses termos mandei encaixá-los pelo método que me pareceu mais fácil, para quem os recebesse e mais claro para quem os entregava, o qual vem a ser: Numerar o Rol e os Livros. O Rol leva debaixo de cada adição o nú-mero que corresponde ao que vai dentro do Livro. Cada caixa que leva o Número sobre a parte superior dos mesmos livros, em que se adverte qual caixa deve ser a primeira, qual a segunda, de sorte que, seguindo essa ordem, se vem a encontrar sem maior trabalho com o número do Rol [... ] Eis aqui todo o método que, como já disse, me pareceu mais fácil [...]"."

O abade, mestre em classificações, seguia métodos próprios; tendo dedicado a vida a coletar obras e a lhes dar organização e classificação racionais, não seria nesse momento que abriria mão de seu sistema, convencionado pela experiência de tan-tos anos. Mas, uma vez que o t ransporte havia sido iniciado, era melhor dar cabo dele, e essa pareceu ser a intenção do abade quando escreveu para Cenáculo: "Meu amigo, meu senhor. Como por V. Exa. começou este negócio, é de razão que tam-bém acabe [...]".»

Não devia ser simples abrir mão de uma obra colecionada durante a vida toda; só a certeza de um "descanso tranqüilo" poderia animar o abade. E a originalidade da coleção guardava a personalidade de seu antigo proprietário, que não se limitou a manter obras ou procurar as mais valiosas. Barbosa Machado ajuntou, por exem-plo, uma grande coleção de opúsculos raros, concernentes à história de Portugal e do Brasil, reduzindo-os todos a um único formato. A coleção era constituída de 3134 folhetos, que conformavam 85 volumes. Esses folhetos traziam elogios, pane-gíricos, notas fúnebres, anúncios ligados aos reis e rainhas de Portugal, ou por vezes

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relatavam o evento de um só dia. Seu procedimento, nesses casos, era sempre o mesmo: reunia os folhetos e depois os separava por assunto, fazendo anotações em alguns deles. Às vezes guardava folhetos maiores (e era obrigado a dobrá-los); ou apenas uma folha era anexada ao tomo. O resultado: quase dois séculos de história portuguesa e das colônias, recontados a partir desses pequenos detalhes, e da obra do entusiasmo de seus autores, em boa parte anônimos e tragados pela história. Além disso, Barbosa fazia comentários sobre a raridade das obras, a procedência do documento e acerca do autor, assim como, ao colar, acondicionar e dobrar os folhe-tos, introduzia margens, de acordo com o tamanho do material. Apesar de a própria seleção dos documentos já dar ao volume um caráter engrandecedor da história de Portugal, de seus reis e rainhas, ou de representantes da Igreja, um painel como aquele permitiu mapear uma produção tipográfica muito castigada pelo tempo. Só mesmo um bibliófilo como Barbosa Machado coletaria esse tipo de material — que, sem maiores cuidados, visto que produzido de maneira barata e com papéis pouco nobres, tenderia a desaparecer.

A coleção possuía, ainda, muitos retratos. Dela faziam parte obras impressas com ilustrações gravadas a água-forte ou burll e conjuntos de imagens ligados à história de Portugal. Reunidos em volumes in folio de grandes formatos, esses livros apresentavam estampas recortadas (boa parte de obras publicadas) e mon-tadas em novas encadernações.55 Oito tomos de retratos eram divididos em vários volumes — "Pontífices e Soberanos e Eclesiásticos e Seculares, Pontífices e Cardeais e Bispos, Reis e Príncipes e Varões Insignes, Varões Portugueses Insignes na Campanha e Gabinete, Varões Portugueses Insignes em Artes e Ciências, Retratos de Reis, Rainhas e Príncipes de Por tugal"—, perfazendo um total de 1980 estampas, todas recortadas, descritas e catalogadas.

As estampas que compunham esses tomos eram selecionadas dentre as melho-res reproduções e em geral extraídas de obras já impressas. Nesses casos, e quando não dispunha de dois exemplares para recortar a imagem de um deles, o bibliófilo parecia não ter dúvidas em optar por estragar seu único livro. Outras vezes, recor-tava uma estampa em pedaços, e os distribuía em diferentes lugares, segundo o assunto. Alterava as margens, muitas vezes mutilava imagens e as privava dos prin-cipais elementos para reconhecê-las: letra, nome do artista, o endereço do merca-dor, a data e outras diretrizes. Feita a escolha dos retratos, o procedimento era seme-lhante ao já descrito para os folhetos: Barbosa os cercava por tarjas e os colava em folhas de papel. Assim preparadas, as folhas permaneciam dispostas por assunto, em ordem cronológica e divididas em oito partes, compondo outros tantos volumes.

A coleção incluía um volume de mapas, vistas e plantas de fortalezas que re-gistravam feitos da história de Portugal, não só no reino como na África e demais possessões asiáticas e da Oceania. Existiam, também, 63 títulos referentes à arte da gravação, que introduziam conjuntos relativos à Bíblia e reproduções de quadros de pintores célebres, pertencentes a colecionadores particulares. Por essas e por outras, pode-se ter uma idéia do conjunto iconográfico contido nessa coleção, que abrangia os séculos xvl, xvn e XVII I »

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Mas o que Barbosa Machado considerava sua obra maior, como membro da Academia Real de História, era a Biblioteca Lusitana. Organizada em três grandes tomos, a obra refaz em ordem alfabética a memória dos grandes líderes, intelec-tuals e religiosos da nação. Já no título as intenções ficam evidentes: Bibliotheca Lusitana. História, Crítica e Cronologia na qual se compreende a notícia dos autores portugueses e das obras que compuseram desde o tempo da promulgação da lei da Graça até o tempo presente. Oferecida à Augusta Majestade de d. João v nosso senhor

por Diogo Barbosa Machado Abade Paroquial de Santo Adrião de Seuer, e Acadêmico do Número da Academia Real.51 Dedicada aos monarcas portugueses — primeiro d. João v e depois d. José i —, ela representa sobretudo um exercício de exaltação do poder real. Mas o objetivo era ainda mais grandioso; a Biblioteca Lusitana pre-tendia preencher uma lacuna, seria uma espécie de dicionário de conhecimentos acumulados em Portugal e de seus grandes vultos. Para tanto, nada como explicar suas bases, pois era "por melo das Bibliotecas que renascia a nova vida dos escrito-res, que a t enham alcançado imortal na República da Letras". A "Universal anato-mia de uma Biblioteca... " aí estava o grande desafio de Barbosa Machado, que, além de coletor, se fazia agora classificador e juiz de obras e nomes. A idéia parecia ser recriar um passado, reconhecer uma cultura, nomear uma memória — patrió-tica e oficial, por certo.

Assim, com seus mais de 5 mil volumes, a coleção de Diogo Barbosa Machado representava, para a Real Biblioteca, mais do que um novo acervo. Com todos os livros apresentando o ex-libris de seu antigo proprietário — que viria a falecer em 9 de agosto de 1772 — e uma relação catalográflca cuidadosamente elaborada, a coleção conferia personalidade à "Livraria", que até então não passava de um amon-toado de obras sem grande qualidade.

Em 19 de outubro de 1772 a transferência da coleção parecia terminada, ou era ao menos isso que determinava Feliciano Marques Perdigão, guarda e amanuense da Real Livraria:

Relação individual dos 3226 números conteúdos em volumes, meias folhas de papel de que se compõe o rol de livros, que para esta Livraria d'El Rei Nosso Senhor que Deus Guarde, remeteu em primeiro lugar o [...] Abade Diogo Barbosa Machado; cujo rol velo em fragmento acompanhando a cada condução dos ditos livros [...].58

É claro que Perdigão — profissional então responsável pela Real Biblioteca — não poderia deixar de anotar o método de classificação empregado:

E o dito Abade Diogo Barbosa [...] que depois enviou gratuitamente com relação sepa-rada que reduzi a ordem alfabética, pondo um B diante de cada número da dita rela-ção e catálogo separando desta individuação. E como cada um dos números é indica-tivo das obras nele incluídas e destas ou de seus autores, é conveniente haver ordem alfabética como fiz, unicamente apontarei em cada número o título do livro ou apeli-do do seu autor, para os procurar e poder achar com facilidade no lugar da letra que lhe corresponde. Notarei finalmente em cada número se o mesmo volume com esse tal

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número passou para a estante, aonde ponho com separação os que se fazem duplica-dos referindo adiante de todos os números a estante em que se achará, denominando cada uma por A, B, ou C, etc., e cada caixa por números de conta romana...59

Aí estava um diálogo entre mestres da classificação, que pre tendiam ver nesse ofício uma grande arte.

Não é o caso de julgar a estratégia do abade; melhor é pensar no significado dessas coleções particulares, as "heranças" mais aguardadas, diante das escassas pos-sibilidades de encontrar bons livros no comércio de ocasião. Vista sob esse ângulo, a livraria de Diogo Barbosa Machado era mesmo um prêmio raro.

FORMANDO UM ACERVO COM SEUS FUNCIONÁRIOS

Mas, se esse é o caso mais famoso, não é com certeza único e tampouco abso-lutamente original: jun to com as doações, v inham as manias, as preferências e os gostos de cada colecionador. Cabia aos funcionár ios da Real Biblioteca acondicio-nar, organizar e classificar as novas aquisições, assim como dar-lhes um destino de conjunto. Ali estavam as bibliografias, os dicionários e t ambém as enciclopédias: os instrumentos de trabalho mais modernos ou ao menos mais famosos na lista de saberes dos humanistas . Desses acervos fariam parte t ambém estampas, atlas e algumas esculturas, que a judavam na decoração do local

A Real Biblioteca lucraria, ainda, com a entrega das "propinas", que corres-pond iam à doação ao Estado de um ou mais livros de cada edição produzida pela Real Tipografia. Essa atribuição era realizada pela Real Mesa Censória, que depois de recolher os livros os distribuía por entre as várias coleções reais. Tal prática pode ser aferida de um bilhete escrito por Feliciano Marques Perdigão, nas costas de uma obra: "Este livro foi remetido pela Secretaria da Real Mesa Censória em Relação das Propinas do ano de 1769, que recebi em fevereiro de 1771".'°

Fosse por encomenda, requisição ou recebimento oficial, a "Real" ia se equi-pando e ganhando estabilidade. No entanto, é bom que se diga: essa não era exa-tamente uma biblioteca pública, por mais que seu principal responsável se gabas-se de "ter sempre a porta patente para aquelas pessoas a quem se lhe deve permitir entrada".'1 Eram poucos aqueles a quem se facultava passagem — membros da Família Real e da Corte, visitantes ilustres ou representantes do corpo diplomáti-co. De resto, a "Livraria" era antes uma dependência do paço, cuja segurança fazia parte da jurisdição do mordomo-mor .

No grau mais alto da hierarquia de funcionár ios constava não um biblio-tecário-mor, conforme ocorria nas demais instituições do gênero, mas um "ama-nuense e guarda". Os nomes eram diferentes e identificavam, no caso da Real Bi-blioteca, que o amanuense era, sobretudo, um funcionár io do paço, sujeito às regras locais.'2 As funções eram porém semelhantes: o amanuense da Livraria era respon-sável pelo governo da instituição e respondia por todos os seus funcionár ios . Tal

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qual os demais bibliotecários, comandava a limpeza do local e fazia todo tipo de ar ranjo concernente à Livraria: regulamentava e estabelecia normas de func iona-mento, impunha ordens, fiscalizava e controlava o serviço dos empregados. Tra-tava-se da grande autoridade local, atenta não só ao bom andamento da institui-ção como t ambém às necessárias melhorias e acréscimos.

Não por mera coincidência f icaram conhecidas as descrições que falam dessa figura séria e compenetrada, em geral um religioso, guardião dos segredos do acer-vo, e que, nesse território, fazia valer seu poder. Por isso mesmo, era quase natural que fosse ele quem recebesse os salários mais elevados. O bacharel Feliciano Mar-ques Perdigão, por exemplo, que trabalhava como amanuense na Livraria do Paço e na do Colégio Real dos Nobres desde novembro de 1768, ganhava o ordenado de 12$000 e ainda "ração no Paço, aonde residia".63 Se o salário não era multo alto, o cargo garantia residência e alimentação, o que deveria se constituir em grande in-centlvo. Tal medida gerava, ainda, um vínculo entre o amanuense e sua instituição: não raras vezes esses funcionár ios faziam de sua vida mera extensão da própria Livraria.64 A preservação do local ficava em suas mãos e ele só era subordinado ao poder real por meio de seu braço direto, o mordomo-mor , que na época respondia t ambém como ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda.

Além do mais, a posição de amanuense da corte não era destituída de impor-tância no interior da hierarquia dos bibliotecários: Feliciano Perdigão recebia mais que seu colega do Colégio Real dos Nobres, que ganhava só 8$000.65 Mas o cargo gerava as limitações de um subordinado da corte e o amanuense comia a ração que era devida aos demais, seguindo as ordens da "Ucharia", ou seja, da despensa lo-cal.66 Não obstante, em seu estabelecimento, o amanuense não se submetia a nln-guém, como um guarda-jóias dentro do paço. Nesse caso, porém, a meta maior era zelar pelos livros, multas vezes impedindo a saída das obras. Não faltam referên-cias ao controle quase policialesco exercido por Feliciano Perdigão jun to a seu acervo. Era ele quem recolhia os livros e os submetia a nova classificação:

[...] me foram entregues pelo Dr. Sr. Pagliarini em 16 de fevereiro de 1771 os livros referidos neste catálogo escrito em oito meias folhas de papel, que contém 192 volu-mes os quais fiz conduzir para esta Livraria do Paço d'El Rei Nosso Senhor, onde con-servo cada um dos declarados volumes com a rubrica que lhe escrevi no principio [... ] Casa da Livraria do Paço, sítio de Nossa Senhora da Ajuda, 22 de janeiro de 1773.67

Era t ambém o amanuense que vigiava o empréstimo, sempre excepcional, e sua pronta devolução:

Em quarta-feira de tarde, 27 de abril de 1773, levou emprestado desta livraria o Sr. Pagliarini Diretor da Impressão Régia, o livro de que abaixo vou fazer menção, por dizer-me [que] tinha ordem do Sr. Marquês de Pombal, para Joaquim Carneiro da Silva se servir dele na obra que estava fazendo e o seu título é: Van Dyck [ Antonie]. Le cabinet des les beaus portraits de plusieurs princes et princesses des homes ilustres, fameaux pelntres, etc., chez Henry et Cornellle Verdouslen [...].68

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Nao importava a quem se emprestava: a ordem era manter o controle. Isso valia para a corte e até mesmo para o poderoso ministro de Estado:

Em sábado de manhã de 2 de março de 1776 levou o sobredito Sr. Diretor que me disse tinha ordem do Sr. Marquês de Pombal, os 2 volumes que vou individuar: B73 Re-tratos de Varões Portugueses insignes em Artes e Ciências tomo 2. B73 de Va-rões Portugueses insignes na Campanha e Gabinete tomo 4 [...].69

No entanto, a maior preocupação parecia ser com o emprést imo de livros. Como a biblioteca era fechada, a retirada de obras era sempre considerada excep-cional. A saída parecia ser registrar tudo, antes que a morte ou outro incidente imprevisto impedisse a devolução do documento . Para tanto, não havia desculpas ou personalidades que escapassem à regra:

Em terça-feira de tarde 23 de março de 1773 veio a esta casa da Livraria do Paço dei Rei N. Senhor que Deus Guarde o Padre Francisco José da Serra que ficou na casa do Abade Diogo Barbosa Machado e me pediu o viu tomo da obra que tem o título — Ceremonies et Coutumes Religieuses de tous les peuples du monde, 1743 [...] Eu con-fiei o dito tomo do sobredito padre por ser pessoa de satisfação e porque assim mo tinha advertido o Exmo. Rmo. Sr. Bispo da Beja [Cenáculo]. Fiz esta clareza para o caso de faltar-me a vida antes, quando o dito tomo seja restituído ao seu lugar e mais os 2 que devem vir na forma do seu rol na 594 [...].70

Na falta de pessoal, era o próprio amanuense quem recebia e cobrava o rece-bimento de documentos:

Ano de 1776. Cópia do rol dos livros que o Sr. Nicolau Pagliarini, Diretor-geral da Impressão Régia, remeteu para esta Livraria do Paço dei Rei Nosso Senhor que Deus Guarde. A dita cópia está fielmente trasladada na forma que a entreguei ao dito Sr. Pagliarini com um termo de declaração de eu ter recebido os livros conteúdos no rol, que assinei em 28 de novembro [...].71

Era t ambém ele que se incumbia de comprar e localizar obras faltantes:

Ano de 1779. Memorial de apontamento dos livros manuscritos que registrou o senhor Gonçalo Lourenço, guarda-roupa do Príncipe Nosso Senhor para a sua curio-sidade que intenta e são os seguintes que noto à margem para minha lembrança, se os procurar [...].72

Era Perdigão, ainda, quem lidava com a entrada das "propinas":

Forma pela qual, eu, o Dr. Feliciano Marques Perdigão, fazia o recebimento dos livros que de propinas lhe eram remetidos pela Secretaria da Real Mesa Censória em dife-rentes tempos, declarados por suas datas de dia, mês e ano: cujas declarações se acham escritas nas folhas de guarda ao rosto de cada um dos mesmos livros e para exemplo sirva o seguinte: Este livro veio remetido pela Secretaria da Real Mesa Censória em Relação das Propinas do ano de 1769, que recebi em fevereiro de 1771.71

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Alguns poucos a judantes auxiliavam o amanuense nas tarefas de manutenção e organização do acervo. Esse era o caso de Domingos Maximiano Torres, que "por ajudar na ar rumação da Livraria desde novembro de 1768 até outubro de 1769 ganhava 8$000 réis por mês".74 Multas vezes, eram esses auxiliares que se ocupavam da escrituração; cuidavam da transcrição das listas de catálogos, das novas entra-das, ou da relação de livros pertencentes ao acervo. Significativo, nesse sentido, é o documento de punho do padre Feliciano Marques Perdigão, que agradece a ajuda — e depois dispensa —, em nome do conde de Oelras (nosso fu tu ro marquês de Pombal), ao mesmo " Domingos Maximiano Torres na arrumação das Livrarias do Paço e do Colégio, desde novembro de 1768 a outubro de 1769". E Perdigão conti-nua explicando: "Participo que como a letra de V. S. não agradou a S. Excia. para as circunstâncias de fazer os catálogos, Sua Majestade foi servido nomear outro que ocupasse o lugar".75 Não há escrivão sem boa letra e Domingos Torres parece ter tido pouco sucesso nesse aspecto.

Dois serventes ocupavam o grau mais baixo do escalão da Livraria. Eram obri-gados a varrer e vasculhar a casa; a limpar os livros, estantes, bancos e tudo quan-to fosse importante para a manutenção da Biblioteca. Conforme dizia Cenáculo em seu plano, cabia a esses funcionár ios "diariamente espanar" as obras e peças sob exposição do tempo.76

A partir da documentação legada pelo amanuense, pode-se verificar, apesar da inexistência de um estatuto interno, como havia regras partilhadas e que previam o bom func ionamento da Livraria. No entanto, o pouco movimento revelava seu al-cance limitado nesses anos de reconstrução: o fito mais imediato era a Família Real e seu círculo íntimo. Não fosse isso, não se entenderia por que todos os que se refe-riam à instituição a nomeavam sempre no plural: "As Reais Bibliotecas" ou "As Reais Livrarias". Tal costume estava vinculado à existência de duas coleções, depositadas no mesmo acervo. A Real Biblioteca, propriamente dita, ia se constituindo de obras de temas variados: religião, história, filosofia, belas-artes e ciências naturais. Faziam parte desse primeiro acervo, também, atlas, obras impressas e manuscritas, parti tu-ras de música, desenhos, cartas geográficas, gravuras, estampas, algumas obras de arte, instrumentos de medição, moedas e medalhas. Já a segunda coleção, como sabemos, era mais conhecida sob o nome de "Infantado", e compreendia uma série de livros consagrados à educação dos jovens príncipes e futuros dirigentes da nação.77 Nela se guardavam os compêndios de história e de geografia, os primeiros livros de ciência, gramáticas e outras tantas obras que a judar iam na educação dos herdeiros reais.

Mas o destino de ambas era sempre comum: poucas aquisições e a sorte de novas doações. Guilherme Dugood, por exemplo, artista inglês que trabalhou como ourives na corte portuguesa durante sessenta anos, costumava presentear a monar-qula com códices manuscri tos e estampas raras. Certa vez, doou uma grande plan-ta de Roma, deixando explícita na dedicatória sua importância:

Planta Geométrica de Roma contendo [... ] não só o que há de mais antigo e moderno nessa Cabeça do Mundo, mas também explicados por Alfabeto e números as Ruas com todos os edifícios e interior e exterior, que lhe pertence [... ] cuja servirá de ornamen-

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18. Ex- l ib r i s de Guilherme Dugood.

Códice com parada de cavaleiros,

em desfile, em suas armaduras

da corte de Maximiliano I,

pertencente à coleção da Real

Biblioteca. FBN

to à Livraria que Vossa Majestade vá fazendo e dignando-se de aceitá-la não conforme o valor dela, mas sua intenção com que a oferece me continuará também o favorável empenho da Sua Real Proteção permitindo-me de viver e morrer debaixo dela [...].'•

Mais uma vez, o presente vinha com u m a troca: garantia a proteção do estran-geiro em terras por tuguesas . Mais interessante ainda é observar a nota que acompa-nha a folha de guarda do índice: "A estampa a que se refere esta declaração alfabéti-ca e numér ica é a que se acha nessa biblioteca pregada n u m pano e pendente de dois paus". Aí está a prova de que a referida planta f igurou nas paredes da Real Biblioteca até antes de sua m u d a n ç a para o Brasil, e com certeza não deveria ser o único ele-mento a quebrar a sisudez do lugar. O própr io Dugood t ra tou de prover a Livraria de vários "regalos", após 1775. Dentre outros destaca-se o á lbum aquarelado conten-do o retrato de condes e senhores que cons t i tu íam o séquito de Maximil iano i, além da coleção de estampas de Piranese, considerado na época o maior propagandis ta e cultivador das civilizações antigas, em part icular a romana.7*

A Real Biblioteca — ou "As Reais Bibliotecas" — func ionava , assim, sob a ba tu ta de religiosos feitos amanuenses , que não m e d i a m esforços para a u m e n t a r o acervo. C o n t u d o , a impor t ânc i a dessas inst i tuições não era só feita de livros. Junto com a bibl ioteca, f i cavam a rmazenados pro je tos , aspirações e representa-ções de u m a m o n a r q u i a que se apresentava como culta e erudi ta . Já se fa lou sobre os l imites do p e n s a m e n t o i lus t rado po r tuguês , mas agora pode-se pensar , no miúdo , nas suas implicações, sobre tudo no que se refere à c o n f o r m a ç ã o de uma Real Biblioteca, espécie de car tão de visita do Estado. Depois que t u d o q u e i m o u , só restava a d. José i e a seu pode roso min i s t ro recons t ru i r o acervo, tendo c o m o mode lo as novas idéias i lustradas, que f u n c i o n a v a m tal qual ícones de época. Não obstante , a seleção não era tão livre, e implicava a submissão aos cri tér ios da Real

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Mesa Censória — que liberava certos textos, mas cerceava aqueles que considera-va mais heréticos. A liberdade era relativa, uma vez que condic ionada às razões de Estado.

A Real Livraria constitui um ótimo exemplo da Ilustração portuguesa. Di-retamente ligada ao Estado, ela colaborava para o for ta lecimento de certa repre-sentação do poder monárquico. Na mesma medida em que a Ilustração por tugue-sa, iniciada no reinado de d. João v, confundiu-se com o governo pombal ino, t ambém a Real Biblioteca foi contaminada por seu momen to de reconstrução: mais do que um centro isolado, ela personificava a erudição possível do rei e exem-plificava sua cultura. Assim como ocorria em outras esferas — nas novas regras da Universidade de Coimbra, na reforma educacional, na Academia de Ciências... —, a Real Livraria significou uma saída paradoxal em tempos de I luminismo e de Ilustração.

Seu destino ficaria de tal maneira ligado ao da Família Real que a política se realizaria por perto dela. Em tempos de d. Maria e do movimento conhecido como "a Viradeira", que se opôs a toda a política pombalina, a Real Biblioteca lembrará o ministro então preterido. Afinal, até esse momento , todos os documentos da Livra-ria que implicavam contratar, remunerar ou mesmo dispensar pessoal eram assi-nados por Carvalho e Melo (nessa ocasião, conde de Oeiras), o que revelava seus vínculos com a instituição. Estranha é a sina dos livros: às vezes nar ram histórias e às vezes as fazem, ou as acompanham de perto.

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CAPITULO

NA "VIRADEIRA": POLÍTICA E CULTURA NO REINADO DE D. MARIA

1. D. Maria I virando a página de seus feitos: na "Viradeira", o mesmo recurso

às imagens de Estado. FBN

Morreu el-rei é certo

Vos hão de pregar a peça;

O povo todo começa

A queixar-se do passado

E não fica sossegado

Senão com a vossa cabeça.

Cantiga anônima

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O iongo século XVIII português foi p r o f u n d a m e n t e marcado pela luta diplo-mática travada entre França e Grã-Bretanha em busca da hegemonia européia. Tal embate afetou de perto a situação lusitana, uma vez que as questões navais, comer-ciais e coloniais do Atlântico faziam parte desse mesmo jogo. Portugal tentou, en-tão, garantir uma política de neutralidade, procurando conciliar atitudes e medi-das concernentes às duas grandes potências. No entanto, dada a importância de suas possessões ul t ramarinas e por conta da proteção marí t ima que a Grã-Bre-tanha oferecia, acabou vinculando-se mais diretamente a essa nação, o que impli-cou várias concessões comerciais. Nessa arena, a colônia brasileira esteve sempre no centro dos cálculos portugueses e foi considerada tema de alta prioridade nos arranjos da diplomacia internacional.1 Afinal, a situação era frágil para os países ibéricos; envolvidos em complicadas depressões financeiras e convertidos em es-trelas de segunda grandeza, só conseguiam preservar a autonomia e manter os ex-tensos domínios ul t ramarinos à custa, exatamente, da competição entre inglaterra e França. Com efeito, diante dessa rivalidade, o impér io Lusitano lucrava alto no setor comercial, além de tirar vantagens por conta desse salutar esquecimento: enquanto a tensão permanecia centrada nas duas potências, sobrava mais espaço de manobra para Portugal. Ficava, porém, cada vez mais claro como o núcleo de interesses resumia-se ao Brasil, e a preservação do domínio se t ransformava em moeda de garantia da própria metrópole.

Mas t ambém no plano da política interna portuguesa o ambiente era agitado e dava sinais de reviravolta. O rei d. José i morreu no dia 24 de fevereiro de 1777 e na seqüência o marquês de Pombal soube, por intermédio do cardeal d. Luís da Cunha, que "nada ali já t inha que fazer".2 Ao rei sucedia a filha — d. Maria I — e iniciava-se o período mariano, marcado por um ambiente cultural, político e inte-lectual hostil ao legado pombalino, ao mesmo tempo que lhe era tr ibutário. A rai-nha, conhecida como "a Piedosa", jun to com seu marido e tio — o apagado rei con-sorte d. Pedro, a quem chamavam de "o Capacidônio" —, viu-se cercada pelos inimigos de Pombal e deixou-se guiar pela má consciência em relação aos atos do antigo ministro de seu pai. Todo esse complicado jogo de influências, além de levar à interrupção dos antigos projetos, acabou por afastar ainda mais Portugal do res-tante da Europa.

É certo que, em acordo com outras nações modernas , Portugal partilhava de um ideal comum, que implicava a centralização monárquica e a unificação do Es-tado, cujo maior exemplo era Versalhes, seguido pelas cortes do Prado, de Viena e de São Petersburgo. Nesses reinos, tudo convergia para a figura do monarca, que governava dividindo os demais estamentos e, assim, se t ransformava em ícone da nação. Não é o caso de retomar a história de cada um desses Estados; basta lem-brar que, nesse contexto de finais do século XVIII, o mesmo movimento que levou à centralização na figura do rei gerou conflitos sociais e uma revolução, na França, de dimensões até então desconhecidas.

Já Queluz, residência oficial da realeza portuguesa, traduzia uma realidade distinta da de Versalhes. Afastado da reforma urbana pombalina, o palácio era ago-

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ra o espaço dileto da corte, a sede do país, o modelo possível de absolutismo viven-ciado durante o período mariano. Queluz representava t ambém uma revanche contra o intento pombal ino de construir uma nação diferente, com indústrias e capitais advindos de uma burguesia que se fortalecia. Na verdade, esse movimento de reação era tão intencional que foi chamado de "Viradeira", já que representava o final do t raumát ico período do consulado pombal ino e o início do não menos turbulento reinado de d. Maria i.

Por sinal, os símbolos que marcavam o novo governo eram muitos e pareciam fúnc ionar por contraste. Enquanto Queluz substituía o m u n d o da política pom-balina — até então centrado na construção do Terreiro do Paço —, a Academia Real de Ciências ocupava o lugar do antigo domínio intelectual da Academia Real de História. Nos primeiros momentos , os sinais de mudança eram tão evidentes que se i m p u n h a m a todos os demais: as obras de reconstrução da cidade imple-mentadas por Pombal fo ram interrompidas, a Praça do Comércio permaneceu inacabada, os embelezamentos nos edifícios públicos cessaram, assim como resta-ram vazios os espaços não planificados. No conjunto, Lisboa, palco privilegiado da representação do antigo ministro, estava paralisada, e os trabalhos foram descon-tinuados logo em 1777. Com a Viradeira prol iferavam igrejas, sobretudo a Basílica da Estrela e o Convento das Carmelitas Descalças, grandes marcos do período mariano. Era como se Portugal se fechasse em uma interminável e prolongada pe-

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nitência, pontuada por gozos mais seráficos, muitas procissões e poucas touradas. Nesse sentido, a Viradeira guardava sua t radução mais literal: ruptura e retomada.

Assim, apesar dos vários sinais de continuidade,3 aquele Portugal arquitetado por Pombal de alguma maneira caía por terra. Como dizia o historiador por tuguês Oliveira Martins,

a máquina desconjuntou-se desde que o maquinista a largou; e para ensinar aos uto-pistas que uma nação não se inventa, que um organismo é coisa diversa de um maqui-nismo, veio a reação de d. Maria I repor à luz da evidência o verdadeiro Portugal, beato, soez, violento e ridículo.4

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Não parece que a história seja matéria de recuo e não se abre mão — ou simplesmente se esquece — do que passou. O Portugal que Pombal inventou pode ter sido impor tado no tocante às idéias e ins-tituições, mas, uma vez instaurado, passou a ter um novo sentido, e não há como voltar atrás quando o passo está dado. Além do mais, nada se cria apenas por inten-ção política: se Pombal tinha seus inimigos, t inha lá sua p la taforma de apoio e atuava em nome de um grupo e de certa aspiração de modernidade .

Por isso poderia se esperar tudo, até mesmo uma revanche, e a reação da época de d. Maria seria do t amanho das mudanças implantadas pelo ministro de seu pai. Mas algumas alterações teriam vindo para ficar e estariam na base de uma

3. As touradas: uma das poucas diversões da corte portuguesa. James Cavanah Murphy, FBN

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revolução fu tura em moldes, aí sim, liberais. Conforme corria à voz solta, Pombal teria feito muito ao revelar que no mundo havia algo a mais do que freiras, outei-ros e procissões.

A DECADÊNCIA DE POMBAL

É hora de recuar um pouco no tempo e retornar aos úl t imos anos do gover-no de Pombal, que exper imentou de sua própr ia armadilha: o exercício isolado do poder. Apesar dos amplos poderes que o ministro detinha, sua influência dependeu e sempre esteve condicionada ao apoio do rei. Essa posição represen-tava uma grande força, mas t a m b é m a maior das suas fraquezas, uma vez que a perpetuação da hegemonia política ficava vinculada à sobrevivência do sobera-no. E, com o enf raquec imento físico de José i, a sorte de Pombal tinha os dias con-tados: depois de 1774, o rei permaneceu pra t icamente paralisado e, após um últi-mo assalto da doença, em 12 de novembro de 1776, afastou-se de vez da política do Estado. A seu redor, nobres e médicos da corte ins inuavam que era hora de re-correr aos prést imos da Igreja, e até mesmo o monarca chegou a pedir os sacra-mentos no dia 18 daquele mês. Por seu lado, Pombal não se dava por vencido. Segundo o ministro, era preciso ouvir o Conselho de Estado, recorrendo a ele contra esse tipo de atitude que julgava ser um atentado da nobreza e dos médi-cos contra a realeza.5

E Pombal tinha motivos para tanto receio. Desde o ano de 1776 o governo bri-tânico, dada a saúde instável do monarca, adiara qualquer decisão concreta concer-nente ao Estado português. Além do mais, o ministro possuía razões de sobra para temer a continuidade das mudanças iniciadas. Mas sua maior preocupação con-centrava-se na sucessão. Pombal manifes tou desde logo posição contrária à possi-bilidade de o reino ficar nas mãos da devota filha do rei. D. Maria por sua vez divul-gara, não em poucas ocasiões, suas discordâncias sobre a extinção da Companhia de Jesus. Como o ministro não era figura de esperar pelo destino, nesse meio-tempo ar ranjou o casamento do filho de d. Maria, o príncipe d. José, na época com dezesseis anos, com sua tia Maria Bernarda, que contava com 31 anos e era uma das mais intransigentes defensoras do marquês. Pombal pretendia estabelecer uma lei sálica, passando o t rono diretamente para o neto e afastando a sucessão das mãos da filha. O plano foi, porém, desvendado e, apesar da efetivação do casamen-to, levou à queda de José Seabra da Silva — um dos mais íntimos colaboradores do ministro —, que foi banido para Angola.

A situação complicava-se. Em 29 de novembro de 1776 d. Maria assumiu a Regência e desde esse dia o monarca deixou de fazer qualquer declaração pública. Também foi vedada a entrada de Pombal nos aposentos reais; o ministro precisava se habituar a novos t ratamentos: ao invés das bajulações e da obediência cega, seus pedidos começavam a cair no vazio e nenhuma medida era publicada em seu nome. E a espera tornou-se breve: em 24 de fevereiro de 1777 o rei d. José faleceu

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4 e 5. D. Maria I: um novo reino,

uma nova política. FBN

e as predições contra o marquês tornaram-se verdadeiras. A nova soberana, a pri-meira da história de Portugal, durante muito tempo concentrara em torno de si as esperanças dos inimigos de Pombal. Ela e seu marido haviam se aproximado muito dos jesuítas, e seriam t ambém sensíveis aos apelos de toda a sorte de descontenta-mentos amealhados naqueles anos: os comerciantes que não contaram com a pro-teção do ministro, a nobreza que fora afastada da corte, e até mesmo os britânicos, contra os quais o marquês devotava clara desconfiança. Dessa maneira, Pombal, que já havia planejado deixar o cargo, e que em 7 de fevereiro se pronunciara nesse sentido à rainha, viu-se rapidamente afastado do círculo de decisões.

E o acaso não parecia mais estar alinhado com Carvalho e Melo. Até mesmo sua última maquinação, que visava controlar a sucessão real, falharia. O jovem príncipe d. José — filho mais velho e herdeiro de d. Maria —, que, em função de sua formação, tornara-se admirador do ministro, jamais assumiria o trono por tu-guês: em 1788 sucumbiu à varíola.

O rancor veio à tona e antigos contendores, até então calados, passaram a manifestar-se abertamente. A demissão era dada como certa, só faltava o golpe fi-nal, que seria mais ou menos espetacular. Alguns defendiam a idéia de que o minis-tro deveria ser demitido por incapacidade, sem formalidades. Outros julgavam que

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Pombal, a despeito das falhas, merecia consideração. Prevaleceu, no entanto, o parecer mais decoroso, que simplesmente aceitava a demissão requerida pelo mi-nistro. Seus honorár ios de secretário de Estado seriam conservados, mas não se incluiria no decreto nenhuma palavra de apreço ou reconhecimento. Ou melhor, o ex-estadista receberia uma Comenda da Ordem de Cristo que não passava de praxe de saída, oferecida a todo membro dos conselhos régios.

Para o público, que esperava por uma vingança maior, o desenlace foi no mínimo decepcionante. Logo se soube que o ministro ficaria em disponibilidade e de sobreaviso' para responder por seus atos, tão logo as acusações que circulavam pelo reino adquirissem f u n d a m e n t o jurídico.6 Juntamente com o decreto que o exonerava, Pombal receberia uma comunicação da rainha, que explicitava a inten-ção fa tura de tomar outras decisões perante o que chamava "os descaminhos da Real Fazenda".

Diante de tal situação, o marquês achou por bem pedir licença para se retirar à sua propr iedade em Oeiras e, assim, se afastar do calor do momento . Afinal, sua posição na corte era tudo menos tranqüila: fo ram chamadas tropas para evitar que sua residência em Lisboa fosse incendiada e, apesar de viajar incógnito, o ex-ministro teve a carruagem apedrejada. Acumulavam-se, ainda, as especulações a respeito do número de presos políticos que lotavam os cárceres: seriam mais de 1800 e dizia-se que o número de mortos no cativeiro era três vezes maior.7 Tam-

bém os jesuítas começavam a sair das prisões: 71 deles haviam falecido e 55 foram soltos, a maior parte libertada da Torre de São Julião.8 Caso mais delicado era o dos Távora, presos desde o atentado de 1758. D. Maria autorizou a soltura dos nobres e os liberou de qualquer responsabilidade, mas tal ato não acalmou os âni-mos. O marquês de Alorna, genro do marquês de Távora, preso com a mulher e os filhos desde o evento, pedia a revisão total do processo, o que implicava reabrir uma questão política delicada, já que tocava na imagem do rei mor to . '

A rainha, exposta a pressões de todos os lados, resolveu aceder ao pedido de licença do marquês, que mal sabia que assim tinha decretado sua própria sentença de extradição: não lhe seria mais permit ido ausentar-se do reino, tendo de ficar em degredo numa de suas propriedades, localizada em Pombal. O até então poderoso ministro viu-se abandonado por todos, e alvo de críticas, acusações e sátiras. E em Lisboa a tensão só aumentava: em abril, arrancou-se do pedestal da estátua eqües-tre de d. José i o medalhão com o busto do ministro deposto, enquanto as sindi-câncias nas secretarias do Estado iam de vento em popa.10 Além disso, a análise dos orçamentos das Fazendas Públicas revelou as condições deploráveis da administra-ção pombalina. Apesar de o ex-ministro af irmar ter deixado em cofre cifras consi-deráveis, a verdade era bem distinta: d. José i falecera insolvente, sem que soubes-se disso.11 E nesse contexto que a Viradeira conhece suas manifestações mais evidentes. Aqueles que até então louvavam os feitos de Pombal passaram a engros-sar, na mesma intensidade, o coro dos descontentes. A medida que o processo cor-ria, manifestações estouravam a cada dia nas ruas, ironizando as ações do outrora poderoso ministro:

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6. Vista do Rossio, vendo-se ao fundo os montes da Graça e do Castelo de São Jorge {1787). Gravador Zuzarte, FBN

Patrícios meus clamai, sobre o tirano

Saiba o mundo que foi o tal marquês

Ladrão, traidor, cruel e desumano.n

O processo jurídico, que ocorreu quase um ano e meio após a demissão de Pombal, ficou famoso não só por conta da intransigência real como t ambém da idade avançada do ex-ministro e de seu estado de saúde. Pombal perdia seus últi-mos inquilinos, seus rendimentos, e até os produtos de sua fazenda passavam a ser recusados. Para piorar o quadro, uma furunculose , mais tarde diagnosticada como lepra, deixou sua aparência totalmente desfigurada. Mas nem por isso as acusações cessaram. Para além do processo do Estado, que mencionava falhas graves de cor-rupção e abuso de poder, outros, menores, estouravam, como se uma panela de pressão houvesse sido destampada.

O evento mais representativo dessa virada política ficou conhecido como pro-cesso Medanha. Tratava-se de uma ação intentada por um fidalgo residente em Abrantes, que tinha comprado uma pequena propriedade de Pombal por 25 mil cruzados. Dizia ele que esse valor representava seis vezes mais do que o montante justo mas que, mesmo assim, havia sido chamado a Lisboa e forçado a adquirir o imóvel; diante de sua recusa, fora metido na cadeia, ficando sem o pátrio poder das filhas. O processo evidenciava o uso do arbítrio pessoal e a maneira como o Estado pombal ino servia, também, aos interesses particulares do ministro, que misturava com certa facilidade esferas públicas e privadas de atuação. Ainda nessa ocasião Pombal respondeu com altivez, destacando seus feitos e — esquecendo a etiqueta — atr ibuindo ao rei morto a responsabilidade de tanta violência.

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A rainha, que se conservara distanciada do andamento do processo, contra-riada com as acusações de Pombal a seu pai e irritada com os elogios que o mar-quês fazia a si próprio, tomou providências contra o antigo ministro. Só restava a Pombal, então, pedir clemência e esperar por algum milagre dos céus. A súplica, escrita em março de 1777, pouco lembrava o arrogante estadista, sempre dispos-to a falar de suas bravatas:

É público em todo o Paço e em toda a cidade de Lisboa que me acho em desgraça e nos motivos-com que recorro à Real Clemência de V. M. suplicando-lhe que se sirva de me verificar a escusa que tenho pedido de todos os meus lugares que ocupei até agora e de me permitir a licença de passar em Pombal o último espaço de tempo que me resta de vida [...]."

Estamos nos aproximando dos últimos momentos da vida de Pombal, tão polêmicos como aqueles de sua governança. Os historiadores portugueses divi-dem-se quanto à descrição desse período, mas quase todos o fazem de forma pas-sional, in t roduzindo elementos que ora realçam a vilania do marquês, ora desta-cam a expiação dos últimos meses. João Lúcio de Azevedo, por exemplo, narra com requintes e detalhes os dias que se seguiram ao interrogatório:

As forças físicas esvaíam-se-lhe com atrozes dores em diarréias, em fluxos hemorroi-dários, no esvurnar de obstinadas furunculoses. Prurido intenso fazia-se-lhe velar as noites em constante inquietação. Para lhe abrandar o martírio, dois criados, à beira da cama, a toda a hora, coçavam-lhe as pústulas. Sarna castelhana, denominavam os clí-nicos à doença. Tratavam-na com caldos de víbora, que se deviam adubar com uma cebola branca, um cravo, uma pitada de canela, cozinha médica afim da feitiçaria medieval. Já se tinha aplicado o remédio ao rei d. Pedro II. Era a lepra e o seu séquito de dores, hedionda e crudelíssima.14

Foi nesse estado que dois magistrados — um juiz e um escrivão — encontra-ram o ex-ministro, que deveria responder por todas as acusações que recaíam sobre sua administração. O processo se prolongou até janeiro de 1781, e a defesa do acusado se manteve: ele se limitara, lealmente, a cumprir ordens do rei, e ape-nas pedia perdão pelas palavras que utilizara a respeito de d. José i.15 Em 15 de janeiro o inquérito era dado por encerrado e a conclusão destacava a conduta arbi-trária do antigo estadista: usar o nome do soberano para redimir suas próprias cul-pas, revelar negócios do Estado que deveriam permanecer secretos, conservar as mi-nutas de defesa de Medanha quando essas precisariam ser abertas ao poder público. A reação de Pombal, dessa feita, foi inesperada, pois entre soluços pediu clemência real, além de admitir, pela primeira vez, suas faltas.

A rainha, sensibilizada com a doença do acusado, se não condenou, t ambém não absolveu. Em 16 de agosto de 1781 decidiu que as faltas do marquês merece-riam punição exemplar, mas que em função da idade do réu ordenava apenas seu desterro, a 110 quilômetros da corte. Para o outrora poderoso ministro, acostuma-

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do a decisões fortes e sem condescendência, este talvez teria sido o golpe fatal. Velho e fraco, não recebera a sentença que outros julgavam que merecesse. E Pombal sobreviveria pouco tempo a tal vergonha. Morreu em 8 de agosto de 1782, aparta-do da Lisboa grandiosa que ajudara a construir e para a qual fora impedido de vol-tar, até mesmo para a morada derradeira no jazigo da família.

NOVAS E VELHAS REFORMAS

Apesar de tantos episódios marcantes, a Viradeira esteve longe de representar a revolução que os adversários de Pombal preconizavam. Não só antigos ministros cont inuaram no governo, como t ambém nos demais escalões poucas mudanças fo ram levadas a cabo. Por exemplo, o responsável pela cidade de Lisboa continua-va sendo o mesmo corregedor, Pina Manique, figura p r o f u n d a m e n t e ligada ao governo pombal ino . Também o cargo de procurador-geral da corte foi destinado a um amigo fiel e leal ao marquês até seus últimos dias, o doutor João Pereira Ramos. Outros políticos fo ram simplesmente mantidos, guardando-se a mesma hierarquia dos tempos de d. José: o marquês de Lavradio reteve seu posto de vice-rei do Brasil e o conde de Oeiras, filho do ex-ministro, cont inuou atuando como presidente do Senado e da Câmara de Lisboa.16

7. Diogo Inácio de Pina Manique, 1733-1805. Chanceler-mor do reino 8. Marquês de Lavradio. Vice-rei do Brasil e desembargador do Paço: atuante em 1769: mesma hierarquia vigente

nos tempos de Pombal e de d. Maria. FBN no reinado de d. José. FBN

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Mas nem tudo era continuidade. Uma clara negociação política se estabeleceu, visando sanar feridas e controlar o clima de insatisfação. Nesse sentido, e a f im de preencher o vácuo político aberto com a saída do ministro, dois membros da pri-meira nobreza foram convocados: o marquês de Angeja, com atribuições seme-lhantes às de um ministro da Fazenda, e o visconde de Vila Nova de Cerveira, que foi nomeado ministro do Reino. Tais nomeações podem ser entendidas como uma concessão política, já que havia bom tempo evitava-se recrutar a elite local para atuar no governo.

O momento pedia, porém, ajustes e havia problemas urgentes a resolver, tanto no plano interno como no externo. O mais premente referia-se às queixas contra a administração anterior: a falência do Estado e a insolvência dos cofres públicos. Por isso mesmo, as primeiras medidas procuravam contornar a crise do Tesouro. O pessoal ligado aos serviços públicos foi demitido em massa, as touradas proi-bidas, os touros e dois mil cavalos dos estábulos reais fo ram negociados e, sobre-tudo, f icaram suspensas as obras de reconstrução de Lisboa. Tais medidas geraram desemprego e levaram a uma reação popular menos positiva. Até então, cada medi-da era acompanhada de grandes manifestações de regozijo, uma vez que, naquele momento , todos os males pareciam colados à figura de Pombal. No entanto, com a penúria e a recessão, um novo aforismo começou a circular pelas ruas, revelando como, em matéria de política, as reviravoltas podem ser sempre ligeiras: "Mal por mal, melhor com Pombal".17

Os ares, contudo, sopravam contra a imagem do marquês e de sua política. Antigos inimigos, ou até aliados, outrora submissos, saíam de seus refúgios e acu-savam-no de todos os males do presente: a penúria e a decadência do reino. Como contraposição a essa imagem, o antigo centralismo estatal foi sendo abandonado e em seu lugar a passividade voltou a dominar as instituições políticas. Em 1778 foi extinta a Companhia do Grão-Pará e Maranhão e em 1780 teve o mesmo destino a Companhia de Pernambuco e Paraíba. Com essas medidas abolia-se o controle do Estado, e o comércio no Brasil ficava liberado, para regozijo dos comerciantes portugueses, que se consideravam lesados pela política restritiva de Pombal. As manufaturas , antes propriedade do Estado, passaram a particulares, e o fomento à indústria foi incrementado por estímulos fiscais.

Existiam t a m b é m novidades no plano das construções. Se as obras em Lis-boa fo ram interrompidas , já a criação de estradas, adiada na adminis t ração ante-rior, foi implementada nesse momen to . Uma nova via ligando Lisboa ao Porto foi iniciada, e em 1798 as obras atingiam Coimbra. Era como se tudo funcionasse na lógica da contraposição: o que valia para a gestão anterior não servia para essa, e vice-versa.

No âmbito da cultura, a mobilização foi semelhante. O antigo plano de cons-trução do Paço da Ajuda foi protelado: dessa feita era Queluz que reunia a corte e seus rituais. Em vez da Igreja Patriarcal, agora era a Basílica da Estrela que lembra-va a grandiosidade do reino, t ambém inscrita em edifícios e monumentos . A oca-sião não era propícia, por conta da situação financeira, mas logo determinou-se que

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essa basílica seria a única edificação oficial a ser concretizada, buscando repetir o sucesso de Mafra nos tempos de d. João v. O novo templo e o convento seriam o re-sultado de uma promessa da rainha, que, após quatro meses de casamento, e com receio de não conseguir um herdeiro, " trocou" a construção da igreja pelo alento de conceber um sucessor. Dez meses depois nascia o filho do casal, mas os príncipes devotos teriam que esperar pela queda de Pombal para que pudessem pagar a pro-messa feita. A obra iniciou-se um ano após a subida da rainha ao trono e custou mui-tíssimo ao Estado — cerca de 6400 contos. No entanto, promessa feita era palavra dada e a Basílica da Estrela se converteu em símbolo dileto desse novo período.'8

Mas, se a imagem do reinado mariano se impunha pela oposição ao modelo anterior, não se pode dizer que os tempos eram de ruptura total. Até mesmo nos costumes, certas soluções de continuidade se misturavam a novos arranjos, e com a libertação de tantos encarcerados t ransformou-se um pouco o ambiente, ainda tão marcado pelo terremoto e pelos anos de governança de Pombal. Voltaram as pou-cas festas, alguns teatros e até mesmo as procissões, porém a capital continuava ca-rente de maiores divertimentos. Viajantes do século XVIII repetiam as velhas toadas das crônicas do xvn e reconheciam em Lisboa características semelhantes às de ou-trora: uma corte acanhada, uma vida social simplória e excessiva religiosidade. Além do mais, os problemas estruturais da cidade continuavam presentes: faltavam lim-

9. Planta da cidade de Lisboa em 1785. FBN

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peza, higiene e segurança, enquanto bandidos, mendigos e cachorros dominavam as ruas. W. Beckford, viajante inglês que passou por Portugal, legou um retrato vivo dessa época e não deixou de se referir à excessiva população canina:

Despertaram-me alta noite os hórridos latidos dos cães. Aquela matilha infernal [...] De todas as capitais que tenho vivido, Lisboa é a mais infestada por alcatéias deste es-faimados animais, que prestam o serviço de limpar as ruas de uma parte, pelo menos, das pouco aromáticas imundices.19

Mas t ambém havia novidades: em 17 de dezembro de 1780 (dia do aniversá-rio da rainha) fo ram acesos 760 candeeiros, dispostos na Praça do Comércio e em várias partes da cidade. E novas reformas realizaram-se nas instituições culturais, ofuscando a antiga centralidade da Universidade de Coimbra. Em primeiro lugar, a Academia Real de Ciências foi se impondo como o novo reduto de saber da corte de d. Maria. Criada por aviso régio de 24 de dezembro de 1779, a Academia se de-dicaria não apenas a um ramo de estudos — como fazia a Academia Real de His-tória —, mas, à maneira de suas homôn imas em Londres, Paris e Madri, propu-nha-se a estudar e d i fundi r variados setores do conhecimento, desde literatura e história até as ciências naturais, agricultura e economia. Nesse caso, a "virada" era dada pela nova orientação pragmática da instituição, acima de tudo no que se refe-re à atenção e exploração do mundo natural, tema recorrente naquele local.

A nova burocracia instalada em Queluz procurava nublar as influências pom-balinas, recorrendo ora aos mesmos quadros intelectuais estrangeirados (compro-metidos com o novo governo), ora aos elementos excluídos pela administração anterior, mas buscando sempre um novo formato, mais parecido com um Estado fomentador utilitário. Ou seja, diante da iminente crise do sistema colonial, que com a independência das colônias inglesas na América dava seus primeiros sinais de enfraquecimento, a idéia era incentivar os estudos mais pragmáticos da nature-za das colônias, com vistas a tornar a administração cada vez mais lucrativa e efe-tiva. A suposição geral era que toda pesquisa deveria conduzir a uma finalidade prática e resultar em retorno material ou pecuniário à Coroa portuguesa.2 0 Por isso mesmo, as principais linhas de pensamento e de ação da Academia Real de Ciências visavam uma nova orientação para a política colonial, que assimilava elementos do pensamento da época — acima de tudo no que se refere ao incremento da produ-ção —, sem no entanto abrir mão do mercantil ismo e do "exclusivo colonial".21 O princípio básico não era criar maior autonomia dentro das colônias; muito pelo contrário, a meta era racionalizar para gerar lucro e maneiras mais diretas de con-trole por parte da metrópole portuguesa. Afinal, não se pode esquecer que a pres-são internacional em torno da colônia brasileira aumentava, na mesma medida em que crescia a dependência de Portugal com relação a esse domínio.

Um dos grandes articuladores da política cultural de orientação mais utilitá-ria era d. Rodrigo de Sousa Coutinho, afilhado de Pombal e ministro da Marinha e dos Domínios Ultramarinos do reino de d. Maria i. D. Rodrigo acreditava que

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permitiria alcançar a introdução de uma ciência pragmática o antigo apogeu colo-nial, e em seus ofícios destacava sempre questões referentes à Alfândega real, reco-mendava a conservação das matas, chamava a atenção para a necessária criação de jardins botânicos e para a valorização de plantas exóticas e úteis: tudo em nome da melhoria e do controle." Foi imbuído dessa filosofia que em 1783 o cientista bra-sileiro doutor Alexandre Rodrigues Ferreira part iu numa viagem "filosófica" ao Brasil, acompanhado de dois artistas e um botânico. No mesmo ano seguiram outros cientistas para Moçambique, Angola e Cabo Verde.2'

Essa política tencionava, também, diminuir a defasagem existente entre Por-tugal e o restante da Europa. Com efeito, uma série de medidas implantadas nas colônias — como o combate ao contrabando, a defesa do "exclusivo comercial" metropoli tano e a perseguição ao desenvolvimento industrial, que implicou a proi-bição de manufa tu ras de tecidos no Brasil em 1785 — fazia parte desse novo modelo cuja meta era evitar a au tonomia colonial e otimizar seus recursos para a metrópole. Por essas e por outras, e assim como diz o historiador Fernando No-vais, é que o período que se seguiu ao consulado pombal ino é muito mais seu des-dobramento do que sua negação.2*

No entanto, se a Viradeira acabou dando continuidade ao caminho trilhado nos tempos de Pombal, algumas mudanças eram evidentes no dia-a-dia e na lógi-ca das instituições oficiais. As alterações mais visíveis fo ram aquelas que buscaram

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mudar a sorte das instituições muito vinculadas à imagem do marquês. Esse pare-ce ser o caso da Real Mesa Censória, que, pelo decreto de 21 de j u n h o de 1787, era substituída pela Comissão Geral para o Exame e a Censura de Livros, que manti-nha as mesmas atividades atinentes à proibição prévia dos livros que circulavam em Portugal. Para conferir maior destaque à nova política, anos depois o governo de d. Maria transferiu tais responsabilidades para o Santo Ofício da Inquisição e para a Mesa do Desembargador do Paço, re tornando ao modelo dos tempos ante-riores a Pombal. O decreto estabelecia que cabia à Igreja o papel de censurar os li-vros de assuntos religiosos e ao supremo poder temporal o direito de interdição sobre as demais obras, e concluía: "que cada uma das três autoridades se contenha dentro dos limites da sua competência sem que se intrometa no que é próprio e privativo dos outros".25 O novo governo procurava, assim, delimitar os diferentes po-deres e sugeria, só quando necessário, a consulta a especialistas nas questões canô-nicas, teológicas e jurídicas.

Com essa medida, o Estado subordinava implici tamente a Coroa ao papado, uma vez que invocava a bula Romanorum Pontificum, baixada pelo papa Pio vi em 1780, segundo a qual o sumo pontíf ice reclamava o direito de censura de livros, que lhe havia sido retirado por Pombal. Desse modo d. Maria reconhecia não só a auto-ridade do papa, como se declarava autorizada pela Igreja a criar o novo tr ibunal censório, ou a determinar que o novo presidente do tribunal fosse, necessariamen-te, um clérigo.26 Mais uma vez, conservava-se a estrutura, mas se alterava, e muito, a maquiagem do Estado.

MUDANÇAS NO MUNDO DAS BIBLIOTECAS: DIVIDINDO DOMÍNIOS

A alteração no eixo de poder t ambém gerou mudanças na política cultural, afetando de perto a Real Biblioteca. Se, durante a administração de Pombal, a Real fizera parte dos planos estratégicos do então ministro, com a Viradeira ela parecia estar, ao menos momentaneamente , mais apartada dos interesses centrais do rei-nado de d. Maria. Para piorar, parte da "Barraca Real", local de construção do que seria o fu tu ro Paço da Ajuda, ardeu mais uma vez em 1795, afastando definitiva-mente os monarcas, que optaram por estabelecer a residência oficial em Queluz, a cerca de 11 quilômetros de Lisboa.

Tal virada podia ser percebida t ambém nos documentos de época, cujo tom era, agora, outro: substituindo a antiga certeza surgia a negociação, quando não o pe-dido expresso de ajuda. Muitas vezes, os funcionár ios listavam e sublinhavam a importância da Real Biblioteca, assim como, com freqüência, relembravam à filha as promessas feitas pelo pai, como se fosse necessário repisar compromissos outro-ra selados. Interessante, nesse sentido, é a querela que se estabeleceu entre o ama-nuense Feliciano Marques Perdigão e o reverendo dom prior do Real Mosteiro de

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11. Vista do Paço de Queluz: a revanche de d. Maria. FBN

Mafra , em 17 de novembro de 1783. Ao que tudo indica, o f u n c i o n á r i o do acervo de M a f r a teria enviado à ra inha duas petições, r ec l amando a devolução de alguns livros constantes do acervo da Real Livraria, sob alegação de que eles não seriam de p ropr iedade da insti tuição. Os ares e ram outros e, naquele contexto, era um pouco mais fácil imaginar baixas nessa coleção que até então parecia intocável. Maf ra , que de alguma manei ra f icara restr i to ao legado de d. João v, voltava à cena e reclamava antigas contas.

A reação do bibl iotecário a essa solicitação foi imediata, e com base nela pode -mos inferir como parecia necessário repassar a impor t ânc ia da Real Biblioteca. A defesa de Perdigão é longa e merece demora . Para começar, o amanuense a rgumen-tava que os livros e papéis rec lamados haviam ent rado no serviço da Livraria no ano de 1768 e, por tan to , o t e m p o já teria autor izado a t ransferência . As r ep r imen-das ao reverendo pr ior não pa ravam por aí. Perdigão o acusava de estar "a lucinan-do" ao supor que receberia de volta os livros e papéis, e desabafava:

Benigníssima senhora, o Sr. Rei Dom José, que está em glória, foi servido nomear-me guarda desta sua livraria (por seu Real Decreto) e Vossa Majestade há por bem conser-var-me e como nela tem Vossa Majestade um tesouro de incomparável estimação por algumas preciosidades raras que encerra, e por força de gênio naturalmente lhe tenha amor e um prezo de a guardar e zelar com particular cuidado: atrevo-me a proferir [...] que se o reverendo D. Prior do Real Mosteiro de Mafra alcançasse sub-repticia-mente o aviso que intentava, eu certamente o não cumpriria.27

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Mostrando apego e até certa relação de posse dos livros pelos quais dizia zelar, Perdigão lembrava à rainha a política empreendida pelo pai, para justif icar que o pedido era, em sua opinião, inominável, uma vez que todos os livros daquela Bi-blioteca pertenciam somente à Família Real: "Quando muito poderá conjeturar que em algum tempo seriam dele [os livros], mas presentemente deve entender que são de Vossa Majestade". Repete-se, assim, a noção de que essas são obras do próprio rei, e de sua propr iedade particular, por mais que o que seja do rei seja t ambém da nação. Mas o caso não pára por aí. O amanuense acusa as próprias mazelas da for-mação do acervo, revelando que se cada antigo proprietário, ou herdeiro, quisesse reaver seus livros, "[...] abria-se a porta dessa Livraria para em pouco tempo ser roubada".28

Assim, passados alguns anos da reconstrução da Real Biblioteca, certos aspec-tos da política institucional iam ficando claros. Em primeiro lugar, percebe-se o esforço de Perdigão para não mencionar o nome de Pombal, ou melhor, sua insis-tência em vincular d. José i à história da Biblioteca. Por outro lado, nota-se como, com o intuito de melhorar o acervo da Real Livraria, simplesmente retiraram-se obras de outros estabelecimentos — tudo em nome da nação. É Perdigão quem, em determinado momento , reconhece a fragilidade da situação vivenciada pela Biblioteca e pede a intervenção real. Diz ele:

O corpo dessa Livraria, Senhora, que se formou e criou aqui, depois de ser incendia-da, é um corpo já crescido e de suma importância [...] e é de decoro de Vossa Majesta-de conservá-lo [... ] na estatura em que o deixou o Augustíssimo pai de Vossa Majestade q u e lhe d e u o ser. Eu posso dizer sem jactância que se ele não desviasse de algumas lan-

cetai políticas, já o teriam sem consciência sangrado muitas vezes.29

O amanuense recorre, portanto, à memória de d. José I, a f im de lembrar à filha seus deveres: nada como um pouco de política nesse mundo dos livros. A longa carta de Perdigão continua, sempre subl inhando a "ambição" de seu conten-dor e ressaltando a importância da Livraria: "a mais excelente de todo o Reino, a qual, segundo ouvi naquele tempo, excedia muito acima do número de 30 mil volu-mes, e todos ricamente ilustrados".20 O rancor expresso na missiva segue num cres-cendo, a ponto de Perdigão chamar "Dom Prior" de "avarento", por conta de sua intenção dissimulada de aumentar a importância de Mafra à custa da Real. É com certa ironia que o amanuense compara o papel das duas livrarias:

Sem dúvida me edificaria muito se o Reverendo Dom Prior se refletisse que, se aque-la Livraria lá lhe serve aos seus Padres e faz esplendor àquele Real Mosteiro, também esta que sempre a houve no Paço, não só serviu, sempre de ornato às suas paredes, e de esplendor à corte, mas está sempre pronta a servir aos Vassalos de Vossa Majestade, o que é mais, deve ser a mais bem fornecida de Livros para os casos ocorrentes, por-que aos Ministros ou pessoas do Real Serviço de Vossa Majestade será penoso ir daqui a M a f r a . Todos enfim conhecem que o que naquele Real Mosteiro sobra, no Estado falta,

e não é justo que uns rebentem de fontes, e outros morram de fome.31

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Talvez em outros tempos nada disso acontecesse ou talvez então não fosse necessário destacar a proeminência da Real Biblioteca. O fato é que, fazendo pouco da atuação de uma livraria localizada em Mafra, Perdigão, por meio da compara-ção, mostrava as alianças, mais ou menos imediatas, da Real Biblioteca com o Es-tado. Como decoração ou símbolo de cultura, na resolução prática de problemas de Estado, para o uso dos vassalos ou da administração, a Livraria Real parecia dis-tinta e, por isso mesmo, especial em sua função de biblioteca do rei e da nação. O documento terminava com um imenso elogio à rainha e o pedido de desculpas pela "pena excessiva", ainda reconhecendo como "são delicados os ouvidos das Ma-jestades e que é desatenção cansá-los com discursos impertinentes".'2 Mesmo assim, é pela reiteração que o amanuense procura convencer a soberana a manter seu acervo sem baixas: de quebra, fortaleciam-se os elos com a política mariana, que parecia afastada de tudo o que lembrasse a administração pombal ina.

Perdigão tinha motivos para temer pela situação de sua biblioteca. Os planos para a abertura da Biblioteca Pública33 no Terreiro do Paço andavam avançados e pareciam concentrar a atenção do Estado. E nascia forte, ligada a nomes de peso da nova política mariana. A idéia, como vimos, fora de frei Manuel do Cenáculo Vilas-Boas, que em 1771 propusera a d. José i a criação de uma livraria pública vin-culada à Real Mesa Censória. O núcleo inicial seria fo rmado pelas muitas livrarias dos colégios da extinta Companhia de Jesus e permitir ia a construção de uma cole-ção de amplas dimensões. Vinda de quem vinha, a idéia tinha muitas chances de dar certo, tanto que por decreto de 2 de outubro de 1775 o rei destinou amplas ins-talações da ala oeste do Terreiro do Paço, em processo de construção, para a fu tu -ra Biblioteca Pública.

E pode-se dizer que essa Livraria já nascia grande. Não só seu acervo era impor tante logo em seus momentos iniciais de vida, como t ambém as personali-dades que envolviam a instituição mostravam-se relevantes na lógica da corte. Em primeiro lugar vinha frei Manuel de Cenáculo, àquela altura arcebispo de Évora, posto que revela sua ascensão dentro do Estado e da hierarquia da Igreja. Mas exis-tia outra figura absolutamente decisiva: o lente e desembargador Antônio Ribeiro dos Santos, que atuava na direção dos trabalhos da Biblioteca de Coimbra havia cerca de vinte anos. A equipe que se montava era, assim, e para dizer pouco, pode-rosa. Reunia o presidente da Real Mesa Censória e um lente reconhecido, respon-sável pela sistematização e pelo regimento da Livraria de Coimbra.

Ribeiro dos Santos possuía uma visão ampla sobre o papel de uma bibliote-ca, e seria o espírito presente em Coimbra e em seu regimento que deveria orien-tar seus trabalhos fu turos . Com efeito, da análise desse documento depreendem-se algumas preocupações do bibliotecário de Ribeiro dos Santos, como a de dividir o acervo pr ior izando a organização. Um gabinete de antigüidades recolheria ma-nuscritos, pergaminhos e outros papéis; em outro local f icar iam as medalhas, lápi-des, inscrições, estampas, pinturas, estátuas, baixos-relevos e "outras relíquias". Mas os projetos do bibliotecário eram ainda mais grandiosos: outros gabinetes guarda-

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riam as cartas geográficas e "estampas volantes dos produtos da natureza". Não se esquecia Ribeiro dos Santos do cuidado com a boa utilização dos espaços — tudo seria bem pensado e planejado. Além disso, cioso da autonomia que desfrutava, em seu regimento o bibliotecário revelava preocupação com uma renda própria, para a atualização científica e cultural. isso sem deixar de falar da liberdade que apre-goava no tocante aos livros proibidos, que deveriam enriquecer as estantes da Bi-blioteca, sem tantos entraves.

Estamos diante de um profissional do mundo das bibliotecas, dono de um projeto própr io e de uma política enciclopédica e orientada para a ampliação das funções da instituição.'* Ribeiro dos Santos, que além de bibliotecário-mor da Li-vraria de Coimbra era professor, membro da Academia Real de Ciências e, a partir de 1793, deputado do Santo Ofício, personificava um funcionár io de outro quilate, sobretudo quando comparado ao amanuense Feliciano Perdigão, muito mais vol-tado — e com exclusividade — aos negócios da Livraria do Paço.

Por isso mesmo, quando em 1794, já no reinado de d. Maria i, foi confiada a Ribeiro dos Santos a tarefa de preparar a criação e a abertura da Biblioteca Pública da corte, as dimensões do empreendimento já ficavam estabelecidas. E a tarefa seria até fácil se aquela Livraria existisse de fato. No entanto, e como mostra a historia-dora Manuela Domingos, o panorama que lhe foi dado apreciar era muito diferen-te. No lugar de uma biblioteca, até então aos cuidados da Real Mesa da Comissão Geral para o Exame e a Censura de Livros, encontrou um amontoado de obras, não classificadas, em péssimo estado de conservação. Não bastasse, estavam misturados os livros provenientes dos colégios dos jesuítas e os novos, adquiridos nos tempos da Mesa Censória, a essa altura extinta. No "relatório-conta" apresentado em janei-ro de 1795, a situação parecia beirar o desastre, tal o acúmulo de descrições desai-rosas. Porém, e diferentemente do que se poderia imaginar, a atitude do bibliote-cário está longe de ser resignada. Ao contrário, Ribeiro dos Santos, que já t inha bem arquitetado seu modelo de biblioteca, mostra a convicção de que havia ali uma série de preciosidades e a certeza de um catálogo futuro . E ele não deixaria por menos, contratando auxiliares para a organização e arrumação da Biblioteca, cujo alvará fundacional data de 1795.

A Livraria nascia, assim, colada à figura de seu bibliotecário-mor, que impri-miria sua marca nas primeiras décadas da instituição. Ribeiro dos Santos — tal como ocorria na Biblioteca da Ajuda — só se subordinaria ao mordomo-mor , que na época acumulava as funções de ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda, e que naquele local era uma espécie de inspetor-geral.35

A Biblioteca Pública da corte surgia, por tanto , de maneira au tônoma e dis-tinta da outra Livraria Real, e assumia um papel diverso em sua função pública, mais aberta aos interesses do Estado e de sua população letrada. O modelo vinha da experiência de Coimbra, mas era assentado em uma realidade part icular: era na corte de Lisboa que a Biblioteca Pública abria suas portas, apresentando-se como mais um novo cenário para a ostentação da realeza. O própr io perfi l da no-va instituição distinguia-a do da sua colega, instalada no Paço da Ajuda. Seu acer-

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vo era maior, suas aquisições mais garantidas (para ela convergia não só a maior parte dos livros per tencentes à antiga Real Mesa Censória, como o f u n d o da ex-tinta Academia Real de História), e sua condição financeira mais estável, sobre-tudo em tempos de Viradeira e de política mariana. Além do mais, sua localiza-ção física — as vantagens de estar situada no Terreiro do Paço — e sua condição pública lhe garant iam maior visibilidade. isso tudo sem deixar de destacar, ainda mais uma vez, a impor tância do proje to de Ribeiro dos Santos, que passara a organizar a Biblioteca em dez seções: História (salas 1 e 2); Belas-Letras (sala 3); Ciências Naturais e Artes (sala 4); Ciências Civis e Políticas (sala 5), Ciências Eclesiásticas (salas 6 e 9), Poligrafia (sala 10), Manuscr i tos e Antigüidades (salas 11 e 12).36

Foi em 13 de maio de 1797 que as suas portas fo ram abertas ao público pela primeira vez. E as conseqüências foram evidentes. Por um lado, o prestígio da ins-tituição e as atenções da rainha tiveram correspondência direta com a ascensão de Ribeiro dos Santos37 e o predomínio da Pública. Por outro, o impacto da criação dessa biblioteca teve decorrências imediatas nos destinos da Real Biblioteca da Ajuda, que, nessa comparação, surgia mais diminuta do que antes parecia.

Segundo as poucas descrições que restaram, a Real era composta por três salas, guarnecidas de estantes e varandas, às quais se seguiam os gabinetes desti-nados aos manuscri tos e livros raros. A entrada não ajudava na apresentação da

12. Estátua de mármore de J. Machado de Castro, mandada executar pelo marquês de Ponte de Lima e doada à Real Biblioteca Pública em 1798. O presente evidencia os vínculos entre a soberana e a nova instituição. BNL

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Livraria: o corredor era estreito e no inverno a iluminação, já fraca, ficava apaga-da.38 Ou seja, no conjun to o espaço era pequeno, sobretudo para acumular tantos livros que chegavam de diferentes coleções. Não eram poucas as queixas dos fun -cionários com relação à falta de espaço e de estantes, à ausência de classificação das obras que cont inuavam a afluir, aos buracos no telhado e à falta de limpeza do acervo.

Nos detalhes ia se inscrevendo a situação frágil e mais periférica da Real Bi-blioteca. intrigas, demandas que antes não existiam e até certo descaso diante dos já escassos funcionár ios da Livraria eram freqüentes. É por isso que Feliciano Mar-ques Perdigão resolveu defender, como pôde, a permanência de "dois varredores para a Livraria". Nessa época, o varredor João Antônio Pinto recebeu uma moção real, que o obrigava a desertar dos serviços da Biblioteca e a trabalhar na corte, conduzindo os músicos à Sala Real. Diante da ordem, só restou a Perdigão, mais uma vez, reagir. E assim:

com esta notícia correu logo o referido Guarda a buscar o dito João Antônio Pinto, propondo-lhe a falta que faria no atual serviço o sobredito varredor; mas nada foi bas-tante para o persuadir que não é conveniente tirar-lhe o dito varredor; parecendo-lhe que como haja de gastar poucos dias e no mesmo serviço da Livraria fica o outro var-redor José Marques, nenhum prejuízo se dá.39

Diante de tal resposta, nosso amanuense não se deu por vencido e se dirigiu à própria rainha, mais uma vez destacando o valor e o estado de precariedade em que se encontrava a Livraria.

Excelência, quem conheceu o desmazelo em que estava esta Livraria no ano de 1768 e começou a protegê-la sabe perfeitamente que para este serviço se destinaram os refe-ridos dois varredores, os quais aqui servem atualmente, sem jamais os dirigir para outra repartição o seu mesmo apontador; porque ignora que nesta diariamente estão bem ocupados.*0

Perdigão insistia, sacando do bolso outros argumentos mais internos ao esta-belecimento:

E além de agora se andar a cuidar com a limpeza geral dos livros, e a manutenção da boa ordem e classificação nas estantes, espera-se também a resolução de quando se hão de ir buscar as propostas dos livros que estão depositados na Real Mesa Censória, para se conduzirem, e enquanto um varredor for a essa diligência deve ficar o outro para poder descansar ao dito guarda que todo se aplica a escrever o que está a seu cargo e não são coisas insignificantes que possa escrevê-las sem sossego de ânimo.*1

A pouca importância dada à Livraria pode ser medida pela falta de emprega-dos, e pela maneira oblíqua de repô-los. Na carência de pessoal especializado, eram os serventes que saíam de seus ofícios e cuidavam do atendimento:

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13. Planta do pavimento térreo da Real Barraca, construída em madeira para alojar a Família

Real, com indicação de todas as dependências que a constituíam antes do incêndio de 1794,

que a destruiu completamente — excetuando a Livraria. Na planta, as divisões correspondem

aos quartos do rei, da rainha, dos infantes, dos criados, dos conselhos e das damas,

à casa de música e à da guarda, às cozinhas e a Livraria. BNL

E porque como esta Livraria, posto que não é pouco, tem sempre a porta patente para aquelas pessoas a quem se lhe deve permitir entrada e a todas essas pessoas se deve acompanhar e assistir-lhes na presença dos livros, que buscam ver, para com essa decorosa assistência se evitarem os inconvenientes que acontecem algumas vezes; e na figura em que esta Casa está, há ocasiões [em] que não bastam os dois varredores para ajudarem o cuidado do Guarda.*2

Não há como saber se Perdigão conseguiu ou não convencer d. Maria i da necessidade de conservar seus dois varredores. Mas o que se pode observar são duas faces de uma mesma moeda: de um lado, nota-se como pareciam crescer as exigên-cias que recaíam sobre a Real Biblioteca; de outro, evidencia-se como era preciso, agora, defender a instituição. Qualquer momento parecia bom para recordar o lu-gar estratégico da Biblioteca, seus vínculos com a cultura lusitana e européia e seu papel como capital simbólico do Estado. Valia até lembrar uma utilidade pública que naquela ocasião era preferivelmente exercida por outro estabelecimento, que assim se definia. Afinal, se a Viradeira t inha alterado a hierarquia simbólica das ins-tituições do Estado, cabia ao bibliotecário não deixar esquecer: era a Biblioteca Real que concentrara esforços de tantos reis e que guardava a história de tudo o que se poderia desejar lembrar.

Não obstante, nesse momen to a Real deixara de ser a única a representar tal papel diante da monarquia . Além dela, a Biblioteca Pública da Corte — sem esque-cer as menores — dividia as atenções. E a correlação de forças não parecia pender

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para o lado da Real. Basta dizer que, inaugurada sob os auspícios da soberana, a Pública apresentava de forma vistosa, em uma sala central, a estátua pedestre da "Augustíssima Rainha a Senhora D. Maria i. Fundadora desta Real e Pública Bi-blioteca", peça simbólica que não só completava a homenagem, como reconhecia a fil iação."

Mas nem tudo estava perdido, tanto que algumas poucas coleções dos jesuítas cont inuaram chegando à Real — é o caso da livraria proveniente do Colégio de Todos os Santos, instalado na ilha de São Miguel, nos Açores. Foi o próprio mar-quês de Angeja t— ministro do Erário e m o r d o m o - m o r — quem passou a infor-mação a Perdigão, revelando como ainda eram estáveis as relações entre o Paço e essa Livraria:44

Na ilha de S. Miguel se acha a Livraria que foi dos jesuítas e lá declarada no catálogo incluso o qual remeto a V. Majestade. Para que fazendo reflexão sobre a qualidade des-tes livros me diga se merecem mandarem-se vir todos ou parte deles, declarando lá os que não merecem fazer-se a despesa de seu transporte para Lisboa [...]. 8 de janeiro de 1780.4=

No mesmo mês foi enviada uma missiva, reagindo animadamente à oferta:

[... ] devem-se fazer arrecadar exatamente todos ou seja livros ou obras trancadas, por-que assim se completam sem maior despesa as Livrarias [... ] Nem se deve admitir que

14. Retrato do poderoso marquês de Angeja. Ministro do Erário

e mordomo-mor nos tempos de

d. Maria. Gaspar Fróis Machado, BNL

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às vezes costumam dizer certos informantes, que tal ou tal livro se acha com avaria para escusarem sua remessa [... ] Nem espero que haja parecer prudente que desvie a Vossa Excelência do projeto de mandar vir todos esses livros, talvez com o pretexto de que sabem a ranço; basta na minha opinião que não saibam a heresia: assim estimo catolicamente os pontos do entendimento de todos os homens e uma Biblioteca, de quem pode, deve ter tudo [...).«

A carta a juda a entender como se desenvolvia a política de acervos da Real Bi-blioteca. Em pr imei ro lugar, fica evidente como, nesse m o m e n t o , aceitava-se qual-quer doação. Em u m a Livraria que se refazia, melhor era deixar entrar obras, b e m ou mal conservadas, e depois discutir o f u tu ro . Em segundo lugar, nota-se como o crivo é es t r i tamente religioso: contan to que não c o n t e n h a m heresias, seriam mui to bem-v indas quaisquer obras, m e s m o porque u m a Biblioteca Real, como bem diz o d o c u m e n t o , "deve ter tudo". Depois da resposta positiva, o marquês de Angeja enviou, em 9 de ou tub ro de 1790, nova missiva, que veio a c o m p a n h a n d o a p rópr ia coleção, compos ta por quinze caixotes.47 A coleção dos jesuítas, po rém, ficou aban-donada e só em 22 de ou tub ro de 1804 o padre Francisco José da Serra Xavier, então f u n c i o n á r i o da Biblioteca, se deu conta do t a m a n h o do estrago:

Memória dos 15 caixões de livros que foram dos jesuítas da ilha de São Miguel, dili-gência começada no ano de 1780, conservada nos caixões até 1804 e nesta abertos por mim, do que resultou por comidos de bichos e podres com tal corrupção que pediram ser queimados, o que executei; conservando alguns para melhorar de tomos ou suprir faltas.48

Após tanto t rabalho, eram os livros que se mos t r avam imprestáveis e conf i rma-vam a política frágil exercida pela Real Biblioteca. Amealhava-se o que era possível, recorria-se a outros prés t imos quando preciso, mas t a m b é m se pagava quando a remessa era especial. Datada de 22 de novembro de 1779, uma correspondência pri-vada discorre sobre a compra de um caixote de livros per tencentes ao doutor Bar tho lomé Uchoa, o qual recebeu a soma de 540 réis em troca da remessa que foi conduzida por Feliciano Marques Perdigão para a Livraria do Paço.4*

No entanto, m e s m o após tanto t rabalho o acervo da Real parecia ser pouco utilizado, a não ser pelas raras visitas ou requisições da rainha e de seus criados. Datado do m e s m o ano de 1779, outro d o c u m e n t o comprova como, por vezes, ele-mentos da casa real recorr iam à sua Real Livraria para deleite própr io . O guarda-roupa do pr íncipe d. José elabora, por exemplo, um memor ia l de a p o n t a m e n t o sobre os livros manuscr i tos re t i rados pelo j ovem herdeiro: "Genealogia (1), Árvo-res genealógicas de Portugal por Jerônimo de Ataíde (1), Genealogia do marquês de Colares (1), Nobiliária de Cristóvão Soares de Abreu, Luzero de Nobreza (1), Nobiliário de Alonso Teles (1), História Genealógica de la Casa de Silva (1)". Toda a relação foi anotada na terça de manhã , dia 7 de novembro de 1780, e teve cont inui-dade na sexta à tarde, quando f o r a m requisitadas mais dez obras de nobil iarquia e genealogia.50

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A movimentação de recebimentos de livros parecia maior do que a de emprés-timos, mesmo porque poucas vezes tal expediente foi acionado. Por isso, certos ca-sos chamam a atenção. É de 17 de maio de 1799 o seguinte documento assinado pelo amanuense Perdigão:

Dentro desta folha de papel vou conservando os recibos dos livros que empresto desta Real Biblioteca para uso do Jardim Botânico, na forma da ordem que El Rei N. S. [...] dizendo-me que emprestasse um livro ao Júlio Mattiazzi, jardineiro botânico do qual ele faria recibo para aqui ficar e que, voltando esse livro, poderia levar outro e que assim continuaria, em que necessitasse deste socorro; mas sempre com as devidas cla-rezas e cautelas que de mim devia esperar.51

Para além de alguns poucos exemplos, de resto a Real Biblioteca parecia mes-mo a extensão dos desígnios e desejos da soberana, a essa altura já demente. Para isso, basta atentar para o regimento que comprova a nova contratação de Feliciano Marques Perdigão e de outro amanuense, Francisco José da Serra:

Hei por bem nomear para prefeito das minhas Reais Bibliotecas aos dois meus criados Feliciano Marques Perdigão e Francisco José da Serra; os quais simultaneamente ser-virão seus cargos debaixo das minhas imediatas Reais Ordens e sem ordenado algum, porque me praz atender assim repetidas provas de desinteresse zelo e honra com que se empregam no meu Real Serviço [...] Palácio de Queluz em 24/09/1802 [...].52

Serra e Perdigão recebiam como funcionár ios do Paço mas não como prefei-tos, e era assim que se distinguia um bibliotecário-mor, como Ribeiro dos Santos, de um amanuense do porte de Perdigão, que não pretendia nenhuma independên-cia em relação aos ditames do Estado. Na verdade, o novo título que Perdigão acu-mulava — o de amanuense, guarda e prefeito — só revelava uma tentativa de orga-nização da Livraria. E, nesse sentido, outro provimento completava a ordem, criando novos cargos:

Sou servido nomear para ajudante das minhas Reais Bibliotecas a Francisco José dos Santos Marrocos; para praticante a Luiz Joaquim dos Santos Marrocos; e para ser-ventes a Feliciano José Joaquim de Oliveira, e Joseph Lopez Saraiva, com os ordenados que se acham por mim determinados [...) Palácio de Queluz 24/09/1802.53

Os tempos eram outros e, a exemplo do que acontecia com as demais biblio-tecas, formalizavam-se espaços e funções. O amanuense e guarda-mor passava a receber a designação de prefeito, e preparava-se a substituição de Perdigão. Prova dessa nova postura é o Regulamento provisional das Reais Bibliotecas redigido por Francisco José da Serra em 16 de outubro de 1804, em vigor a partir desse mesmo ano, especificando atuações, horários e posturas.54

É preciso, antes de mais nada, i luminar a situação. O documento fora elabo-rado pelo novo responsável da biblioteca e remetido ao conde de Vila Verde, recém-

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nomeado inspetor-geral da Real Biblioteca da Corte. Mas o texto é em si relevante, pois apresenta o "Regulamento" como uma primeira tentativa de dar estatuto pró-prio a esse estabelecimento, sem mencionar a organização do acervo e as relações com o público. Isto é, diferentemente do modelo de Ribeiro dos Santos — que espe-cificava o conteúdo das seções e as funções da biblioteca junto à comunidade —, neste caso os estatutos eram basicamente internos, próprios de uma repartição: so-bravam regras, mas faltava trabalho e até realidade.

O Regulamento começava conf i rmando as posições de Feliciano Marques Perdigão e de José da Serra como prefeitos das Reais Bibliotecas (a Real e a do Infantado) , garant indo a eles "toda a obediência; assim t ambém pela infração das mesmas se deve reputar falta de respeito contra a R. Autoridade depositada nos Prefeitos". Também foram nomeados ajudante, praticante e serventes que passa-vam a dever "a mais fiel e pronta obediência" aos prefeitos. Aí ficava estabelecido o poder do prefeito, que poucas vezes podia ser quest ionado, a não ser quando surgisse uma dúvida sobre "Conhecimentos Bibliógrafos". Nesse caso se devia "consultar aos mesmos Prefeitos: expor, e por escrito, com decência e clareza o seu parecer, e esperar depois a resolução". Afora isso, o prefeito era autoridade in-contestável, conforme estabelecia o item 111, acerca do "Governo das Bibliotecas e Correção dos Empregados". Ninguém poderia se intrometer na direção, tampouco "levantar a voz, argüir ou repreender por modo estranho os descuidos dos outros, por serem estas, e outras semelhantes ações privativas dos Prefeitos". Autoridade era, portanto, prerrogativa do prefeito, que mesmo assim deveria "ouvir o que for de justiça."

O tempo de trabalho era o tema do artigo iv, e sobretudo do v, que tratava diretamente da "Pontualidade de Satisfação do Trabalho, e do Caso Acidental". As faltas não eram toleradas, as visitas, consideradas ilícitas, e as saídas, absolutamen-te excepcionais. A quantidade de sanções demonstra que o objetivo era unificar mo-delos e demandar profissionalismo. Para tanto, era preciso estabelecer o "Com-por tamento dos Empregados nas Horas de Trabalho", "desde o momen to em que começar o trabalho até sua conclusão".

A ordem era prever tudo, até a atitude do servente que guardava a chave. O próprio horário de abertura das portas — assunto do item vm — era regulamenta-do pela agenda do Paço: "Antes algum tempo de dar o Relógio da Santa Igreja Patriarcal a horas da tabela, terá aberta, ou a Porta da Campainha no Corredor de baixo, ou a Porta da Casa da Música, ou a Porta da Casa da Ópera, regulando-se a abertura delas pelo trabalho atual". Os serventes, por sua vez, além de trabalhar na Biblioteca, prestariam serviço para "as Casas Grandes, a Casa da Música, e com Ordem especial ao da Casa da Ópera". Talvez fosse por conta dessa falta de espaços delimitados que se queixara Perdigão à rainha, naquela intriga referente aos varre-dores. Mas a verdade — e o Regulamento comprova — era que a Real Biblioteca se confundia com o Paço, e sofria com uma administração indistinta.

Os empregados t inham o direito de escolher manhãs, tardes, meia jornada ou jornadas inteiras para os dias feriados, mas era preciso que entrassem em acordo

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(e os artigos XI e XII t ratavam do tema largamente), a f im de que não optassem todos pelas mesmas ocasiões. Para evitar tais coincidências fazia mister a atuação do prefeito, que também cuidava de avalizar as faltas por moléstia:

Havendo nos empregados impedimento de moléstia farão logo aviso por palavra, ou por escrito a qualquer dos prefeitos da causa novamente acontecida. E durando o im-pedimento por dias que se façam notáveis, apresentarão quando assim o ordene algum dos prefeitos, uma certidão de professor médico, ou cirúrgico, em que declare que a moléstia era incompatível com todo e qualquer exercício de aplicação.

O final do documento é dedicado a sanções e penas (artigos xiv e xv) e de-monstra como a entrada do público na Real continuava dificultada. O Regulamen-to atestava, ainda, mudanças importantes que v inham para ficar. O surgimento da Biblioteca Pública e o grau de formal ismo que presidira sua concepção revelavam como os parâmetros eram novos e que chegara ao fim a era dos acervos meramen-te pessoais, f ru to de modelos particulares. Porém, ao mesmo tempo que se expli-citavam as regras, mais evidentes tornavam-se as distinções: enquanto a Pública abria suas portas aos leitores, a Real limitava-se a regulamentar o compor tamento de funcionários , sem prever emprést imos, abertura ou movimento.

No entanto, de forma geral, as bibliotecas conheceram algum desenvolvimen-to, facilitado sobretudo pela criação do "Depósito Legal", cuja primeira lei, de 12 de setembro de 1805, to rnou obrigatório a todas as t ipografias portuguesas o depósi-to prescrito anteriormente, em 1789, para a Imprensa Régia.55 Essa era a famosa prática da "propina", cujo controle, apesar de difícil, permitia resultados bastante visíveis — em primeiro lugar na Biblioteca Pública, mas t ambém na Real Biblio-teca, que recebia os exemplares dobrados e ociosos. Em 30 de dezembro de 1801, um decreto determinava uma quantia anual, de 1600$000, para a compra de obras públicas e outros livros, destinada à Biblioteca Pública. Os privilégios eram outros, e a Real Biblioteca valia-se de "favores alheios" e mantinha-se à custa dos beneplá-citos do príncipe regente, que, como a mãe, continuava se opondo a tudo o que lembrasse a era de Pombal.

A essa altura, porém, sua situação estava consolidada. Apresentava-se como uma livraria volumosa, com mais de cem incunábulos, e entre eles dois exempla-res (um impresso em papel, outro em pergaminho) da Bíblia de Mogúncia de 1642, feita por Fust e Schoeffer. Muitas eram as edições raras, tais como a dos Co-lóquios dos simples e drogas da índia, de Garcia da Orta, impressa em Goa em 1563. Continha, ainda, muitas primeiras impressões portuguesas e espanholas, Livros de horas i luminados, mapas e gravuras.5 ' O descaso para com o acervo tinha feito, porém, das suas, e boa parte dos volumes encontrava-se em lamentável situação de conservação. Em um catálogo elaborado por José da Serra, e datado de 22 de outu-bro de 1804, há referências ao estado das obras: "Totalmente arruinado da traça", ou então "Está a pasta velha e tem no corpo alguma traça mas pode se conservar pelo argumento de que trata", ou ainda "Posto que sofrível merece lugar nessa Real

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Biblioteca [...]". Sobre um livro de 1491 Serra fez a seguinte referência: "Posto que piedoso da traça pode conservar-se pela sua antigüidade da impressão".57

Mas o hábito de recorrer aos livros foi se f i rmando, e as bibliotecas, de manei-ra geral, ganharam lugar entre os programas dos estrangeiros que se encontravam em Lisboa. Esse é o caso do sueco Carl Ruders, em 1801: "Costumo, agora, passar uma boa parte do meu tempo na Biblioteca Pública e pr incipalmente na Biblioteca Real onde, diariamente, vão muitas outras pessoas para ler ou fazer extratos. Vejo lá, de tempos em tempos, um sábio estrangeiro [...]".58

Os tempos, no entanto, não eram de calmaria ou propícios para o deleite dos livros ou de políticas culturais mais estáveis; ao contrário, a nota geral parecia tocar mais para o lado do esquecimento literário. O maledicente viajante estrangeiro J. B. F. Carrère, em seu livro Voyage en Portugal etparticulièrement à Lisbone, de 1796, referiu-se secamente à situação das bibliotecas portuguesas: "Lisboa não tem ne-nhuma biblioteca pública. As bibliotecas particulares são pouco numerosas, e mui-tas vezes raras [...]".59

É certo que o estrangeiro não conheceu a Biblioteca Pública, recém-aberta , ou não quis comentar sobre ela, nem sequer se lembrou do Acervo Real. Mas é fato, t ambém, que os momentos mais gloriosos haviam ficado para trás. A situa-ção política do país, no âmbito internacional, era tensa e os novos planos internos mal saíam do papel. No documento a respeito do estado do reino em 1796, a ima-gem é de desolação: "A lei de barreiras para estradas públicas saiu nesse ano; não teve observância, ficou no projeto de seu autor. As estradas são sempre péssimas. A da nova e Pública Biblioteca da Corte t ambém se publicou, mas o preparo da guerra logo a fez esquecer"."

Até a antiga Mesa Censória, re formada por d. Maria, fora extinta em 17 de dezembro de 1794, uma vez que a censura unif icada foi considerada insatisfatória para conter "a extraordinária, e temível Revolução Literária e Doutrinai", que aten-tava contra "as opiniões estabelecidas".61 Em seu lugar, e com o fito de impedir a entrada das novas idéias que v inham jun to com os franceses que, literalmente, bat iam às portas do reino, foi reinstaurado o sistema dos três poderes, que impli-cava o envio das obras literárias a diferentes tribunais: da Inquisição, do ordinário e do desembargador do Paço. Novos tempos, velhas medidas.

Na verdade, a iminência da guerra fazia com que se esquecesse de tudo: pro-jetos fo ram adiados e passaram para segunda ordem. Portugal, que tentara duran-te tanto tempo manter-se neutro, diante dos conflitos que estouravam era cada vez mais forçado a tomar parte em um jogo que, na maioria das vezes, deixa poucos vencedores. A guerra chegava perto e, nesse clima, quase não sobrava espaço para lidar com a aquisição de novos livros, com a classificação dos antigos ou para pen-sar em uma política de acervos culturais. Lá estavam as duas Livrarias — a Real, com sua coleção preciosa e preservada para poucos; a Pública, bem fornida pelos livros censurados nos tempos da Real Mesa Censória, aumentada pelas propinas e alocada bem no centro da capital.

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Mas essa querela teria pouca importância em face da dimensão do que estava por ocorrer. Diante da pressão francesa, que não aceitaria mais meias medidas, era hora de fazer as malas e zarpar. Por estranhos rumos, e por mais que se tenha pre-tendido levar todos os livros e documentos do reino,'2 foi mesmo a Real que par-tiu — acondicionada em algumas centenas de caixotes — para chegar algum tem-po depois, sã e salva, a seu destino na América. Antes bem acompanhado do que só, e sem livros.

15. Entrada dos franceses em Lisboa. Outubro e novembro de 1800. Louis Gudin, 1820, BNL

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CAPITULO

HORA DE SAIR DE CASA: A DIFÍCIL NEUTRALIDADE E A FUGA PARA O BRASIL

1. Embarque de d. João para o Brasil: ar tranqüilo em meio a um mar

de controvérsias. Desenho aquarelado, anônimo, FBN

As alianças não são outra coisa mais do que uns comércios políti-cos; o aliado que entra com mais poder sempre tira mais proveito.'

A n ô n i m o d e p r o c e d ê n c i a h o l a n d e s a

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No últ imo quartel do século XVIII as certezas pareciam abaladas e viradas de cabeça para baixo. Primeiro, em 1776, parte das colônias inglesas na América do Norte conquistou sua independência política, vindo a formar os Estados Unidos e provando, com sua autonomia, que a condição colonial não era, definit ivamente, um estatuto perene. Diante desse ato, tudo parecia diferente, sobretudo porque ficava claro que a essa primeira libertação se seguiriam muitas outras.

Logo depois, por volta de 1780, tomou forma a Revolução Industrial inglesa, em um surto de economia industrializada que gerou um movimento cont ínuo e retroal imentado: cada invento conduzia a outro, tal qual uma espiral sem fim. A produção de manufa turas se acelerava e atingia proporções jamais imaginadas, e com ela as antigas regras de comércio caíram por terra, levando consigo limitações do próprio mercantilismo.

Para completar o cenário, em 1789, outro evento entrou na ordem do dia, fazendo tremer o solo europeu. Na França, um movimento de cunho liberal aca-bou por derrubar o que parecia estável como a natureza. A monarquia , considera-da divina, perdia seu caráter sagrado, e a morte de Luís xvi, em 1793, anunciava muitas outras, simbólicas ou não. Com a revolução, desmontava-se um arranjo político duradouro, que localizara na figura do rei um ícone certeiro e lhe conce-dera a centralidade necessária para o controle do Estado. Por isso mesmo, a Re-volução Francesa foi palco de uma radicalização poucas vezes vista: não era fácil

2. A prisão do rei Luís XVI:

ato solitário que repercutiu

em toda a Europa. FBN

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tocar numa instituição sacralizada como a monarquia , que parecia não pertencer ao arbítrio dos homens .

Por qualquer ângulo que se quisesse observar, a paisagem surgia desfocada e em movimento. Na verdade, longe de dizerem respeito apenas às suas realidades particulares, esses movimentos polarizaram toda a política internacional e os Es-tados nacionais da Europa continental e atlântica: eram a própria lógica da socie-dade estamental, a noção de monarquia de direito divino e absoluto e o Antigo Regime que entravam em colapso. É claro que as diversas monarquias européias acusaram os golpes de maneiras distintas, mas dificilmente alguém teria ficado de fora. Decididamente, as coisas estavam mudadas e de pernas para o ar.

PORTUGAL E SEUS PARES, OU ÍMPARES

Um bom jogo de xadrez. Aí está a metáfora ideal para pensar o panorama europeu em finais do século xvili, um xadrez cujas peças por vezes se moviam de forma ofensiva, ora atacando, ora procurando apenas manter-se onde estavam, sem chamar a atenção. Os grandes pivôs do jogo, postados exatamente no meio do tabuleiro, seriam sobretudo a França e a Inglaterra e, na "brincadeira" com Por-tugal, a Espanha t ambém teria seu lugar bem delimitado. Se cada um, à sua manei-ra, procurava guardar uma estratégia própria, que lhe garantiria a vitória final, Portugal assumiu uma posição bastante particular. Por trás de movimentos tími-dos e táticas pouco aguerridas se escondia esse império que tentou, enquanto pôde, sustentar a imagem de neutralidade, manifestada em atitudes contraditórias que visavam agradar a todos, sem agradar de fato a ninguém. D. Maria i, e a seguir seu filho, o príncipe regente d. João — João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís Antônio Domingos Rafael de Bragança2 —, optaram por uma diplomacia dúbia, que oscilava entre as duas potências, mesmo porque agora a con jun tura era dife-rente, e mostrar favoritismos em nome de uma dessas nações implicava, obrigato-riamente, colocar-se contra a outra.

E certo que os tempos de vanguarda das expansões marít imas das monarquias ibéricas t inham ficado para trás, e França e Inglaterra haviam assumido a diantei-ra no desenvolvimento econômico e no mundo das idéias. Agora, era a partir das necessidades dessas potências, que se repeliam mutuamente , que deveria se orga-nizar o equilíbrio das relações políticas internacionais.3 Naqueles dias inseguros, Portugal t inha tudo ameaçado: seu império colonial, sua Coroa e, também, a anti-ga aliança comercial f i rmada com os ingleses. Essa relação vinha de longe e, se no início os interesses comerciais se equilibravam, com o tempo a proteção política inglesa tornou-se moeda de barganha, usada para obter vantagens comerciais con-trárias aos interesses portugueses.

Mas o barulho ainda estava distante e, no período entre a independência ame-ricana e a Revolução Francesa, a península Ibérica viveu dias tranqüilos. Mesmo assim, com relação à independência das colônias inglesas na América, Portugal rea-giu de imediato, alinhando-se à Inglaterra, pois em troca de certas concessões co-

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3. Vista de Lisboa por volta de 1800: paz enquanto era possível. Cópia de uma

gravura de desenho idêntico de Franz Hegi, FBN

merciais contava com proteção política nas relações internacionais e t ambém com a preservação de seus domínios ul t ramarinos. Além do mais, não seria nada bom apoiar " tamanho mau exemplo", e Portugal t inha um bom motivo para ficar aler-ta: sua rica colônia na América. Por tudo isso, e ainda temendo a propagação das idéias libertárias em seus territórios, abriu-se mão de certas vantagens comerciais obtidas junto às colônias inglesas e, em 1776, seus portos foram fechados aos navios norte-americanos.* No entanto, com tal ato Portugal não se livrava das pressões diplomáticas, pois do outro lado da contenda, apoiando o movimento americano, estavam França e Espanha. Tomar uma posição definitiva não era nada simples. Foi assim que, j un tando a insegurança política aos prejuízos econômicos que resulta-ram da suspensão do comércio com as ex-colônias inglesas na América, o governo de Lisboa achou por bem enveredar por um rumo menos compromissado. Logo em 1783, integrou a lista dos países que primeiro reconheceram os Estados Unidos da América, abrindo seus portos, novamente, aos navios da nova nação.

Foi nesse período que as duas metrópoles ibéricas se aproximaram para resol-ver seus problemas de fronteiras no sul da América. Pelo tratado do Pardo, em 1778, Portugal renunciou à navegação nos rios da Prata e Uruguai, cedeu à Espanha a Colônia de Sacramento e a ilha de São Gabriel e abdicou das ilhas de Fernando Pó e Ano Bom — na região equatorial africana —, fundamenta i s para o tráfego escra-vista espanhol.5 Um pouco mais tarde, em 1785, laços de sangue pre tenderam asse-gurar esse bom relacionamento, desta vez em dose dupla: os infantes portugueses João e Maria Vitória casavam-se com os dois infantes espanhóis, Carlota Joaquina e Gabriel.

Mas a relativa calmaria não iria durar. A Revolução Francesa abalaria a equi-librada diplomacia por tuguesa , 'ameaçando acertos estabelecidos com a Espanha e

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forçando uma atitude mais franca, sobretudo em relação à tradicional aliança com a Inglaterra. Daí para a frente, e por bom tempo, a própria agenda do processo revolucionário francês, relacionada com as ações e reações da Inglaterra, é que comandaria, direta ou indiretamente, os movimentos diplomáticos e militares das nações européias.

Ante as dificuldades, Portugal procurou acomodar-se numa complicada política de neutral idade. Tinha certa experiência no assunto, já que, havia muito tempo, em momen tos de conflito, temperava suas relações internacionais com doses balanceadas de concordância e o máximo de discrição. Acima de tudo, a Coroa portuguesa queria preservar sua independência política e garantir seus domínios no ul t ramar — de onde vinha sua sobrevivência —, e para isso estava sempre disposta a tornear conversações e atitudes, tudo para manter o m o n o p ó -lio do comércio com suas colônias.6 Por essas e por outras, declarar-se neutro em relação ao embate acirrado entre os interesses franceses e ingleses parecia mesmo a melhor saída. Só que desta vez as mudanças t inham sentido mais p r o f u n d o e o momen to não era propício a meias palavras: essa política faria água num fu tu ro muito breve.

A Revolução Francesa ia tomando destinos pouco esperados, notícias espa-lhavam-se pelo continente e, de onde -quer que fosse, todos observavam o rumo dos acontecimentos. Em fevereiro de 1793, a execução de Luís xvi, na guilhotina, abalou os ânimos e evidenciou os próximos lances da revolução. Em Portugal, a

4. D. Carlota Joaquina: troca de alianças entre Portugal e Espanha. FBN

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reação da Coroa veio logo: quinze dias de luto rigoroso, quinze dias de luto alivia-do, teatros fechados por dois dias.7 O "grande medo" repercut iu no seio das eli-tes portuguesas e o intendente da polícia em Lisboa, Pina Manique, esbanjou rigor na defesa dos direitos da monarquia : navios, franceses fo ram apresados, soldados republicanos impedidos de desembarcar, livros proibidos e caçados por todo lu-gar, intelectuais detidos e expulsos os franceses residentes na cidade.8 Ficaram apenas os franceses realistas, que se exilaram p rocu rando abrigo em Portugal e posic ionaram-se como vassalos da Coroa, alguns ocupando cargos na polícia, no exército, ou a tuando como espiões, a favor da monarquia por tuguesa . 9 Não bas-tassem os subordinados de Pina Manique, franceses circulavam pela cidade, pron-tos para delatar qualquer um que disseminasse idéias revolucionárias. Os ares estavam carregados de desconfiança e medo, como bem descreveu uma testemu-nha: "Os espiões pululam em todos os domínios e espalham-se por toda a parte, prol i feram nas praças, nas ruas, nas lojas, nos cafés, na Bolsa, nas salas de espetá-culo, no interior das casas, nas assembléias, no gabinete do jurista, no escritório do negociante".10

Passado o primeiro momento , chegara a hora de o continente reagir, e, de fato, preparou-se uma ofensiva coletiva contra a França, sendo formada a primeira de uma série de coligações: desta vez reuniram-se Áustria, Prússia, Inglaterra, Ho-landa, o Estado do Vaticano e a Sardenha. Na península Ibérica, a neutralidade mant ida até então foi se to rnando insustentável e a hora de tomar posição se anun-ciava. O governo inglês não perdeu tempo, logo f i rmando com Portugal cláusulas específicas de proteção e, em separado, t ambém com a Espanha — sem que uma nação soubesse do pacto com a outra.11 Em tempos de guerra toda a diplomacia valia ouro, e alianças se fo rmavam e se desfaziam, de parte a parte, aqui e ali, ofi-cial ou secretamente, abertas ou silenciosas. Cada um se virava como podia, e Por-tugal e Espanha precisavam mesmo era proteger a península. Para tanto, f i rmaram um tratado de auxílio recíproco contra a França, e passaram a programar opera-ções de guerra conjuntas. Não por coincidência, em 1794, na Campanha do Ros-silhão, uni ram suas forças militares contra os republicanos franceses, para a defe-sa dos Pireneus. Nada de tão estranho, já que o solo europeu ia se t r ans fo rmando num palco de embates revolucionários e contra-revolucionários, e sem dúvida essa era uma boa opor tunidade para Portugal, sem ter oficialmente declarado guerra à França, avaliar seu potencial bélico, que, aliás, se mostrou pouco promissor. Foi com grande esforço que se agruparam 6 mil homens, e a falta de preparo e de uni-dade entre os oficiais era patente.12

Se o malogro foi duro de engolir, difícil mesmo foi digerir a atitude da Es-panha, que acabou por f irmar com a França o tratado de Santo Ildefonso, ratifica-do pelo tratado de Basiléia, em junho de 1795, pelo qual se aliava a Napoleão. Nos anos seguintes, o governo de Carlos IV foi estreitando, cada vez mais, a aliança com a França republicana, enquanto Portugal só entraria em conversações em 1797, já no tempo do Diretório. O mapa da península foi, assim, invertido: até então posi-cionadas lado a lado, agora as duas nações ibéricas se encaravam, frente a frente.

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Portugal, isolado, ficou numa situação ingrata. Para complicar ainda mais, uma das cláusulas do tratado de Santo Ildefonso introduzia os termos que se trans-fo rmar iam na chave do diálogo entre o governo francês e o português: o fechamen-to dos portos lusitanos aos navios ingleses; se Portugal não obedecesse, seu terri-tório seria invadido pelas tropas franco-espanholas.1 3 Assim se inaugurava uma temática que se converteria na tônica das relações entre Paris e Lisboa nos anos seguintes. A França, de maneira quase obsessiva, ameaçará o litoral português, e todas as confusas idas e vindas — as cansativas voltas e retornos diplomáticos — serão apenas variações sobre um mesmo ponto: a França exigindo, a Espanha ameaçando, a Inglaterra pressionando e Portugal dissimulando.

Melhor voltar a Lisboa, ao reinado de d. Maria. Seu pr imogêni to e herdeiro — d. José, o príncipe do Brasil — não chega a cumprir seus reais desígnios, e, como sabemos, morre em 1788, com 27 anos de idade. Diante de tantos infortúnios, a rainha dará os primeiros sinais de demência, e, em decorrência da doença, perde-rá as rédeas do governo. Se por um lado d. Maria já não governa para valer, o seu segundo filho, o príncipe d. João, agora herdeiro, ainda não rege. Por outro, o go-verno, acuado, pressionado e em apuros, mostra-se cada vez mais oscilante, inde-finido até, e não engana ninguém, como tes temunhou um médico francês que passava por Lisboa: "O sistema atual deste governo é não ter sistema algum e ir vivendo, por assim dizer, dia a dia, mudando todos os dias de plano, de axiomas, de medidas, consoante as circunstâncias".14 No entanto, o processo é rápido e já em 1792 o príncipe d. João passa a exercer o poder régio. Revelando-se, nessa conjun-

tura, apagado e sem voz ativa, o jovem príncipe apóia-se no Conselho de Estado, para o qual são nomeadas figuras representativas da vida política, militar e religio-sa do reino.

A atitude do novo governante parecia estar de acordo com as possibilidades de ação política daquele momento , confund indo-se com elas: indeciso, evasivo e sem força de decisão, distante do modelo de monarca preconizado por Pombal. A ques-tão se aproximava da história do ovo e da galinha: a situação política exigia uma atuação cautelosa e por isso o regente assim agia, ou era ele quem tinha a persona-lidade bastante indefinida, a ponto de esse traço pessoal se refletir na direção polí-tica de então? Em 25 de julho de 1799, quando não havia mais como esconder a incapacidade da rainha, d. João assumiu totalmente o governo, na qualidade de príncipe regente, assinando os documentos oficiais.

De qualquer forma, a situação era de difícil solução; o receio não era apenas o de uma invasão iminente das fronteiras continentais, mas t ambém o da perda do Brasil e da conseqüente ruptura do sistema colonial. Para a França, a aliança com Portugal facilitaria a comunicação com a América e barraria a entrada da Ingla-terra no continente. Já para a Inglaterra, a garantia do comércio português era jus-tamente o antídoto fácil para o isolamento que se anunciava. Para Portugal, um belo dilema: a paz com a França se constituía em medida premente para evitar o en f ren tamento bélico, enquanto a aliança com a Inglaterra representava proteção e estabilidade futuras. Dessa maneira, impedido de fazer a paz, assim como de decre-

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tar a guerra, o governo português ia estabelecendo um complicado jogo diplomáti-co, que consistia em tentar se equilibrar bem no meio daquelas duas potências euro-péias. Além disso, considerando que para se aboletar em cima do muro era neces-sária uma boa dose de equilíbrio, na medida em que as pressões vinham de todos os lados, a posição do governo de Lisboa tornava-se delicada e frágil.

Enquanto isso o jogo internacional corria solto. Apesar de Portugal ter com-batido no Rossilhão em 1794, e se mostrado sempre pendente para os interesses ingleses, sua atitude oficial para com aquela nação era de neutralidade. Só que o governo francês era exigente com seus aliados, e não dava trégua: vencedor daque-la campanha, continuava pressionando as negociações para a assinatura de um tra-tado de paz e amizade, e, em 1797, exigiu a cessão do Norte do Brasil, a abertura do Amazonas à navegação, os direitos comerciais e ainda o pagamento de 10 milhões de libras. A reivindicação não era das mais modestas e, numa tentativa de reconsi-deração da proposta, Lisboa enviou a Paris d. Antônio Araújo de Azevedo, então ministro-residente em Haia.15 Era preciso negociar, mas a tarefa não era fácil. Os gastos com articulações secretas e subornos eram altos, e a rigidez dos revolucio-nários, difícil de driblar. Enfim, a revisão das exigências que Araújo conseguiu foi quase nula e duramente criticada em Portugal pelo ministro dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, Rodrigo de Sousa Coutinho, "que chegou a chamar de imbecil o negociador do Tratado",1 ' sendo por fim recusada por d. João. Foi nesse ano que o governo por tuguês prendeu Antônio Araújo, em Paris, por

5. D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o poderoso conde de Linhares. FBN

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quatro meses. Os motivos da detenção nunca f icaram de todo esclarecidos: numa versão, ela se devia ao descontentamento do governo francês com sua atuação;17 em outra, o delegado português, inconformado com a recusa de d. João, teria per-manecido na capital francesa na tentativa de novo acordo e, por ter o prazo de seu visto expirado, foi preso. E, uma vez solto, não se livraria de suspeitas de corrup-ção e inabilidade — teria embolsado parte do dinheiro destinado às negociações com os franceses; este talvez, o verdadeiro motivo de sua prisão.18

O fato é que Portugal tentava, mesmo que de maneira ineficaz, equilibrar-se em uma cadeira manca: precisava neutralizar a ameaça f ranco-espanhola sem arra-nhar a aliança inglesa, que, a essas alturas, parecia representar o frágil fio que man-tinha a balança equilibrada. Nesse cenário, dois grupos que rodeavam d. João se alternavam em peso e medida e eram conhecidos como "partido inglês" e "part ido francês". A bem da verdade, não havia diferença ideológica nessa polarização, já que ambas as partes eram representadas por aristocratas fiéis à monarquia e dis-postos a evitar um conflito com a França e a Espanha. Mas distinguiam-se, sim, pela saída que preconizavam.

Era Antônio Araújo de Azevedo, novamente na ativa, quem representava o chamado "par t ido francês", com uma posição um tanto paradoxal: os a rgumen-tos para uma aproximação com a França eram jus tamente o medo e a recusa da Revolução. Acreditava que só assim Portugal conseguiria manter a política de neutral idade, e foi esse par t ido — o dos "afrancesados" — que dominou o tabu-leiro político entre 1804 e 1807. No entanto, o soberano não deixaria de lado o principal defensor do "partido inglês", Rodrigo de Sousa Cout inho. Para esse gru-po era f u n d a m e n t a l a defesa do espaço atlântico português, a integridade da me-trópole e do império, sem deixar de lado a fidelidade à t radicional aliança com os ingleses.19

E o jogo continuava, com novos lances. Em dezembro de 1798 formou-se a segunda coalizão contra a França, e as batalhas que se seguiram deram alguns f ru-tos aos coligados. Napoleão agiu rápido e, com o golpe do 18 de Brumário, assumiu a chefia do governo, dando início ao per íodo do Consulado e ao expansionismo francês. Não há tempo para acompanharmos as investidas de Napoleão; o que nos interessa é que Portugal continuava ali, ao alcance de suas exigências — ou de seus canhões; e, cada vez mais, o receio de uma invasão pelas fronteiras da Espanha espalhava-se na corte portuguesa.

Por isso mesmo, assim que assumiu oficialmente a regência do reino, em 1799, d. João modif icou o ministério e deu ênfase a uma política de defesa. Houve a preo-cupação de proceder ao alistamento sistemático no exército e de elaborar quadros estatísticos da população, mas o patr iot ismo parecia andar em baixa. Até o capelão da legação sueca estranhou o espetáculo: "Presentemente, fazem-se, todos os dias, alistamentos pelas ruas, com violência. Vejo muitas vezes passar, para pontos deter-minados, levas de vinte e mais recrutas, presos uns aos outros com cordas nos bra-ços".20 Além do mais, em tempos de tantos gastos os meios de arrecadação normais pareciam insuficientes: chegara a vez de o estado eclesiástico pagar um imposto

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correspondente à décima de seus bens.21 Imaginação para levantar alguns réis não faltava por ali, como relatou um contemporâneo ao saber que se faturava t ambém alugando as carruagens reais para conduzir mortos à sepultura.22

Em 1801, cada vez mais agressivo em sua política de expansão, Napoleão vol-tou novamente os olhos para Portugal. Afinal, as exigências feitas na época do Rossilhão não haviam sido ratificadas pelo governo português, que parecia distraí-do quando lhe interessava. Mais uma vez, foi a visão arguta do capelão da legação sueca que revelou o que não se podia negar: "A situação deste país em relação às potências beligerantes inspira sérios cuidados. Os governantes desejam viver em paz com todo o mundo, mas não lho consentem nem a política francesa, nem a inglesa".21

Em sua nova investida para barrar a entrada dos ingleses no continente, Napoleão encarregou seu aliado espanhol Carlos iv de transmitir suas vontades a Portugal, alertando que a possibilidade de uma invasão não era apenas modo de dizer. D. João, procurando ganhar tempo, mobilizou seu corpo diplomático em ape-los inúteis, dirigidos a Paris, Madri e Londres. Foi quando Manuel Godoy, minis-tro de Carlos iv, iniciou uma movimentação das tropas da Galícia e Andaluzia, indo de encontro às tropas portuguesas em Trás-os-Montes, no Douro e no Al-garve. Os espanhóis desalojaram os adversários, levando tudo de roldão. Era maio, e os campos, que estavam floridos, serviram de sinal: ramos de laranjeiras foram enviados para Madri, como sinal de vitória.24

A assinatura do armistício de rendição foi feita em Badajoz. Perder a praça de Olivença significou pouco para Portugal, "uma magra vantagem para a corte de Carlos iv".25 Duro foi ter que pagar uma indenização de 15 milhões de libras à França e tratar, novamente, da questão fundamenta l : fechar os portos aos navios ingleses. Mas tudo acabou ficando no ar, já que estava por se iniciar um período de paz. Lisboa recebeu, com certo aparato, os diplomatas vindos de Paris, os generais Lannes e Junot, que iriam fortalecer os laços entre as duas nações, com a contri-buição da presença ascendente no governo por tuguês de Antônio Araújo de Azevedo. Na verdade, pouco se conhece sobre a atuação de Junot como embaixa-dor. Sabemos, porém, que Madame Lannes fez sucesso em Lisboa — a moda des-pojada que usava agradou as moças portuguesas. Também as novas melodias f ran-cesas caíram no gosto popular e, "na véspera de santo Antônio, a população ouviu a marcha da Marselhesa, tocada em honra do santo toda a noite, quase sem alter-nar com outras peças".26 "

A paz geral foi enf im anunciada e os entendimentos ficaram acertados em 1802, quando França e Inglaterra assinaram o tratado de Amiens, pelo qual as con-quistas francesas fo ram reconhecidas e o fim das querelas deu lugar a uma breve trégua. Mas nem por isso Portugal estaria livre da instabilidade política; só não se esperava que ela partisse do interior do própr io Palácio Real. Em 1805 estourou uma conjuração, p ron tamente abortada, que tinha no centro a princesa d. Carlota Joaquina — que costumava causar constrangimentos à diplomacia portuguesa por estar sempre art iculando poli t icamente na defesa dos interesses espanhóis. Mulher

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avançada para o seu tempo, andava a cavalo, manejava muito bem um canhão de guerra e mant inha relacionamentos amorosos extraconjugais — era provavelmen-te o maior estorvo da vida de d. João. Pois bem, a princesa, alegando como pre-texto uma enfermidade mental, agora do marido, preparou a sua deposição, com o objetivo de substituí-lo e tornar-se a regente de Portugal. Apesar da pronta rea-ção de d. João — que desterrou fidalgos traidores e demitiu empregados envol-vidos na conspiração —, o movimento evidenciava a insegurança reinante e a pre-sença dos interesses do governo espanhol cravada bem no seio da família real portuguesa.27

Tudo o que é bom parece mêsmo durar pouco, e logo a paz de Amiens caiu por terra, com as hostilidades recomeçando para valer. Viena foi ocupada por Na-poleão, que por sua vez foi derrotado quando, ainda em 1805, as forças navais fran-cesas — junto com as espanholas — foram abatidas pela esquadra inglesa, na batalha de Trafalgar. Depois dessa guerra, a posição portuguesa ficaria ainda mais compli-cada, já que o governo, ainda em nome da sua famosa neutralidade, havia consen-tido que os ingleses utilizassem os portos locais como bases navais, apesar de não aceitar a proteção militar. Era a velha e boa política do nem bem isso, mal aquilo.

Se nos mares a Armada inglesa se sentia em casa, por terra era difícil vencer os exércitos franceses; até 1806, eles haviam dominado a Suíça, penetrado na Itália, atravessado a Alemanha e entrado na Polônia e em Viena: Bonaparte ia destituin-

6. D. Carlota Joaquina:

golpes no próprio

marido. Gravura

de Manoel Marques

dAguilar, FBN

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do e destronando monarquias, tomando, criando ou apadr inhando reinos e prin-cipados, e nomeando, para administrá-los, seus parentes e protegidos.2- Resumin-do uma longa história,2* Napoleão, com o título de imperador dos franceses des-de 180*, t inha agora que cuidar de tirar a última pedra do sapato: a Inglaterra. O jeito era atingir sua economia, isolando completamente a ilha. Assim, em 1806 era decretado o Bloqueio Continental, que proibia todas as nações européias de com-prar qualquer produto vindo da Grã-Bretanha. A reação da Inglaterra foi propor-cional à provocação francesa: declarou a ilegalidade do comércio e da navegação em todos os portos pertencentes aos inimigos, e considerou legítima a captura de navios procedentes desses mesmos portos.30 Com essas declarações de guerra mú-tuas, era a neutra l idade por tuguesa que entrava em questão e o mapa europeu que se redesenhava. Em julho de 1807, em Tilsit, foi a vez de a Rússia e da Prússia, derrotadas em batalhas, assinarem a paz com o imperador francês, pondo f im a mais uma coalizão.

Para ambos os lados a adesão de Portugal era vital: pela ótica inglesa signifi-cava preservar a relação com as colônias lusitanas e a única brecha no continente. Já a França precisava daquele império para estrangular a economia da Grã-Bre-tanha. Na esteira desse processo estavam em jogo a independência da metrópole portuguesa e a sobrevivência de seu império colonial, especialmente o domínio do Brasil, que parecia estar na mira das duas potências beligerantes. E os eventos não se fariam esperar: acuado, o governo lusitano iria, muito em breve, tirar a sua últi-ma carta do bolso do colete.

PROJETOS E PLANOS DE EVASÃO

Fazer as malas, zarpar rumo ao Brasil — sem esquecer o cetro e a coroa — e lá estabelecer um grandioso império não era uma idéia nova. O traslado da Famí-lia Real para essa colônia pairava como uma possibilidade acalentada havia tempos e sempre ventilada nos momentos em que a realeza portuguesa se sentia ameaça-da em sua soberania.

Já em 1580, quando a Espanha invadiu Portugal, o pretendente ao t rono por-tuguês, o prior do Crato, foi aconselhado a embarcar para o Brasil.31 Também o padre Vieira apontou o Brasil como refúgio natural e ideal para d. João IV — "ali lhe assinaria o lugar para um palácio que gozasse, ao mesmo tempo, as quatro estações do ano, fazendo nele o quinto império [...]".32 Em 1738, no reinado de d. João v, o conselho veio de d. Luís da Cunha, que via na mudança possibilidades de melhor equilíbrio entre a metrópole e a colônia, então abarrotada de ouro. " Em 1762, temendo uma invasão f ranco-espanhola , Pombal fez com que o rei d. José tomasse "as medidas necessárias para a sua passagem para o Brasil, e de-fronte do seu Real Palácio se v i ram por muito tempo ancoradas as naus destina-das a conduzir com segurança um magnân imo soberano para outra parte de seu Império [...l".3*

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Não é, pois, de estranhar que, no meio da convulsão européia e sentindo o fio da navalha bem perto do pescoço, os homens que rodeavam o príncipe d. João trouxessem à tona a velha idéia. Vamos lembrar da Guerra das Laranjas, em 1801, quando os exércitos francês e espanhol, juntos, derrotaram os portugueses com a maior facilidade. Pois foi no calor daquele momento que o marquês de Alorna tocou no delicado assunto:

É preciso que Vossa Alteza Real mande armar com toda a pressa todos os seus navios de guerra, e todos os de transporte, que se acharem na Praça de Lisboa — que meta neles a princesa, os seus filhos, e os seus tesouros, e que ponha tudo isto pronto a par-tir sobre a Barra de Lisboa, e que a pessoa de V. A. R. venha a esta fronteira da Beira aparecer aos seus povos, e acender o seu entusiasmo.15

Alorna serviu-se de bons argumentos. Falava do risco de perder a coroa, lem-brando os exemplos de Nápoles e Sardenha, e da preservação da nação por tugue-sa a partir do "grande Império no Brasil": "A nação portuguesa sempre ficará sendo a nação portuguesa". Todas essas razões, entretanto, não fizeram efeito, ou talvez a hora fosse mesmo imprópria. E parece que d. João não gostou nada da sugestão, demonst rando até "forte repugnância" pela idéia." De toda forma, a sugestão de Alorna entrou em pauta para não mais sair.

Lembremos agora que d. Rodrigo de Sousa Coutinho, o mais conhecido líder do "partido inglês", t inha também idéias muito próprias a respeito do Brasil. Na década de 1790, quando ministro dos Estrangeiros de Portugal, havia estabelecido contato com a elite intelectualizada brasileira, colhendo opiniões para elaborar um estudo que sugerisse uma gestão mais eficiente dos negócios mineradores e admi-nistrativos da colônia. Propunha ele "reformas executadas por homens inteligentes e capazes de formar sistemas bem organizados, e cuja utilidade seja por todos expe-rimentada"." Munido de relatórios e memórias produzidos por brasileiros, d. Rodrigo elaborou as linhas gerais de uma política ampla para o impér io e os esbo-ços das respectivas leis. Apresentou suas idéias ao Conselho de Estado de Portugal, declarando desejar "tocar ligeiramente sobre o sistema político que mais convém que a nossa coroa abrace para conservação dos seus tão vastos domínios, particu-larmente da América, que fazem propr iamente a base da grandeza do nosso augus-:o trono". D. Rodrigo tinha mesmo fé na idéia. Aconselhou que se considerasse o império como sendo fo rmado por "províncias da monarquia , condecoradas com as mesmas honras e privilégios, que se concederam aos seus habitantes e povoado-res, todas reunidas ao mesmo sistema administrativo, todas estabelecidas para con-tr ibuírem à mútua e recíproca defesa da monarquia".

Por isso tudo, em 1803, quando expôs sua opinião ao príncipe regente, d. R.odrigo deixou claro que não pensava no traslado da Família Real para o Brasil apenas como imposição da situação européia. Para ele tratava-se de criar um pode-roso império na América do Sul, estável e duradouro. Na sua opinião, o Brasil seria mais do que uma terra de onde se extraíam riquezas, e as boas relações travadas

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7. Rodrigo de Sousa Coutinho,

conde de Linhares. Conselheiro,

ministro e secretário de Estado

dos Negócios Estrangeiros

e da Guerra: líder do "partido

inglês". FBN

com parte da elite brasileira poder iam auxiliar na tarefa e na integração, caso a idéia vingasse. Assim como o marquês de Alorna, alertou para o perigo de dissolu-ção da monarquia e para a dilaceração dos domínios lusitanos, no caso de uma in-vasão francesa. Tomou ainda todo o cuidado para qualificar a transferência como uma atitude de grande "sabedoria e nobreza", afastando qualquer conotação de co-vardia, fuga e abandono que a idéia poderia sugerir."

Mas, t ambém desta vez, a proposta foi para a gaveta. É que o governo por tu-guês estava bem ocupado com os afazeres diplomáticos, atento aos avanços de Bonaparte e, ao mesmo tempo, t ra tando de garantir o bom entendimento com os ingleses. E nesse momento era melhor tentar manter a neutralidade aproximando-se um pouco da França, que ia se most rando cada vez mais agressiva. Além disso, a posição de Portugal durante a guerra estava lhe trazendo vantagens no comércio, e os negócios corriam bem.

A Inglaterra, por seu turno, insistia na mudança da família real para a colô-nia americana, pois cada vez mais perdia terreno no continente e o mercado no ul t ramar não poderia lhe escapar. Em 1806, uma missão britânica dirigiu-se ao Gabinete de Lisboa para alertar sobre o perigo francês, cada vez mais iminente, e sugerir que, caso Portugal não se decidisse por um "vigoroso e eficiente" enfren-tamento, a mudança para o Brasil seria a melhor alternativa. E é claro que a Grã-Bretanha se dispunha a a judar no projeto.40

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A pressão continuava dos dois lados. O jogo da neutralidade sofria suas variá-veis, os lances não eram os mesmos, mas era tudo igual. E o traslado da Coroa por-tuguesa para o Brasil continuava sendo uma hipótese recorrente. Até 1807.

A DECISÃO: UMA SAÍDA ÍMPAR

Foi em julho de 1807, imediatamente após a assinatura do tratado em Tilsit, que Napoleão deu um basta: Portugal que se decidisse, e logo. E, para apressá-lo, o imperador incumbiu o ministro português em Paris, d. Lourenço de Lima, da res-ponsabilidade de transmitir a d. João suas instruções. O recado era curto e grosso. Estava na hora de os portugueses declararem guerra à Inglaterra. O ministro por-tuguês em Londres deveria ser retirado e a saída do inglês de Lisboa, exigida; os portos seriam fechados aos navios dessa nação e, por fim, seriam presos os ingle-ses residentes em Portugal, e confiscadas suas propriedades. E mais: para realizar todas essas tarefas dava o prazo de um mês, até le de setembro. Após esse período, o não-cumpr imen to das exigências seria considerado uma declaração de guerra contra a França e a Espanha, que t ambém assinava a nota.

Desta vez, Napoleão não ficou só nas palavras e representações diplomáticas. De-cidido, nomeou o general Junot, que já havia sido seu representante em Lisboa, para organizar a formação de uma armada em Bayonne, nos limites da França com a Espanha.

Enquanto isso, d. João" permanecia no Palácio de Mafra, a cerca de 30 quilô-metros de Lisboa, onde, com a saúde debilitada, residia havia algum tempo. No dia 12 de agosto recebeu a visita de seu superministro Antônio Araújo de Azevedo, que lhe trazia as ameaçadoras novidades. Foi-se o sossego que restava. O príncipe re-gente, consciente da seriedade do caso, preparou-se para responder ao imperador francês. O momento era grave, o regente não tinha como negar. Hora de convocar o Conselho.

Sabemos bem como vai terminar essa história. A política da neutralidade en-tra em estado terminal e, desta vez, a família real virá mesmo para o Brasil. Enfim,

o plano se fez realidade, com o furacão napoleônico desencadeado sobre a Europa, no momento em que muitos reis perdem o trono ou o entregam à voracidade das armas francesas [...]; a dinastia de Bragança cumpria um destino já entrevisto pelo primeiro rei dessa casa, d. João iv.*1

Destino ou acaso, o fato é que uma decisão dessa envergadura não poderia ser tomada num estalar de dedos, já que a logística operacional para o seu êxito envolvia preparativos que requer iam um certo tempo. Aquele período — do rece-b imento do ul t imato de Napoleão até o embarque da corte — foi de dias vertigi-nosos, tudo acontecendo aos supetões. Os relatos de época se contradizem em datas, em nomes, em decisões; há graves lacunas seqüenciais, to rnando difícil pre-

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cisar o que ocorreu. Além disso, em tempos de guerra, nem tudo se fazia às claras e decisões impor tantes eram tratadas secretamente, quase sem deixar vestígios, motivo que íaz cie documentos avulsos e das entrelinhas um reduto de possibili-dades de informação. Sem a pretensão de exaurir o tema e de resolver a charada, vamos nos deter brevemente nesse momento confuso, em que a dinâmica ator-doada de uma política incerta e a concretização de uma saída bastante original resultarão em um gesto definidor para a história de Portugal e, pr incipalmente, a do Brasil.

E lá estava d. João, preocupado em convocar o Conselho, mas não sem antes recompor as forças que dominavam o cenário político e que pendiam ora para os franceses ora para os ingleses. Assim, para contrabalançar os anseios afrancesados de d. Antônio de Araújo de Azevedo, ninguém melhor que o "anglófilo" d. Rodrigo de Sousa Coutinho, que andava meio afastado do centro do poder; com ele, con-vocou-se t ambém d. João de Almeida de Melo e Castro, igualmente do "partido inglês".*2 O príncipe contava ainda com seus diletos, com quem trocava confidên-cias sem hora marcada: José Egídio Alves de Almeida, encarregado do Gabinete; João Diogo de Barros, secretário do Infantado; Tomás Antônio Vilanova Portugal, fiscal do Erário; Manuel Vieira da Silva, seu médico; e os Sousa Lobato — Fran-cisco José e Matias Antônio —, na função de guarda-roupas.*3

A primeira sessão deu-se lá mesmo em Mafra, em 19 de agosto, e d. João fez saber aos conselheiros os termos da intimação de Bonaparte. Era preciso respon-der e todo cuidado era pouco. Ninguém perdeu tempo; d. João deu a última pala-vra e os termos para a redação de uma minuta f icaram acertados, para, assim que fossem redigidos, serem ratificados: Portugal concordava em fechar os portos aos

8. Antônio de Araújo Azevedo, primeiro conde

da Barca: líder do "partido dos franceses". FBN 9. João de Almeida Melo e Castro, quinto

conde das Galveias, 1756-1814. FBN

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ingleses, aderindo ao Bloqueio Continental, mas prender, confiscar os bens dos in-gleses e expulsá-los — nem pensar.44

Na ocasião, o parecer do conselheiro d. João de Almeida de Melo e Castro re-velou ni t idamente o grau de consciência que os homens do governo, ou parte de-les, t inham da questão: Portugal corria sério perigo e não possuía meios de resistir a uma invasão, já que a redução das forças militares "nem intimida os inimigos de Vossa Alteza Real nem pode inspirar confiança de uma resistência durável".1 ' Por outro lado, o conselheiro concordava totalmente com a negativa de d. João em punir os ingleses que estavam em Portugal e ainda tocava no delicado ponto da simulação de um estado de guerra. Mas nem por isso Melo e Castro estava tran-qüilo, uma vez que a segurança e a soberania do príncipe regente e de sua família cont inuavam ameaçadas. E, antes da sugestão final, lembrava outros príncipes que, durante as guerras napoleônicas, que já duravam quinze anos, "ausentaram-se temporar iamente de suas capitais ou estados, pelo bom motivo de preservar a soberania e independência".4 ' Assim, o vassalo completava seu parecer p ropondo uma aproximação imediata com o governo britânico para que este colocasse suas naus à disposição de Portugal. Com efeito, esse e outros relatos mostravam como os dados estavam lançados, as ilusões, dissipadas, e a realidade já não enganava ninguém.

O fundamenta l continuava ser evitar a guerra e, se isso não fosse possível, ana-lisar então qual das alianças seria melhor para a manutenção da monarquia e para os interesses do Estado português. Enquanto isso, a tática diplomática de agradar os franceses, sem, contudo, ofender os ingleses, ainda vigorava. No dia 2' de agos-to realizou-se a segunda reunião do Conselho, t ambém em Mafra . A sessão correu em torno de dois temas.47 Primeiro, aprovaram-se os termos da resposta ao ultima-to de Bonaparte, sendo essa correspondência imediatamente expedida para Paris e Madri. Os conselheiros não se esqueceram também de contar ao governo britâni-co tudo o que se passava. O que não se registrou oficialmente foi o que o inglês Percy Clinton Sidney, visconde de Strangford, enviado de seu governo a Lisboa, es-creveu para seu superior em Londres, George Canning — secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros —, sobre os resultados da reunião. Disse ele que a intenção de Portugal era ganhar tempo até que "um aparente sistema de hostilidade" pudes-se ser elaborado com a Inglaterra. Portugal não tinha como se esquivar de Bo-naparte, e a guerra contra a inglaterra seria declarada, embora não passasse de si-mulação — pedia apenas que o governo britânico não "destruísse" suas colônias e o seu comércio. E, para dar um ar de veracidade ao caso, o governo português auto-rizava a inglaterra a capturar todos os seus navios de guerra que operassem contra os ingleses, lembrando ainda que tal procedimento seria firmemente evitado. Enfim, Portugal p ropunha uma guerra "para francês ver", e os ofícios assinados pelo príncipe regente foram despachados. Agora era aguardar a reação.4-

Outro assunto traria muita polêmica: a conveniência, ou não, de enviar para o Brasil o sucessor de d. João, seu filho Pedro — o príncipe da Beira.4* A sugestão baseava-se na necessidade de pôr a salvo a monarquia portuguesa. Assim, no caso

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10. Batalha de Vimieira, 21 de agosto de 1808. J. Jenkins, 1815, BNL

de Portugal acabar sendo vítima da guerra, a Casa de Bragança estaria imune, e também, de quebra, sua principal colônia. Já na sessão seguinte, em 2 de setembro, as discussões entre os conselheiros se deram em torno da data em que o herdeiro do t rono deveria partir e dos detalhes da viagem: quem acompanharia o príncipe da Beira, em que cidade ele seria sediado, como ficaria a administração da colônia e qual título teria no Brasil. Desse último encargo se ocupou d. Araújo, que sele-cionou um título de cunho militar — Condestável do Brasil —, e se incumbiu de redigir a proclamação que d. João faria aos brasileiros quando recebessem o prín-cipe da Beira.50

Uma importante decisão foi então tomada, porém não registrada em ata. Or-denou-se que fosse armada, imediatamente, a frota que conduziria o príncipe da Beira para o Brasil, e outras tantas para defender o porto. O Erário liberou 240 contos e o encarregado de coordenar essa tarefa foi o visconde de Anadia.31 Ama-durecia rapidamente a idéia de traslado da monarquia portuguesa, e os trâmites prosseguiam nessa direção. Strangford ficou sabendo, em encontro com d. Araújo, que não seria tomada nenhuma atitude até que o governo inglês opinasse; os esta-leiros já estavam em preparativos e d. João apreciaria a ajuda da Inglaterra caso fosse mesmo partir. E mais: Strangford ouviu em alto e bom som que "um novo e grandioso império, protegido em sua infância pelo poder naval da Inglaterra, seria estabelecido na América".

Ficou contente, o inglês, e acrescentou em seu relatório para Londres que, "em tal caso, nada poderia impedir a posse pela Inglaterra de um comércio exclusivo

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com os portos do Brasil".52 Soube também que a decisão do Conselho de enviar o príncipe da Beira para o Brasil seria devidamente informada aos governos francês e espanhol para que tivessem ciência de que, caso tomassem Portugal, a monarquia continuaria intacta. Ainda, se invadissem Portugal, d. João seguiria o filho. A França ficaria com Portugal, a inglaterra, com o Brasil.53

Mas, em se tratando de enviar seu filho em viagem, d. João não se dava por achado: consultou desembargadores, procuradores, o fiscal da junta dos três esta-dos e da Real Fazenda do Ultramar, e seus amigos mais próximos. Uns aprovaram a recomendação; outros julgaram que a partida seria ilegal, já que as leis do reino proibiam a saída do herdeiro da Coroa. Assim, o "assunto príncipe da Beira" saía de um círculo fechado para ganhar novos ambientes. Opiniões não faltaram. Alguns defendiam a idéia de que a viagem do príncipe d. Pedro era melhor do que a remo-ção imediata de toda a Família Real, "com uma demente, um chefe mais apático do que ativo de gênio, e um bando de crianças".54 Segundo essa visão, este seria o me-lhor meio de reconciliar o regente com a travessia, pois o filho dileto virava cha-mariz até que chegasse o momen to opor tuno para a part ida da corte. Havia ainda os que receavam que o súbito traslado da corte revoltasse a população do reino.55

Diante de tantos imponderáveis, d. João foi adiando a tomada de decisão. Não há como ter certeza sobre o que se passava na cabeça do rei: os estaleiros reais conti-nuavam agitados e talvez o regente estivesse só procurando ganhar tempo ou ten-tando desviar a atenção geral para longe do que queria ocultar. Uma boa hipótese para explicar tanta calma era a consciência que d. João tinha das vantagens comer-ciais que a França vinha obtendo com os portos portugueses operando livremente. Desde 1804 Portugal recebia todos os gêneros coloniais e matérias-primas para as suas manufaturas — vantagem que perderia com o fechamento dos portos.56

Apesar de toda a importância política desses dias, passaram-se três semanas sem reunião do Conselho e só em 23 de setembro d. João fez nova convocação. A res-posta de Napoleão tinha chegado, no mesmo tom de antes: que Portugal fechasse os portos e declarasse guerra contra a Grã-Bretanha, apreendesse súditos e proprie-dades ingleses. Portugal, por sua vez, insistiu na mesma tecla; aderia ao Bloqueio fechando os portos aos ingleses, mas não mais do que isso. Foram esses os termos encaminhados para os representantes da França e da Espanha, sediados em Lisboa, que não aceitaram as condições e ainda ameaçaram deixar o país caso o governo português não atendesse às exigências de Bonaparte. O prazo limite, havia muito expirado, agora seria curto: le de outubro.57

Por outro lado, o diálogo com a inglaterra t ambém prosseguia; por esses mes-mos dias, um decreto de emergência permitia que os comerciantes ingleses sedia-dos em Portugal retirassem todas as mercadorias da Alfândega sem pagar taxas e despesas, medida que visava evitar a captura desses bens pelos franceses caso hou-vesse invasão.5- E mais uma notícia surgia sob a forma de rumor : a frota que trans-portaria o príncipe da Beira já estava pronta. As naus Afonso de Albuquerque e D. João de Castro, mais a fragata Urânia e o brigue Voador, podiam fazer vela assim que d. João ordenasse.59

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O mês de setembro foi se encerrando com a temperatura em alta. Outra ses-são do Conselho, no dia 30, desta vez no Palácio da Ajuda, foi dedicada a resolver o que se diria aos impacientes embaixadores. Houve divergências entre os inte-grantes. Fernando de Portugal e o marquês de Belas concordaram com a proposta já anunciada: Bloqueio sim, expulsão dos ingleses e apropriação de seus bens não. Araújo apostou na simulação e nas aparências. Analisou que Bonaparte não ficaria nada satisfeito com a desobediência, mas talvez ficasse menos ofendido se não a tornassem pública, mantendo em segredo o item sobre a negativa de confisco dos bens dos ingleses. Para Melo e Castro, a única saída para evitar a guerra, salvar a monarquia e as colônias seria acelerar os preparativos para a condução do prínci-pe regente, de sua família e dos vassalos que o acompanhar iam. Mais uma rodada do jogo, e agora as cartas se def in iam claramente — só não se sabia se alguma delas estava marcada

D. João ouviu o conselho e achou por bem manter a proposta anterior — o que não quer dizer que deixaria de lado certa simulação para Napoleão nem tam-pouco os preparativos para uma possível viagem. Fechariam os portos aos ingle-ses, sim, como queria Napoleão, e era só. Enquanto isso, os embaixadores, cum-pr indo suas ameaças, pedi ram a restituição de seus passaportes. A situação era alarmante e, para tranqüilizar a população, foi publicado um aviso declarando que o príncipe regente tinha esperança de uma pronta reconciliação com as po-tências e que continuaria a tratar do assunto por intermédio de seus representan-tes oficiais.60

E as negociações continuavam, ainda que por debaixo do pano. O príncipe regente concedeu plenos poderes a seu ministro sediado em Londres, d. Domingos de Sousa Coutinho, irmão de d. Rodrigo, para tratar secretamente com a Inglaterra os termos de uma compensação pelo fechamento dos portos, ato que não devia tardar a acontecer. No entanto, o que os ingleses queriam mesmo era abocanhar o mercado das colônias portuguesas e, apesar de d. Domingos tentar acalmá-los,61

eles aproveitaram a ocasião para pressionar um pouco mais: provocavam, pergun-tando se o príncipe regente iria se retirar como soberano ou como fugitivo.6 2

Em outubro, d. João não convocou o seu Conselho, mas mandou que os no-meados se reunissem por quatro vezes, sem a sua presença, para que opinassem sobre determinados temas e lhe enviassem os pareceres por escrito. As conferências ocorreram na casa de d. Antônio de Araújo de Azevedo e giraram em grande parte em torno da viagem do príncipe da Beira. Os conselheiros redigiram os termos da "Aclamação aos Brasileiros", na qual o regente explicava a ida de seu herdeiro — que não chegaria a ser assinada nem publicada.61 As posições t ambém se dividiam, com alguns favoráveis ao estabelecimento de uma aliança imediata com os france-ses e outros dispostos a armar a frota real para a defesa do porto ou para o caso de uma partida súbita da realeza. Enfim, nesses pareceres oficiais o que mudava era o tom, cada vez mais grave e apelando para a urgência da ação. D. Rodrigo de Sousa Coutinho, apesar de ter deixado de comparecer às reuniões oficiais do Conselho, continuava a ser consultado pelo regente e apresentou-lhe uma representação ana-

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lisando o momento político; todos os seus argumentos convergiam para uma só direção: convencer o príncipe regente da imperiosa necessidade de negociar com a Inglaterra e proceder rapidamente à mudança da metrópole para o ultramar.64

Nesta altura dos acontecimentos, a "viagem" para o Brasil já não era assunto exclusivo de gabinete. Os boatos rolavam soltos e a movimentação nos estaleiros e no porto parecia conf i rmar as suspeitas, despertando muita especulação e insegu-rança. A ameaça de uma invasão franco-espanhola; a possibilidade da retirada do príncipe da Beira ou de toda a Família Real; um ataque dos navios ingleses — tudo estava no ar. Um Aviso Real aos superiores das igrejas da capital e das províncias, para que depositassem toda a prata em três lugares determinados, a fim de que fosse inventariada, só fez piorar o ambiente.65 Melhor então clamar a Deus: preces públicas, muitas missas; a capital do reino se voltou para os céus e o cardeal cele-brou missa com Collecta pro quacumque Tribulacione, que, como diz o nome, ser-via para corrigir qualquer tumul to ou tribulação. No dia 18 de outubro uma gran-de procissão saiu da igreja da Graça, empunhando a imagem do Senhor dos Passos e seguindo pelas ruas principais, acompanhada pelos párocos da cidade e por mui-tos dos principais fidalgos portugueses.66

Os ingleses t ambém circulavam pela cidade, mas com objetivos bem mais prá-ticos: tentavam vender seus bens e embarcar em navios britânicos que chegavam jus tamente para socorrer os conterrâneos em apuros. Strangford, bom represen-tante do governo britânico, ansiava pela retirada do príncipe da Beira, constante-mente adiada; parecia contrariado com o que via, t emendo que "toda a frota por-tuguesa que estava reunida no Tejo se tornaria vítima dos franceses se Lisboa fosse capturada".67

Quanto à França, em fins de outubro, d. Araújo e mais quatro conselheiros preocupados com a ira de Bonaparte resolveram acelerar os procedimentos, prepa-rando a minuta com os termos da resposta exigida pelo imperador, e a enviaram para d. João, que permanecia em Mafra. O edital publicado em 22 de outubro não deixa-va dúvidas: os portos estavam fechados para qualquer navio britânico e Portugal se unia à França e à causa continental. Tropas portuguesas foram enviadas para o lito-ral, como que referendando a publicação. Em seguida, no dia 25, d. João mandou suspender os preparativos para a viagem do príncipe da Beira, e, com essas medidas, o governo acreditava estar acalmando Napoleão. Finalmente parecia que Portugal tinha tomado partido.

O que só alguns sabiam é que o jogo duplo continuava — no mesmo dia 22, em Londres, onde o plenipotenciário d. Domingos vinha desenvolvendo conversa-ções para acertos com o governo britânico, foi assinado um tratado secreto: Por-tugal fecharia seus portos, mas garantiria o direito da Inglaterra de ocupar a ilha da Madeira, e ainda abriria um porto em algum ponto do Brasil para o qual as mercadorias inglesas pudessem ser importadas, em navios britânicos e com impos-tos facilitados. Em contrapart ida, a Inglaterra escoltaria a Família Real, em caso de viagem para o Brasil, e só reconheceria como rei de Portugal o legítimo herdeiro da Casa de Bragança. Mais um detalhe: assim que a corte se estabelecesse no Brasil,

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seriam iniciadas negociações para um tratado de assistência e comércio entre a Grã-Bretanha e o governo português.6- A Inglaterra estava mesmo bem calçada. Mas o que chama atenção é que, exatamente no mesmo momento , o governo português havia se envolvido em duas graves decisões, contraditórias entre si, favorecendo publicamente a França e secretamente a Inglaterra. O jogo parecia bem armado — tranqüilizava-se Napoleão de um lado e de outro garantia-se, em segredo, o apoio inglês em caso de emergência. Por enquanto, o território português no continen-te, a dinastia dos Bragança e as colônias além-mar cont inuavam de jeito que deve-riam — e queriam — estar.

Tinha mesmo razão um frade que, morando à beira do Tejo mas distante de Lisboa, ao saber do fechamento dos portos portugueses aos navios britânicos, tomou da pena e escreveu ao príncipe regente: "Os segredos de gabinete são mis-térios que comumenfe só com a razão se não podem entender". Pedia o frade a confi rmação da notícia que se espalhava feito pólvora: "Se fazem com tanto estron-do e rumor popular, as tristes notícias que correm, de que todas elas se dirigem ao f im de fechar os portos à nação britânica".6* Faltava saber se as mesmas notícias já haviam atingido seu principal objetivo — os ouvidos de Bonaparte.

Hora de fazer contas. No início do século XIX, os correios mais velozes, Pa-ris—Lisboa, por via terrestre, levavam dez ou onze dias de viagem. Entre o en-vio de uma correspondência e o recebimento da respectiva resposta, pra t icamen-te um mês. Lisboa—Londres por via marítima também consumia tempo: sete dias.70

E nesse espaço de tempo poder iam ocorrer fatos inesperados que invalidassem ou contradissessem o teor da mensagem que estava a caminho. Assim, a defasa-gem no diálogo entre as nações era igualmente agravada por conta da demora dos correios.

E foi exatamente o que aconteceu no início de novembro. No dia 22 de ou-tubro, o governo por tuguês havia declarado sua união à França e ordenado o fe-chamento de seus portos aos navios ingleses. Porém, no dia Ia de novembro, Por-tugal tomou conhecimento das drásticas exigências t ransmit idas por Napoleão no dia 15 de outubro, em conferência com o embaixador português, d. Lourenço de Lima, em Fontainebleau.7 1 Chegando a Lisboa em l- de novembro, d. Lourenço t ransmit iu o recado literalmente: "Se Portugal não fizer o que quero, a Casa de Bragança não reinará mais na Europa em dois meses".72 E mais, o exército de Junot estava em marcha pelos Pireneus, em direção a Salamanca, com os olhos fitos em Portugal.

Para impedir a invasão francesa, o governo português teria de radicalizar sua atitude contra a Grã-Bretanha, declarando-lhe guerra, não sem antes seqüestrar os bens dos ingleses e prendê-los, a despeito de, a essa altura, poucos deles restarem em Lisboa. Mesmo assim a tensão se concretizava nos pareceres dos conselheiros de Estado. O visconde de Anadia, pregando uma política de segredo, sugeriu que se declarasse ao ministro inglês que os portugueses eram obrigados a "este penoso procedimento" pela "dura lei da necessidade", mas que "na realidade será restituí-do ocultamente [o montante dos bens seqüestrados] e que se deixará o porto aber-

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to aos indivíduos para que possam retirar-se com a aparência de fuga."'3 Havia outra questão delicada: os conselheiros viam a necessidade de Strangford e o côn-sul-geral James Gambier retirarem-se de Lisboa. Além disso, d. Lourenço deveria voltar para Paris o mais cedo possível, levando com ele as novas decisões e o recém-nomeado embaixador extraordinário, marquês de Marialva. A idéia era aproximar-se do imperador francês, parabenizá-lo por suas conquistas e lhe ofertar um bom punhado de diamantes.7* Contudo, mais uma vez o calendário foi atropelado: a França e a Espanha, já t inham assinado um tratado no dia 27 de outubro, pouco depois da partida de d. Lourenço. Conforme o acordo, Portugal seria retalhado em três partes: Entre-Douro e Minho ficariam para a rainha da Etrúria, em troca da Toscana; Alentejo e Algarves passariam para a Espanha; e o maior pedaço — Beira, Trás-os-Montes e Estremadura — para a França. Ainda, as colônias americanas seriam repartidas entre eles.75 Ou seja, Bonaparte t ambém fazia seu jogo: de um lado ameaçava mas sugeria espaço para negociações, retendo d. João em Lisboa; de outro batia o martelo e enviava as tropas de Junot rumo a Portugal. É possível cogi-tar que no seu gabinete em Lisboa d. João tivesse em mãos exatamente as mesmas cartas: já estaria certa, em sigilo absoluto, a partida para o Brasil com a proteção inglesa; porém era preciso reter as tropas de Napoleão até a última cartada.7 '

No dia 5 de novembro, o governo português, ainda tentando um arranjo com Bonaparte, ordenou f inalmente a detenção dos residentes ingleses e o seqüestro de seus bens, não sem antes prevenir Strangford para que tomasse as devidas precau-ções.77 Os caminhos se definiam, mas desencontrados, com as decisões se sobre-pondo. Portugal continuava investindo em um acordo com Napoleão e, para acal-má-lo, propagava seu rompimento com a Inglaterra, sem saber que a decisão franco-espanhola de invadir suas fronteiras já estava tomada.

Já vimos que o fechamento dos portos tinha uma boa dose de simulação, mas, de toda forma, Portugal corria seus riscos, pois em Londres os fatos t ambém se precipi tavam. No dia 7, ainda sem saber o que ocorrera em Lisboa dois dias an-tes, o ministro Canning baixou ordens para que a frota inglesa capturasse a por-tuguesa e bloqueasse Lisboa, caso os portugueses não cumprissem imediatamente os termos da convenção secreta de 22 de outubro. Canning aceitava o fechamento dos portos, mas qualquer outra medida seria o mesmo que uma declaração de guerra. Mais: se o príncipe regente não fosse para o Brasil, iniciaria o bombardeio de Lisboa.78

Os receios aumentavam e o cotidiano da cidade já não era o mesmo. Rezas de um lado, demonstrações de preparos militares de outro, falatórios, boatos e intri-gas. Bom momento para superstições: uma beata espalhou pela cidade ter tido a revelação de que, se o príncipe regente fosse para o Brasil, a nau em que ele embar-casse iria naufragar . Pior é que o regente ficou sabendo do boato e a previsão "lhe causara desconcerto de idéias"79 — como se não lhe bastasse o dilema dos próprios fatos. Enfim, estabilidade e segurança eram palavras de que n inguém se lembrava mais. E, ainda, no mercado local começavam a faltar mant imentos: a carne e o trigo eram tão escassos que, em 1' de novembro, foi baixado um edital regulando

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o uso da farinha, só se admit indo a produção de pão — nada de biscoitos, bolos e docinhos.80

Em Londres, o representante do governo português, d. Domingos de Sousa Coutinho, estava temeroso.81 Escreveu a d. João em 11 e 12 de novembro, e o assun-to era a adesão de Portugal ao sistema continental e o fechamento dos portos, fato de que acabara de tomar conhecimento. Ajuizava que a notícia causara "temerosa desconfiança e horríveis suspeitas" no ministério inglês. Comentava t ambém as "saudáveis intençõe.s" da esquadra inglesa, que estava por sair com instruções de escoltar a Família Real; caso esta quisesse embarcar logo, os ingleses iriam mesmo colaborar com o regente? Consternado, d. Domingos prevenia o príncipe regente de que a mesma esquadra, destinada a salvá-lo, se viraria contra Lisboa, se fosse conf i rmada uma adesão à causa bonapart ista.

Mal sabia d. Domingos que àquela altura as delegações portuguesas na Es-panha e na França t inham sido intimadas a se retirar. Tampouco sabia que Por-tugal ainda tentava conter os franceses, pois, em sessão do dia 8, os conselheiros de Estado decidiram que o marquês de Marialva e d. Lourenço de Lima deveriam mes-mo ir a Paris cumpr imentar Bonaparte. Por seu lado, Portugal ignorava que França e Espanha já haviam planejado retalhar seu território, pelo t ratado de Fontaine-bleau. Mas os conselheiros se preveniam, buscando sempre garantias, e outras ins-truções fo ram baixadas: que se acabasse de aprontar os navios de guerra para o t ransporte da Família Real. Finalmente, o difícil assunto que poderia pôr tudo por água abaixo com os ingleses: "que de todos os modos polidos se devia procurar garantir que o enviado da Inglaterra [Strangford] partisse desta capital, porque a sua assistência aqui nos comprometer ia com a França".82

O que os conselheiros não podiam imaginar era que dali a três dias — no dia 11, em Paris — sairia um número da gazeta Le Moniteur, órgão oficial do Império Francês, com o tratado de Fontainebleau impresso e to rnando pública a decisão de Bonaparte de destronar a Casa de Bragança. Agora, o dilema do regente português estava por um fio: o tempo de um "correio" Paris—Lisboa, t razendo um exemplar da gazeta, seria o suficiente para Portugal dar as costas ao continente e se voltar para o mar.

Nos dias seguintes, o embaixador de Portugal na corte da Espanha retornou e o seu colega espanhol deixou Lisboa. E o "tempo" que os ingleses haviam obtido verbalmente terminara: hora de seqüestrar os bens e puni-los, conforme o estabe-lecido. Strangford recebeu o ofício de d. Araújo prevenindo-o da importância de sua retirada do terri tório português, mas não saiu de imediato. Já devia estar de sobreaviso — assim como d. João estava — de que a esquadra de Sidney Smith chegaria a qualquer momento e então poderia alojar-se no navio do contra-almi-rante, como de fato fez.

Foi no dia 16 que a esquadra inglesa apareceu na entrada do por to de Lisboa, com uma força de 7 mil homens.8 1 Sabemos que, naquele momento , a corte por-tuguesa — ignorando as determinações de Napoleão — pendia para um enten-dimento com o continente e tinha se distanciado das negociações com o governo

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inglês. Portanto, a tarefa principal de Smith — assistir e comboiar o traslado da Família Real para o Brasil — parecia ter sido relegada a segundo plano. O que não se conhecia ainda em Lisboa é que as tropas de Junot, estacionadas em Alcântara, já estavam atingindo a fronteira de Portugal.

Os dias que se seguiram foram tortuosos. Em conferência com Strangford, Smith decidiu declarar o bloqueio ao ingresso no Tejo, até que tudo se arranjasse amiga-velmente. Ao mesmo tempo, as primeiras notícias sobre os franceses estabelecidos na fronteira chegavam a Lisboa, causando muita confusão na corte. Nem mesmo a secretaria da Guerra tinha idéia dos progressos dos invasores e, para levantar a rota e a velocidade da marcha do inimigo, foi despachada uma missão de reconhecimen-to. Era boato para todos os lados: falava-se em Exército inglês, nos russos e "outros espectros que tornavam aziagas aquelas horas de provação".-* Com tantos fantasmas rondando o palácio, melhor refletir um pouco. As duas correntes políticas apresen-tavam propostas ao regente. O "anglófilo" d. Rodrigo de Sousa Coutinho propunha resistência e, se necessário, a retirada para o Brasil. D. Antônio Araújo de Azevedo — o afrancesado — pretendia estabelecer um entendimento com Bonaparte.

Strangford não perdeu tempo e lançou mão de toda a sua habilidade diplo-mática: instalado a bordo da nau de Sidney Smith, escreveu a d. João dizendo es-quecer as hostilidades praticadas por Portugal contra a Inglaterra e p ropondo ajuda naquele momento e no futuro, desde que a partida para o Brasil fosse ime-diatamente acionada. Levou a carta em mãos e relatou poster iormente para o mi-nistro Canning o que sucedeu naquela ocasião:

Percebi que nenhum momento devia ser perdido e meu dever era afastar da mente de Sua Alteza Real todas as esperanças de acomodar os negócios com os invasores do país, terrificá-lo com descrições sombrias e lúgubres da situação da capital, que eu deixara havia pouco, e então fasciná-lo de repente com as brilhantes perspectivas à sua frente, dirigir todos os seus temores para um exército francês e todas as suas esperanças para uma frota inglesa [...].8

E, para consolidar seus argumentos, Strangford teria entregado a d. João o exemplar do Moniteur, revelando a real atitude dos franceses. Foi a gota d'água.

D. João convocou o Conselho na noite de 2* de novembro para comunicar que as tropas francesas haviam alcançado Abrantes. Em marcha forçada, poder iam entrar em Lisboa em três ou quatro dias. E a decisão foi tomada: o governo deve-ria entender-se imediatamente com Strangford e Smith e tratar de preparar o embarque de toda a Família Real para o Brasil, sem perder um só instante. Uma Junta de Governo do Reino foi nomeada para reger Portugal na ausência do sobe-rano e preparou-se uma declaração sobre a viagem ao Brasil, a ser publicada por d. João no momento da partida. E assim foi feito.

No dia 27, d. João embarcou, seguido de toda a família. A seguir, precipi taram-se em direção à praia as famílias de ministros, conselheiros de Estado, oficiais e ser-vidores, fidalgos, nobres e os amigos mais chegados do príncipe regente, abarro-

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t ando os navios da real f rota . Na manhã de domingo, 29 de novembro , levantaram as âncoras. No m e s m o dia, os soldados de Napoleão en t ravam em Lisboa.

Para a gente por tuguesa sobra ram as úl t imas palavras de seu monarca , im-pressas na declaração que fez publicar quando já instalado no navio. Até m e s m o nessa hora o governo por tuguês tentou impedir o r o m p i m e n t o final com a França. Evitava-se o t e rmo "invasão"; ao contrário, o regente referia-se ao Exército f rancês como u m a t ropa estrangeira estacionada em terr i tór io po r tuguês e que deveria ser bem abrigada, "conservando sempre a boa h a r m o n i a que se deve prat icar com os exércitos das nações com as quais nos achamos un idos no cont inente" ." Aí estava o derradeiro ato desse teatro da neu t ra l idade . "

A FUGA PRECIPITADA: HOMENS AO MAR

"Lanto mar, tanto mar. Navegar, navegar." Luís de Camões

Naquela madrugada , dia 25 de novembro de 1807, quando d. João encerrou a sessão do Conse lho de Estado com a decisão tomada, havia ainda mui to o que fazer. A Família Real deveria embarcar para o Brasil dali a dois dias, antes que as

11. D. João — alegoria

do embarque para o Brasil.

"EXEGIT MONUMENTUM

AERE PERENIUS":

o momento lembrava

e pedia a perenidade.

Domingos Antonio

de Siqueira, 1817, FBN

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tropas de Napoleão, que já t inham cruzado as fronteiras lusitanas, alcançassem Lisboa. Era hora de executar o plano que já se conhecia de cor e traçar, rapidamen-te, o procedimento operacional para dar cabo da gigantesca tarefa: trasladar, da terra para o mar, tudo e todos que significassem sobrevivência e sustentação do governo monárquico, que seria instalado no Rio de Janeiro. Mas o tempo era curto, a viagem, longa e cheia de imprevistos: era a primeira vez que uma casa real cru-zava o Atlântico e tentava a sorte longe do continente europeu. Distante dos tem-pos dos primeiros descobridores, que atravessaram o oceano para encontrar rique-za e glória em terras americanas, agora era a própria dinastia de Bragança que fugia (na visão de alguns), evitava sua dissolução (na visão de outros), ou empreendia uma política audaciosa para escapar do t ra tamento humilhante que Napoleão vinha im-pondo às demais monarquias .

E o plano era mais complexo do que se podia imaginar: uma coisa é pensar; outra é executar —• e com pressa. Afinal, seguiriam viagem, com a Família Real, não apenas alguns poucos funcionár ios selecionados; já em relativa pront idão e expectativa, outras inúmeras famílias -— a dos conselheiros e ministros de Estado, da nobreza, da corte e dos servidores da casa real — deviam se apressar e emba-lar seus utensílios e riquezas pessoais. Não eram, porém, indivíduos isolados que fugiam às pressas, carregando seus objetos preciosos, suas vaidades e receios. Era, sim, a sede do Estado por tuguês que mudava de endereço, com seu aparelho administrativo e burocrático, seu tesouro, suas repartições, secretarias, t r ibunais,

12. Homenagem a d. João e seu vasto império. "Correi com a vista, o dlíplice hemisfério. Vede

onde nasce e se esvai o dia; encontrareis da vossa monarquia nas quatro partes do Império." FBN

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seus arquivos e funcionár ios . Com efeito, com a rainha e o príncipe regente seguia tudo o que representasse aquela monarquia : as personagens, os paramentos ne-cessários para os costumeiros rituais de corte e cerimoniais religiosos, as institui-ções, o erário... enfim, o arsenal necessário para sustentar a dinastia e dar conti-nuidade aos negócios do governo de Portugal. Como disse Joaquim José de Azevedo, fu tu ro visconde do Rio Seco, o que atravessaria os mares era aquela "amplidão que t inha exaurido sete séculos para se organizar em Lisboa",88 e todo esse aparato devia tomar o rumo do cais. Falta apenas desenhar menta lmente o quadro: em Belém, de um momen to a outro, acorreram milhares de pessoas, com bagagens e caixotes, além toda a burocracia do Estado e das riquezas que viaja-r iam com o rei.

Não havia tempo a perder, e imediatamente d. João deliberou que os minis-tros de Estado e empregados do paço viajassem com a Família Real; t ambém dei-xou claro que todos os súditos que quisessem acompanhá- lo estavam livres para tanto e, não havendo lugar nas embarcações, poder iam preparar navios particula-res — se houvesse tempo — e acompanhar a real esquadra ." E, apesar de ser meia-noite, Joaquim José de Azevedo foi chamado ao Palácio da Ajuda e nomeado supe-rintendente-geral do embarque. Além dele, foram convocados o marquês de Vagos, chefe da Câmara Real, e o conde do Redondo, responsável pela ucharia — setor equivalente à despensa, onde se abrigavam todos os pertences da casa real, tanto os alimentos como os utensílios domésticos. Cada um que tratasse de organizar os objetos de suas repartições para suprir necessidades da viagem. Já o almirante Manuel da Cunha Souto Maior, comandante-geral da esquadra portuguesa, ficou encarregado de apresentar mapas das disposições dos navios. Em seguida, o supe-rintendente tratou dos procedimentos para o traslado dos tesouros reais do Palácio das Necessidades e da Igreja Patriarcal.•• Foi depois para o cais de Belém, onde, munido dos mapas entregues pelo almirante, mandou armar uma barraca "para dali repartir as famílias pelas embarcações, segundo a escala de seus cômodos, assim como para enviar todos os volumes do Tesouro que chegavam, lida que con-t inuou até o momento de embarque de d. João".*1 A ordem era que n inguém em-barcasse sem ter em mãos uma "guia" fornecida por ele.*2

Quem também não perdeu tempo foi d. Antônio de Araújo e Azevedo. Na-quela madrugada mandou que fossem acordar seu funcionár io , Cristiano Müller, para que encaixotasse os papéis de Estado que estivessem sob seus cuidados, e nes-se lote incluiu sua livraria particular. Contando com dois ajudantes, o encarregado arregaçou as mangas e, na tarde seguinte, 3* grandes caixotes foram acomodados na nau Medusa. Ninguém melhor que Müller para esse serviço, já que ele havia sido contratado para arranjar e inventariar "uma mult idão de livros, mapas, estam-pas e outros papéis" que Araújo acumulara durante suas viagens pela Europa e sua permanência como ministro português em Haia, Paris e São Petersburgo." An-tônio de Araújo se lembrou de mandar acomodar nos porões um moderno equi-pamento t ipográfico recentemente comprado da Inglaterra que ainda estava na embalagem original.**

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13. Antônio de Araújo

Azevedo, primeiro conde

da Barca, 1754-1817:

personagem controversa.

Gregório Francisco

Queirós, FBN

Mas a pressa impedia que os procedimentos ocorressem de maneira organiza-da, e as autorizações, licenças, nomeações e ordens de embarque v inham de varia-das fontes. Bom exemplo é o caso do mestre de equitação do palácio real, Bernardo José Farto Pacheco, que, para poder embarcar, recebeu ordens do estribeiro-mor, do intendente das reais cavalariças, e ainda do conde de Belmonte. Detalhe: Ber-nardo não conseguiu viajar, pois, apesar do alvará de embarque, o comandante da fragata não o aceitou a bordo, pela falta da guia necessária.

Diz Bernardo José Farto Pacheco [... ] que foi nomeado para acompanhar S. A. R. o príncipe nosso senhor do Brasil [... ] que lhe destinou para o seu transporte na fraga-ta Urana, porém indo a bordo da dita fragata para embarcar não o quis o comandan-te d. José aceitar sem lhe levar guia do pagador Joaquim José de Azevedo e porque este nunca mais aparecia em terra para a dar foi forçoso ao suplicante ficar aqui.

Tentou até transportar-se à América sob os auspícios da esquadra inglesa, ape-sar de temer pelo Bloqueio, mas mesmo assim não teve sorte, sabendo que "nessa ocasião o não podia aceitar, fosse noutra mais oportuna".*5

A confusão era geral, a despeito de haver algum tempo o estado de alerta ser geral e a frota — ou parte dela — estar sendo armada desde fins de agosto. No co-meço de novembro, antes da partida da Família Real, um rico mercador de Lisboa escrevia ao sogro que ainda não conseguira passagem porque muitos queriam par-

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14. D. João e toda a Família Real embarcam no cais de Belém rumo ao Brasil: as imagens

não revelam o descontrole e a insegurança da ocasião. FBN

tir e eram poucos os navios, mas, desconfiado, parecia decidido a deixar a capital, pois "os preparat ivos nos navios c o n t i n u a m a toda pressa e t udo indica que se trate de embarque".9 '

Porém, n e n h u m expediente realizado prev iamente n e m as prontas providên-cias coordenadas por Joaquim José de Azevedo f o r a m suficientes para impedir que o caos se estabelecesse na hora do embarque . Para piorar, Lisboa vinha sendo casti-gada por um forte vento sul, chovia to r renc ia lmente e as ruas e caminhos se t rans-f o r m a r a m em passarelas de lama, d i f icu l tando as idas e vindas até o cais de Belém para o t r anspor t e e embarque da imensa e vo lumosa bagagem. E ainda: o t emor de que o mau t empo impedisse a par t ida antes da invasão das t ropas f rancesas t umul -tuava o já compl icado t râmi te .

Por mais que a esquadra estivesse a rmada e re la t ivamente pronta para a via-gem, havia mui to o que fazer. Não era tarefa simples reunir, distr ibuir e embarcar os ilustres viajantes , seus pertences e os mar inhe i ros e oficiais da Mar inha ; e, além disso, abastecer os porões dos navios com uma quan t idade suficiente de víveres e água potável. Segundo o registro de uma tes temunha , a r reg imentou-se

muita gente para dar a dezessete navios de guerra um bastante número de marujos e finalmente procurou-se pôr neles os mantimentos necessários, que contudo alguns navios não puderam haver como precisavam na confusão causada pela urgência do caso. Porquanto pois não fosse a esquadra ainda pronta de tudo não obstante na sexta-feira, 27 de novembro, embarcaram-se todas as reais personagens.97

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A situação era bas icamente essa, como most ra a relação feita pelos c o m a n d a n -tes de alguns dos navios da f ro ta , na véspera da par t ida , para as derradeiras provi-dências:

Rainha de Portugal — precisa de 27 tonéis de água, pois os tem vazios. Fragata Minerva — tem só 60 tonéis de água Conde d. Henrique — tem 21 tonéis de água vazios; precisa de botica, que não tem. Golfinho — tem 6 tonéis vazios, faltam boticas, galinhas e lenha. Urânia — falta lenha. Vingança — falta água e lenha.

Príncipe Real — precisa de uma botica, galinhas, cabo, cera, 20 tonéis de água, marlim e linha de barca e lenha. Voador — faltam 3 tonéis de água.

Príncipe do Brasil — falta azeite, cera, cabo, 30 tonéis de água e lenha e linha da barca.98

Os casos e incidentes se mul t ip l icavam. Foi duran te esses dias de corre-corre, antes do embarque da Família Real, que o núnc io apostólico de Lisboa, d. Louren-ço de Caleppi, compareceu ao Palácio da Ajuda , em visita de solidariedade. Fre-qüen tador da corte, foi convidado por d. João a acompanhá - lo na viagem. Apesar de seus 67 anos, o núnc io Caleppi aceitou a propos ta e, c o n f o r m e as instruções recebidas, foi imed ia tamente p rocura r o minis t ro da Mar inha , visconde de Anadia, que lhe des t inou a nau Martim de Freitas, ou a Medusa, onde, j u n t o com seu secre-tário, Camilo Luis Rossi, teria lugar garant ido. E no dia marcado lá estavam, no cais do por to de Belém, o núnc io e seu auxiliar. Mas a con fusão era t a m a n h a que de nada serviram o convite pessoal do pr ínc ipe regente e a garantia do ministro, pois o núncio não conseguiu lugar em n e n h u m a das naus que lhe hav iam sido reserva-das, por estarem comple tamente abarrotadas . Tentou em vão embarcar em outra, e mais outra , das tantas que por ali se mov imen tavam. O f renes i no cais do por to parecia uma epidemia e "nas vésperas e dia da par t ida o Tejo viu-se cheio de peque-nos batéis de todas as fo rmas e dimensões, conduz indo trastes, al imentos, passa-geiros e parentes ou amigos destes que iam a b o r d o fazer as úl t imas despedidas".99

O tenente ir landês T h o m a s 0 'Nei l l , que estava em um dos navios da esqua-dra inglesa, consul tou a descrição que lhe fora feita por um oficial a serviço de d. João. Ainda que ev identemente exagerado, o relato não deixa de passar u m a idéia do ambiente naqueles dias, quando o "pânico e o desespero t o m a r a m conta da po-pulação e mui tos homens , mulheres e crianças t en t a r am embarcar nas galeotas até algum navio". Foi o irlandês quem registrou que "muitas senhoras de dist inção me-teram-se na água, na esperança de alcançar a lgum bote, pagando algumas com a própr ia vida".100

No meio disso tudo, o núnc io Caleppi desistiu de embarcar quando viu os soldados do reg imento da infantar ia vol tando a terra, obr igados a abandonar a es-quadra por falta de acomodações . E lá f icaram, o núnc io e seu secretário, literal-mente a ver navios. Restava, no entanto, u m a esperança, já que dezenas de barcos mercantes levantavam os ferros, atrás do dest ino do pr íncipe regente e sua corte.

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Mas Caleppi não deu mesmo sorte. Quando f inalmente conseguiu um lugarzinho para a travessia, já era tarde. O general francês Junot, cercando Lisboa, ordenava que os fortes impedissem a saída de qualquer navio barra afora — dando um basta à debandada geral.101

O tempo chuvoso e o lamaçal em nada ajudavam, e pelas ruas da cidade e cer-canias do porto reinava o caos. Muita gente que não conseguira embarcar e os que foram até o cais para assistir a tudo de perto zanzavam aqui e ali, sem direção. Agravando ainda mais a situação, famílias de camponeses, assustadas com as notí-cias de que os franceses estariam se aproximando, haviam abandonado tudo —

o trigo nos celeiros, o milho um nas eiras, outro nas terras, a fruta nas árvores, a uva nas vinhas, os gados dispersos [...] e cheias de aflição se refugiaram na capital, onde se acham receando não terem com que subsistir. Mas neste caso o remédio é recorrer aos amigos; estes são os santos, e mais que todos o Santo dos Santos, Jesus Cristo. [...]""

Nas praias e cais do Tejo, até Belém, espalhavam-se pacotes, caixas e baús aban-donados na última hora. No meio da bagunça e por descuido, toda a prataria da Igreja Patriarcal, trazida por catorze carros, foi esquecida na beira do rio e só al-guns dias depois voltou para a igreja. Carros de luxo fo r am abandonados , mui-tos sem terem sido descarregados. Houve até quem largasse a mala, embarcando de mãos vazias, apenas com a roupa do corpo.103 O marquês de Vagos percebeu um pouco tarde que as carruagens e os arreios da casa real haviam sido deixados para trás e, ali mesmo do convés do navio onde se acomodara e que já partia, teve tempo de expedir um aviso "em linguagem rude" para que fretassem um "iate" para trans-portar todo aquele equipamento para o Brasil.10* O tom geral era de nervosismo e destempero.

A desgraça, a desordem e o espanto existiam por toda a parte em Lisboa, quer em terra quer no mar [...]. Copiosas e tristes, algumas lágrimas derramaram-se por esta oca-sião, uns choravam a separação de pais, maridos, filhos e mais pessoas queridas, outros a criticar posição da pátria invadida por exército inimigo e ao recordarem-se dos males que iriam sofrer ficando sem protetores e no meio dos terríveis franceses.105

De fato, a reação dos lisboetas oscilava do espanto à revolta, e algumas das "per-sonagens de primeira linha" que acompanharam o príncipe regente, ao se dirigi-rem às embarcações com suas respectivas famílias e comitivas, ouviram "palavras desagradáveis e injuriosas, posto não sofressem ofensas físicas". Antônio de Araújo e Azevedo foi um dos que teriam embarcado durante a noite, na surdina, temendo ser agredido pelo povo.10 '

Joaquim José de Azevedo, que, como vimos, armara uma barraca no cais para organizar o embarque, assim interpretou o sentimento do povo:

Vagando pelas praças e ruas, sem acreditar no que via, desafogava em lágrimas e imprecações a opressão dolorosa que lhe abafava na arca do-peito, o coração inchado

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de suspiros: tudo para ele era horror; tudo mágoa; tudo saudade; e aquele nobre cará-ter de sofrimento, em que tanto tem realçado acima de outros povos, quase degenera-va em desesperação!

Nas suas idas e vindas até o cais, Joaquim José chegou a ser envolvido "em uma nuvem dos verdadeiros filhos, que lhe pediam contas de seu Chefe, do seu Príncipe, do seu Pai", e acrescentou que "tudo era perdido para um povo que no seu excesso de dor o caracterizava de ins t rumento de seu martírio, sem se abster de o senten-ciar de traidor!".1"7

As descrições sobre o embarque de d. João são, em geral, pungentes e por vezes contraditórias. Numa das versões ele teria chegado ao cais vestido de mulher; em outra teria part ido durante a noite a fim de evitar maior reação popular. Numa ter-ceira, teria entrado no porto acompanhado apenas por seu sobrinho, e n inguém o aguardava. Dois cabos de polícia que estavam ali por acaso, a judados por gente do povo e debaixo de forte chuva, colocaram algumas tábuas sobre a lama para que pudessem caminhar até o coche e de lá tirar d. João, que, carregado por esses des-conhecidos, foi acomodado na galeota que o conduziria ao navio Príncipe Real, atracado na barra do Tejo.108 Há relatos, ainda, que insistem na insensatez do em-barque, ridicularizando a atitude da família com a única frase lúcida emitida pela rainha, àquela altura totalmente demente: "Não corram tanto ou pensarão que estamos fugindo".109 Não vamos nos estender nas narrativas desse momento , tão carregadas de qualificativos dramáticos ou imaginativos. No entanto, em tempos de absolutismo, a representação parecia anunciar o fim de uma era: foi com muita discrição e sem nenhuma pompa que o príncipe regente deixou Portugal e embar-cou rumo ao Brasil.

Contudo, como se costuma dizer, rei que é rei nunca perde a majestade, e ou-tras formas de homenagens seriam prestadas ao príncipe regente e à rainha, espe-cialmente em odes e poesia. A torcida, em versos, para que a travessia do Atlântico se desse sem problemas era uma boa maneira de registrar a reverência e a preocupa-ção pela continuidade daquela dinastia.

De negro luto as Tágides se cobrem,

A ausência carpem tristes

Dessa árvore Real, que tu, Netuno,

Cedendo o grão Tridente

A Maria e João, para que domem,

Por ti, do insofrido Oceano as iras."0

Porém, nem todos versejavam pelo regente. Para uns, ele era herói, para ou-tros, desertor. A própria historiografia que trata do assunto t ambém oscila. Por um lado, o príncipe era considerado sábio, prudente, um bom diplomata; por outro, indeciso, pusilânime, ocioso e pouco digno.111 Realmente, a personalidade e as ati-tudes de d. João provocaram opiniões conflitantes. Mas, nesta conjuntura , qual-

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quer opção assenta num juízo de valor, e o que importa do ato são seus desdobra-mentos.112 Voltemos, portanto, ao cais do Tejo.

Concluídos os trâmites para a partida e com todos a bordo, só faltava o tem-po ficar bom para que se desse ordem de zarpar. O dia 29 amanheceu claro e a esquadra saiu do Tejo, alcançando o mar. Nas portas do oceano, os navios ingleses estavam de pront idão e o encontro das frotas foi anunciado por uma salva de 21 tiros, de ambas as partes, como a selar o pacto pacientemente aguardado pela Grã-Bretanha. O almirante inglês Sidney Smith, por sua vez, destacou as quatro naus que acompanhar iam a esquadra portuguesa até o Rio de Janeiro.113 Em seguida foi a bordo do Príncipe Real cumprimentar o regente e recebeu, do vice-almirante por-tuguês, a lista das quinze embarcações que compunham a real esquadra: oito naus de linha, quatro fragatas, dois brigues e uma escuna.11* Essa projeção varia nos re-gistros das testemunhas e t ambém em estudos posteriores, mas a diminuta diferen-ça não altera a visão de conjunto.115 Além da frota real, havia um número expres-sivo de navios mercantes particulares que saíram em seu rastro — seriam cerca de trinta. Mas podem ter sido muitos mais: a embarcação inglesa Hibernia avistou 5' navios, ao anoitecer do pr imeiro dia de viagem; o próprio Smith nem fez as con-tas, o que ele via era "uma multidão de grandes navios mercantes armados".11 ' De toda forma, a esquadra real compunha uma respeitável unidade de combate: os oito navios de guerra eram equipados com baterias de canhões que variavam entre 6* e 8* peças, a maioria com calibre 7* As fragatas estavam armadas, cada uma, com 32 ou ** canhões, os brigues t inham 22 peças cada um, e a charrua, que trans-portava mant imentos , 2 ' canhões.117

A Família Real — d. Maria, o príncipe regente e sua mulher, seus oito filhos, a irmã da rainha, a viúva do irmão mais velho de d. João e um sobrinho espanhol de Carlota Joaquina, criado na corte portuguesa — foi distribuída pelos navios de maior calibre. No Príncipe Real estavam a rainha dona Maria, "a louca", com 73 anos; o príncipe regente d. João, com seus quarenta anos; o príncipe da Beira, in-fante d. Pedro, com nove anos; seu irmão, o infante d. Miguel, com cinco; e o so-br inho d. Pedro Carlos. No Afonso de Albuquerque iam a princesa, mulher do re-gente, dona Carlota Joaquina, com 32 anos, e suas filhas, a princesa da Beira Maria Teresa, de catorze anos, e as infantas Maria Isabel, Maria d'Assunção e Ana de Jesus Maria — com dez, dois e um ano, respectivamente. No Rainha de Portugal viaja-vam a viúva do irmão mais velho do regente, dona Maria Benedita, com 61 anos; a irmã da rainha, dona Maria Ana, 71; e as outras filhas de d. João e Carlota Joa-quina, as infantas Maria Francisca de Assis e Isabel Maria — sete e seis anos. Mem-bros da nobreza e do Estado acompanharam a família, e funcionários, criados, amigos e parentes espalharam-se pelas demais embarcações.

O secretário do bispo Caleppi, que a tudo assistiu de perto, avaliou que 10 mil pessoas embarcaram na esquadra real. Já Pereira da Silva118 incluiu em seus cálcu-los os muitos negociantes e proprietários que haviam fretado navios para seguir a esquadra e não demonst rou dúvidas: "Cerca de quinze mil pessoas de todos os sexos e idades abandonaram neste dia as terras de Portugal".

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Uma minuciosa listagem relaciona, nominalmente , cerca de 536 passageiros — nobres, ministros de Estado, conselheiros e oficiais maiores e menores, médicos, padres, desembargadores. Esse número seria ainda maior, pois ao lado do nome dos passageiros muitas vezes vinham termos imprecisos, como: "visconde de Bar-bacena com sua família"; "o conde de Belmonte, sua mulher e o conde seu filho com criados e criadas"; "José Egídio Alves de Almeida com sua mulher e família"; "e mais sessenta pessoas, entre homens e mulheres, sem contar as famílias que os acompanhavam"; ou mesmo o indefinido "e outros".11* Com efeito, a quase-totali-dade das pessoas seguia acompanhada da família, de parentes, amigos próximos, criados — enfim, cada um trazia quem podia. Para ter uma idéia, com o duque de Cadaval embarcaram a esposa francesa, quatro filhos, um irmão, uma turma de onze criados, incluindo um "homem pardo criado para varrer" e algumas famílias agre-gadas da casa. Ou seja, somente acompanhando o duque, uma boa leva de gente deve ter ocupado várias das disputadas cabines dos navios da frota real. Até que Cadaval era modesto, pois só de criados o marquês de Belas carregou 2*. Esse do-cumento t ambém listou os oficiais da casa real, que não eram poucos. A ucharia empregava 23 "moços", cada um deles acompanhado de sua família, e o mesmo se deu com os catorze moços da cozinha real. Na lista do cronista Melo Moraes, en-t raram apenas "fidalgos e pessoas de distinção", que seriam 3Ç — sem falar nos acompanhantes de cada um.120 Outro documento, redigido no calor da hora, pre-tendia registrar quem embarcou, mas, depois de relacionar alguns dos mais conhe-cidos nomes da nobreza, a escrita foi encerrada bruscamente com uma informação taxativa: "E mais 5 mil pessoas".121

Até agora mencionamos os "convidados" do príncipe regente. Mas se incluir-mos os oficiais, marinheiros e pessoal de bordo, a conversa vai longe. Ainda, se le-varmos em conta a população dos navios mercantes, que seguiram na cauda da esquadra, a figura será bem outra. O historiador Kenneth Light, que estudou a his-tória naval desse período, estimou que naquele 2Ç de novembro poder iam ter em-barcado de 12 a 15 mil pessoas. Baseado em consultas nos livros de bordo dos na-vios ingleses que acompanharam a esquadra portuguesa, afirma que o navio Príncipe Real levava 1054 pessoas a bordo. Light relata t ambém que, em cada embarcação, apenas a tarefa de levantar o ferro, amarrá-lo na proa e guardar seu cabo ocuparia 385 homens.122

De fato, o número de marinheiros e oficiais era elevado. Uma série de manus-critos existentes na Biblioteca Nacional revela que, ao atingir o litoral brasileiro, em janeiro de 1808, alguns dos capitães elaboraram uma listagem in fo rmando ao con-de dos Arcos, vice-rei do Brasil, a situação de suas guarnições. O comandante do Martins de Freitas, além de fazer um mapa minucioso da tripulação, relatou que t ambém estavam a bordo as famílias pertencentes aos oficiais da guarnição e parte da família do duque de Cadaval. Cada navio carregava uma pequena multidão, a maior parte composta pela própria tripulação e seus acompanhantes . Mesmo nesse ponto existem polêmicas com relação ao contingente populacional desembarcado na colônia. O arquiteto Nireu Oliveira Cavalcanti, na empreitada de tentar quanti-

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ficar os viajantes que acompanharam o príncipe regente em seu traslado, ponde-rou que a elevada tripulação que trabalhava nas embarcações — em um total de 7262 pessoas —, após a conclusão da viagem, permaneceria alojada nas próprias naus.12 ' Mas há casos de oficiais e maru jos que deixaram suas funções ao chegar ao Brasil. Em 17 de fevereiro de 1808, José Caetano Lima escrevia ao vice-rei do Brasil, conde dos Arcos, t ratando dos acertos do desembarque "de diferentes classes de oficiais de diversos ofícios" da nau Martins de Freitas, já que "em terra podem ser úteis e a bordo de nada servem". Outros, "oficiais e artistas [...] que embarcaram voluntar iamente na mesma nau a fim de seguirem o Seu Príncipe e como a bordo não se ocupam pelas suas artes rogam [... ] os mande desembarcar pois todos dese-jam servir a S. A. R. empregados em seus arsenais".124

A acreditar-se que parte significativa dos oficiais e de suas famílias teria pe rmanec ido na colônia — temerosos com o sucesso da invasão ou porque a monarquia agora lá se encontrava —, não surpreenderia se o número de emigra-dos chegasse a mais de 10 mil. A cifra, porém, cont inua e cont inuará controver-sa, sendo mais recorrentes as estimativas que giram em torno de 10 a 15 mil via-jantes.125

De toda maneira, o número de embarcados era volumoso e, com certeza, superior às primeiras estimativas e provisões. O mapa da fragata Minerva, por exemplo, feito pelo capitão Rodrigo José Ferreira Lobo, dá o total de 741 tripulan-tes, agrupados em graduações semelhantes às do Martins de Freitas. A Minerva, que não havia sido preparada com antecedência, apresentou problemas na hora do embarque. Conta o capitão que, até o dia 26 de novembro, essa fragata esteve "de banda por não ser possível aprontar-se", mas, no dia 27, recebeu ordens do prínci-pe regente para t ransportar o duque de Cadaval e sua família. Apesar de só ter a bordo "algum biscoito e aguada" e das "tristes circunstâncias em que se achava o Real Arsenal da Marinha, pela confusão e falta de expediente em as diferentes re-partições", Ferreira Lobo não perdeu tempo para atender ao príncipe e partiu no dia 29. Mas a precária situação fez com que o duque e parte de sua família passas-sem para o Martins de Freitas, restando na fragata a outra parte "e quase todo o trem". Ainda assim, teve "a satisfação de fazer a vela no dia referido, mais pelos desejos já contemplados do que por entender que estava capaz de seguir a viagem". Porém, "pela necessidade em que se achava a nau", logo no dia 5 de dezembro o capitão recebeu ordem do vice-almirante para separar-se da frota e dirigir-se à Bahia ou onde melhor lhe parecesse. Apesar de ter atracado na ilha de Santiago, em 22 de dezembro, para prover-se de mant imentos e de água, Ferreira Lobo concluiu seu relato dizendo que, se não fosse a ração estabelecida desde o primeiro dia de viagem (para os 355 tripulantes), talvez tivessem passado maior incômodo. Quan-do atracou na Bahia, em 10 de janeiro de 1808, a Minerva estava a zero, e só zar-pou para o Rio de Janeiro, no dia 18, depois de se abastecer com "vinte dias de mant imentos e algumas coisas mais necessárias".12'1 Também a nau Medusa fun-deou no litoral do Nordeste em meados de janeiro, bastante avariada, anteceden-do a chegada da Família Real.

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A viagem não seria fácil, ainda que não se tenha notícia de acidentes graves ou algum óbito. Famílias desmembradas e alojadas em diferentes navios, bagagens desviadas ou largadas no cais, racionamento de comida e água, excesso de passa-geiros e falta de higiene, foram alguns dos problemas decorrentes da emergência do embarque que tiveram de ser contornados. E, pela frente, cerca de dois meses de viagem. Para complicar, uma tormenta armou logo no início da jo rnada e outra, em meados de dezembro, pela altura da ilha da Madeira, provocando a dispersão de alguns navios e a mudança de planos. Apesar de parte da frota já ter tomado a direção do Rio de Janeiro, o Príncipe Real e as embarcações que o acompanhavam alteraram o rumo na direção da Bahia.'27

Salvo esses momentos mais perigosos, a viagem correu tranqüila no que diz respeito aos humores da natureza e à estrutura das embarcações, que, não obs-tante as avarias, alcançaram seu objetivo com êxito. O cronista Luiz Edmundo des-creve os t ranstornos que se deram pelo excesso de passageiros, "muitos sem cama onde dormir, cadeira, banco para sentar, deitando-se ao relento, sobre as tábuas nuas dos conveses, sem prato certo onde comer, disputando em sórdidas gamelas, nas cozinhas, o alimento frugal". Já a tripulação era diminuta para tantos e extraor-dinários afazeres — a limpeza a bordo deixava a desejar; água era só para beber, e "até as naus que conduziam o regente, a rainha e os príncipes eram pocilgas infec-tas e aviltantes". E ainda, pela falta de asseio, as senhoras tiveram que raspar a cabe-ça para se livrar dos piolhos. Assim, a viagem arrastava-se monótona , interminá-vel. Além da distração de acompanhar a evolução dos veleiros da frota, cantavam ao som da viola ao poente e, nas noites de luar, jogavam cartas: o faraó, o espeni-fre, o pacau e o chincalhão.128

Mas, enquanto toda a corte e o resto da tripulação se amuavam na jornada pelo mar, livres dos perigos da guerra e navegando em direção ao seu incerto des-tino na América, os que f icaram em Portugal tiveram que enfrentar outro destino: aquele que vinha de encontro a eles.

EM PORTUGAL: A INVASÃO

Em 17 de novembro, quando as tropas francesas, alcançaram a fronteira lusi-tana e estacionaram em Alcântara, o general Junot emitiu sua primeira proclama-ção. Justificava a ocupação como um apoio ao príncipe regente, já que este havia declarado guerra à Inglaterra. Nesse jogo de meias verdades, vinha salvar o reino do inimigo mútuo e procurava, ainda, sossegar os habitantes de Portugal. Em tom aparentemente amistoso, o general não poupava ameaças:

Não tenhais receio, pacíficos habitantes. O meu poderoso exército tem tanta discipli-na como valor. Eu pela minha honra respondo pelo seu bom comportamento: é pre-ciso que eles achem por todos os lugares de seu trânsito a boa recepção que se deve aos soldados de Napoleão, o grande, esperando achar os mantimentos de que o exército precisa. Eis o que vos posso prometer e a minha palavra será cumprida.

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Mas os portugueses que se preparassem:

Quem se encontrar armado, não sendo soldado das tropas de linha será preso [...]; quem for convencido de ser chefe de ajuntamento ou conjuração e que se tenha por objeto armar os cidadãos contra o exército francês será arcabuzado; [...] a cidade ou vila que disparar um tiro de espingarda contra a tropa francesa será queimada; [... ] toda cidade ou vila onde for morto um indivíduo que pertence ao exército francês terá que por isso pagar uma contribuição que nunca será menor do que o triplo do seu rendimento anual e quatro de seus principais habitantes serão tomados como reféns do pagamento.

Por fim, Junot anunciava como gostaria de ser recebido em Lisboa:

Eu penso porém que os portugueses [... ] ajudando as intenções pacíficas do seu prín-cipe nos receberão como amigos, e como aquele que os preservará de ser vítima dos tiranos inimigos do continente.12*

No entanto, a meia farsa era, até então, também partilhada por d. João. Quando às vésperas da fuga, no dia 26 de novembro, o príncipe dos portugueses — já cien-te da proclamação de Junot — baixou decreto nomeando a junta que regeria Por-tugal enquanto estivesse ausente, fez questão de instruir os novos governantes para que recebessem as tropas francesas como se fossem hóspedes a quem se pretendia agradar com respeito e gentilezas.110 Assim, no momento da partida, como um bom anfitrião que se fazia ausente, d. João reafirmava a respectiva união e parecia não se esquecer de dar as boas-vindas justamente àqueles de quem escapava.

Como vimos, mal a esquadra real sumia no horizonte, no dia 2*, já se podiam avistar as primeiras filas de soldados nos contornos de Lisboa, e uma nova procla-mação do general francês foi afixada nos lugares próprios da cidade, prevenindo os habitantes da entrada de seu exército e garantindo proteção: "Habitantes de Lisboa, estejam tranqüilos em suas casas; não temam nem a minha armada, nem a mim; nós só temos a temer pelos seus inimigos e pelos malvados. O grande Napoleão, meu senhor, envia-me para os proteger; eu os protegerei".1 '1 Menos mal se a ocu-pação ocorresse sem maiores t raumas e dentro de um aparente acordo de cavalhei-ros. Pena que tudo tivesse saído um pouco diferente.

Na manhã do dia 30 deu-se a entrada tr iunfal . Junot, com seu séquito de ofi-ciais, desfilava pelo Rossio, seguido pelos soldados franceses — 6 ou 7 mil, pouco mais da metade do contingente original. É que muitos t inham morr ido de fome ou devido a uma epidemia de febre e disenteria que havia acometido o exército du-rante a campanha militar até Portugal, e outros haviam sido mortos ou feridos por camponeses. Junto vinham um piquete da tropa portuguesa, alguns oficiais e dois criados com farda da casa real: eram as derradeiras instruções de d. João que es-tavam sendo cumpridas , com os franceses recebendo as devidas homenagens.1 3 2

O estado da tropa era lastimável. Vinham descalços, rotos, estropiados, exaustos e famintos . "Pareciam mais soldados debandados de um corpo destroçado que pro-

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curavam refúgio."133 Maldições públicas soavam aqui e ali, proferidas por um povo "que mostrava mais aborrecimento do que medo". Como para corroborar a atitu-de, não podiam faltar os versinhos jocosos:

Carregados de cabras e de latas

De longas ferrugentas escopetas,

Embrulhados nas sórdidas roupetas,

Aqui os vi entrar quase de gatas}M

Toda essa gente — e mais linhas da tropa castelhana que chegaram nos dias que se seguiram — se espalhou pela cidade,

aquartelando-se nos conventos de São Francisco, de São Domingos, dos Paulistas, de Jesus, dos Camilos, dos Gracianos, de São Vicente e em todos aqueles em que acharam alguma capacidade, não escapando até as igrejas ou capelas cujos santos e altares se viram servir de cabide às armas e mochilas dos soldados.135

O arbítrio e a impunidade, que fazem parte do roteiro de qualquer invasão, levaram boa parte da tropa a se alojar no Palácio de Mafra . Para contornar a situa-ção, os ministros portugueses se empenharam na busca de moradias, "chegando a cometer extorsões e violências para aprontar milhares de camas", enquanto os f ran-ceses "não cessavam de praticar opressões e desentender as famílias dos patrões que os hospedavam, exigindo largos banquetes e serviços dispendiosos".13 ' Junot, por seu turno, fez seu quartel-general na casa do barão de Quintela e avançou nos bens da casa real e da nobreza que havia part ido para o Brasil, t omando toda a frota de carruagens reais, bestas e cavalos dos palácios, assim como propriedades e bens imóveis dos evadidos.

Na seqüência, o agente de Napoleão iniciou um período de crescente contro-le e domínio, sendo os decretos despejados já mesmo em dezembro. Que n inguém recusasse as moedas francesas e inglesas usadas pelo exército de Napoleão; não se podiam mais carregar armas, nem mesmo os caçadores; as atividades de pesca seriam controladas a f im de evitar fugas ou a comunicação com uma esquadra inglesa estacionada fora da barra. Além do mais, os súditos britânicos que restavam em Lisboa acabaram presos, e o diplomata francês Herman passou a integrar a j un ta de governo. Ficaram proibidos os a jun t amen tos nas praças e cafés, e tudo o que pudesse causar alvoroço, até música e os sinos da ave-maria. Tiros de canhão anunciavam a hora de sair das casas pela manhã e de se recolher à noite. O Natal de 1807 foi triste em Lisboa: ninguém cantou as matinas e as igrejas permanece-ram fechadas.13 ' Como bem disse um contemporâneo: "Estou assombrado, meu amigo, com a política e o governo dos nossos ilustres protetores"1'8 Mas o pior esta-va por vir.

Em l2 de fevereiro, enquanto do outro lado do oceano d. João era homenagea-do pelo governo da Bahia, em Portugal um pr imoroso ritual anunciava novos tem-pos. Logo cedo, as tropas francesas atravessaram a Praça do Rossio e seguiram para

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a casa de Junot, que se juntou a elas, precedido por parte da cavalaria da guarda da polícia e, ainda, acompanhado a cavalo por todos os generais. Dirigiram-se todos ao Palácio da Inquisição, onde a regência nomeada por d. João se reunia: por sinal, essa seria sua última sessão, uma vez que Junot lhes comunicou que Napoleão ha-via decretado o fim de suas funções. O imperador francês, que recebera a informa-ção da fuga de d. João, enraivecido, havia mudado as regras da partida, e era Junot que mais uma vez falava em seu nome: "O príncipe do Brasil abandonando Por-tugal renunciou a todos os seus direitos à soberania deste reino. A Casa de Bra-gança acabou de reinar em Portugal [...]". Os termos eram cada vez mais rígidos e, daí em diante, Portugal seria governado por Junot, em nome de Napoleão. Um novo conselho de governo foi composto, nomearam-se chefes para os departamen-tos do governo e administradores foram enviados às províncias.139 Concretizava-se a chamada "mutação do governo": o regimento militar português foi incorporado ao exército imperial francês, apesar de a presença de portugueses ser significativa na área civil.140 Discursos contra os franceses e outras reações vindas do povo ocor-reram desde o início da ocupação, mas as medidas tomadas para intimidá-los e a ausência de lideranças e de organização impediram que se formasse qualquer mo-vimento significativo de oposição.111

Até houve reação, no dia 13 de dezembro de 1807,142 quando a bandeira fran-cesa foi hasteada no castelo e nos fortes, sem a costumeira companhia da flâmula portuguesa. No entanto, se o descontentamento era evidente, a hora de uma rea-ção efetiva ainda não tinha chegado.143 Desolados mesmo ficaram aqueles criados e dependentes diretos da Família Real que não acompanharam o seu príncipe. A confusão que se estabeleceu assim que se viram sem o governo do soberano che-gou, em certos casos, a ser perigosa, como no exemplo dos frades do convento de Mafra. Acontece que d. João, antes de partir, havia limitado o número de religiosos que haviam de ali permanecer — os outros deveriam distribuir-se pelos demais conventos da ordem. E, na disputa por Mafra, os frades chegaram a esfaquear-se.'44

Os criados que permaneceram nos palácios passaram por apuros diferentes: ficaram sem remuneração e sem a alimentação a que tinham direito. O porteiro do Paço de Queluz, em 7 de dezembro de 1807, pedia providências ao marquês de Abrantes — que fazia parte da junta de governo. Ali, 41 criados das mais diversas categorias e funções iriam em breve ficar sem a "ração", já que na ucharia só haviam restado "30 arrobas de toucinho, 120 arrobas de bacalhau, 50 arrobas de alho, 48 cântaros de azeite, 25 almudas de vinagre, 8 arrobas de açúcar, 8 barris de manteiga de vaca e 3 barris de banha de porco". No dia 30 daquele mês, o mesmo porteiro — que sempre "teve mesa de oficial destacado" — tornou a escrever ao marquês pedindo instruções sobre o que fazer, já que tudo o que havia na ucharia tinha acabado.145 Por certo, não foi de um dia para o outro que esses e os demais vassalos da dinastia de Bragança perceberam que nada mais seria como antes.

Alguns, porém, preferiram deixar Portugal, mesmo correndo riscos. Uma das maneiras era burlar a vigilância e o controle impostos às embarcações, aos portos e aos fortes e escapar para bordo da esquadra inglesa que permanecia fora da barra.

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Em maio de 1808, o diplomata Domingos de Sousa Coutinho, que continua-va em Londres, escrevia a d. João sobre o grande número de refugiados portugue-ses que se encontravam na Inglaterra, querendo embarcar para o Brasil: "Tem vindo toda a qualidade de gente em número tal que eu não sei como lhe acudir, porque a maior parte vem faltos de tudo, quase nus". A d. Domingos caberia pedir ao governo inglês um adiantamento em dinheiro para vestir e transportar esses "súditos fiéis" ao Brasil — debitando-o depois da conta de d. João. Os mais ricos deixavam Portugal de outro jeito e não davam despesas ao governo: pagavam ao próprio Junot um alto preço por seus passaportes e saíam em navios que partiam de Lisboa.146

Enquanto isso, a esquadra real havia deixado toda a agitação do continente europeu para trás. Depois de 54 dias no mar, em 22 de janeiro de 1808, o Príncipe Real atracou em Salvador — onde se quedaria por um mês, seguindo depois para o Rio de Janeiro.147 Atrás dele, e aos poucos, foram chegando os outros navios. Já em 13 de janeiro, a Medusa, que havia sido destacada para ir à frente, fundeou em Recife, bastante avariada. Por isso, ainda em alto-mar, d. João recebeu um belo presente do já prevenido governador de Pernambuco: o brigue Três Corações foi ao seu encontro carregado de mantimentos e frutas, muitas frutas tropicais. Entre cajus e pitangas, a colônia americana abria as portas para receber o seu príncipe português.

15. Alegoria da vinda de d. João: deuses saúdam a brava atitude do regente. Desenho aquarelado, de I. A. Marques, FBN

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CAPITULO

ENFIM NOS TRÓPICOS: A CHEGADA, A FESTA, A INSTALAÇÃO

1. Salvador da Bahia: enfim, na colônia americana. Pierre A. Vander, FBN

Eram duas para as três horas da tarde, a qual estava muito fresca, bela, e aprazível neste para sempre memorável dia 7 de março, que desde a aurora o sol nos havia anunciado como o mais ditoso para o Brasil: uma só nuvem não ofuscava os seus resplendores, e cujos ardores eram mitigados pela frescura de uma forte e constante vira-ção; parecia que este astro brilhante, apartando a si todo o obstá-culo; como se regozijava de presenciar a triunfante entrada do pri-meiro soberano da Europa na mais afortunada cidade do Novo Mundo [...]

Padre Perereca

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NA BAHIA: UM NOVO MUNDO

Em 22 de janeiro de 1808, uma sexta-feira, d. João chegou finalmente ao seu refúgio d'além-mar. Atracou numa das primeiras cidades que os portugueses fun-daram no Novo Mundo, e que fora, até 1763, a sede do governo da América lusi-tana e a maior do Vice-Reino: Salvador, na baía de Todos os Santos.

E a vista era de fato deslumbrante. É claro que, depois de tantos dias no mar, qualquer paisagem tornava-se especial, mas aquela era, mesmo, digna de pintura. Observada do mar, uma cidade magnífica estava disposta ao longo da cumeeira e na declividade de uma alta e íngreme montanha. Vilhena, que esteve em Salvador em 1802, assim descreveu o local:

[... ] Pouco menos de meia légua para dentro da Barra e ao pé da montanha que acom-panha a marinha, fica a cidade do Salvador, [... ] e a esta povoação que por toda a sua extensão deita diversos becos que vão morrer na marinha e chamam a praia ou cida-de baixa. Por diferentes calçadas que sobem pela colina procurando a campanha para a parte do nascente se comunica esta com a cidade alta. Na sua maior largura, poderá ter a cidade 400 para 500 braças; os seus grandes edifícios e casas nobres são de ordi-nário pelo gosto e risco antigos em que se notam algumas irregularidades à exceção de poucos mais modernos. Há nela poucos edifícios nobres, grandes conventos e templos ricos e asseados.1

Na cidade "do Salvador", como era então chamada, uma vegetação riquíssima se destacava, entremeada por algumas construções e igrejas que salpicavam aqui e ali. O solo vermelho combinava com o telhado das casas, bem como com o pito-resco dos fortes e o movimento incessante dos embarques. Os morros arredonda-dos e o próprio formato da baía, com suas ilhas e promontórios, tudo completava um panorama tão encantador que até doía ver. Para completar, uma brisa fresca marítima, não obstante o clima tropical, convidava o visitante a se deixar lá ficar.2

Mais uma vez Vilhena:

[...] Esquecia-me dizer-te, que o clima desta cidade e seus contornos são benévolos; os ares são puros; os astros claros; as fontes que fecundam o país bastante cristalinas [...]; os prados são amenos e as árvores muito frondosas em todas as estações do ano por serem estas temperadas; e em algumas observações que se têm feito se achou que pelo verão nunca o calor excedeu de 80°, com diferença de alguns minutos; nem o frio pelo in-verno passou de 60° até 56° [... ]

Tal qual a tripulação, ficamos perdidos observando a paisagem e deixamos de lado a recepção que a corte bem merecia. E — é preciso conceder — o evento não teve a pompa que se poderia imaginar, apesar do inusitado da situação: afinal, era a primeira vez que uma família real européia pisava em solo americano. Mas havia também outro motivo para a fraca acolhida. Parte da Real Esquadra portuguesa chegara de surpresa, entrando na baía cheia de canoas, jangadas e galeras, sem nin-

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guém para recepcioná-la. Porém, e para sanar o mal-entendido, logo que a notícia alcançou os ouvidos do governador da Bahia, João Saldanha da Gama, conde da Ponte, este se apressou em ir ao encontro da nau Príncipe Real saudar o regente, d. João, os demais membros da dinastia de Bragança e seu séquito. Apesar de já saber da transferência da corte para o Brasil, uma vez que a nau Martins de Freitas apor-tara em 10 de janeiro, ele não esperava que o príncipe passasse por lá.

O governador era mais uma vítima dos desencontros nas comunicações, que sempre sofriam atraso. Casado com uma senhora alemã, de família importante, João Saldanha, além de popular na região, tinha, bem como a esposa, maneiras da corte e sabia como receber uma entourage desse porte.3 Não se pode dizer, con-tudo, que não tenha ficado estupefato com tudo o que viu: seguindo a nau que tra-zia o príncipe, atracaram em Salvador mais três grandes navios, um deles da escol-ta inglesa.

No dia seguinte, todos refeitos do susto, por volta de quatro horas da tarde a Família Real — exceto d. Maria i, já por demais adoentada — e os nobres estavam em terra firme, enfrentando as dificuldades de ancorar em um território distante e, sobretudo, conhecendo o sol escaldante do verão nos trópicos, com vestimentas mais apropriadas para o inverno europeu que se avizinhava quando deixaram Lisboa. Entre saudações da multidão, seguiram em carruagens

pela rua da Preguiça, tomaram a Ladeira da Gameleira até o Largo do Teatro [...]. Aí desceram das carruagens porque a Câmara Municipal os esperava com o pálio, e sob este, seguiram a pé [... ] até a igreja da Sé, entre alas de soldados que lhes faziam as con-tinências, repicando ao mesmo tempo todas as igrejas [... ] em ação de graças ao Onipotente, não só pela feliz viagem dos soberanos, como pela dita de ver o Brasil ser a sede da monarquia portuguesa.4

Aos poucos a população local tomava consciência da cena estapafúrdia e, não sem curiosidade, procurava se acercar daquela gente de costumes e vestimentas estranhas.

Por sua vez, também a corte pouco entendia o que observava. Nas ruas de Sal-vador, estreitas, sujas e mal calçadas, viam-se os bem-sucedidos desfilarem cober-tos "de jóias, quando outras não fossem sob a forma de cruzes, medalhas, rosários e bentinhos, vestindo mesmo de gala os escravos que os transportavam nos palan-quins cobertos de veludo e fechados com cortinas de seda".5 As roupas, de tão colo-ridas, e, muitas vezes, escassas sobre os corpos, chamavam atenção: cada sociedade se inscreve em suas marcas exteriores, e nesse alfabeto a corte que acabara de che-gar era iletrada. Acostumados à moda afrancesada, utilizada em Portugal, parecia bizarro e quase repugnante aquela roupa ligeira, os pescoços nus, sem lenços a co-bri-los, os vestidos sem manga, de cores claras, e os cabelos das mulheres só apa-nhados em papelotes e um tanto despenteados.

Contudo, o que mais chamava atenção eram os negros escravos, que compu-nham a maioria da população. Estavam por todo lado e faziam de tudo: eram bar-

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5. Vista do aqueduto tomada de uma chácara de Matacavalos, na pena de Martins. FBN

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beiros, babás, carregadores, artífices, amas... A naturalidade do cativeiro e o modo como os escravos eram tratados causavam espanto e geravam comentários. Não era raro vê-los sendo açoitados nas ruas, arcando cargas descomunais ou levando nos ombros liteiras e cadeirinhas, onde as senhoras brancas eram mantidas apar-tadas dos olhares, protegidas do mundo por suas cortinas de cambraia. Mas os negros se destacavam também por suas outras atividades. Com o dorso descober-to e saias coloridas — quase andrajos —, tomavam as ruas da cidade com suas dan-ças, músicas e instrumentos de percussão. E muitos deles vendiam alimentos dife-rentes, estranhos ao olhar europeu: mocotó, caruru, vatapá, pamonha, canjica, acaçá, abará, acarajé, angu, aluá... Com aspecto que nem sempre apetecia aos nobres paladares — como o aluá, uma beberagem feita de abacaxi fermentado e adoçada com mel, que lhes sugeria água suja —, a culinária local gerava assombro, com sua convivência de temperos marcantes e açúcar em grandes quantidades.

Nas ruas quase não sobrava espaço livre, pois, já estreitas, nelas se apinha-vam vendedores de frutas, salsichas, chouriços, peixe frito, azeite e doces; negros trançavam chapéus e tapetes; cães, porcos e aves domésticas se espalhavam pelos cantos — tudo junto, sem distinção. E, como a sarjeta corria no meio da rua, os detritos eram ali atirados — das lojas e residências —• e serviam, por sua vez, de ali-mento aos animais. As casas, por sinal, eram bastante sujas, com o andar térreo destinado aos escravos e à cavalariça, e escadas estreitas e escuras.6

Não que a paisagem de Lisboa, nesse último aspecto, fosse muito diferente da de Salvador, mas era o conjunto que conformava um desenho diferente: os cheiros, as gentes, as cores, os hábitos... lembravam um endereço desconhecido. No lugar das cores suaves das amendoeiras floridas que se espalhavam por Portugal naque-la época do ano, o que se via era uma paisagem frondosa com cores exuberantes, iluminada pelo sol causticante dos trópicos, que criava, nessa perspectiva distan-ciada, um jogo incomum de sombra e luz. As palmeiras com seus frutos, as flores coloridas, os cheiros que se misturavam com os quitutes feitos na rua à base de azeite de dendê, tudo colaborava para a certeza de que haviam desembarcado em um mundo novo. O odor era sobretudo estranho: ao perfume dos alimentos, fru-tos e plantas se mesclava o odor da maresia, com o salgado penetrando nas gentes, nas casas e em tudo em que se encostasse. Ao exótico das cores e sabores somava-se o temor das doenças dos trópicos, dos animais e dos índios — mais temidos do que conhecidos, e que, apesar do número reduzido, inspiravam medo pela fama de serem antropófagos. Definitivamente, tinham aportado numa terra particular.

Nos dias em que a corte permaneceu em Salvador, não faltaram cerimônias litúrgicas em igrejas repletas de ouro e jacarandá, nem visitas aos notáveis da terra e passeios, tanto nos arredores da cidade como em povoações vizinhas. Mas nem só fé, folguedos e rapapés ocuparam o tempo do príncipe. Lá, em 28 de janeiro, poucos dias após ter chegado, mesmo sem a presença de seus principais ministros e conselheiros, d. João assinou a primeira medida régia no agora novo Império Lusitano: a carta de abertura dos portos brasileiros às nações amigas. A partir dessa data ficava permitida a importação "de todos e quaisquer gêneros, fazendas e mer-

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4. Carta regia de abertura dos portos às nações amigas. 29 de janeiro de 1808. ' Enfim a colônia rompia com o monopólio da metrópole. FBN

cadorias transportadas em navios estrangeiros das potências que se conservavam em paz e harmonia com a Real Coroa", ou em navios portugueses. Os gêneros denominados molhados — vinho, aguardente, azeite doce — pagariam o dobro dos impostos a que até então estiveram sujeitos; as demais mercadorias -— gêneros secos — pagariam 24% ad valorem. Ainda segundo a mesma carta régia, podiam ser levados pelos estrangeiros os "gêneros e produções coloniais", com exceção do pau-brasil e outros notoriamente monopolizados.7 Apesar das emendas, essa era sem dúvida uma decisão de enorme importância, que fazia ruir a exclusividade comercial da metrópole, estabelecida desde o início da colonização. Não só navios portugueses — ou de países com quem fossem estabelecidas parcerias comerciais — poderiam transportar as mercadorias saídas da colônia ou para ela remetidas. Agora seria possível receber bens e produtos diretamente de outros lugares, do mesmo modo que navios saídos do Brasil atracariam em outros portos, com exceção dos da França e da Espanha. Ganhava-se, assim, a liberdade de comércio e cumpria-se, ainda, o tratado inicial com a Inglaterra, que previra tal tipo de acerto.

Mas a carta régia foi resultado, também, de muita negociação e de algumas propostas feitas ao regente. Uma delas, vinda de representantes do comércio e da agricultura da Bahia. Outra, saída de um parecer do marquês de Belas. E a última, fruto de conselhos de José da Silva Lisboa, futuro visconde de Cairu.8 Pelo sim, pelo não, o fato é que o príncipe regente, quando aportou à Bahia, ordenou a Silva Lis-

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boa que o acompanhasse ao Rio de Janeiro e viesse "auxiliá-lo a levantar o Império Brasílico".

No entanto, mais que benevolência do príncipe regente para com seus anfi-triões, a abertura dos portos representava um ato inevitável. É bom lembrar que de Portugal, ocupado pela França, não sairiam mais mercadorias necessárias para a vida no Brasil, onde quase tudo era importado. Nem se teria para onde reme-ter os bens produzidos na colônia, e que, comercializados na Europa, geravam os recursos para a sobrevivência da dinastia dos Bragança. Porém, outro país seria muito favorecido com a medida: a Inglaterra, no momento a única "nação amiga" de Portugal. De tudo trouxeram os ingleses desde suas primeiras viagens: fazen-das de algodão, lã e seda; peças de vestuário, alimentos, artigos de armarinho, móveis, vidros, cristais, louças, porcelanas, panelas de ferro, cutelaria, quinqui-lharia, carruagens...

Na verdade, o momento era propício, uma vez que o comércio brasileiro abria-se, justamente na época em que a maioria dos mercados tradicionais se fe-chava para a Grã-Bretanha. Isso fez com que os comerciantes ingleses exportassem quantidades enormes de mercadorias, muito acima da capacidade de absorção do mercado brasileiro, que, tomado por numerosa população escrava — que em prin-cípio não consumia —, e pelas elites, a recém-chegada e a da terra, mal-e-mal dava

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conta de seu parco cotidiano. Assim, seguindo essa lógica externa, mandaram pro-dutos apropriados para o mercado brasileiro, outros gêneros de boa qualidade mas pouco adaptados às necessidades e hábitos de consumo na colônia, e outros, ainda, absolutamente impróprios. São famosas as referências à entrada de patins de gelo, espartilhos para senhoras (de uso desconhecido nestas paragens), bacias de cobre para aquecimento de camas, grossos cobertores de lã, instrumentos de matemáti-ca em "quantidade capaz de fornecer a nação européia mais esclarecida durante anos". Chegaram, também, carteiras e porta-notas em profusão, numa terra onde não existia papel-moeda e onde os homens de bem nem sequer carregavam di-nheiro, devido ao peso, deixando-o aos cuidados de escravos que os acompanha-vam.9 Porém, nada ficou perdido. As tais bacias, depois de furadas, foram aprovei-tadas como escumadeiras nos engenhos de açúcar; os cobertores foram usados na mineração para reter entre suas malhas as partículas de ouro, e as lâminas de patins transformaram-se em trincos de porta. Mas, como o mercado era restrito e pouco elástico, logo se verificou um abarrotamento de produtos, que só foram escoados após uma série de hastas públicas e de vendas facilitadas.

Não obstante, todas essas dificuldades não impediram que o comércio inglês se firmasse, tendo essa nação, durante um bom tempo, o controle absoluto do mer-cado brasileiro, principalmente depois do tratado de Comércio e Navegação, assi-nado em fevereiro de 1810, e que privilegiou a taxação tarifária de produtos ingle-ses exportados para o Brasil, deixando-os mais competitivos que os dos demais países, até mesmo em relação a Portugal. Visto de perto, esse tratado — que fixava que as exportações inglesas entrariam no país com tarifa de 15% de seu valor, enquanto as portuguesas pagariam 16% e as dos demais países, 24% — represen-tava o preço pago por Portugal à Grã-Bretanha pelo auxílio que dela recebera na Europa. Era tremendamente favorável à Grã-Bretanha, assinado por um príncipe preocupado com a sorte de seu reino. Apesar das cláusulas falarem em "reciproci-dade", essa, de fato, não existia, uma vez que até mesmo as mercadorias lusas paga-vam mais para entrar na própria colônia.

E as conseqüências foram muitas: retardou-se o desenvolvimento da indústria no Brasil, pois não havia base de concorrência com as mercadorias inglesas, que chegavam a preços baixos; a Grã-Bretanha conquistou inteiramente o mercado brasileiro e provocou uma dependência econômica que continuaria até depois de decretada a paz na Europa. John Luccok, comerciante inglês da firma Lupton S. Co., de Leeds, que esteve no Brasil entre 1808 e 1818, relatou que em 1809 "os ingleses tinham se tornado senhores da alfândega, que eles regulavam tudo, e que ordens tinham sido transmitidas aos funcionários para que dessem particular atenção às indicações do cônsul britânico".10

As estipulações do tratado comercial de 1810 foram complementadas pelo tratado de Paz e Amizade, que previa, mais vantagens aos ingleses, agora com re-lação à compra e ao corte de madeira, e proibia que a Inquisição entrasse no Brasil, assim como concordava com a abolição gradual do tráfico de escravos. Tais medi-

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das, que, no limite, permitiam que o comércio britânico no Brasil se firmasse sem que os comerciantes de outros países pudessem lhe fazer concorrência perigosa, foram ratificadas por Portugal em 26 de fevereiro e pela Grã-Bretanha em 18 de junho de 1810. O tratado de paz seria anulado, anos depois, pelo tratado de Viena de 1815, que corrigiria tal desproporção. Tarde demais: a Inglaterra a essas alturas já era senhora e dona dos mercados locais.

Mas a vida continuava e d. João procurava organizar internamente sua colô-nia. Entre condecorações e medidas administrativas de rotina, o príncipe também tomou atitudes até então inéditas para a colônia. Em uma delas, concedeu licença para a criação da Escola Médico-Cirúrgica, em Salvador, em 1808, uma vez que a colônia carecia de especialistas nessa área e, convenhamos, a população urbana aumentara de um momento para o outro. Naquela época, a maior parte das ativi-dades médicas era desenvolvida por curandeiros "herbalistas", herdeiros de conhe-cimentos africanos e indígenas, ou por práticos, que não passavam de "curiosos gerais".11 Por sinal, a educação no Brasil era igualmente desprezada e as universida-des, proibidas pela metrópole, em contraposição à política cultural de reinos como a Espanha, que havia muito tempo liberara o ensino superior em suas colônias. De oficial, só aulas de Artilharia e Arquitetura Militar e algumas esparsas e avulsas "escolas ou aulas régias", com cursos de Filosofia, de Latim, de Retórica, de Mate-mática, sem nenhum planejamento que pudesse caracterizá-las como instrução pública. Afora isso, o ensino era administrado pelas ordens religiosas, em conven-tos e seminários.

E o governo de d. João traria novas surpresas: por outro ato, permitiu a ins-talação na Bahia de manufaturas e indústrias de vidro, de pólvora e de moagem de trigo. Tratava-se de verdadeira reviravolta, visto que, até esse momento, a co-lônia concentrava-se apenas na agricultura e na mineração; a produção e o comér-cio de manufaturados eram exclusividade da metrópole. Exercia-se um controle tão rigoroso que a manufatura de tecidos fora proibida pelo alvará de 5 de janei-ro de 1785, sendo permitida somente a produção de "fazendas grossas de algo-dão próprias para o uso e vestuário dos negros e para enfardar ou empacotar fazendas",

Voltemos, porém, ao desembarque, que, se não fora previsto, ao menos ocor-ria em local privilegiado: a Bahia continuava próspera. Além da indústria cana-vieira e do gado, havia as lavouras do algodão e do tabaco, bem .como a explora-ção salineira. O seu porto ainda era o de maior movimento. Desde o século xvi lá atracavam mercadorias importadas, e de lá saíam os produtos nativos destinados à metrópole; havia também o comércio negreiro, altamente lucrativo. Seu comér-cio, de tão renomado, era chamado de "porto do Brasil", apesar da existência de outros paradeiros. Lá desembarcavam as maiores levas de escravos; proibidos de entrar em Portugal desde 1767, ainda eram a principal mão-de-obra no ultra-mar. Através da Bahia, pelo Rio de Janeiro e por Recife, Portugal mantinha gran-de parte de suas relações com suas colônias na África. Na verdade, um comércio triangular e de trocas comerciais e culturais se realizava entre os países, com a

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"África recebendo e africanizando a rede, a mandioca e o milho, enquanto o Brasil fazia seus o dendê, a malagueta e a panaria da Costa".12 Aí estariam, nos termos de Pierre Verger, "os africanos do Brasil e os brasileiros da África [... ] conseqüên-cia imprevista do fluxo e refluxo do tráfico de escravos".13 Aí estava, também, um mundo diferente, feito da violência de um sistema que supõe a posse de um homem por outro; feito, ainda, de trocas culturais imprevistas. Na Bahia a corte portuguesa conheceu uma outra África, alterada pelas cores, cheiros e gentes do Brasil. Mas o mundo era mesmo muito grande para olhos pouco acostumados com algo mais do que sua quinta, ou a extensão de terra que os olhos são capa-zes de guardar.

No entanto, e apesar da hospitalidade baiana, a decisão tomada em Lisboa foi cumprida à risca. Em 26 de fevereiro a esquadra levantou âncoras e deixou a baía de Todos os Santos rumo ao destino final, o Rio de Janeiro. Deixava Salvador, a despeito dos esforços dos baianos para que lá permanecesse. Por isso mesmo, a des-peito dos pedidos e da tentadora promessa de que construiriam um luxuoso palá-cio, o príncipe manteve-se firme. E na rua o povo cantava:

Meu príncipe regente, Não saias daqui, Cáficamos chorando Por Deus, e por ti...14

NO RIO DE JANEIRO: UMA QUASE-ALDEIA

Retornando um pouco na história, vamos compreender como podem ser pas-sageiras as ordens e decisões tomadas, sobretudo quando se observa tudo de longe, muito longe, bem da corte do Rio de Janeiro. Em outubro de 1807, com a encena-da decisão de fechar os portos lusitanos à Grã-Bretanha, temiam-se represálias contra a colônia. E de Portugal saíra a ordem para que em Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro se preparasse a defesa do território brasileiro contra qualquer ata-que britânico. Em 11 de janeiro de 1808, o vice-rei do Brasil, d. Marcos de Noronha e Brito, conde dos Arcos, recebeu o aviso e publicou um edital com medidas para enfrentar tentativas de invasão: "Mando criar um Corpo de Cavalaria que será composto só de Voluntários, de que eu serei o chefe [...]. Igualmente tenho orde-nado que se formem companhias de infantaria de voluntários, às quais se agrega-rão os Regimentos de Linha".15

Suas preocupações mudaram de rumo três dias depois. O brigue Voador che-gou ao Rio de Janeiro com a notícia de que os franceses haviam invadido Portugal e de que a Família Real, com o apoio da Inglaterra, decidira retirar-se, com sua corte, para o Rio de Janeiro, de onde o reino seria governado até que amainasse a convulsão por que passava a Europa. Mudava, de um minuto a outro, não só o ini-migo como também as providências a serem tomadas. E os pensamentos do conde

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6. O Rio a partir do morro da Conceição: a tão esperada chegada à capital da colônia. Thomas Ender, 1832, FBN

dos Arcos voltaram-se então para medidas mais pacíficas mas não menos urgentes: preparar rapidamente a acanhada cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro para tornar-se a nova sede da monarquia lusitana.

E a tarefa não era das menores. Afinal, no início do século xix, o Rio era uma cidade pequena, e seu núcleo principal se limitava pelos morros do Castelo, de São Bento, de Santo Antônio e da Conceição. O ponto central ficava nas proximidades do morro do Castelo, e no início de sua formação servira como defesa da localida-de, e a partir dele a cidade se espalhara lentamente pelas quatro freguesias em que se dividia: Sé, Candelária, São José e Santa Rita. Tinha não mais que 46 ruas, qua-tro travessas, seis becos e dezenove campos ou largos.16 Por sinal, boa parte do movimento de expansão do Rio de Janeiro se deu no sentido de domar as águas — vários desses logradouros nasceram sobre aterros de brejos e mangues. Eram de terra batida, desnivelados, esburacados, cheios de poças e detritos que os tornavam imundos e fétidos.

Porém, nos arredores do morro do Castelo, em frente ao mar, onde se achava o Largo do Paço, a cidade era diferente. Chamara-se antes Terreiro do Ó, depois Terreiro do Polé. Passou a ser conhecida como Largo do Carmo quando ali foram construídos a igreja e o convento dos carmelitas. Lá também, no século xvn, foram er-guidos os prédios da Casa da Câmara e da Cadeia, da Fazenda Real, dos Armazéns Reais e da Casa da Moeda.

No século seguinte, o largo foi calçado e instalou-se um chafariz segundo desenho mandado de Lisboa por Carlos Mardel, o arquiteto mais importante da

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corte; pouco depois seria substituído por outro, de autoria do escultor e entalha-dor brasileiro Valentim da Fonseca e Silva, o Mestre Valentim. Mas como capital da colônia o Rio de Janeiro deixava a desejar, uma vez que as edificações eram poucas e bastante pobres. Havia, porém, uma bela exceção: ainda no Setecentos a Ordem Terceira do Carmo construíra, em frente ao largo, uma igreja e um hospital, visto-sos para os moldes da região. Por fim, existiam os antigos prédios que serviam de Armazéns Reais e de Casa da Moeda e que haviam sido reformados e ampliados para se transformar em sede do governo da capitania do Rio de Janeiro e depois do vice-reinado. O prédio tinha lá sua elegância e, apesar da proibição de denominá-lo palácio — prerrogativa das residências reais —, ficou conhecido como o Paço dos Governadores e, em seguida, Paço dos Vice-Reis. Ao lado foi construído um cais, em cantaria lavrada, com peitoris, três escadas e uma rampa de acesso ao mar. Tudo com seu charme, tanto que o Largo do Paço lembrava de certa maneira — e em escala menor — o Terreiro do Paço da Ribeira, plantado na beira do Tejo, em Lisboa, de frente para o porto.

Separando o paço do conjunto de igrejas e do convento estava a rua Direita (atual Primeiro de Março),

a mais vasta, mais bela e mais palpitante artéria da cidade, a rua Direita, irregular e torta apesar do nome, com a linha frontal do casario que ora ondula, ora avança, ora foge, a princípio muito larga, para morrer depois, em funil, lá para as bandas do Arsenal da Marinha. Não há trânsito maior, nem bulha mais intensa em toda a urbe esparramada e feia. A rede de vielas estreitas e imundas, vindas da Carioca e Vala [atual Uruguaiana], está sempre cuspindo nela a massa colorida da população.17

Lá ocorria o comércio local, que em geral seguia regras próprias: tirava-se uma soneca depois do almoço e conversas entre amigos eram mais urgentes do que atender a um eventual cliente. Foi só com a vinda da Família Real que a quase-aldeia se converteu em corte, ganhou novo visual e conheceu as vicissitudes da vida em sociedade, com seu comércio elegante, passeios nas praças e festas animadas. Mas para isso seria preciso esperar mais um pouco.

CUIDANDO DA NOVA CASA

Já no dia 14 de janeiro, quando o brigue Voador aportou, o conde dos Arcos deu início aos seus muitos afazeres. Deixou sua moradia, no Paço dos Vice-Reis, onde também funcionava o Tribunal da Relação, a fim de preparar o palácio com o fausto de que dispunha, e que não era muito, para acomodar o príncipe regente e sua família. O local foi caiado e seu interior passou por reformas que incluíam pinturas e forração de seda de várias cores. O "presente" era moeda de troca: afi-nal, ofertava-se a casa, mas ganhavam-se gratidão e postos em troca de tamanha generosidade. A Casa da Câmara e da Cadeia também foi desocupada e reforma-

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da, sempre visando à possível comodidade da corte que estava por chegar. Da ca-deia, na parte inferior do prédio, retiraram-se as grades e abriram-se portões para a entrada de carruagens. Construiu-se ainda um passadiço ligando o paço à Casa da Câmara e da Cadeia: não se podia pensar na família real sujando os pés nos buracos cariocas, nas ruas lodosas e esburacadas.

Também foi decretada a lei das aposentadorias, que intimava os proprietários dos melhores prédios nas proximidades do palácio a que os deixassem livres, para dar abrigo aos fidalgos, militares, negociantes, funcionários e quem mais desem-barcasse com a corte de d. João. As moradias escolhidas tinham de ser desocupa-das imediatamente. E o processo era sumário: na fachada do prédio escreviam-se a giz as letras "P. R.", que queriam dizer "príncipe real", mas para o povo transfor-mou-se em "ponha-se na rua" ou mesmo "prédio roubado". Era a velha e boa ironia popular que brincava com os infortúnios.

Contudo, não era só de teto que precisavam os que chegavam. Preocupado tam-bém com os estômagos, o conde dos Arcos solicitou aos governadores de São Paulo e Minas Gerais que enviassem mantimentos. E vieram carne de vaca, de porco, de carneiro e de aves, além de uva, pêssego, goiaba, banana, cará, batata, batata-doce, milho, mandioca, feijão... Era preciso aplacar a fome que haviam passado durante a travessia oceânica, apesar da certeza de que o cardápio traria algumas novidades.

Mas não bastava pensar apenas na subsistência. Ao lado das questões de Es-tado, que se buscasse também a proteção divina, para esquecer os percalços dos úl-timos tempos com um pouco de festa. E desde o dia 16 de janeiro esta seria uma das grandes preocupações dos governantes da terra: receber os reais "visitantes" com o ritual que bem mereciam. Naquele dia, o Senado da Câmara houve por bem decretar a programação dos festejos religiosos e civis, a iluminação da cidade por oito dias consecutivos, assim como promover danças e diversões populares. A deci-são foi propalada por funcionários do governo, que a cavalo e em bandos saíram ruidosamente pelas ruas da cidade. Seguidos pelo povo em algazarra, paravam em pontos de maior movimento e, entre foguetadas, soar de clarins e rufar de tambo-res, era lido o edital de convocação. Além da procissão, do te-déum, das luminá-rias, das alegorias e das janelas enfeitadas, o povo esperava ansioso pelas touradas, cavalhadas, foguetórios, récitas, conjuntos musicais e danças, como era comum no tempo dos vice-reis.18 Além do mais, ao contrário do que costumava acontecer, a cerimônia do beija-mão não seria para o vice-rei, e sim para o príncipe regente em pessoa. Portanto, o repertório era semelhante, mas o argumento distinto. Se até então o vice-rei recebia os cumprimentos no lugar de d. João, se o retrato surgia em vez da pessoa, dessa feita era para valer. Afinal, era a própria família real que estaria no centro dos rituais. E a festa faz destas: ao mesmo tempo que é de e para todos, estigmatiza e marca posições. Era através dela que o povo tomaria contato com a nova situação e com ela que se receberia, condignamente, a mais ilustre casa dos Bragança, que, longe da Europa e do cenário da guerra, parecia mais uma insigne convidada do que uma dinastia que saía na última hora para preservar seu lugar ou, ao menos, para manter a rica colônia, também em seu lugar.

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No dia seguinte ao edital da Câmara, 17 de janeiro, em plena azáfama, o conde foi atropelado por um aviso enviado pelo telégrafo semafórico da fortaleza do morro do Pico, na entrada da baía de Guanabara: a Real Esquadra aproximava-se, e ele não tivera tempo para concluir os preparativos. Alerta geral: a agitação tomou conta das ruas e a curiosidade fez com que o povo ou corresse para a praia de d. Manuel, nas proximidades do porto, ou subisse os morros do Castelo, de São Bento ou da Con-ceição, para ver o que até pouco tempo atrás parecia inverossímil: a realeza lusitana no distante solo brasílico. No final da tarde, fundearam na baía as sete embarcações portuguesas e mais três barcos ingleses. Soube-se então que haviam chegado so-mente as duas irmãs da rainha, d. Maria Benedita e d. Maria Ana, e duas das infan-tas, Maria Francisca de Assis e Isabel Maria. Desgarrados numa tempestade, esses na-vios vieram direto para o Rio de Janeiro e os tripulantes não sabiam do destino dos demais. O alívio foi grande e, apesar de convidadas pelo conde dos Arcos a desem-barcar, não aceitaram fazê-lo; aguardariam a bordo, orando para que nada de trágico ocorresse com os membros faltantes da família. Quem sabe fossem carolas demais para enfrentar o desconhecido dos trópicos, quem sabe se tratasse de uma questão de etiqueta — não se desce antes da própria rainha e do príncipe regente —, mas o fato é que a primeira visita decepcionou e nem ao menos se deu a ver.

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Nem as festividades em homenagem a são Sebastião, padroeiro da cidade, que se iniciavam naquela noite e iam até o dia 20, data consagrada ao santo, foram ca-pazes de demovê-las. E essas eram as mais concorridas das festas que se realizavam na sede da colônia: com "salvas das fortalezas e dos navios, parada de tropas em grande gala, cerimônias religiosas com missa solene e sermão adequado, repique de sinos, foguetório, janelas ajaezadas de colchas de damasco e tapetes do Oriente, luminárias em todas as casas, danças populares em plena rua".19 Elas só desembar-cariam um mês depois, em 22 de fevereiro, tão logo foi dada a notícia de que seus familiares se encontravam sãos e salvos na Bahia e em breve estariam no Rio de Janeiro. Imaginem-se o calor e as privações que passaram dentro das naus. Mas, se essa era a decisão das irmãs, não havia o que fazer, apenas aguardar e, enquanto isso, permitir que os demais viajantes deixassem os navios. Também os tripulantes pretendiam ficar em terra firme, como os da nau Martins de Freitas, que requisita-ram ao vice-rei autorização para desembarcar e prestar seus serviços na cidade, empregados nos arsenais.20 Depois de traslado tão longo, era bom se deixar ficar em dias de festa.

A cidade fervilhava:

Não houve mãos a medir no trabalho das escravas costureiras: vinham encomendas de todos os cantos, e as compras de fitas, rendas, chamalotes, veludos, damascos, jóias, galões, gregas e escócias não tinham limites. Muitos querem, ansiosos, comparecer ao desembarque de Sua Majestade; todos desejam ver a pessoa de d. João e sua família e presenciar a festança. As meias de seda, os sapatos rasos de fivela de ouro e prata, as cabeleiras, os coletes de cetim bordados e os chapéus armados — tudo subiu de preço.21

Tudo era caro, importado da França ou da Inglaterra, e não se podia fazer má figura. Se a primeira troca de olhares é a que fica, então era preciso caprichar no visual e mostrar que na sede da colônia se vivia como na corte portuguesa. Afinal, ao menos na imaginação, éramos uma quase-Europa...

O GRANDE ESPETÁCULO: AGUARDANDO O DESEMBARQUE

Finalmente, no dia 7 de março de 1808 atracava no Rio de Janeiro a parte mais importante da corte. Outra vez o povo movimentou-se para assistir ao esperado espetáculo da chegada de seus amos e senhores, ocupando praias e morros de onde se avistava a entrada da baía. A cidade parou. Lojas e repartições públicas fecharam. Residências ficaram vazias. Tão logo avistada a esquadra no horizonte, começaram as homenagens: nas igrejas, os sinos repicavam; nas ruas, foguetes estouravam. No porto, as embarcações estavam engalanadas com bandeiras, flâmulas e galhardetes coloridos. Assim também as fortalezas. E foram muitas as salvas de canhões, segui-das de tiros de fuzis. O barulho era ensurdecedor, e deve ter causado certo estreme-cimento para os ouvidos ainda apavorados com os rumores de guerra.

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Mas nesse caso tudo era festa. Tão logo a frota aportou, partiram ao seu en-contro alguns escaleres levando a Família Real, os nobres que já haviam desem-barcado, o conde dos Arcos, os membros do Senado da Câmara e os homens ilus-tres da cidade, civis eclesiásticos e militares. Depois das homenagens a d. João, foram todos cumprimentar d. Carlota Joaquina, como manda o ritual. Mais feliz era a fidalguia que, recém-chegada, um tanto surpresa e cheia de emoção, ia ao reencontro de familiares e amigos que pensavam ter ficado em Lisboa, perdidos na confusão do embarque.

O padre Luís Gonçalves dos Santos — conhecido como padre Perereca por sua complexão franzina e seus olhos esbugalhados — assim testemunhou, com evidente entusiasmo laudatório, os primeiros momentos da Família Real e de sua comitiva:

Eram duas para as três horas da tarde, a qual estava muito fresca, bela, e aprazível [...], que desde a aurora o sol nos havia anunciado como o mais ditoso para o Brasil: uma só nuvem não ofuscava os seus resplendores, e cujos ardores eram mitigados pela fres-cura de uma forte e constante viração; parecia que este astro brilhante, apartando a si todo o obstáculo, como se regozijava de presenciar a triunfante entrada do primeiro soberano da Europa na mais afortunada cidade do Novo Mundo, e queria ser partici-pante do júbilo, e aplausos de um povo embriagado no mais veemente prazer [...].*22

A Família Real, porém, não desceu naquele mesmo dia. As solenidades deter-minadas pela Câmara desde 16 de janeiro tiveram de esperar até a manhã seguin-te, quando os ilustres viajantes já teriam se refeito da longa jornada. Por volta das quatro horas da tarde do dia 8, a Família Real — com exceção de d. Maria i, que permaneceria a bordo por mais dois dias — tomou o bergantim que a levaria para terra. Atrás, em escaleres, lanchas e embarcações menores vinha uma enorme co-mitiva, composta tanto dos nobres que desembarcavam como daqueles que haviam ido a bordo buscá-los. A emoção era grande; afinal, era hora de encontrar, em "carne e osso", personagens só conhecidas em gravuras, folhetos e moedas.

Ao chegarem ao porto, foram recebidos pelo Senado, pelo clero e pela nobre-za da terra, todos portando suas melhores vestimentas e perucas empoadas, devi-damente paramentados para receber a corte. Surpresa, porém: para espanto geral, as mulheres que desembarcavam tinham raspado os cabelos. Logo se soube não se tratar de moda; era, como vimos, uma medida profilática que visava exterminar os piolhos que infestaram as nobres cabeleiras durante a viagem. Também a expecta-tiva de ver um regente altivo, com manta de púrpura e arminho, e sua atraente e etérea esposa, foi por água abaixo. Ele, baixo, rosto comprido, testa larga, olhos arregalados, lábios carnudos, queixo caído terminando em papadas, barriga proe-minente, coxas grossas e ar tímido. Ela, também baixa, angulosa, ossuda, lábios extremamente finos e encimados por um leve buço, algumas verrugas no rosto, mandíbulas salientes, claudicante. E, ademais, trazia a tristeza estampada na face, os olhos sempre marejados de lágrimas.23

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Decepções postas de lado, a cerimônia continuou. Em um altar em frente ao cais, armado especialmente para a ocasião, aspergiu-se água benta na Família Real, queimou-se incenso e ofereceu-se a Santa Cruz para que d. João a beijasse. Depois, receberam as bênçãos, conforme mandava o ritual. Imediatamente a família pos-tou-se sob um pálio de seda encarnada e ouro e formou-se um cortejo composto de autoridades, civis e militares, e religiosos de várias ordens, que seguiu a pé até a igreja do Rosário, a catedral da cidade, sob as vistas do povo que se apinhava nas ruas Direita e do Rosário e saudava d. João bradando: "Viva nosso príncipe, viva o imperador do Brasil". O percurso estava coberto de areia branca e de folhagem aro-mática. Janelas e varandas encontravam-se ornadas com colchas de damasco ou seda. E flores eram lançadas sobre o préstito. Na rua do Rosário, onde havia sido erguido um coreto, entoaram-se hinos em louvor do príncipe regente, que, nessa lógica do ver e ser visto, convertia-se rapidamente na realeza do Brasil.

Terminada a cerimônia litúrgica, o príncipe regente e a família deixaram a catedral e dirigiram-se de carruagem ao agora Paço Real. No Largo do Paço, d. João deparou com luminárias erguidas em sua homenagem. Era uma alegoria cenográ-fica, feita em madeira e iluminada por milhares de lumes em copos de diversas cores, composta por uma série de arcos encimados por uma balaustrada adornada com vasos, pirâmides, inscrições simbólicas e versos de Virgílio. No centro da balaustrada, as armas de Portugal estavam dispostas dentro de uma esfera, que ser-via de apoio às armas do Senado da cidade do Rio de Janeiro. Fundiam-se assim os símbolos do reino com o da capital do até então distante vice-reinado: a América unia-se ao Império Lusitano. Dentro do arco central, um grande medalhão com o retrato de d. João era ornado por uma grinalda de rosas. Em torno, símbolos das virtudes atribuídas ao príncipe: religião, justiça, prudência, fortaleza e magnanimi-dade. À sua frente, dois gênios circundavam um índio, que já nesse contexto sim-bolizava o Brasil. De um lado, a Ásia. De outro, a África. Ajoelhado, coberto por um manto, calçando borzeguins e com o cocar ao chão, o índio oferecia ao sobe-rano riquezas da terra: ouro e diamantes. Portava o coração na mão direita, tam-bém como oferenda ao monarca, dizendo: "Mais que tudo o Coração..." No painel via-se a nau em que viera o príncipe regente, entrando na baía de Guanabara e sendo saudada pelas fortalezas, e os versos:

Do grande Afonso a Descendência Augusta, Os povos doutrinou do mundo antigo: Para a glória exaltar do Novo Mundo Manda o sexto João o seu amigo.

Sobre a imagem de d. João, um céu coberto de nuvens serenas simbolizava um futuro de paz que o monarca encontraria em terras brasileiras. Faziam parte tam-bém das luminárias versos de outro poeta que exaltava a tão propalada tranqüili-dade, estes de autoria de Manuel Inácio da Silva Alvarenga, um dos grandes nomes do Arcadismo brasileiro e que fora acusado de envolvimento com a Inconfidência Mineira:

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Negras nuvens longe exalem Morte, estrago, horror, veneno E entre nós sempre sereno Seja o Céu, a Terra, o Mar.

A honra de ter o monarca na terra, e principalmente de agradá-lo, valia a vis-tosa simbologia e todo o investimento. Com aquelas luminárias o Senado da Câ-mara do Rio de Janeiro havia gasto a vultosa importância de 4 contos de réis, e ainda abrira a burra para custear a cera para as luzes instaladas nas casas próximas do palácio, para as cerimônias religiosas e para as demais comemorações realizadas na ocasião. Afinal, os senadores tinham a certeza de que a transferência da corte entra-ria nos "anais da história portuguesa e nos do gênero humano", conforme deixou relatado o escrivão daquela casa nos Preparatórios no Rio de Janeiro para receber a Família Real portuguesa,24

O dia havia sido longo, cheio de novas emoções, e, exaustos, os soberanos e seu séquito recolheram-se. Mas para o povo a festa no Largo do Paço continuava, com fogos, músicas, récitas de poesias e discursos em honra do príncipe regente, que da janela do palácio a tudo assistia. Afinal, uma vez iniciado o ritual, com ou sem a presença de d. João, ele não tinha hora para acabar. Bom pretexto para bem recepcionar, mas, também, para afirmar simbolicamente o novo governo, que che-gava sem hora para voltar.

Em 15 de março, último dia dos festejos, outra cerimônia ocorreu na catedral. As ruas mais uma vez foram revestidas com areia, flores e folhas, e a Família Real novamente dirigiu-se à igreja do Rosário, com a comitiva de nobres, membros do corpo diplomático e senadores. Atrás, uma guarda de 120 soldados da Cavalaria seguia orgulhosamente a procissão de reis e da nobreza. E o cortejo não passaria de forma discreta: era acompanhado por foguetes, e salvas de tiros de todas as naus e fortalezas comemoravam a data, e das janelas eram lançadas flores de todas as cores.

Findos o te-déum e a missa, a corte se dirigiu ao Paço, onde foi dada aos vas-salos a graça do beija-mão. Inaugurava-se o cerimonial da corte em terras brasilei-ras, com o mesmo sentido de submissão à realeza: o vassalo se abaixa e, assim, demonstra sua fidelidade. E o Largo do Paço — a área mais nobre da cidade, abri-gando o poder político, administrativo e econômico, além do religioso — serviria de cenário para a corte tropical do Império Lusitano, "tornando-se o centro dos acontecimentos políticos, das festas reais e das cerimônias de institucionalização e afirmação do poder."25 Ajeitava-se tudo um pouco, alteravam-se as cores e os emblemas, contornava-se o incômodo da maresia e agora a colônia brasileira nem parecia tão distante de Portugal. Nada que uma boa maquiagem não conseguisse mascarar.

Mas a notícia da chegada da corte ganhava asas e pedia manifestações. Com efeito, desde que se soube que a realeza estava a caminho do Brasil, demonstrações pipocaram na colônia. Ainda em janeiro de 1808, em São Paulo, antes mesmo do

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desembarque, o comerciante inglês John Mawe presenciou as orações diárias, feitas na catedral da cidade pelo bispo d. Mateus de Abreu Pereira, para que a travessia do soberano ocorresse a salvo e pelo pronto estabelecimento do Império brasileiro.26

No Recife, o frade Bento da Trindade, do púlpito da igreja do Sacramento, man-teve o mesmo tom de enaltecimento ao monarca, além de exaltar a honra de abri-gar a sede do Império:

Vinde reinar nos corações de vossos fiéis americanos, ainda mais do que no seu vasto continente. Um novo Império, novo mundo, novo céu e nova terra vos desejam e vos chamam. [... ] Em meio de tanta perturbação e tantas calamidades o bom Senhor lan-çou vistas piedosas sobre nós; livrou o nosso bom príncipe de cair nas sanguinosas mãos dos inimigos [...].27

A ilha de Santa Catarina, já em abril de 1808, realizou homenagens ao prínci-pe regente. Na missa rezada no dia 24, um orador atreveu-se a compará-lo ao míti-co rei d. Sebastião, felicitando-o por sua melhor fortuna. Nesse mesmo dia, um espetáculo pirotécnico encheu os olhos do povo:

pelas onze horas [da noite] começou a latada de Fogo [que se] havia armado no meio da Praça, cujo elegante princípio foi por este modo: uma pomba por uma corda correu de um lado cheia de fogo a acender um letreiro que mostrou muito tempo estas letras iniciais — V. S. A. R. (Viva Sua Alteza Real), o que teve imensos vivas. Outra pomba por outro lado da mesma sorte correndo fez iluminar outro letreiro que dizia — Feliz o Brasil. Depois apareceu um bonito fogo, à imitação de luminárias, que durou muito vivo mais de dez minutos [...]. Seguiu-se depois entrar na praça um navio de fogo, seguindo-se depois disso rodas, chafarizes, pistolas etc. Finalmente concluiu esta bri-lhante função aparecendo na Praça um vistoso carro todo enramado que, dando volta em roda da mesma praça, ditou ao ar cento e tantos foguetes de respostas.28

Cada um procurava ser e fazer mais do que o outro. Afinal, era a monarquia que chegava e, na ótica local, ela só poderia estar vindo para ficar. Talvez por isso mesmo a data tenha marcado, se tornado memorável e virado feriado: até 1820 o dia 7 de março foi comemorado no Brasil. E é assim que, na releitura da lógica das festas ibéricas e barrocas, os novos dias festivos se acrescentavam aos demais e tudo se transformava num pretexto para festejar.

ABRINDO AS MALAS E INSTALANDO A PESADA CORTE

Ainda a bordo, d. João vislumbrara um panorama diferente do da sua terra natal. Ao fundo, em lugar das suaves colinas lisboetas, surgiam morros exuberan-tes com matas fechadas e picos de pedra a recortar o azul do céu. A sua frente, uma cidadezinha colonial, plácida e exótica, emoldurada pelas mansas águas da baía de Guanabara e pelas montanhas. A monotonia de pequenas casas caiadas só era que-

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brada por exemplares de arquitetura religiosa, militar ou áulica, com suas igrejas, conventos, fortalezas e o Paço do Vice-Rei. Certamente passou pela cabeça do re-gente o esforço que seria necessário para conferir ares cortesãos ao Rio de Janeiro, seu abrigo e nova sede do Império Lusitano.

Deixando para trás a suntuosidade e os amplos espaços — como o do palácios de Mafra, o preferido de d. João, e o de Queluz, residência de d. Maria i —•, a Família Real teria de se acostumar a habitações menores e mais modestas. Mas, se na cons-trução da figura pública do monarca a representação de seus paços é uma constan-te, e se não há rei sem palácio, nada como sé acomodar um pouco e deixar que a encenação ganhe da realidade. Afinal, era tradição entre os Bragança guardar o luxo para o exterior e preterir o interior, mas desta vez seria preciso muita paciência.

A d. João, bem como a d. Carlota Joaquina e filhos, coube o Paço do Vice-Rei, agora Paço Real, no Largo do Carmo. O prédio ao lado, onde antes estava a Casa da Câmara e da Cadeia, foi incorporado ao palácio e passou a ser ocupado pela criadagem. Nada pior para a princesa, que sempre vivera apartada do marido e não descansaria enquanto não retomasse o hábito, agora em terras tropicais. Dada a reduzida dimensão do palácio, d. Maria i foi acomodar-se no convento dos carme-litas, separado dos fundos do palácio pela rua Direita, e aos religiosos só restou a mudança para o seminário da Lapa. O andar térreo do convento foi adaptado para receber tanto o corpo de guarda como a ucharia e a cozinha real. No pavimento superior foram instalados os aposentos da rainha e de sua criadagem. Mas devido ao estado avançado de demência, d. Maria de pouco se dava conta.

No entanto, o príncipe e a rainha não estavam exatamente separados. Assim como a Casa da Câmara e da Cadeia, o convento ligava-se ao palácio por um pas-sadiço elevado e repousado em arcos. Era uma forma engenhosa de aumentar o espaço habitável e ao mesmo tempo manter a privacidade real, já que para passar de um prédio para outro não seria necessário sair à rua. E logo d. João estaria mais bem instalado, e longe da mulher. Elias Antônio Lopes, um rico comerciante por-tuguês, resolveu ceder ao príncipe regente uma casa de campo nos subúrbios da cidade, a Chácara do Elias, em São Cristóvão, dizendo não ter outro interesse senão o bem-estar de Sua Majestade. De toda maneira, ajeitavam-se as coisas: Elias Lopes receberia de volta mais tarde, devidamente infiacionado, o valor de sua "oferta", e a princesa Carlota Joaquina permaneceria no Paço Real, bem no centro da corte e, principalmente, afastada de seu marido.

Para abrigar os fidalgos, funcionários, militares que ainda não tinham onde ficar, ou para os que continuavam chegando, mais uma vez aplicou-se a lei das apo-sentadorias. Casas foram requisitadas sem maiores explicações. Alguns proprietá-rios se defendiam

simulando ou mesmo realizando obras perfeitamente dispensáveis nas suas residên-cias. Obras eternas [...] nas quais andaimes passavam a constituir parte integrante das fachadas, paredes nunca mais se levantavam ou derrubavam, e nos telhados havia sempre um ou outro reparo a fazer.29

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Outros se faziam de desentendidos e não davam guarida aos pedidos do go-verno. O certo é que a fúria maior da população se lançava contra as personagens do segundo escalão, a quem denominavam "toma-larguras" por serem os que maio-res exigências faziam.30

A situação geraria impasses e conflitos maiores. É significativo o documento redigido pelos negociantes da praça do Rio de Janeiro, no qual pediam que os por-tugueses recém-chegados não ocupassem suas lojas, as quais em geral tinham um segundo pavimento que servia de moradia para os proprietários.31 Somente dez anos mais tarde a lei das aposentadorias seria suspensa. Enquanto isso, haja apo-sentos para toda a gente que assomava e que se juntava aos 60 mil habitantes da cidade. Por bem ou por mal, entre tropeços, acertos e um tanto de confusão, a corte começava a se instalar.

HORA DE MONTAR O APARELHO DE ESTADO: DE COLÔNIA A SEDE

Depois de tanta comemoração, feitas as saudações à Família Real e à corte por-tuguesa, e tomadas as providências para o alojamento de todos, era hora de executar os ajustes para o funcionamento da máquina administrativa na nova sede. Da colô-nia seriam encaminhadas ordens para todos os lugares em que persistia a domina-ção lusa, e daí para a frente tudo seria, mesmo, diferente.

Com efeito, ao se instalar na corte do Rio de Janeiro, em 7 de março de 1808, d. João deixou clara sua intenção de, a partir da colônia, fundar um novo império;32

por isso, logo pôs mãos à obra e organizou o primeiro ministério. A pasta dos Negócios Estrangeiros e da Guerra ficou com d. Rodrigo de Sousa Coutinho. Se até então as questões de política externa que envolviam o Brasil haviam sido resolvidas em Portugal, com base nos interesses metropolitanos, agora seriam articuladas na própria colônia, detalhe que alterava o sentido e o enfoque das negociações. Além disso, ao trocar Lisboa pelo Rio de Janeiro, as embaixadas e delegações estrangeiras iriam dinamizar a vida diplomática local, conferindo ao Brasil o aspecto de nação soberana. João Rodrigues de Sá e Meneses, visconde de Anadia, que em Portugal já havia ocupado o posto de secretário dos Negócios da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, foi novamente encarregado dos Negócios da Marinha. E, para tratar dos assuntos internos da colônia, escolheu-se Fernando José de Portugal, depois marquês de Aguiar, que carregava a experiência de ter sido vice-rei no Rio de Janeiro entre 1801 e 1806.33

Note-se que d. Rodrigo ocupou o cargo que era, em Lisboa, de d. Antônio Araújo de Azevedo. Essa mudança foi causada, de um lado, pela equivocada análi-se de Araújo na articulação entre os governos português e o francês e, de outro, pela visão otimista de d. Rodrigo quanto à consolidação de um novo império no Brasil; lembremo-nos ainda de sua aproximação com a Inglaterra, que lhe garan-tiu apoio durante a travessia do Atlântico. No Brasil, d. Rodrigo receberia os lou-ros por sua atuação: foi agraciado com o título de conde de Linhares, e até a sua mor-

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te, em 1811, seria a figura mais proeminente no governo. E não foi por menos: re-novador mas favorável ao absolutismo, forjava a imagem de uma monarquia mo-derna e liberal, como bem convinha a d. João.

D. Araújo ficou em segundo plano, como membro do Conselho de Estado, que, no Brasil, seria raramente consultado. Isso até 1814, quando novamente se insta-laria no centro do poder, sendo homenageado com o título de conde da Barca. Seu retorno ao ministério estava associado aos acontecimentos externos. Com a queda de Napoleão e a restauração dos Bourbon parecia que os princípios da Revolução Francesa haviam sido banidos, e o "afrancesado" Araújo poderia ser peça-chave na retomada das relações diplomáticas com a França.34 Essa estrutura da cúpula do governo, sempre fiel à monarquia absolutista, se manteve exatamente como come-çou: três ministros e o soberano, a quem cabia a palavra final. Uma estrutura rígi-da mas que garantia, em terras brasileiras, a continuidade e a implementação do modelo português de governar.

Mas voltemos ao primeiro ministério, que permaneceria ocupado em implan-tar a estrutura administrativa na nova terra. Segundo Oliveira Lima, os negócios desse gabinete foram confiados a pessoas mais preparadas do que as que cercavam o regente em Lisboa.35 Pode até ser; mas o juízo popular tem lá suas razões, e a trin-dade ministerial, logo comparada a três diferentes relógios, foi motivo de caçoada: um atrasado (d. Fernando Portugal); outro parado (visconde de Anadia) e o ter-ceiro sempre adiantado (d. Rodrigo).36

Havia, porém, um agravante. Nos escalões mais baixos, o número de funcio-nários aumentava, inflando e emperrando a máquina administrativa, já que mui-tos cargos foram criados apenas para atender àqueles que vieram com o regente e que reclamavam sua subsistência. No entender do sociólogo Raymundo Faoro, os fidalgos de alta linhagem e que dispunham de meios próprios de vida não acom-panharam, senão excepcionalmente, o regente; a maior parte,

a chusma de satélites: monsenhores, desembargadores, legistas, médicos, empregados da casa real, os homens do serviço privado e protegidos de dom João, eram vadios e parasitas que continuariam no Rio de Janeiro o ofício exercido em Lisboa: comer à custa do Estado e nada fazer para o bem da nação.37

A máquina conseqüentemente inchava e ninguém ficava na mão; conforme afirmou uma testemunha dos acontecimentos, "não houve nem uma só pessoa de tantas, que se expatriaram [...] que não recebesse a recompensa de tão grande sacri-fício, segundo a condição, préstimo e capacidade das mesmas".38 E dá-lhe imposto, pelo Brasil todo, para sustentar os gastos e a ociosidade de uma corte que queria viver na colônia com os mesmos padrões e privilégios deixados na metrópole.

Eficientes ou não, os portugueses não devem ter estranhado as funções que lhe foram destinadas, já que as instituições que existiam em Portugal foram trans-plantadas para o Brasil com igual espírito de rotina burocrática. A idéia era criar a nova sede, tomando a administração de Lisboa como espelho: "Organizar o impé-

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rio seria reproduzir a estrutura administrativa portuguesa no Brasil e amparar os desempregados. O eixo da política era o mesmo, secularmente fundido: o reino deveria servir à camada dominante, ao seu desfrute e gozo".39

Como era preciso prover toda a estrutura básica da nova sede, pode-se dizer que o primeiro ano de d. João no Brasil foi bastante ativo. O governo deu conta de instalar e fazer funcionar os setores de suas principais áreas de atuação — seguran-ça e polícia, justiça, fazenda e área militar. Mas não se tratava de começar do zero: é bom lembrar que a Coroa sempre administrou e controlou o Brasil com base no mesmo código legal que vigorava em Portugal desde o século xvn — as Ordenações Filipinas. Por isso, encontrou no Rio de Janeiro e nas demais capitanias instituições e repartições vinculadas e basicamente assemelhadas às que havia em Portugal. Afinal, até então, a administração da metrópole estendia-se à colônia em um orga-nograma hierárquico centralizado no Paço, em Lisboa, e que abrangia o governo-geral do Brasil, o governo das capitanias e o das câmaras municipais. Portanto, o processo de implantação foi tanto de sobreposição e fusão como de adequação e, sendo do interesse da Coroa, também de inovação. E tudo de acordo com as Or-denações, que respaldavam a livre imaginação do soberano, deixando bem claro que "o rei é lei animada sobre a terra e pode fazer lei e revogá-la quando vir que convém assim fazer".40

E as áreas essenciais para os negócios do Estado foram sendo instituídas e pos-tas para funcionar. A estrutura judicial já contava, no Brasil, com o Tribunal de Relação e seus desembargadores dos agravos e apelações, e seus ouvidores-gerais do cível e do crime, dependentes da Casa da Suplicação, sediada em Lisboa, que era o grande tribunal de todo o reino.41 Agora, a própria Casa de Suplicação fora ins-talada na colônia, absorvendo o Tribunal de Relação local. Outros antigos tribunais portugueses vieram também na bagagem: o Desembargo do Paço, instância supe-rior que encabeçava o organograma, e a Mesa de Consciência e Ordens, ligada ao arcebispado do Brasil.42

Já pronto para aplicar a devida penalidade a qualquer transgressão das leis estipuladas, o governo passou a organizar o cotidiano da cidade, defendendo as já fragilizadas idéias absolutistas. Que ninguém se enganasse: apesar de a abertura dos portos ter causado uma rachadura no sistema colonial, o governo continuava firme no propósito de manter seu território americano e seu trono. Por outro lado, se na Europa as ameaças mais temidas vinham do exemplo da Revolução Francesa, no Brasil, além dos ideais iluministas e daqueles dos Estados Unidos, os ventos que sopravam da própria vizinhança precisavam ser desviados. É bom lembrar que as colônias espanholas se encontravam em processo revolucionário rumo à indepen-dência: naquele exato ano de 1808, Bolívar tomava o poder em Caracas e rebeliões contra a Espanha estouravam no Equador e na Bolívia.

Por isso mesmo, e para não deixar passar, logo em 5 de abril de 1808, foi cria-da a Intendência-Ceral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil, à semelhança da que existia em Portugal desde 1760, e cujas instruções deveriam ser observadas por todas as autoridades criminais e civis espalhadas pelas cidades e vilas das capita-

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nias. A política de centralização se reafirmava em todo o território americano, ago-ra com a presença da Coroa e na própria colônia. O desembargador Paulo Fer-nandes Viana foi nomeado intendente e permaneceu no cargo até fevereiro de 1821, com amplas atribuições. Pudera, pois quase tudo era caso de polícia: a guarda da "pessoa real", a organização da guarda real e o estabelecimento de quartéis, as obras municipais, a fiscalização dos teatros e diversões públicas, a matrícula dos veículos e embarcações, o registro dos estrangeiros e a expedição de passapor-tes, a promoção e o policiamento de festas públicas, a detenção de escravos fugidos, a perseguição e a prisão de pessoas ou grupos que criticassem o governo ou a ele se opusessem.43

E era preciso cuidar igualmente das finanças, e o Erário e o Conselho da Fa-zenda, uma vez transplantados, passaram a administrar de perto as já existentes Junta da Fazenda, Alfândega, Intendência da Marinha e Armazéns Reais. Ainda em 1808, a criação do Banco do Brasil, para agilizar e atender aos interesses do comér-cio, mostrava que os dias de pasmaceira na cidade colonial tinham ficado para trás. Da mesma forma, a Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação já contava, na colônia, com Casas de Inspeção. Alterava-se apenas a denominação: seria Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação do Brasil. A simples troca da palavra "Real" por "Brasil" sugeria que a presença da monarquia seria suficiente para que a colônia alcançasse certa autonomia. Como se vê, detalhes guardavam di-ferenças importantes e a nova ordem ia se inscrevendo em todos os espaços.

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O que estava acontecendo era novo e não tinha antecedente: a colônia trans-formava-se em sede da metrópole, e a sede se transformava, aos poucos, em colô-nia. Uma enxurrada de documentos foi se acumulando para concretizar essa inver-são: decisões, legislação, papéis diplomáticos e todos os documentos produzidos pelas repartições do real serviço. Era preciso publicá-los, mas, até então, a monta-gem de oficinas tipográficas na colônia era proibida e as tímidas iniciativas nesse sentido tiveram existência efêmera, já que prontamente reprimidas.44 No entanto, agora a história era outra e, em 13 de maio de 1808, dia do aniversário de d. João, foi criada a Impressão Régia. Além de publicar a documentação oficial, o decreto previa a impressão de todas e quaisquer obras, sobretudo daquelas que ajudassem a divulgar a imagem da própria monarquia. O nome de batismo, Impressão Régia, foi sendo alterado, acompanhando de perto os acontecimentos políticos: em 1815, ano da elevação da colônia a Reino Unido de Portugal e de Algarves, passou a Régia Oficina Tipográfica; em 1818, d. João era aclamado rei, e a oficina mudou o nome para Tipografia Real. Peça-chave na nova arquitetura que se montava, a Impressão faria as vezes da "propaganda de Estado": sem ela, mal se tomaria conhecimento, neste vasto território, da quantidade de mudanças que ocorriam naquele exato momento e das outras tantas que estavam por vir.

Os prelos, que pertenciam ao governo e vieram de Lisboa com a bagagem de d. Antônio Araújo de Azevedo, haviam sido acomodados no andar térreo da casa

I

DECRETO D A I N S T I T U I Ç X O D A N O V A J U N T A .

Q U E R E N D O animar oEf t abe l ec imen toda Imprefsão R e g i a , creada por Alvará de vin-te e quatro de Dezembro de mil fetecentos feíTema e Oito; e defe jando promover os t l te is . f ins , a que a meíma ire dei l inada, pa-ra aeievar com vantagem pública g r á o d e p r o f p eri dade ,quepa i I áconlègu

fazendo publicar aqueilas O b r a s , que mais contribuão á in í t rucção , e gloria da N a ç ã o , fo tmando Arr if tas babe is , que fe perpetuem em cada liuma das C l a / f e s , que com-põem o meCno Ef t abe iec imen to ; e procrirando confeguir eftes f ins com a mais fevera economia: Sou fervido D e -terminar, que íè ponha em exa&a , e r igoro l i obfervan-ciatudo quanto diípõe o fobrcd i toAlvarâ devinre equa-tro de Dezembro de mil fetecentos felTenta e o i to , ex-cc-pto naquillo que vai aqui alterado pela forma íèguime. I. A D i r e c ç ã o encarregada d o r c g i m e n , e adminiítração dalmpre&ao R e g i a , quanto apar te economica, e admi -mürai iva, fera compoila das feguintes P e f í b a s , de hum Diraílor G e r a l , para cnjo l u g a r n q j n e i o oDesembarga-dor Domingos Monteiro de Albuquerque e A m a r a l , e tledous feguntlos D i r e d o r e s , que lerao J o ã o Guilherme Cihriítiano M u t l e r , e AJexandre Antonio das N e v e s ,

9. Decreto da instituição da nova junta da Impressão Régia, 29 de dezembro de 1809. FBN

10. D. João VI, que cada vez mais se adaptava à vida nos trópicos. FBN

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de Araújo, à rua do Passeio, e ali mesmo começaram a funcionar. Na verdade, era muito pouco para a gigantesca tarefa que se apresentava logo de início: a veicula-ção de todas as medidas do novo Estado. A Impressão Régia ficou subordinada à Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, portanto, coube ao ministro d. Rodrigo de Sousa Coutinho a responsabilidade de elaborar instruções para seu funcionamento.

Mas o liberalismo da monarquia portuguesa tinha limites e, entre as atribui-ções da junta diretora, constavam o exame de tudo o que se mandasse publicar e o impedimento da impressão de papéis e livros cujo conteúdo contrariasse o gover-no, a religião e os bons costumes. Era a censura colada à Real Tipografia, preocu-pada em impedir a divulgação de idéias que ameaçassem a já frágil estabilidade da Coroa portuguesa. A medida gerou outro decreto, de 27 de setembro de 1808, no qual o príncipe regente transfomava o Desembargo do Paço em organismo censor no Brasil, reforçando mecanismos já existentes na própria metrópole. Com a nova ordem, nenhuma obra poderia ser retirada ou despachada das alfândegas brasilei-ras sem a devida licença.45

Para exercer tal função fiscalizadora, foram escolhidos censores régios dentre os homens de confiança de d. João. É bom lembrar que, no Estado absolutista, o cargo público carrega status e prestígio, além de chamar para si estima e recompen-sa por parte do soberano. Portanto, para alcançar tais objetivos os leais servidores de sua majestade não poupavam esforços, nem mesmo quando se tratava de cer-cear e tolher a opinião pública. Por isso, a posição de censor foi ocupada por alguns dos mais ilustres e letrados súditos de d. João: além do visconde de Cairu, Mariano José Pereira da Fonseca, frei Antônio de Arrábida, Francisco Garção Stockler e frei Inocêncio Antônio Neves de Portugal. Não é o caso de adentrarmos a biografia de cada um deles; basta mostrar como, ao ocuparem um cargo público desse porte, agiam de modo a se valorizar diante do príncipe, fazendo de seu conhecimento um instrumento para a autopromoção.46

As obras que o governo mandava publicar chegavam à oficina trazendo, ao pé da página de rosto, a indicação: Por Ordem de S. A. R. No caso de terem sido enca-minhadas pelos próprios autores, eram antes submetidas aos censores e a mensa-gem era: Com Licença de S. A. R. ou apenas Com Licença. Depois, com a censura pas-sando para o Desembargo do Paço, mencionava-se a sua autorização: Com Licença do Desembargo do Paço.47

E com o aumento dos trabalhos, logo em 1809, ali, nas Oficinas da Impressão Régia, foi instalado outro prelo, de madeira e já construído no Rio de Janeiro. Em 1811, além do estabelecimento de uma fundição, a Impressão anexou a Real Fábrica de Cartas de Jogar. O jogo do baralho não era novidade na colônia, apesar de sua fabricação ser monopólio da Coroa. E que, em 1770, um alvará régio havia concedido privilégios e isenções àqueles que, na Bahia, se ocupassem em fabricar as cartas de jogar. Assim, as primeiras prensas para reproduzir as figuras dessas car-tas, abertas em chapas de madeira, chegaram ao Brasil provavelmente vindas de Lisboa. O negócio era lucrativo, mas sem a licença do governo era considerado

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11. Clichês xilográficos das cartas de jogar. FBN

crime e prontamente reprimido. Os falsificadores, porém, não desistiam e, para a estampa das cartas, desenvolveram os primeiros tórculos e as primeiras xilogravu-ras preparadas no Brasil.48

A Impressão Régia já nasceu com o trabalho atrasado. Uma pilha de docu-mentos expedidos pela secretaria de d. Rodrigo foi reunida e impressa com o títu-lo Relação dos Despachos Publicados na Corte pelo Expediente A Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra no Faustíssimo Dia dos Annos de S. A. R. O Príncipe Regente N. S. — E de todos os que se têm expedido pela mesma Secretaria desde a feliz chegada de S. A. R. aos Estados do Brasil. Para ter uma idéia do traba-lho acumulado e do que se juntou no percurso, basta dizer que, até 1822, foram publicados 1427 documentos oficiais.49

Mais: pequenas brochuras, folhetos, opúsculos, sermões, prospectos, obras científicas, literárias, traduções de textos franceses e ingleses versando sobre agri-cultura, comércio, ciências naturais, matemática, história, economia política, filo-sofia, teatro — óperas e dramas —, romance, oratória sacra, poesia, literatura infantil, enfim, ali se imprimia de tudo um pouco, desde que tivesse passado pela peneira da censura. Foram 720 títulos, até 1822.50 Só para documentar as festas reais já se consumia uma imensidão de material: a cada aniversário, natalício, exé-quias, ou qualquer que fosse o motivo da comemoração, montanhas de papel eram impressas, com o serviço de divulgar os rituais, bem festejados, da monarquia.

Também de seus prelos saiu o primeiro periódico brasileiro: a Gazeta do Rio de Janeiro. Seu número inaugural circulou num sábado, 10 de setembro de 1808. A

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12. Gazeta do Rio de Janeiro. Ano 1.

Número 1. Sábado, 10 de setembro de 1808. FBN

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palavra "gazeta", que compunha o título, era muito utilizada em periódicos euro-peus, assim como a prática de adotar um lema que transmitisse a filosofia do jor-nal. Para a Gazeta optou-se por uma frase de Horácio em latim — Doctrina [...] vim promovert isitam, Rectiques cultus pectora roborant "A doutrina promove a força inata e os cultos corretos fortalecem os peitos", o que parece sinalizar não só os vínculos existentes entre o periódico e o Estado, como o fato de o redator ser um frei franciscano.51 Também suas dimensões seguiam os padrões dos jornais estran-geiros: 19 x 13,5, com formato in-quarto. Tinha quatro páginas e originalmente seria semanal, mas a partir do segundo número passou a ser publicado duas vezes por semana. Produto de um órgão do governo, o periódico era redigido pelo frade Tibúrcio José da Rocha, oficial da Secretaria de Negócios Estrangeiros e da Guerra. Estava tudo em casa: o maquinário tipográfico, a direção e a redação. Com essa ori-gem, a Gazeta do Rio de Janeiro seria o veículo certo para publicar feitos da mo-narquia que contribuíssem para expandir a imagem que lhe convinha. Seu conteú-do não passava da reprodução de atos oficiais, e de elogios e reverências à Família Real. Até 1814, acompanhava-se o andamento da guerra que se desenrolava na Eu-ropa, sempre dando destaque às vitórias contra Napoleão. Copiado sobretudo de matérias publicadas no estrangeiro, o conteúdo das notícias da Gazeta não es-condia parcialidades: os franceses eram "pragas que assolavam a Europa" e a saída de d. João, um plano certeiro. Foi o viajante Armitage quem melhor definiu o jor-

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nal: em suas páginas, o Brasil parecia um paraíso terrestre, onde ninguém reclama-va de nada.52

Mas nem todos se iludiam. "Gastar tão boa qualidade de papel em imprimir tão ruim matéria, que melhor se empregaria se fosse usado para embrulhar man-teiga" era a queixa de Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça, que era do ramo. Brasileiro, morou em Portugal, onde foi diretor da Junta da Imprensa Régia em Lisboa. De funcionário, passou a inimigo do governo português; acusa-do de ser maçom, foi perseguido pela Inquisição e detido de 1802 a 1804, quando fugiu da prisão e foi para a Inglaterra. Três meses antes da oficial Gazeta do Rio de Janeiro, Hipólito da Costa lançou o seu Correio Braziliense, em Londres. O perió-dico era mensal e durou até 1822. Sem papas na língua, muito bem informado, livre de censura e com inspiração iluminista, Hipólito da Costa redigia notícias, re-sumos analíticos, comentários e críticas sobre os acontecimentos políticos da época, sempre destacando os erros e os acertos do governo português. O Correio foi proi-bido de entrar no Brasil, mas circulava clandestinamente capitanias afora. Hipólito, porém, era um monarquista que pregava reformas e a união monárquico-consti-tucional do Império luso-brasileiro, e só aderiu mesmo à causa da independência em julho de 1822, quando o movimento já ia adiantado.53

Nas páginas do Correio Braziliense podia ser encontrado um texto bem-humorado, opinativo e que instava à reflexão sobre a instalação do governo portu-guês na colônia:

13. Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça. 1774-1823. Editor do

famoso e crítico jornal Correio Braziliense. Gravura de G. H. Harleu, FBN

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O governo do Brasil arranjou-se exatamente pelo Almanaque de Lisboa, sem nenhu-ma atenção ao país em que se estabelecia. Mostra, por exemplo, o Almanaque, em Lisboa, um Desembargo do Paço, um Conselho da Fazenda, uma lunta de Comércio, etc.; portanto, quer o Brasil careça destes estabelecimentos, quer não, erigiram-se no Rio de Janeiro, logo que a corte ali chegou, um Desembargo do Paço, um Conselho da Fazenda, uma Junta de Comércio, etc. Precisa-se, porém, pela natureza do país, de um Conselho de minas, uma Inspeção para a abertura de estradas, uma Redação de mapas, um Exame de navegação dos rios, e muitas outras medidas próprias do lugar. Mas, nada disso se arranja, porque não aparecem tais coisas no Almanaque de Lisboa.54

Entretanto, apesar dos modelos de organização administrativa terem sido im-portados antes mesmo de a Real Esquadra chegar, as peculiaridades locais iam sendo integradas à nova pretensão de civilidade. Não era fácil familiarizar-se com tantas novidades e o governo se viu, também, às voltas com problemas gerados pela presença e a cultura dos africanos e dos diversos grupos indígenas espalhados pe-la colônia tropical. Uma boa mostra ocorreu logo em maio: o príncipe regente, por meio de carta régia, ordenava ao governador de Minas Gerais que iniciasse uma guerra ofensiva aos índios antropófagos botocudos que vinham atacando diversos pontos da capitania:55

Eu Príncipe Regente vos envio muito saudar. Sendo-me presentes as graves queixas que têm subido à Minha Real Presença sobre as invasões que diariamente estão prati-cando os índios botocudos antropófagos em diversas, muito distantes partes da mesma capitania de Minas Gerais [... ] e onde não só devastam todas as fazendas sitas naquelas vizinhanças e têm até forçado muitos proprietários a abandoná-las com grave prejuízo seu e da Minha Real Coroa, mas passam a praticar as mais horríveis e atrozes cenas da mais bárbara antropofagia, ora assassinando os portugueses e os índios mansos, por meio de feridas de que sorvem depois o sangue, ora dilacerando os corpos e comendo os seus tristes restos; tendo-se verificado na Minha Real Presen-ça a inutilidade de todos os meios humanos pelos quais tenho mandado que se tente a sua civilização e o reduzi-los a aldear-se e gozarem dos bens permanentes de uma sociedade pacífica e doce, visto que os pontos de defesa em uma tão grande e extensa linha não podiam bastar a cobrir o país: sou servido por estes e outros justos motivos, que ora fazem suspender os efeitos de humanidade que com eles tinha mandado pra-ticar, ordenar-vos que desde o momento em que receberdes esta minha carta régia, deveis considerar como principiada contra estes índios antropófagos uma guerra ofensiva [...] 13 de maio de 1808.

O impacto que o cenário e os habitantes do Brasil causavam aos recém-che-gados era forte, e termos como bárbara antropofagia, canibalismo, atrocidades, in-

fectados... revelam um verdadeiro choque de civilizações e o medo do desconheci-do. Mas não só os indígenas — sobretudo os botocudos — assustavam; também os negros, com seus hábitos e festas, causavam estranhamento. O marquês de Borba, por exemplo, achava que a nova terra representava o dia do Juízo: "A respeito dos

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pretos, não há nada que se possa comparar, parece isto uma Babilônia infame...".56

Em inícios do século xix, na Bahia, Luís dos Santos Vilhena condenava a excessiva diversão dos negros:

Não parece ser de muito acerto o tolerar que pelas ruas e terreiros da cidade façam multidões de negros de um e outro sexo os seus batuques bárbaros a toque de muitos e horrorosos atabaques, dançando desonestamente canções gentílicas, falando línguas diversas e isto com alaridos horrendos e dissonantes que causam medo e estranheza, ainda aos mais afeitos na ponderação das conseqüências que dali podem provir.37

E havia, evidentemente, o medo de rebeliões negras, a exemplo do que ocor-rera em outras colônias americanas.

O fato é que não se transmigravam instituições e ponto. Cada "tradução" im-plicava inovação, e os trabalhos seguiam nesse movimento, que levava a muita có-pia, somada a uma boa dose de imaginação. Além do calor, dos insetos, dos índios e dos negros, outras dificuldades surgiam. Não bastasse a questão das aposentado-rias, os comerciantes que já moravam no Rio de Janeiro, a maioria deles portugue-ses, não aceitaram de bom grado a presença dos compatriotas, que, privilegiados pela Coroa, foram ocupando seus lugares. O governo percebeu que precisava ame-nizar as tensões e agradar os comerciantes lesados; para a preservação da monar-quia era preciso, também, atrair o apoio dos proprietários de terras, que sempre garantiram a produção agrícola para exportação. A isca já era bem conhecida: nada como um bom título de nobreza ou outra distinção qualquer. Sem perda de tempo, foi criada a Câmara do Registro das Mercês, e, em 1810, a Corporação de Armas — para organizar com eficiência o nascimento de uma nobreza e de uma heráldica em terras brasileiras. Nobres é que não iriam faltar para compor uma corte nos trópi-cos. D. João concedeu, até seu retorno a Portugal em 1821, nada menos que 254 títulos: fez onze duques, 38 marqueses, 64 condes, 91 viscondes e 31 barões.58 Após a instauração da Ordem da Espada e dos títulos de grã-cruzes, comendadores e cavaleiros, o príncipe foi ainda mais pródigo: 2630 cavaleiros, comendadores e grã-cruzes da Ordem de Cristo; 1422 da Ordem de São Bento de Avis e 590 da de Santiago.59 Afinal, onde há rei, há nobreza, e era preciso semear a nova terra com tudo o que pudesse dar lastro e continuidade à monarquia. Assim, ao lado da no-breza titulada fora do país surgia uma nobreza da terra, ávida pelos mesmos sím-bolos de distinção europeus.

Até agora vimos como as primeiras ações do governo se voltaram para a estru-turação do Governo, da Justiça, da Segurança, do Tesouro e da aproximação com a elite da terra. Faltava criar, também naquele momento, uma estrutura de defesa para dar suporte àqueles que garantiriam a integridade do reino, formando-os e instruindo-os. Daí a criação do Arquivo Militar, para a elaboração e guarda de car-tas e mapas do Brasil e dos domínios ultramarinos. Ao mesmo tempo que o gover-no instalou a Fábrica de Pólvora, o ministro d. Rodrigo usou de seu poder para fundar a Academia da Marinha. Situada no hospício do mosteiro de São Bento, foi

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organizada com todos os instrumentos, livros, planos e cartas, modelos, máquinas que possuía em Portugal, e logo seria montado um laboratório astronômico. Em 1810, com a Artilharia e Fortificação, foi criada a Academia Militar a fim de garan-tir o ensino das ciências matemáticas, físicas, química, história natural, técnicas de guerra e fortificações e defesas.6"

TOMANDO BANHO DE CIVILIZAÇÃO

No entanto, foi após 1811 que se abriram as comportas para um bom banho de civilização. Afinal, uma corte que se preze não pode viver sem os seus ícones de distinção, grandeza e civilidade. Era preciso dotar a cidade de símbolos que representassem a visão iluminista do governo, e a cidade do Rio de Janeiro deve-ria estar apta para cumprir o seu papel de sede da monarquia e cartão-postal do Império.

Para começar a inverter a imagem que se tinha da colônia americana, nada melhor do que um laboratório destinado a experimentos científicos, tão ao gosto da época. A idéia de construir um horto botânico não era nova; a Família Real já idea-lizara, ainda em Portugal, seu Jardim Botânico, localizado no Paço da Ajuda, onde, de acordo com o espírito do tempo, desenvolviam-se experiências ou simplesmen-te colecionavam-se exemplares. Daí à elaboração de um horto botânico na corte do Rio de Janeiro, localizado no parque da lagoa Rodrigo de Freitas e desenvolvido como área de aclimatação e ostentação de especiarias e plantas "de proveniência exótica", foi um pulo só.61 Foram plantados pés de cravo-da-índia, pimenta-do-reino, cana-de-caiena, árvores de cânfora, canela, cinamomo, noz-moscada e, entre as frutíferas, a fruta-pão, a fruta-do-conde, a lichia (da China), mangueiras, jaquei-ras, jambeiros, caramboleiras, amoreiras e outras mais. Das Antilhas veio a planta mater da Oreodoxa oleracea, a palmeira-real, que d. João plantou com suas próprias mãos. Também ali, em 1810, se iniciou a experiência da cultura do chá com plantas importadas de Macau e, para o seu trato, foi contratada uma colônia de cerca de duzentos chineses. Em 1819, com o nome de Real Jardim Botânico, o parque da la-goa Rodrigo de Freitas foi anexado ao Museu Nacional e aberto ao público. Quem não achava muita graça no horto eram os estrangeiros, ávidos por conhecer a flora tropical e menos interessados nessa domesticação e importação de espécimes.62 Mas não se agrada a todos: se para os viajantes o Brasil era um "grande laboratório", para as novas elites recém-chegadas era preciso investir na terra.

Cultura e arte não podiam mesmo faltar. A Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios foi aberta em 1816;63 já o Museu Real foi criado, mediante decreto de 6 de junho de 1808, com a função de "estimular os estudos de botânica e zoologia no local".64 Se a primeira iniciativa visava dotar uma representação técnica à nova sede, a segunda intentava trazer um saber científico ao próprio local. Contudo, o museu — para além da idéia — não possuía acervo, e por isso foi aberto com uma pequena coleção doada pelo próprio d. João e composta de peças de arte, gravuras,

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1. Terreiro do Paço no século XVII: o grande centro político, econômico e social. Óleo de Dirk Stoop, MC

2. Cortejo real no Terreiro do Paço. Anônimo, MC

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7. Ex-voto a Nossa Senhora da Estrela. Representação das ruínas provocadas pelo terremoto, enquanto alguns homens tiram com sucesso a criança que ficou soterrada. Anônimo, MC

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8. Perspectiva da cidade arruinada. Vê-se um carro puxado por bois carregando tijolos, que representam a reconstrução da cidade. Â esquerda

destaca-se a figura do rei d. José assistindo a tudo. Gravura de P. Novelli, MC

DO TERREMOTO À RECONSTRUÇÃO DE LISBOA

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POMBAL E SEUS PLANOS

11. Retrato de Sebastião José de Carvalho e Melo, marquês de Pombal, apoiando os braços nos projetos de reconstrução da cidade de Lisboa. Atrás do estadista vê-se a imagem da estátua

eqüestre de d. José I. Ao fundo, uma vista de Belém, com destaque para o Mosteiro dos Jerônimos. Óleo sobre tela de anônimo. Esta peça é uma versão' reduzida do quadro pintado de L. M. Vanloo e J. Vernet em 1766 na cidade de Paris e oferecido ao Conde

de Oeiras, filho do Marquês de Pombal. MC

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13. Imagem que representa a tentativa de regicídio que ocorreu na noite de 3 de setembro de 1759 contra d. José I: malfeitores X anjos que protegem a monarquia.

Desenho de Francisco Vieira de Matos, MC

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14. O marquês de Pombal é retratado com a Cruz de Cristo, tendo livros e projetos a emoldurá-lo. A propaganda política faz de Sebastião José de Carvalho e Melo um grande estadista.

Joana do Salitre, MC

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O HUMOR E A CRISE POLÍTICA PORTUGUESA

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19. The convention of Sintra: a Portuguese gamble for the amusement of John Buli. Brincadeiras com relação à diplomacia portuguesa. Desenho de Gerorg Montard, BNL

20. Spanish Buli fight or the Corsican Matador danger. Caricaturas políticas ironizam a frágil situação portuguesa. Desenho de James Gillray, BNL

21. Grand kitchen of Europe. British cookery. Em nova caricatura, a Inglaterra requenta as demais nações. Anônimo, BNL

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22. Alegoria às virtudes de d. João VI: idealização diante de uma frágil situação política. Óleo de Domingos Antônio Sequeira, PNQ

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30. Vista da Praça do Rossio, por ocasião da chegada da Junta Provisional do Governo de Lisboa, no dia 4 de outubro de 1820: saudando a revolução.

Gravura de Antônio Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado, MC

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objetos de mineralogia, artefatos indígenas, animais empalhados e produtos natu-rais. Tratava-se, portanto, menos de um museu de etnografia — como pretendia ser — do que um "gabinete de curiosidades", com um pouco de tudo, sem consti-tuir-se ainda em instituição científica.65 Mas, se o negócio era bem representar, mu-nição não faltava. Artistas que viriam, cientistas que seriam contratados e, ainda, livros, muitos livros.

É no bojo dessas medidas que se inaugura a Real Biblioteca, que perdera a pri-meira viagem em 1807, e chegara um pouco atrasada — mas que abriria as portas ao público em 1814.66 Assim, a imagem da cidade ganhava um novo tempero e re-cebia, aos poucos, ares de metrópole, graças à presença da Família Real.

Havia até quem acreditasse que os poderes divinos da realeza seriam tão ex-traordinários a ponto de domar o exuberante clima tropical. Pela boca de um con-temporâneo, a cidade, antes da chegada de d. João, era sujeita a

meteoros elétricos com periodicidade curta e irregular e diariamente, sobretudo no verão, notava-se constantemente ao meio-dia em ponto mudanças atmosféricas. O tempo toldava-se e depois de insólito calor e do clarão de relâmpagos maiores ou menos visíveis e extensos, apareciam trovões mais ou menos fortes e prolongados, às vezes, ora copiosa chuva, ora ventania e chuva, e de vez em quando tudo ao mesmo tempo. O povo a isto acostumado desde longos anos, raramente saía à rua nessas horas e anunciava as visitas da tarde com a significativa frase "para depois da trovoada". Pois bem, desde 1812 em diante e até hoje estes fenômenos meteóricos têm ido pouco a pouco a escassear-se.67

Convenhamos: para um futuro rei, era tarefa bem mais gloriosa controlar a exuberância da natureza tropical do que ocupar-se da enfadonha montagem de um aparelho de Estado.

Mas nem só de arte vivia uma sede de império. Um dos fatos que feriam mais profundamente a imagem do Rio de Janeiro e atemorizava portugueses e estran-geiros eram as doenças que grassavam pela colônia — e, como vimos, médicos por aqui eram raros. Não por coincidência, já em 1808, foi impresso o primeiro traba-lho médico no Brasil, por encomenda de d. João e de autoria do físico-mor Manuel Vieira da Silva. O objetivo era examinar as causas capazes "de conduzir muita gente à sepultura". A análise do médico reunia um conjunto de razões: o clima quente e úmido; o morro do Castelo, que impedia a passagem equilibrada dos ventos; as águas estagnadas, os enterros de cadáveres de modo e em lugar impróprios — qualquer substância em estado de putrefação daria origem a gases pestilentos que levariam "a todos os viventes os preliminares da morte". Ainda, a prejudicar a saúde pública, havia a carne verde malconservada, a falta de medicamentos, o charlata-nismo. As soluções: demolir o morro do Castelo, criar lazaretos para quarentenas, aterrar pântanos, construir cemitérios, melhorar a localização dos açougues.68 Tra-tava-se de decisão política e logo d. João baixaria um alvará sobre medicamentos, dirigido aos boticários. A ordem era atualizar e tabelar os preços, controlar as ven-das e recolher as devidas taxas.69

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Contudo, conforme o tempo passava e a estada do príncipe regente se esten-dia, foram tomadas decisões que representaram o início da estruturação das insti-tuições de saúde. Em 1811 foi criado o Instituto Vacínico, e instalado um melhor sistema de administração dos hospitais militares. Um ano depois já havia uma Junta Médica Cirúrgica e Administrativa do Hospital Real Militar da Corte, e em 1813 foi aberta a Escola Cirúrgica, com sede no Hospital da Misericórdia.70

Mas toda moeda tem duas faces e, de tudo o que foi dito, falta ainda um deta-lhe, importante para sustentar a presença e o aparato da corte, das repartições e dos funcionários da administração, os habitantes da terra tiveram de pagar um bom preço, e em todas, as partes da colônia sentiu-se o assalto, que beneficiava poucos. Parece que a metade do dinheiro circulante em Portugal e os 80 milhões de cruza-dos em ouro e diamantes que vieram nos baús da família real em sua apressada via-gem não deram nem para o começo. Até o Banco do Brasil, instituído para auxi-liar o comércio e a indústria recém-liberados, quase que apenas custeava a despesa real, os tribunais, o exército, as pensões e soldos.71

E lá vieram abundantes impostos e taxas: direitos de saída cobrados nos por-tos, antes encaminhados a Portugal; taxa por arroba de tabaco de rolo ou corda e por arroba de algodão exportado; tributo da décima em todos os prédios urbanos das cidades e vilas; além da já existente sisa na venda de bens de raiz, que era de 10%, foi imposta uma meia sisa ou 5% nas vendas de escravos; imposição de taxa nos livros diário e mestre de todos os negociantes; imposição de taxa por libra de carne verde; fixação dos emolumentos da Mesa de Consciência e Ordens; contri-buição da Junta do Comércio. A organização do Correio e da Polícia produziu também novas fontes de rendas. E mais: aumento dos direitos de entrada de escra-vos novos, por cabeça, e dos direitos de ancoragem, baldeação, farol e armazena-gem das alfândegas; taxa por arroba de charque e por cabeça de gado exportado em navio estrangeiro e um pouco menor em bandeira nacional e, ainda, taxa por pipa do vinho do Porto e Madeira e, mais alta, a do vinho estrangeiro, cuja entrada esta-va proibida desde 1700.72

Os encargos eram pesados e crescente a insatisfação da população. Para pio-rar, não era possível esconder o desperdício que havia na Casa Real. A despesa da ucharia tornou-se símbolo de esbanjamento. Bom exemplo é a ração diária consu-mida pela aia do neto de d. João, o infante d. Sebastião: três galinhas, 10 libras de carne de vaca, meia de presunto, dois chouriços, 6 libras de porco, 5 de pão, meia de manteiga, duas garrafas de vinho, 1 libra de velas, 1 de açúcar, café, frutas, mas-sas e folhados, legumes, azeites e outros temperos.73 Só no ano de 1818 consumi-ram-se diariamente 620 aves no Paço; isso para não falar das cocheiras de São Cristovão, onde se encontravam uns trezentos cavalos e muares.74 Não havia di-nheiro que chegasse e prodigalidade que não se fizesse, à custa alheia.

Se o Brasil lucrava politicamente com a trasladação da corte, o preço interno foi alto. Os impostos subiam sem parar, enquanto a máquina, já suficientemente grande,75 se agigantava. Ao mesmo tempo, a extensão territorial e a precariedade das vias de comunicação contribuíam para diluir a autoridade real, na proporção

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em que se essa se distanciava da capital, seu grande centro irradiador. E Hipólito continuava achincalhando as nossas instituições, que já vieram pesadas de Portugal e que aqui se tornaram, em sua opinião, inúteis. É claro que não se deve exagerar, ou ficar colado à opinião dos testemunhos contemporâneos. No entanto, é preciso ponderar, como mostra o historiador Arno Wehling, que, ao contrário do que se tem afirmado, um arcabouço político-administrativo estruturado já existia na colônia, e a transferência das secretarias do Estado para o Brasil apenas completou um processo iniciado anteriormente.76

Assim pensa também Evaldo Cabral de Mello, para quem "a construção impe-rial não passou de figura retórica, com que a Coroa bragantina procurou desfazer a penosa impressão criada na Europa pela sua retirada súbita para os dominios americanos, apresentando-a como medida de alto descortino". Segundo esse histo-riador, não só os ministros não eram tão bem preparados como se dizia, como as ins-tituições não passavam de "mudança de Almanaque". A conclusão seria que a única beneficiária teria sido a sede da corte, "enquanto as capitanias se veriam adicional-mente taxadas de modo a financiar o embelezamento da capital para fazê-la acei-tável aos cortesãos e funcionários públicos de extração reinol".77

No entanto — e a despeito dos usos, por certo, diferenciados e desiguais da máquina de governo —, não há como negar que da chegada da corte ao Rio de

14. Planta do Rio de Janeiro especialmente encomendada por d. João "no ano de 1808, feliz e memorável época da chegada à dita cidade, na Impressão Régia". FBN

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Janeiro até a Independência, em 1822, a aceleração político-administrativa que se impôs à colônia resultou na construção de um caminho que, se não era de todo previsível, era ao menos irreversível. No meio de tanta novidade, não passavam despercebidos o desenvolvimento inesperado do território americano e certa in-versão de posições. Era a metrópole penetrando na colônia e mesclando-se a ela, que já se transformava em metrópole e em breve caminharia por seus próprios pés. Quase-Europa, quase império, aí estavam os impasses de um local que, não sendo exatamente metrópole, aos poucos deixava de ser colônia, ao menos no sentido mais tradicional do termo.

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C A P Í T U L O

O DESTINO DA BIBLIOTECA EM TERRAS BRASILEIRAS

1. Um estudante e sua carteira. FBN

Ora, sendo o estabelecimento das bibliotecas públicas um dos meios mais aptos, e eficazes para o progresso da literatura, aumento das artes, e difusão das ciências, achando reunido em um só lugar quase tudo o que o espírito humano em todas as idades, e em todos os países, tem produzido de melhor, e de mais apurado gosto nas belas-letras, nas artes liberais, e nas sublimes ciências, que bene-

fício, que máximo benefício, não é o que Sua Alteza Real fez aos habitantes do Rio de Janeiro, franqueando .a sua Real Biblioteca, e mandando abrir em benefício dos seus vassalos esta inexaurível

fonte de conhecimentos, este inapreciável tesouro de riquezas inte-lectuais?

Padre Perereca

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LIVROS AO MAR

Entre as pratarias, jóias, louças, livros, mapas, moedas, documentos de Estado e outros bens de valor que se conseguiu juntar nos navios que deixaram Lisboa em novembro de 1807, não constava uma remessa importante: os caixotes de livros, documentos, gravuras e outras preciosidades da Real Biblioteca. Na pressa, acaba-ram ficando abandonados no porto, e lá permaneceram, debaixo de sol e chuva, até retornar ao Palácio da Ajuda. Enquanto isso, d. João, em meio a tantos contratem-pos, só tomaria conhecimento do infortúnio algum tempo após sua chegada ao Rio de Janeiro.

E certamente essa não seria sua maior preocupação. Já sabemos que o prínci-pe se dedicara desde sua chegada a montar uma base de governo na nova sede do reino, e em meio a esses preparativos tomara conhecimento de que a situação em Portugal se agravara. No início o general francês Junot governara junto com o Conselho de Regência deixado por d. João — mantendo estruturas administrativas, judiciais e fiscais, com algumas poucas alterações —, e até mesmo prometera liber-dade, mas seu discurso em l2 de fevereiro de 1808 mudaria repentinamente de tom. A dinastia de Bragança estava destituída — ao menos segundo a ótica francesa —, e Portugal ficava sob o controle das tropas de Napoleão e de seu Conselho. E mais: nessa mesma data, Junot exigiu que Portugal pagasse à França uma contribuição de guerra, estipulada em 100 milhões de francos. Todos os bens pertencentes à rainha e ao príncipe regente seriam seqüestrados, assim como as propriedades e posses dos fidalgos que acompanharam o príncipe quando este abandonou o país. Por fim, todo o ouro e a prata das igrejas, capelas e confrarias da cidade de Lisboa foram con-duzidos à Casa da Moeda, e as poucas mercadorias inglesas restantes, confiscadas.1

Por seu lado, d. João, longe do fogo dos franceses e contando com o poderio bélico dos ingleses, sentiu-se seguro para tomar medidas que evitara por longo tempo: em Ia de maio de 1808 abandonou a política de neutralidade e declarou guerra a Napoleão. Em seu manifesto, o príncipe abriu mão de seu contumaz tom conciliatório e denunciou os tratados assinados com a França, nunca respeitados. Autorizava "os seus vassalos para fazer guerra por mar e por terra aos vassalos do Imperador dos Franceses". Afirmava ainda não depor as armas sem o acordo de "seu antigo e fiel aliado S. M. Britânica" e sem que "o Imperador dos Franceses tiver satisfeito sobre todos os pontos às justas reclamações de S. A. R. o príncipe regen-te de Portugal, e abandonar o tom absoluto e imperioso com que rege a Europa oprimida, e restituir à Coroa portuguesa o que invadiu no meio da paz e sem pro-vocação".2

Ao mesmo tempo, em Portugal, até antes da declaração formal de guerra, começara uma reação tímida e desorganizada. E não poderia ser diferente, já que o Exército português fora em parte colocado na reserva, em parte enviado para a França por ordem de Napoleão, e em parte engrossara voluntariamente as forças francesas. Mas, com o passar do tempo, a sublevação foi ganhando corpo. No Porto, em junho — na mesma época que se tomou conhecimento em Portugal do

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Manifesto de d. João —, instalou-se uma onda de revoltas que culminou com a for-mação de um governo provisório. E a rebelião espalhou-se pelo país, com exceção de Lisboa. Os revoltosos logo pediram auxílio à Inglaterra, e em 11 de agosto de 1808 tropas inglesas desembarcaram no Porto, sob o comando de sir Arthur Wellesley, futuro duque de Wellington. Junot tentou impedir o avanço das tropas inglesas e com o pouco que restara do Exército português rumou em direção a Lisboa, sofrendo derrotas em Roliça, em 17 de agosto, e em Vimeiro, no dia 21 do mesmo mês. Ao general francês sobrou apenas a rendição ao Exército inglês; a Restauração se deu em 15 de setembro, sem contar com a presença de representante português. Uma Junta de Governo foi, então, formada e auxiliada na defesa pelo general inglês Willliam Beresford, nomeado marechal-de-campo e comandante-em-chefe das tropas portuguesas.3

Mas a essas alturas o conflito já deixara marcas profundas na vida de Portugal. A agricultura ficou à míngua, pois os camponeses mais jovens foram forçados a incorporar-se às tropas organizadas pelos ingleses, e os proprietários de terra mais abastados abandonaram suas terras e partiram para os centros urbanos. Como se não bastasse, a produção agrícola fora requisitada pelos franceses para a alimen-tação das tropas, e confiscadas as taxas das cidades como tributo de guerra. Para onde se olhasse tudo parecia em ruínas: fábricas destruídas; igrejas, conventos, mu-seus e palácios saqueados e usurpados de suas riquezas.

Em 1808, tão logo expulsos os franceses e restaurado o reino, começaram as demonstrações de penúria. Vários empregados da Casa Real escreveram ao príncipe pedindo auxílio para contornar a situação, como os criados da Real Cavalariça, que estavam desde dezembro de 1807 sem seus vales mensais:

E como na desgraça geral foram os suplicantes lastimosamente envolvidos que se acham na mais urgente necessidade sem nenhum recurso uns pelas suas avançadas idades outros pelas numerosas famílias. Recorrem a grande Piedade de S. A. R. para que se digne ordenar que na intendência da mesma real cavalariça se lhes completem e continuem a se dar aos suplicantes os seus vales mensais e de que se as circunstân-cias permitirem sejam socorridos com algum pagamento dos vencidos para o seu pre-cioso alimento.4

Os que ficaram viram-se de um dia para o outro sem nada, e quando abriram os olhos era tarde demais: faltavam a corte, os soberanos e dinheiro para manter qualquer estabelecimento. Da ucharia, da cozinha, das cocheiras, funcionários reclamavam do abandono do príncipe e do desamparo em que se encontravam.

Entre tantas notícias ruins, algumas boas ou quase boas. Das cavalariças che-gavam avisos de que o que não havia conseguido partir junto com a Família Real continuava são e a salvo dos "usurpadores franceses". Em 23 de setembro de 1808, o funcionário Joaquim de Costace escrevia ao príncipe relatando que, apesar de não ter conseguido embarcar as cavalariças reais que havia aprontado, não permi-tiu também que caíssem nas mãos dos invasores. Honesto, o fiel súdito dirige-se ao monarca com receio de que "o que não foi para ultramar é de presumir que tenha

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feito falta para o Serviço de S. A. Real". Por isso mesmo pedia orientação sobre o futuro embarque dessas posses da Coroa.5

Preocupação semelhante à de Costace, com os bens da Coroa, também foi externada por Alexandre Antônio das Neves, encarregado da Real Biblioteca da Ajuda. Em 12 de outubro de 1808, Neves informava d. João sobre a situação da biblioteca e as providências que tomara e que pretendia tomar para mantê-la salva. Em tom exaltado, relatava que em 29 de novembro de 1807 teria se negado a executar a ordem real de queimar, logo depois da saída da Família Real, os papéis existentes nos gabinetes das bibliotecas. Os documentos eram de segurança máxi-ma, mas mesmo assim não foram ao fogo, para orgulho e desespero do bibliote-cário, que lamentava o fato de eles e os caixotes de livros não terem ganhado lugar a bordo dos navios que levavam a Família Real ao Brasil. No entanto, vangloria-va-se o funcionário de que a situação não era desesperadora: apesar das diligên-cias dos franceses, prontos a rapinar preciosidades, nem um livro ou documen-to fora roubado, até aquele momento, das Reais Bibliotecas. Pedia então que finalmente fossem despachados para a colônia, com a seguinte recomendação: "Que no caso não esperado de ataque de inimigos, sejam lançados ao mar os ditos papéis: os quais hão de formar um pequeno pacote".6 O encarregado oferecia-se por fim para levar pessoalmente o acervo para o Brasil, antes que fosse tarde demais.

A mesma notícia da feliz ventura da biblioteca foi dada por Cipriano Ribeiro Freire, d. Miguel Pereira Forjas e João Aristides Salter de Mendonça, membros da Junta de Lisboa, que escreveram ao príncipe, em 18 de outubro de 1808, dizendo que "os palácios reais ficaram com muitas danificações, mas a Livraria Real do Paço da Ajuda com todos os seus papéis, ainda os mais secretos, sem a menor diminui-ção ou ruína".7

No início de 1809, porém, cresceu a expectativa de uma segunda invasão fran-cesa, e o temor do botim pairava sobre tudo o que de mais valioso havia ficado no reino, seja por seu valor econômico, político, social ou cultural.8 E, em 18 de janei-ro de 1809, Alexandre Antônio das Neves voltava a demonstrar, enfaticamente, a sua preocupação com o acervo da Livraria Real e escrevia ao príncipe pedindo pro-vidências:

[... ] Para não aumentar o susto que se vai espalhando por Lisboa, vendo-se os prepa-ros dos negociantes ingleses para saírem e considerando eu que tais acontecimentos não deixam de proceder de reflexões mui sérias trato com os meus companheiros de encaixotar mui ocultamente os papéis particulares, manuscritos e dos mais livros os que couberem nos caixões que existem dentro da mesma biblioteca.

Contudo, o funcionário se queixava dos gastos e da falta de salários, desde outubro de 1807, pedindo que

no caso de vir a ser preciso que embarquem as mesmas Reais Bibliotecas para o Brasil, V. A. R. por sua Alta Clemência manda dar passagens gratuitas aos ditos empregados

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e suas famílias que são de pequeno número de pessoas; e eles nem têm meio de se transportar nem lhes ficará do que viver.9

Assim, todos os caminhos levavam ao Brasil: para as riquezas, um banco segu-ro, a salvo de pilhagens; para as pessoas, uma forma de escapar da grave crise em que mergulhara Portugal e dos perigos da guerra, principalmente quando o Exér-cito francês se preparava para uma nova tentativa de conquista de Lisboa. E, se a Biblioteca devia partir, melhor seria que seus funcionários também viessem.

Juntando dois mais dois, mesmo sem ter recebido a carta de Alexandre das Neves, mas já sabendo do risco da nova investida napoleônica, d. João, em 21 de janeiro de 1809, deu ordens para "irem encaixotando e embarcando a Livraria, papéis importantes do Paço, tudo de consideração, que se acha a cargo de José Diogo de Barros, o Real Arquivo da Torre do Tombo, o mais precioso das Reais Cavalariças, e tudo quanto for de consideração".10 O Brasil agora representava um porto seguro e a idéia parecia ser tudo reunir, incluindo os preciosos arquivos da Torre do Tombo.11 Mas não era só isso: para João Antônio Salter de Mendonça, se-cretário de Estado dos Negócios do Reino, chegava ordem de encaixotar o Mone-tário da Livraria Pública, apresentar o número de caixotes e suas dimensões, tudo para que se pudesse calcular o navio que os levaria.12 Partiriam, assim, os mais importantes acervos portugueses, livres da ira do invasor.

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Os preparativos para o transporte dos bens foram logo iniciados, e já no final de março seguia para o Rio de Janeiro a notícia de que estava "quase finalizado o embarque das preciosidades da Casa Real".13 Bem a tempo, pois os franceses volta-ram. Em março de 1809, comandados pelo general Soult, entraram novamente em Portugal, por Trás-os-Montes, e alcançaram o Porto, onde dizimaram toda resis-tência. Desta vez, porém, ao contrário da primeira invasão, a reação foi imediata, tanto por parte das tropas anglo-lusitanas como das milícias populares que se for-maram. Em poucos dias os invasores bateram em retirada, sem chegar a ameaçar Lisboa.

Com o fracasso do avanço dos franceses, que acabaram rechaçados pelas forças anglo-lusitanas em maio do mesmo ano, arrefeceu a urgência da remessa dos bens da Coroa para o Rio de Janeiro. Mesmo assim, a seleção do que era va-lioso ou importante continuou, porém num ritmo mais brando. Muitas obras chegaram a ser encaixotadas, mas a remessa ia sendo protelada diante do recuo do inimigo.

Esse não era o caso da Real Biblioteca da Ajuda — tanto da Livraria Real como a do Infantado. Ela, que havia escapado do fogo em 1795, quando o antigo Barracão Real da Ajuda sofrerá um incêndio; que havia se livrado dos castigos da chuva e do sol quando fora abandonada no porto durante os preparativos do em-barque para o Brasil; e que tinha por fim se safado da rapina das tropas francesas, começava a ser transferida para o Rio de Janeiro em princípios de 1810, antes que uma nova invasão chegasse a Portugal. O ambiente era inseguro, e melhor seria atravessar o oceano de uma vez para restar, tranqüila, na nova sede da monarquia portuguesa. Assim partiria a primeira leva de caixotes, acompanhada por José Joa-quim de Oliveira, servente da Real Biblioteca, que vinha trazendo também os "estra-tégicos" Manuscritos da Coroa e uma coleção de 6 mil códices que se achavam em um arquivo reservado na Livraria do Paço das Necessidades, em Lisboa.14 Era a pri-meira leva que partia em segredo, como se os livros e documentos carregassem simbolicamente muitas vitórias, vários trunfos e tantas conquistas.

Porém, em Portugal, mais uma vez, o alívio seria breve. Em julho de 1810, teve início a terceira tentativa de reocupação do território lusitano, desta vez comanda-da pelo marechal Massena. A invasão iniciou-se pela Beira, e as tropas francesas tomaram o caminho de Lisboa. Apesar de batidos no Buçaco, os franceses prosse-guiram a marcha para a capital, tendo sido barrados em Torres Vedrá, onde esta-cionaram por cinco meses. Em março de 1811, cansadas, sem receber reforços e enfrentando a resistência do Exército anglo-lusitano, as tropas francesas começa-ram a debandar. Perseguidas, deixaram Portugal. A luta passou pelo território espanhol e entrou pelo francês, chegando até Toulouse, onde combateram em abril de 1814. Era a última batalha da guerra peninsular, e já não contavam com a lide-rança de Napoleão, que fora defenestrado do poder em 31 de março, por tropas russas, austríacas e prussianas que haviam tomado Paris.

E, com a terceira tentativa de ocupação francesa, novamente foram dadas or-dens para embarcar arquivos da Casa Real e as Bibliotecas Públicas e Régias. Se-gundo Ricardo Raimundo Nogueira, um dos membros da Junta de Governo de Por-

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3. Sopa de Arroios. Representação da distribuição de alimentos no Cruzeiro dos Arroios aos emigrados pelo Exército francês, que durante a invasão de outubro de 1810 foram acolhidos

pelos moradores de Lisboa, e, como diz o texto original, "com o mais louvável patriotismo e humanidade", 1813. Domingos Antonio de Siqueira, FBN

4. Alegoria a d. João: queda de Napoleão e expulsão dos franceses de Portugal. Joaquim Carneiro da Silva, BNL

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tugal, "algumas destas coisas chegaram a pôr-se a bordo; outras estiveram encaixo-tadas, mas não foram".15 Entre os encaixotados e não embarcados estava parte do acervo da Biblioteca Pública de Lisboa. Seu diretor, Antônio Ribeiro dos Santos, informava que estavam prontos "catorze caixões de manuscritos e livros raros, e oito do Monetário, e mais peças de antigüidade e preciosidades para poderem embarcar nos navios da Coroa".16 Como se vê, d. João tinha pressa e queria juntar todos os seus acervos na América: agora era a vez de a Biblioteca Pública partir, assim como as demais obras que ainda restavam na Ajuda.

O certo é que, apesar de prontos, na última hora os arquivos e acervos res-tantes jamais sairiam de Portugal. Mais uma vez, somente os livros da Real Bi-blioteca da Ajuda estavam preparados para partir, e a segunda remessa deixaria Lisboa em março de 1811. Veio com o ajudante de bibliotecário Luís Joaquim dos Santos Marrocos, na fragata Princesa Carlota, que aportou no Rio de Janeiro em junho. Nas cartas que mandava a Francisco José, seu pai,17 Luís Marrocos dava notícias — em tom ora terno, ora lamuriante, ora nostálgico, ora otimista e ora sarcástico — não só suas como igualmente da biblioteca, da vida na corte e da cida-de do Rio de Janeiro. Essa correspondência tem início ainda na viagem, no dia 12 de abril de 1811, praguejando contra a temível travessia:

Esta é feita entre céu e água, sobre mil aflições, desgostos e trabalhos, quais nunca pen-sei sofrer; pois tendo saído da barra de Lisboa com vento de feição, mal chegamos ao mar largo, nos saltou vento de travessia, que nos impeliu para as costas da África: a vista delas passamos as ilhas dos Açores e as Canárias, por meio de bordagens retró-gradas, que por muitas vezes chegou a suspender-se de todo a navegação pelas calma-rias podres, misturadas com ventos contrários, que nos expunha a imensos perigos. [...]. Eu tenho passado muito incomodado da garganta, boca e olhos, de maneira que estou em uso de remédios; não tive enjôo algum ao sair da barra de Lisboa; porém causou-me a maior compaixão ver o vomitório geral da gente da fragata; pois entre 550 pessoas, que aqui há, foram poucas as privilegiadas do enjôo. [...] Ao oitavo dia de viagem já era corrupta e podre a água de ração, de maneira que se lançam fora os bichos para poder beber-se: têm-se lançado ao mar muitos barris de carne salgada podre. Enfim tudo aqui é uma desordem, pela falta de providências em tudo: todas as cordas da fragata estão podres, menos as enxárcias; todas as velas estão avariadas, de sorte que se rasgam com qualquer viração: a tripulação não presta; e em semelhante estado ficaremos perdidos, se por nossa desgraça formos acometidos de algum tem-poral rijo. [...] Finalmente, para dizer tudo de uma vez, se eu soubera o estado, em que existe a fragata Princesa Carlota, repugnava absolutamente de meter-me nela e a Li-vraria, e nisto mesmo faria um grande serviço a S. A. R.18

E nosso mal-humorado bibliotecário até que estava certo, uma vez que sua via-gem só confirmara o temor da travessia. Além do mais, como profissional que era, queria conservar os livros onde estavam e onde deveriam estar sempre, e não mani-pulá-los ou expô-los a traslados arriscados daquele tipo. Por isso, na visão de Marro-cos tudo estava errado — a empreitada, a tripulação, as provisões, os instrumentos —, e sobretudo o objetivo maior: trazer a Real para a "bárbara colônia tropical".

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A transferência da Biblioteca se completaria em setembro daquele ano, com a remessa dos "últimos 87 caixotes de livros"19 que tinham ficado em Portugal e que foram embarcados na charrua S. João Magnânimo, sob a guarda do servente José Lopes Saraiva.20 Aos 230 caixotes de livros, vindos nas duas viagens anteriores, já desembalados e limpos,21 somavam-se agora os 87 caixões trazidos por Saraiva. E, com a chegada da nova leva ao porto do Rio de Janeiro, em novembro a Real Bi-blioteca estava novamente toda reunida e, por fim, em terras brasileiras.22

BIBLIOTECAS E LIVRARIAS COLONIAIS

Com certeza Luís Marrocos, o ajudante de bibliotecário, imaginava-se chegan-do a um território inóspito, terra de canibais e de gente analfabeta e inculta. Mal sabia ele que tinha e não tinha razão. Não deveriam ter lhe passado despercebidas as proibições que a colônia sofrerá até então, estando impedida de ter universida-des, assim como de instalar a impressão que multiplicaria os livros naquele terri-tório. Por outro lado, não seria difícil para Marrocos inteirar-se da situação viven-ciada pela colônia, sobretudo no Quinhentos, quando eram escassos os livros. Por sinal, durante o século xvi apenas os jesuítas cuidavam da entrada de impressos, e por isso mesmo predominavam os livros religiosos — obras de doutrina, de devo-ção mística e ascética — e ainda alguns clássicos, contanto que fossem expurgados trechos considerados inconvenientes. Mas havia brechas; no meio rural circulavam obras proibidas pelo Santo Ofício — como Ropica Pnefma, de João de Barros —, que podiam ser encontradas com certa facilidade.23 O território era grande, a curiosi-dade, maior, e não havia como interditar essa variedade de obras e, com elas, as próprias idéias.

Também no século xvn o panorama não se alteraria radicalmente — as bibliotecas continuavam raras, na maior parte particulares e dedicadas a obras devocionais: resumos de histórias santas, catecismos, exercícios espirituais, livros de novenas e orações. Não obstante, mesmo nesse cenário pobre foram descober-tos registros de bibliotecas que continham, além de livros de teologia, obras na área da moral, do direito canônico e da filosofia — como então se denominava o conjunto das ciências profanas. Era sobretudo em cidades como Salvador, Rio de Janeiro, Olinda e São Luís do Maranhão que se podia encontrar um núcleo menos reduzido de leitores, e nelas se concentravam as livrarias. No Rio de Ja-neiro, por exemplo, o advogado João Mendes da Silva, pai de Antônio José, o Judeu, possuía livros em quantidade notável para seu tempo. Sua biblioteca com-punha-se de 250 volumes, dos quais 150 de direito e o resto de história ou curio-sidades, como seu proprietário costumava definir.24 Mas as livrarias mais ricas eram as pertencentes à Companhia de Jesus, a qual detinha o monopólio sobre a educação.

Mesmo assim, nas primeiras décadas do século xvn os livros se multiplicaram em mãos de particulares. Até numa capitania pobre como São Paulo tem-se notí-

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cia da existência de alguns tomos arrolados nos testamentos seiscentistas. Em 1627, faleceu em São Paulo o holandês Manuel "Vandala", deixando uma Divina comédia avaliada em 640 réis. Há também no inventário de Pedro Fernandes um objeto interessante: "um torno de imprensar livros", o que permite imaginar a existência de certa cultura livreira no local.25 O escritor Alcântara Machado menciona ainda obras profanas como as Novelas exemplares, de Cervantes, na São Paulo seiscentis-ta, explicável em parte pelo grande número de castelhanos que ali viviam.26

Mas, se nosso bibliotecário Marrocos tinha razão quanto ao passado, estava mal informado acerca da situação presente. Desde o século xvm assistiu-se a uma significativa mudança na composição das bibliotecas locais. O predomínio ainda era da literatura religiosa, no entanto, aos poucos, abriam-se novos espaços — ao menos dentre as pessoas que tinham acesso a uma educação mais esmerada —, para obras de ciências, saberes profanos e para as perigosas obras da ilustração. Foi nesse século que a elite letrada se educou em Coimbra e que certos intercâmbios literários se estabeleceram por meio das Academias — dos Esquecidos (1724) e dos Renascidos (1724), na Bahia; dos Felizes e dos Seletos, no Rio de Janeiro, e mais tarde a sociedade dos Científicos, fundada em 1771.27 Os exemplos são muitos e, além de mostrarem certa vitalidade na área, expressam novidades, sobretudo a par-tir da extinção da Companhia de Jesus. Afinal, com o levantamento dos bens da Companhia é que se teve idéia do conjunto do espólio livresco de seus colégios e residências no Brasil e no estado do Maranhão. E os livros eram milhares, versan-do acerca da teologia, do direito, da moral, do ascetismo, da hermenêutica, e até de engenharia, medicina, farmácia, geografia, história, matemática, além dos clássicos gregos, romanos e neolatinos.

Conta o historiador Luiz Villalta que no período, apesar de poucas pessoas possuírem livros, foi em Minas Gerais, mais do que em outras capitanias, que os impressos circularam. Com a mineração desenvolveu-se certa cultura urbana, que implicou não só o incremento do setor de serviços como um consumo maior da literatura. O exame dos inventários e autos da devassa da Inconfidência acusa a presença significativa de livros em Diamantina, Mariana, Vila Rica e São João dei Rei, embora a posse fosse diferenciada e se concentrasse nos funcionários públi-cos e letrados. As maiores livrarias eram via de regra de padres, advogados e cirur-giões, que selecionavam obras e faziam acervos coerentes a partir das próprias es-pecializações.28 Além do mais, simpatias políticas atrelavam-se à conformação das bibliotecas, reforçando seu papel na difusão de idéias consideradas mais ou menos perigosas.

Sabe-se como os padres inconfidentes foram sensíveis às inovações políticas, filosóficas e científicas e de que maneira os livros incendiaram projetos e utopias. O padre Toledo possuía a Lógica de Verney, enquanto o padre Costa tinha a obra do poeta satírico Pope e mais cinco livros de ciências. O mais famoso deles, o cône-go Vieira da Silva, tinha em sua coleção autores destacados da cultura ocidental: Catulo, Cícero, Demóstenes, Horácio, Ovídio, Sêneca, Suetônio e Virgílio, além de escritores modernos — Camões, Milton e Racine — e filósofos ilustrados como

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Hume, Diderot e Voltaire, entre tantos outros, sem esquecer os pensadores da orto-doxia clerical como santo Tomás. Considerado o mais instruído e eloqüente de todos os conjurados mineiros, o cônego atuava na sé de Mariana quando o pren-deram. Homem de poucas posses, possuía, porém, uma livraria muito bem abas-tecida, sobretudo para seu tempo e lugar. Das 270 obras, com perto de oitocentos volumes, que compunham sua livraria, mais da metade era em latim, cerca de no-venta em francês, pouco mais de trinta em português, cinco ou seis em italiano, além de 24 títulos ingleses.29 No entanto, a grande importância da livraria de Luís Vieira da Silva não estava na quantidade, mas na qualidade das obras reunidas. Lá havia um pouco de tudo: tanto os léxicos e dicionários como as obras de forma-ção, de agitação, propaganda ou diversão. Mas pouco havia do Brasil ou sobre o Brasil; só muito mais tarde é que entrariam homens ilustrados dispostos a produ-zir um saber local e a seu respeito.

Também advogados tornaram-se grandes proprietários de bibliotecas. Em Mariana o doutor José Pereira Ribeiro tinha 201 títulos, a maioria de jurisprudên-cia, mas igualmente de filosofia, ciências naturais e teologia. Faziam parte do acer-vo, ainda, os autores ilustrados, e suspeitava-se que teria sido ele quem emprestara obras de Voltaire e do abade Raynal aos inconfidentes.

No resto do país a situação não variava muito. Notava-se certo predomínio dos autores franceses e uma estreita ligação das bibliotecas com as carreiras de seus proprietários. Na Bahia imagina-se que homens como Gregório de Matos e o his-toriador Rocha Pita tivessem livros. Além deles, os jovens que podiam estudar em Coimbra traziam, com certeza, quando voltavam e passavam a exercer cargos na governança da terra, obras adquiridas no exterior. Duas pessoas implicadas na frus-trada conjuração de 1798 tinham livros: Cipriano Barata de Almeida e Hermóge-nes Francisco de Aguiar Pantoja. O primeiro era proprietário de trinta obras, o segundo, de 22.0 cirurgião Cipriano Barata (1762-1838) possuía livros de medici-na prática, de física, de química, de matemática e de filosofia. Eram obras corren-tes, presentes nas bibliotecas particulares da época; livros de um homem culto que se interessava pelas ciências de seu tempo. A biblioteca dos dois inconfidentes baia-nos de 1798, com grande número de livros franceses ou traduzidos para o francês e poucos livros portugueses, indica a influência daquela cultura na Bahia, que não destoava nesse ponto do que ocorria em toda a Europa do século xvm. Não se pode esquecer a biblioteca particular de outro contemporâneo de Cipriano Barata, o padre Francisco Agostinho Gomes (1769-1842). Verdadeiro filósofo ilustrado, reu-niu a maior livraria particular existente no Brasil, na passagem do século xvm para o xix. Era composta por milhares de livros, dentre os quais se destacavam os de Buffon, Thomas Paine, D'Alembert, Adam Smith e títulos variados de obras da história, economia, filosofia, ciência natural, assim como as populares narrativas de viagem.

Também no Rio de Janeiro se conheciam algumas bibliotecas. Manuel Inácio da Silva Alvarenga, advogado e mestre de poética e retórica, possuía uma centena de obras,30 e Mariano José Pereira da Fonseca tinha 97 volumes sobre assuntos

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variados. Fora esses exemplos, inconfidentes cariocas — como Jacinto José da Silva — eram famosos por suas bibliotecas. Ainda os colégios, conventos e mosteiros possuíam bibliotecas bem fornecidas de livros religiosos e científicos.31 Já as livra-rias, essas sim, eram poucas; em 1799 apenas duas no Rio de Janeiro, e na Bahia não passavam de três.

O fato é que, ao contrário do que pensava o pessimista Marrocos, os livros entravam — de forma legal ou não — e começavam a circular pela colônia. Com efeito, jornais e obras proibidas como a gazeta francesa Mercure ou o livro do abade Raynal eram facilmente contrabandeados e faziam parte do acervo cultural da elite letrada local. E com os livros aportavam novas manias — as estantes, as papeleiras, os mapas, os enfeites, as canetas de pena, os tinteiros, os livros falsos de guardas douradas —, mas também as idéias de sedição, as novas soluções e as tertúlias literopolíticas que tinham como alvo certeiro a própria ordem cultural. Longe do total isolamento, com os livros na mão sabia-se da independência da América inglesa, da situação da França e dos novos arranjos políticos da era de Napoleão. A leitura poderia ser silenciosa e individual — no recanto do lar —, oral e coletiva — nos bares e botequins —, mas lia-se e conhecia-se muito mais do que o rigor da proibição permitia prever. Os livros possibilitavam sonhar com a inde-pendência e, à sua maneira, libertavam, mesmo em um local isolado e afastado da Europa iluminista.

Não obstante, até então, apesar de potencialmente revolucionárias, as biblio-tecas eram sobretudo privadas, de uso restrito, e os livros, em algumas situações, mal utilizados. No início do século xix, pouco antes da transferência da corte, Vilhena contava que livros roubados do convento de São Francisco, em Salvador, eram "vendidos [...] por vilíssimos preços a boticários e tendeiros para embrulhar adubos e ungüentos".12

Foi só com a chegada da Real que um novo perfil se impôs: a ilustração apor-tava reforçada e em caixotes. Lá vinham os códices e manuscritos; mapas estraté-gicos; as obras de música e os livros raros que contavam histórias de outras terras e povos. Mal sabia Marrocos que talvez tivesse, aí sim, razão. Quem sabe a Biblio-teca não devesse ter partido de Portugal — pois daqui não sairia mais.

INSTALANDO A REAL BIBLIOTECA

Não bastava trazer livros, era preciso acomodá-los. Assim, logo na chegada da primeira leva o príncipe instalou aquele volumoso acervo nas cercanias do Paço Real. Em 27 de junho de 1810 estabeleceu que sua Real Biblioteca e os instrumen-tos de física e matemática vindos de Lisboa ficariam instalados na Ordem Terceira do Carmo, que mudaria o hospital para outro local contíguo.33 E, inicialmente, a Livraria seria alocada nas salas do andar superior do hospital, até então ocupado pelas enfermarias.34 O hospital ficava na rua Detrás do Carmo (atual rua do Car-mo), nos fundos da igreja dos Irmãos da Ordem Terceira do Carmo, situada na rua

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Direita, lugar movimentado e bastante barulhento, ao menos para os antigos pa-drões lisboetas.35

Meses depois de escolhido o local para abrigar a Real Biblioteca, vendo que as instalações selecionadas não tinham luz e cômodos necessários a um estabeleci-mento dessa natureza, d. João determinou que a dita livraria deveria ser decente-mente acomodada "no lugar que havia servido de catacumba aos religiosos do Carmo",36 bem embaixo da antiga capela da Paixão de Cristo, da Ordem Terceira do Carmo,37 também na rua Detrás do Carmo. Mas tal medida não se concretizou, continuando a biblioteca no andar superior do hospital do Carmo, nas mesmas instalações provisórias.

No entanto, em dezembro de 1812, à medida que iam se abrindo os caixotes de livros, viu-se que o andar superior do hospital era definitivamente exíguo, e por aviso régio a Real Biblioteca iria se estender para o térreo, para onde tinha passa-do a enfermaria.38 E mais um transtorno: os enfermos que restavam no hospital foram desalojados e transferidos para o Recolhimento do Parto. Agora era preciso adaptar o espaço; as obras se iniciaram em janeiro de 1813, dirigidas por Feliciano José, um servente da Biblioteca desde o tempo da Ajuda. Para Luís Marrocos, a reforma deixara a "Casa muito linda e muito bem arranjados os livros".39 Verdade ou não, o fato é que o prédio estava todo ocupado pela Real Biblioteca, que podia finalmente orgulhar-se de ter sede e endereço próprios.40

E os ânimos estavam em alta; a sala de entrada da biblioteca, pelo Beco do Carmo, era decorada por dois painéis vindos de Lisboa, que contavam a história sagrada e profana universal. O primeiro painel abrangia a criação do mundo até a vinda de Cristo. O outro ia de Cristo até o ano de 1793. Cada painel era dividido em duas partes. A superior trazia a história em ordem cronológica. A inferior con-tava a mesma narrativa, mas em ordem alfabética.41 Linda maneira de dizer uma história que, para seu próprio engrandecimento, misturava a narrativa dos homens com relatos religiosos.

DANDO ORDENS ÀS LETRAS OU DAS VICISSITUDES DE SER PÚBLICA

Instalado o acervo, era hora de regrá-lo. Para "prefeitos" foram designados frei Gregório José Viegas e frei Joaquim Dâmaso. Ao primeiro coube a administra-ção; já o "arranjamento e conservação" da Real Biblioteca ficaram a cargo de frei Joaquim Dâmaso.42 Ambos tinham vindo para o Brasil acompanhando a Família Real, e frei Viegas era, também, confessor das filhas do príncipe regente. Mas vol-temos uma vez mais ao relato de nosso Luís Marrocos, que, como ajudante, não tinha em boa conta os religiosos. Com alguma petulância, Marrocos jactava-se de que todos estariam "abismados" com seus trabalhos anteriores e "nada fazem sem concordarem comigo".43 É certo que logo ao chegar foi pedido que elaborasse um estatuto para a Biblioteca, já que o do padre Francisco José Serra, feito para a

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Biblioteca da Ajuda em 1804, "foi aqui chacoteado".44 Marrocos, então, cheio de iniciativa, solicitou que seu pai lhe enviasse o modelo da Biblioteca espanhola,45 o que deu em nada: apesar de pronta desde 1815,46 a Biblioteca só teria seu primei-ro estatuto em 1821.

Com estatuto ou sem, a Livraria funcionava com mais três serventes: José Joaquim de Oliveira, José Lopes Saraiva e Feliciano José, todos vindos da Ajuda. E a organização exigia muita atenção. Ao final do dia, a falta de luz e mesmo a alga-zarra da rua perturbavam a concentração. Na rua Detrás do Carmo, os ruídos par-tiam dos restaurantes, confeitarias e cafés. De um lado, contíguo ao beco do Carmo, era comum o burburinho das procissões que saíam da Capela Real, ou os sons de clarinetes, trompas, fagotes, violoncelos, violetas, cordas, flautas ensaiando as mú-sicas sacras. Do outro, no beco dos Barbeiros, sons profanos dos lundus e modi-nhas executados em violões, pelas mãos hábeis de escravos de ganho, que, entre um corte de cabelo e outro, formavam "verdadeiros conjuntos instrumentais, integra-dos por negros escravos, que tinham aprendido música e o ofício de barbeiro. Dessa música de barbeiros' é que viria se originar todo um movimento musical da maior importância [...]: o choro".47 Isso quando esses barbeiros não estavam aos berros propagando suas outras atividades: sangrias, aplicações de ventosas e de san-guessugas, ou fazendo as vezes de dentistas.

Difícil mesmo era suportar o cheiro dos medicamentos usados no hospital: vinagre, aguardente, óleo negro de alambre, água-da-rainha-da-hungria, além de urina humana ou animal, pó de esterco de cães, pele, osso e carne de sapos, pó de pescoço de galo, carne de víbora em pó, chá de percevejo...

Apesar desses contratempos, os livros iam sendo organizados. Foram agrupa-dos em cinco classes principais: Teologia, Jurisprudência, Ciências e Artes, Belas-Letras e História.48 Cada uma delas, por sua vez, era dividida em subconjuntos, que se subdividiam ainda mais. Se em Jurisprudência, por exemplo, havia duas subdi-visões — Direito Eclesiástico e Direito Civil —, a seção de História incluía onze itens: Prolegômenos Históricos, Geografia, Cronologia, História Eclesiástica, His-tória Profana das Monarquias Antigas, História Moderna (parte 1: Monarquias da Europa; parte 2: Monarquias fora da Europa), Paralipômenos Históricos, Anti-güidades, História Literária, Acadêmica e Bibliográfica, Vida de Pessoas Ilustres e Extratos Históricos. Subdivididos, os subconjuntos da categoria de História che-gavam ao total de 56 tópicos.49 Com o aparelhamento da Biblioteca cresciam as classificações tão próprias da lógica dessas instituições. A cada item um subitem; a cada critério lá vinha mais outro.

Ainda no meio da arrumação dos livros a Biblioteca já estava disponível aos estudiosos, desde que com autorização. Em outubro de 1811, "por ordem do limo. e Exmo. Sr. Visconde de Vila Nova da Rainha levou o Sr. Manuel Francisco50 De la verité, ou Meditations sur les Moyens de pourvenir à la verité dans toutes les connes-sainces humaines, de J. P. Brissot de Warville".51 Logo no mês seguinte, por pedido do próprio príncipe regente, o sargento-mor de Artilharia e deputado da Real Jun-ta da Fazenda dos Arsenais do Exército João Gomes da Silveira estava autorizado a

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"consultar na sua Real Biblioteca as obras de ciências naturais que nela houverem; a facilitando-lhe V. M. para este fim os livros que ele pedir".52

Mas era pequeno o trabalho de atendimento a leitores, até mesmo os da Famí-lia Real. Entre janeiro de 1811 eabrilde 1813,segundo anotação do padre Dâmaso, pouco mais de vinte livros foram retirados, tendo sido cinco para d. Pedro, cinco para d. Miguel, dois para a infanta Maria Francisca e dois para a infanta Maria Isabel. A d. Pedro, por exemplo, foram emprestados História da vida de d. João de Castro, de Jacinto Freire de Andrade; o primeiro tomo de Ovídio; Histoire de la découverte et de Vétablissement des Portnguais dans le Nouveau Monde, de Lafitau; a Bíblia de Vitray; e História bíblica, de frei Francisco de Jesus Maria Sarmento. E eram lidos com vagar. O livro de Lafitau deve ter ficado parado na mesa, pois per-maneceu em sua posse por dez meses: de junho de 1811 a abril do ano seguinte.53

Com certeza não era de livros que se alimentava o príncipe. Foi em 1814 que a Livraria, já organizada e franqueada a um seleto público,

mereceu elogios do padre Perereca quanto à sua organização em diferentes salas e a partir de seus vários assuntos: tudo de forma metódica e fácil de encontrar. O animado religioso chegava a considerá-la

a primeira, e a mais insigne, que existe no Novo Mundo, não só pelo copioso número de livros de todas as ciências, e artes, impressos nas línguas antigas, e modernas, cujo número, passa de 60 mil volumes, mas também pela preciosa coleção de estampas, mapas, manuscritos, e outras ricas, e singulares coisas, que muito a enriquecem, e que cada vez mais se aumentam, mediante a munificência de Sua Aiteza Real, que não cessa de enviar novas, e seletas obras.

E prossegue o padre, com sua contumaz verve louvaminheira, elogiando a ati-tude do príncipe regente em franquear a livraria a literatos, estudiosos e a todos os que a quisessem freqüentar, todos os dias, com exceção — é claro — dos domin-gos, dias santos e feriados, e concluía:

Ora, sendo o estabelecimento das bibliotecas públicas um dos meios mais aptos, e efi-cazes para o progresso da literatura, aumento das artes, e difusão das ciências, achan-do reunido em um só lugar quase tudo o que o espírito humano em todas as idades, e em todos os países, tem produzido de melhor, e de mais apurado gosto nas belas-letras, nas artes liberais, e nas sublimes ciências, que benefício, que máximo benefício, não é o que Sua Alteza Real fez aos habitantes do Rio de Janeiro, franqueando a sua Real Biblioteca, e mandando abrir em benefício dos seus vassalos esta inexaurível fonte de conhecimentos, este inapreciável tesouro de riquezas intelectuais?54

Se era exagerado o padre Perereca, neste aspecto tinha razão: as bibliotecas são mesmo um meio eficaz para o progresso do espírito humano e representam tesou-ros das riquezas intelectuais. Mas não funcionam por osmose e sem consulentes ou hábitos de leitura. Sem eles, são apenas um troféu a ser erguido, e é disso que trata nosso padre: o público era escasso e poucas as tarefas, porém nada como oferecer a prenda e depois cobrar seu preço.

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Contudo, acervo que é acervo não pára de crescer. Além de obras trazidas de Portugal, a Biblioteca receberia, em 1811, como doação, os impressos e manuscri-tos do frei José Mariano da Conceição Veloso, um estudioso das ciências naturais, especializado em botânica. Eram cerca de 2500 volumes de livros, manuscritos ori-ginais e pranchas gravadas em cobre, e entre os manuscritos encontrava-se a famo-sa Flora Fluminensis. Para complementar o material doado, d. João mandou vir de Lisboa, em novembro de 1812, tanto as chapas de impressão como um exemplar de cada obra impressa na extinta Oficina do Arco do Cego e na Oficina Régia, que Veloso dirigira entre 1799 e 1801.55 Tudo isso chegou ao Rio de Janeiro em setem-bro de 1813,56 acrescentando valor à já valiosa Livraria.

Em 1815, seria incorporada a biblioteca de Manuel Inácio da Silva Alvarenga. Fora adquirida por intermédio de Manuel Joaquim da Silva Porto, livreiro portu-guês estabelecido no Rio de Janeiro, que a comprara da "preta Joaquina, herdeira e testamenteira" de Silva Alvarenga. Dono de uma das maiores bibliotecas do Rio de Janeiro na época, o advogado Silva Alvarenga, professor e um dos maiores poetas do Arcadismo brasileiro, morrera em 1814, deixando 1576 volumes. Pouco mais de um terço de sua biblioteca versava sobre direito, e o restante era rubricado como "obras gerais". E, entre eles, vários livros que só poderiam ser lidos com autorização da cen-sura, ou eram mesmo proibidos. Possivelmente alguns deles foram vistos por Jacques Étienne Victor Arago, artista francês que esteve no Rio de Janeiro entre dezembro de 1817 e janeiro de 1818, que visitou a Real Biblioteca e sobre ela assim se mani-

TRATADO DA GRAVURA ICVA TOKTE , E A B Ü S J l . , % Stó MANEIRA NÉGRA COM í. O MODO DE CONSTRUÍR AS « E S S A S MODERNAS,

E DE IMPRIMIR BM TALHO DOCE.

A B K A H A M B O S S E

c a A V A D O . j í . R E G I O .

« O V A E B 1 Ç A Õ

T R A D U Z I D A D O F R A N C E Z

D E B A I X O D O S A U S P Í C I O S T i O I Í D t M

SUA ALTEZA REAL, O PRÍNCIPE R E G E K T E ,

6. Obra editada na Oficina do Arco

do Cego, dirigida por José Mariano >

da Conceição | Veloso. FBN

N O S S O S E K H o n ,

P O R

O&È J O A Q U I M Y J E G A S M E N E Z E S

" h r s S ó A.

W. J L t t

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7. Ilustração explicando técnicas de edição, especialmente elaborada pela Oficina do Arco do Cego para a obra Tratado da gravura de Abraham Bosse. FBN

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festou: "Eu venho da Biblioteca e o primeiro olhar é satisfatório. Podem ser conta-dos 70 mil volumes em geral bem escolhidos [...] Serei eu obrigado a rever meu pri-meiro julgamento sobre a ocupação portuguesa?".

A biblioteca era de tal porte que bem podia fazer mudar a impressão geral, mas é pena que seus funcionários muitas vezes não estivessem à altura do local. Na ver-dade, depois do elogio, reclamava Arago da falta do diretor e da pouca cultura de seu cicerone substituto, que da literatura portuguesa conhecia apenas, e pouco, Camões. No entanto, todo mal-estar seria refeito diante da observação a respeito da escolha de obras do acervo, inclusive as proibidas. Diz Arago: "Ele me conduziu ao local onde ficam os historiadores e poetas franceses e me apresentou um volume com um prazer bem visível. 'Aí está um grande pensador [...] É RaynaT [...] e em seguida me indicou com os dedos a obra completa de Voltaire". A excursão não parou por aí, pois concedeu-se a honra de visitar as salas de livros de direito e de línguas vivas, os manuscritos valiosos e ainda outra sala ricamente decorada. Era o gabinete de estudo do príncipe Miguel, que, ao que tudo indica, não freqüentava muito o local; segundo o relato de Arago, os livros não estavam sequer cortados.57 Uma biblioteca tinha várias funções, entre elas a de servir de porta de entrada para um castelo, muitas ve-zes, de cartas. Leitores naquele dia só havia dois, e o filho do rei tinha um gabinete mas não abria seus livros. Não obstante, o volume impressionava a ponto de lem-brar o tamanho das aspirações: com efeito, a Livraria nesse contexto era sobretudo um adorno, um exemplo de tradição e civilização.

(«á»ÍÓ,)

8. Os botocudos, na pena do viajante Jacques Étienne Victor Arago (1790-1855). FBN

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O crescimento da biblioteca era evidente, principalmente após novas doações e compras. Em 1818 seria a vez de incorporar à Real Biblioteca o acervo do arqui-teto português José da Costa e Silva, composto de estampas, desenhos, camafeus, mapas, esboços de arquitetura, livros de estampas, livros de arte, de literatura, de história, e de arquitetura. Costa e Silva teria iniciado sua coleção durante uma esta-da na Itália, entre 1769 e 1775, e de lá trouxera muitos autores. Em seu acervo de desenho vieram peças de artistas como Simone Cantarini, Guido Reni, Bibbiena, Gandofi e Bianconi. Já sua coleção de estampas era composta por artistas como Callot, Brueghel, Ruysdael, Stefano delle Bella e Piranesi.58 Aí estava um acervo que completava imagem e decoração com suas gravuras selecionadas. Entre pintores italianos e dos Países Baixos fazia-se uma boa coleção, e a Real não escapava às vogas de época.

Mas nem só de grandes aquisições foi sendo aumentado o acervo da Real Biblioteca. Em 1812 iniciam-se as propinas— a prática de, como vimos, enviar um exemplar de tudo o que fosse impresso em oficinas tipográficas de Portugal e na Impressão Régia, no Rio de Janeiro.59 No entanto, eram sobretudo os doadores os grandes benfeitores da Livraria. Tanto que entre 1817 e 1820 foi registrada a entra-da de 317 obras. Entre os dadivosos estavam d. João, o marquês de Marialva, Tomás Antônio de Vilanova Portugal e Francisco Borja Garção Stockler, marquês de Belas. Era a própria elite do governo que incluía entre seus hábitos a doação de exempla-res de livros, como se a Biblioteca fosse uma espécie de trunfo nacional. Não era o uso que determinava sua funcionalidade, mas sua mera existência tal qual cartão de visitas, ou postal de apresentação.

A Real Biblioteca ia se impondo no cotidiano local. Mesmo não sendo exata-mente pública — uma vez que o empréstimo de livros era evitado —, estava sem-pre aberta a consultas. E havia outras bibliotecas na cidade: particulares, de con-ventos e de algumas instituições de ensino superior, como as da Academia Real da Guarda Marinha, da Real Academia Militar, do Laboratório Químico Prático, da Academia Médico-Cirúrgica e do Arquivo Militar. Porém, a Real Biblioteca suplan-tava todas em volume, variedade, raridade das obras e até ostentação. Era para lá que se dirigiam os visitantes estrangeiros, e era por entre suas salas que passeava, de vez em quando, a realeza.

E o crescimento foi tal que em 1818 d. João vi ordenou que fosse remetido à Biblioteca Pública de Salvador um exemplar de cada obra em duplicata na Real Bi-blioteca, desde que não constasse do catálogo daquela biblioteca. Criada em 1811, foi aberta ao público no dia 13 de maio, data de aniversário do príncipe regente. Idealizada por Pedro Gomes Ferrão Castelo Branco, que doou seu acervo parti-cular e logo foi seguido por outros cidadãos, a livraria baiana ainda recebeu o apoio do conde dos Arcos, então governador da Bahia. Em pouco tempo já contava com 3 mil volumes; sete anos depois publicava seu catálogo, com 5361 volumes, de "obras literárias (portuguesa, inglesa, francesa, além de uma coleção de livros de viagens), filosóficas, políticas (incluindo-se os tratados de economia política, de comércio, de agricultura, de teoria monetária), científicas (matemática, astronomia, física, quími-

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ca, ciências do homem, zoologia, botânica, mineralogia, geografia e principalmen-te medicina), alguns tratados sobre as artes e as técnicas, obras de teologia e final-mente obras de história".60

Na verdade, devia-se parte desse crescimento a uma nova investida de Luís Marrocos, que, como funcionário da Real, e sem querer, agia em favor da colega soteropolitana. Já em 1811, sem ter tomado conhecimento da criação da bibliote-ca em Salvador, havia sugerido que o rei estabelecesse uma biblioteca pública em Salvador, com os livros dobrados da Real. Matavam-se dois coelhos com uma caja-dada só: dava-se destino aos livros que, não cabendo mais na Biblioteca, restavam em caixotes fechados e "todos minados do bicho cupi, achando-se por isso em pó imensas tapeçarias", além de garantir a leitura para o público de Salvador.61 Nova-mente em 1818 Marrocos fez a proposta, tendo sido enviados dessa vez 38 caixo-tes.62 A idéia era desentulhar a Biblioteca da corte e dar novo destino aos livros, mas o resultado não deixava de ser inesperado: uma nova biblioteca aparelhava-se. Mais uma vez, os ganhos se concentravam na corte e só por excesso alcançavam outros locais do país, os quais, apenas por tabela, recebiam os novos ventos.

Mas voltemos à nossa Real Livraria, instalada na corte e cujo cotidiano era pouco conhecido nesses primeiros anos. Salvo um ou outro documento oficial, quase nada restou. Uma das raras fontes são as cartas que Luís Marrocos enviava a seu pai.63 Por elas ficamos sabendo um pouco sobre o destino dos primeiros funcioná-rios. De seu chefe, o padre Gregório Viegas, a quem apelidou de "Borra", Marrocos deixou pouquíssimos comentários: tratava-se de uma daquelas pessoas a quem ele logo em sua chegada referiu-se como "capazes, mas só próprias para uma bibliote-ca fradesca". Registrou ainda que fora nomeado confessor das infantas em 1813. Certamente Marrocos conviveu pouco com Viegas, que não era presença constante na Livraria e o julgou muito: um bibliotecário de frades e religiosos.

Seu outro chefe, o padre Joaquim Dâmaso, era personagem mais assídua, tan-to nas cartas como no dia-a-dia da Real Biblioteca. Dâmaso era descrito ora com apreço ("homem além de instruído, virtuoso, e a quem sou sumamente obriga-do"), ora com desdém ("mostra-se muito meu amigo, comunica-me segredos da alta política; e eu entre cortesias e frases de concordância, dou-lhe duas figas e po-nho-me de reserva"). Por várias vezes, Marrocos valeu-se da influência de Dâmaso para conseguir favores a conhecidos seus que permaneceram em Portugal, inclusi-ve seu pai. Eram colegas de profissão e, entre eles, eram freqüentes as disputas clas-sificatórias e de poder.

Do servente Feliciano José, seu velho companheiro da Biblioteca da Ajuda e de jogo de bisca na nova corte, Marrocos fez saber que passava "menos mal" já que, além do ordenado na Livraria, conseguira trabalhos em "obras de carpinteirage", inicialmente na Real Biblioteca e depois em outros lugares. Em 1818, comunicava a seu pai a triste notícia da morte do amigo, que atribuía a "uma afecção dalma, que padecia por mais de seis meses, e com 26 dias de cama, sem dor nem febre, mas só com fastio e tristeza".64 A causa teria sido a prisão de um sobrinho de sua mu-lher, comandante do Forte do Mar no Recife durante a Revolução Pernambucana

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de 1817. Apesar de não ter tomado parte da revolta, tendo sido inclusive expulso do forte pela própria guarnição rebelada, foi mantido preso na Fortaleza da Con-ceição, no Rio de Janeiro.55

José Lopes Saraiva, outro companheiro servente que viera da Livraria da Ajuda, morrera ao tomar um copo de ponche em um botequim. Saraiva não era bem-visto por Marrocos, devido a sua "vida estragada e escandalosa".66 Insinuando que sua mulher o traía com um militar, Saraiva internou-a em um recolhimento, sem lhe dar nenhuma assistência. Considerada inocente, foi levada à presença de d. Carlota Joaquina, e caiu em suas graças. Meses depois, Saraiva se viu envolvido em uma briga com o filho de uma criada do Paço. Mesmo contando com o auxí-lio do influente marquês de Aguiar, foi mantido preso por ordens expressas da princesa.

José Joaquim de Oliveira, o servente que acompanhara a primeira remessa de livros da Real Biblioteca, era observado com igual reserva por Marrocos. Ao co-mentar a chegada de Saraiva ao Rio de Janeiro, Luís Marrocos confidenciou ao pai que "eu aqui lhe lancei um freio tal, que não pode nem abrir a boca, assim como fiz a Joaquim".67 Com José Joaquim o freio deve ter funcionado. Afinal, nosso Mar-rocos era fiel à burocracia, mas não se gabava de fazer muitos amigos, preferindo vangloriar-se de seus próprios feitos.

Por sinal, ao falar de si, Marrocos usava um tom mais pessoal nas cartas. Quei-xava-se da cidade, do clima e, hipocondríaco, das inúmeras doenças que o ataca-vam. Dava notícias dos amigos da família que se encontravam no Rio de Janeiro. Comunicou seu casamento e o nascimento de três filhos. De sua vida profissional, fez saber ao pai que, além de suas funções na Real Biblioteca, fora convidado pelo próprio príncipe regente, por intermédio do visconde de Vila Nova da Rainha, a substituir o frei Francisco Antônio de Arrábida68 na organização dos valiosos Ma-nuscritos da Coroa, uma coleção de 6 mil códices que, em Lisboa, se achavam em um arquivo reservado na Livraria da Congregação dos Oratorianos, no bairro das Necessidades, em Lisboa.69 No Brasil, os Manuscritos — salvos do fogo — foram para o Paço, por decisão do príncipe regente, que os queria estrategicamente pró-ximos. E em setembro de 1811 já está Marrocos no Paço, onde falava e beijava a mão de d. João todos os dias, como orgulhosamente contou a seu pai.70

A proximidade do bibliotecário com o príncipe regente era motivo de orgu-lho e lhe valia alguns pontos. Porém, os encontros diários com d. João acabariam dois anos depois, quando a sala do Paço em que eram guardados os Manuscritos foi requisitada por d. Carlota Joaquina e o acervo, mandado ao prédio do Real Te-souro, na rua do Ouvidor. Por sinal, não fora uma transferência tranqüila. E, ape-sar de uma série de disputas, os Manuscritos jamais seriam transferidos para a Real Biblioteca, por mais que houvesse empenho nesse sentido.71 Voltariam para Por-tugal em 1821, com d. João vi, confirmando seu percurso diferenciado: os livros da Biblioteca eram uma jóia para expor; já os Manuscritos cumpriam uma função política delimitada, representando o testemunho de lutas, políticas e operações mi-litares portuguesas.

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Arranjados em um catálogo escrito, organizado e copiado por Marrocos, e datado de 1813, os Manuscritos eram mesmo uma espécie de memória ambulan-te. Em carta a seu pai, datada de 27 de janeiro de 1812,11 Luís Marrocos, além de se queixar do "infernal clima", que levava a muitas mortes — "só no ano de 1800 para cima de trezentas pessoas naturais de Lisboa" —, comentava o "prelúdio" do seu trabalho com os Manuscritos e como pretendia dar ao soberano "uma idéia do te-souro que aqui possui nessa minha repartição" e arranjar uma "Memória literária e crítica desse mesmo corpo de Manuscritos pois que até aqui ainda se não sabe o que há, principalmente no que pertence ao governo político". Marrocos garantia que no frontispício da Memória ou no fim faria um plano com as classificações — elaboradas por ele mesmo a partir dos "trilhos de mestres bibliógrafos" —, gaban-do-se de que tudo teria sido "sem socorro algum, só mental".

E o plano deu certo, pois um elegante e bem apresentado catálogo listava os manuscritos, que apareciam dispostos em 75 páginas e divididos nos seguintes te-mas: Política (180 documentos), Teologia (76), Direito Canònico (86), Direito Civil (64), História Eclesiástica (83), História Civil (33), História Literária (4), Ciências, Artes e Belas-Artes (44). Com claro predomínio de documentos referentes à políti-ca portuguesa, os famosos "Manuscritos da Coroa" traçavam uma história das rela-ções diplomáticas daquela nação: cartas dos embaixadores espalhados pela Europa; cartas régias em profusão; ofícios de secretários e das Secretarias de Estado; car-tas diversas de "Negócios e Negociações"; coleções de Avisos; consultas das Juntas de Conselho; consultas do Desembargo do Paço; consultas políticas e históricas de assuntos variados; correspondências do soberano; despachos das várias Secretarias; diários de embaixadores; extratos de Rendas Anuais; documentos pertencentes ao Governo da Casa dos Príncipes e Infantes, ao Governo de Portugal e de vários ou-tros estados; livros de receitas e negócios; regimentos da Chancelaria; tratados de "Várias Políticas e Histórias". Enfim, analisando apenas a parte classificada como "Política", os manuscritos revelavam ser material fundamental, tanto para deixarem Portugal, por ocasião da invasão em 1807, como para retornarem com o rei e depois com seu bibliotecário. E tiveram um tratamento diferenciado, o que explica a me-nor "intimidade" do príncipe com sua biblioteca, por oposição aos manuscritos: sempre à mão.

Não era, portanto, para menos o fato de Marrocos jactar-se dessa sua ativida-de, apesar de continuar trabalhando na Real Biblioteca. E dela deu notícias ao seu pai quando, em 1814, surgiram rumores de que ela voltaria a Portugal:

Afirmam que no Palácio da Ajuda se trabalha com muita atividade, e que em janeiro passado se lhe duplicara a gente [...]. Ainda que aqui se tem preparado uma grande parte das embarcações de guerra, ninguém por ora se lembra de nos transferirmos a Lisboa; antes pelo contrário há disposição de não ser tão cedo; não só por que cres-cem aqui as obras de melhores acomodações futuras.73

A continuidade do boato deixou Marrocos apreensivo com seu futuro: seria ele o escolhido para acompanhá-la? O bibliotecário temia por sua situação, uma

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vez que os dois padres, Viegas e Dâmaso, eram confessores da Família Real, e com ela partiriam, com certeza, e terminava: "E que será de mim se eu disser que não quero, e que só quero ir embora?".74 Como sabemos, a dúvida de Marrocos não ti-nha procedência: a Biblioteca não foi embora, e ele continuou sua labuta entre os Manuscritos e a Livraria, apesar de manifestar constantemente seu desejo de voltar.

Só a partir de setembro de 1817, quando foi nomeado oficial da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino por Tomás Antônio Vila Nova Portugal, Marrocos deixou de trabalhar na Biblioteca, ainda que mantivesse o cargo, sem receber orde-nado. Finalmente o ajudante bibliotecário Luís Joaquim dos Santos Marrocos con-seguira ascender na corte, mas, com algum incômodo. Em 6 de fevereiro de 1818, data da aclamação de d. João vi, ao estrear sua farda de oficial de Secretaria, "com todas as bonecrices adjuntas, me encheu de vergonha, julgando-me um Falperra, pois sempre tive negação e ódio a enfeites e peralvilhices".75

Não obstante, o emburrado Marrocos voltaria à Biblioteca em 1821. Foi no-meado encarregado de Direção e Arranjamento, em lugar do padre Viegas, nomea-do bispo em Pernambuco. Já não destilava mais queixumes e diatribes contra a terra e os nativos, como no início. Chegara mesmo a aconselhar o pai a vir também para o Brasil, onde a vida era melhor do que em Lisboa. Estranho é o destino: de-pois de tanto praguejar contra o Brasil e a Livraria, aqui permaneceu após a In-dependência e chegou, em 1824, a oficial-maior da Secretaria de Estado dos Ne-gócios do Império.76

Marrocos representa o modelo típico dos bibliotecários que cuidaram de nossa Real Biblioteca. Religiosos de formação, mal-humorados de caráter, minuciosos nos detalhes que narram, queixosos por ofício, cuidadosos nas classificações que planejam, ciosos de suas responsabilidades... Conformam um grupo específico definido não apenas por sua profissão, mas também por um estilo peculiar. E a sina de Marrocos se misturaria ao destino da Biblioteca. Passada a instabilidade e o período de assentamento, entre lamúrias, problemas e faltas, ambos ficam no país e se imiscuem com sua história. No caso da Biblioteca lhe seria reservado um lugar destacado: ao lado da corte que se agitava, receberia os viajantes e cientistas que começavam a aportar.

Por sinal, nosso Luís Marrocos andava se queixando sem ter motivo. Afinal, vivia na agora animada corte do Rio de Janeiro, onde estrangeiros, artistas, cientis-tas ou meros curiosos circulavam com a maior naturalidade. Aí estava uma corte que virava metrópole sem ser e que exibia luxo escondendo seus escravos e suas mazelas. Nada como dar uma "passadinha" por lá, com o intuito de entender me-lhor o lugar onde se assentava a Livraria. Assim como se acomodaram a Biblioteca e seu bibliotecário, também se quedaria o príncipe. Era hora de reinar diretamen-te dos trópicos.

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CAPÍTULO

D. JOÃO E SUA CORTE DO RIO DE JANEIRO: CUMPRINDO O CALENDÁRIO

1. Frontispício do livro de pranchas de Alexandre Rodrigues Ferreira: na capa, os trópicos como

homenagem à monarquia. FBN

O frio e fleumático político do norte raramente calcula o efeito das belas paisagens sobre o espírito humano; pois do contrário não esperaria que a corte de Portugal deixasse sua nova residência. Esta influência é silenciosa mas poderosa; seu operar é universal e per-

pétuo, renovado a cada sol nascente e ajudado por ocasião do luar refulgente. Ela há aqui freqüentemente combatido o estímulo do interesse e destruído a persuasão do argumento, e é geralmente, mais eficiente nos espíritos que menos se apercebem do seu exercí-cio. A sugestão da natureza tem contribuído para tornar a corte portuguesa desejosa quase de alterar a sua designação e os estran-geiros favorecem-lhe esta inclinação, falando da corte do Rio e não mais da corte de Lisboa.

John Luccock1

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COM O EIXO DESLOCADO

O comerciante inglês John Luccock parecia inspirado quando descreveu o que também deveria ser o estado de espírito de d. João. Por sinal, não por coincidên-cia, o cônsul-geral da França, Lesseps, em sua correspondência oficial a Paris se re-feria ao príncipe regente como roi du Brésil.

Afinal, fora em sua colônia tropical que d. João se livrara de uma série de moléstias, entre elas uma incômoda gota, assim como ficara longe da complicada política européia, que, mesmo com a derrota de Napoleão em 1814, ainda estava sujeita a debates, discórdias e disputas territoriais.

Estamos agora no tempo da Santa Aliança, em que uma coligação formada por Rússia, Áustria e Prússia se reuniu no Congresso de Viena, entre 1814 e 1815. Nessa magna reunião diplomática, organizada logo após a queda definitiva de Napo-leão, consolidou-se a restauração das dinastias monárquicas do Antigo Regime, negociando-se de forma coletiva um rearranjo europeu. Dessa maneira, ainda que os novos tempos sinalizassem políticas pacificadoras e um retorno aos velhos mo-delos europeus banidos pela Revolução, d. João não parecia convencido, ou agia de forma enviesada: ia ficando e aparelhando sua colônia tal qual capital do Império.

É preciso que se diga, a favor da atitude do príncipe regente, que a situação andava um tanto mudada e que, nos quase dez anos que se passaram desde sua chegada, o Rio mal lembrava aquela "Lisboa banal"2 que recebera a corte nos idos de 1808. A população aumentara muito — dos 60 mil habitantes pulara para 90 mil —3 e todo o espetáculo das ruas se alterara. A atividade era intensa e febril, aturdindo o visitante, desacostumado a ver "gente de todas as raças, múltiplas cores e costumes variadíssimos".4

Mas não se pode confiar apenas numa interpretação evolutiva que só enxerga novidades. As ruas que já eram movimentadas continuavam barulhentas e, apesar de, por ordem do último vice-rei, algumas terem sido calçadas e cobertas de laje-do, ainda circulavam tipos estranhos pelo local:

andadores de almas e pedintes de irmandades, com suas opas verdes, escarlates e azuis, estendendo aos transeuntes e abrindo debaixo das janelas os largos sacos vermelhos [...]; ou os cumpridores de promessas devotas, tirando por humildade cristã e não por necessidade esmolas para uma missa em ação de graças.5

Dizia o protestante Bosche que o badalar incessante dos sinos das igrejas e mosteiros e o freqüente estampido dos foguetes eram o suficiente para perturbar o pensamento de qualquer homem razoável e para levar o recém-chegado ao de-sespero.6 Luccock achava o Rio de Janeiro "a mais suja associação humana vivendo sob a curva dos céus". E com razão: à imitação das ruas de Lisboa, as vias cariocas eram cheias de lama e de toda sorte de imundice. E o viajante Du Petit anotava: "O Rio de Janeiro nada possui do que fere ou chama a atenção dos viajantes; nem palácios, nem monumentos suntuosos; as igrejas e os conventos são os edifícios públicos mais notáveis".7

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2. Mapa da vila e do porto do Rio de Janeiro, 1807. John Barrow, FBN

Como em Portugal, o estilo das casas era de pouca importância, com seus interiores exíguos e mal iluminados: de uma simplicidade franciscana. O mobiliá-rio se resumia na maioria das vezes a um oratório, um sofá de palhinha e algumas cadeiras. Normalmente as famílias reuniam-se na sala dos fundos, onde por sobre uma mesa ou no chão faziam as refeições, comendo raramente com talheres. Para a iluminação eram utilizadas lamparinas de ferro ou de outro metal, alimentadas por óleo de baleia. No entanto, mesmo sendo simples em sua arquitetura exterior, as casas da cidade não dispensavam balcões, que, debruçados sobre o movimento da rua, podiam testemunhar quem passava e como passava. É o viajante Luccock, mais uma vez, quem nos lega a melhor descrição dessas moradias:

Em cada janela, e ao mesmo nível do assoalho do cômodo, havia uma espécie de pla-taforma de pedra, de cerca de dois pés e meio de balanço que servia de base ao balcão, não apenas tão alto quanto o peito, mas erguendo-se até o cimo da janela. Era feita de treliça8 e dividida em painéis ou compartimentos [...] formavam uma espécie de alça-pão que permitia às pessoas olharem para baixo a rua, sem que elas próprias fossem vistas [...].9

Só em poucas casas, de mais posse, notavam-se serpentinas e candelabros com velas de cera. Nessas residências, ainda, o cardápio era gastronômico, composto de oito a dez pratos, à semelhança do que se aprendera na metrópole. O célebre natu-ralista Charles Darwin, durante os poucos dias em que visitou a cidade, assim se

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pronunciou a respeito: "Num dia fazia os cálculos mais sábios para conseguir pro-var de tudo e pensava sair vitorioso da prova quando com profundo terror vi che-gar um peru e um porco assado".10

Mas uma refeição normal poderia ser bem mais frugal e, evidentemente, as diferenças sociais inscreviam-se nos hábitos alimentares. Conta Luccock que no "jantar do meio-dia" serviam-se sopa, muitos legumes, carne-seca e feijão. Em vez de pão, a farinha de mandioca era usada de forma corriqueira, enquanto as frutas nativas e os queijos importados de Minas faziam parte das preferências locais. O milho era consumido de diferentes maneiras e alimentava grupos étnicos e sociais distintos: podia ser assado ou preparado como pipoca, esfarinhado (o fubá), servi-do como canjica (fervendo-se o milho em leite), ou jacuba (mistura de farinha de milho com rapadura e água). O comércio de gêneros alimentícios era pequeno e tenderia a aumentar com a vinda da corte. Assim, se nos anúncios do final da déca-da de 1800 a venda de quitutes denotava um certo mercado — uma empada com recheio-de ave custava cem réis; uma feita com porco, oitenta, e outra com maris-co ou camarão, sessenta11 —, já em meados de 1810 ofereciam-se, na Gazeta do Rio de Janeiro, gêneros mais coadunados com a elite migrada para os trópicos: diver-sos tipos de pão, vinhos variados, presuntos de Portugal, salames da Itália, doces europeus, frutas, aguardentes e licores.12

No Paço não se deixava por menos. Era cozinheiro de d. João um tal de José Cruz Alvarenga, que chegara com ele de Lisboa e ajudara a criar sua fama de glu-tão. Vem daí a tradição de descrever o príncipe sempre à mesa, a comer frangos com as mãos (no mínimo três por refeição), atirando os ossos fora e limpando os dedos em guardanapos de linho. A medida que comia as aves, ia devorando fatias de pão torrado — nem muito tostadas, nem muito moles —, para em seguida chu-par quatro ou cinco mangas da Bahia.13

Após o almoço o príncipe recolhia-se à sala fresca do improvisado Paço do Rio de Janeiro, e proibia que o perturbassem, até segunda ordem. Estendia-se en-tão num canapé de palhinha e tirava a sesta por horas demoradas. Algumas vezes deixava-se levar pelas leituras, outras ajoelhava-se na almofada carmesim do ora-tório, recomendando-se aos seus santos favoritos; ao final, da leitura ou da prece, consoladamente dormia. Velavam sempre à porta os moços da Câmara, Matias Lobato ou Francisco Rufino; mais adiante, além do corredor, os oficiais às ordens. O ócio era longo e rompido apenas pelo berreiro dos infantes, que insistiam em desafiar os macacos nas gaiolas, provocavam os cães e gesticulavam contra os papa-gaios, cacatuas e araras.1'1

Certa passagem pitoresca da vida de d. João é contada com regularidade: pi-cado por um carrapato, e seguindo conselhos médicos, recorreu aos banhos de mar. Porém, como o incidente lhe trouxera dificuldades de locomoção, o príncipe re-gente passou a usar a "cadeirinha" para as distâncias mais curtas — pequeno carro feito para um passageiro e transportado nos ombros de escravos —, e o problema virou solução, para deleite da elite local, que tumultuava as ruas com seus veículos

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caprichados.15 Verdade ou não, o fato é que nas ruas Direita e do Ouvidor, já com pretensões à elegância, rodavam algumas poucas carruagens e menos raras cadei-rinhas — particulares ou de aluguel. Por sinal, nessas ruas começava a se aglutinar o comércio local, onde se reuniam comerciantes, em geral estrangeiros, mas tam-bém negros de ganho e negras doceiras, frades e soldados. Mas, afora esses endere-ços, os transportes eram um problema. Para curtas distâncias utilizavam-se carro-ças com cortinas, puxadas por mulas e conduzidas por um escravo que seguia a pé, ou então num carro de boi. Já na sede da corte uma variedade maior de meios de locomoção estava à disposição. A Gazeta do Rio de Janeiro anunciava com freqüên-cia a venda de carros para um ou dois cavalos, cobertos ou descobertos; de quatro rodas ("de cabeça de deitar para trás"); carruagens de portas; carruagens de vidros; carruagens de cortinas; carruagens à Daumont (com arreios para quatro cavalos); carruagens com duas ou quatro rodas; seges de boléia; seges montadas em molas, aparelhadas de casquinhas, de duas ou quatro rodas e traquitanas de portas, de cor-tinas ou de vidros.16

Quem não pudesse adquirir veículos tinha a possibilidade de alugá-los, fosse para percorrer distâncias maiores, fosse para "fazer bonito" em dias de festa ou de "grande função". Na época, havia cocheiras que alugavam seges "muito asseadas e com boas parelhas" pelo preço de cinco patacas, tanto de manhã como de tarde.17

Alugavam-se, ainda, criados "com toda decência" para conduzir os veículos velo-zes e evitar acidentes causados por condutores inexperientes. Os veículos precisa-vam ser reservados de véspera, e não se aceitavam aluguéis por períodos muito curtos. Por isso mesmo, em 1819 o prussiano Von Leithold se queixava desses serviços: "São carros de duas rodas, pequenos, semicobertos e forrados por den-tro [... ] Duas mulas magras, uma delas montada por um boleeiro quase sempre embriagado, puxam esse veículo, que mais se assemelha aos carrinhos de feira".18

Mas as comunicações e os movimentos eram, de modo geral, difíceis: os passapor-tes eram vistoriados, as entradas e saídas dificultadas e os correios muitas vezes omissos.

A nobreza que rodeava a corte, sobretudo aquela que imigrara de Lisboa, leva-va uma vida ociosa, leseira dos trópicos. Se, de um lado, refugiava-se nesse exílio longínquo e ocupava boa parte dos postos da inchada máquina de Estado, de ou-tro, cansava-se com o calor. A irritação da elite pode ser explicada, também, pela falta de diversões nos moldes europeus. O Passeio Público, construído entre 1779 e 1783, foi durante muito tempo o maior dos atrativos, com seus jardins bem cui-dados. Touradas existiam, mas eram poucas, e realizavam-se no Campo de San-tana. Leithold acompanhou uma em que

portugueses, brasileiros, mulatos e negros vaiaram do princípio ao fim. Um tourinho magro, cuja ira alguns figurantes paramentados procuravam em vão provocar com suas capas vermelhas, permanecia fleumático, e quando parecia uma vez por outra dis-posto a investir, logo pulavam eles, assustados, a barreira que os separa do público e eram recebidos com assobios e cascas de laranja.19

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3 Debret retrata escravos cercando a nobreza na cena

pública e na vida privada: como adereço, como detalhe, como demonstração de riqueza e poder. FBN

4. Na interpretação exótica de Rugendas, a placidez das negras quitandeiras do Rio de Janeiro. FBN

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5 Viagens nos ombros ou a pé: escravos, idealizados

por Debret tal qual modelos gregos. FBN

6. Viajantes em Portugal: dificuldades lá e aqui. William Morgan

Kinsey, FBN

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Havia, também, o Real Teatro de São João, fundado em 1813, e durante dez anos o único na cidade. É verdade que outrora, nos idos de 1747, na rua da Ópera, existira outro, pertencente a um padre chamado Ventura e conhecido como "Casa da Ópera". No entanto, o empreendimento ardeu quando se representava a peça Encantos de Medéia. Foi então, em 1776, erguida outra Casa da Ópera, onde se representaram peças de Molière e de Antônio José.

Mas na época de d. João a Casa da Ópera fechou suas portas. Um novo teatro, mais equipado, foi edificado — justamente o São João, marco da arte dramática no Rio de Janeiro. Atores vieram de Portugal e, com eles, companhias: uma de canto, dirigida por Ruscollu, e outra de dança, coordenada por madame e monsieur Lacombe. A então célebre atriz Mariana Torres esteve no país, acompanhada pela orquestra de Marcos Portugal. O maquinista do teatro chamava-se Luís Cago e os cenógrafos eram nomes conhecidos no meio: Manuel da Costa, José Leandro de Carvalho e depois Debret. Para se ter uma idéia do vínculo do teatro às lides de Es-tado basta lembrar que, por ocasião da abertura, apresentou-se o espetáculo: O ju-ramento dos numes (cujo libreto data de 1813). Não há espaço para retomar perso-nagens e enredos, mas, para saciar curiosidades, nada como lembrar o último ato, quando o "Gênio", voltando-se para o retrato de Sua Alteza Real, faz o seguinte juramento:

Perante a Vossa efígie Augusta e Sacra, Vasto soberano de Nações Diversas, Cujo braço ostentoso alcança e rege Os Hemisférios dois com as rédeas fulvas, Perante a Vossa efígie e sobre as aras Onde eterno fulgor as nuvens doira Juramos pelo escuro Estígio lago Nós do Grão dos reis, família e sangue; Que os povos de Ulisses esclarecidos Inquietados serão, mas não vencidos [...]

Os Cyclopes Salve príncipe Excelente, Salve ditosa Nação, Que dais ao mundo oprimido, A suspirada união [...]

As Graças Que dais ao mundo oprimido, A suspirada união.

Os Cyclopes Nos fastos brilhantes De Lysia incansável Será memorável Um Sexto João [... ]

Todos Que dais ao mundo oprimido A suspirada união.2"

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7 O maestro Marcos Antônio Portugal, diretamente da metrópole para os palcos brasileiros. FBN

MARCOS MSíTOfóiQ. P@8TUiGAi ErQjMhf MS» iiM jéQrifa <è *-jf0J»Mr fi<<

Com tanta oficialidade, não se deixava para menos. Nos dias de gala, d. João, sua esposa e filhos compareciam ao teatro e, nessas ocasiões, o interior do São João era revestido de sanefas de seda, grinaldas de flores, arandelas, lustres, e na tribuna real eram dispostas cortinas de veludo franjadas de ouro. A Família Real, que ganha-va um elogio dramático no princípio de cada espetáculo, surgia ainda representa-da no novo pano de boca que homenageava sua chegada à baía do Rio de Janeiro.21

A platéia, por sua vez, esmerava-se nas vestimentas, com os fidalgos ostentando suas comendas e as damas, altos toucados entrelaçados de pérolas e pedras precio-sas. Antes de se iniciar a função, os espectadores se dividiam em quatro ordens de camarotes, que acomodavam um total de 1020 pessoas.

E o São João teria vida longa, convertendo-se em palco para representações não só dramáticas como políticas. Em 1821 d. João vi sagrará a Constituição nesse local, assim como também d. Pedro se utilizará desse palanque para tomar sua cena. Mas esse já é um outro contexto, e neste em que estamos o Rio de Janeiro vai se conver-tendo em sede social e cultural da nova elite, que misturava a nobreza da terra, re-cém-homologada, com a que vinha de Portugal e ainda carregava sua galhardia.

Também na música d. João soube combinar artistas vindos do exterior com os bons exemplos locais. Por isso se fez cercar de profissionais, e em especial do com-positor José Maurício, que costumava deliciar o real ouvido na Capela e no Paço. O padre Maurício, como era conhecido, pontificou até 1810 em todas as funções

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musicais sacras e profanas, quase sem concorrência; isso até a chegada de Marcos Antônio Portugal, músico mais preparado, formado pela escola italiana e com prá-tica de batuta na regência das orquestras de São Carlos em Lisboa. O rei e toda a família apadrinharam o maestro, velho conhecido — e reconhecido — na corte portuguesa, e fizeram dele presença fundamental. O príncipe, que tinha laivos de músico, adotou o artista e, desde 1810 até a partida da família, Marcos Portugal colaboraria em todas as cerimônias públicas, compondo óperas e músicas sacras com "tonalidade profana" e regendo o grupo de vocalistas que trouxe de Portugal. E a música erudita ia crescendo, a ponto de em 1815 a Capela Real possuir um corpo de cinqüenta cantores, entre estrangeiros e nacionais, que só destoavam por conta de sua coloração.

Também nessa época eram incrementados os trabalhos na Fazenda Santa Cruz, cuja fundação remontava ao tempo dos jesuítas. Além de fornecer produtos agrí-colas, ela formava artistas eruditos, todos negros. Não muito distante da capital, a cerca de 60 quilômetros da cidade, ficava essa propriedade,22 que ocupava uma área de grandes proporções.23 A fazenda possuía escravos que recebiam tratamento diferenciado do habitual: trabalhavam três dias para os padres, outros três em suas próprias lavouras e criações; os domingos eram sagrados ao descanso, e é claro, às missas. Agora, o mais curioso: escravos e escravas eram iniciados na música sacra — constituíam corais, tocavam instrumentos e geravam novos mestres. Pela arte e

8. O Palácio de São

Cristovão e os arcos da Lapa.

Johann Emanuel Pohl, FBN

9. Arcos da Carioca,

o grande aqueduto do Rio de Janeiro. John

Barrow, FBN

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10. Duas gravuras de D. João, já na colônia brasileira. A primeira é uma gravura de Manoel Antônio de Castro; a segunda, de Bartolozzi. FBN

a qualidade de seu desempenho, esses músicos foram ganhando fama, e a escola ficou conhecida como Conservatório de Santa Cruz.24 Em cinqüenta anos — da expulsão dos jesuítas até a vinda da Família Real para o Brasil — a fazenda entrou em processo de decadência, nunca mais alcançando a organização e a rentabilida-de daqueles tempos. Mas os músicos mestres continuaram, como puderam, a exer-cer seu ofício, formando novas gerações e dando seqüência à tradição de educar virtuoses e cantores para as solenidades do culto e óperas.25

A escola de música, ou Conservatório, receberia novo impulso com d. João, sendo não só a atividade dos escravos cantores incentivada, como a fazenda toda. Em 1817, o prédio foi reformado, recebendo amplos aposentos; a capela foi rede-corada, prevendo gloriosas apresentações da orquestra e coral, tudo ao gosto dos palácios reais portugueses. E Santa Cruz passou a ser a residência de verão da Fa-mília Real e sede das solenidades promovidas e ali realizadas pelo príncipe regen-te.26 Mas, amante dos cantochões gregorianos, ele se encantou mesmo foi com a orquestra e os cantores escravos. Os músicos escravos, além de talento próprio, dedicavam muito tempo ao estudo teórico e à prática instrumental, sob a orienta-ção de talentosos mestres, como o músico, compositor e regente José Maurício, o nosso padre mulato, também conhecido como o "Mozart brasileiro". Por sinal, do Conservatório saíram os primeiros professores de música que o Rio de Janeiro conheceu, como Salvador José (o mestre de José Maurício), e cantores negros fica-ram famosos atuando na cidade, como o modinheiro Joaquim Manoel.27 Logo que

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ouviu a orquestra e o coral, d. João requisitou os primeiros violino, clarinete e fa-gote, assim como as cantoras Maria da Exaltação, Sebastiana e Matildes, para fazer parte da orquestra da Real Capela do Paço da Boa Vista, que se apresentaria em cerimônia especial.28

Costume inaugurado por d. João, os músicos do Santa Cruz seriam constan-temente transferidos para integrar a orquestra, o coral ou a banda do Paço de São Cristóvão e da Capela Real. Tocavam de tudo. Rabecas, viloloncelos, clarinetas, ra-becões, flautas, fagotes, trombones, trompas, pistons, requintas, bumbos, oficlides, flautins de ébano, bombardinos e bombardões — executavam marchas militares e patrióticas, valsas, modinhas, quadrilhas. E óperas, cujas despesas — partituras, métodos, cadernos pautados, instrumentos e peças como cordas, peles, chaves, ar-cos e varas — ficavam por conta da casa real.

Como se vê, no campo da cultura, como em outros, mais lembrávamos uma Europa distante, apenas estranhada em face da origem e da cor de nossos virtuo-ses. D. João, amante da música, comparecia ao teatro nos dias de gala, e às vezes adormecia. Ao acordar, sempre perguntava a um de seus fiéis camareiros: "Já se casaram os patifes?".29

Engana-se aquele que pensa que a corte era cópia fiel dos modelos europeus. Mesmo que os recém-chegados quisessem, a realidade dos trópicos se impunha. Insetos eram tema constante entre viajantes, que descreviam as especificidades des-ses "pequenos monstros" de pernas longas: "Pessoa de consideração que reside no Brasil chamou o país por causa deles de terra das bofetadas. Isso porque para nos defendermos dos mosquitos à noite, temos que nos dar bofetadas à esquerda e à direita continuamente".30 E não só dos mosquitos se queixavam os viajantes. Ratos e camundongos, baratas, bichos que entravam nos dedos dos pés e cães que ladra-vam a noite toda faziam a desgraça dos estrangeiros, que mal refeitos do calor ti-nham de lidar com os habituais incidentes dos trópicos.

No entanto, o que mais chamava a atenção do estrangeiro era a população negra. "Falta gente branca", dizia o conde de Palmela para sua mulher, em 22 de janeiro de 1821, referindo-se à evidente superioridade numérica de negros no Rio. De um lado, a escravidão estava por toda parte e revelava, até nos mínimos deta-lhes, a violência do cotidiano: o rigor da jornada, a força dos castigos, as marcas de sevícias pelo corpo, o trato desigual e freqüentemente inumano. De outro, o cati-veiro também simbolizava o trabalho existente; "mãos e os pés do senhor de enge-nho",31 os escravos faziam todo o labor e reservavam para si o preconceito em rela-ção à labuta manual.

De tão comum na cena social, a escravidão aparecia descrita nas diferentes seções dos jornais, e sobretudo nos classificados. Mas existiam diferenças: enquan-to nos anúncios de venda e de aluguel destacavam-se as boas qualidades das "pe-ças" — saúde, asseio e lealdade —, nos classificados de fuga, cujo objetivo era encontrar o cativo evadido, abundavam descrições detalhadas, que muitas vezes não se constrangiam em enumerar marcas de castigo, quando o negócio era recu-perar o fugitivo. Na seção de avisos da Gazeta do Rio de Janeiro, sem maiores difi-culdades eram encontrados anúncios do tipo:

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6/6/1810 Em 1804, fugiu a Manoel Fernandes Guimarães um escravo mulato de idade de 30 anos chamado Joaquim que foi comprado na Capitania do Espírito Santo ao pe. Antonio Gomes, tem os sinais seguintes: é oficial de alfaiate, barbeiro, de estatura ordinária, cabelo unido ao casco da cabeça, beiços grossos (o de cima finge dois) e muito picado de bexigas. Quem dele tiver notícia e queira denunciar, dirija-se à casa de Manoel Gomes Fernandes na rua Direita na 26 aonde receberá o prêmio de 40$000 rs.32

Mas, toma lá, dá cá, também a população escrava e negra reagia à corrupção dos funcionários e à desordem que muitas vezes vigorava na cidade:

Baranco dize-preto fruta Preto fruta co razão Sinhô baranco também fruta Quando panha casião Nosso preto fruta garinha Fruta saco de feijão; Sinhô baranco quandro fruta Fruta prata e patacão Nosso preto quando fruta Vai pará na correção Sinhô baranco quando fruta Logo sai sinhô barão33

11. Na visão de Spix e Martius, detalhes da vida cotidiana senhores e senhoras sendo transportados por escravos, cena em um bordel, "índios selvagens" e as festas locais, que, na visão de boa parte dos estrangeiros, compunham um "espetáculo de barbáries". FBN

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Os exemplos se multiplicariam, sempre demostrando a proeminência da população negra sobre a européia. Eram barbeiros, vendedores de frutas, vendedo-res de angu, capim e sapé; quituteiras, carregadores de peso ou das elegantes litei-ras — nesse caso portando vistosas librés, mas sempre descalços —, meninos de recado, jornaleiros (que ganhavam por jornada), cata-piolhos, marceneiros, negros de ganho... Estes últimos eram tão numerosos que compunham categoria à parte. Prestavam toda sorte de serviço — vendiam mercadorias, carregavam água e lenha, transportavam cadeirinhas — e eram regulados por uma "postura do Senado da Câmara":

Haverá em cada um canto em que se costumam ajuntar os negros ganhadores um capataz [...] a quem o povo pedirá os pretos que lhe forem precisos para o serviço de que os quiserem cobrar por cada serviço de que os quiserem encarregar.34

Os preços eram fixados de maneira rígida, e a alimentação, estabelecida por jornada. Nada como "naturalizar" aberrações culturais.

Para se ter uma idéia da penetração desse tipo de mão-de-obra, basta dizer que na década de 1820 a corte possuía cerca de 38 mil escravos, numa população total de aproximadamente 90 mil habitantes, sem contar os africanos livres que to-mavam o espaço urbano. Tratava-se, desde Roma, da mais numerosa concentração

12. Carregadores de água nas ruas do Rio de Janeiro:

cenas naturalizadas da violência cotidiana. Johann

Moritz Rugendas, FBN

13. Vista tomada da igreja de São Bento para o Rio

de Janeiro: uma cidade basicamente negra. Johann

Moritz Rugendas, FBN

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de escravos, com a especificidade de que no Rio de Janeiro a soma deles se equili-brava com a dos descendentes europeus. Mas a balança tendia a pender para um dos lados: com as levas arrebanhadas pelos negreiros e que chegavam a cada ano, a cidade ganhava mais e mais um aspecto africano. Próximo ao Paço, era tal a in-cidência de escravos que a região ficou conhecida como "Pequena África". Na ver-dade, e como dizia Almeida Prado, o "Rio mais parecia uma cidade da costa d'África",33 com o desfile de africanos de diferentes origens e que portavam, or-gulhosamente, escarificações no rosto e no corpo — uma evidente indicação do gru-po a que pertenciam e de como a sociedade inscreve suas marcas no corpo de seus indivíduos.

Em suma, a chegada da Família Real e a concomitante abertura dos portos aca-baram por elevar o tráfico a níveis muito altos.36 O número de africanos era tão sig-nificativo que se empreenderam políticas em "prol da povoação branca". Das ilhas dos Açores vieram casais de ilhéus e pagaram-se a eles mesadas, assim como foram providenciadas moradias, ferramentas, carros de boi e tudo o que lhes fosse neces-sário.37 A cor da cidade não passava despercebida e medidas oficiais visavam con-trabalançar tal tendência.

A CIDADE COMO RITUAL: FESTAS E DECRETOS

Com tanta variedade de cores, procedências e uma tal mistura, a capital se converteria num contínuo carnaval, com sua procissão de personagens desfilando pelo cotidiano. Ora surgia o desembargador da Casa de Suplicação, em sua beca de seda negra a suar com o calor de quarenta graus; ora era a sege de um ministro escoltado pelos correios que vinham a cavalo, trajando suas fardas azuis ornadas de golas e punhos vermelhos, botas altas e chapéus jogados um pouco de lado; por vezes um batizado de negros que, "recém-chegados" ao catolicismo, ostentavam suas madrinhas e padrinhos com roupas extravagantes.

Não obstante, se o rebuliço era normal, as ruas do Rio ficavam ainda mais animadas nos dias de festa. As principais procissões eram sete: a de são Sebastião, em 28 de janeiro e oito dias depois da festa do padroeiro da cidade; a de santo Antônio, na quarta-feira de Cinzas; a do Triunfo, na sexta-feira que antecede o domingo de Ramos; a do Senhor dos Passos, na segunda-feira da Quaresma; a do Enterro, na sexta-feira santa; a do Corpo de Deus e a da Visitação, a 2 de julho.38

Nessas ocasiões, até mesmo a corte e seus figurões, em seus uniformes bordados, saíam em desfile com o infalível cortejo de soldados de barretina pendurada no an-tebraço, estandartes religiosos, cantores da Real Capela e demais curiosos ou pes-soas gradas. Os préstitos seguiam por entre cânticos e foguetes, enquanto a multi-dão compactada aplaudia a procissão e o comércio lucrava alto com a venda de doces e bolos. Afinal, ninguém é de ferro e não havia dia sem festa, e não havia festa que não valesse um bom dia. Mas não eram só as procissões que brotavam

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14. Festas de santa Rosaria, padroeira dos negros: rituais e muita agitação, ao menos para os olhos estrangeiros, pouco acostumados a tantas celebrações.

Johann Moritz Rugendas, FBN

nas ruas. Foguetórios, leilões, batuques, fandangos, cavalhadas, a queima do Judas no sábado santo (proibida em 1821), a festa do imperador do Espírito Santo, os aniversários da realeza, as datas religiosas... qualquer motivo era bom para tirar a cidade da aparente calma semanal.

Existia, porém, uma hierarquia nessas comemorações: enquanto nos rituais religiosos eram os clérigos que comandavam, nas cívicas e nos aniversários oficiais os representantes do príncipe regiam o andamento.39 Por fim, nas demais procis-sões de rua eram os imperadores do Divino e outras figuras do imaginário popu-lar que tomavam a cena.

Essa mania festeira não era, contudo, invenção local. Na verdade, tanto portu-gueses livres como africanos escravos, em seus países de origem, tinham o costu-me de assistir a cortejos reais e procissões. No caso de algumas nações africanas, eram comuns, desde o século xvin, as cerimônias de coroação de reis locais, bem como dos reis e rainhas das congadas, cheganças e do maracatu. Quanto aos por-tugueses e seus descendentes, além de habituados às procissões barrocas, conhe-ciam muito bem as cavalhadas. No entanto, neste reino distante e transmigrado as festas cumpririam função ainda mais estratégica. Estamos falando da importância simbólica da manutenção do poder político e da maneira como a corte se utiliza-va desse espaço da festa e era por ele utilizada.

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15. Barbeiros uma das inúmeras funções 16. Cenas de carnaval e mercados locais: dos escravos numa colônia em que faziam escravidão por toda parte. Debret, FBN

de tudo. Debret, FBN

17. Cavaleiros de Cristo vestidos conforme suas ordens, e negros vão à igreja para

serem batizados: na representação, Debret expressa uma mistura pacífica de costumes

e tons, FBN

18. Debret imortaliza cenas do mercado perto do chafariz do Valentim e uma representação

do interior de uma casa, FBN

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As aparições públicas do príncipe d. João — nos cortejos reais ou nas procis-sões — convertiam-se em demarcações territoriais e vinculavam sua imagem à própria representação do Império Português, espalhado pelos quatro cantos do mundo e governado da colônia. Com tantas festas a realizar e muitas novas modas a consagrar, o Rio de Janeiro convertia-se em centro difusor e o príncipe acomo-dava-se a esse calendário de celebrações mistas. Além do mais, organizada a admi-nistração, reformadas as instituições, tudo parecia assentado naquela imensa baía, com sua irregularidade de formas, seu recorte em pequenos golfos, a profusão de ilhas e as águas terminando em florestas tropicais. O Brasil parecia presente de boa fortuna; com a nobreza portuguesa e a da terra, com os viajantes que iam e vinham e com seus costumes restabelecidos, o príncipe aparentava não querer outra coisa senão ficar.

E a corte adicionaria novas datas ao já carregado calendário de festas local. Em 16 de dezembro de 1815, na véspera da comemoração do 812 aniversário de d. Maria i, d. João elevou o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves e transformou a colônia em sede da monarquia portuguesa. A medida representava uma espécie de homenagem do príncipe a essa terra que ainda habitava depois de sete anos. Mas o ato também tinha contornos políticos, econômicos e diplomáti-cos: desembaraçava o comércio e suas regras; respondia à parte das demandas inglesas e, de quebra, buscava evitar o exemplo da América inglesa e de suas colô-nias vizinhas espanholas. Por sinal, mesmo com a atuação do Congresso de Viena, movimentos ecoavam por todos os lados, mostrando como a ordem política per-manecia frágil. Na Rússia surgiam notícias de reformas; na Polônia havia vários focos de perturbação; Prússia e Áustria continuavam lutando pela hegemonia ger-mânica; Suécia e Dinamarca se opunham por conta da Noruega; Bélgica e Holan-da não mais logravam permanecer unidas; e, enquanto Nápoles virava um campo de experimentos liberais, a Espanha servia de sede para reações absolutistas. Enfim, para onde quer que se olhasse a situação parecia pouco segura, e a tutela — igual-mente tirânica — da Santa Aliança e o desassossego latente davam motivos de sobra para dissuadir d. João de sair do Brasil, local relativamente tranqüilo, distan-te das guerras civis e dos arroubos revolucionários.

A elevação do Brasil a reino, além de representar a afirmação de sua integri-dade territorial, significou a derivação lógica de uma série de circunstâncias. De um lado, era inegável que uma certa autonomia era necessária, já que, agora, todos os negócios se arranjavam a partir da colônia. Por outro, a medida foi uma hábil resposta de d. João às potências coligadas, que pediam que, cimentada a paz geral, o príncipe retornasse a Portugal.

De toda maneira, nada como selar uma -nova realidade com mais festas. Assim, as comemorações cariocas quando da elevação da colônia foram motivo de júbilo para brasileiros e de manifestações iradas por parte dos portugueses. Nosso já conhecido Marrocos, um português de quatro costados, em um parágrafo típi-co de suas cartas mal-humoradas, achincalhava o que via:

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O Senado, que em tudo se quer distinguir, em tudo dá a conhecer que é o Senado do Brasil; e [...] fez a função mais porca, que eu não esperava ver. Em despique a mesqui-nhez do Senado, o corpo do comércio, todo bazófia, reserva para depois da Páscoa a sua função, alusiva ao mesmo objeto, e em que prometem o maior aparato e grande-za, a imitação das festas reais de Lisboa, para o que já se acha atualmente em cofre de depósito mais de 100 contos de réis, finta que se vai recebendo de todos os negocian-tes para aquele fim. Quanto a mim, o extremo também é vício.40

Além do mais, a Coroa trabalhava sempre com a proposital coincidência de datas. Não bastava aproximar a elevação do aniversário da rainha, era preciso jun-tar a festa patriótica à data religiosa; assim o ato civil se unia à data do santo padroeiro da cidade — são Sebastião —, e um feriado referendava o outro.

Visto de longe, governar parecia até fácil e entre festas o Brasil virava reino e rompia de vez com as amarras do comércio metropolitano. E não era para menos. O Rio de Janeiro havia se transformado, desde o tratado de 1810, no grande entrepos-to brasileiro, e de seus portos afluía e partia uma enormidade de produtos. Da Grã-Bretanha vinham fazendas, metais, gêneros alimentícios e mesmo vinhos espanhóis; da França, artigos de luxo, quinquilharias, móveis, livros e gravuras, sedas, mantei-gas, licores, velas, drogas; da Holanda, cerveja, vidros, linho e genebra; da Áustria, que comercialmente representava o Norte da Itália e o Sul da Alemanha, relógios, pianos, fazendas de linho e seda, veludos, ferragens, produtos químicos; do resto da

? Y M

19. Planta do Rio de Janeiro: a delimitação das fronteiras como tema estratégico. Debret, FBN

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Alemanha, vidros da Boêmia, brinquedos de Nuremberg, utensílios de ferro e latão; da Rússia e Suécia, mais utensílios de ferro, cobre, couro, alcatrão; da costa da África, mais especificamente de Angola e Moçambique, ouro em pó, marfim, pimenta, ébano, cera (consumida pelas igrejas em quilos), azeite de dendê, goma arábica e — a nota triste desta relação — escravos negros. Mas a lógica do mercado por certo não tinha um lado só. Para as colônias africanas de Portugal, o Rio passava a representar o mesmo papel que antes cumprira Lisboa. Do mesmo modo o comércio português com a índia e a China localizou-se então no Rio de Janeiro, de onde se faziam as reexportações para Lisboa e outros pontos europeus, e para o resto da América. Por sua parte, as principais exportações do Brasil, e em especial do Rio, compreendiam o açúcar, o café, o algodão e o fumo, produzido também no Espírito Santo.41

Era a autonomia que vinha chegando, como se fosse presente fácil. Mas a con-dição de d. João passaria, finalmente, por mudanças. Em 20 de março de 1816, pouco depois de seu aniversário, morria d. Maria I, que havia longo tempo só vege-tava. Não que antes estivesse sã e consciente do que se passava. Muito pelo contrá-rio, ficaram nos ouvidos do povo seus urros no desembarque da Família Real. Mesmo em tempos de "normalidade", quando já instalada no convento do Carmo — bem próximo de nossa Biblioteca —, a rainha fazia diariamente um passeio de carro pelas ruas da nova capital, sem, na verdade, conhecer ou reconhecer nenhum cenário ou personagem. Ia sempre numa liteira, carregada por escravos que já haviam se acostumado a lidar com visões, que dizia encontrar o diabo no caminho e insistia em sair do veículo.42

Entretanto, a despeito de sua situação mental, foram-lhe reservadas as honras devidas à sua posição. Assim que seu estado de saúde piorou e a morte foi tida como iminente, saíram às ruas confrarias e membros do clero, entoando ladainhas e pre-ces. Era outro tipo de festa: a festa da morte, que se desenrolava porém de modo semelhante. No palácio, o ofício da agonia foi executado pelo núncio e pelo frei Joaquim Dâmaso, da Congregação do Oratório e prefeito da Real Biblioteca. Uma vez dado o derradeiro respiro, vestiram de negro o corpo morto da rainha, com a banda de três ordens militares, e passaram-lhe o manto de veludo carmesim bor-dado de estrelas de ouro e forrado de cetim branco. Dentro das atividades das exé-quias, procedeu-se ao beija-mão da defunta na presença do futuro rei, que estava "na maior mágoa e saudade, perdeu o comer e ainda persiste em contínuo pran-to".43 Com o corpo metido num caixão de lhama branca e recoberto de veludo ne-gro, com drogas aromáticas secas e moídas a perfumar o ambiente, celebrou-se o funeral. Nas decorações lutuosas das igrejas predominavam os tons roxos da viu-vez e a pompa da realeza se afirmava, ainda nessa hora, com a construção de capi-téis coríntios e cúpulas de veludo preto com galões de ouro e prata. Por toda parte, missas encomendavam a alma da soberana e desejavam um descanso melhor do que sua vida lhe reservara.

Os cuidados com a saúde de d. João reduziram o luto a oito dias, decorridos os quais os vereadores fizeram uma procissão e a Família Real recebeu pêsames, saindo para ouvir missa e aspergir o caixão. As exéquias realizaram-se a 23 de abril,

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na Real Capela, forrada de alto a baixo de negro e ouro. A cidade toda carregaria luto por um ano, em acompanhamento ao da dinastia de Bragança, que ficava sem sua rainha, mas começava a esperar pela aclamação do novo rei.44 A cerimônia da morte não deixava de ser uma bela encenação, sobretudo porque, nesse caso, abria espaços para um novo contexto político. Depois de assinar, durante tanto tempo, atos em nome de outros, o príncipe, que elevara seu reino, preparava-se para ser aclamado rei: tudo em sua rica colônia americana.45 Esse monarca que assistira a tantas provocações, que vira rolar na guilhotina a cabeça de um rei francês e que decidira deixar a metrópole e atravessar o Atlântico parecia satisfeito em conservar sua coroa, ainda que mareada.

Mas essa não seria a única morte sentida no governo, e o ano de 1817 come-çava com algumas festas de luto. Entre tantos nomes foi particularmente lamenta-do o falecimento de d. Fernando José de Portugal, marquês de Aguiar, em 24 de janeiro de 1817, ministro e secretário de Estado de Negócios do Reino, prontamen-te substituído pelo desembargador do Paço, Tomás Antônio de Vila Nova Portugal. Também um novo ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos seria indicado: o conde dos Arcos. Mas talvez o desfalque mais importante tenha sido Antônio Araújo de Azevedo — o conde da Barca —, que faleceu em junho daquele ano. Político de atuação conturbada, Antônio Araújo representou como ninguém o "par-tido francês" e os interesses e costumes dessa nação junto ao governo português. Tal moda porém não era privativa. Desde a pacificação de 1814 — e até um pouco antes dela —, a influência francesa na área cultural se fazia notar mais e mais. Nos jornais da época, imigrantes franceses ofereciam seus préstimos e prometiam, pelo valor de 480'réis, milagres para quem quisesse aprender a língua de Rousseau. Costureiras imigradas e modistas alardeavam serviços para donzelas desejosas de se vestir nos trópicos como nos amenos climas temperados. Rendas, leques, enfei-tes, aromas de todos os gêneros, chapéus, jóias, galões, canutilhos, penachos, laços, bordados de ouro e prata, botas e sapatos de seda — inadequados para as empoei-radas ruas cariocas, mas apropriados para o novo luxo que se apregoava —, tudo vinha do continente europeu, e principalmente da França. Na Imprensa Régia, documentos oficiais conviviam com inúmeros tratados em francês; além disso, chegavam ao prelo as primeiras novelas: Diabo coxo, de Alain-René Lesage, tradu-zida em 1809; e Paulo e Virgínia, de Bernardin de Saint-Pierre, de 1811. Mas foi a partir de 1815, e com a derrota de Napoleão, que essa voga literária francesa pegou para valer, fazendo a loucura dos leitores mais românticos com títulos variados: O amor ofendido e vingado, A boa mãe, O bom marido, As duas desafortunadas, Triste efeito de uma infideliáade. Sofria-se com motes e personagens franceses, assim como se lia a boa literatura iluminista como Henriada, poema épico de Voltaire, As cantatas, de Rousseau, ou Ifigênia, de Racine. Também entre os livreiros locais a presença de títulos franceses era uma constante, incluindo-se aí obras de religião, filosofia, ciências e artes, história, novelas, dicionários, livros de geografia e de ane-dotas.46 A idéia era, daí para a frente, portar-se como pessoas familiarizadas com as modas européias e os ditames franceses. Por isso, e com a abertura do comércio,

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chegavam livremente grande quantidade de mercadorias finas e objetos por vezes inúteis. E a elite se acostumaria rápido com a exibição de alguns truques de brilho imediato: relógios de parede, candelabros de cristal, lustres de doze luzes, camas de sofá com cortinado, leitos de acaju com cortinas de franjas, mesas de chá e de cos-tura em jacarandá, quadros, papel pintado, porcelanas, cristais, vidros, panos de linho, plumas, jóias, biombos de charão, figuras de porcelana mate... aí estavam alguns dos "trastes" diariamente anunciados em jornais cariocas — e em especial na Gazeta do Rio de Janeiro —, revelando como havia um público ávido por pro-dutos europeus.

Todo esse gosto se acentuaria ainda mais a partir de outra iniciativa dos tem-pos em que Antônio Araújo fazia parte das lides do rei. Em 1816 o conde da Barca seria o agente da vinda de uma missão artística francesa, que aqui aportava com o objetivo de começar do zero. Fazendo pouco da produção artística já existente na colônia, um grupo de artistas vinha trazendo na bagagem a arte acadêmica france-sa — o modelo que, entre outros, dera grandiosidade, passado e memória ao go-verno "plebeu" de Napoleão —, e com eles chegava Debret, primo do emblemático pintor acadêmico Davi,47 que teria se tornado famoso em função de seus vínculos estreitos com o Império napoleônico. Arte e Estado casavam-se de forma harmonio-sa, como se a lógica de um se imbricasse na do outro. Por outro lado, os vínculos entre cultura e oficialidade ganhavam novos contornos: a Biblioteca Real represen-tava a "tradição e a memória nacional", já era hora então de criar uma iconografia patriótica e estatal.

A CORTE COMO CARTÃO-POSTAL: A MISSÃO FRANCESA

Foi o conde da Barca quem idealizou a formação de uma Academia de Belas-Artes, organizada com artistas de bastante reputação no ambiente francês. Antônio Araújo quase não vivera em Lisboa. Em 1788 fora como ministro para Haia, onde, na terra de Rembrandt, Vermeer e Brueghel, adicionou as artes aos seus gostos e predileções. Além do mais, não bastasse sua conhecida e acidentada missão diplo-mática em Paris, andou dois anos pela Alemanha, desenvolvendo seus interesses científicos, sobretudo químicos. Foi ministro, ainda, na Rússia (1802), passando pela Dinamarca e pela Suécia, até que o príncipe regente o chamou de volta na condição de ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra e, depois, cumulati-vamente, do Reino, cargo que exerceu por três anos, perdendo-o com a invasão francesa. A partir de então o conde da Barca ficaria irremediavelmente associado às idéias liberais que o Império da França simbolizava. Mas d. João, em vez de con-dená-lo ao ostracismo político, conservou-o no Conselho de Estado, e Antônio Araújo só esteve de fato afastado de 1808 a 1814, período em que se dedicou ao aprimoramento de seus conhecimentos. Interessava-se por tudo, ou quase tudo: serraria, fabrico de louça, modelos industriais, ensino... Atuava nas letras, na diplo-

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macia, na indústria. Falava fluentemente francês, inglês e italiano, e mantinha rela-ções com as rodas intelectuais européias. Em suma, era o homem certo para a idéia certa, nesse centro que se queria nobre, mas, pela distância, estava apartado das modas. Com efeito, transmigrada a corte, era preciso dotá-la de uma nova histó-ria, de outra memória, e, em uma sociedade majoritariamente analfabeta, nada me-lhor do que uma grande iconografia para criar uma representação oficial. E assim se faria: no lugar de uma corte imigrada, temerosa e bastante isolada, surgiriam imagens distintas de um império nos trópicos; exótico por certo, particular em suas cores, gentes e cheiros, mas universal na monarquia que o liderava. Aí estava uma realeza tão tradicional como as demais, que, passado o furacão chamado Na-poleão, voltava a se erguer.

Assim, em 1815, o marquês de Marialva,48 encarregado dos negócios de Por-tugal na França, contratou, por ordem de seu governo, diversos artistas reconheci-dos em seu meio que, em conseqüência da queda do império de Napoleão e preo-cupados com as represálias políticas, andavam desejosos de emigrar. Juntando a fome com a vontade de comer, e contando com o apoio de d. João, o conde da Barca deu início aos preparativos para a vinda de uma Missão Artística Francesa, como era bem de seu gosto. O governo francês, que não podia se opor, não viu com bons olhos essa emigração de artistas organizada — ademais — pelo embaixador de Portugal. Chegou-se até a pensar que se tratava de um exílio, disfarçado, de indi-víduos mais afeitos ao extinto império, mas negou-se tal intenção, sobretudo por-que nenhum dos artistas era visado pela polícia ou estava ameaçado pelas leis de segurança da monarquia restaurada. De toda maneira, a partida para o Brasil era tão simpática quanto ousada. Certamente imaginavam conseguir dinheiro fácil, junto a uma corte imigrada e a um povo sem educação artística formal. No entan-to, o país era distante e desconhecido, e havia bem pouco tempo seu príncipe decla-rara guerra a Napoleão, outrora o maior patrocinador desses mesmos artistas.

Não obstante, exemplos parecidos havia, e não poucas nações recém-emanci-padas, como o México, começavam a conformar acervos oficiais com o intuito de criar verdadeiras iconografias de Estado. Contudo, o que não sabiam, Barca e Ma-rialva, é que os primeiros momentos da Academia Brasileira de Artes seriam melan-cólicos. Araújo faleceria logo após a chegada do grupo e, sem seu principal mece-nas, a indiferença recairia sobre os integrantes franceses, além da surda hostilidade dos artistas nacionais e portugueses.49

Nesse meio-tempo muita desavença iria rolar, e vários dos artistas recém-che-gados em 26 de março de 1816 — tendo saído em janeiro de Havre no navio ame-ricano Calphe —, vinham para ficar, ao menos por algum tempo. E oportunidades não faltavam. Com o falecimento da rainha em 1816 e a futura coroação e aclama-ção50 do novo soberano, dois atos capitais na vida de uma nação monárquica, os artistas logo perceberiam qual seria sua verdadeira função: construir cenários e dar grandiosidade à corte imigrada. Tendo Joaquim Lebreton (secretário perpétuo da classe de belas-artes do Instituto Real da França)51 como líder e os artistas Nicolas Antoine Taunay (pintor do mesmo instituto),52 Auguste Taunay (escultor),53 Jean

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20. Joaquim Lebreton, 1766-1819. Chefe da Missão Francesa. FBN

21. D. Pedro José de Meneses, marquês de Marialva, encarregado dos negócios

portugueses na França. FBN

Baptiste Debret (pintor de história e decoração),54 Grandjean de Montigny (arqui-te to)^ Simão Pradier (gravador) e outros funcionários e participantes, o grupo francês era anunciado em face da diversidade de especializações e do perfil profis-sional de seus membros.56 A Missão trazia consigo, também, 54 quadros de pinto-res ingleses e franceses, destinados a dar início a uma pinacoteca local. É certo que a maioria era composta por reproduções de obras renascentistas, bem nos moldes da época, mas a idéia era suprir a colônia americana, "carente de boa arte". Com os componentes chegavam, portanto, o desejo de montar todo um aparato laico com relação às artes e a intenção de impor uma "nova cultura artística", mais afinada com as vogas européias.

O decreto sairia em 12 de agosto de 1816 nos seguintes termos:

Atendendo ao bem comum que provém aos meus fiéis vassalos de se estabelecer no Brasil uma Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios em que se promovam e difundam a instrução e conhecimentos indispensáveis aos homens destinados não só aos empre-gos públicos de administração do Estado, mas também ao progresso da agricultura, mineralogia, indústria e comércio de que resultam a subsistência, comodidade e civi-lização dos povos mormente neste continente cuja extensão não tendo ainda o devido e correspondente número de braços indispensáveis ao tamanho e aproveitamento do terreno, precisa de grandes socorros da estatística para aproveitar os produtos, cujo valor e preciosidade podem vir a formar do Brasil o mais rico e opulento dos Reinos conhecidos; fazendo-se, portanto, necessário aos habitantes o estudo das belas-artes com aplicação e referência aos ofícios mecânicos, cuja prática, perfeição e utilidade

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dependem dos conhecimentos teóricos daquelas artes e de efusivas luzes das ciências naturais, físicas e exatas [...]57

Assim, a missão tinha objetivos mais amplos do que a "educação artística", e não por acaso o primeiro nome cunhado foi "Escola Real das Ciências, Artes e Ofí-cios", mostrando como sua inserção se daria em diversos campos de atuação. Afinal, faltava de tudo, e profissionais especializados em diferentes áreas vieram no mesmo navio: técnicos em construção naval, em construção de veículos, em curtume... aten-dendo a outros interesses do Estado e formando homens destinados aos empregos públicos, mas também à agricultura, mineralogia, indústria e comércio. Como dizia o decreto, o fim último era a "civilização dos povos mormente neste continente".

Apesar dos percalços, entre 1816 e 1826 a Missão Artística Francesa ganhou es-paço e definição. Os propósitos e promessas primeiros não foram cumpridos, mas no plano pictórico a Missão seria a grande responsável por uma transformação bastan-te radical, que aos poucos relegou o barroco a segundo plano e permitiu que o neo-classicismo passasse a imperar, ao menos na corte do Rio de Janeiro.58

Não se quer dizer que aqui não existissem artistas e aprendizes — muito pelo contrário —, mas o certo é que não havia até então ensino sistemático. A iniciação dos artistas mais se aproximava da relação mestre-aprendiz, e pequenos artífices, sem formação clássica, dedicavam-se à pintura, ao desenho, à escultura e à arqui-tetura. Na verdade, desde o século xvill tornara-se mais comum a permanência

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desses aprendizes junto aos poucos artistas portugueses e italianos que chegavam ao Brasil trazendo o estilo barroco, que acabou por se afirmar. Não por acaso, os mais importantes redutos se concentravam no Rio de Janeiro, em Ouro Preto e em Salvador, difundindo-se aos poucos para Recife, Olinda e Diamantina. Acrescente-se que essa arte colonial respondia em boa parte a demandas prévias, e os traba-lhos eram encomendados, em sua maioria, por autoridades eclesiásticas ou civis, e excepcionalmente por particulares. Mas há um detalhe significativo: em geral nes-ses ofícios apenas trabalhavam indivíduos de baixa extração social, muitas vezes mes-tiços e negros, de pouca formação, o que dava a esses nossos artistas não só uma instrução como uma coloração distinta dos demais.

Com ou sem especificidades, na falta de escolas e como autodidatas, os artis-tas nacionais controlaram os códigos da produção de sua época, de forma suficien-te para as demandas locais mas não plena, se pensarmos nas novas exigências que aportaram junto com a corte.59 E dominou o barroco, um barroco tardio que se prolongou nas formas e nos contornos e ficou imune à nova voga acadêmica e neo-clássica que fazia furor na Europa grandiosa de Napoleão.

Há ainda outro fato particular a lembrar: também Portugal carecia de pinto-res. Isto é, lá existiam academias, mas não de artistas, e tanto na colônia como na metrópole a produção desse gênero foi considerada de menor importância, ou até mesmo uma atividade desonrosa. Na própria metrópole não havia estrutura de ensino artístico para além das escolas estabelecidas em mosteiros e das "aulas régias"; em decorrência, toda a arte se concentrava no palácio do rei ou nas igre-jas. Para piorar, essas poucas iniciativas encontravam-se em decadência no início do século xix. O "Curso de Risco" estabelecido por Johann Ludwig no mosteiro de Mafra, na primeira metade do século X V I I I , àquela altura tinha desaparecido, e as aulas régias — de desenho, arquitetura civil, escultura e gravura —, introduzidas na segunda metade do mesmo século, tendiam a seguir igual caminho.60

É assim que se explica o apelo a artistas franceses, acostumados com o estilo neoclássico, essa arte de combate que se põe a serviço da Revolução e trabalha em nome da criação de sua memória. Os novos artistas viriam, portanto, para fazer ba-rulho e gerar ruptura, trazendo uma arte estatal, patriótica e preocupada em vin-cular os feitos dos monarcas aos ganhos do passado clássico idealizado. Alocados diretamente a serviço do Estado, não tinham pruridos em mostrar engajamento e paixão política.

E esse modelo se encaixaria de forma perfeita, ao menos teoricamente, nos pla-nos do governo de d. João, no qual, junto com o intuito da formação de uma memó-ria real — tão bem guardada em nossa Biblioteca —, um convencionalismo temáti-co e certa contenção acadêmica selecionaram uma arte fiel aos desígnios de uma corte mais ligada a um projeto palaciano e pouco atenta a qualquer traço mais popular.

Embora a tarefa primeira fosse propagar pela colônia uma determinada cul-tura das belas-artes que provocaria mudanças a partir da introdução do modelo neoclássico francês ou mesmo português, desavenças internas e a pouca atuação da Academia levaram a mudanças de plano.61 Além do mais, diante da inexistência de

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23. Auto-retrato de Debret, que se transformou em artista

oficial da corte. FBN

24. Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny, arquiteto

oficial da corte. Água-forte de Modesto Brocos, FBN

um mercado de artes, o grupo teria que se filiar exclusivamente à Família Real, colando-se à agenda de datas e fatos que a monarquia mandava comemorar. De-pois das exéquias e cerimônias de luto de d. Maria viriam as de gala, sendo os orna-tos fúnebres substituídos por arcos triunfais, obeliscos, iluminações, por ocasião da aclamação de d. João e da chegada da futura imperatriz do Brasil, que vinha para se casar com o príncipe d. Pedro.

Dessa maneira, idealizada como uma academia francesa em miniatura, a Mis-são repetiria os passos de sua matriz européia em dois grandes sentidos. Em pri-meiro lugar, e assim como ocorrera na França napoleônica, ela seria responsável por uma série de obras urbanísticas e grandes monumentos, todos formados nos rígidos preceitos neoclássicos. Além do mais, interferiria no urbanismo da corte, criando uma espécie de "espaço da festa", onde se exibiam comemorações públicas associadas ao Estado. Assim, se a primeira encomenda feita aos artistas da Missão, e mais especificamente a Montigny, ainda nos primeiros meses da chegada, foi o projeto de construção de uma sede para a Academia, já a agenda de festas seria bem mais carregada. E nesse aspecto a Missão teria sucesso: iria se concentrar na cons-trução de uma série de miragens, um amontoado de fachadas que tentavam driblar a distância existente entre representação e realidade. De um lado, o modelo neo-clássico europeu com seus exemplos da Antigüidade misturados à civilização oci-dental; de outro a colônia, que interiorizava a metrópole mas era marcada pela

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escravidão que se espalhava por todo o território. E o primeiro fracasso não era se-gredo; até os viajantes bávaros Spix e Martius demonstraram descrédito em rela-ção à capacidade de inserção desses artistas:

Também a atual conseqüência do atual grau de civilização do Brasil é que os habitan-tes desse país tropical, todo cercado de fantásticas, pinturescas e poéticas belezas natu-rais, sentem-se mais perto do gozo espontaneamente oferecido por estes tão ditosos céus, do que pela arte que só se atinge com esforço. Essa razão caracteriza a direção que tomam as tentativas artísticas e científicas em toda a América, e que deve ter mos-trado ao regente que aqui se devia primeiro cuidar da fundação dos alicerces do Esta-do, antes mesmo de pensar em seu embelezamento pelas artes.62

A despeito dos preconceitos próprios a estrangeiros que vinham a esta terra encontrar apenas a natureza, o depoimento dos naturalistas revela os limites de uma missão como aquela. O modelo que se pretendia era inatingível e a saída seria imaginar uma civilização possível, decalcada da realidade e desenhada no papel. Para piorar, em tempos de domínio inglês e apesar da paz anunciada, uma missão francesa composta por simpatizantes de Bonaparte não seria recebida com simpa-tia, ainda que seus membros possuíssem perfil moderado. E, se o primeiro acolhi-mento pareceu caloroso,"3 o tempo faria esfriar as reações e jogaria os mestres no ostracismo, situação agravada com a volta da corte a Portugal em 1821.

25. Os trópicos na pena dos naturalistas Spix e Martius. FBN

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Estamos, porém, em fins de 1816, e nossos artistas, decididamente, não anda-vam bafejados pela sorte. Até mesmo as duas atividades planejadas — a aclamação de d. João e as homenagens à princesa d. Leopoldina — teriam de ser postergadas em função de uma revolução que estourara em Pernambuco em 6 de março de 1817. A transitoriedade dos arcos, a fragilidade dos cenários e varandas e mesmo a certeza das classificações da nossa Real Livraria teriam de aguardar até que a paz voltasse a reinar nestes cantos tropicais.

PROBLEMAS NO MUNDO DA FANTASIA: REVOLUÇÃO A VISTA

Antes de entrarmos nos impasses gestados pela revolução de 1817 vale a pe-na repassar, mesmo que brevemente, as rusgas e os conflitos que apareciam na política externa e seus dois grandes motes: a questão da Cisplatina e o tema cons-trangedor do tráfico de escravos. Melhor é seguir com calma, e já chegamos lá em Pernambuco.

Antes de mais nada, nunca é demais lembrar que a transferência da sede da monarquia portuguesa para o Brasil abriria um novo capítulo nas relações diplo-máticas. Se até então todas as medidas eram tomadas da metrópole, com a chega-da do príncipe regente instalou-se no Rio de Janeiro o Ministério da Guerra e Assuntos Estrangeiros, tendo como titular d. Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de Linhares. E uma das primeiras atitudes da política externa de d. João no Brasil foi a declaração oficial de guerra contra a França, e, na seqüência, o envio de uma expedição para ocupar Caiena (atual Guiana Francesa), a única colônia daquela nação na América do Sul. Aí estava a afirmação de uma nova postura, mais ofen-siva, do governo português. Não se sabe se essa medida foi resultado da instalação da família em terras tropicais, se conseqüência do conhecimento da nova atitude do exército de Junot, ou uma reação esperada para selar a aliança com a Inglaterra. Talvez fosse de tudo um pouco e, de uma forma ou de outra, Portugal determina-va um novo posicionamento diante da França.

Com efeito, motivado pela beligerância, agora formal, entre os dois países, e pelo receio de uma invasão francesa pelo Norte do país, d. João apressou a concre-tização de planos e, mesmo sem maiores reforços, conseguia uma rendição em 12 de janeiro de 1809. A situação ficou assim estacionada, até que, no Congresso de Viena, decidiu-se que Portugal devolveria à França o território anexado naquela ocasião. Enquanto isso d. João tergiversava e, apesar de a questão ter sido definida em 1815, só em 1817 se daria a restituição.64 Era o começo de uma política mais intervencio-nista, que mostrava novas intenções do príncipe regente no território americano.

E os problemas diplomáticos não parariam por aí. Nesse meio-tempo Na-poleão destituiu Carlos iv do trono espanhol, despojou o herdeiro Fernando vil de seus direitos e acabou por agitar o cenário americano, precipitando os movimen-tos de separação. No Brasil a questão do Prata era, também, observada de perto, já que a esposa do príncipe, sendo irmã de Fernando vil, julgava-se no direito de

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ocupar seu lugar, ao menos no que diz respeito às colônias espanholas. Mas as pre-tensões de d. Carlota durariam pouco. Os tempos eram outros e iriam afastar a re-gente de seus planos solitários, mormente quando em 1810 tiveram início as lutas de libertação. Por outro lado, d. João não tinha motivos para confiar na esposa, que já lhe pregara outros golpes, e ele próprio tinha lá suas intenções na região.

A ocasião veio em 1811, quando na Cisplatina deu-se início ao processo de independência. Sob o pretexto de auxiliar a província e de impedir a invasão argen-tina, d. João pôs as tropas portuguesas de prontidão. Em 9 de julho de 1816, decla-rada a independência das Províncias Unidas do Rio da Prata, o conflito estourou em proporções maiores. Novamente o governo de d. João interveio: a alegação ofi-cial era evitar invasões, mas a intenção não explícita era anexar ao Brasil a chama-da Banda Oriental. E a situação ficaria momentaneamente serenada, em função da política portuguesa junto à Santa Aliança, fazendo triunfar suas teses diante desse tribunal. Para quem só acredita nas histórias de patetice de d. João, aí vai se deli-neando uma posição contrária: um diplomata bastante arguto que, nesse contexto, até se valeu de seu caráter mais titubeante.

Também em outras searas internacionais a política joanina precisaria se im-por. E "manter as coisas como estão, para ver como é que ficam" não seria saída fácil quando a questão era o tráfico de escravos.65 Proibido em 1810, pelo tratado de Paz e Amizade, o comércio de escravos seria matéria para muito debate, e o arti-

Antonio de Castro,

26. Dona Carlota Joaquina, irmã

de Fernando VII

d. João. Manoel

da Espanha e esposa de

FBN

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go x apenas daria início a uma longa campanha, de quase meio século, em favor da sua abolição. Em face desse artigo, dizendo-se "convencido da injustiça e má polí-tica do comércio de escravos", o príncipe comprometia-se a juntar-se aos esforços da Inglaterra com o propósito de proibir aos seus súditos o tráfico fora dos seus domínios africanos. Se o avanço não era do tamanho das pretensões inglesas, ao menos tornava o tráfico ilícito quando realizado fora dos domínios portugueses, e criava um instrumento para o apresamento de negreiros. Porém, por mais apare-lhada que fosse, a Inglaterra não conseguiria capturar todos os navios, e nada podia perante o corpo mole da política portuguesa "para inglês ver". A questão não era simples, e as hesitações de d. João, nem ao menos sigilosas.

E em 1815 o tema voltou à pauta. Durante a realização do Congresso de Viena, conseguiu-se a aprovação de uma cláusula que abolia o comércio em todo o hemis-fério norte, o que retirava de Portugal um grande manancial de escravos prove-niente das regiões setentrionais da África. De sua parte, d. João não só concordou em abolir o tráfico ao norte do equador, como atinou para novos tratamentos da população escrava. No entanto, em uma sociedade escravocrata como a nossa, esse tipo de regulamentação tendia a ser a última de uma operação tartaruga, quando não virava matéria de gaveta. Entre o estatuto legal e a realidade havia um imenso abismo, e não se podia transpô-lo apenas com decretos vindos de fora.

Por isso a atitude sempre foi aceitar de um lado e descurar do outro, como se, agindo assim, se ganhasse tempo numa causa perdida. E as pressões vinham de toda parte. Até mesmo o rei da França, em carta de 24 de novembro de 1818, instava "seu bom irmão e primo" a que concluísse a obra liberal, decretando de vez a abo-lição do tráfico. Um pouco mais tarde, como resultado das deliberações do Con-gresso de Aix-la-Chapelle, outros soberanos da Santa Aliança se posicionariam no mesmo sentido.

E não era só ao tráfico que as medidas atingiam; o próprio sistema escravo-crata era afetado. Afinal, mais e mais denunciava-se a violência que se colava à prá-tica. Eram abertamente comentadas, por exemplo, a rudeza da viagem e a entrada dos africanos em terras brasileiras, espetáculo inominável até mesmo para seus "acos-tumados testemunhos". Apressadamente desembarcados, passavam no Valongo — o maior mercado de escravos do país, localizado nas imediações da paróquia de Santa Rita — para um estágio de recuperação antes de serem postos à venda. Se-gundo a historiadora Mary Ivarasch, em 1817 havia pelo menos vinte grandes esta-belecimentos no Valongo, nos quais mais de mil escravos ficavam expostos, a maio-ria do sexo masculino e variando de seis a 24 anos.66 Localizada a noroeste da praça central, a área era das mais freqüentadas do Rio.

C. Brand, que visitou o local quando um grande carregamento de escravos foi desembarcado, deixou esta triste descrição:

A primeira loja de carne em que entramos continha trezentas crianças de ambos os sexos; o mais velho poderia ter doze ou treze anos e o mais novo, não mais de seis ou sete. [... ] O cheiro e o calor da sala eram muito opressivos e repugnantes. Tendo meu termômetro no bolso observei que se chegava a 33 graus e era então inverno [...].67

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27. Desembarque de escravos: espetáculo difícil de retratar, até pelos artistas estrangeiros que tendiam, muitas vezes, a tudo neutralizar. Johann Moritz Rugendas, FBN

28. A viajante Maria Graham mostra sua repulsa diante do tráfico de escravos. FBN

29. Apesar de não representar uma casa na cidade do Rio de Janeiro, esta imagem guarda a mesma simplicidade de estilo e interior. Johann Moritz

Rugendas, FBN

30. Na interpretação de Arago, um símbolo das sevícias

praticadas contra escravos. FBN

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As mortes eram tantas, que foi instalado um cemitério justo ao lado, para grita geral dos vizinhos, que reclamavam do mau cheiro e dos enterros em massa.

Para os que sobreviviam era hora de dissimular defeitos ou moléstias, pois disso dependia o bom preço. Aí estava a definição de "peça" e de "bem semovente" que se colava ao escravo. Mal alimentados e quase nus, eram expostos, vendidos, alugados, penhorados, hipotecados... perdiam seu nome e sobrenome, conforman-do-se juridicamente como servus non habentpersonem. "Servos sem pessoa", luta-vam contra esse processo que fazia com que se perdessem sua origem e raízes. Além do mais, as enfermidades contraídos na promiscuidade de bordo — tracoma, va-ríola, sarna e disenteria — deixavam marcas perenes.

O viajante alemão Freyreiss, que visitou o país em meados do século xix, assim descreveu um mercado de escravos:

Os escravos, apinhados às centenas num barracão, estão sumariamente cobertos com um pedaço de pano ou de lã que trazem à cintura. Por uma questão de higiene, têm os cabelos raspados. Assim, nus, pelados, sentados no chão, observando curiosos, os transeuntes, pouco se diferenciam, aparentemente, dos macacos [... ] vários deles che-gam da África marcados a ferro em brasa como os animais."8

No entanto, apesar do ignominioso espetáculo, as poucas atitudes do governo tendentes à proteção eram na verdade meros paliativos. Em 1817, nova vitória daria "direito de visita" à Grã-Bretanha, que passava a vistoriar, em alto-mar, qual-quer navio suspeito de transportar escravos. O acordo tinha validade de quinze anos, a partir da data da extinção completa do tráfico, e Portugal se compromete-ria a encerrá-lo de forma breve. Era, ao mesmo tempo, muito, e muito pouco. Até o representante da França na colônia comentava abertamente a política de d. João e comunicava que o rei "levava a peito a continuidade do tráfico certamente por julgá-lo necessário à economia brasileira".69

Como diz Oliveira Lima, "outra coisa não logrou alcançar a tenacidade ingle-sa da tenacidade de d. João".70 A espinhosa questão se arrastaria e o rei cumpriria a proeza de se despedir de sua colônia sem tê-la resolvido. Pouco afeito a medidas extremadas, d. João contornava a situação com meias medidas e recuos estratégi-cos. Internamente o apoio era, também, pequeno, a não ser por algumas poucas vozes destoantes. Uma delas era a de Hipólito da Costa, que, no Correio Braziliense, começava uma campanha que prometia ser longa. Mas novos sinais viriam de den-tro da colônia, acompanhados por uma maré de insatisfações. Estamos em 1817, e a política de d. João mostrava-se cada vez mais desigual — centrada nos interesses da corte — e gerava descontentamento.

É hora de finalmente chegarmos à revolução de Pernambuco, que se transfor-maria na "pedra no sapato" da política de d. João. Afinal, até então o Império mos-trara-se unido, e essa era a paisagem ideal para a futura aclamação. Porém, o cená-rio se modificaria rapidamente com as primeiras notícias desencontradas, que alcançaram Londres via Antilhas e que diziam haver estourado um movimento em

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Pernambuco, motivado pela falta de soldos. Mas existiam outras causas no ar. Reagia-se às "pesadas contribuições e excessivas conscrições" provocadas pela con-quista da Banda Oriental, "na qual o povo do Brasil não só não tem parte, mas julga contrária aos seus interesses".71 Com efeito, o jornalista Hipólito da Costa, em seu Correio Braziliense, expressava a insatisfação dispersa pela colônia: a montagem de um novo aparelho de Estado custara caro, com as tropas e a nobreza lusa reser-vando para si os melhores postos. Além do mais, o peso dos impostos aumentava e era a colônia que sustentava os gastos excessivos da corte. Ainda, havia o proble-ma da desigualdade regional.

Em suma, o sentimento imperante no Nordeste era que, com a vinda da Fa-mília Real, o domínio escorregara de uma cidade distante para outra: de Lisboa para o Rio de Janeiro. Acrescente-se o fato de Pernambuco passar por um mo-mento difícil, quando se combinavam dois fatores deletérios: a queda continuada no preço do açúcar e do algodão, e a alta constante no preço dos escravos. Como se não fosse suficiente, o ambiente tornava-se ainda pior, agravado pela má fama do governador, cantada em verso e prosa: "Caetano no nome; Pinto na falta de coragem; Monte na altura e Negro nas ações". Aí estava um exemplo da imagi-nação popular que busca sempre suspeitos e culpados, mesmo num movimento que não mirava uma pessoa, mas antes o próprio sistema de exploração colonial português. Por fim, "as abomináveis idéias francesas" chegavam com facilidade a Recife, iluminando essa que seria, nos termos do historiador Carlos Guilherme Mota, "uma revolução bibliográfica".72 No entanto, mais do que a leitura de auto-res como Raynal, Rousseau, Volney, Voltaire, o que inflamava a população era a notícia das constituições revolucionárias francesas e as ações dos "irmãos ameri-canos do Norte".

Mas voltemos ao ano de 1817, quando uma recessão aguda — provocada pela flutuação no preço dos produtos exportados — levou à grita geral. O açúcar e o algodão viviam momentos de baixa nas suas cotações nos centros financeiros euro-peus, isso sem esquecer a intensa seca de 1816 que assolara o Nordeste e acabara com a já insuficiente lavoura de subsistência. Era o povo que sentia a carestia e jo-gava na corte e em seus impostos a culpa de tantos males.

Com motivos de sobra montava-se uma insurreição, unindo uma série de se-tores dispersos: comerciantes, grandes proprietários, membros do clero, militares, juizes, artesãos e uma camada de homens livres que conferiu ao movimento um perfil mais radical e popular. Não há tempo para historiar os bastidores da revolu-ção; basta dizer que os revolucionários tomaram Recife em 6 de março e implan-taram um governo provisório, baseado numa "lei orgânica" que proclamou a Re-pública, estabeleceu a igualdade de direitos e a tolerância religiosa, sem tocar no complicado problema da escravidão.

Emissários foram enviados a outras províncias e para o exterior, procurando propagar a causa revolucionária. Mas, enquanto a cidade do Recife toda iluminada brilhava e ouvia o repicar dos sinos, o conde dos Arcos armava a repressão. E a rea-ção portuguesa foi rápida. Preparou-se uma tropa que bloquearia a capital rebelde

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e os portos adjacentes; reforços foram enviados e no Rio de Janeiro organizou-se nova força terrestre: todos juntos chegavam a mais de 8 mil homens. Diante de ta-manha reação, o desânimo e a falta de entendimento passariam a imperar entre os revoltosos. Com efeito, d. João, que fora obrigado a adiar sua coroação, não media recursos no combate à revolução que, pela primeira vez, dividia o Império. Pelo lado dos revoltosos, internamente os líderes se dividiam, sobretudo em função do problema da abolição, acalentada por uns e recusada por outros. E essas divisões deixariam a situação insustentável. Em 19 de maio desembarcavam as tropas por-tuguesas na cidade, encontrando-a abandonada e sem liderança. Nesses momentos — como na Inconfidência Mineira de 1789 e a Conjuração Baiana de 1798 —, a Coroa mostrava seu braço forte, utilizando registros políticos e simbólicos de sua presença. A repressão virava ato memorável e inscrevia no corpo dos revoltosos a lei e a ordem. E foi assim também desta vez. Não só no Recife, como em Salvador e na Paraíba, a sentença foi exemplar: "Depois de mortos [os rebeldes] serão cor-tadas as mãos, e decepadas as cabeças e se pregarão em postes [... ] e os restos de seus cadáveres serão ligados às caudas de cavalos e arrastados até o cemitério".73

Mais uma vez o governo de Portugal abusava de seu ritual de repressão no momen-to de mostrar força e a extensão de seu domínio.

O exemplo de Pernambuco mostrava possuir, porém, raízes profundas. Havia uma "descolonização de consciências"74 em curso e os recursos teatrais da realeza já não faziam tanto efeito como outrora. Era hora de retomar a cena e chamar para si as "glórias da eternidade" ou, como trovejavam os versos da época:

Mas não te penes, Príncipe! Um momento De perfídia e desdouro não faz vulto No quociente de séculos de glória...75

E terminava, vitorioso:

[...] constante querer-te hão os povos.

Quem sabe...

COMEMORANDO: COROAÇÃO E CASAMENTO NA CORTE

A derrota dos revoltosos de Pernambuco foi vivenciada pela realeza como um sinal de abertura para novos tempos mais calmos e estáveis. Todos os projetos se-riam desengavetados, a começar pela aclamação de d. João, tantas vezes adiada. Com efeito, logo que soube da vitória em Pernambuco, o futuro rei, que a essa al-tura se encontrava na Fazenda Santa Cruz, exigiu tudo o que podia: entrada sole-ne para seu novo governador, com direito a beija-mão, e, como sempre, muita festa

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para guardar bem a ocasião. Os festejos se esticariam até a Bahia e o Rio de Janeiro, onde repiques de sinos, salvas de canhão e missas cantariam a vitória do soberano, e anunciariam sua aclamação.

Como sabemos, originalmente a aclamação ocorreria um ano após as exé-quias de d. Maria. No entanto, a revolução em Pernambuco alterara a ordem das coisas, uma vez que não convinha celebrar tal cerimônia com o território dividido e diante da ameaça de uma república, bem no seio da monarquia. Por isso mesmo, a aclamação ganharia novo sentido: representaria o momento máximo a celebrar a concórdia entre o futuro rei e seus vassalos. Para completar, estrategicamente, os decretos de 6 de fevereiro de 1818 punham fim às investigações sobre os revolto-sos pernambucanos, reafirmando a magnanimidade do soberano, silenciando a dis-córdia e nuançando a extensão da revolta. Mas faltava a comemoração, que seria, mais uma vez, financiada pelos mercadores do Rio, que dessa maneira reiteravam o apoio a d. João e reafirmavam as bases de seu governo: a capital continuava a ser capital. E a festa não podia falhar, pois, desta feita, era a partir dela que o poder se mirava e se espelhava.

A Gazeta do Rio de Janeiro, fiel veículo de divulgação da corte, dedicou um número especial para dar conta do acontecimento.76 Logo no dia 10 de fevereiro saía o número comemorativo que celebrava:

O glorioso ato de Aclamação do Senhor d. João Sexto, Nosso Augusto Soberano, e Modelo dos Monarcas do Universo, anunciado na Gazeta precedente, vai hoje fixar as mais sérias atenções de nossos leitores, e ser objeto de nossa narração ingênua e since-

r i 7 7

E não era para pouco. Luminárias, comes e bebes, fogos de artifício, muitos retratos reais e emblemas da América e da Ásia davam ao ritual um caráter memo-rável, pois, afinal, o Império tinha novo rei. Além do mais, alterando a folhinha, fazia-se coincidir a data das Chagas de Cristo com a da aclamação:78 dava-se um tapa nas coincidências e o calendário cristão ficava estabelecido com reis e santos. Evidenciava-se, dessa maneira, a associação entre a figura de Cristo e a do rei de Portugal, e a liturgia simbólica dava forma ao cerimonial de aclamação.

A comemoração também lucrou, e muito, com a participação dos artistas fran-ceses. Foram erguidos por Grandjean de Montigny, rapidamente e com materiais feitos para durar pouco, três monumentos neoclássicos que bem a seu estilo evo-cavam a Antigüidade: um templo grego a Minerva, um obelisco egípcio e um arco do triunfo romano. Imagine-se a reação da população diante de tal monumentali-dade. Como dizia Luís Gonçalves dos Santos: "Fazia uma agradável sensação a vista simultânea destes monumentos grego, romano e egípcio, não só pela beleza da ilu-minação que os decorava, mas também pelo bom gosto de sua arquitetura, que só pessoas inteligentes podiam conhecer e apreciar".79 A civilização era para poucos e até parecia que aquele que a notasse primeiro saía na frente. E Montigny não tra-balharia só; contou com a colaboração de Auguste Taunay, de Debret e dos recém-

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31. Aclamação de d. João VI na visão oficial de Debret:

finalmente tínhamos um rei. FBN

32. Vista exterior da galeria onde

foi aclamado d. João VI: Debret projeta no público a mistura de cores. FBN

chegados irmãos Ferrez — a habilidade da equipe revestiu esses monumentos da aparência necessária à circunstância, mesmo que à custa de falsos mármores, bron-zes e granitos. Era na corte tropical que Montigny exercitava seus atributos de ar-quiteto real, acostumado a conferir às edificações a teatralidade apropriada a cada ocasião. O segredo era agir em duas frentes: por um lado, decorava-se o evento com monumentos frágeis como o momento político; por outro, alegorias clássicas e re-ferências ao passado conferiam às celebrações a tradição que lhes faltava e a histó-ria de que careciam.

Também Debret tomaria parte dos preparativos da aclamação. Esperava-se com ansiedade a noite de 13 de maio de 1818, quando seria encenado o Himeneu — drama alegórico em quatro atos que tecia elogios à monarquia lusitana — e apresentada a pintura Bailado histórico, de autoria de Jean Baptiste Debret. Nessa obra, o artista unia os deuses da mitologia clássica aos personagens históricos por-tugueses. D. João VI em uniforme real era suportado por figuras que caracteriza-vam as três partes do Reino Unido — Portugal, Brasil e Algarves —, tendo logo abaixo ajoelhados Himeneu eAmor, com os retratos do príncipe e da princesa reais. O Rio de Janeiro jamais conhecera pompa semelhante, com Debret e Montigny esmerando-se em conceder à decadente corte portuguesa um ar solene e engran-decedor, e, por meio de todo o aparato e da simbologia do ritual, procurando vin-cular um Império alijado à heróica e perdida Antigüidade clássica.

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Entretanto, não sem dificuldades esses artistas transplantariam para os trópi-cos as técnicas acumuladas na Europa. Sem os materiais necessários ou ajudantes especializados, faltava de tudo e o negócio era improvisar. Além do mais, parecia bastante complicado aplicar modelos externos a uma realidade tão particular. Até mesmo Debret teve problemas em dialogar com um contexto assim diverso do de sua França revolucionária. O elogio da virtude deveria se mostrar por meio da for-ma ideal e da caracterização do heroísmo neoclássico, o que não era fácil diante do cotidiano marcado pela escravidão e por uma corte transplantada.

Mais outro artista da Missão imortalizaria aquele momento: Nicolas Antoine Taunay, por meio do desenho, representaria a comunhão celebrada pelo ritual. A ce-rimônia precisaria ser a mais pomposa de todas, como se sua plena realização afas-tasse para sempre o vento impetuoso da rebeldia e assegurasse o prestígio da mo-narquia, tudo de uma vez só. Mas a festa daria conta de encobrir tudo. No momento da aclamação e dos vivas, o padre Perereca não se cansava de descrever o regozijo do público, que, entre lenços brancos, lágrimas, aplausos, vivas, salvas de canhão, fogos de artifício e bandas, reconhecia seu novo governante.

O Paço Real foi incorporado ao grandioso cenário montado para a aclamação, no dia 6 de fevereiro de 1818. Era a primeira vez que esse tipo de celebração se fazia no Novo Mundo e o Largo do Paço foi cuidadosamente preparado para a ocasião. Para completar, todos os edifícios da rua Direita e da praça foram enfeitados. No meio da praça é que se erguia o obelisco de falso granito; na frente do chafariz, pelo lado do mar, o arco triunfal à romana; e quase adiante do palácio o templo grego. Mas o ponto alto era mesmo a varanda: ocupava toda a frente do convento do Carmo, desde o passadiço sobre a rua Direita — que unia o Paço ao convento onde vivera d. Maria — até a Capela Real. Não faltaram detalhes nesse cenário efêmero que deixava o rei visível de onde quer que se quisesse observar.80

Afinal, era a primeira vez que d. João vi se apresentava a seu público america-no com toda a realeza. Lá vinha ele portando nos ombros o pesado manto real de veludo carmesim coberto de ouro e ostentando as insígnias das suas ordens. Surgia acompanhado de perto pelo príncipe herdeiro d. Pedro e pelo infante d. Miguel. Logo após, vinham todas as representações oficiais, que não perderiam por nada a oportunidade de ver o rei ser aclamado e depois realizar seu juramento. E assim foi feito, até que a longa cerimônia religiosa se complementou com o Te Deum na Capela Real.81

Também no Campo de Santana foram construídas quatro torres com 24 peças iluminadas. Em cada torre um coro de música instrumental tocava sinfonias sele-cionadas para fazer da população bons atores coadjuvantes. No centro desse pas-seio formou-se uma praça com dezesseis estátuas e uma cascata artificial, que lan-çava água ao longe, por conta de um repuxo continuado. Essa cachoeira deitava suas águas sobre um grande tanque repleto de conchas exóticas, que compunham um cenário à parte. Tampouco luzes faltaram; ao todo eram 60 mil: 102 agulhetas, 64 lustres, um pavilhão chinês, pirâmides de quatrocentos fogos, e mais um teatro de quatrocentas lâmpadas.82

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33. Taunay — artista da Missão Francesa — retrata, por encomenda, a aclamação de d. João VI, monarca do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. FBN

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34. Planta e prospecto geométrico da Régia Varanda, especialmente construída para a aclamação de d. João VI

na corte do Rio de Janeiro. FBN

35. Maria Graham e o Paço de São Cristovão: 36. A rua Direita, que tomava ares de escravidão nos detalhes do cotidiano. FBN elegância. Johann Moritz Rugendas, FBN

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Por fim, para reter a multidão que lá se acumulava, distribuíram-se refrescos e doces. Para alguns poucos privilegiados, numa grande sala forrada de damasco se ofereceu um dessert (como pedia a voga francesa) em suntuosas baixelas de ouro e de prata. Enquanto isso, no Teatro de São João, que começava a se firmar como local privilegiado para demonstrações políticas, agitavam-se lenços, cantavam-se hinos — tudo servia de homenagem ao soberano. Assim, ao ser aclamado no No-vo Mundo, d. João refazia, por meio do ritual e do desfile simbólico, laços com a monarquia ocidental, e realizava nos trópicos a síntese do Reino Unido. O espaço, apesar de efêmero, redesenhava a cidade que se transformava em lugar de legitima-ção do estado monárquico, agora firme na América. Nada que o ritual não entro-nizasse e que não transformasse o estranho em natural.

Até mesmo a vinda da aguardada esposa de d. Pedro, que se aproximava da colônia e cuja chegada fora atrasada por conta da rebelião em Pernambuco, reto-mava curso normal. Com efeito, antes mesmo da coroação, desembarcaria a ar-quiduquesa Carolina Josefa Leopoldina, que, apesar do espectro de Maria An-tonieta — sua tia decapitada pela Revolução na França —, em nenhum momento pareceu dar sinais de demover-se de seu compromisso régio, só involuntariamen-te adiado. Afinal, dentre as negociações diplomáticas da regência de d. João em território americano, o casamento do príncipe herdeiro d. Pedro era das mais bem-sucedidas; mesmo porque matrimônios entre reis são grandes negócios de

37 Taunay retrata

38. Desembarque

e rituais também

o desembarque da princesa real

na cidade do Rio

da Marinha: festas por todos

no Arsenal Real

grandes festas

os lados. FBN

no pincel de Debret. FBN

da princesa Leopoldina:

de Janeiro,

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Estado, nos quais as razões do coração pouco influem. Não que a missão de Ma-rialva em Viena fosse difícil: ao contrário, quando lá aportou os obstáculos esta-vam todos derrubados, e o acordo seria selado logo, em novembro de 1816. Na verdade, seu papel na corte de Viena era breve e fácil. Consistia em pedir solene-mente a mão da arquiduquesa, redigir o tratado de desponsório, celebrar os es-ponsais por procuração e receber a futura soberana do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves a bordo da esquadra portuguesa que a conduziria para seu no-

83

vo reino. E tudo parecia jogar a favor: a nobreza da Casa de Bragança, a riqueza e a vas-

tidão do Império Português e até mesmo a bonita figura do noivo, que era conhe-cido como o único "galã" no meio das fealdades reais à disposição, em contrapo-sição à comentada falta de dotes — em muitos sentidos — da princesa.84 Data já dessa época toda a simpatia que giraria em torno de Leopoldina, sempre caracte-rizada por sua inteligência, instrução, trato fácil, mas também determinação. Tanto que, logo que o contrato foi fechado, a futura princesa dedicou-se a estudar português, bem como a história, a geografia e a economia de seu novo império. Especialmente interessada por mineralogia e botânica, trouxe consigo espécimes para aclimatar no Brasil. Se era muito bem aquinhoada pela inteligência, pouco se falava de sua beleza. Até mesmo Marialva teria se esquivado dizendo: "Em sua pre-sença resplandece a soberania a par da mais rara bondade".85

Contudo, o representante português tinha outras questões diplomáticas mais difíceis a resolver,86 por isso chegava a Viena com ordens explícitas de fazer "boa figura", isto é, despender muito para aparecer bem. Os gastos da embaixada por-tuguesa na capital da Áustria compreendiam a distribuição de jóias e barras de ouro para o pessoal da corte e para o ministério de estrangeiros. A principal des-pesa ficou por conta da esplendorosa festa dada nos jardins imperiais de Au-garten, onde o marquês mandou edificar um salão e ofereceu uma ceia para mais de quatrocentos convidados. Lá estavam os diamantes do Brasil, que, segundo o relato orgulhoso de Marialva, fizeram pasmar a corte de Viena. Nessa ocasião a ar-quiduquesa receberia o retrato do esposo, devidamente emoldurado por pedras do Brasil.

O ato de casamento foi celebrado no dia do aniversário de d. João, 13 de maio, como se o mundo fosse feito só de coincidências rituais. Representou o noivo o arquiduque Carlos, irmão do imperador, a quem o embaixador entregara dois dias antes a procuração do príncipe d. Pedro. E, depois de tanta solenidade, era hora de a nababesca comitiva se despedir, levando consigo a esposa comprometida. Era 2 de julho e o grupo partia para Florença, onde atracaria no dia 14, e lá aguardaria a chegada da esquadra portuguesa que conduziria ao Brasil sua nova princesa. A espera foi, porém, maior, motivada não só pela revolução de 1817, como pela pres-são inglesa junto a Viena para que a corte portuguesa retornasse a Lisboa. A idéia era impedir a partida de Leopoldina ou enviá-la diretamente para a capital por-tuguesa, onde se reuniria à Família Real em cujo seio entrara. Mas, embora o cora-ção do pai, o imperador Francisco, oscilasse diante do inseguro destino da filha, o

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ministro Metternich empenhou-se em não ceder aos apelos ingleses, garantindo que a arquiduquesa cumpriria o acordo.

Assim formou-se a comitiva. A parte masculina era portuguesa e a femini-na, austríaca, composta pelas condessas de Kundurg, Sarentheim e Lodron: a pri-meira como camareira e as duas últimas como damas. Além delas, outras de ser-viço particular, retretas, açafatas, criadas, um capelão, um bibliotecário e vários serviçais de libré aboletaram-se nas naus, todos de nacionalidade austríaca. O médico era português; já o cozinheiro era austríaco, para que não se passasse ver-gonha diante da princesa, acostumada aos banquetes vienenses. Na segunda nau, provida de menos acomodações, seguia o embaixador especial com sua comiti-va. Levava a constrangedora incumbência de persuadir d. João a respeito da ur-gência de volver a Lisboa. Mas essa missão estaria fadada ao fracasso, ao menos momentâneo.

Enquanto isso, no Brasil, tinham início os preparativos. Se até a notícia dos desponsórios fora celebrada com missas, Te Deum Laudamus, repiques de sinos, salvas de artilharia e ações de graças, o que dizer da recepção? Entre fins de outu-bro e princípio de novembro, a tarefa foi confiada ao secretário de Estado dos Negócios do Reino, Tomás Antônio Vilanova Portugal, que lidou com a questão como se fosse — e era — estratégica para o governo. E, como bom político, Vilanova Portugal tratou de dividir as muitas tarefas: o iate que receberia a prince-sa, as bênçãos nupciais, as embarcações de boas-vindas, a recepção, a limpeza... Por sua vez, o Senado publicou decreto que pedia não só que se ornassem casas e jane-las, como também que as ruas por onde o cortejo passasse tivessem a conveniente limpeza:

Ordena outrossim o mesmo Senhor que o Senado mande fazer os reparos que forem precisos na calçada dela, e dê às providências para que se ache limpa, areada e livre de todo o pejamento no dia daquela função [...]8/

Era preciso, portanto, maquiar a cidade, a fim de que a princesa guardasse uma primeira boa impressão. Também foram devidamente avisados todos aqueles que participariam do evento: os funcionários do Paço, a fidalguia da corte e, é claro, a Família Real. Cada um no seu lugar, horário e roupa adequados, como bem manda a etiqueta numa sociedade majoritariamente analfabeta, onde as clivagens de classe ficavam inscritas nos corpos.

Montigny seria novamente chamado a participar, com seus grandes cenários fugidios. Desta vez ergueu em frente à igreja de Santa Cruz dos Militares um arco do triunfo — um conjunto de mastros, sustentando guirlandas de flores e meda-lhões com os atributos da princesa, entrelaçados de folhagens. Seu colega Debret tratou de descrever a cena, não sem antes emitir certos julgamentos estéticos:

O arco do tr iunfo de estilo português [...] apresenta a extravagância dos detalhes arqueológicos [... ] O lado direito do desenho é inteiramente formado por uma parte da popa do navio real de d. João vi, que trouxe de Trieste a princesa austríaca/8

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Mais uma vez, o projeto urbano se adaptava às festas e tentava fazer coincidir o que era muito diferente: uma colônia tropical e escravocrata com um modelo europeu e neoclássico. Como se vê, as festas criavam uma série de "prédios falsos", estruturas que se desfaziam, tudo em nome de um "urbanismo patriótico" herdado do modelo francês. Tal teatro constituía-se em pano de fundo dessas festividades ao ar livre e devia conformar um espetáculo realmente espantoso aos olhos da po-pulação, até então mantida apartada desse tipo de festividade. A cada festa a nação era fundada e a representação criava a realidade, e não o oposto. O monumento, como exemplo do passado, tinha a função de guardar uma memória e perpetuar na lembrança a certeza da nação. Buscava-se recriar uma "Europa possível"89 em ter-ras americanas, inventar um passado e dar brilho ao que era opaco.

A chegada da princesa era aguardada com ansiedade, e ela foi recebida com as habituais festas, cada vez mais aprimoradas. Só a procissão que a recepcionaria con-tava, além de uma partida de cavalaria, servindo de batedores, com quatro moços a cavalos e os azeméis com seus degraus cobertos de veludo carmesim, timbaleiros com seus instrumentos, os oito porteiros da cana a cavalo, os reis de armas, arau-tos, passavantes, e ainda com 93 carruagens de quatro rodas puxadas a dois e qua-tro cavalos. Pelas ruas redobrou-se o policiamento, assim como armaram-se pavi-lhões e decoraram-se as vias por onde o cortejo passaria. À entrada da rua Direita ficava o arco romano de Montigny e Debret, e da Ladeira de São Bento até a Capela

39. Taimay, artista da Missão Francesa, imortaliza a passagem do rei e da rainha, por debaixo do arco da rua Direita em frente à rua do Ouvidor: cenários frágeis para comemorar a instabilidade da situação. FBN

40. A grande rua Direita: tudo passava

por lá. FBN

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Real espalhou-se areia, flores e ervas aromátieas, com as casas decoradas com cor-tinas e muitas flores.

Mas a comemoração teve de esperar embaixo de um sol de mais de trinta graus. O navio que transportava d. Leopoldina e que deveria desembarcar de ma-nhã conseguiu fundear apenas às cinco da tarde devido à falta de vento — e de sorte. No entanto, bastava retardar tudo um pouco e não se mexia no ritual, meti-culosamente planejado. A princesa aportou no Arsenal da Marinha e depois de cumprimentar a Família Real foi levada pela mão de d. Pedro. O cortejo desfilou até o largo do Paço, por entre duas alas de povo e duas filas de tropas, cujos solda-dos vestiam uniforme de grande gala. A procissão real era acompanhada da maior curiosidade, pois ninguém queria deixar de ver e medir a nova princesa. Às três horas o casal parou junto ao portão principal da Real Capela do Carmo, onde o aguardava o bispo capelâo-mor, d. José Caetano da Silva Coutinho, com o Cabido e o Senado da Câmara. Aí se realizou a cena do casamento com a presença de quem de direito. Finda a cerimônia, cantou-se o Te Deum Laudamus, e esse ato só foi con-cluído às quatro horas da tarde. A solenidade, apesar de já longa, não dava sinais de acabar. A corte dirigiu-se, então, ao Paço da Cidade, de cujas varandas o casal real assistiu ao desfile das forças.90

A noite vinha caindo, e a cidade a recebeu toda iluminada. Os arranjos foram muitos e até serenata cantou-se para a arquiduquesa. O príncipe d. Pedro, a prin-cesa Maria Teresa e a infanta Maria Isabel cantaram sucessivamente uma arieta e os músicos da Real Câmara com os da Real Capela executaram uma peça dramá-tica, que se prolongou até as duas da manhã. No mesmo mês, d. Carlota oferecia aos noivos novo jantar, durante o qual os seletos convidados usaram da arte do ver e ser visto. Lá estava o casal de herdeiros, e nessa lógica da corte a proximidade era fundamental.

Leopoldina se acomodaria bem, apesar de estranhar o calor do verão que se aproximava e os mosquitos — vizinhos insistentes. E como boa princesa logo mos-trou fecundidade e seu novo estado interessante, para alegria geral. No Brasil nas-ceria, pela primeira vez, um herdeiro do trono.

A MISSÃO CIENTÍFICA E OS VIAJANTES: UM GRANDE LABORATÓRIO

Desde o século xvi o Brasil se constituíra em local privilegiado para o olhar estrangeiro que, entre maravilhado e inconformado, analisava esse território onde conviviam a natureza e seus naturais em situação quase idealizada.91 Mas, até a chegada da corte e da paz de 1815, o acesso de estrangeiros era restrito, já que, preo-cupado com o roubo de plantas e com a descoberta de técnicas de plantio, o gover-no de Portugal evitava ao máximo ceder qualquer autorização. No entanto, com a abertura dos portos e a elevação da colônia a reino, a situação se alteraria muito, o país se viu, de um dia para o outro, coalhado de estrangeiros — entre cientistas ou

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M : L M í 41. O artista Thomas Ender retrata as entradas triunfais na rua Direita. FBN

meros curiosos — interessados em conhecer não só a natureza, como essa civiliza-ção de raças misturadas, ao sabor dos trópicos.

Grosso modo, pode-se dizer que as viagens científicas ao território americano se dividem em dois períodos. Se até 1808 há o predomínio das viagens de objetivo naturalista ou geopolítico empreendidas por luso-brasileiros, no segundo momen-to é a iniciativa externa que se destaca, com o investimento de outras potências estrangeiras e a reduzida participação de luso-brasileiros. Na verdade, era uma no-va política que se instalava, pois até então a entrada de estrangeiros era dificultada. O próprio Humboldt, um dos primeiros cientistas estrangeiros a visitar o territó-rio americano, foi olhado com desconfiança pelas autoridades coloniais, quando entrou na Amazônia com o intuito de descobrir a confluência do rio Orinoco com o mar, e preso por um capitão-general do governo de Portugal. O famoso livro de Antonil — Cultura e opulência do Brasil por suas minas e drogas — publicado em 1711 seria apreendido e destruído para não despertar a cobiça de outras nações, já que descrevia as riquezas do país; seu relançamento ocorreria muitos anos mais tarde, em 1837.

O fato é que, nessa época, os portugueses eram mais superciliosos para com os estrangeiros do que os espanhóis e permitiam apenas a entrada de compatrio-tas. A mais célebre dessas "viagens filosóficas" foi realizada por Alexandre Ro-drigues Ferreira pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá,

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entre 1783 e 1792, com o objetivo de examinar, descrever e remeter à metrópole tudo o que interessasse à história natural. T a m b é m frei José Mar iano da Concei-ção Veloso empreenderia expedição botânica, iniciada em 1782 e prolongada até 1790. A viagem do barão de Eschwege talvez tenha sido a últ ima desse primeiro m o m e n t o de predomínio dos viajantes portugueses em detrimento dos cientistas estrangeiros.92

Contudo, já no reinado de d. João o Rio de Janeiro seria outro, convertendo-se em ponto de encontro de estrangeiros. Na verdade, a entrada de cientistas e estu-diosos completava a política cultural joanina, que driblava a distância da Europa servindo-se de ícones da civilização: a Real Biblioteca com seus livros, os artistas franceses com uma iconografia nacional e muitos cientistas com seu brilho intelec-tual. Em resumo: viajantes de diferentes formações aportavam no país, trazendo na bagagem objetivos vários. Enquanto o explorador curioso de maneira geral achava interesse em tudo o que via, o cientista vinha com uma teoria prévia a ser testada.93

Os caminhos eram muitos, o território, extenso, assim c o m o eram diversos os pro-pósitos: coletavam-se plantas, peles, esqueletos, carcaças de animais, amostras de minério, além de dados sobre a conformação física e os comportamentos das popu-lações locais. Tratava-se, nas palavras do historiador Sérgio Buarque de Holanda, de "um novo descobrimento",9 4 feito da lógica evolutiva e universal que unia, em um mesmo modelo, minérios, plantas, animais e a própria humanidade.

43. Frei Mariano da Conceição Veloso e sua Flora Fluminense em 1790 trópicos abençoados. FBN

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Boa parte desses naturalistas considerava que os objetos da cultura faziam par-te da história natural. O espaço selecionado transformava-se, assim, em um con-junto coerente de animais, plantas, minerais, condições geográficas e topográficas, regime de rios, ventos e também de seres humanos, enquanto o olhar do viajante tentava dar conta dessa totalidade indivisa, feita de conjuntos complexos de ele-mentos.95 A essência do Brasil estaria assim contida em sua situação tropical, que condicionaria os diferentes elementos — flores, frutos, animais, florestas, rios, a con-formação física e hábitos — e se transformaria em uma espécie de substrato a de-terminar todas as demais interpretações.

No entanto, esses viajantes pretendiam mais. Aportavam imbuídos de um espí-rito missionário, como se, tal qual irmãos mais velhos, viessem retirar, sim, mas também ensinar uma nova dicção, novas formas de reconhecer e classificar o país.96

Por outro lado, seus vínculos com as instituições que os financiavam faziam deles "piratas científicos" que retornavam carregados de espécimes, objetos, exemplares, prontamente instalados em museus e coleções do estrangeiro.

Entre os muitos visitantes que aqui se encontravam, basta lembrar de nomes como o de Chamberlain97 e Von Langsdorf, cônsul-geral, que se deixaram ficar. O inglês, além de ser um entomologista fanático, adquiriu uma plantação de café no prolongamento do Aqueduto da Carioca; já o prussiano fez-se proprietário de uma fazenda na Raiz da Serra, onde cultivava mandioca. Da mesma forma, um emigra-do político, o conde Hogendorp, veio morar nas Laranjeiras. Essas, porém, seriam experiências isoladas, pois nem todos permaneceram no país.

O barão de Langsdorf, por exemplo, trouxe junto com sua missão o pintor Ru-gendas, o botânico francês Ménétries, o jardineiro Riedel, o naturalista Freyreiss98

e o astrônomo Rubtsov. Além desses, há casos de verdadeiras missões que che-garam à colônia em busca de coleções dos mais variados tipos. Na verdade, tais co-leções se constituíam em uma forma segura de propaganda e em rica fonte de es-tudos, base para a conformação de museus de história natural no estrangeiro. O príncipe Maximiliano i da Baviera, por exemplo, que esteve no Brasil entre 1815 e 1817 e viajou com os naturalistas Freyreiss (que voltava pela segunda vez ao país) e Sellow,99 carregou para seu castelo em Neuwied nada menos que um herbário com 5 mil plantas brasileiras, além de insetos às centenas e outros exemplares da natureza, sem esquecer um pequeno botocudo, em carne e osso. Era a lenda do Eldorado que fazia desse monarca um grande sequioso e que animava outras mis-sões e grupos a adentrar a América do Sul, sobretudo agora que a corte braganti-na oferecia boa acolhida e o auxílio de expedicionários.

Charles Othon Fréderic Jean Baside, conde de Clarac, chegou ao Rio em 1816, como membro da comitiva do duque de Luxemburgo. Embaixador plenipotenciá-rio da França, enviado para tratar da restituição de Caiena, conservador do Louvre à época da Restauração e amante de viagens, nos poucos meses em que ficou — de maio a setembro — executou desenhos acerca da natureza dos trópicos que tanto o espantaram. O botânico Auguste de Saint-Hilaire veio ao Brasil com a mesma missão, em 1816, mas obteve, graças a suas relações pessoais, autorização do Museu

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de História Natural de Paris para permanecer na colônia portuguesa, e aqui ficou até junho de 1822. E, nesse caso, não era um amador que desembarcava no país. Saint-Hilaíre conhecia profundamente a literatura científica e de viagem, assim como os procedimentos práticos de um naturalista: noções de agricultura, de confecção de herbários, de transporte de vegetais, e sobretudo de dissecação de plantas. Coletou o que pôde e não deixou de enviar espécimes para a França e a Martinica, tudo em nome de uma ciência universal que não via em sua prática fronteiras territoriais.

No entanto, foi com o casamento da arquiduquesa d. Leopoldina, em 1817, que o interesse germânico se tornou ainda mais evidente. Junto com a princesa (ela mesma uma grande interessada em estudos naturalistas) chegariam duas mis-sões científicas: a austríaca, da qual faziam parte Mikan (naturalista), Buchberger (pintor), Natterer (zoólogo), Raddi (botânico), Pohl (mineralogista) e Schott (jar-dineiro), e a bávara, dirigida por Spix e Martius, cuja vida seria a partir de então dedicada ao estudo zoológico, botânico, médico e etnológico do país.100 A colheita da dupla, apresentada após o regresso à pátria ao protetor régio, Maximiliano José, abrangia, além de uma parelha de índios, 85 espécies de mamíferos, 350 de aves, 130 de anfíbios, 116 de peixes, 2700 insetos, oitenta aracnídeos e crustáceos e 6500 plantas.101 Esses intrépidos viajantes percorreriam no espaço de três anos — de 1817 a 1820 — quase todo o Brasil, desde 24° de latitude Sul até o equador, e ao longo da linha, do Pará à fronteira oriental do Peru, coligindo e coletando infor-mações geográficas, etnográficas, estatísticas e histórico-naturais. E seria Martius quem alcançaria maior destaque com seu estudo sobre palmeiras, a ponto de Humboldt ter afirmado: "Enquanto se falar de palmeiras e se conhecerem palmei-ras, o nome de Martius será lembrado".102

Os dois naturalistas foram acompanhados, durante boa parte do tempo, por Thomas Ender, pintor de extração neoclássica que deixou extensa amostragem da terra e da cultura americanas.103 Como se vê, a lógica era do pensamento evolutivo e natural, que, fiado em classificações externas, estabelecia uma hierarquia única, pressupondo o conhecimento da fauna, da flora e da mineralogia.104

Entretanto, o mundo tropical cobrava altos tributos dos viajantes europeus. Na expedição do barão de Langsdorf, por exemplo, as conseqüências negativas foram muitas: Rugendas pegou malária, Taunay morreu afogado, e o barão... perdeu o juízo. Thomas Ender voltaria à sua terra natal, mas sem memória. O clima, os bichos-de-pé, as formigas e os mosquitos também viravam tema de queixa. Em um registro humorado, um oficial prussiano contou seus tormentos em um baile rea-lizado em 1819, na Fazenda da Mandioca, propriedade de Langsdorf:

Às oito horas, porém, os braços, ombros e costas das damas, que trajavam vestidos decotados da moda, já tinham sido tão picadas por mosquitos, que, de tão vermelhas, assemelhavam-se a soldados após apanharem de chicote [... ] Até mesmo eu, que não dancei, mantive-me em constante movimento, saltando como um gafanhoto, a fim de afastar os mosquitos das minhas meias de seda. Não é para menos que os bailes aqui tenham um raro valor. Primeiramente os mosquitos; segundo, o incrível calor do qual tantas pessoas sofreram em um espaço limitado.105

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44. Folha de rosto do atlas Reise in Brasilien, de Spix e Martins (1817) trópicos versus civilização. FBN

45. Karl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), naturalista que percorreu

o Brasil de 1817 a 1820. FBN

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De maneira geral, se essas missões não caracterizaram o início das ciências naturais na América portuguesa, representaram a primeira oportunidade em que esse imenso território foi perscrutado, sistematicamente, pelo olhar estrangeiro. Trata-se de um olhar que qualifica, aprisiona e caracteriza como se fosse fácil dese-nhar um imenso país, da mesma forma como se define uma espécie vegetal ou um mineral. Mais do que um relato frio e distante, a descrição se faz impressão e até "fé perceptiva", nos termos do filósofo Merleau-Ponty, quando o ato de "ver" não se resume a "olhar", mas carrega lacunas e ambivalências e é feito de interrogações.

Também os pintores que vieram por conta própria ou com as missões pade-ceram de mal semelhante. Ávidos por novidades, tipos e cenários que pudessem ampliar temáticas da pintura européia, deparavam-se com problemas diversos ao chegar ao Brasil. Não se tratava de um exotismo fácil, que se deixava aprisionar pelo repertório europeu. Ao contrário, o ambiente carecia de elementos conheci-dos desses artistas, que então guardavam seu próprio imaginário. Embora fal-tassem monumentos históricos, grandes animais, as odaliscas de Delacroix ou as musas de Ingries, sobravam a exuberância da natureza tropical e uma série de gentes que não cabiam nos modelos de beleza e de pitoresco, ou no ideal sublime do romantismo.106 Assim, ao mesmo tempo que se procurava uma aproximação com o Novo Mundo — nas formas, corpos, habitações —, mais uma vez, a forma vinha difícil.

Essa era a tarefa de um Johann Moritz Rugendas, que se debatia na tentativa de dar contorno a uma natureza incomensurável em exuberância e escala; de con-seguir modelo para uma urbanidade que escapava aos padrões de civilidade; ou de nomear uma tipologia para uma enormidade de espécies quase que inclassificável. Pintor e desenhista integrante da expedição científica chefiada pelo barão de Langs-dorf, logo separou-se do grupo para viajar sozinho, fixando paisagens, arquitetura, cenas de rua, descrições da vida dos índios, tipos humanos e a vegetação de regiões brasileiras. Cativo desse olhar classificatório que se manifestava fosse no relato cien-tífico, fosse na pintura, Rugendas continuava preso porém a um certo naturalismo e poucas vezes se libertava das pré-concepções que, no limite, representavam sua própria razão de ser.

Falta falar de um aspecto que chamou muito a atenção dos viajantes e cientis-tas: esse verdadeiro "laboratório racial" onde se misturavam povos e costumes. E, nesse aspecto, o Brasil que os viajantes do século XIX observaram foi profundamen-te marcado por uma visão dúbia: uma relação de edenização no que se refere à na-tureza e uma forte aversão quando se tratava de pensar sobre as populações locais. Afora umas poucas imagens mais românticas, que vinculavam os "naturais à natu-reza", restava a representação da "barbárie", desses povos considerados atrasados em sua origem e mestiçados em suas cores e costumes. Como descrevia o príncipe de Wied-Neuwied acerca dos botocudos:

Domina as suas faculdades intelectuais a sensualidade mais grosseira, o que não impe-de que sejam às vezes capazes de julgamento sensato e até de uma certa agudeza de es-

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46. Casamento entre escravos e enterro de uma criança negra: costumes cruzados nas tintas de Debret. FBN

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pírito [...] Mas como não são guiados por nenhum princípio moral, nem tampouco sujeitos a quaisquer freios sociais, deixam-se levar inteiramente pelos seus sentidos e pelos seus instintos, tais como a onça nas matas.107

Assim, no que se refere à análise da humanidade aqui entraram não só os mo-delos positivos de Rousseau — que vinculava o homem americano ao "bom selva-gem" —, como as teses pessimistas de Pauw, que, ao combater uma visão que consi-derava idealizada, julgava os naturais com interpretações mais negativas, reatualizando o debate a partir da idéia de degeneração.1'18 Von Martius teria recuperado tal inter-pretação entre nós, acreditando ter encontrado, nos indígenas, remanescentes de po-vos superiores já decaídos vivendo em estágios inferiores:

Ainda não há muito tempo era opinião geralmente adotada que os indígenas da América foram homens diretamente emanados das mãos do criador [... ] Enfeitados com as cores de uma filantropia e filosofia enganadora, consideravam este estado como primitivo do homem [... ] Investigações mais aprofundadas, porém, provaram ao homem desprevenido que aqui não se trata do estado primitivo do homem, e que pelo contrário o triste e penível quadro que nos oferece o atual indígena brasileiro não é senão o residuum de uma muito antiga, posto que perdida história.109

Aí estava a visão protestante e avessada de boa parte dos viajantes, que reagia a tudo o que não fazia parte de um vocabulário previamente conhecido.

Não obstante, mais condenatórias do que as anotações sobre os indígenas eram aquelas tecidas a respeito da escravidão. Se alguns poucos a justificavam, a maioria reagia fortemente ao tratamento abusivo e aos castigos aplicados no meio da rua. Viajantes como Maria Graham, Kidder e até mesmo Darwin condenaram o que viram e ajudaram a conformar uma opinião geral contrária ao sistema. Mas, se a escravidão não cabia no julgamento moral desses viajantes, também não havia lugar para essas práticas nos quais não se distinguia de forma rígida o espaço religioso do espaço leigo.

Presos a modelos distantes desse universo cultural, os estrangeiros cumpriram um papel paradoxal. Se por um lado é preciso desconfiar de seus julgamentos, por outro, a consciência da distância fez do olhar estrangeiro um foco especial. Ainda que com o objetivo de descaracterizar, foram muitas vezes detalhistas em suas des-crições, desenharam rituais cujo testemunho é quase único em uma sociedade basicamente iletrada. Portanto, não é o caso de, em nome de uma suposta objeti-vidade, desqualificar esse tipo de fonte por conta dos preconceitos e modelos que, sem dúvida, condicionavam a análise desses viajantes. Com efeito, "o olhar estran-geiro" foi sempre muito importante, para consolidar não só a representação de uma cultura nacional, como para a própria imagem da realeza lusitana isolada em terras tropicais — e a d. João não parecia escapar tal aspecto. Era o reconhecimen-to que vinha de fora; a ciência que produzia a natureza como paisagem e que, nesse processo, constituía o novo mundo por oposição ao velho.

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49. Os escravos na extração de diamantes: ordem e calma na interpretação de Spix e Martins. FBN

50. Debret registra a prática cotidiana da palmatória, neste caso numa loja de sapatos. FBN

51. Punições públicas; exemplos coletivos. Johann Moritz Rugendas, FBN

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Entrariam, assim, no Brasil toda uma nova agenda de festas, u m a etiqueta real e hordas de cientistas que, abaixo do equador, ganhariam um colorido especial. C o m eles a monarquia tentaria reverter sua situação desfavorável, repatriando o teatro da corte. Por isso mesmo, aqui o ritual esmerou-se e ganhou contornos até então pouco conhecidos: exercido nas festas cívicas e nas populares, mas também pela imprensa oficial, nos sermões e panegíricos, nas peças teatrais que recorriam aos deuses da Antigüidade clássica, nas alegorias que falavam de virtudes e gênios — o português e o brasileiro —, nos rituais de bei ja -mão, nos colóquios do rei com os naturalistas... redesenhavam-se sempre o exercício da unificação territorial e a af irmação de u m a monarquia sediada nos trópicos. Junto com a Real Biblioteca, também os tantos relatos, desenhos e cenários exercitavam o jogo de u m a m e m ó -ria recente transformada em antiga.

Mas essa seria sempre u m a "outra Europa" ou uma Europa possível. A escra-vidão representava o limite e a contradição fundamental dessa corte de cenários. Em um dia se assistia à coroação grandiosa de d. João, no outro acompanhava-se com curiosidade o espancamento de um escravo fugitivo ou uma cavalhada come-morando universos distintos. Assim como as tantas edificações idealizadas pelos artistas franceses já nasciam transitórias, da m e s m a forma que os arcos de triunfo, solenes e aparatosos, eram essencialmente passageiros, de m o d o semelhante cami-

52. D. João VI fazia-se cercar de cientistas e livros nada como trazer a civilização

para junto de si. FBN

53. Costumes das damas do Palácio e dos militares a serviço do rei Debret e a tentativa de ver nos trópicos uma "quase-Europa". FBN

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nhava essa corte feita de tantas facetas diferentes. E o ambiente político iria se mos-trar mesmo transitório. A calma reinante era parte de um cenário frágil, como as demais encenações cívicas e patrióticas dos artistas da Missão. Um novo tipo de terremoto se aproximava — e desta vez vinha do Porto.

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C A P Í T U L O A Q

O RETORNO DE D. JOÃO: VAI O PAI E FICAM O FILHO E A BIBLIOTECA

1. D. João VI: hora de voltar. Litografia de Gianni, FBN

A maré carregava o que a maré trouxera. Oliveira Lima, 1945

Portugal estava por desgraça reduzido ao mísero e triste estado de Colônia do Brasil e só esta lembrança e consideração revoltava o espírito dos portugueses, povo de heróis que acabavam de obrar fei-tos dignos das páginas da História e dos fatos Lusitanos e que na mais remota posteridade serão lidos com espanto e admiração do mundo.'

José Antônio de Miranda (1821)

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ENQUANTO ISSO... EM PORTUGAL

Deixamos por longo tempo a história de Portugal correr solta. Com os olhos tão voltados para o Brasil, mal paramos para pensar na sina dessa metrópole que convivia com a dura realidade de um rei que não regressava, apesar de a situação internacional estar pacificada desde 1814, quando se deram, em território espa-nhol, os últimos confrontos entre as forças aliadas e os invasores franceses. A guer-ra terminara na Europa com a derrota de Napoleão, e as razões de permanência de d. João aparentemente perdiam sentido. No entanto, ao contrário do que indicava a lógica, o monarca não se afastava do território americano e dava sinais de que por aqui se estabeleceria. Em dezembro de 1815, quando se esperava a despedida, d. João elevou o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves. Alguns meses depois, após a morte da rainha d. Maria i, mais um duro golpe para aqueles que aguardavam com ansiedade a volta do soberano: o regente seria sagrado rei de Portugal, do Brasil e Algarves, com o título de d. João vi... tudo na colônia.

Enquanto isso, e como diz Oliveira Lima, "o rei só fazia o que lhe convinha e o que lhe convinha na ocasião era não fazer coisa alguma".2 No entanto, não esta-va mais nas mãos desse monarca garantir tranqüilidade, assim, a toque de caixa. No Brasil, insurreições como a de Minas em 1789, a da Bahia em 1798 e, mais perto, a Revolução de 1817 em Pernambuco mostravam como os ânimos andavam exaltados e de que maneira os anseios de emancipação, que corriam a América La-tina como um todo, se aproximavam e animavam modelos e utopias locais. A Amé-rica inglesa estava praticamente livre, afora as ilhas do mar das Caraíbas, a Guiana equatorial, e o domínio mais gelado do Canadá. Na América espanhola, com exce-ção das Antilhas, a independência começava a se delinear como realidade definiti-va. Eram "as abomináveis idéias francesas" que entravam nas colônias, revolvendo antigas certezas e princípios estabelecidos.

Além do mais, os ares revolucionários tocavam a própria metrópole portu-guesa, cada vez mais consciente de sua frágil situação política e econômica. Na ver-dade, desde os primeiros tempos da invasão francesa, em 1807, e sobretudo após d. João declarar guerra em l2 de maio de 1808, uma série de manifestações popula-res revelaram adesão à monarquia dos Bragança, no lugar do jugo francês. E, se as respostas eram muitas, boa parte delas insistia na velha linguagem messiânica. No curto espaço que vai de 1808 a 1811, mais de trinta obras foram publicadas anoni-mamente, retomando os fundamentos das antigas crenças sebastianistas e a espe-rança de mais um desfecho glorioso para essa invasão.3 Porém, como sabemos, no dia-a-dia — e distantes da fé — faltava de tudo. As finanças andavam mal e os pro-dutos escasseavam; a situação política continuava tumultuada, uma vez que, como vimos, mais duas invasões (uma em 1809 e outra em 1810) retirariam a esperança na calmaria imediata e na retomada da posição de sede da monarquia. Entretanto, no final da década de 1810 o contexto era diferente e nada explicava a insistência do soberano em permanecer na América. Por isso, longe das antigas demonstra-ções de fidelidade irrestrita, o tom geral era agora de indignação e queixa.

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Quando V. M. se transportou para os seus estados do Brasil [...] ficou Junot com um Exército francês, roubando, destruindo e devorando os portugueses, como o sedento lobo faz a inermes e mansos cordeiros [... ] A Inglaterra abriu os seus tesouros e man-dou um Exército com chefes experimentados que derrotou, venceu e deu a Lei aos franceses nos campos da Roliça e do Vimieiro. A tão gloriosos acontecimentos seguiu-se a paz, aliás a Convenção de Sintra [...]. O resultado porém de uma tal Convenção foi voltarem os franceses para a França, vencidos sim, mas como vencedores, pois foram carregados de tesouros e efeitos roubados aos portugueses; levando todos as suas armas, as suas mochilas, os seus cavalos [...].4

As críticas surgiam por todo lado, inclusive contra a Inglaterra e sua política, que começavam a gerar clara aversão local. A Convenção de Sintra, mencionada no documento e assinada em 1808 entre França e Inglaterra, demonstrava efetiva com-placência dos negociadores ingleses, que fecharam os olhos diante do saque legal realizado pelas tropas napoleônicas em território português. Além do mais, na au-sência de d. João, Portugal fora governado por um Conselho de Regência, presidido pelo marechal inglês Beresford, que, finda a guerra, seria promovido a comandan-te do Exército inglês.

E não era só a situação política que andava complicada. Para piorar, uma grande crise se abateu sobre o comércio e a indústria portugueses após três inva-sões sucessivas. Diante da falta de produção, o numerário ia se esgotando progres-sivamente, o papel-moeda perdia seu valor, assim como sumia o crédito dos demais países europeus. Assim, passados os anos de crise mais aguda, não foram poucas as queixas que sobraram contra tudo e contra todos, incluindo os "irmãos brasilei-ros", acusados de omissão:

Os portugueses da Europa, durante a luta gloriosa em que pugnaram com os france-ses [... ] tinham direito a esperar alguns socorros de seus irmãos do Brasil [... ] Não se lhes mandou do Brasil, nem tropa, nem dinheiro, nem carnes, nem farinhas, nem açú-car, nem arroz, nem coisa alguma.5

Diante de tantas pendências os ânimos se concentrariam em torno de um mo-vimento que desaguaria na Revolução Liberal do Porto, que ergueu duas grandes bandeiras: de um lado o constitucionalismo, tão em voga naqueles tempos de volta e reviravolta; e de outro a soberania nacional, que, nesse caso, implicava o retorno de d. João vi, se não de toda a Família Real. Pode-se dizer que o movimento que começava a se organizar em Portugal inscrevia-se em um contexto mais amplo, que opunha "regeneracionismo liberal" (presente em países como Portugal, Es-panha, Grécia e Itália) ao "restauracionismo realista", como defendia a França e so-bretudo uma coligação formada por Rússia, Áustria e Prússia, mais conhecida como Santa Aliança, e que se reuniu no Congresso de Viena entre 1814 e 1815. Não obstante, se o objetivo maior do encontro era restaurar as antigas formas monár-quicas de organização política e restituir fronteiras, o mesmo congresso, parado-

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2. Vista da cidade do Porto foi lá que a Revolução começou. William Morgan Kinsey, FBN

xalmente, aceleraria a formação de nacionalidades e os anseios por liberdade do mundo colonial americano. Entre a volta do poder dos reis e a emergência de um modelo liberal de participação, a Europa balançava, fiada em um equilíbrio frágil. E foi jus tamente i rmanado nesse ambiente que Portugal fez sua entrada no movi-mento liberal, nacionalista e constitucional, c o m u m a uma parcela da Europa dos anos de 1820. Mas a revolução portuguesa havia de ser difícil, assim como particu-lar era sua situação. Liberal para Portugal, mas restauradora para o Brasil, eis a chave de compreensão da originalidade do movimento português.

Afinal, era a própria história local que não se deixava imitar. Com a partida da Família Real para o Brasil, em 1808, havia muito invertera-se a correlação de for-ças, t ransformando-se a antiga colônia em metrópole. Tal sensação veio a ser con-firmada em 1815, com a elevação a reino e a evidente autonomia que decorria do ato. Também o antigo pacto colonial, estabelecido entre Brasil e Portugal, fora modifica-do com a abertura dos portos brasileiros e com os tratados acordados em 1810 com a Inglaterra. Se o con junto dessas medidas gerava, ao menos em parte do territó-rio, crescimento econômico, o contrário se passava em terras lusitanas, onde a falta de emprego, a miséria econômica, a agricultura decadente e a queda das indústrias c o m p u n h a m retrato fiel. A isso se acrescia um verdadeiro imobi l ismo na política: em Portugal, a Regência atuava pouco e a nação cada vez mais empobrecida pas-sava da tutela protecionista francesa à desmoralizante situação de domínio militar britânico.

O mal-estar aumentava ainda mais com a permanência do monarca no Brasil e a sucessão de promessas não cumpridas. Havia muito, portanto, a exigir, e pare-

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cia que todo o "infortúnio" era circunscrito à falta do soberano. Não há metrópo-le sem rei, e esse tardava: já eram treze anos de convívio em sua colônia tropical. O grosso das atenções se voltava, portanto, para o regresso de d. João vi, que, mesmo a contragosto, tinha cada vez menos capacidade de desconversar:

Em Portugal [... ] já todas as classes estavam intimamente, se não convencidas, ao menos muito desconfiadas de que V. M. nunca mais cumpriria Sua Real Palavra de voltar a Portugal como prometera [... ] Acreditar na ida de V. M. para a sua antiga capi-tal, objeto das esperanças de todos os portugueses, eram só agradáveis e lisonjeiros sonhos que encantavam o espírito sem persuadirem o coração; os homens avisados e circunspectos não se enganavam.6

E assim, com meias verdades, é que Portugal toma parte do grupo de nações que fizeram do liberalismo não só mais uma filosofia, presa a determinados pen-sadores, mas uma doutrina, uma nova ordem político-social. Pelo reino começa-vam a circular obras dos "fatais enciclopedistas", isso a despeito da repressão siste-mática que se realizava a elas. Aliás, coube um papel fundamental à imprensa que se publicava no estrangeiro, sobretudo na Inglaterra, onde a liberdade de escrita permitia maior divulgação. Dos inúmeros periódicos lá editados destacam-se o Correio Braziliense (dirigido por Hipólito José da Costa entre os anos de 1808 e 1822 e proibido em Portugal em 1811 e 1817), o Investigador Português em Inglaterra (fundado em 1812 com o objetivo de combater o Correio e que mudaria de orien-tação a partir de 1814), o Português ou Mercúrio Político, Comercial e Literário (o mais combativo e, por isso mesmo, o mais censurado dos jornais portugueses publicados na Inglaterra) e o Campeão Português ou o Amigo do Rei e do Povo (o mais governista dos jornais e, apesar disso, proibido no ano de 1819). A atuação desses periódicos na divulgação das idéias liberais e na inflamação dos humo-res foi evidente e pode ser atestada por um exemplo retirado de O Português. Em artigo de 30 de abril de 1814, após muitos elogios à liberdade de imprensa decla-rava-se:

Enquanto grandes revoluções têm se obrado na Europa, só o governo português sem lhe importar a opinião geral, sem fazer caso dos extraordinários acontecimentos que têm passado por seus olhos dorme em um sono profundo à beira do precipício, não cuida num melhoramento pacífico, conserva os antigos abusos, não quer ouvir falar em reformas e ainda tem acautelado tudo alevantando um muro impenetrável às luzes que não possam vir dos vizinhos como se essas fossem contrabando.7

Ainda estamos em 1814 e o Português já insiste em reformas e na entrada das novas idéias. Mas a argumentação política desenvolvida não é isolada. De forma geral os diferentes periódicos realizavam verdadeiras campanhas de esclarecimen-to, assim como definiam, apesar das diferenças existentes entre eles, uma grande exigência: era necessário elaborar para Portugal e Brasil uma Constituição, em moldes contemporâneos. Dessa maneira, em terras lusitanas, a literatura vinha de

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fora para dentro e encontrava terreno fértil para se disseminar. Não por coincidên-cia, em j u n h o de 1820, um mês antes de a revolução explodir, O Campeão ponde-rava que Portugal "era a verdadeira imagem de um Tânta lo : desprezado, oprimido e tiranizado por um governo colonial e anelando ansiosamente pela liberdade e independência que lhe roubaram". Era o próprio editor, José Liberato, quem ape-lava para o rei, c o m o "salvador da pátria", ou, premonitor iamente , anunciava o que estava por vir:

Açude e corre pai; que se não corres Pode ser que não aches quem socorrer.8

O MONARCA VOLTA OU NÃO VOLTA?

Oliveira Lima dizia que não se podia esperar demais de d. João, "pois seu dese-jo muito ardente seria ficar em São Cristóvão ainda que Portugal se tornasse cons-titucional. Um const i tucional ismo à distância não humilhava assim tanto e o reino europeu carecia absolutamente do reino americano".9 Não era a primeira vez que a indecisão se manifestava: já nos m o m e n t o s que antecederam a partida do então regente para o Brasil, em 1807, ficaram famosas as oscilações que pareciam fazer parte da própria personalidade do monarca. Mas, desta feita, o contexto não per-mitiria o exercício da exclusiva vontade do rei e, se movimentos de teor regenera-cionista acreditavam que u m a monarquia liberal seria a saída para Portugal, outros núcleos de descontentamento ousavam pensar no regime republicano ou até n u m a mudança de dinastia. Bas icamente era essa a situação depois de 1815, quando a maior preocupação dos políticos em Lisboa parecia consistir em alertar o regente e depois rei, d. João vi, quanto ao empobrec imento do reino, assim como em lem-brar a necessidade premente de seu retorno. Acresce-se ainda que, enquanto se falava de liberdade, mesmo que t imidamente, em outros círculos a repressão con-tinuava solta: censuravam-se jornais e uma série de associações secretas eram per-seguidas, e suas atividades, proibidas.

Foi, porém, justo nesses meios, notadamente nas sociedades maçônicas, que a conspiração começou a tomar forma. Dessas, a organização que mais se destacou foi o Sinédrio, associação secreta formada no Porto em 22 de janeiro de 1818, e composta sobretudo por juristas, tais como Manuel Fernandes Tomás, José da Silva Carvalho e José Ferreira Borges.10 Nos anos seguintes o movimento cresceria, ainda que sem um projeto revolucionário definido. Só em 1820, com a notícia dos acon-tecimentos revolucionários na Espanha, o Sinédrio tomou u m a posição mais agres-siva. Mas o próprio perfil dos integrantes explicaria o caráter moderado das pro-postas e o fato de nunca terem colocado em causa a dinastia dos Bragança. Dessa maneira se explica também a cautela diante da adesão dos militares em 1820, ou mesmo a tentativa de alicerçar outros grupos, c o m o a Igreja, visando sempre am-pliar o movimento. Foi assim, juntando forças, que na m a n h ã do dia 24 de agosto

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de 1820 as tropas tomaram o Campo de Santo Ovídio, no Porto. Após a formação de um governo provisório, as Cortes — reunidas pela última vez em 1698 — seriam convocadas para preparar uma nova Constituição. A dinastia dos Bragança seria poupada, mas a volta da Família Real virava tema de pauta e de orgulho nacio-nal. Militares e populares aclamaram os discursos, salvas de tiros soaram, teve lugar uma missa campal, e assim estava proclamada a liberdade na maior or-dem: começava a Regeneração de 1820, mais conhecida como Revolução Liberal do Porto.

Logo de início nomeou-se a primeira Junta de Governo, composta por ele-mentos da nobreza e da burguesia, além de clérigos e militares, todos liderados pelo Sinédrio. Mas era preciso ganhar novas adesões à causa, o que não foi difícil, uma vez que as idéias de revolução circulavam por toda parte. Os portugueses repudiavam a idéia de ser colônia de uma colônia e, o mais humilhante, de ser uma metrópole com rei ausente. Embora certamente existissem vozes discordantes e oposições entre registas e revolucionários, já em 15 de setembro de 1820 Lisboa juntava-se ao movimento, comemorando atos paralelos: a data que celebrava a vitória sobre o invasor francês, na primeira restauração, e que agora representava "uma nova aurora da liberdade", como diziam os revolucionários. E, sem grandes manifestações, sem atos de represália aos regentes, Lisboa secundava o Porto e a revolução seguia sem maiores conturbações.

Em le de outubro as Juntas Provisionais entraram em Lisboa, e com elas vie-ram as primeiras medidas — reformas na administração, alterações na censura e a preparação para as eleições dos deputados que elaborariam a nova Constituição do Império. Mas foi só em 31 de outubro que se apresentou a idéia do retorno às Cortes, agora definidas como um núcleo de representação nacional. Até o final do ano de 1820, sempre pacificamente, a ordem pública interna foi restabelecida e as eleições, regulamentadas. Previa-se ainda a existência de duas Câmaras, além de se determinar a volta de ao menos algum membro da Família Real. Firmado dessa maneira o primeiro objetivo da Revolução, faltava agora consolidá-lo — tarefa que seria empreendida pelas Cortes Constitucionais durante os anos de 1821e 1822.

E, não à toa, as primeiras preocupações dos deputados se concentraram no regimento interno das Cortes, na nomeação de comissões e no estabelecimento de um novo governo — a Regência —, que esteve em funcionamento até o regresso de d. João vi.11 Os trabalhos começaram já em fevereiro, e a agenda era repleta: liberdade de imprensa, elaboração do código civil e criminal, supressão da In-quisição, redução do número de ordens religiosas, anistia aos presos políticos, ins-talação de um banco em Portugal e uma série de medidas que implicava a efetiva-ção das diretrizes dos revolucionários.

No entanto, a questão do regresso do rei era a que mais acirrava os ânimos. O tema não era novo e desde 1814 fazia parte da correspondência trocada com assi-duidade entre colônia e metrópole. O rei, que protelara a tomada de qualquer decisão, após 17 de outubro de 1820 — quando chegam pelo brigue Providência as

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primeiras notícias de Portugal —, não tem muito a adiar, informado que estava pelos conselheiros e ministros que o circundavam. E as opiniões variavam: alguns apoiavam o regresso imediato do soberano, ou de seu filho, a fim de contornar a situação; outros defendiam a sua permanência, alegando que diante do constitu-cionalismo era melhor ser rei por inteiro do que pela metade. Existiam ainda aque-les que viam com bons olhos uma "revolução liberal" em Portugal e pensavam que essa só poderia acarretar maior liberdade para a colônia.

A questão também opunha figuras próximas ao rei, sempre afeito a conselhos. O conde de Palmela, por exemplo, que desembarcara no Brasil em 23 de dezembro de 1820, para assumir a pasta da Guerra e Estrangeiros, trazia notícias frescas dos projetos "vintistas". O político defendia que melhor seria seguir o filho e não o pai, uma vez que a partida desse último poderia apresentar conseqüências fatais para o Brasil. Dessa posição discordava Tomás Antônio,12 talvez o conselheiro mais ínti-mo de d. João, que, infenso a novidades, julgava que o monarca deveria impor sua autoridade, exigindo obediência e submissão. O conde dos Arcos, que também fazia parte do círculo íntimo e figurava entre os conselheiros do rei, ocupando a pasta da Marinha, apresentava atuação pouco ostensiva; parecia estar mais preocu-pado em aproximar-se do príncipe d. Pedro do que do rei, que tinha seus dias na colônia mais do que contados.

Para além das personalidades destacadas, havia também as diferentes facções que se digladiavam em torno do tema. O retorno era defendido no Rio de Janeiro, sobretudo pelo "partido português", formado basicamente por altas patentes mili-tares, burocratas e comerciantes, interessados no retorno ao antigo sistema colo-nial e na subordinação do Brasil à metrópole. Opunha-se a essa posição o "parti-do brasileiro", constituído por grandes proprietários rurais das capitanias vizinhas à capital, financistas, militares, burocratas e membros do Judiciário nascidos no Brasil e que se beneficiavam com o estabelecimento da corte aqui. Não obstante, esses não eram exatamente partidos, mas antes correntes de opinião, grupos que guardavam os mesmos interesses, o que explica as nossas aspas e até o papel da maçonaria, que, diante dessas organizações mais frouxas, funcionaria como articu-ladora política e catalisadora de descontentamento.13

Nesse contexto, uma montanha de panfletos retomava a situação, sempre a par-tir da questão régia, nomeada na volta de d. João ou de seu filho. Mas d. João resis-tia enquanto podia e parecia repugnar tanto sua ida a Portugal como a idéia de consentir que d. Pedro fosse. Na verdade, essa idéia, sussurrada pelos cantos, mais parecia segredo de polichinelo, uma vez que todos conheciam o projeto, menos o príncipe. Ao contrário, a essas alturas já com mulher e filhos, mal sabia dos planos e era mantido na maior ignorância. Enquanto isso, a falta de intenção do monar-ca de deixar a colônia não passava despercebida aos contemporâneos, como o ministro da Áustria, Sturmer, que em conversa com d. João vi o provocava: "Treze anos de novos hábitos e o amor de um povo que tudo deve a V. M. são motivos bas-tantes para fazerem esquecer Portugal. Não se acha no mesmo caso o príncipe real, que é moço e arde em ambição de servir V. M. em qualquer hemisfério que seja".14

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3. D. Marcos de Noronha e Brito, oitavo conde dos Arcos, que fazia parte do grupo de

conselheiros do rei. FBN

4. D. Pedro, que mal sabia dos planos que incluíam sua partida para Portugal. FBN

O rei, que gostava de palpites mas não estava para confidências com o diplomata, achou por bem desconversar, introduzindo temas mais amenos e palatáveis: o calor em excesso, a morte da mãe e a al imentação nos trópicos.

A situação na colônia complicou-se com o aparecimento de um folheto anô-nimo, escrito em francês, que acabou conhecendo imenso sucesso. O impresso, intitulado "O rei e a familia real de Bragança, devem eles, dentro das circunstâncias presentes, retornar a Portugal ou restar no Brasil?",15 colocava em debate a separa-ção do Brasil e era inspirado nas posições de Tomás Antônio, que, como vimos, opunha-se à saída dos Bragança. O autor elaborava seis proposições, que eram quase provocações: 1) Portugal precisava mais do Brasil do que o contrário; 2) a partida da Família Real para a Europa seria o prelúdio da independência do Brasil; 3) d. João não manteria seu domínio sob o Brasil governando de tão longe; 4) em Lisboa o rei estaria nas mãos dos rebeldes; 5) do Brasil o monarca controlaria o flo-rescente Império Português; 6) d. João teria tempo, quando quisesse, de fazer a mudança que lhe pediam naquele momento .

O folheto circulou pela colônia, ao módico preço de 960 réis, e acabou che-gando a Portugal. Nesse meio- tempo, comentavam-se a b o c a pequena a autoria e a procedência do documento, que era atribuído ao emigrado francês tenente-coro-nel Francisco Estêvão Raimundo Cailhé de Geines, que na época fazia sondagens na opinião reinante, para não dizer espionagens, e periodicamente apresentava re-latórios secretos ao intendente de Polícia. Pior ainda: dizia-se que o texto teria sido escrito por encomenda expressa de Tomás Antônio e com a aquiescência do rei.16

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Como se vê, d. João apostava todas as suas fichas e tentava fazer o que parecia im-possível: permanecer na colônia.

Não obstante, por mais que o rei resolvesse jogar, a sorte estava lançada e não parecia haver aposta certa. A própria partida de d. Pedro era dada, em janeiro, como definitiva, sem que o interessado soubesse ao certo de seu destino. Sua espo-sa, d. Leopoldina, estava grávida, o que implicava uma projetada separação que não parecia assustar o príncipe, o qual, colocado à parte do cenário político, ansia-va por sua entrada triunfal. E não restam dúvidas acerca do papel que d. Pedro pre-tendia ocupar. Em carta de data ignorada mas, com certeza, anterior à decisão pública de sua viagem, assim se posicionou:

Meu conde e amigo. Dou-lhe parte, o Sarmento me disse que Tomás lhe dissera q: eu não havia ir porque ele não queria, e q: meu Pai também não queria mas iria a Mana com meu sobrinho e Mano17 debaixo do pretexto de tomarem conta nas suas casas, deste modo não vamos bem e é necessário que o conde veja se meu pai desside (sic) a meu favor que é o que nós desejamos. Eu ontem disse a Mana que sabia todas essas coi-sas [...] e eu tinha muito interesse nisso porque a meu Pai interessava igualmente [...].18

Com as incorreções gramaticais que se colaram a seu estilo19 e as inevitáveis palavras em latim, d. Pedro recorria a seu amigo, o conde dos Arcos, contando com

5 e 6. D. Leopoldina, em duas litogravuras papel ativo no processo

de independência. PBN

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5. Vista panorâmica completa do Rio de Janeiro. Nesta panorâmica está citada a Biblioteca dos Ingleses do Carmo, e se podem ver a rua de Trás do Carmo e os fundos do Convento do Carmo. Gravura em água-tinta de Friedrich Salathé, FBN

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> A V S d ' '•' . . " ?11 J

9. Vista do Rio de Janeiro. Friedrich Salathé — Detalhe da panorâmica que mostra d. Pedro 1 a cavalo com sua comitiva. FBN

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O BRASIL DOS NATURALISTAS

15. Macaco Guaipurá. Por Alexandre Rodrigues Ferreira, 1756-1815. Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá,

1783-1792: os trópicos exóticos. FBN

N Ioiiandrta M onoovma »CAM Vr.' I.«t4lld KICl

16. Galo. Por Alexandre Rodrigues Ferreira, 1756-1815..Viagem filosófica pelas

capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, 1783-1792: na pena dos

naturalistas, a divulgação dos trópicos. FBN

Rcó caájilrÁn ii

17. Frei Mariano da Conceição Veloso. Flora fluminense, 1790. FBN

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20. Pássaro Por Spix e Martius, Animália brasileira. FBN

21. Lagarto Por Spi&e Martius, Animália brasileira. FBN

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PINCEL DE T. ENDER

23. Negros descansam e posam para Thomas Ender: escravidão vista de longe. FBN

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32. A sege e a cadeira: escravos no trabalho, e senhores

transportados. Lieuten

Chamberlain, FBN

33. Vendedores de cana, livros,

cestos... no Largo da Glória:

imagens sempre idealizadas por

Chamberlain. FBN

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PINTANDO A INDEPENDÊNCIA

41. Independência ou mor te , de Pedro Américo: a elevação do ato. Museu Paulista

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sua interferência para redimir o que julgava ser uma atitude intransigente de Tomás Antônio e de seu pai, o rei d. João. Mal sabia que, nesse meio- tempo, sua partida continuava a ser discutida, para desespero de Leopoldina, que não se conformava em ser deixada para trás.

Chegou-se a indicar uma comitiva para acompanhar o príncipe, que espera-ria o nascimento do filho antes de seguir viagem. Mas, como bem sabemos, d. Pedro não partiria: sua ida, ao que tudo indica, era antes uma m a n o b r a dilatória do rei, que teve o cuidado de tranqüilizar a nora, temendo maus sucessos nos trabalhos de parto do futuro neto. Por sua vez, atraído pelo movimento constitucionalista que se preparava no Brasil, ou pelos apelos da esposa, d. Pedro declarou que não dei-xaria a colônia, e assim voltamos novamente ao mesmo compasso, monótono, de espera.

No entanto, os acontecimentos se precipitavam e o rei se viu obrigado a jurar a Constituição em fevereiro de 1821 — seu derradeiro ato no Brasil. Mesmo assim, o tempo das meias palavras perdurava e de 18 a 26 de fevereiro a situação de incer-tezas e dúvidas continuou, gerando um acelerado processo de enfraquecimento da autoridade real. O monarca, em meio a crises de abulia, não mostrava firmeza alguma e o litígio entre Palmela e Tomás Antônio não recuava. Mas, nas palavras do próprio d. João, "não havia outro remédio", e foi assim, em meio a tanta discór-dia, que os decretos de 7 de março não só determinaram o regresso do rei a Lisboa — ficando o príncipe real encarregado do Governo Provisório do Brasil —, como es-tabeleceram as instruções a respeito da eleição dos deputados brasileiros que atua-riam junto às Cortes.

7. Debret confere monumentalidade à aceitação provisória da

Constituição portuguesa. FBN

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O ambiente era tenso. Em 21 de abril de 1821, na então Praça do Comérc io — em frente ao elegante prédio construído por Grandjean de Montigny 2 0 —, uma reunião de eleitores do Rio de Janeiro foi bruscamente interrompida por gritos de "aqui governa o povo" e "ha ja revolução", n u m a clara demonstração de que o pro-cesso interno não estava absolutamente controlado. A mult idão exigia que d. João vi jurasse a Consti tuição de Cádiz, de 1812, e que permanecesse no país, desafian-do a decisão das Cortes. Enquanto o vacilante rei mais u m a vez aquiescia, seu fi-lho — ainda não instado à função de regente — reprimia violentamente a mani-festação, cujas conseqüências seriam relatadas no livro da viajante inglesa Maria Graham, que lamentou as trinta mortes e os muitos feridos.21 O prédio de Mon-tigny amanheceria pichado com os dizeres "Açougue dos Bragança", em um episó-dio que marcava as divisões que o processo abria.

Nessa confusão toda, a única exultante era a rainha Carlota Joaquina, que nunca escondera sua aversão pela corte do Rio de Janeiro, que sempre considerara tacanha. "Até que enfim verei gente inteligente", dizia ela, enquanto voltava satis-feita, em 26 de abril de 1821, com o resto da Família Real, à exceção de d. Pedro i, que ficava como um braço da monarquia no Brasil. Junto com a corte partiria um séquito estimado em 4 mil indivíduos — entre ministros, oficiais, diplomatas e respectivas famílias, além dos deputados da corte do Rio de Janeiro. Era o fim do hamlet ismo político, iniciado desde a paz de 1816: no lugar do mais clássico "ser ou não ser", ficava a versão tropical encenada por d. João, que se resumia a um constante "vou ou não vou".

8. A partida da rainha na desproporção da rampa, Debret acompanha as projeções do momento. FBN

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HORA DE VOLTAR PARA CASA

D. Pedro, com seus 22 anos, permaneceria no Brasil, herdando projetos polí-ticos e esperanças de continuidade. O único documento dessa época, e que repro-duz a última conversa travada entre pai e filho nos momentos que antecederam a partida, representa uma peça política de nossa memória nacional e fala de dife-renças, mas também de apostas comuns. Faltava intimidade, sobrava distância entre esses homens separados pela idade, condição, costumes e tradições. Não que o pai deixasse de lamentar o sacrifício do primogênito, que ficava na colônia sujeito a tantos inesperados, mas inexistiam laços mais fortes a unir o reticente rei d. João VI e o voluntarioso regente d. Pedro. O dia era 24 de abril, e na manhã seguinte el rei embarcaria finalmente com o resto da família: tudo pronto e arru-mado. O regente é chamado ao quarto do pai, onde se deu um famoso colóquio de poucas palavras. Na verdade, só se sabe do que disse o rei com base na memó-ria do filho, que fez questão de tudo recordar em carta datada do ano seguinte: "Eu ainda me lembro e me lembrarei sempre do que Vossa Majestade me disse antes de partir dois dias em seu quarto: Pedro se o Brasil se separar, antes seja para ti, que me hás de respeitar do que para algum desses aventureiros". A memória é traiçoeira, sobretudo aquela que se transforma em peça de nacionalidade. Se d. João disse e o filho lembrou de escrever, ninguém há de saber. Na recordação do rei, o futuro parecia certeiro. Se o Brasil se separasse, melhor seria ficar nas mãos de um dos herdeiros do trono de Portugal; era com poucas frases e laivos premonitórios que d. João se despedia do Brasil: como memória, como sentença lembrada e jamais confirmada.

E o decreto de 22 de abril de 1821 saía expressando saudades: "Sendo indis-pensável prover acerca do governo e administração desse reino do Brasil, donde me aparto com vivos sentimentos de saudade, voltando para Portugal, por exigirem as atuais circunstâncias políticas enunciadas no decreto de 7 de março do corrente ano [...]". Nomeava-se também a sucessão em termos de lamúria:"[. . .] me recom-pensarão do grande sacrifício que faço, separando-me do meu filho primogênito, meu sucessor do trono, para lho deixar como em penhor do apreço que deles faço".22 Afinal, era hora de se despedir.

Contou Luiz Edmundo que

A 25 de abril de 1821 deixou el-rei d. João o Rio de Janeiro a caminho de Lisboa. Ia profundamente sucumbido, varado de sobressaltos e tristezas, em meio à farandola-gem alvoroçada dos padres, dos frades, dos ministros, dos camareiros e outros doura-dos parasitas da Coroa [...] A bordo, atirado sobre a sua bergère, comovido, o pobre homem quase não falava, ou rezava, o olho bovino e amargurado, melancolicamente posto na fugidia linha do horizonte, além do qual ia-se esfumaçando ou desaparecen-do, em uma gaze de sonho, o paraíso encantado da América, o Brasil. Que seria de sua pobre vida, punha-se ele a pensar, quando chegasse a Portugal? [... ] E tinha gestos de inquietação e mal humor [...].23

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A despeito das imagens um tanto fantasiosas desse cronista, sabe-se que d. João partia triste e inseguro. Tentou até fazer uma escala breve em Salvador, a pretexto de deixar ordens para que obedecessem ao novo governo; ia tão contra-riado que... quem sabe pudessem ser obrigados pelos baianos a ficar por lá. Mas até Palmela achou de b o m - t o m não dar mandos à imaginação: apesar do visível des-contentamento, era hora de voltar. Talvez por isso, ou por ganância, d. João tenha pedido para que se transportassem, cuidadosamente, as arcas do tesouro e os cofres do Banco do Brasil.24 Narram historiadores, como Oliveira Lima, que a realeza que vivera na corrupção fizera um verdadeiro assalto ao erário brasileiro, além do saque de diamantes que estavam penhorados nas casas-fortes do Banco do Brasil, depositados por particulares. Só o rei carregou, em ouro amoedado e em barra, mais de 60 milhões de cruzados. Pelas ruas o povo, que mais uma vez acompanha-va à distância a movimentação da corte portuguesa, em meio à balbúrdia da par-tida — entre tantas malas e caixotes —, cantava:

Olho vivo E pé ligeiro Vamos a bordo Buscar dinheiroP

FICAM O FILHO, A BIBLIOTECA E O ACERVO DO CONDE DA BARCA

Rapou-se tudo, na maior pressa e sem muito tempo para deliberações e pro-jetos. A indecisão do rei teria se manifestado mais esta vez, e, novamente, havia pouco tempo para fazer as malas. Na colônia ficava não só o filho herdeiro d. Pedro, príncipe da Beira, como também objetos, bens e instituições diletas — tudo à espe-ra de segunda ordem, e esse é o caso da Real Biblioteca. Não era possível desmon-tá-la do m e s m o m o d o como se fecha uma valise pesada. Por isso, no regresso a Portugal d. João teria levado apenas parte dos "Manuscr i tos da Coroa",26 aqueles documentos referentes à história de Portugal, que começava a ser escrita de forma distinta dessa que seria a história do Brasil independente.

Mas a Biblioteca, a essa altura, crescera e muito, cont inuando estratégica ain-da que sem a presença de tais manuscri tos . Recebera várias doações, mas uma, em especial, t inha mudado sua personalidade. C o m o sabemos, o poderoso An-tônio Araújo de Azevedo falecera em 1817, deixando para leilão, entre outros itens, sua famosa livraria, tão famosa que por longo tempo confundiu-se o desti-no da Real com a sorte dos livros do conde da Barca. Esses foram os livros que vieram, j u n t o c o m o príncipe, a b o r d o da nau Medusa, e foi a Real Bibl ioteca que teve de aguardar para ser embarcada poster iormente em três levas. Ao que tudo indica, Araújo de Azevedo t inha pressa de levar sua coleção por conta dos

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franceses que, mal chegados, requisitaram — tarde demais — o acervo araujen-se.27 E a coleção seguiria em caixotes numerados de 1 a 27, e parece que, a des-peito de todo cuidado, foi mutilada durante a viagem. Males do translado e da afobação.

Porém, esse servidor do Estado, que por longo tempo ocupara os mais altos cargos públicos em seu país e servira como embaixador em vários outros, e que ao falecer era ministro de Estado de todas as pastas, morria quase pobre, legando como bens principais no Rio de Janeiro uma casa à rua do Passeio, alguns bons quadros — adquiridos ou ofertados pelos amigos acadêmicos — e sua valiosa livraria. A biblioteca do ministro começara a ser organizada e adquirida em 1787, quando Araújo de Azevedo ocupou o posto de enviado extraordinário e ministro plenipotenciário de Portugal em Haia. Desde então o conde da Barca dedicara-se a ela, organizando um acervo composto de mais de 74 mil volumes em 2419 cole-ções, avaliado em 16:818$300 no ano de 1819.28 Dono de conhecimento ilustrado, Araújo de Azevedo reuniria enorme quantidade de objetos, bem à moda dos gabi-netes da época, ou do que se convencionou chamar de "coleções" — conjuntos for-mados por "curiosidades da natureza e artes". Além deles, seu acervo se compunha de obras de astronomia, música, artes, desenho e pintura, arquitetura, antigüida-des, pedras gravadas, inscrições numismáticas, livros de viagens de geografia e outros temas então valorizados. A livraria do conde era enriquecida ainda por edi-ções raras, muitas delas ilustradas com belas estampas.29

Mas, como dizíamos, Araújo de Azevedo morreria insolvente, e não havia o que fazer senão retalhar seus bens e, entre eles, a biblioteca. Marcado o dia do lei-lão de inventário, apresentaram-se entre os cidadãos concorrentes frei Joaquim Dâmaso, bibliotecário da Livraria Pública autorizado pelo príncipe regente a fazer um bom lance para arrematar a livraria, que seria vendida no pregão em um só lote. Assim se fez e o acervo foi comprado, pelo preço estipulado na ava-liação.30 A Fazenda logo se apoderou da livraria, mas não satisfez a obrigação de depositar o valor no banco, nem nos três dias determinados, nem nos anos seguintes.31

E a coleção teria novo endereço, assim como seus catálogos, que, ao que tu-do indica, foram copiados do modelo original, organizado pelo próprio conde da Barca para seu uso e deleite. Classificadas por temas como teologia, teólogos, moralistas e direito pátrio, as obras chegavam a 2418, embora a certidão existen-te falasse em 2419, espalhadas por entre 6329 volumes.32 É difícil recuperar to-do o conteúdo do catálogo, uma vez que, perdidos vários ex-libris, as obras foram se misturando ao acervo geral da Biblioteca. No entanto, o que se conhece já é digno de destaque. Particularmente vistosa é a rica iconografia e, sobretudo, a coleção Le Grand Théâtre de VUnivers, composta por uma série de estampas raras e de qualidade. Na verdade o "Grande Teatro do Universo" não é simplesmen-te um catálogo, e sim a reunião de vários catálogos, encadernados em um só volume, apresentando ilustrações de muitas partes do mundo, notadamente da Europa.

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O primeiro catálogo, o atlas do falecido mr. de Boendermaker, era constituído de mapas escolhidos e selecionados dentre os mais conhecidos geógrafos da épo-ca. Continha planos de cidades, fortes, igrejas, peças curiosas, retratos de sobera-nos e homens ilustres. O imenso conjunto de 130 volumes representava, de fato, um grande giro, ou melhor, a pretensão de uma grande demonstração do que então se conhecia.33 Além do mais, três pequenos catálogos com seis páginas enumeradas formavam um único fascículo. Eram compostos por estampas de vários mestres (montadas em 27 pastas), por um catálogo holandês de cartas geográficas em doze séries, e mais um catálogo da mesma procedência contendo bustos e estátuas de mármore em bronze, em vinte séries.34 Havia também um terceiro catálogo da obra propriamente dita, Le Grand Théâtre de VUnivers, e um quarto referente a uma cole-ção de antigüidades romanas e gregas.35 Esses catálogos, não sem razão, se transfor-mariam em um dos orgulhos de Araújo de Azevedo, que por meio deles revelava seu conhecimento do mundo e sua vida de homem viajado.

Mas, com a morte do conde e a compra do acervo, essa obra e todas as demais, passariam a fazer parte da Real Biblioteca, que assim se enriquecia em volume e qualidade. E o destino da coleção de Araújo de Azevedo seria o mesmo da Real. Adquirida apenas um ano antes, ela mal pôde ser apreciada por d. João VI, que par-tia de forma apressada, preocupado com o que lhe esperava em Portugal. E com a biblioteca do conde da Barca e os livros da Real Livraria permanecia, a contragos-to, o bibliotecário padre Joaquim Dâmaso. Descontente com sua má sorte, o encar-regado da coleção logo em 16 de abril de 1821 fez questão de explicitar as razões de não ter seguido imediatamente, junto com o rei. Disse ele:

Sendo grande o sentimento que me acompanha em não ter a honra de acompanhar S. M. muito maior é o gosto que tenho em o mesmo senhor me julgar digno de cumprir as suas ordens mandando-me que fique por ora até que S. A. Príncipe Real querer. Permita-me V. Excelência que eu aqui expresse palavras de S. M. que tanto me lison-jearam — "Espero que o Padre defenda os meus direitos sobre a Minha Livraria". Para justificar a minha demora para com a Comissão de que muito prezo ser membro é preciso que V. Excelência me dê por escrito que declare que a minha demora aqui até que S. A. o Príncipe R. determine que vá acabar meus dias aonde, e como comecei, é um efeito da vontade de V. A. que assim o ordena. Enquanto ao segundo objeto con-quanto S. M. me determinou falasse a V. Excia. eu me poupo resolver isso, em faltar aos meus princípios, e mostrarei agora inconstância se tenho servido a V. Me. a tantos anos com desinteresse que é notório falasse agora em Ordenado, porque até agora os não mereci, pouco me resta para os merecer embora se [...] outros de honra e provei-to em conheço que nada mereço.36

Sem ordenado, sem seu rei e sem a própria corte portuguesa ficava o bibliote-cário, leal mas receoso de seu futuro. Restavam as belas palavras do soberano: "Espero que o Padre defenda os meus direitos sobre a Minha Livraria", que sina-lizavam ao religioso o mesmo destino de d. Pedro: vai-se o rei, ficam os livros e o filho. Como um jogo de quebra-cabeça, d. João partia mas deixava o príncipe e

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a Livraria, mal sabendo que cada uma dessas peças cumpriria uma tarefa relevan-te para a autonomia futura deste país. Já se conhece de cor o papel que d. Pedro foi alçado a ocupar, ficando no lugar que ficou. A Livraria Real, por sua vez, de novo surgiria como símbolo. Até então fora a biblioteca do rei — "a Minha Livraria", dizia ele —, mas essa sina começaria a mudar. Assim como os símbolos são relati-vos e se redesenham a cada contexto, dessa feita a Biblioteca lembrará não mais o domínio monárquico, mas a verdadeira autonomia que se faz com o pensamento. É esse processo que nos aguarda, e não é hora de pular a agenda dos acontecimentos.

TEMPOS DE D. PEDRO

Enquanto d. João vi cruzava novamente os mares, agora em direção oposta, a Junta das Cortes debatia as disposições que regeriam o regresso do monarca, tema que parecia concentrar boa parte das atenções. Para se ter uma idéia do impacto da volta do soberano, basta dizer que se determinou que se observasse o antiqüíssimo "Regimento de entradas em Lisboa", elaborado em 30 de agosto de 1502, por oca-sião da chegada de d. Manuel e apenas adaptado ao novo contexto. Pode-se imagi-nar, assim, o papel que se pretendia atribuir ao monarca, equiparando-o a um grande vulto dos tempos do Descobrimento37 ou então entregando-lhe a chave da cidade:

A cidade [...] tem hoje o inexplicável gosto de entregar nas reais mãos de V. M. as cha-ves de suas portas, e com ela[s] as dos seus corações. E eu [trata-se do conselheiro vereador José de Abreu B. Chichorro], a quem a Sorte conferiu essa honra, contarei sempre este instante pelo mais feliz da minha vida.38

Por outro lado, essa era também uma maneira hábil de receber o rei: ao mesmo tempo que se faziam as honras da casa, determinava-se quem seria o novo mandante. O monarca desembarcaria só a 4 de julho, não sem antes ter recebido as deputações da Regência e das Cortes. Para mostrar força, as Cortes proibiram ainda a entrada de onze conselheiros do rei, considerando-os perigosos para a situação. Entre eles estavam, apenas e tão-somente, o conde de Palmela, o ministro Tomás Vila Nova Portugal e o visconde do Rio Seco (Joaquim José de Azevedo), a quem determinaram o afastamento da capital. No braço de ferro, os "vintistas" mostravam, de saída, quem virava o punho.

Logo na seqüência, e na mesma data de 4 de julho, o rei nomeou um novo ministério, substituindo a Regência, e assumiu a monarquia constitucional, que lhe dava um novo status, diferente daquele a que se acostumara como monarca abso-luto. Mas engana-se quem faz pouco do impacto e da penetração da força do rei: a entrada do monarca em Lisboa, acompanhado da rainha e do infante d. Miguel, é até hoje descrita de maneira triunfal. Foi no dia 5 de julho, e Lisboa se preparou para receber aquele que tanto tardara e que, mesmo forçado pelas circunstâncias,

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9. Desembarque de d. João VI em Lisboa, em 4 de julho de 1821: homenagens e demonstrações cruzadas de poder. Gravura de Constantino Fontes, FBN

surgia como um troféu de vitória, ainda amparado por sua condição de rei. Satis-feita estava mesmo Carlota Joaquina, cujo papel de oposição se repetiria — agora contra a Revolução e seus planos de cerceamento ao absolutismo real. Além do mais foi a única que, bem em frente das Cortes, se recusou a jurar a Constituição de 1822, o que lhe custou o desterro no Palácio no Ramalhão (e, para sua felicidade, longe de d. João).39 Não perdeu, porém, a pose, como se pode atestar na carta que deixou para o soberano:

Senhor, recebi esta noite pelas mãos de vossos ministros um decreto para deixar o vosso reino. É pois para me mandar desterrada que V. M. me obriga a descer do trono a que me chamou. De todo o meu coração vos perdôo e me compadeço de V. M. todo o meu desprezo e aversão ficará reservado para os que vos rodeiam e que vos enga-nam. Na terra do desterro eu serei mais livre que V. M. em vosso palácio. Eu levo comi-go a liberdade: o meu coração não está escravizado; ele jamais curvou diante de alti-vos súditos que têm ousado impor leis a V. M. e que querem forçar minha consciência a dar um juramento que ela desaprova [... ] Já d. João, mais uma vez, se conformaria à nova situação, apesar de sempre declarar sua predileção pela colônia.

No entanto, nesse momento , o Brasil não passava de lembrança longínqua: local de moradia do príncipe d. Pedro, que lá ficara para garantir a manutenção da

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10. Juramento de d. João VI ao chegar de regresso do Brasil uma nova ordem. Columbano, BNL

monarquia portuguesa em terras americanas. E a decisão fora difícil. C o m o sabe-mos, cogitara-se sobre a partida do filho, ao invés da do pai, mesmo porque dessa vez imaginava-se o pior e se pretendia poupar o soberano dos desacatos sofridos por Luís xvi, feito prisioneiro pela Assembléia Constitucional , antes de se tornar joguete e ator principal do derradeiro ato da Revolução. Mas o desfecho de nossa história todos sabemos: quem fica no Brasil é o príncipe, que tinha lá seus arrou-bos e veleidades. E como bem diz Oliveira Lima: "É natural que o filho chegado à maioridade se emancipe e sucede entre as nações como entre os indivíduos".40 De-monst ra o mesmo autor que d. Pedro, com suas crises de tenacidade e em função de sua juventude, era presa fácil na mão das elites locais, que, agora, temerosas com os andamentos da revolução na metrópole, buscavam afastar o perigo da perda das vantagens adquiridas durante a permanência de d. João no Brasil.

O príncipe, porém, fez mais e tomou a cena. Ao partir, d. João vi deixava para trás o filho primogênito na condição de seu regente e lugar-tenente, e dispondo de todas as faculdades reais, o que implicava autonomia na guerra, na administração da Justiça e da Fazenda. E o fantoche, como bem mostrou a história, negaria a pon-ta de figurante e demandaria o papel principal. Data dessa época, inclusive, o namo-ro de d. Pedro com o poder e seus primeiros acenos em direção aos políticos bra-sileiros, que jogavam todas as suas cartas na idéia da permanência do herdeiro. E

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não foram poucas as atitudes do príncipe tentando mostrar que no Brasil havia governo. Logo depois da partida, a primeira proclamação, ao que tudo indica redi-gida pelo conde dos Arcos, sinalizava uma série de reformas. D. Pedro cuidaria da educação pública, da agricultura, do comércio, exigiria o respeito austero das leis e a vigilância constante. Como se vê, as generalidades eram maiores do que as medi-das práticas, mas o efeito era evidente e com ele ganhava corpo a figura do regente.

O momento, porém, era de espera, e até então boa parte das elites locais ape-nas avaliava o cenário metropolitano. Pouco se falava em independência, mesmo porque nem ao menos se tinha idéia das repercussões do que começava a ocorrer em Portugal. E, por sinal, a política corria solta por lá. Com as novas medidas tomavam forma mais definida algumas pretensões das Cortes, que implicavam a idéia de um só reino com duas seções — européia e americana —, e não dois rei-nos com um só monarca.

Assim, ia ficando claro como a revolução "liberal" portuguesa, no que se refe-re ao Brasil, pretendia de fato a recolonização, disfarçada ou até mesmo franca. Entrementes, a revolução continuava seu rumo, e agora pedia o envio da represen-tação brasileira. E a primeira reação foi das melhores. Não apenas o Rio de Janeiro e a Bahia, a nova e a velha capital do vice-reinado e do Reino Unido, se pronuncia-ram a favor do constitucionalismo: até o Pará se entusiasmou pela revolução, o que dá uma mostra de como, no Brasil, o movimento a princípio foi absorvido como a implementação de um regime liberal que lutava pela vitória das idéias democrá-ticas lançadas pela França. Com efeito, até então não se podia, de fora, adivinhar o intuito recolonizador, e não ficavam claras as pretensões: se as elites lusitanas mos-travam ter aderido ao constitucionalismo, o constitucionalismo brasileiro deveria se subordinar ao português.

Mas nada disso era límpido e certo nos momentos inaugurais, o que explica a reação positiva da colônia, que logo passou a selecionar seus deputados. Afinal, representantes de todo o mundo português seriam chamados a se reunir com o propósito de redigir e aprovar uma nova Constituição. As instruções das Cortes de 22 de novembro de 1821 eram claras ao indicar que todos os cidadãos eram convidados a tomar parte e considerados elegíveis, à exceção dos conselheiros de Estado e dos empregados da Corte Real. Determinou-se também a representação de um deputado para 30 mil habitantes e o direito de o Brasil e as demais posses-sões ultramarinas participarem. No caso brasileiro, previu-se ainda a criação de juntas governativas leais à revolução nas várias capitanias, que então passariam a se chamar províncias.41 A base da representação brasileira foi fixada nos mesmos termos e o cálculo da população foi formulado tendo por base o ano da chegada da corte ao Rio de Janeiro, o que levava a um número de 2 3 2 3 3 8 6 habitantes e, portanto, a 65 deputados (apesar de só 46 terem comparecido às sessões), para cem de Portugal metropolitano, nove pelos dois círculos das ilhas adjacentes (Madeira e Açores) e sete pelas possessões africanas e asiáticas (Cabo Verde, Bis-sau e Cacheu; Angola e Benguela; São Tomé e Príncipe; Moçambique; Goa; Macau, Timor e Solor).42

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A deputação de Pernambuco foi a primeira a chegar a Lisboa, logo a 29 de agosto de 1821. E nomes conhecidos a compunham, como Muniz Tavares e Araú-jo Lima. Também os deputados fluminenses se destacaram, e entre eles o futuro marquês de Paranaguá. Da Bahia foram enviadas personalidades como Cipriano Barata e Francisco Agostinho Gomes. Mas foi a deputação de São Paulo a que se mostrou mais preparada para o que se iria enfrentar: Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva (talvez o mais talentoso dos irmãos de José Bonifácio),43

Diogo Feijó, Fernando Pinheiro (visconde de São Leopoldo), Nicolau de Campos Vergueiro e Paula Sousa.44 O grupo paulista era o único que levava instruções, nas quais se reconhecia a pena de José Bonifácio45 e seus temas prediletos: a abolição da instituição servil e a catequese dos indígenas. No documento havia ainda ques-tões pormenorizadas que legislavam sobre a sede da monarquia (que deveria ser alternada), o número de deputados dos dois reinos (que seria igualado) e o reino do Brasil.

No entanto, pouca serventia teve todo esse manual, uma vez que mal chegara a Portugal a deputação brasileira deparou-se com a falta de consenso. As Cortes já haviam começado a se reunir desde janeiro de 1821, meses antes do desembarque dos deputados eleitos, e as primeiras medidas pretendiam subordinar os governos locais a Lisboa, bem como revogar os tratados comerciais dos tempos de d. João. A desunião entre Portugal e Brasil tornava-se evidente toda vez que se tocava em qualquer assunto, e a intransigência das Cortes só fazia acirrar a resistência brasi-leira. Para aqueles que viajaram a Portugal com a esperança de lá encontrar um debate sobre princípios da igualdade, a realidade mostrava-se oposta, pois, para mui-tos, o Brasil não passava de "uma terra de macacos, de bananas e de negrinhos apa-nhados nas costas da África".46

Deste lado do Atlântico a situação também não se mostrava definida. As elites políticas se dividiam entre os grupos conservadores, vinculados a Bonifácio, e os mais radicais, que giravam em torno de Joaquim Gonçalves Ledo; até mesmo o príncipe oscilava entre dar ouvidos às queixas locais ou mostrar sinais de fidelida-de a seu pai. Mas, firme em suas promessas, d. Pedro continuava a escrever cartas de lealdade a d. João — prontamente apresentadas às Cortes — e preocupava-se sobremaneira com a situação financeira com que tivera de arcar. As dificuldades diziam respeito às circunstâncias em que se operou a retirada da Família Real e eram agravadas pelo praticamente, se não declaradamente, falido Banco do Brasil, que, como diz Oliveira Lima, "nascera torto". Medidas eram, portanto, necessárias, a fim de evitar ruína maior, e, apoiado em seu grande ministro, o conde dos Arcos, o regente busca consertar a situação da maneira que lhes era possível. Começaram diminuindo as despesas, sobretudo as que eram feitas com a representação da Casa Real. A roupa dos soberanos passou a ser lavada por escravos, cortaram-se os gas-tos excessivos com a cavalariça, pouparam-se aluguéis dos ministérios... Sugeriu-se até que d. Pedro fosse viver em São Cristóvão, para que o Paço da Cidade abrigasse várias repartições até então instaladas em casas arrendadas.47

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11. Cipriano Barata, um dos deputados da Bahia. Afonso de

Escragnolle Taunay, FBN

12. Joaquim Gonçalves Ledo, líder radical do Império. Afonso

de Escragnolle Taunay, FBN

13. José Bonifácio, um dos políticos mais influentes do Império. Afonso de Escragnolle Taunay, FBN

14. Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, um dos representantes paulistas. Afonso

de Escragnolle Taunay, FBN

15. Diogo Antônio Feijó, membro da deputação enviada por São Paulo.

F. R. Moreau, FBN

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Mas nem tudo era contenção. Enquanto, de um lado, saneavam-se as finanças, de outro d. Pedro — convertido em bola da vez — deixava-se adular e dava sinais de estar gostando da política e da glória que dela advinha. Em 24 de agosto de 1821, por exemplo, data do primeiro aniversário da revolução constitucional, orga-nizou-se um suntuoso baile em homenagem ao regente e à princesa Leopoldina. Pelas descrições que sobraram, essa parece ter sido a mais pomposa função social até então realizada no Rio de Janeiro. O cenário selecionado foi o Teatro de São João, onde, bem no palco, serviu-se a ceia, em mesas de cem talheres e com o luxo pró-prio dos monarcas, que sabem inscrever seu poder em cerimônias selecionadas. Por sinal, o teatro havia bom tempo convertera-se no local em que se comemoravam os principais acontecimentos políticos da época. Também por isso, era menciona-do com certa freqüência nos relatos que fazia o filho ao pai, cada vez mais divi-dido entre a lealdade e a ruptura com Portugal: "Fui às oito horas ao teatro, onde houve os versos mais respeitosos possível a V. M. e a mim [...]". Mas d. Pedro fazia mais; preocupado em enternecer o coração do rei, assim concluía a mesma missi-va: "A menina todos os dias fala no avô, já anda solta; o menino já sustenta a cabe-ça e está maior e mais forte do que a menina quando era desta idade".18

D. Pedro, cuja fama já é bastante conhecida, para além das cartas eminente-mente políticas, por vezes se permitia falar de intimidades e de suas "escorregadas" na própria casa:

Meu pai e meu Senhor [... ] Dou parte a V. M. que o José de Sá criado particular da princesa fez a maroteira de querer desacreditar a Carlota, criada de minha filha, dizen-do à Princesa que eu... [reticências no documento], mas a Princesa que a estima, e com razão, mo veio contar, e eu indaguei bem perguntando-lhe e ele, que me contestou ter dito à Princesa, e que o Alexandre é que tinha dito que eu não faria mal se me servis-se dela [...].49

Como se vê, apesar de ocupado com tantos decretos saneadores da economia, d. Pedro não estava imune a outras febres. E entre elas estava a verdadeira mania nacionalista que começava a tomar conta de boa parte dos deputados e já chegava ao Brasil. Toda essa mudança de atitudes era insuflada pelas Cortes, as quais já em 13 de julho de 1821 criavam as Juntas Provisórias e assim cancelavam atos de d. João, que encarregara o príncipe real do "governo geral e inteira administração de todo o Reino do Brasil".

Por sinal, entre finais de setembro e outubro de 1821, uma série de medidas expedidas pelas Cortes desenhavam seus reais intentos: decidiu-se pela transferên-cia para Lisboa das principais repartições instaladas no Brasil, novos contingentes de tropas foram destacados para o Rio de Janeiro e, acima de tudo, determinou-se o imediato retorno do príncipe regente. E é nesse contexto, mais exatamente em 9 de dezembro, que chegam, por intermédio do brigue Infante D. Sebastião, os decretos 124 e 125, ordenando a volta imediata de d. Pedro. O príncipe, sentindo-se um pou-co acuado, respondia que ia dar cumprimento às disposições e que "não queria

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influir mais nada no Brasil".50 Mas os decretos haviam de chocar muita gente e d. Pedro não permaneceria por longo tempo firme em sua palavra.

Em 9 de dezembro de 1821 as Cortes dividiam o Brasil em províncias de Por-tugal — simples províncias ultramarinas —, desaparecendo o Rio de Janeiro como centro da unidade brasileira, o que tornava desnecessária a presença do príncipe real na colônia. O golpe foi logo sentido, tanto que, em 14 de dezembro de 1821, assim escreveu d. Pedro a seu pai: "Um choque mui grande nos brasileiros e em muitos europeus aqui estabelecidos, a ponto de dizerem pelas ruas: se a constitui-ção é fazerem-nos mal leve ao diabo tal coisa; havemos fazer um termo para o prín-cipe não sair sob pena de ficar responsável pela perda do Brasil para Portugal". Lo-go a seguir o príncipe assegurava que obedeceria de forma cega aos pedidos, mas, ao mesmo tempo, dizia-se "sensível sobremaneira" se fosse "obrigado pelo povo a não dar o exato cumprimento a tão soberanas medidas".51 E as pressões surgiam de todos os lados, como que colocando em d. Pedro a responsabilidade do desenlace: se partisse, o Brasil se declararia independente; se ficasse, continuaria unido, po-rém não mais acatando as ordens das Cortes. A decisão era difícil, sobretudo por-que, como reza sua última carta do ano de 1821, "a opinião que dantes não era geral, hoje é e está mui arraigada". Estamos para começar o ano de 1822 e, como diz Oliveira Martins, "toda comédia tem um desenlace".

E O PRÍNCIPE FICA

O ano de 1822 iniciou-se com mais dúvidas do que certezas. O príncipe per-maneceria no país ou responderia à intimação de Portugal? Sucumbiria às ordens das Cortes e reconduziria o Brasil à antiga condição ou seria o maestro de uma nova ordem política? Iria manter-se fiel ao pai ou aos reclamos locais? Não à toa o "partido brasileiro" concentrava esforços com o intuito de lograr a permanên-cia de d. Pedro no Brasil. E não só ele: radicais rondavam-no como se circunda a presa, jornais eram criados e desapareciam, como se visassem apenas à opinião do regente.

Unanimidades não existiam, mas aos poucos seriam alcançadas, ao mesmo tempo que as Cortes se concentravam em humilhar d. Pedro e os representantes brasileiros. Porém, assim como as notícias de Lisboa chegavam ao Brasil com quase dois meses de atraso, também tardava a atitude do príncipe: enquanto alguns viam nele a única saída possível, outros desconfiavam de sua atuação e da do conde dos Arcos, reconhecendo nos atos de ambos demonstrações de simpatia ao absolutis-mo. Era a irresolução dos Bragança que parecia manifestar-se também em d. Pedro, que era constantemente incentivado pela mulher: "Ele está melhor disposto para os brasileiros do que pensava, mas é necessário que algumas pessoas o influam mais, pois não está tão positivamente decidido quanto eu desejaria".52 As cartas e bilhetes íntimos de Leopoldina53 são provas testemunhais de que a imperatriz ado-tou — até antes do príncipe — a causa da nossa liberdade política.

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A princesa repetiria as mesmas palavras em 8 de janeiro, véspera do famoso dia do Fico, convertendo-se em uma das grandes influências favoráveis à emanci-pação brasileira e à desobediência do regente para com as Cortes. E o primeiro ato surgia simbólico, como são todos os atos que nascem para serem guardados pela história. Foi na rua da Ajuda, na casa de José Joaquim da Rocha, que se organizou o movimento pela permanência de d. Pedro. No próprio dia 9 de dezembro, quando chegaram os decretos portugueses pedindo o retorno, criou-se o "Clube da Resis-tência", líder da agitação que tomou conta da cidade naquele final de ano. Mas foi Gonçalves Ledo quem orientou o então presidente da Câmara, José Clemente Pe-reira, para que indagasse d. Pedro acerca de uma solicitação formal a fim de que continuasse no Brasil. Ao mesmo tempo, logo no primeiro dia do ano de 1822, o monarca lia carta endereçada por José Bonifácio, solicitando que permanecesse e "não se tornasse escravo de um pequeno número de desorganizados".

Foi no dia 9 de janeiro, ao meio-dia, que d. Pedro recebeu no Paço — numa audiência do Senado da Câmara — um requerimento tomado por mais de 8 mil assinaturas, que o instavam a ficar no Brasil. Não se podem reproduzir com certe-za as emoções ou o que se disse nesse exato momento. Mais conhecida é a fala do presidente do Senado da Câmara, que tinha como fito impedir a partida do prín-cipe, até que novas determinações das Cortes fossem estabelecidas. O objetivo era ainda maior: garantir a presença do herdeiro na colônia e assim suspender a maré recolonizadora que se instaurara na metrópole.

D. Pedro, por sua vez, não se fez de rogado e, na seqüência, garantiu sua per-manência. No entanto, até hoje paira uma suspeita acerca das famosas palavras proferidas pelo príncipe — o tão famoso Fico. O auto dessa sessão única apresen-ta, na verdade, uma declaração complementar que aparece em dois editais sucessi-vos do Senado. De acordo com o auto, e o primeiro edital do próprio dia 9, a res-posta do príncipe teria sido a seguinte:

Convencido de que a presença da minha pessoa no Brasil interessa ao bem de toda a nação portuguesa, e conhecido que a vontade de algumas províncias assim o requer, demorei a minha saída até que as Cortes e meu Augusto Pai e Senhor deliberem a este respeito, com perfeito conhecimento das circunstâncias que têm ocorrido.

O mesmo auto diz porém no post scriptum que os termos não teriam sido exa-tamente esses, devendo ser substituídos pelos seguintes: "Como é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto; diga ao povo que fico". Dito ou não dito, o fato é que em continuidade o regente teria se achegado às varandas do Paço e declarado: "Agora só tenho a recomendar-vos união e tranqüilidade". Fato curio-so, esse: justamente a segunda parte da resposta de d. Pedro — a mais famosa — não consta do edital do dia 10, onde se lê que teriam sido publicados na véspera pronunciamentos "com notável alteração de palavra", motivada pela "alegria que se apoderou de todos os que estavam no salão de audiências [...].54

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Política muitas vezes se faz na lógica do "diz-que-diz", e nesse caso a memória selecionou um pronunciamento mais impactante, à altura da ocasião. Além disso, diante da expectativa geral, o primeiro discurso deve ter sido considerado um tanto morno, quase um paliativo rápido para um mal maior que estava por vir; enquan-to o segundo — aquele que permaneceu na história — é conciso, lapidar. De toda maneira, fiquemos com a segunda frase, e deixemos as Cortes portuguesas serem informadas da decisão por ofício de 16 de fevereiro, quando o Senado da Câmara insistia na necessidade da permanência de d. Pedro e declarava que o Brasil queria "ser tratado como irmão, não como filho; soberano com Portugal e nunca súdito; independente como ele e nada menos".

Apesar das palavras contundentes, nunca é demais repetir que boa parte das elites locais ainda insistia em manter-se unida a Portugal, guardando-se apenas as franquias já alcançadas. Essa posição advogada pelo ministério conservador, que então se montava e que tinha José Bonifácio em sua chefia, contava com a oposi-ção dos grupos mais radicais, que ousavam imaginar um modelo diferente de re-presentação, quiçá até republicano. Mas, a despeito das tensões entre os grupos na-cionais, um processo mais estrutural e profundo ia se afirmando e a história não voltava atrás: conquistas desse tipo vinham para ficar. É por isso que a contenda foi sendo decidida em duplo sentido — de dentro para fora, mas também de fora para dentro —; com a intransigência das Cortes de um lado e, de outro, a consciência interna, por vezes quase culpada, de que a independência era o único caminho que sobrava. O tempo é curto até o famoso 7 de setembro às margens do Ipiranga, mas a agenda é lotada de pequenos incidentes e provocações de parte a parte. Se não se pode falar de tudo, a saída é descrever tensões e impasses. O fato é que os atos do príncipe regente posteriores ao Fico sinalizavam ruptura, e uma nova direção to-mava formato definido.

NO CAMINHO DA EMANCIPAÇÃO

Pode-se dizer que, se não fosse por conta da política das Cortes, com mais difi-culdade se criaria, no Brasil, um sentimento nacional. A Bahia ainda não perdoara ao Rio de Janeiro a mudança da sede do vice-reinado. Além do mais, enquanto as províncias do Norte continuavam preferindo uma capital mais próxima, não falta-vam no Sul aqueles que desejavam removê-la para São Paulo. No entanto, mesmo a mais estabelecida divisão interna tende a ceder diante de um inimigo externo, sobretudo contando com um príncipe jovem à testa do movimento. D. Pedro, cada vez mais imbuído do seu papel, alegara que estava "cansado de desaforos",55 e o sen-tido da independência, muitas vezes por contraposição, começava a se delinear.

Os atos após o Fico revelaram a ruptura eminente e crescente amadurecimen-to interno. É assim que se entende a formação de um exército brasileiro, após as tropas portuguesas negarem-se a jurar fidelidade a d. Pedro, ou mesmo a forma-ção de um novo ministério, cada vez mais conservador. Entre os muitos decretos

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destaca-se a proibição do desembarque da expedição de Francisco Maximiliano e Sousa, que, chegada ao Rio em 9 de março, pretendia transportar o príncipe real de volta para Lisboa, com uma esquadra semelhante à que levara o rei d. João.

Entrementes as Cortes recebiam notícias, desencontradas ainda, que davam conta da atitude do príncipe, e pela primeira vez a resposta foi de conciliação: era de bom-tom apertar a corda mas não deixá-la arrebentar. Além do mais, sabiam os políticos portugueses que, se o Brasil passasse a rejeitar as medidas das Cortes, era melhor chegarem logo aos termos do desquite, pois a vida em comum seria insu-portável. E o panorama não parecia dos melhores: Bonifácio e seus colegas de gabi-nete chegaram a ser chamados de "depravados e ladrões", tamanha a reação à ati-tude do príncipe e ao papel de seus principais assessores.

E, conforme temiam as Cortes, a evolução foi rápida, na mesma proporção em que aqui se tinha cada vez mais certeza dos reais intentos da Revolução do Porto, ao menos no que se referia ao território americano. No Brasil, comentava-se a si-tuação das demais colônias espanholas emancipadas desde 1810, ou em via de, e evidenciava-se a ruptura do antigo vínculo com a metrópole. No Sul, já formava, em fevereiro de 1822, um só bloco político, estando Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, São Pedro do Sul e até Minas Gerais em concordância com relação à idéia de autonomia e também à da eleição do príncipe como figura central nesse processo. Ganhava pontos a corrente conservadora que afirmava que só em torno da figura de um rei é que se evitariam separatismos (de modo que não aconteces-se o que já se desenrolara nas colônias espanholas) ou até mesmo revoluções mais liberais e populares, que colocariam em questão as rígidas estruturas existentes — a escravidão e a economia agrária, monocultora e exportadora. Impunha-se, por-tanto, a independência, muito embora fosse uma independência conservadora, de partes desligadas: teoricamente unidas para a emancipação, as províncias conti-nuavam divididas por seus interesses e tensões particulares. Nada que uma aliança temporária não abafasse.

Por outro lado, em Portugal, nas sessões das Cortes, o debate não era menos acalorado, sendo os deputados brasileiros sujeitos a um quase-bloqueio. Afinal, o cerne da contenda, naquele momento, estava vinculado à disposição portuguesa de anular as conquistas de 1808, quando d. João estabeleceu, por meio de uma sé-rie de medidas, a abertura do comércio em sua colônia americana. Conforme dizia um deputado em carta ao Correio do Rio de Janeiro, ninguém mais aturava o clima reinante:

A rivalidade já passa a ódio, não só entre os deputados de Portugal e Brasil, como entre o povo; as folhas já principiam a achincanar-lhos, é visível a aversão que nos têm os bre-jeiros; em uma palavra a união do Brasil com Portugal é para mim um prodígio.56

Nesse ínterim Antônio Carlos de Andrada e Silva, o mais hostilizado e vaiado dos deputados brasileiros, alegando poucas condições de exercer seu mandato, de-clarou não se considerar mais deputado. Poucos dias depois, outros quatro repre-

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sentantes do Sul do Brasil declarariam a mesma intenção. A corda esticava-se de-mais, e aí estava um "presente" que os representantes brasileiros não pareciam dis-postos a ofertar.

Se a política das Cortes visava humilhar, seu intento ia sendo alcançado com sucesso. O passo seguinte foi tentar privar o Brasil de sua fronteira ao Sul, conquis-tada ainda nos tempos de d. João. Chegou-se inclusive a pensar em trocar a Banda Oriental pela cidade de Olivença, nas mãos da Espanha desde 1801. No entanto, esse tema não foi motivo de desassossego: a moção foi batida na sessão de 2 de maio de 1824, não só por conta do voto dos brasileiros como também do de portugue-ses que não queriam contrariar tal conquista do rei de Portugal ou a posição de d. Pedro, que já havia se manifestado oficialmente contra a retirada.

O príncipe por certo não agia só: insuflado pelas elites, temerosas com o retro-cesso, deixava-se adular pela maçonaria. A participação maçônica no Fico já fora notável, mas seria ainda mais fundamental por ocasião do 13 de maio de 1822, o aniversário de d. João, data em que d. Pedro recebeu a investidura de "defensor per-pétuo do Brasil". Não por coincidência a loja do Grande Oriente Brasileiro, que esteve por trás de tudo, tinha como grão-mestre José Bonifácio de Andrada e Silva. Havia, porém, na mesma loja antagonistas dos Andrada que, também por meio da adulação, buscavam atrair o príncipe para perto. Várias figuras eminentes da ma-çonaria discordavam da política do então ministro da regência, que não escondia suas posições políticas mais conservadoras, advogando, a princípio, a maior auto-nomia do país, mas não sua separação radical.57

E as posições dividiam-se entre os mais conservadores — defensores de uma monarquia constitucional, com pequena representação —, e os mais extremados — que associavam a independência à idéia de república e voto popular. Um exem-plo desse racha pode ser percebido na discussão sobre a conveniência de eleger uma Assembléia Constituinte no Brasil e acerca de como se procederia à eleição, que ocorreria na primeira metade de 1822. José Bonifácio e seu grupo eram contrários à convocação, enquanto Gonçalves Ledo,58 Muniz Barreto,59 José Clemente Perei-ra60 e Martim Francisco61 eram a favor. Chegaram inclusive a organizar uma nova petição — mais conhecida como "Representação do povo do Rio de Janeiro" —, dirigida ao príncipe em maio de 1822, reunindo mais de 6 mil assinaturas e exigin-do a convocação de uma "Assembléia Geral Representativa".62

O processo se acirrava e o próprio d. Pedro, por conta da constante pressão das lojas maçônicas, que atuavam como verdadeiros clubes políticos,63 é obrigado a se posicionar a respeito e convoca, em 3 de junho de 1822, uma Assembléia Cons-tituinte. Toda a situação política andava complicada, pois, enquanto vozes brasilei-ras eram abafadas nas Cortes de Lisboa, continuávamos por aqui sem representa-ção, sem administração legítima e sem freio para a temida recolonização. O terreno era favorável para a reviravolta, e líderes como Gonçalves Ledo e Januário da Cunha Barbosa inflamavam a população da corte brasileira, enquanto os jornais tratavam de veicular o impasse da situação. Se Ledo defendia a eleição direta, já seus oposi-tores, tendo por base a diversidade existente no país, advogavam um escrutínio

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de Andrada Machado e Silva, irmão de José Bonifácio e político influente. Afonso de Escragnolle Taunay, FBN

16. José Clemente, um dos políticos

favoráveis à convocação de uma Assembléia Constituinte. Afonso de Escragnolle Taunay, FBN

18. José Bonifácio deAndrada e Silva, político emblemático

da independência. L. A. Boulanger, FBN

indireto. Quanto à imprensa brasileira, esta seria sua primeira grande ação: uma verdadeira campanha contra as medidas das Cortes. A movimentação uniria ten-dências distintas — jornais c o m o Revérbero, Malagueta, Despertador Fluminense, O Regulador, O Tamoyo, A Gazeta do Rio de Janeiro, Correio Braziliense... — e seria part icularmente intensa a partir desse momento , consti tuindo-se n u m a retaguar-da dos deputados brasileiros que defendiam em Portugal a autonomia do Brasil.64

Em suma, em quase todo o império a tensão era indiscutível, e é nesse ambien-te que em 3 de junho sai o decreto de convocação da Constituinte brasileira. O refe-rendo era de José Bonifácio e a lavra de Ledo, mas a palavra de ordem era "indepen-dência moderada pela união nacional", fórmula já presente na proclamação de d. Pedro do dia anterior. São estabelecidos critérios e instruções para a eleição de deputados, o que resultaria no seguinte desenho: Minas Gerais teria vinte represen-tantes; Mato Grosso, Santa Catarina, Rio Grande do Norte, Piauí e Rio de Janeiro contariam com um cada; São Paulo teria nove; e Bahia e Pernambuco, treze.65

No entanto, se de dentro surgiam novos clamores, a provocação maior conti-nuava vindo de fora. Não fosse isso e não se entenderia mais um gesto guardado e acalentado pela m e m ó r i a histórica oficial. Se o Fico foi o primeiro ato, o segundo foi sem dúvida o "Cumpra-se" , de 4 maio de 1822, quando o beneplácito do exe-

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cutivo central brasileiro se tornou indispensável à validade das leis, ordens e reso-luções que não paravam de chegar do governo de Portugal. De novo a reação sur-gia como ação, uma vez que já havia muito tempo cada navio proveniente da me-trópole só trazia notícias desagradáveis: a formação de novas forças, a criação de um conselho de procuradores para estender a autoridade sobre o Brasil, ou mesmo a objeção ao título de "defensor" que d. Pedro recebera e que implicava, no limite, que, enquanto d. João vivesse, o príncipe regente residiria na colônia. Negando ao Brasil o direito de ser um reino não só unido como uno, procurando surrupiar-lhe a integridade, as Cortes acabaram por incentivar uma saída mais radical, gestada e acalentada, ao mesmo tempo, dentro da própria colônia.

Data dessa época também a entrada de d. Pedro na maçonaria, o que corres-pondia a um desejo do próprio regente. Recebido com o nome de "Guatimozim" — o iniciado nos mistérios —, d. Pedro logo seria elevado a grão-mestre na loja do Grande Oriente, pelos mesmos desafetos de Bonifácio que haviam conduzido o príncipe a ela. Porém, querendo manter o controle, Bonifácio funda outra loja — o "Apostolado da Nobre Ordem dos Cavaleiros de Santa Cruz" — e em 2 de junho, logo às vésperas da convocação da Constituinte, realiza a primeira sessão. D. Pedro foi eleito arconte e Bonifácio, um dos cônsules; ambos receberam pseudônimos especiais, conforme a regra dessa sociedade: o ministro do Reino era "Teberiçá" e o príncipe, "Rômulo", que, na grafia desleixada de d. Pedro, virou "Remolo".66 Mas sua ascensão não parou aí; Rômulo tomaria posse como arconte-rei na sessão do dia 22 do mesmo mês, numa subida hierárquica que combinava bem com a ascen-são política experimentada pelo príncipe. A própria maçonaria parecia incitar a imaginação do jovem d. Pedro, que em meio a segredos e juramentos encobertos vinculava-se cada vez mais aos temas brasileiros e aproximava-se dos setores con-servadores. Por outro lado, voluntarioso como era, fortalecia-se contra as Cortes, que, de longe, desconheciam seu poder de mando e o provocavam chamando-o de "o rapazinho" ou de "desgraçado e miserável rapaz".

O divórcio estava perto e tudo contribuía para tal: tanto o processo de ama-durecimento interno como a reação externa. O manifesto de ls de agosto, redigido por Gonçalves Ledo, mas atribuído a d. Pedro, anunciava a separação:

Brasileiros. Está acabado o tempo de fenganar os homens [... ] Então as províncias meridionais do Brasil, coligando-se entre si e tomando a atitude majestosa de um povo que reconhece entre os seus direitos os da liberdade e da própria felicidade [,] lançaram os olhos sobre mim, o Filho do seu Rei, e seu amigo [...].67

Por meio da pena de Ledo, D. Pedro continuava narrando a história que co-nhecemos, sempre mostrando como em seu atos existia, tão-somente, uma "reação à vilania dos portugueses". O final do documento pedia a união e condenava o que chamaria de bairrismo: tudo em nome desse novo patriotismo que nascia como contraposição e saída de mão única: "[...] não se ouça, pois, entre vós outro grito que não seja — UNIÃO — . Do Amazonas ao Prata, não retumbe outro eco que não se ja — INDEPENDÊNCIA"

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Nesse momento, entretanto, a facção liberal de Gonçalves Ledo já havia per-dido a liderança, tendo sofrido sua maior derrota em 19 de junho, quando não conseguiu impor a tese das eleições diretas para a Constituinte. Por isso, a indepen-dência que se aproximava seria decorrência das tensões crescentes com as Cortes, mas simbolizava a vitória do grupo liderado por Bonifácio — conservador, monar-quista e só paladinamente constitucionalista — e do "partido brasileiro". O grupo do Apostolado, composto por proprietários rurais e comerciantes exportadores, passou a controlar a máquina de Estado, constituindo-se em agentes diletos desse processo que levava à revitalização dos estamentos senhoriais e dos modelos mais conservadores de gerir a política.68 É obra de José Bonifácio o manifesto de 6 de agosto, quando prevaleceu a saída monárquica. "Perdido o Brasil, está perdida a monarquia",69 assim rezava o manuscrito, incitando a que se conservasse ao menos essa parte distante do reino.

O ambiente, porém, estava mais para conflito do que para contemporização. Ainda nesse mês o príncipe regente decretou que as tropas oriundas da metrópole seriam consideradas inimigas, além de recomendar aos governos provinciais que não dessem posse a empregados procedentes de Portugal. Estamos próximos, mui-to próximos, das cartas de d. Pedro a d. João vi, a última datada de 22 de setembro de 1822, na qual sanciona a Independência como uma desobediência às Cortes e não ao rei, seu pai, a quem jurara fidelidade filial.

No entanto, antes disso o embate político ia se evidenciando. Voltavam-se os olhos de Portugal para o Brasil e a derradeira batalha seria travada em torno do príncipe: o grupo moderado querendo conservá-lo fiel aos princípios liberais di-násticos, e a facção mais avançada tentando animá-lo e aproximá-lo dos modelos republicanos. Na verdade, já nos manifestos de agosto ficava claro que os projetos de autonomia eram uma realidade. O marco simbólico é que tardava.

OUVIRAM DO IPIRANGA

Faltava só o ato final, e ele se daria em São Paulo, como jamais poderiam sonhar até mesmo os Andrada, constantemente acusados de praticar um bairrismo paulista. Como bem mostra Otávio Tarquínio, todo homem político tem seu dia de comediante, e d. Pedro não escaparia da sina. Depois de ter contornado proble-mas no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, o regente partiu em 14 de agosto de 1822 para São Paulo, acompanhado de pequena comitiva: Luís de Saldanha da Gama — depois marquês de Taubaté —, veador da princesa e que servia ao príncipe como secretário político; o gentil-homem da câmara Francisco de Castro Canto e Melo, irmão daquela que seria a marquesa de Santos — a favorita do príncipe; o malfa-lado Chalaça — o ajudante Francisco Gomes da Silva, secretário, recadista e alco-viteiro de d. Pedro; João Carlota e João Carvalho.70 Mais à frente juntaram-se ao séquito o tenente-coronel Joaquim Aranha Barreto de Camargo, que o príncipe fez em caminho governador de Santos, e o padre Belquior Pinheiro de Oliveira, con-

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fidente e mentor de d. Pedro. Enquanto isso, a princesa Leopoldina ficava empos-sada da regência e presidia o conselho de ministros. Cabia também a ela dar au-diências públicas em lugar do esposo, e para tanto tinha a seu lado José Bonifácio, a cabeça do gabinete.

O diminuto grupo fazia a viagem pausadamente, vencendo em dez dias cerca de 630 quilômetros de distância entre o Rio de Janeiro e São Paulo, passando a noite em fazendas em Areias, Lorena, Taubaté, Águas Brancas, recebendo homena-gens e ouvindo críticas aos adversários dos Andrada. A certa altura do trajeto, ao pequeno grupo se juntou a chamada guarda de honra; uma guarda de capacete de dragões e botas à 1'écuyère, de escudeiro. Outras pessoas engrossaram a comitiva até a entrada em São Paulo, no dia 25 de agosto: cidade pequena, quase aldeia, de ruas pouco extensas, estreitas e tortuosas, onde vivia uma população que, segundo o último alistamento censitário de 1822, não passava de 6920 almas, mas que naque-le contexto ganhou um contorno especial em meio aos festejos que respondiam à chegada de tão distinta comitiva. O príncipe partiu de lá no final de agosto com destino a Santos, de onde só retornaria na famosa manhã de 7 de setembro. Seu objetivo em São Paulo era apaziguar os ânimos depois da sublevação que ficou conhecida como a "Bernarda", liderada por Francisco Inácio.71

Engana-se assim aquele que, apressadamente e em busca de páginas mais aventurosas, pensar que a missão de d. Pedro fosse amorosa. A viagem tinha objetivos políticos explícitos e visava sanear discórdias, mas nada impedia que o monarca atentasse contra o sexto mandamento, que pouco desfazia da seriedade da empreitada. Comenta-se muito certo episódio em Santos, quando o imperador tentou comprar uma escrava cuja beleza lhe saltou aos olhos, mas o caso mais conhecido estava por acontecer e envolveria o encontro com d. Domitila de Castro Canto e Melo, filha do coronel João de Castro Canto e Melo e de d. Es-colástica de Oliveira Toledo Ribas.72 Quase um ano mais velha que o príncipe, era moça madura, e, segundo seus biógrafos, dona de todas as graças femininas. Amargava as conseqüências de um casamento frustrado e o que considerava ser "estreitezas de seu meio provinciano". Se é certo que não era mulher para cuidar de filhos de um consorte a quem considerava inferior, também não façamos de tudo um jogo com resultado viciado, uma vez que Domitila jamais imaginaria ocupar o papel que lhe coube na viagem do regente a São Paulo. Ao contrário, andava um pouco atrapalhada com as muitas dificuldades que seu marido lhe impunha: acusada de adultério, tinha a guarda de seus três filhos reclamada. Não se sabe se tinha ou não planos de pedir a intervenção do príncipe em seu proces-so; o certo é que o primeiro encontro foi um golpe de sorte. Voltava d. Pedro de visita a um bairro distante quando cruzou com Domitila, que vinha carregada em uma cadeirinha por dois escravos. Galante, o príncipe apeou do cavalo e saudou a desconhecida, cantando-lhe de pronto a beleza. Logo se iniciou um diálogo entre os dois, até que d. Pedro propôs suspender a cadeirinha: "Como V. A. é forte!!", teria dito a donzela; ao que o cortejador respondeu: "Nunca mais V. Exa. terá negrinhos como estes".73

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Quem conta um conto aumenta um ponto, mas, se for o caso de nos fiarmos no que diz o anedotário histórico, parece que a mulher de Felício Pinto Coelho e o marido da princesa Leopoldina encontraram-se por mero acaso. No entanto, é possível desconfiar: mesmo o regime constitucional estando teoricamente inaugu-rado, a lei vigente se concentrava na figura do príncipe. Ele bem poderia sanar de uma só vez as demandas judiciárias da paulista, pois tinha capacidade para se transformar em intermediário poderoso. Além do mais, o que fazia Francisco de Castro Canto e Melo — irmão de Domitila — na comitiva do príncipe? Se foi soli-citude fraterna, força do destino, ou premeditação, não se sabe ao certo; o que se sabe, sim, é que então se iniciava um dos capítulos amorosos mais conhecidos da história do Brasil, e que contou com a diligente cumplicidade do irmão, mas tam-bém do pai, da mãe, dos irmãos, tios e primos de Domitila, todos regiamente com-pensados com mercês, distinções e honrarias. A partir daí — e a data oscila entre 29 e 31 de agosto —, a relação se estreitou: há quem diga que a futura marquesa teria sido vista entrando disfarçada no palácio do príncipe; ou que o seguira até Santos, originando-se aí seu título.

De toda maneira, a hora de voltar aproximava-se. E o retorno se faria sem alarde, mesmo porque a guarda especial de trinta jovens já havia sido dispensada e a missão do príncipe, agora sim, era cada vez menos oficial. Por outro lado, a essas alturas a separação política estava teórica e praticamente deliberada, restando ape-nas a formalidade do anúncio, que deveria resultar de qualquer nova pressão por parte das Cortes. Afinal, a circular de José Bonifácio ao corpo diplomático, de 14 de agosto, data da partida do príncipe rumo a São Paulo, já era virtualmente uma declaração de emancipação.

Faltava, porém, o estopim, a grandiosidade do momento, a concessão do lugar principal da cena à figura do príncipe. O motivo veio fácil, com a chegada do bri-gue Três Corações ao Rio de Janeiro no dia 28 de agosto, trazendo, como sempre, más notícias de Lisboa. Tratava-se de notas diretas das Cortes, ordenando a volta imediata do príncipe, a supressão de uma série de medidas que consideravam ser privilégios brasileiros e a acusação de traição por parte dos ministros que cercavam o regente. Diante de tal atitude só havia dois caminhos possíveis: aquiescer e ver a colônia perder qualquer autonomia, ou se opor às decisões que vinham de fora e decretar, quanto antes, a independência política.

O conselho de ministros reuniu-se sob a presidência de Bonifácio, e a conclu-são viera rápido: chegara a hora e era preciso ir ao encontro do príncipe em São Paulo. A pressa era tal que José Bonifácio recomendou ao correio, Paulo Bergero, que arrebentasse quantos cavalos fossem necessários, contanto que localizasse d. Pedro. As missivas não o encontraram, contudo, em local nobre. O príncipe tinha vencido a serra de Cubatão e, montado numa besta baia gateada, envergava uma farda da polícia. Pior ainda, lá pelo dia 7 de setembro voltava num estado de saúde que, embora não apresentasse maior gravidade, era por certo desconfortável. Não se sabe se a causa foi a mudança nos hábitos alimentares ou um gole de água me-

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nos pura, mas o fato é que as funções intestinais de d. Pedro não se encontravam normalizadas e de tempos em tempos ele era obrigado a apartar-se da comitiva, alterar o ritmo da marcha e parar a fim de aliviar a dor repentina. Um dos com-panheiros de viagem, o coronel Manuel Marcondes de Oliveira Melo, em seu de-poimento, usa de um eufemismo para descrever a diarréia que afetou o príncipe, forçado a todo momento a saltar da montaria "para prover-se".74 Como se vê, o momento não era indicado para façanha tão memorável e para o desenlace de um drama que se desenrolava desde janeiro. Mas o destino nem sempre escolhe a hora certa.

Francisco de Castro Canto e Melo soubera da chegada de emissários com car-tas endereçadas a d. Pedro e apressou-se a dar-lhe a notícia, tendo o encontrado em um lugar chamado Moinhos. O major e irmão de Domitila legaria uma memó-ria sobre o 7 de setembro,75 em que a narrativa surgia aventuresca, centrando deta-lhes na figura do príncipe e no próprio narrador da história. Diante da notícia, d. Pedro, como era bem do seu caráter, alvoroçou-se e saiu em disparada em dire-ção a São Paulo. Mas ao seu encontro vinham a galope os mensageiros de José Bonifácio, que o alcançaram no meio do caminho, "no alto da colina próxima do riacho do Ipiranga".76 Foi, então, em cima dessa colina, de onde podia avistar a pacata cidade de São Paulo, mais ou menos às dezesseis horas, que recebeu a cor-respondência das mãos do major Antônio Ramos Cordeiro. As cartas eram mui-tas: atos das Cortes, missivas de José Bonifácio, de Antônio Carlos, da princesa Leopoldina (duas, uma de 28 e outra de 29 de agosto). Segundo o padre Belquior, havia ainda cartas de d. João vi e do cônsul britânico Chamberlain — todas comentando a mesma situação.

A cena que se segue é conhecida e foi retratada muitas vezes com tons mais ou menos acentuados. Arrisquemos mais uma: tendo em mão as cartas, e sabendo de seu conteúdo, d. Pedro comunicou à comitiva, cansada pela viagem, que as Cortes pretendiam "massacrar" o Brasil. Leu em voz alta os documentos que falavam de sua nova situação — um simples delegado, sem autonomia, das Cortes —, do fim de seu ministério, da anulação e da convocação de um novo Conselho. A mais vio-lenta era a carta de José Bonifácio: "[...] Venha V. A. R. quanto antes e decida-se porque as irresoluções e medidas de água morna, à vista desse contrário que não nos poupa, para nada servem, e um momento perdido é uma desgraça".77 Com as palavras de Bonifácio — "Venha quanto antes e decida-se" — chegava o boato de que d. Pedro fora deserdado em benefício de d. Miguel.

Para aquele que sempre esperara bastante, tanto foi demais e fez-se o ato. A cena é famosa e consta de qualquer manual de história do Brasil, mas tentemos reconsti-tuir sua teatralidade. Às quatro e meia da tarde, montado em sua besta, pouco dis-posto, assoberbado pelo mal-estar, fatigado pela viagem mas instado pelo momen-to, d. Pedro formalizou o que já era realidade de fato: arrancou a fita azul-clara e branca (as cores constitucionais portuguesas) que ostentava no chapéu, lançou tudo por terra, desembainhou a espada e em alto e bom som gritou o que se sabe:

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— É tempo! [...] Independência ou morte! [...] Estamos separados de Portugal [...].

No relato de Canto e Melo, o príncipe

em ato contínuo teria arrancado o laço português que trazia no chapéu e o arrojou para longe de si, desembainhando a espada, ele e os demais presentes prestaram juramento de honra que para sempre os ligavam à realização da idéia grandiosa de liberdade.78

Grandiosa, a memória do irmão de Domitila tende, anos depois, a tomar o incerto como certo, e a Independência surgia, nas margens do Ipiranga, como um fato sem volta e já popular, mesmo que seus participantes estivessem espacialmen-te isolados.

Mas existe ainda a versão do padre Belquior Pinheiro, que af i rmou ter lido as cartas para d. Pedro e que este, t remendo de raiva, lhe arrancara os papéis da mão e os pisoteara. Então, seguindo os conselhos do b o m amigo, logo se recompusera e, abotoando a farda, teria indagado ao padre: "E agora, padre Belquior?". Ao que o religioso teria respondido: "Se V. A. não se faz Rei do Brasil será prisioneiro das Cortes e talvez deserdado por elas. Não há outro caminho senão a independência e a separação". O relato dessa tes temunha segue, dando conta dos atos e palavras pronunciadas pelo príncipe: "Eles o querem, terão a sua conta. As Cortes me per-seguem, chamam-me com desprezo de rapazinho e de brasileiro [... ] pois verão agora quanto vale o rapazinho". E cont inuou, dirigindo-se aos demais: "Amigos, as Cortes querem escravizar-nos e perseguem-nos. De hoje em diante nossas rela-ções estão quebradas. N e n h u m laço nos une mais!", e repete-se a cena conhecida da retirada de laços e tudo o mais. No entanto, mais uma vez o script é um pouco diferente: "Laços fora, soldados! Viva a independência, a l iberdade e a separação do Brasil". E ainda: "Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro fazer a liberdade do Brasil".'9 O final, porém, de todas as narrativas volta à mesma divisa que a história guardou: "Liberdade ou morte" se t ransformaria , quer na ver-são pessoal de Belquior, quer na interpretação de Canto e Melo, no grande lema do momento .

Não vale a pena decidir se ficamos com a versão de Canto e Melo ou com a centralidade pretendida pelo padre Belquior. Importa reter que, ao que tudo indi-ca, o brado foi seguido pela guarda, que deu ao local ermo a solenidade que o even-to bem merecia. E, por mais que a cena — acompanhada por 38 pessoas — não tenha correspondido, a história trataria de construir sentido ao momento . Se o mote da fala de d. Pedro foi logo seguido em São Paulo e no Rio, onde manifesta-ções de júbilo em frente ao palácio retomavam a legenda de Independência ou morte, foi talvez o pintor do gênero histórico, Pedro Américo — que fora aluno da Ecole des Beaux-Arts e viajava com freqüência à Europa —, quem anos depois imortalizou o ato.

Hora de fazer uma pequena pausa e avançar no tempo. O artista, que se tor-nara professor da Academia em 1865 e, desde então, mantivera uma relação de

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grande proximidade com o monarca Pedro n, selecionou o quadro Independência ou morte, pintado em 1888, como a representação visual e "real" de nossa maturi-dade política. Para tanto, recorreu à cena histórica, mesclando ícones e objetos rituais da casa imperial portuguesa com elementos típicos da paisagem local. Ao expressar simbolicamente uma bela fusão, esses elementos evocavam uma nação ao mesmo tempo universal — em seu regime — e particular em seus elementos constitutivos, mas tinham à frente não mais o nome, e sim o grande feito.

O modelo vinha da pintura acadêmica francesa, porém não mais calcada na tradição absoluta — que destaca o rei ao centro da alegoria —, e sim na icono-grafia associada a Napoleão Bonaparte, sempre vinculado aos acontecimentos históricos que lhe eram contemporâneos.80 Idealista no conjunto e realista nos de-talhes, o quadro de Pedro Américo fala do ato de d. Pedro i, mas recupera a eman-cipação brasileira como momento heróico: ritual de iniciação de um Império que então se afirmava. [Ver caderno-cor No Brasil, ilustração 42] A obra representa o príncipe levantando sua espada, bem no alto da colina do Ipiranga: o ato oficial de rompimento entre Brasil e Portugal. Junto ao jovem regente, os cavaleiros de seu séquito, saúdam o gesto e acenam vigorosamente.81 Ao longo da estrada um caipira num carro de boi se detém, a fim de observar o ato histórico. Ele repre-senta a figura do observador, que guarda a cena em nosso lugar: seu momento memorável e idealizado. O caipira vive (real e simbolicamente) o desnível criado por Pedro Américo, que destaca d. Pedro i acima da colina, tal qual uma estátua eqüestre, na melhor tradição iconográfica. A composição repõe, por sua vez, a estrutura hierárquica do regime, em que o caipira representa o próprio povo bra-sileiro. Por fim, o ato de bravura do monarca funda a nação emancipada e uma nova ordem política e moral.

Outro aspecto merece a atenção de Pedro Américo. Tratava-se de construir um imaginário particularmente brasileiro em sua forma, e o artista incluiu atribu-tos específicos a esse universo exótico tropical, sobrepondo sentimentos patrióti-cos às qualidades particulares da paisagem paulista. "Há uma dramaticidade ence-nada nos acidentes do terreno, que associam claramente o sítio ao acontecimento histórico representado",82 fazendo da paisagem um pretexto menor diante da gran-diosidade da cena que se apresenta. Sobre o tema, disse o próprio artista:

Para satisfazer o geral desejo de ver representado o célebre riacho do Ipiranga — o qual na realidade passaria a distância de alguns metros atrás de quem observa o primeiro plano —, forcei a perspectiva pintando um simulacro de corrente aos pés dos cavalei-ros do primeiro plano. Desculpe-me o público essa quase insignificante violência à topografia, considerando a necessidade de consagrar na pintura a idéia do ribeiro cujo nome tão intimamente ligou-se ao glorioso fato da nossa emancipação política.83

Dessa maneira não só os elementos típicos da nação — a vegetação, o casebre, os nativos — são selecionados, como "força-se" a natureza com o intuito de enal-tecer o ato glorioso. Natureza e história se agregam quando se trata de fundar

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momentos inaugurais dessa nação, e Pedro Américo fixa na tela a teatralidade de uma cavalgada histórica que não ocorreu na realidade: nada como a idealização do artista para conferir realidade ao real. Sem ter que avançar tanto no tempo, é pos-sível dizer que a associação da monarquia com a América, e em especial com sua natureza e seus naturais, é antiga. Primeiro a figura do novo continente foi aliada a d. João, mas sem dispensar as personificações da Lísia, da África ou das virtudes reais. Mas essa ligação seria sobretudo intensificada com d. Pedro i e nas diferentes aclamações. Na aclamação realizada no Pará, já em 1823, na varanda estava, bem-disposta para receber o novo soberano, a América, ao lado do Brasil, do rio Ama-zonas e do Prata. Com efeito, por todo o país, a obediência e a lealdade da América surgiam como consenso a estabelecer evidente contraste com os portugueses e o passado de exploração colonial. Era como se, em nome de uma natureza acolhe-dora, a ligação de d. Pedro com Portugal se apagasse, e tudo recomeçasse do zero: a figura do rei e a natureza brasílica personificada pela América.84 E, como a terra, imutável e natural, assim seria a monarquia, que, de estranha ao continente ame-ricano — majoritariamente republicano —, transmutava-se na sua melhor tradu-ção. Sem conflitos nomeados, sem tensões assinaladas, a opção conservadora e monárquica surgia, ritualmente naturalizada, como se fosse um desígnio para além da voluntariedade dos homens.

Outro quadro sobre o tema foi legado por François René Moreaux (1807-60).85 [Ver caderno-cor No Brasil, ilustração 43] A obra intitulada Proclamação da Independência, datada de momento mais próximo do acontecimento (1841), apre-senta uma versão absolutamente fantasiosa dele, com d. Pedro às margens do Ipiranga, em trajes militares, totalmente cercado pelo povo, como se a cena erma e isolada fosse substituída por evento radioso e popular. Mais interessante ainda é a conformação do terreno e da paisagem. O ambiente é absolutamente plano — pronto para a realização do momento histórico —, e o príncipe se vê rodeado de admiradores, todos brancos, com tipos que basicamente imitam camponeses euro-peus. Nada como adicionar imaginário a um ato que nascia glorioso.

Fim do intervalo. Voltemos ao cenário da Independência e façamos de uma longa história um breve passeio. D. Pedro foi acolhido no Rio de Janeiro de forma esfuziante. No jornal O Espelho as notícias eram publicadas em crescendo. Em 17 de setembro, apenas a recepção de sempre:

Com o maior júbilo damos os mais sinceros parabéns aos honrados habitantes desta capital pela felicíssima chegada do Nosso Augusto Príncipe Regente, na noite de 14 do corrente, depois de uma velocíssima viagem da cidade de São Paulo em cinco dias, havendo ali recebido as mais patrióticas demonstrações de inabalável fidelidade dos fortes e constantes paulistas [...].

No entanto, como as fofocas correm rápido, e de boca a boca, logo no dia 20 o mesmo jornal apresentava a situação com tintas diferentes:

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Independência ou Morte! Eis o grito acorde de todos os brasileiros [... ] Entretanto, ufana com o penhor da sua prosperidade o Incomparável Príncipe que a providência e o amor do seu soberano puseram à sua frente [... ] O Brasil então acordou do seu letargo, conheceu que erradamente chamara leis a determinações sanguinárias [... ] e resolveu na sua dignidade, sacudir o peso que o oprimia [... ] Então o Perpétuo defen-sor do Brasil conheceu que eram justos clamores do povo fiel, que preferia um inimi-go declarado que um amigo traidor [... ] pôs-se à frente do Brasil, que o adora, e um grito universal proclamou — Independência ou morte!st>

A volta fora bem mais breve, tendo sido efetuada na metade do tempo da ida: se os correios venciam normalmente em nove dias o percurso que separava São Paulo da capital do país, o príncipe o cumpriu em apenas cinco, tendo partido na madrugada do dia 9 e alcançado São Cristovão no cair do dia 14. D. Pedro chegava castigado pelas chuvas, que o acompanharam durante toda a viagem, e trazia no braço esquerdo um laço verde de fita (a cor dos Bragança), logo acima de um ângu-lo de metal dourado com o famoso lema gravado: "Independência ou morte". Aí estava a provocação inscrita nas cores que se sobrepunham de forma contrastiva. No lugar do tope azul e branco instituído pelas cortes, agora era o verde e o amare-lo (cor da flor amarela entregue por Domitila ou a cor da Casa de Habsburgo ) que se impunham.87 E o laço viraria até moda, conforme atestam vários anúncios do Volantim, oferecendo fitas verde-amarelas e outros adereços que lembravam a In-

de Guanabara. Simplício Rodrigues

de Sá, FBN

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dependência: "Vendem-se fitas cor de ouro com a legenda Independência ou morte, a doze vinténs, cada uma nas lojas de fazendas da rua da Quitanda, casa 40 e ne 84 e na 58 e nE 10 por trás do Hospício e na rua da Cadeia na 58".8S O verde-amarelo, o grande tope nacional, inscrito na nova bandeira e nas armas, circulava nas casas nobres, nos braços das elites, e em objetos — xícaras, jarros, canecas, relógios de mesa, leques — que por sua vez entravam nas residências e nos encontros.89 As cores das duas casas reais — Habsburgo e Bragança — também perderiam seu significa-do original, convertendo-se em símbolos da terra — "nossas florestas e nosso ouro", como se fossem pista falsa.

As festas, que vieram junto com a monarquia, celebram agora aquele que seria o maior dos nossos atos: a aclamação do primeiro imperador brasileiro no dia 12 de outubro de 1822. Apesar de o dia ter amanhecido chuvoso, as janelas foram cobertas de sedas e as ruas ficaram polvilhadas de folhas secas. No meio do Campo de Santana teve lugar a cerimônia, que ocasionaria a mudança de nome do próprio local, a partir de então conhecido como Praça da Aclamação. E a agenda era cheia: desde as nove da manhã as tropas da capital aguardavam a cerimônia, mas só as dez saíram do Palácio de São Cristovão, e, acompanhados pela Guarda de Honra, o imperador com a imperatriz e a princesa d. Maria da Glória. D. Pedro dirigiu-se à varanda do palacete, onde o aguardavam cerca de 3 mil pessoas, que ouviram dis-curso de uma hora, cuja monotonia só era cortada pelos gritos de viva. Depois, e a despeito da chuva fina que caía, o príncipe seguiu a pé até a Capela Imperial, onde

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assistiu ao Te Deum, logo passou ao palácio para dar início à cer imônia do bei ja-mão e à noite compareceu ao teatro. A partir de então começar iam as festas. E elas chegariam luminosas durante as noites, cheias de atividades no decorrer dos dias — com touradas, danças, bailes, licores, manjares, banquetes, cavalhadas e pantomi-nas — e com direito a be i j a -mão no Paço. Longe de serem apenas divertimentos passageiros, as festas de Independência se convertiam em rituais políticos endere-çados ao povo, que assim reconhecia a separação entre Portugal e Brasil. É claro que lá todos se divertiam, e muito ; mas era também por meio desses rituais que se dava visibilidade ao soberano e estabeleciam-se vínculos com a nova realidade política. Aliás, não fosse isso e mal se saberia que estávamos, mesmo, emancipados: o episódio do 7 de setembro não teve na ocasião maior repercussão, e foi pouco noticiado pela imprensa. Por isso mesmo, era hora de tornar a data "memorável", reconhecer o poder instituído, e não por acaso se atrelou, cada vez mais, o grito de " Independência ou m o r t e " à figura de d. Pedro: agora identificado ao ato funda-dor, seu verdadeiro protagonista.

Não bastasse a imprensa, ficaria, ao menos, a literatura epistolar, que sempre criou novos heróis e tratou de enterrar outros. O tom da carta que d. Pedro ende-reçou a d. João é totalmente diverso do que se percebe na missiva que anteriormen-te reproduzimos. Desta vez, consciente de sua importância, o príncipe, sem desau-torizar o pai, tirava das Cortes seu papel condutor: era o final da política do "talvez" e o início de um novo tipo de negociação:

21. "A justiça triunfante

e o despotismo punido. Alegoria dedicada aos fiéis

e valerosos portugueses"

na imagem, d. Pedro recomenda

a sua filha a perpétua guarda

da Constituição. FBN

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Rio de Janeiro, 22 de setembro de 1822. — Meu pai e senhor: — Tive a honra de rece-ber de V. M. uma carta datada de 3 de agosto, na qual V. M. me repreende pelo modo de escrever e falar da facção luso-espanhola (se V. M. me permite, eu e meus irmãos brasileiros lamentamos muito e muito o estado de coação em que V. M. jaz sepultado); eu não tenho outro modo de escrever [... ]

A carta seguia elevando o tom e os adjetivos:

Respondemos em duas palavras: — Não queremos. Se o povo de Portugal teve direito de se constituir revolucionariamente, está claro que o povo do Brasil o tem dobrado, porque se vai constituindo, respeitando-me a mim e as autoridades estabelecidas. Firmes nestes inabaláveis princípios, digo (tomando a Deus como testemunha e ao mundo inteiro) a essa cáfila sanguinosa, que eu como príncipe regente do reino do Brasil e seu defensor perpétuo, hei por bem declarar todos os decretos pretéritos des-tas facciosas, horrorosas, maquiavélicas, desorganizadoras, hediondas e pestíferas cor-tes, que ainda não mandei executar, e todos os mais que fizerem para o Brasil, nulos, irritos, e inexequíveis e como tais um veto absoluto que é sustentado pelos brasileiros, todos que, unidos a mim, me ajudam a dizer — De Portugal nada, não queremos nada, [... ] Jazemos por muito tempo nas trevas, hoje vemos a luz. Se V. M. cá estivesse seria respeitado,90 e então veria que o povo brasileiro, sabendo prezar sua liberdade e independência, se empenha em respeitar a autoridade real, pois não é um bando de vis carbonários e assassinos, como os que têm a V. M. no mais ignomioso cativeiro. Triunfa e triunfará a independência brasileira ou a morte nos há de custar. O Brasil será escra-vizado, mas os brasileiros não, porque enquanto houver sangue em nossas veias há de correr, e primeiramente hão de conhecer melhor o rapazinho e até que ponto chega a sua capacidade, apesar de não ter viajado pelas cortes estrangeiras [... ] Sou de V. M., com todo o respeito, filho que muito o ama e súdito que muito o venera. — Pedro.51

Era o "rapazinho" que ia à desforra... E assim se completava o ato da emancipação. Mas, a bem da verdade, o drama

de nossa independência foi, mais rigorosamente, o que se chama na linguagem tea-tral francesa de alta comédia.92 Do drama teve as paixões e os desenlaces vigorosos, mas não faltou violência e, por essa razão, deixou de entrar no rol das peças clássi-cas. Até no exterior, e diante da Santa Aliança, a aposta de d. Pedro parecia certa. Quem sabe d. Pedro contasse com a simpatia do sogro, o imperador da Áustria, com quem a princesa Leopoldina mant inha correspondência constante? Quem sabe tivesse certeza da benevolência, já que a colônia se tornara uma monarquia e não uma república? Quem sabe, ainda, pensasse na aquiescência das demais nações, uma vez que as Cortes pretendiam usurpar a soberania real? O fato é que a Independência chegava sem clamores populares ou mudanças radicais e coloca-va, no centro do poder, não um presidente mas um monarca; e, é bom que se diga, um monarca português e da Casa dos Bragança. Por isso mesmo, criou-se uma espécie de "lenda histórica da independência", na boa definição de Emilia Viotti da Costa, que reconta a epopéia a partir de uma série de fatos perfilados e encadeados — a chegada da corte, a abertura dos portos, a elevação a Reino Unido, o Fico, o

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22. Minerva põe uma coroa imortal sobre afronte de d. Pedro. O Brasil, na figura de uma jovem índia, lhe exprime seu reconhecimento, e d. Maria II

se dispõe a preencher seus altos destinos na ditosa Lusitânia. Paul Tassaert, FBN

Cumpra-se e f inalmente a declaração de Independência, em 1822 — que mais parecem apontar para um final previamente conhecido, que deságua inevitavel-mente no Império Brasileiro. Contudo, é b o m que se diga que essa saída conserva-dora não era a única possível e que veio no lugar de uma outra independência, mais radical e republicana, que não ocorreu.

Mas, se a emancipação af i rmou-se em tempo curto e sem grandes abalos, nem por isso pode-se pensar que nada mudou. C o m a liberdade política, a antiga colônia inseria-se no quadro econômico internacional, além de ter pela frente a tarefa de construir um Estado e organizar u m a unidade política. T a m p o u c o pode-se entender a emancipação como obra de personalidades, eventos ou da exclusiva pressão de Portugal. Se, parafraseando o mestre, os h o m e n s fazem a história, "não a fazem c o m o o querem".93 Além do mais, todo o processo de emancipação, ambí-guo por certo, respondia não só às inquietações decorrentes de um processo de des-colonização — preso aos marcos da era das revoluções que estourava na Europa ocidental e também na América —, c o m o igualmente às demandas internas e aos impasses entre as elites. Nesse sentido, o 7 de setembro é apenas um m o m e n t o s imbólico destacado de um longo processo de ruptura, que levou às vicissitudes de u m a solução dinástica. Certamente, a emancipação não é obra exclusiva de nosso quixotesco d. Pedro, que foi, sim, o ator principal do ato derradeiro. O ato é expressão superficial de u m a série de tensões e arran jos que se colavam à crise

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23. D. Pedro e d. Maria da Glória

segurando a Constituição

"pai de dois povos, em dois mundos

grandes". Domingos

Antonio de Siqueira, FBN

do sistema colonial e do absolutismo, tão característicos do final do período m o -derno. Era todo o Antigo Regime que se desintegrava, e com ele as bases do colo-nial ismo mercantilista.

Por isso, nossa emancipação não deixou de ser comum, mesmo se mostrando tão particular, na sua saída imperial e conservadora. Se o m o v i m e n t o foi liberal na medida em que rompeu com a dominação colonial, revelou-se conservador ao manter a monarquia, o sistema escravocrata e o domínio senhorial. Além do mais, apesar de todo o processo de emancipação ter sido deflagrado pela vinda da corte, o que explica o sucesso final é o movimento interno de a justamento às pressões de dentro e de fora, e sobretudo, como diz a historiadora Maria Odila Silva Dias, o "processo de interiorização da metrópole no Centro-Sul da colônia",94 que levou a mudanças estruturais e nas mentalidades locais. Por outro lado, se uma unidade política foi implantada, prevaleceu u m a estrutura semelhante de poder e uma no-ção estreita de cidadania, que ali jou do exercício da política vasta parte da popula-ção e sobretudo os escravos. C o m isso noções frouxas de cidadania e de represen-tatividade das instituições políticas se impuseram entre nós, mostrando c o m o a Independência criou um Estado, mas não uma Nação.

Dar u m a cultura, imaginar uma formação, pretender uma nacionalidade: aí estava u m a tarefa para a agenda futura. E nesse quesito a Biblioteca ocuparia um lugar especial, junto com outros arranjos mais imediatos do Primeiro Reinado.

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C o m o disse d. João, antes de sua partida, em abril de 1821: "Espero que o Padre defenda os meus direitos sobre a Minha Livraria", e assim determinou que não só permanecesse seu filho d. Pedro, como o pobre e descontente bibliotecário e os livros de sua Real Biblioteca. D. Pedro ficaria para proclamar a independência polí-tica e a Biblioteca não voltaria jamais. Se os livros carregam metafor icamente a liberdade, neste caso cumpriam papel formal e viravam item de pauta de negocia-ção e de independência, no mais amplo, e talvez único, dos seus sentidos.

24. Alegoria a d. Pedro I "Salve! querido brasileiro

dia". D. Pedro liberta o Brasil, sob a forma

de uma índia, das garras do despotismo. 25 de março de 1824. FBN

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C A P Í T U LO j

PAGANDO CARO

1. Reconhecimento do Império do Brasil e da sua independência: entrega das credenciais de sir Charles Stuart. Reverência na arte,

influência na realidade. Gravura anônima, FBN

Enriquecendo sua biblioteca fará grande serviço o Soberano, con-correndo para o adiantamento e esplendor de um estabelecimento que nas Cortes de toda a Europa civilizada como V. Excia. muito bem sabe faz o adorno principal e mais precioso dos Paços Reais e merecerão com toda a justiça que as Letras o olhem e o reconheçam por seu valioso protetor.

José Manuel de Abreu Lima, bibliotecário de Sua Majestade

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FESTAS DE LIBERDADE

É hora de fechar esta história, e não de abrir outra. Portanto, é melhor passar rápido por mais este episódio, como se, fazendo uma faxina apressada, jogássemos um pouco da sujeira embaixo do tapete. À declaração formal de emancipação seguiram-se alguns conflitos — conhecidos como "guerras de independência" —, mas que não tiveram maior repercussão.1 Por um lado, não era fácil aceitar tal ato de indisciplina e de infidelidade filial, e Portugal reagiu como pôde à emancipação. Por outro, uma reação portuguesa imediata tornava-se difícil, uma vez que os exemplos de guerra contra ex-colônias foram todos fracassados e a própria Santa Aliança, em vez de opor-se, parecia observar com bons olhos essa monarquia na América.

E dentro do país reencenava-se o modelo de bem ostentar e festejar para melhor assegurar, iniciando-se mais uma das grandes comemorações às quais a população já estava se acostumando. Foi por isso que, logo após a independência política de 1822, investiu-se muito no cerimonial da nova realeza brasileira: d. Pedro foi aclamado imperador em 12 de outubro de 1822 — data a princípio considera-da mais importante que o próprio 7 de setembro. Diz o refrão português que "boda molhada, boda abençoada", e o casamento do imperador com a nação brasileira, a julgar pelas fortes pancadas de chuva que assinalaram o dia da cerimônia da coroação, não deveria desmentir o dito. Além do mais, e para manter a moda em tempos independentes, nada menos que cinco arcos do triunfo foram erguidos, devidamente alegóricos, destacando-se desde o Campo da Aclamação até a rua Direita.2 O cenário se repetia, mas não era exatamente o mesmo. Enquanto a guar-da e personagens semelhantes desfilavam, nas colchas dispostas nas janelas e nas roupas das senhoras que assistiam à parada destacavam-se, agora, o verde e o ama-relo como as novas cores da nação.

Em mais um ato pleno de significados, d. Pedro e d. Leopoldina achegavam-se à varanda do palacete do Campo de Santana e mostravam à multidão espremida diante do palácio a princesa d. Maria da Glória, erguida nos braços paternos a sim-bolizar a continuidade do Império e, no limite, da dinastia. Para o povo, que não cuidava dos melindres políticos, um príncipe garboso em seus atos, virtuoso em sua prole e acompanhado de sua princesa — e assim exposto ao olhar —, dizia mais à imaginação do que qualquer teoria do direito político. Para selar o ato, pou-cos dias depois, a 16 de outubro, recebeu-se a notícia de que as tropas destinadas à reconquista do Brasil tinham alterado seus planos e desembarcado dos navios que as transportariam.

E as mudanças vinham rápidas, sobretudo no que se refere aos emblemas e símbolos, espécie de cartão de visita de um novo regime. A 10 de novembro o cor-po diplomático estrangeiro era informado da adoção de uma nova bandeira e do tope do Brasil. O verde, cor que representava a tradição e a cor da Casa de Bra-gança, e o amarelo, cor que simbolizava a Casa de Lorena e era usada pala família imperial austríaca, entravam de frente e como apresentação. Além disso, aparecia

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2. Cortejo do batizado de d. Maria da Glória nas festas, a perspectiva de sucessão. Jean Baptiste Debret, FBN

em destaque o losango da bandeira imperial, indisfarçável e incômoda h o m e n a -gem que d. Pedro i resolvera fazer a Napoleão, apenas introduzindo sobre ele o bra-são monárquico, com as armas imperiais aplicadas sobre as plantas do Brasil.3 Se essa versão é exata, estaríamos diante de um caso de redefinição típico do nosso processo cultural: elementos tradicionais do armorial europeu, com seu significa-do preciso de homenagem aos soberanos da jovem nação, acrescidos de uma mo-dalidade de distribuição do espaço na bandeira francesa, passavam a representar nossa realidade física.4

E tudo estava pronto para a coroação, que teve lugar em l2 de dezembro, ani-versário da restauração portuguesa da senhoria espanhola e início do reinado dos Bragança: mais uma vez, a festa aglutinava datas e vinculava a realeza independen-te à monarquia destituída e atenta em Portugal. Estranho caminho é esse; mais estranho ainda se pensarmos que era preciso convencer não só as monarquias eu-ropéias, como as repúblicas americanas vizinhas, de que após a emancipação insti-tuía-se uma monarquia européia, tudo isso em um país de dimensões continentais. Por isso o ritual tinha de ser caprichado, e fundiram-se modelos variados: um misto do cerimonial usado na sagração de Napoleão em Notre -Dame com o ritual dos imperadores da Áustria em Frankfurt, n u m a combinação inédita entre o tra-dicionalismo e o m o d e r n i s m o dos novos tempos. Imitou-se também um detalhe da coroação dos reis da Hungria, que consistia em fender o ar com o gládio, n u m a alusão original ao título recebido por d. Pedro de defensor perpétuo do Brasil — sua primeira investidura popular, mas que se tornava hereditária na família.

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Para alimentar a imaginação, o imperador apareceu vestido com uma túnica de seda verde, calçado de botas de montar ia com esporas e ostentando um manto de veludo verde em forma de poncho, forrado de cetim amarelo, bordado de estre-las e com uma guarnição de ouro. A simbologia era quase óbvia em sua apresenta-ção, juntando elementos mais tradicionais aos s ímbolos da terra. Para não deixar escapar essa lógica feita de detalhes, acrescentou-se à indumentária imperial uma romeira — uma murça — feita de papos de tucano, retirada da arte plumária dos aborígines locais, em uma homenagem aos chefes indígenas da terra.5

A cer imônia foi dividida entre o Paço da Cidade — com suas salas forradas de verde e ouro — e a capela imperial, e no percurso o povo viu desfilar, mais uma vez, toda a corte, seguida do m o n a r c a em pessoa. Para completar, o soberano rece-beu a unção sagrada que o fazia rei legítimo perante os demais soberanos e dian-te de seu povo. Dese jando romper com o costume português e influenciado pela sagração e coroação de Napoleão em 1804, d. Pedro i empenhou-se pessoalmen-te nessa importante cer imônia religiosa, de origens bíblicas, e regida, com deta-lhes, pelo livro i do antigo Pontificial R o m a n o . Nesse documento estabelecia-se que os soberanos deveriam ser ungidos e sagrados com óleo santo no contexto solene da missa pontificai, costume abolido pelos reis portugueses havia muito tempo.

3. Cerimônia de sagração de d. Pedro I em 1" de dezembro de 1822 Debret retrata

os rituais locais num claro diálogo com os modelos monárquicos europeus. FBN

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4. D. João VI e d. Pedro I segundo Debret; dois estilos e duas indumentárias. Na roupa do novo imperador, os elementos que dialogam com o recém-constituído Império: a murça e o manto em forma deponcho. FBN

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5 Melhorias progressivas do Palácio de São Cristóvão, 1831, 1822, 1816, 1808 Debret, FBN

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Mas o novo Império dialogaria não só com a tradição: introduziria elementos da cultura local no seu ritual. Construía-se, a partir de então, uma cultura imperial pautada em dois elementos constitutivos da nova nacionalidade: de um lado o Estado monárquico, como portador do projeto civilizatório; de outro a natureza, como base territorial desse Estado.6 Com efeito, ainda em 1822, o artista de sempre, o mestre Debret, elabora uma alegoria, especialmente idealizada para o pano de boca de uma apresentação teatral que celebrava a coroação de d. Pedro i como pri-meiro imperador do Brasil. Nela, o Império do Brasil apareceria com toda a sua pompa, mas também com sua originalidade. Além de estar confiado a Debret todo o programa de festas, ficou igualmente sob a responsabilidade desse artista esse pri-meiro símbolo oficial da realeza brasileira. Na imagem Debret procurou apresentar a "fidelidade geral da população brasileira ao governo imperial, sentado em um trono coberto por uma rica tapeçaria estendida por cima de palmeiras".7 Na gran-de tela, negros mostram sua fidelidade; indígenas, com seus arcos, declaram sua lealdade; tudo isso ao lado de paulistas e mineiros, e da Marinha. As frutas, bem ao centro, são todas tropicais; as palmeiras e a vegetação compõem um quadro deci-didamente exótico. Por fim, as vagas do mar deságuam no grande trono, a brindar o Atlântico que nos separava da civilização e nos unia a ela. Desvinculando a mo-narquia brasileira de sua matriz lusitana, os novos símbolos da terra ganhavam um caráter inaugural, como se toda a história começasse a partir do ato que constituía a nação independente: unidos e irmanados sob o teto da realeza.s

No entanto, apesar de toda a exuberância de detalhes, na arte de Debret, como afirma o crítico de arte Rodrigo Naves, "há uma rigidez mal resolvida, a produção de uma grandiosidade meio naif fiel talvez ao espírito acanhado da monarquia brasileira, mas muito limitada enquanto pintura".9 Não havia como esquecer a existência da escravidão, que por sua vez tornava a realeza brasileira absolutamen-te singular. No Rio de Janeiro, de um total de 79 321 pessoas, 45 ,6% eram escra-vos,10 sendo que o universo do trabalho resumia-se a eles. Aí estava a grande con-tradição dessa monarquia, que não se limitava ao traço de Debret. Afinal, era difícil afirmar uma imagem civilizada e constitucional em meio a um país assim depen-dente da escravidão.

Por isso mesmo o Império nascia cercando-se de elementos a legitimá-lo e que escondiam fraquezas estruturais. Para dar guarida a essas idéias, acionava-se uma certa cultura universal, que nesse contexto virava elemento de batalha con-tra a propaganda que vinculava o jovem Império ao tráfico negreiro. Nesse sen-tido, e para contrabalançar essa imagem, a Biblioteca surgia como antídoto. Mos-trava como "a cultura" habitava entre nós e de que maneira nossa memória, apesar da juventude do novo Estado, era tão antiga como os exemplos dos lumi-nares gregos ou dos filósofos iluministas. Nada como um grande acervo de livros para assentar o Império e lhe conferir uma legitimidade ilustrada, que o iguala-va às demais nações européias. Ali estava um país recém-independente, mas que já acumulava saberes seculares; uma nação jovem que surgia ostentando, como diziam os diferentes bibliotecários, "a sétima biblioteca do mundo e a primeira do

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6. Pano de boca do teatro da corte para a apresentação do coroamento de d. Pedro I. Idealização, por Debret, da mais universal e a mais particular das monarquias. FBN

Novo Mundo". Deixemos de lado as contradições do Império e os problemas de d. Pedro para dar conta do tratado que, passado algum tempo, não só indicaria o caminho para o reconhec imento lento de nossa emancipação, como iria prever um ressarcimento "pelos bens deixados pela Coroa no B r a s i l " — dentre eles nossa Real Biblioteca.

PAGANDO CARO

A primeira tentativa de negociação deu-se depois que u m a série de fatos indi-caram a feição irreversível do movimento : a aclamação do príncipe regente como imperador constitucional e defensor perpétuo do Brasil, em 12 de outubro de 1822; a retirada do Exército português que se encontrava na Bahia, em 2 de julho de 1823; a adesão das províncias do Império do Brasil ao ato da Independência, e a reunião da Assembléia Constituinte do Brasil, no dia 3 de maio de 1823. No en-tanto, todas as tratativas mais imediatas resultaram em fracasso. Essa era inclusive a posição oficial do próprio Reino de Portugal, quando, em 1823, enviou ao Impé-rio u m a missão, chefiada pelo conde do Rio Maior, para tratar de u m a convenien-te conciliação entre o Brasil e Portugal. O escrúpulo com que procedíamos como nação independente era tal que, não trazendo aquele emissário autorização para re-conhecer in limine, e como base de qualquer negociação, a independência do Brasil, não foi sequer ouvido e retornou incontinenti para Portugal.

E não é preciso ser oráculo para intuir que a primeira nação a se aproximar e oferecer mediação seria a Grã-Bretanha, que de neutra não tinha nada: na verda-de, pretendia manter sua primazia, assentando, ainda mais, sua incontestável in-

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3 6 2 i A L O N G A V I A G E M D A B I B L I O T E C A D O S R E I S

7 Os escravos: retratados por Debret deforma caricata e idealizada, mas sempre aas mãos e os pés do Brasil11. FBN

fluência na região. Seguindo essa orientação, a Inglaterra envia um representante especial, sir Charles Stuart, com o fito de conseguir em Portugal os termos de nego-ciação para a independência do Brasil. Começava então uma série de conferências em Lisboa, que se alongariam até 23 de maio, quando se tratou em minúcias com os diplomatas portugueses de seus termos e das pendências entre Reino e Império. A primeira entrevista foi realizada em 30 de março de 1825, com o inglês trazendo termos inaceitáveis para o Brasil, uma vez que implicavam um pedido de indeni-zação ao Estado português da ordem de 3 milhões de libras esterlinas e a conces-são do título de imperador a d. João vi.

Mas, se o começo foi ruim, depois dos primeiros momentos e entrados os dias de abril, percebeu-se como era vasta a agenda que deveria discutir a sucessão real, uma aliança defensiva, socorros mútuos em navios e soldados, indenizações em dinheiro — tanto para o governo português como para particulares — e a nego-ciação de um tratado de comércio. Só se acertou de pronto — e não sem longa dis-cussão — a espinhosa questão dinástica: d. João ficaria com o título de imperador, mas concederia soberania ao filho, determinado-se que o "Príncipe ou Princesa, herdeiro presuntivo das duas Coroas", teria o título de príncipe imperial do Brasil e príncipe real de Portugal e dos Algarves.11 A pauta mal havia começado quando

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se decidiu que haveria reciprocidade de tratamento para os súditos das duas nações, cessariam as hostilidades, o valor das baixas feitas a Portugal seria restituí-do, acabaria o seqüestro de propriedades portuguesas, seriam pagos os valores devidos aos donatários das diversas capitanias e se fixaria um princípio básico para reger as relações comerciais, introduzindo uma tarifa comum de 15% de direitos de importação. Mas a questão capital estava por chegar: o Estado português exi-gia que fosse pago o valor correspondente a todos os objetos que tinham fica-do no Rio de Janeiro. A conta que o inglês trazia era longa em itens e implicava debitar ao Brasil metade da dívida pública contraída até 1807 — a "bagatela" de 12 899:856$276 réis.

E não era só. No documento intitulado "Conta dos objetos que Portugal teria direito de reclamar ao Brasil", resultado da quarta conferência realizada em Lisboa em 15 de abril de 1825, incluiu-se tudo de que se lembrava ou que se jul-gava de direito: as equipagens, as pratas, os navios de guerra, os soldos dos ofi-ciais, os fretes dos barcos que conduziram as tropas, divisões militares, o êxodo das armas, as artilharias e, o que nos interessa mais de perto, vendia-se a Real Biblioteca (ver quadro na página 396) por 800:000$000 réis (oitocentos contos de réis).

Conforme relata o historiador português Francisco Martins:

Tratava-se de um grande rol, de um comprido e complicado inventário, ante o qual um analista se admiraria de não se vender [em] ao Brasil as suas árvores gigantescas e as suas minas profundas, a cintilação do seu Sol e dos olhos de suas mulheres, as cris-tas dos seus montes, e os animais exóticos das suas florestas [...].12

A própria Biblioteca entraria em pauta novamente na nona conferência, de 23 de maio, em conjunto com a lista de vários equipamentos que seriam ressarcidos. Além da cópia original da dívida pública e da lista de equipagens da corte que fica-ram no Brasil, era apresentada a carta de frei Joaquim Dâmaso, contendo a avalia-ção da Real Biblioteca da qual o clérigo fora bibliotecário.

Dâmaso, para subsidiar a conferência, emitira o seguinte parecer sobre a Livraria:

A Biblioteca de Sua Majestade, existente no Rio de Janeiro, consta de 80 mil volumes impressos e apenas lá não ficaram os Manuscritos que devem existir no Real Tesouro em Lisboa, contudo lá se tinham adquirido alguns centros e tantos estimáveis entre os quais há as cartas dos jesuítas Anchieta e Nóbrega e de outros, e todos originais e pre-ciosidades a quem quiser saber ou escrever da descoberta e colonização da Terra de Santa Cruz, outros tantos estimáveis [... ] e ainda autógrafos do marquês de Pombal, a flora de Veloso em 16 tomos.

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CONTA DOS OBJETOS QUE PORTUGAL TERIA DIREITO DE RECLAMAR AO BRASIL

D1 VIDA PÚBLICA l2 Metade da dívida pública até 1817 12 899:856$276

BIBIJOTHECA 2- Bibliotheca Real avaliada pelo Bibliotecário 800:000$000

CASA DO REI 3a Equipagens que ficaram no Rio de Janeiro 200:000$000 4a Pratas, móveis, e outros objetos deixados no RJ 200:000$000

400:000$000 MARINHA

5a Valor dos navios de guerra deixados no Brasil 3 334:000$000 6a Importância dos ordenados pagos pela repartição

da Marinha aos empregados civis que vieram do Brasil 9:479$ 118 7a Pensões que se pagaram no Brasil e que se continuaram

a pagar em Lisboa 12:344$818 8a Soldos e alimentos pagos aos oficiais da Marinha do

tempo que serviram no Brasil 6:454$681 9a Fretes dos navios fretados pela Junta da Bahia 24:6303000

10a Importância dos soldos e alimentos dos oficiais do Exército do Brasil e dos de Montevidéu 22:2575337

Transporte 3 409:165$954 (total) 14099:856$276

1 Ia Frete do Navio Luiza que levou as tropas do Maranhão para Lisboa 10:278$800

12a Despesa da Divisa Militar que, saindo da Bahia, para Pernambuco, arribou a Lisboa 63:536$401 (total) 3 482:981 $155

GUERRA 13a Despesa de um destacamento de tropas

que veio do Pará e para aí voltou 5:524$570 14a Idem de um destacamento de tropas vindo

do Maranhão e que para aí vai tornar 25:389$377 15a Idem de dois esquadrões da Legião da Bahia 15:568$012 16a Soldo dos oficiais 327:981 $585 17a Valor da artiharia e munições de guerra deixadas no Brasil 203:730$368 18a Fornecimento ao destacamento do Maranhão 10:825$296 19a Idem aos esquadrões da Bahia 2:973$850

591:993$068 De que se abate: O valor da artilharia e das munições de guerra pertencentes à Bahia que estão em Lisboa 25:276$690 0 valor dos objetos pertencentes à Confraria dos esquadrões da Bahia 4:129$267

29:405$957 562:587$! 11

Total Geral: 18 145:424$542

N.B. Esta conta não compreende senão os principais objetos, mas no caso em que o Brasil preferisse entrar em liquidação a pagar logo uma soma junto, haveria muitos outros artigos para lhe juntar.13

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Dâmaso, que partira do Brasil em 1822, logo após a Independência, continua-va descrevendo, não sem uma ponta de ciúme, as preciosidades existentes na seção de manuscritos, entre autógrafos, textos e desenhos.14 Afora esses, citava os livros do Infantado, fundamentais, dizia ele, para todo aquele que "quiser saber a fundo alguns pontos da História de Portugal e suas conquistas". Mapas também havia, e muitos, e versavam sobre fronteiras litigiosas, como as da Colônia de Sacramento, os limites com a Espanha, e sobre as possessões portuguesas nos quatro cantos do mundo. O religioso lamentava, ainda, e profundamente, as coleções de estampas que teriam permanecido no Brasil. Remontavam à Antigüidade e chegavam até o mo-mento presente, desenhando reis, paisagens, locais existentes e imaginários. Não fi-cavam para trás as obras impressas, não só em raridade como em qualidade; todas distribuídas em cinco classes: teologia, ciências e artes, belas-artes e história. Fa-ziam falta em Portugal, ainda, os livros de música e as partituras tão ao gosto de d. João VI. Para comprovar a riqueza das sessões, nesse mesmo documento o bi-bliotecário mencionava as obras mais raras, assim como declamava, quase que de cor, os grandes volumes de história e de ciências que teriam restado no Brasil. Com efeito, Dâmaso parecia mesmo aborrecer-se — e muito — com tal separação polí-tica e bibliográfica. Tanto que logo no final do parecer o bibliotecário, ao mesmo tempo que perguntava, respondia:

A vista de tudo isto quem pode dar uma aproximada avaliação? E muito mais se se atender às enormes despesas que com a Real Biblioteca se têm feito desde a sua fun-dação em 1756 até hoje, com o material das casas aonde em diversos lugares onde se tem por vezes arrumado em Lisboa e depois na condução para o Rio por três vezes, em charruas e preparo da casa e estantes de vinhático feitas com tal arte que nelas se não empregou um só prego e se acham tão fáceis de desmanchar sem se arruinarem que um só dia se podem enfeixar para se transportarem para onde quiserem com toda a comodidade e se também se atender ao quanto tem custado a sua conservação, com os ordenados de empregados úteis e inúteis.

Na opinião de Dâmaso, portanto, apesar de a Biblioteca não ter preço era pre-ciso calcular: estamos no ano de 1825 e era hora de imaginar um valor e pedir res-sarcimento. Por isso mesmo, assim concluía o bibliotecário:

Quem à vista disto poderá dar uma ajustada avaliação? Quanto a mim a soma de dois milhões é pequena. Se compararmos esta avaliação com aquela pela qual se venderam as Livrarias de Falconet, Valliere, Aguesseau, Breffe, Soubise parecerá excessiva, mas não o é certamente atendido o exposto. Este é o meu parecer.

E sem titubear, o bibliotecário despeitado jogava o preço da Livraria para cima — dois milhões parecia pouco —, e terminava o documento datando-o de 21 de abril de 1825, Lisboa.15

Eram tempos de negociação, e o antigo bibliotecário — que havia partido às pressas, logo depois da Independência, para se juntar a seu rei e à sua nação, que

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só a contragosto deixara nos idos de 1807, participava dos termos do reconhecimen-to, ofertando sua experiência: já não era sem tempo de restituir o valor pecuniário da Livraria que ficara no Brasil. No entanto, no acerto geral a Biblioteca saía por menos: 800 contos de réis, apesar de todo o empate de capital e simbólico a ela atribuído.

Voltemos, porém, à nossa negociação geral, que estava longe de ser concluída. Na verdade, da parte de Portugal os termos estavam claros, e era hora de cobrar a conta no Brasil. E, assim como chegara portando uma espécie de letra de câmbio, sir Charles Stuart partiria num luminoso dia de maio de 1825 rumo ao império tropical. Mas de tanto negociar quase esqueceu um dos itens, o que o obrigou a voltar às pressas para Lisboa. Como o rei cedia à soberania, parecia-lhe justo que lhe pagassem pessoalmente. Isto é, já que d. João vi não recebia pensão anual — o que achava justo por ceder das suas prerrogativas —, exigia ao menos que se votas-se, como compensação das suas propriedades — as fazendas de Santa Cruz e São Cristóvão —, uma verba privativa.16 E depois de apresentado esse último ponto, a nau 74 fazia vela, ao som das salvas, levando o nosso eminente caixeiro que conse-guira a proeza de tentar vender o Estado ao próprio Estado.

Mas não era hora de chorar sobre o leite derramado, e da parte do Brasil a intenção era aceitar logo a proposta e obter em troca o reconhecimento de outras nações. E foi assim que, em 17 de julho, Stuart chegou ao Rio de Janeiro com os termos definitivos da negociação, tendo sido recebido pelo imperador na sala do trono, em audiência solene. Em 29 de julho foi assinada a ata da primeira reunião, que avançava, e muito, o desenlace:

Ia S. M. E o rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, cede a seu filho d. Pedro d'Alcântara todos os seus direitos do reino do Brasil; 2- S. M. E de sua livre vontade, reconhece a plena soberania do Brasil na categoria do Império separado do Reino Unido de Portugal e a dignidade imperial na pessoa do seu filho d. Pedro I, Imperador do Brasil e seu Perpétuo Defensor, assim como na sua augusta dinastia; 3- S. M. I. em respeito ao amor do seu augusto pai, o senhor d. João vi convém que S. M. F. tome o título de imperador do Brasil durante sua vida.17

Discutiram-se ainda frases, redações, maneiras de dizer, e os encontros se estenderam até quase o final do mês de agosto, quando se decidiu passar ao capí-tulo das indenizações, visto estarem assentes as outras bases. Aí estava a grande conta que se ia apresentar. Os ingleses, interessados como estavam, propunham que o Brasil tomasse para si o empréstimo levantado por Portugal em Londres, como forma de indenização. Procuravam, assim, uma garantia nessa nova nação que decerto lhe renderia boas comissões, e falavam na soma de 1 milhão e 300 mil libras esterlinas.

Os negociadores brasileiros quiseram logo diminuir para 1 milhão a quantia, enquanto d. Pedro pagaria ao pai 250 mil libras pelas propriedades deixadas no Brasil18 e mais 55 mil libras aos donatários das capitanias. Começava, assim, a his-tória deste país recém-independente, rolando dívidas e misturando-se esferas pú-blicas e privadas. Afinal, o que era do Estado e o que era propriedade privada de

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d. João, ninguém se lembrou de perguntar. Mas, na última hora, apareceu uma nova proposta, talvez menos complicada. O Brasil entregaria a Portugal, que nada mais teria a reclamar, uma soma de 2 milhões de libras esterlinas em prestações anuais de 100 mil libras. Já com relação a d. João vi, a questão seria entre pai e filho.

E como toda história tem um fim, chegou-se a um acordo naquele mesmo ano de 1825. Na verdade, d. Pedro tinha pressa e o que queria de fato era publicar o tratado, até sem a assinatura do pai, em 7 de setembro, bem na data do aniversário da Independência. O tratado — que teria de ser ratificado por ambas as partes e seria assinado já em 29 de agosto de 1825 — admitia o Brasil na categoria de Império, independente e separado dos reinos de Portugal e Algarves; reconhecia d. Pedro, a quem o rei de Portugal transferia a soberania, seu imperador, título que se estenderia a seus sucessores. Mas o acordo não concedia simplesmente a inde-pendência. Destacava que propriedades portuguesas, bens de raiz e móveis, ações seqüestradas ou confiscadas, assim como embarcações e cargas apresadas, deve-riam ser restituídos.19 Para tanto, uma comissão paritária, composta de brasileiros e portugueses, seria criada para continuar arbitrando divergências que poderiam surgir no caminho.

O Tratado de Amizade e Aliança e a Convenção Adicional foi por fim celebra-do, figurando sir Charles Stuart no papel de mediador e representante plenipoten-ciário de Portugal. Explicitados os termos, o imperador o assinou imediatamente, sendo o texto ratificado em 30 de agosto. Além do tratado propriamente dito, assi-nava-se no mesmo dia uma "Convenção especial em quatro artigos",20 pela qual o Brasil se comprometia a pagar ao governo de Portugal a quantia explicitada; e assumia de imediato a responsabilidade do empréstimo português — de 1 400 000 libras — efetuado em outubro de 1823, em Londres, sendo o restante pago à vista, um ano após a ratificação.2'

E não era para menos que no Brasil a euforia andava solta. A Gazeta de Lisboa e o seu Suplemento inseriam, no dia seguinte à notícia da aprovação, o tratado e seus onze artigos: reconheciam-se o Império e a independência; d. Pedro anuía a que o pai utilizasse o título de imperador; não se aceitavam no Brasil propostas para a ligação desse país com qualquer colônia portuguesa; estabeleciam-se a paz, a aliança e o total esquecimento das desavenças passadas; os súditos de ambas as nações seriam considerados sempre favorecidos reciprocamente; restituíam-se bens seqüestrados e embarcações apresadas. Restabelecia-se também o comércio entre os dois povos, dando ao passado e à memória um ar de naturalidade estranho a tantas negociações premeditadas. E assim a notícia do tratado de paz era recebida com satisfação, na capital e nas províncias, tanto mais porque a princípio o gover-no guardou segredo sobre a convenção e acerca da indenização.

Finalmente sir William Acourt, que acompanhara sir Charles Stuart, ia partir no Spartiate rumo a Lisboa levando o novo tratado para ratificação. Carregava também duas cartas de d. Pedro para o pai, depois de três anos de relações inter-rompidas. Uma era de negócios e, muito afável, mostrava as bases da transação — os 2 milhões de libras esterlinas a serem pagos pelo Brasil — e lembrava que 250

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mil libras iriam diretamente para o "real bolso" de d. João. A outra não passava de um amontoado de banalidades, em que nem as irmãs de d. Pedro e tampouco a mãe eram mencionadas.

D. João selaria a ratificação, em Lisboa, mas apenas em 15 de novembro. Assinaria a paz com o filho num dia nevoento e gelado, sozinho em seu quarto no Palácio de Mafra, onde se refugiara cansado, abatido, cheio de desilusões, já sem o cálculo renal que o incomodava de manhã e sem a velha tática de anuir sempre às vontades alheias. Era agora um homem adiposo, de barbas brancas, caído, com o ros-to enrugado, assoando-se estridentemente com um grande lenço de seda, apoian-do-se na bengala de castão de ouro cada vez que queria mover-se, uma vez que suas pernas estavam constantemente fistuladas. O único prazer que lhe sobrara era o da comida, devorada em lautos almoços, merendas e jantares regados a água fresca.22

Porém, para o Brasil a assinatura de d. João significava muito: abria caminho para outros reconhecimentos que se seguiriam em pequenos intervalos: da Áustria, em 27 de dezembro; da França, em 8 de janeiro de 1826; da Santa Sé, em 27; da Grã-Bretanha, em 31 do mesmo mês,23 e sucessivamente os reinos e principados da Alemanha e da Itália. Os Estados Unidos, antecipando-se a todos, haviam reco-nhecido o Império em 26 de junho de 1824, e o México, desde 9 de março de 1825 — era a adesão de um continente que, recém-independente, abraçava causas comuns, a despeito das diferenças políticas.

No entanto, e conforme dizia Talleyrand, "para estar satisfeita, a paz não deve satisfazer ninguém", e foi o que ocorreu também neste caso. O alto preço pago pelo Brasil seria um dos motivos da impopularidade futura de d. Pedro i, e Portugal entraria numa guerra civil que tumultuaria por muitos anos a vida do país. Assim terminava uma história e começava outra: a necessidade de indenizar a Coroa por-tuguesa deu origem ao primeiro empréstimo externo, contraído pelo Brasil em Londres, e ao início de uma dívida e uma dependência financeira que se perpetua-riam por longo tempo.24

Pagava-se caro pela independência e parte significativa ia para os livros: 800 contos, montante que correspondia na época a 250 mil libras esterlinas ou a cerca de 12,5% do valor total do pagamento a ser efetuado. Além do mais, na relação de "Conta dos objetos que Portugal teria direito de reclamar ao Brasil", a Biblioteca aparecia logo em segundo lugar, imediatamente após a soma da "Metade da dívi-da pública até 1817", e valia quatro vezes mais do que toda a famosa prataria da Coroa, que, com os demais móveis e objetos, só alcançou 200 contos; assim como a "equipagem" que também não passava do mesmo valor.25

Se tomarmos como base os valores referentes a alguns bens em 1822, pode-se ajuizar a alta soma paga pela Livraria: "Gazeta do Rio de Janeiro. 19/3/1822. Vende-se uma morada de casas de sobrado, sita na rua do Ouvidor entre a da Quitanda e o Beco das Cancelas ne 144, que rende anualmente setecentos mil réis, quem a qui-ser comprar procure na rua do Ouvidor na 29". A Biblioteca custava mais de mil vezes o valor de uma série de casas. Já uma padaria equipada e com escravos incluí-dos, conforme aparecia na Folha Mercantil de 15 de setembro de 1825, alcançava apenas 0,5% do seu valor total:

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Vende-se a padaria do falecido Hipólito Ladevese, rua do Cano n2 83, constando de 4 fornos, cada um com seu mestre-forneiro, 13 pretos oficiais-de-padeiros, peneiras e todos os utensílios competentes de uma padaria, tudo em bom estado, o que tudo importa em 4:500$000 rs, pela avaliação feita no inventário, quem a quiser ver, pode dirigir-se ao dito estabelecimento, ou aos encarregados da liquidação da dita herança.

Comparativamente, portanto, os livros representavam muito: custavam caro e significavam mais do que seu valor objetivo. Objetos carregam dons, portam dádi-vas e se vinculam a outros ganhos, emocionais, políticos ou mesmo simbólicos. E era assim que se avaliava uma Real Livraria. Mais do que livros, lá se acumulavam idéias, projetos, ambições, e ainda a cultura possível de uma nação — sobretudo de uma monarquia independente, isolada no meio da América republicana. Mas essa já é outra história, e a nossa vai terminando com o tratado, o estabelecimento defi-nitivo e os procedimentos para que a nossa Biblioteca aqui ficasse. Segundo item de uma longa pauta de negociações, ela representava a cultura acumulada e a tra-dição de que carecia: nada como colocar tudo numa lista e quantificar o que é da ordem da cultura e da própria representação.

RECLAMANDO DE BARRIGA CHEIA

Serenados os temas pendentes e paga a dívida, a Biblioteca ficaria no Brasil com seus livros, hábitos e boa parte dos funcionários. Façamos uma última visita à Livraria para rever suas instalações, falar de suas mazelas do cotidiano e dos proble-mas bastante distantes da imagem gloriosa que o padre Dâmaso havia desenhado, na tentativa de valorizá-la. Voltemos um pouco no tempo, a fim de observar o pró-prio Dâmaso se queixar do dia-a-dia, que continuava complicado, com a falta de funcionários e as lutas por outros tantos. Em carta datada de 1819 o mesmo biblio-tecário, ainda no Brasil, reclama das condições reinantes: os funcionários eram pou-cos, o trabalho grande e o salário baixo, e por isso Dâmaso concluía: "[... ] e o homem desgostoso deixa de trabalhar [...] faz a metade do que faria satisfeito com as esperanças que os embelezam".26 Os empregados eram mal pagos, escassos, e, para piorar, os reposteiros Pedro Vaz da Silva e Manuel José Maria e o varredor José Maria Nazareth eram exigidos para outros serviços, o que parecia desgostar demais nosso já mal-humorado bibliotecário.

Dâmaso reclamava, porém, de barriga cheia, visto que em outro documento, datado de 29 de março de 1820, listava os seguintes funcionários a seu serviço: um escrevente, um reposteiro, três serventes e um varredor. Não contente com esses empregados, Dâmaso elencava mais um, "que vem faz quatro anos mas que sem sabermos a razão deixou de vir a esta Casa e muito favor nos fará se a ela não tor-nar mais". Era rabugento o nosso Dâmaso, sobretudo porque, no seu entender, rei-nava grande confusão na Real, a ponto de mal dar conta do dia-a-dia da institui-ção: "No dia 11 deste mês me vieram pedir o frete das duas caixas de livros que a

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Real Academia de Ciências de Lisboa mandou para esta RB, o que me causou muita surpresa".27 Piores foram as tentativas sucessivas de roubo, quando o bibliotecário se viu obrigado a recorrer à ajuda externa:"[ . . . ] procurei pedir pronta providência e a consegui prometendo-me o Brigadeiro que está as ordens no Paço nesta sema-na, dois soldados por aqui em segredo passem a noite dentro desta Casa [... ] 27 de abril de 1820".28

Mas uma biblioteca não vive só de lamúrias, e essa até que era bem servida. Dois religiosos que vieram acompanhando a Família Real permaneceriam no cargo de prefeitos durante longo tempo: frei Gregório José Viegas, da Ordem de São Francisco, administrou a Biblioteca de 1810 até 22 de março de 1821, enquanto nosso Joaquim Dâmaso, padre da Congregação do Oratório de Lisboa, foi encarre-gado do arranjo e da conservação de 1810 até 1822. Além deles, Luís Joaquim dos Santos Marrocos — aquele mesmo que viajara com os livros em 1811 — acumu-lava dentre outras funções a de ajudante da Biblioteca. A Livraria parecia bem-arrumada e distribuída em diversas salas, segundo as diferentes classes de objetos científicos ou de literatura, tudo ajeitado com método, de forma a ser considerada por muitos a mais importante do Novo Mundo, não só por conta de seus livros raros como também pelos impressos e pelas coleções de estampas, desenhos e mapas, manuscritos e quadros que possuía, os quais, vindos de Portugal, acabavam por ani-mar o ambiente. Basta lembrar que a Livraria dos Estados Unidos acabava de ser montada; já a brasileira carregava tradição.

Portanto, muitas vezes Dâmaso, que fora elevado a prefeito, queixava-se em demasia, uma vez que administrava uma invejável livraria real. E, por isso mesmo, quando não estava se lamentando o nosso bibliotecário pensava sempre em am-pliar o acervo comprando outras coleções. O problema é que ofertas até que apa-reciam, mas eram difíceis de negociar. Por exemplo, o marquês de Aguiar oferece-ra uma coleção de 25 volumes, dos quais vinte continham uma coleção completa de Piranesi. Mas o preço era exorbitante até mesmo para um gastador inveterado como o conde da Barca, "único que poderia ter apetite de a comprar para ajuntar às suas preciosas coleções". A saída era esperar que os preços baixassem, o que ocor-reu: "Passado algum tempo ofereceram a dita coleção por um conto de réis [... ] de então para cá nada mais soube de tal coleção até que sábado passado ma vieram oferecer por seiscentos mil réis [...] e penso que se possa ainda arrancar algum aba-timento".

E, se não há como ter certeza dessa compra, o que se sabe ao certo é que a Real se tornaria mesmo uma coleção de coleções, arrematando acervos e comple-mentando os seus. Só em 1820 foram enviadas por diferentes personalidades — entre Sua Majestade, o senhor Marrocos, o marquês de Belas e Vila Nova Portugal — mais de 85 obras. De 1821 a 1822, 680 títulos foram remetidos, entre decretos e portarias. A Biblioteca se assemelhava a um "troféu", e as autoridades preocupa-vam-se em deixar seu nome atrelado ao da instituição. Entre 1823 e 1824 aproxi-madamente trezentas obras foram entregues à Livraria, revelando como a moda pegara: de 1817 a 1824 mais de 1300 títulos entraram sob a forma de doação.29

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Com o crescimento vinham as formalizações e era tempo de a Biblioteca ter regras próprias. Em 1821 saem os "Estatutos da Real Biblioteca". Minucioso e com-posto por 32 itens, o documento30 representava uma verdadeira carta de alforria do estabelecimento, que decididamente se assentava em terras tropicais. Já no primei-ro item, apresentada como "alfaia preciosa da Coroa de Portugal, que tantos desve-los tem merecido e de que tantos benefícios e honra pode resultar ao Estado", a Biblioteca ficava subordinada ao mordomo-mor, ou ao ministro secretário do Estado dos Negócios do Reino quando servisse de mordomo-mor. Era a ingerên-cia do Estado que se afirmava, mostrando como sua lógica era a do reino; "todos os empregados da Real Biblioteca como criados de S. M., gozarão dos mesmos direitos, privilégios, foros e preeminências que gozam os demais criados da Casa Real, que estão em atual serviço".

Tendo estabelecido a subordinação maior, os itens passavam a reger a ordem interna. A Real Biblioteca contava com um prefeito, um ajudante, dois escreven-tes e os serventes que fossem necessários, cada um com sua posição e função. Ao prefeito cabia tocar o funcionamento da Livraria e tudo o que se requeria para sua conservação e aumento. Aí estava, mais uma vez, a grande autoridade local, res-ponsável ainda pelos empregados e suas respectivas obrigações; e pela compra de livros, impressos e manuscritos. Tanto melhor era o bibliotecário quanto mais fizesse boas compras ou avisasse da existência de lotes apetitosos. Era igualmente de sua competência classificar as obras adquiridas, "segundo a ordem e classe que lhes tocar", e registrá-las "no livro deputado para registrar tudo [o] que se recebe".

Além de comprar, classificar e guardar a ordem, o prefeito era aquele que lida-va com os empregados: cuidava de suas tarefas, das dispensas (contanto que fos-sem menores que um mês) e nomeações. Cabia a ele ainda evitar qualquer aciden-te, não consentindo que nas imediações da Real "se instalasse oficina que trouxesse risco de incêndio". Era o velho medo do fogo, tão presente na história das bibliote-cas, que se inscrevia também nesse capítulo particular. Cuidava, ainda, da "civilida-de e cortesania" com que se tratavam aqueles que procuravam a Real Biblioteca, devendo também facilitar os livros pedidos, manter a ordem, evitar o barulho e zelar para que "se não escreva sobre os livros, e que estes se não manchem, maltra-tem, ou extraviem procurando também que na Casa se guarde silêncio e se não perturbe a atenção dos que estudam".

Mas o prefeito não trabalhava só; era auxiliado por um ajudante que o subs-tituía na sua ausência e por escreventes que, como diz o nome, "cumpriam escre-ver conforme a ordem do prefeito". Eram eles que recolocavam os livros nos devi-dos lugares e tomavam "suma vigilância em que se não maltratem os livros que derem e de os recolher logo que os deixam e pretendem sair os que os têm procu-rado". Logo abaixo na hierarquia vinham os serventes, que tinham como obrigação abrir e fechar as portas e janelas da Biblioteca de manhã e à noite, às horas assina-das. Outra tarefa sob seus encargos era manter a Livraria "limpa, e asseada, varren-do-sé toda pelo menos os sábados e limpando-se os livros pela ordem que o pre-feito e ajudante lhes assinar".

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Os regulamentos estabeleciam ainda a existência de vários "índices": um geral, "alfabético de todos os livros impressos"; outro distribuído em classes ou matérias; um especial "dos livros proibidos que há na Biblioteca"; e mais um, por fim, "dos livros e papéis manuscritos compostos com mais expressão, e individualidade que o dos impressos". Um tomo especial especificava todos os impressos e manuscri-tos, além de curiosidades próprias de coleções que se fossem comprando ou rece-bendo, assinando-se, sempre, o dia da sua recepção. Outro volume era dedicado à notação de vendas, permutas ou quaisquer outras saídas de livros duplicados; um registro especial dava conta das encadernações e gastos, e um específico para o re-gistro de ordens, avisos, cartas, papéis, representações, resoluções e tudo o mais que dissesse respeito à Real Biblioteca. Profissionais nas lógicas da classificação, nossos bibliotecários esmeravam-se na matéria.

O regulamento determinava também os horários: a Biblioteca abria às nove horas da manhã e permanecia aberta até a uma da tarde; tornava a abrir às quatro e meia e fechava antes do anoitecer, exceto nos dias santos e de Grande Gala da Corte. O horário de fechamento era estrito, mesmo porque jamais se permitia "luz artificial para a gente de fora estudar ou consultar". Mais uma vez, surgia bem no meio dos regulamentos o receio de incêndios, uma vez que sugere o decreto a proi-bição de velas ou de lamparinas, os únicos meios de iluminação na época.

Os empregados estavam sujeitos aos mesmos horários — trabalhavam duran-te quatro horas de manhã e quatro horas à tarde, permanecendo até o anoitecer —, e um pouco antes do fim do expediente os consulentes deveriam ser avisados, a fim de que se guardassem os livros e fechassem as janelas. Visitas deveriam ser evitadas e horários alternativos só eram possíveis mediante autorização. As regras eram firmes, contanto que não implicassem exceções no caso da realeza ou de personalidades do governo. Nessas situações, o procedimento era rápido e sem maiores burocracias.

Já com relação aos demais, incluindo-se os empregados, as regras eram in-transigentes:

Nenhum empregado poderá tirar ou extrair, nem consentir que se tire ou extraia livro algum impresso ou manuscrito, nem coisa alguma pertencente à Biblioteca; e todos terão sumo cuidado e indispensável obrigação de dar conta logo imediatamente ao prefeito de qualquer notícia ou espécie que entendam sobre isto [...].

Ninguém saía da Biblioteca levando livros, mesmo se tivesse a necessidade de copiá-los. Toda a cópia era feita no local, sob a vigilância de funcionários que deve-riam zelar para que não se anotassem ou corrigissem os originais.

O estatuto que contemplava o dia-a-dia e suas irregularidades terminava fa-lando da posse e propriedade. Se os livros eram muitos e as ofertas também, nada como marcá-los com o símbolo da Real, que mostrava posse e pertença. Afinal, é assim que se dá personalidade a uma biblioteca.

Não obstante, a publicação de um estatuto não era tarefa isolada. Mesmo an-tes da Independência, e a despeito das oscilações próprias a uma instituição como

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essa, a Real ia se firmando e contratando pessoal. Logo após a emancipação, novos bibliotecários e ajudantes entraram na lista de serviço da Livraria.31 Contando com a assinatura de José Bonifácio e com o beneplácito do Império, o estabeleci-mento não só se tornava, em 13 de setembro de 1822, imperial e público, ao invés de real, como ganhava reforços. Como o padre Dâmaso a essa altura já havia par-tido para Portugal e Luís Marrocos acumulava o cargo de oficial da Secretaria de Negócios do Império, para cobrir lacunas da política e do tempo chamou-se o frei Antônio d'Arrábida, que, seguindo a tradição, além de religioso, era confessor de d. Pedro i.32

Dessa maneira, incorporada ao Estado, a Biblioteca continuaria a dele depen-der, assim como estaria a seu dispor. Em 23 de maio de 1823, por exemplo, pela Portaria 1-, colocaria suas obras à disposição da Assembléia Geral Constituinte e Legislativa. Na verdade, o interesse inesperado era pelos livros de "jurisprudência ou ainda alguns outros que forem necessários para a conveniente ilustração dos negócios que se tratam nas sessões da mesma Assembléia". O documento que fora publicado no Diário do Governo, em 4 de junho de 1823, revelava ainda usos ines-perados de uma livraria: em tempos de independência servia, também, para a con-formação de leis, ou para a justificativa de medidas e decretos.33

E, assim, nesses primeiros anos de país recém-independente, enquanto se lutava pela permanência da Biblioteca, políticas foram implementadas visando à compra de livros e à tomada de providências para seu melhoramento. Pela Por-taria 2-, junto com medidas concernentes à educação pública, novas providências eram expedidas objetivando "o progresso do conhecimento literário em benefí-cio da mocidade". Para tanto, a abertura da Biblioteca ao público era considera-da fundamental para que "a nação, estudiosa e instruída, não padeça detrimento quando pretende consultar autores". Uma nova nação deveria ser "estudiosa e instruída" e a portaria, expedida pela Secretaria de Negócios do Império, pedia que o bibliotecário da referida instituição empregasse esforços na compra de no-vas coleções, como a do falecido doutor Francisco de Melo Franco, que se achava à venda. Negócios havia, mas a verba era curta; por isso ajuizava-se que seria de bom alvitre vender obras duplicadas a fim de conseguir recursos para o cumpri-mento da ordem.34

E, como profissionais especialistas em classificações, cada um dos prefeitos trataria de melhorar as regras existentes. Não é de causar espanto que já em 31 de outubro de 1827 um novo regulamento da Biblioteca Imperial e Pública fosse esta-belecido, atentando agora para o novo momento de país independente. A Biblio-teca ficaria aberta todos os dias, das nove horas da manhã até a tarde, exceto aos domingos, dias santos e de Grande Gala da Corte. Seriam admitidas todas as pes-soas "que se apresentarem decentemente vestidas e sem capote", para as quais se emprestariam todos os livros que pedissem, assim como se lhes forneceriam "pa-pel, pena e tinta para fazerem apontamentos". No entanto, tanta permissividade escondia velhas regras: ninguém podia levar emprestados livros da Biblioteca, sem "licença de sua majestade o Imperador e Ordem escrita, a qual ficará guardada

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para justificar o bibliotecário, e servir de título à sua reclamação". Tampouco era permitido aos consulentes tirar livros das estantes ou recolocá-los; após a leitura, deveriam ser imediatamente devolvidos. Pedia-se também decoro próprio a u m a biblioteca onde se deviam guardar o "respeito e o sossego": era "rigorosamente proi-bido passear, falar em alta voz e travar disputas, ainda m e s m o científicas". Ficavam igualmente vedadas "longas conversações quer entre os indivíduos admitidos, quer destes com os empregados, seja debaixo de que título for". Também não se passava "além da sala pública de leitura, sem expressa licença e os que a obtiverem serão acompanhados por um empregado". Os termos eram rigorosos e as proibições ex-plícitas, mostrando, pela própria necessidade da nova regra, como a burla devia ser mais normal do que se imaginava. A Biblioteca era pública, o número de leitores aumentava e novas regras impunham-se para regular o cotidiano da instituição.

E chegavam reforços. Além do bibl iotecár io-em-chefe (um) , havia o a judante bibliotecário (um), oficiais ajudantes (três), amanuenses (dois), empregados ser-ventes (quatro), livreiro encadernador ( u m ) e escravos (dois). A terminologia mu-dava — de prefeito a bibliotecário —, aumentava o pessoal, e dois escravos entra-vam para auxiliar nas tarefas mais pesadas. C o m o se pode bem notar, a escravidão alcançava até o mundo dos livros, e uma instituição que guardava centenas de obras que a condenavam.

E a cada um a sua função. O bibliotecário, como sempre, tinha o governo do estabelecimento: "Regulamenta, [... ] vende, fiscaliza, e promove tudo o quanto lhe convém. Responde e dá contas a sua Majestade o Imperador pelo Ministro Se-cretário de Estado dos Negócios do Império". Já o ajudante bibliotecário guardava

S. Frei Antônio dArrábida (1771-1850) bibliotecário em tempos de independência. FBN

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a casa, vigiava os empregados e substituía seu superior quando este era obrigado a se ausentar. Descendo na hierarquia chegamos aos oficiais ajudantes, que tinham como tarefa "formar os catálogos, arranjar os livros segundo o sistema que lhes der; [... ] de dar os livros e de os receber das pessoas que os pedirem, de os reporem em seu lugar, de vigiarem quem entra e o que faz, e como está [...]". Novidade nesse mundo, os amanuenses deviam "ocupar-se em geral da escrituração de tudo quan-to lhes for ordenado; e em particular, na da administração a relações exteriores". Serventes são sempre serventes, aqui ou em qualquer lugar, em tempos de colônia ou de império, e ficavam "obrigados a varrer e vasculhar as casas, a limpar os livros, estantes, e bancas e a tudo o mais quanto a bem do serviço interior e exterior da Biblioteca lhes for mandado pelo Ajudante". Havia ainda o livreiro encadernador, que "responde por tudo quanto pertence à sua ocupação, trabalho e oficina". Para terminar vinham os escravos que faziam o serviço ainda menos especializado: "São para o serviço grosseiro de limpeza, acarretar águas, lavar as casas, conduzir pesos, e coisas recebidas de fora. Só o ajudante bibliotecário poderá empregá-los e no que julgar conveniente ao bem do serviço".

A Biblioteca crescia e os empregados tinham ordens mais claras:

Todos e cada um dos empregados deverão aparecer no emprego às oito horas da manhã e não sairão senão depois da uma da tarde; voltarão às três e se recolherão à Ave Maria; exceto quando por qualquer motivo a Biblioteca deva estar aberta até mais tarde para o serviço de Sua Majestade o Imperador [... ] Ninguém poderá faltar, nem mesmo sair da Biblioteca, enquanto estiver aberta, sem licença. Quando por doença ou outro qualquer repentino obstáculo não puderem comparecer serão obrigados a dar prontamente parte ao ajudante bibliotecário [... ] Todos serão obrigados por turno de um a um a meterem guarda no Domingo, Dias Santos e de Grande Gala da Corte, apresentando-se e saindo de manhã e de tarde às mesmas horas de outros dias. Ne-nhum empregado poderá levar consigo livro ou Escrito algum a ela pertencente, seja porque tempo for, nem debaixo de pretexto ou garantia qualquer. Nenhum poderá admitir visitas, nem entreter longas conversações na sala pública da leitura durante o tempo em que estiver aberta e, quando fechada, não dará entrada a ninguém sem pré-via licença do ajudante bibliotecário [...].

O número de "nãos" é sempre superior ao de "sins", e dessa maneira o do-cumento avançava fixando normas, comportamentos e interdições para consulen-tes e funcionários: nada que uma boa regra deixe de dar conta.

Por fim, e para complementar, institui-se o livro de ponto para punir ainda mais o não-cumprimento das obrigações: os empregados que chegassem tarde ou faltassem ou que saíssem sem retornar teriam seus dias descontados na forma de faltas.35

Novos tempos, velhas medidas e problemas nada originais. Assim, embora a Biblioteca ressurgisse no contexto do país independente, ocupando posição mais consolidada, nem por isso seus entraves se encontravam sanados ou alterados. No

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"Quadro demonstrativo sobre o estado atual da Biblioteca Imperial e Pública", re-digido em 1831, Arrábida reclamava do estado dos livros nestes termos:

O estado dos livros em grande parte é lamentável. Escaparam dos incêndios, que atea-do ao pé deles devorou o palácio. Sofreram mudanças, encaixotamento, embarque pre-cipitado e monstruosa abertura, mais e mui repetidas colocações, ataques constantes de bichos, entre eles o devastador cupim, que mina o edifício e por cúmulo, bárbaro trato, sendo cortadas as capas que apareciam furadas.

Enfim, fazendo da história uma boa sucessão de desastres, o prefeito de então clamava por ajuda e se queixava — como sempre — dos funcionários, que naque-le momento eram doze: bibliotecário-em-chefe (um); ajudante bibliotecário (um); oficiais ajudantes (quatro); amanuense (um); empregados serventes (quatro); li-vreiro encadernador (um).36

As despesas cresciam e o orçamento não, como demonstra novo documento do ano de 1830.37 Pagava-se pelo aluguel do local, pela jornada dos escravos, além da remuneração do pessoal regular, o que implicava uma soma de gastos fixa bas-tante elevada, sem a devida compensação do Estado. Mas tinha idéias o nosso bibliotecário. Pretendia abrir créditos no exterior para a compra de livros, escolher as obras que fossem importantes e mandá-las vir por correio. Além do mais era pre-ciso, segundo o bibliotecário, prosseguir com a reencadernação da maneira mais eco-nômica e com a classificação das obras. Lembrava ainda nosso queixoso Arrábida que "o número de empregados é o menor possível vista a interior divisão do Edifício e o destino da Livraria Pública, trabalhoso cuidado que os livros por mui-tas razões aqui exigem e o regime singular que um tal estabelecimento requer". Para solucionar tal problema pedia, sempre, aumento nas gratificações, excluindo-se a remuneração dos escravos, bem claro.38

De muitas queixas vive um bibliotecário, e esse é quase um estilo da profissão — falta de funcionário, salários diminutos, pouco pessoal —, mas uma questão em especial os aflige de perto, sobretudo no caso de livrarias públicas: o empréstimo. Por isso, logo que foi possível regulou-se a saída de livros.

[... ] Haverá um livro numerado e rubricado pelo bibliotecário no qual fará este escre-ver por um dos empregados que nomear para tal fim, termos ou assentos que conte-nham a data das ordens do Governo, autorizando os empréstimos, os nomes das pes-soas em favor de quem foram elas expedidas e a designação e qualificação das obras, conforme o modelo junto. Em seguimento a esses termos ou assentos e os que recebe-rem os livros escreverão e assinarão os recibos em que declarem o número dos volu-mes emprestados, a data do recebimento, e o tempo que os demorarão em seu poder, o qual será designado pelo bibliotecário, conforme o modelo. Findo os prazos decla-rados nos recibos, serão os livros restituídos à Biblioteca, ou prorrogados os prazos se assim for requerido e o bibliotecário convier. Nesse caso, repetir-se-ão os termos ou assentos e os recibos na forma acima determinada. Feita a restituição dos livros, o

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bibliotecário mandará pôr à margem dos assentos e recibos respectivos as competen-tes verbas de descargas e as assinará. Se os livros não forem restituídos espontaneamen-te, o bibliotecário procurará reavê-los pelos meios competentes.39

"Reaver um livro" poderia virar caso de polícia, tal a "aflição" que manifesta-va o bibliotecário com a preservação de seu acervo. E, para melhorar ainda mais, seguia-se ao documento um prático modelo de empréstimo, que vinha para con-tornar dificuldades:

MODELO DATA Na Em conformidade do Aviso do Secretário de Estado dos Negócios do Império de ... foi autorizado o bibliotecário da Biblioteca Nacional a entregar ao Sr abaixo assinado as obras por ele exigidas cuja designação segue, a saber Ia (Nome da obra) 2 vol ene 2a " " 1 vol broc Estas obras . . . lhe foram entregues completas e em bom estado, não recebendo a obra tal também pedida por não haver na Biblioteca (ou estar emprestada). Eu abaixo assinado recebi as obras mencionadas ... constando de ... volumes, conforme declarado, as quais pretendo conservar em meu poder durante três meses (ou 15 dias) contando de hoje, e me obrigo a entregar / findo o prazo fixado. Assinado ...

Assim, com o aparelhamento da Biblioteca chegavam as regras, os emprésti-mos, os funcionários, as verbas (e a falta delas), e as classificações, que ficavam cada vez mais complexas. Em documento da época os livros surgiam divididos nos se-guintes temas: Teologia (a maior parte), Jurisprudência, Direito Econômico, Ciências Exatas, Filosofia, Lógica, Moral, Metafísica, Política, Economia Política, Educação da Mocidade, Química, História Natural, Medicina, Matemática, Artes, Militar, Náutica, Artes Oficiais, Música, Ginástica, Belas-Letras, Estudo das Línguas, Poesia, Poemas Épicos, Elegias, Poesia e Prosa, Contos, Romances e Novelas, Filologia, Co-rografia e Topografia, Viagens, História Eclesiástica, História Antiga, História Mo-derna, Memórias Históricas, Antigüidades, Numismática, História Literária, His-tória Diplomática e História Acadêmica.40

Mas, a despeito das melhorias, os bibliotecários insistiam mesmo era na lamú-ria. Observe-se mais este documento de 1831, dando conta do "estado violento" da livraria e de seus funcionários:

[... ] Uma simples inspeção à face das Estantes, à vista dos Livros e do Catálogo Sis-temático a que vou procedendo, provaria os primeiros artigos do seu Estado. Os outros são de tal evidência, que eu os deixo à ponderação, ao zelo e à justiça; e estou certo [de] que concordarão comigo em ser estado violento aquele em que se acham os Emprega-dos, que trabalham todos os dias, e todo o dia; que deles se exige asseio, e decência, e em alguns particular saber.

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Arrábida reclamava dos livros só amarrados com cordéis, dos gastos imprevis-tos com o edifício, da falta de orçamento; isso tudo longamente, e não sem se des-culpar por ser "enfadonho" nessa política que implicava a constante reiteração.41

Interessante o estilo da carta. A queixa está presente em cada parágrafo mas não se chega a dizer o que objetivamente falta. É como se, diante da grandiosa re-presentação da Biblioteca, restasse ao bibliotecário apenas a fala repetitiva, o pedi-do constante e uma imensa barreira entre representação e realidade. De um lado, a imagem gloriosa desse acervo de milhares de títulos, tão raros como belos e sele-cionados. De outro, a mesma toada de sempre: a eterna carência. Mas, se faltava tudo, também faltava público para tantos livros e outros que eram constantemente ofertados por comerciantes de livros, como o senhor Edwin Tross, livreiro em Paris. Em resposta a eles nosso bibliotecário não titubeava em confessar que "o público estudioso do Rio de Janeiro, pouco numeroso, pouco interesse tem por estas curio-sidades, e sua preferência, com razão sem dúvida, as boas obras modernas, com a ajuda das quais podem acompanhar o movimento tão rápido das Ciências e das Letras na Europa...".42 Ao que tudo indica, a Biblioteca era mais freqüentada por padres, que se acomodavam bem nas carteiras para ler e refestelavam-se com a tinta e o papel que estavam sempre à mão.43

Com a chegada dos anos 1850 encontramos a livraria instalada no mesmo local provisório, no hospital da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, divi-dida em dois corpos formados por duas salas paralelas de 102 palmos de compri-do e 28 de largo e um corredor com que se comunicavam cinco gabinetes. Van-gloriava-se, o bibliotecário da vez, de que em todos os cômodos havia estantes de madeira, classificadas e distribuídas pelo sistema de Bure.44 Assim, com suas salas separadas, estantes especiais e pessoal preparado, a Biblioteca parecia a mesma, tanto no que se refere aos méritos como aos problemas apresentados. Pior ainda, agora os males da localização vinham à tona e com impaciência se solicitava a trans-ferência do acervo que restava contíguo aos "caixões cheios de ossos humanos, urnas e outros objetos que [...] tinham sido depositados no mesmo lugar". Alegava-se, então, que a remoção de tais "objetos incômodos" deveria ser definitiva, uma vez que no seu lugar ficariam novas salas da Biblioteca. E as brigas entre o pessoal da Bi-blioteca e os religiosos não paravam por aí. Além de guardar ossos humanos em locais indevidos, a Ordem Terceira do Carmo teria invadido espaços que não eram seus, retirando aposentos destinados à Biblioteca.45

Já estamos um pouco afastados de nosso tempo, mas vale o desvio apenas para anotar como os problemas não terminavam: a Ordem Terceira ocupava cada vez mais espaços e continuava a dar trabalho a nossos preocupados bibliotecários. Esse pulo no tempo nos ajuda a "pescar" uma última imagem reveladora das pequenas dimensões de nossa Biblioteca: nada comparado às suas enormes pre-tensões. Em documento datado já dos anos 1850 o bibliotecário na época — frei Camilo Monserrate46 — nos lega importante descrição da Livraria, que pouco mudou:

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Ela forma um edifício quadrado dividido em dois andares: um no nível da rua, outro elevado a 50 pés do solo, sobre um sótão. O andar inferior, independente de um ves-tíbulo e de um pequeno corredor, compreende, sobre o nome de armazém, uma grande sala de forma de paralelograma, vista da fachada do batimento, com algumas janelas e colunas. O primeiro andar compreende o vestíbulo e uma escada com dois braços. Duas grandes salas paralelas entre elas e a fachada são destinadas ao públi-co. Uma tem o nome de sala de História; a outra foi nomeada sala de Ciências. Existem cinco pequenas salas, sendo que destas cinco são sobre a façada e se comu-nicam entre as duas grandes salas citadas. Há outra sala longa e outra sala do arqui-vo, ainda no mesmo plano. Todas essas salas estão atualmente ocupadas com o depó-sito de coleções, representando uma superfície de ... metros [o documento não dá a referência] ,47

Mas utopias sempre existiram e continuavam a existir, sobretudo diante da importância da Livraria no cenário local. Deixemos frei Camilo Monserrate defi-nir como deveria ser, na sua concepção, o local ideal para uma livraria pública. O bibliotecário sonhava com um edifício freqüentado por um público interessado e por estrangeiros estudiosos; com uma construção monumental que não deveria nem estar longe da cidade nem próxima demais de algum centro comercial ou das residências para evitar o perigo de incêndio, o barulho ou insetos; com um terre-no próprio para permitir aumentos e reformas; com salas grandes, altas, onde o ar e a luz circulassem livremente; com salas cômodas para o estudo; com uma certa elegância, contando com alguns objetos de arte e um gramado bem arbori-zado e com salas de menor proporção para receber coleções especiais e edições raras.48

O documento revela também as utopias desses bibliotecários que apostavam alto e nunca deixavam de lembrar o que uma Biblioteca desse porte deveria ser — uma bela representação da nação.

Sendo uma Biblioteca um estabelecimento não somente de utilidade como também de representação e sinal de cultura intelectual da nação, não seria talvez indiferente de escolher para este edifício um lugar freqüentado pela parte ilustrada da população da Corte.

Mas, em contraposição a essa imagem, a realidade era outra:

Com efeito os batimentos do antigo hospital das Carmelitas independente[mente] das reclamações, [... ] não são nem vastos, nem claros, nem salubres para oferecer uma situação de segurança para as coleções e um uso cômodo do público nas condições de-sejáveis. Pode-se dizer que até o presente, malgrado a importância e o valor dos obje-tos da Biblioteca, a freqüentação do público é limitada e só um pequeno número de cidadãos aproveita dela.49

Nada é perfeito, sobretudo nessa biblioteca em que faltavam acomodações apro-priadas ou mesmo consulentes, que pouco freqüentavam o local. A Livraria até

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ganharia um novo espaço, embora não definitivo, em 1858, com todo o trabalho que uma mudança desse tipo poderia implicar. No princípio desse ano a Biblioteca Nacional é removida para o prédio nacional do Largo da Lapa, numa operação que levou três meses.50

De toda maneira, e apesar da nova localização, é bom lembrar, mesmo com o perigo de vencer pela insistência — bem ao estilo de nossos bibliotecários —, o abismo existente entre as descrições dos profissionais e o tamanho das aspirações. De um lado, vamos deixando nossa Biblioteca, que de Real virou, em 1822, Im-perial e Pública, e só em 1876 (pelo decreto na 6141) Nacional — com a nomen-clatura acompanhando o crescimento da representação —, tomados pelas queixas dos bibliotecários51 que só reconheciam carências: de pessoal, de recursos, de li-vros, de aquisições, de manutenção, de ordem, de silêncio, de asseio e até de públi-co. De outro, fica a representação mais externa, apartada do cotidiano, que encon-tra na Biblioteca sua boa tradução: um exemplo da nação, um resumo dela. Mais uma vez não é o caso de apostarmos em uma das faces da questão e, assim, fique-mos com as duas. Os problemas sempre foram os mesmos, assim como se redese-nharam em locais diferentes receios semelhantes que falavam do medo do fogo, da perda de livros, da sua deterioração e do empréstimo indevido. Contudo, se as angústias não são originais, tampouco as representações o são. Não há nação que se queira independente sem sua Biblioteca que se converte, rapidamente, numa es-pécie de espelho e demonstração. Por isso, e a despeito de tantos problemas inter-nos, para uso externo o melhor era dizer, em alto e bom som, que o Brasil, recém-independente, possuía a melhor biblioteca do Novo Mundo e quiçá um exemplo para o Velho Continente. Se faltava tradição, sobravam exemplares da cultura européia e da Ilustração. Como "alfaia preciosa", "adorno principal", "sinal da cul-tura intelectual da nação", a Biblioteca conferia tradição a um Império novo, nas Américas, e cercado de repúblicas por todos os lados. Quase como adereço, prova de erudição, nossa Livraria ganhava lugar na representação dessa nação, que luta-va para se afirmar como tal.

LÁ EM PORTUGAL

Voltemos pela última vez a Portugal, para encontrar nosso rei d. João preocu-pado com mais um golpe de sua esposa e com a agenda financeira contornada, mas não resolvida. Já a situação de sua Biblioteca na Ajuda era dramática. Em setembro de 1811, saíra a última remessa de livros daquela Livraria, nos 87 caixotes trazidos pelo servente José Lopes Saraiva e por Alexandre Antônio Neves Portugal, que gerenciava a Real Biblioteca desde 1806.52 Com efeito, todo o acervo havia sido transferido para o Rio de Janeiro e quase nada sobrara para administrar. É certo que nem tudo ficou absolutamente estagnado. Em 1813 começaram a chegar as "propinas" da Impressão Régia de Lisboa, enviadas pela Mesa do Desembargo do Paço por ordem de d. João. Em 1819 João Monteiro da Rocha doou sua biblioteca

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a d. João. Segundo Marrocos,53 a ordem era que ela fosse enviada para o Brasil, mas acabou ficando em Portugal, sendo incorporada à nova Biblioteca da Ajuda so-mente após a morte de d. João, já no reinado de d. Maria II.54

No entanto, nada contornava o fato de que a antiga Real Biblioteca permane-cera no Brasil e, se existia em Lisboa o acervo da Real Biblioteca Pública, fazia falta uma "livraria do rei", nos moldes daquela que restara definitivamente em terras tropicais. A situação política era difícil, o Palácio da Ajuda — onde se instalava a Biblioteca — continuava inacabado, mas de todo modo uma Livraria Real parecia necessária, como se fosse um espelho do reino ou conferisse crédito a esse monar-ca desacreditado

A idéia, então, foi reunir o maior número de livros e reerguer a velha mitolo-gia da livraria dos reis. E, para tanto, em 1825 uma nova campanha é empreendi-da, visando agora levantar uma instituição que, naquele contexto, era só forma. A saída dificilmente seria batalhar para trazer os livros ao continente europeu: não havia tempo, muito menos vontade política e recursos financeiros. Além do mais, a essas alturas, a sorte estava selada e se recebera uma boa soma em troca da Bi-blioteca.

Assim, apelou-se, em primeiro lugar, para os acervos existentes em Portugal, em especial à Real Biblioteca Pública, cujos exemplares duplicados foram requi-sitados pelos Avisos de 1825. Argumentou-se ainda que, achando-se a Real Biblio-teca Pública

assaz enriquecida de muitas obras, não precisava aplicar para a compra de livros toda a consignação que recebia do Real Erário, a qual, em tais circunstâncias, podia dividir-se em partes iguais, destinando-se uma delas para o aumento da Real Biblioteca do Palácio de Nossa Senhora da Ajuda.55

A reação não foi das mais cordiais, como se pode presumir, uma vez que esta-va em questão restabelecer a ordem também no mundo dos livros — e dividir ver-bas. Com a volta do rei, chegava toda a sua entourage e, se a antiga Biblioteca não aportara com ele, ao menos a idéia de constituir um novo acervo de uso próprio — que lembrasse seu nome e perpetuasse sua imagem — continuava presente.

A batalha nesse mundo dos livros apenas se reiniciava. Nos Avisos de setem-bro de 1826, não são poucas as queixas que transparecem quanto ao descaso dos funcionários da Real Biblioteca Pública, que relacionam livros não enviados, ou remetem obras sem importância, duplicadas ou triplicadas. Mas rei que é rei não se dá por vencido, e d. João passou recibo, a 27 de setembro de 1825, requerendo que a Mesa do Desembargo do Paço entregasse um exemplar de todas as obras que recebera da Autoridade de Censura de Livros; a Real Biblioteca Pública, por sua vez, deveria remeter um exemplar de todas as obras duplicadas; e a Tipografia Régia ficava obrigada a enviar um exemplar de todas as obras por ela impressas. Por fim, el rei começou a investir no "lustro" e mandou construir mesas, bancos, escadas e tudo o que fosse necessário para equipar sua Real Biblioteca.55

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As respostas vinham de todos os lados, como esta, datada de 3 de novembro de 1825: "limo. Sr. Tendo se me perguntado aqui na secretaria se se haviam já expe-dido algumas ordens relativas à nova organização da Biblioteca Real no Palácio da Ajuda, remeto a V. Excia. o ofício do visconde de Vila Nova da rainha que as requi-sitou para me ordenar que se apressem".57 A ordem geral era ter pressa e trazer livros, duplicados ou não. Entretanto, ciosas de seus tesouros particulares, as de-mais bibliotecas faziam vista grossa, alegando qualquer desculpa a fim de evitar remessas, como a Mesa do Desembargo do Paço, que não enviou os livros proibi-dos, ou a Biblioteca Pública, que adiou a entrega dos duplicados. Funcionários da "Real" remeteram apenas livros maltratados e velhos, o que causou certo estranha-mento por parte da Coroa:

Não ter mais livros para remeter o que por certo não é crível atento o número e qua-lidades dos que têm vindo entre os quais não se encontram livros de Belas-Artes, nem autores clássicos, gregos, latinos e portugueses de quem sem dúvida há de haver gran-de número de duplicados, visto ter sido formada a Real Biblioteca de diferentes livra-rias, onde não deixaram de existir muitos daqueles autores...58

Como se vê, não parece que as ordens do rei iam sendo cumpridas à risca, uma vez que se omitiam obras de valor ou se esqueciam propositadamente livros clássicos e raros. A saída foi apelar para coleções mais desconhecidas, que ao menos enchessem as estantes vazias da Livraria, como se observa em documento datado de 7 de outubro de 1828. Nesse caso, examinou-se a livraria do conselheiro Ricardo Raimundo Nogueira, que possuía em torno de 100 mil volumes recebidos dos colé-gios jesuítas. No entanto, apesar de a coleção restar sem limpeza, toda comida por bichos, ainda servia ao objetivo de

reformosear e enriquecer a recém-nascida Biblioteca de Sua Majestade. O aumento de Sua Real Livraria dará não só a Portugal, mas ao mundo inteiro, uma idéia decisiva dos seus altos conhecimentos e do muito que ama e aprecia a literatura em geral, e todas as Ciências.59

As obras "quiçá" seriam de serventia, e sem dúvida embelezariam uma livra-ria sem livros, por isso, na mesma ocasião o bibliotecário não perdeu a oportuni-dade de "vender seu peixe" e conseguir credibilidade:

Quando a V. Excia. agrade esse meu pensamento e lhe pareça digno de expor a Sua Majestade, em tal caso,fará grande serviço ao Soberano, concorrendo para o adiantamen-to e esplendor de um estabelecimento que nas Cortes de toda a Europa civilizada como V. Excia. muito bem sabe faz o adorno principal e mais precioso dos Paços Reais e merece-rão com toda a justiça que as Letras o olhem e o reconheçam por seu valioso protetor.""

Vazias ou por preencher, as bibliotecas continuavam a representar "o adorno principal e mais precioso [bem] dos Paços Reais". Era por meio delas que se guar-

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dava ou exibia uma memória, que se ostentava erudição ou se reconhecia antigüi-dade. Para tanto valia tudo, até mesmo abocanhar coleções pequenas do Museu Histórico Nacional, ou outras de porte ainda mais diminuto.

Tudo servia quando a causa era boa, até transformar essa "casa de fachada" em novo Acervo Real. Talvez os livros não pudessem mais salvar a imagem de d. João. Talvez algo mais tivesse se quebrado e, mesmo recomposta, a Livraria não confe-risse alma ao rei. Mas deixemos essa história lá no velho continente — com suas disputas e querelas —, para fechar esta nossa, aqui nos trópicos.

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OS LIVROS E O DIABO

1. Sátiro oferecendo livros. Anônimo, FBN

Na história de um país ao qual todos nós devotamos igual venera-ção, de um país onde sempre se tributava atenção sob atenção, cari-nho sobre carinho, e até mesmo o culto sagrado que mereceis, houve um acontecimento horroroso, um crime de dimensões míticas [... ] No ano 213 a.C, por ordem do imperador chinês Shi-Hoang-Ti, usurpador brutal que ousou arrogar-se os títulos de "o primeiro, o sublime, o divino", foram queimados todos os livros existentes na China. Esse celerado, cruel, supersticioso era por demais inculto

para compreender a importância dos livros [... ] Simples conversas sobre o cancioneiro e o clássico manual de história chinesa eram punidas de morte. Queria-se exterminar a tradição oral junto com a palavra escrita.

Elias Canetti, Auto-de-fé

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Levou um livreiro a dente, De alfaces todo um canteiro, E comeu, sendo livreiro, Desencadernadamente. Porém eu digo, que mente, A quem disso o quer taxar, Antes épara notar, Que trabalhou como um Mouro, Pois meter folhas no couro Também é encadernar.

Gregório de Matos, Satírica

E o Brasil nasceu independente e já com sua Biblioteca como se fosse um pre-sente — dádiva de um lado só. Mas o que vem junto com u m a biblioteca, e por que se pagou tanto por essa? E, afinal, por que escrever a história da nossa independên-cia por meio de livros? Na verdade, como uma história iluminista, esta, que está para acabar, conta a sina de uma emancipação feita com livros. Segundo item de uma agenda pesada de requisições, nossa Real Livraria custara caro, mas simboli-zava muito. Era a Independência que se fazia portando tradição, ou eram os livros que carregavam eles próprios sinais de independência cultural e intelectual? Palco para queixas e reclamações, a Biblioteca oscilou em sua representação. Para dentro — e para uso interno —, era um poço de lamúrias: faltavam funcionários, livros, condições e até leitores. Para fora, porém, era sempre um trunfo; um cartão-pos-tal que conferia "longevidade", dava história e reconhecia continuidade para este país que vivia de seus m o m e n t o s inaugurais.

Frágil em sua história, nossa Biblioteca seria guardada na memória , c o m o tantas outras que resistiram a seu destino e vingaram tal qual muralhas. É porque na história das bibliotecas sempre se impôs esta mesma duplicidade: observadas internamente são frágeis e passageiras; vistas com maior distanciamento parecem in-destrutíveis. Alocadas em grandes edifícios e compostas por coleções de coleções, por livros milenares e documentos cuja data se perdeu, as bibliotecas guardaram u m a imagem de estabilidade e solidez que, na verdade, pouco combinou com seu destino. A história mostra como essas livrarias foram e cont inuam sendo destruí-das, seja por motivos naturais ou por conta da razão instável dos homens. E, cada vez que uma caía, tombava com ela uma parte da civilização. Foi assim com Ale-xandria, que durou apenas um século, e com ela — com seus 700 mil volumes — desapareceu parte do conhecimento disponível sobre a Grécia. Não por acaso os ingleses queimaram a Biblioteca do Congresso em 1814, e um novo acervo cultu-ral teve de ser construído. Foi assim quando Monte Cassino foi bombardeada, du-rante a Segunda Guerra Mundial, e perdeu-se b o a parcela do conhecimento sobre a Europa medieval. E, não faz muito tempo, a destruição da Biblioteca Nacional do Camboja , pelo K h m e r Vermelho, levou consigo o maior estoque de informações

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2. Folha de rosto do livro de Manoel de Andrade Figueiredo Nova Escola para aprender a ler, escrever e contar. Na imagem há uma alegoria do reino de Portugal, com dois anjos sobrevoando Lisboa e segurando o emblema do reino. FBN

sobre a civilização cambojana. Por sinal, esse era o objetivo de seus algozes, que pre-tendiam reduzir o passado a zero e recomeçar do nada: criar uma memória; inven-tar de novo uma mesma nação. Não por acaso destruíram 80% dos livros e mata-ram 57 dos seus sessenta bibliotecários.1 Como se vê, a história das bibliotecas é antiga e feita de destruições, mais ou menos intencionais. Mas a repetição pede aten-ção, e a insistência em queimar revela o objetivo de liquidar memórias e de tudo recomeçar.

Se não, como entender a famosa passagem de Dom Quixote, quando o barbei-ro e o cura lançam à fogueira os excomungados alfarrábios que já haviam pertur-bado demais a mente fraca de d. Alonso Quijano el Buenol O episódio é conheci-do e fala de uma armadilha bem empregada enquanto dom Quixote dormia, tentando descansar o corpo moído pela fadiga das pancadas que recebera ao dei-xar a estalagem que, por sua demência, ele imaginava ser um castelo. Nesse instante o barbeiro e o cura entram no cômodo onde estavam instalados os livros "culpa-dos" e lá acham mais de cem grossos volumes encadernados e outros pequenos: aí estava uma livraria endemoniada. Até a própria criada, em vez de impor resistên-cia, volta com água benta e pede ao sacerdote:

— Tome, Vossa Mercê, regue a casa toda com água benta, não ande por aí algum encantador, dos muitos que moram por estes livros, e nos encante a nós, em troca do que nós lhe queremos fazer a eles, desterrando-os.

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O cura, depois de rir da ingenuidade da serviçal, dá início a seu auto-de-fé, do qual salva, juntamente com o barbeiro, algumas obras de valor literário, e conde-na as que bem mereciam ir para o fogo.

T a m b é m François Truffaut contou, muitos anos depois, sua história de ficção científica por meio dos livros. Em Fahrenheit 451 o cineasta, baseado no romance de Ray Bradbury, narra o dilema de Montag, um responsável bombei ro que tinha como encargo queimar as obras que encontrasse: todas nocivas à modernidade. No entanto, Montag não estava livre do feitiço dos livros, e bastou a primeira leitura para duvidar de sua missão e de sua própria civilização.2

Isso sem esquecer o conto de ítalo Calvino "Um general na biblioteca", que narra um estranho episódio que ocorreu na Pandúria, "nação ilustre, onde u m a suspeita insinuou-se um dia nas mentes dos oficiais superiores: a de que os livros contivessem opiniões contrárias ao prestígio militar". C o m efeito, após u m a série de investigações percebeu-se que esse hábito tão difundido, "de considerar os generais c o m o gente que também pode se enganar e organizar desastres, e as guer-ras como algo às vezes diferente das radiosas cavalgadas para destinos gloriosos", era parti lhado por numerosos livros, m o d e r n o s e antigos, pandurianos e estran-geiros. Diante de tal constatação, o Estado-Maior n o m e o u u m a comissão de in-quérito para examinar a maior bibl ioteca local. Os militares tomaram posse num dia chuvoso, não sem antes fixar um cartaz proibindo a entrada: "por causa das grandes manobras , até que as concluam". Os estudiosos que costumavam freqüen-tar a bibl ioteca foram retirados, exceto o senhor Crispino, u m a espécie de velho

3 e 4. Biblioteca Chalcographica. Teodoro de Bry, FBN

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bibliotecário local. Procedeu-se então à divisão de tarefas, a cada tenente foi desig-nado um ramo do saber. Mas, como os militares não eram muito versados "em matéria bibliográfica", tiveram que recorrer a Crispino, enquanto procuravam desenvolver seu trabalho de censura. E, apesar de os primeiros relatórios saírem fáceis, os demais mostravam-se complicados: "A floresta de livros, ao invés de ser desbastada, parecia ficar cada vez mais emaranhada". Um livro levava a outro, os raciocínios tornavam-se mais históricos, filosóficos e econômicos, e daí nasciam discussões genéricas que duravam horas a fio. Depois do general e dos tenentes, os soldados seriam contaminados por essa mania leitora que assolou toda a tro-pa. O resultado é que pouco se soube dos trabalhos desenvolvidos pela comissão durante as longas semanas invernais. Por isso, quando o comando supremo — cansado de esperar — ordenou o término da investigação e a apresentação do relatório, obteve o que queria mas não como queria. "As idéias andavam brotan-do em suas cabeças", e finalmente a comissão entregou o parecer. No lugar de uma lista de obras censuradas, apareceu "uma espécie de compêndio da história da humanidade, das origens aos nossos dias, no qual todas as idéias para os bem-pensantes de Pandúria eram criticadas, as classes dirigentes denunciadas [... ] e o povo exaltado como vítima heróica das guerras e políticas equivocadas". A ex-posição era um pouco confusa, mas sobre o significado não sobravam dúvidas. A assembléia dos generais de Pandúria empalideceu, falou-se de degradação e pro-cesso. Porém, temendo-se escândalo maior, o general e os quatro tenentes foram mandados para a reserva por causa de "um grave esgotamento nervoso contraído no serviço". Fim da história, mas não tanto. Até hoje, vestidos à paisana, enca-potados para não congelar, freqüentemente os militares destituídos são "vistos entrando na velha biblioteca, onde esperava por eles o senhor Crispino com seus livros".3

Livros guardam memórias e encantamentos, e se travestem. Perturbam e exci-tam a fantasia, e às vezes irmanam o sonho com a ação. Por isso trazem tanto medo e pedem reação. E, se os conteúdos passam — os livros de cavalaria de Cervantes hoje são simples curiosidade literária, do mesmo modo que as obras da Ilustração perderam a velha capacidade de inspirar revoluções —, o poder alucinatório dos livros e das bibliotecas, seus grandes depósitos, continua presente.

E nosso caso é e não é diferente. Em primeiro lugar, há que se perguntar: por que as autoridades coloniais opunham tantos obstáculos à entrada de livros no Brasil? Assim como é certo que em todos os tempos criaram-se óbices à circulação de obras consideradas perigosas, também é inegável que tais atos nunca impediram que os livros fossem lidos, e muito lidos. E na América portuguesa o problema se-ria até maior, dada a proibição expressa da existência de universidades e da utiliza-ção da impressão. No entanto, mesmo assim — e a julgar pelas bibliotecas existen-tes —, pode-se dizer que até por aqui era possível ler os melhores ares do espírito do tempo.

Conforme escrevia Voltaire a D'Alembert, em 15 de agosto de 1769: "Adeus, meus respeitos ao Diabo, porque ele é quem governa o mundo". Era o demônio, na

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forma de transgressão, que por meio dos livros retirava a ordem das coisas e con-vidava a muitas libertações. Era do Diabo que se tratava; do espírito de Satã que se insinuava com seu melhor disfarce, por meio da letra de imprensa, perturbando os espíritos mais apaziguados e animando os incendiários. Por isso, repressão, des-truição e práticas de leitura sempre fizeram parte de um mesmo círculo vicioso quase que retroalimentado. Por isso as bibliotecas entraram nessa história de des-truições, já que, quando não estavam a favor das autoridades, estavam sempre con-tra, e em face disso acabavam sendo arrasadas.

Mas voltemos à nossa "Real Biblioteca". Depois da primeira destruição, vi-mos como se preserva, a todo custo, uma livraria. Uma biblioteca ao mar, uma biblioteca livre dos invasores e sobretudo uma biblioteca que se torna símbolo de independência; emancipação feita de atos mas com livros e por meio da sua posse. Utilizada para a composição de leis e decretos, ou meramente como um adorno da realeza, a Biblioteca se firmava adicionando sentidos à Independência. Com uma bela coleção de livros se recorria à história, com uma seleta livraria se falava de tradição numa terra de passado político recente. Diante do ato de emancipa-ção, breve e fortuito como são os atos humanos, recorria-se a esse acervo maravi-lhoso, dono de histórias que recontavam a sina de toda a humanidade. Entre o uso pragmático e a dimensão simbólica de sua inserção, fiquemos com os dois. Assim, nada como terminar voltando ao começo. Iniciamos este livro com um grande evento — o terremoto que destruiu a primeira Real Biblioteca — e termi-namos com outro: o Brasil independente e a Biblioteca com novo destino e situação.

Talvez seja boa idéia voltar a Borges, mais uma vez, concluindo que, "quando se proclamou que a biblioteca guardava todos os livros, a primeira reação foi de uma felicidade extravagante". Quem sabe pudéssemos nos referir, ainda, ao profes-sor Peter Kien — personagem principal do livro de Elias Canetti, Auto-de-fé —, eminente sinólogo, cuja obsessão eram os livros e sua seleta biblioteca, que lhe per-mitiam evitar o contato objetivo e prático com a realidade que o massacrava:

Cansado e enojado pela perturbação de seus pensamentos tranqüilos [... ] Kien tinha saudade de sua biblioteca [... ] quatro salas altas, as paredes revestidas de livros em toda a sua extensão, todas as portas de ligação sempre escancaradas, nenhuma janela imprópria, a luz uniforme vinda de cima, a escrivaninha repleta de manuscritos, tra-balho, trabalho, idéias, idéias, a China, controvérsias científicas, opinião contra opi-nião [... ] Kien o vencedor não numa luta de boxe e sim no entrevero de espíritos, sos-sego, sossego, o farfalhar reconfortante dos livros, nenhum ser vivo [... ]

Mas sua própria biblioteca, esse recanto escondido do espírito, o oprimia: "Dez mil livros e sobre cada um deles um fantasma acocorado. Por isso o silêncio era tão profundo. Às vezes ouvia-os virarem as páginas. Liam tão depressa como ele". Não há testamento possível para uma biblioteca, sobretudo quando há homens que "comem e roubam livros", dizia nosso delirante estudioso.4

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Tantos fantasmas habitam nossas bibliotecas repletas da utopia de conter a enormidade do conhec imento e de acumular toda a memória . Tantos demônios fa-zem parte dessa história feita de destruição e sucessivas recriações. E a sina da Real Biblioteca não escapou à regra e mostrou como os livros valem bem muitas via-gens, diversos fantasmas, vários espectros e tantas libertações.

5. Albrecht Dürer representa Erasmo de Rotterdam, 1526. FBN

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EPÍLOGO

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1. Ex-libris de Diogo Barbosa Machado. FBN

No Guia do Rio de Janeiro para viajantes, de 1884, podia ser encontrado o seguinte verbete:

Biblioteca Nacional. Rua do Passeio, 48. (Largo da Lapa, 48) Aberta todos os dias úteis das 9 às 2h da tarde e das 6 às 9h da noite [...] Instalações Funciona neste edifício, que é hoje acanhado, desde 1858. Foi construído para residên-cia, sua arquitetura nada tem de especial. No saguão há estátuas de d. Pedro i e d. Pedro II [... ] Em frente ao primeiro lance da escada acha-se em um nicho o busto em mármore branco de d. João vi, o fundador da Biblioteca. Na sala de leitura, ao fundo, vê-se o busto em bronze do falecido bibliotecário fr. Camillo de Monserrate, oferecido ao estabelecimento por João Baptista Calogeras. Histórico

Deve-se a d. João, que trouxe consigo, em 1808, a Biblioteca D'Ajuda, formada por d. José I para substituir a antiga Biblioteca Régia devorada pelo incêndio subseqüente ao terremoto de Lisboa de l2 de novembro de 1755. Em 1811 foi franqueada às pes-

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soas que obtinham licença prévia do príncipe regente. O arranjo e conservação iniciais foram feitos pelos frs. Gregório José Viegas e Joaquim Dâmaso, que elaboraram um catálogo manuscrito. Com a Independência, o governo brasileiro pagou 400 contos de réis por ela. Até 1858 funcionou na rua do Carmo. Acervo: Tem cerca de 200 mil obras, riquíssima em livros antigos, preciosos pela raridade, sobretudo nas coleções que dizem respeito aos clássicos, história antiga portuguesa e espanhola, direito e teologia. Edições antiqüíssimas, difíceis de se depararem no mercado da Europa. Possui uma coleção quase completa de dois clássicos da edição Elzeveriana, tão estimada e requisi-tada pela sua correção e que conta várias monografias especiais. É fértil em edições de quase todos os tipógrafos de Veneza, Basiléia, Antuérpia, Milão, Amsterdam, Nurem-berg, Roma, Paris, Lisboa, Évora, Madrid, etc. Assim, possui edições aldinas, platinia-nas, elzeverianas, dos Estêvãos, bodinianas, justines, etc. É extraordinário o número dos incunábulos que possui, isto é, livros impressos até 1536, segundo Panzer. A maior pre-ciosidade de todos os paleótipos é a Bíblia latina de Fust e Schoeffer de Mogúncia, impressa em 1462, em pergaminho, em dois grossos volumes, possuindo dois belos exemplares. É a primeira edição da Bíblia que traz data certa. Tem ainda: — D.Quixote, de Cervantes (2) (Madrid, 1797-98), feita por Pellicer, im-pressa em pergaminho e enriquecida de numerosas gravuras e cuja tiragem foi apenas de 7 exemplares. — Bíblia, em língua espanhola de 1553, conhecida sob o nome de Bíblia dos Judeus ou Bíblia de Ferrara (3), que é raríssima e est imada — Bíblia poli-glota (4), hebraica, caldaica, grega e latina, de Ximenes, impressa de 1514 a 1517, em 6 volumes de fólio. — Coleção Camoneana, com a primeira edição dos Lusíadas de 1572 (5). — Coleção das edições de Marília de Dirceu (6), de Thomaz Antonio Gon-zaga. — Coleção das obras do padre José Agostinho de Macedo. O estabelecimento divide-se em três seções: a de impressos e cartas geográficas, a de manuscritos e a de estampas. A maior curiosidade da Seção de Manuscritos é a Bíblia latina de 1300 (7), escrita em caracteres microscópios sobre finíssimas folhas de pergaminho. Aí também estão arquivados os registros das cartas escritas por Anchieta, Nóbrega e outros jesuítas, de 1549 a 1568, e enviadas ao Geral da Ordem em Lisboa. Na Seção de Estampas estão muitos desenhos originais e mais de 30 mil estampas, milhares dos mais famosos mestres de todas as escolas. Tem as conhecidas coleções de Barbosa Machado (8 e 9) e o Araujense, do conde da Barca (10), em 125 volumes de fólio grande, constando o Grande Theatro do Universo e das Antigüidades Romanas, que são as únicas de seu gênero no mundo. Encontram-se expostas na sala pública de leitura as seguintes obras: — As cinco famosas batalhas de Alexandre Magno (11), pintadas por Carlos Le Brun, gravadas em água-forte e retocadas a buril por Gerardo Audran e Gerardo Edelinck, de 1661 e 1678. — O retrato de Luís xiv (12) a cavalo, conhecido pelo nome de These da Paz, gravado por Gerardo Edelinck (13) em 1674. — A Destruição de Jerusalém (14), gravado por Merz, segundo Kaullbach. — O Hemyciclo do Palais des Beaux-Arts (15), em Paris, gravado por Henrique Dupont, segundo Paulo de Laroche. — O Panorama circular do Rio de Janeiro, gravado a água-tinta por Frederico Salathé. A coleção de numismática, apesar de ter sido iniciada há apenas dois anos, já é bastan-te rica [...]

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E P Í L O G O 4 2 7

TESOUROS DA REAL BIBLIOTECA

BI. K3XO IOÍD EN qjKK BE A MUA

2. El ingenioso hidalgo Don Quixote de la Mancha, por Miguel de Cervantes Saavedra. FBN

5 Os Lusíadas, de Luís de Camões. FBN

' —r •' ' * >"• "'W^*.

4. Bíblia poliglota, hebraica, caldaica, grega e latina, de Ximenes. FBN

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POR T. A G

IA U ã á A ^ s H H A

L>tr-'.f!trc tilcnau, (Clm <M/Í*

6. Marília de Dirceu, rfe Tomás Antônio Gonzaga. FBN

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i A L O N G A V I A G E M D A B I B L I O T E C A D O S R E I S

7 Bíblia latina, séculos XIII-XIV. FBN

8. Catálogo dos livros da livraria de Diogo Barbosa Machado, distribuídos por ele em

matérias, e escrito por sua própria mão. FBN

fArmx~ -

9. Catálogo dos k livros da livraria

de Diogo Barbosa y Machado. FBN '

V. v

10. Ex-libris do conde da Barca. FBN

11. Outro trunfo da Real: Entrada t r iunfante de Alexandre em Babilônia, por Geraldo Audran. FBN

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E P Í L O G O

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O i A L O N G A V I A G E M D A B I B L I O T E C A D O S R E I S

Estamos em 1884 e a Biblioteca, já em tempos do mecenato de d. Pedro li, con-tinuava a ser apresentada como um dos "adornos" do Império, assim como era sele-cionada para sediar o recebimento do primeiro telegrama submarino: modernida-de e tradição, tudo ao mesmo tempo. E lá está ela, a Livraria que, de jóia de d. João v, ressurgiu de um terremoto; que foi organizada como um modelo de Ilustração durante o governo de Pombal; que permaneceu em um barracão no sempre inaca-bado Palácio da Ajuda; que superou as invasões francesas e as tentativas de rapina-gem; que se meteu em caixotes e atravessou o Atlântico em três viagens sucessivas (uma em 1810 e duas em 1811, e não em 1808 como dizia o Guia)-, que sobreviveu a uma revolução em Portugal e a um movimento de independência no Brasil; que custou 800 contos de réis ao Estado (e não 400 como afirmava o verbete, abaixan-do seu valor); que soçobrou um pouco esquecida no edifício da Ordem Terceira do Carmo, ao lado de ossos humanos, nos tempos políticos instáveis do Primeiro Rei-nado, de d. Pedro i, e das Regências.

É certo que o Guia errava mais do que acertava nas informações que oferecia; a biblioteca não chegara em 1808, não custara somente 400 contos de réis, e a cole-ção do conde da Barca não possuía apenas 125 volumes — esses eram os referen-tes ao Grande teatro do universo. Mas, mesmo assim, acertava no essencial: a Bi-blioteca era digna de representar o Segundo Reinado e fazia bem as vezes de um Império culto e erudito.

E lá estava ela... ainda instalada provisoriamente, desde 1858, no Prédio Na-cional do Largo da Lapa, na rua do Passeio, 60, mas sempre presente quando se fala da nação, de seus méritos e feitos. A Livraria ganharia nova sede em 1910, na ave-nida Rio Branco, ao mesmo tempo que suas novas denominações acompanha-vam expectativas e projeções: de Real se transformaria em Imperial e depois em Nacional.

A Real Biblioteca é hoje conhecida como Biblioteca Nacional — acrescida em acervos, coleções e obras —, e, aberta ao público, representa um patrimônio que poucos brasileiros conhecem ou de que reconhecem a importância.

Fechamos este livro emocionados como da primeira vez em que conhecemos sua coleção de incunábulos belíssimos em seus tipos e dourados, os livros de horas com suas ilustrações vivas apesar dos riscos do tempo, os mapas ainda coloridos, as gravuras dos tantos mestres da pintura, os documentos estratégicos ou mera-mente curiosos e os livros raros que contam histórias que não têm fim...

Por isso a história de uma biblioteca não tem mesmo fim. Ele será aleatório como as classificações que tentam recortar um universo que é, por definição, infi-nito. Livros sempre fizeram voar e permitiram pensar na liberdade, e essa sim, não tem limites. Que a Biblioteca Nacional lembre essa história feita de tantas memó-rias, aventuras, lembranças, perdas e ganhos. Ela retraça, e a seu modo, a história de uma nação.

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E P Í L O G O

16. Ex-libris da Livraria do Infantado: a coleção destinada aos herdeiros da Casa Real. FBN

17. Estudo n" 1 para ex-libris da Biblioteca Nacional, escolhido

como definitivo em 1903. Elaborado por Eliseu Visconti, 1899-1944. FBN