15
Filosofia Nov 2014 A rede conceptual da ação A Filosofia da Ação é uma área interdisciplinar que colhe contributos da Metafísica, da Filosofia da Mente, da Psicologia e da moderna Teoria da Decisão. O objeto de estudo da Filosofia da Ação é a justificação da crença na racionalidade da ação humana. Distingue-se da Ética por não considerar os aspetos morais do agir, analisando apenas o que está na base da ação crenças, desejos, intenções, motivos e causas. O seu método consiste na análise das frases de ação, mediante as quais os agentes descrevem e explicam o que fazem: «Por que fizeste X?» - «Fiz X porque __________ » O problema central da Filosofia da Ação é o de saber: Como compatibilizar a crença de que somos seres racionais com o facto de agirmos frequentemente de forma irracional? Exemplos de problemas discutidos em Filosofia da Ação: 1. O que são ações? Que acontecimentos contam enquanto ações? 2. Como individuar ou distinguir as ações umas das outras? 3. Como explicar a existência de preferências irracionais? 4. Como compreender o fenómeno da acrasia? Para compreender o que está em causa quando perguntamos «O que é uma ação?», analisemos o seguinte exemplo: 1. João deseja herdar uma fortuna e crê que o melhor a fazer para satisfazer o seu desejo é matar o seu pai abastado. Mas este pensamento põe-no tão nervoso que, ao conduzir desajeitadamente o seu carro, mata um peão que é, afinal, o seu pai! Cometeu ou não um parricídio? A atribuição da responsabilidade depende de determinarmos se a morte de seu pai constitui, ou não, uma ação de João. Temos, então, de procurar qual é o aspeto que nos permite dizer que um acontecimento é uma ação.

A rede conceptual da ação

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A rede conceptual da ação

Filosofia Nov 2014

A rede conceptual da ação

A Filosofia da Ação é uma área interdisciplinar que colhe contributos da Metafísica, da Filosofia

da Mente, da Psicologia e da moderna Teoria da Decisão.

O objeto de estudo da Filosofia da Ação é a justificação da crença na racionalidade da ação

humana.

Distingue-se da Ética por não considerar os aspetos morais do agir, analisando apenas o que está

na base da ação – crenças, desejos, intenções, motivos e causas.

O seu método consiste na análise das frases de ação, mediante as quais os agentes descrevem e

explicam o que fazem:

«Por que fizeste X?» - «Fiz X porque __________ »

O problema central da Filosofia da Ação é o de saber:

Como compatibilizar a crença de que somos seres racionais com o facto de agirmos frequentemente

de forma irracional?

Exemplos de problemas discutidos em Filosofia da Ação:

1. O que são ações? Que acontecimentos contam enquanto ações?

2. Como individuar ou distinguir as ações umas das outras?

3. Como explicar a existência de preferências irracionais?

4. Como compreender o fenómeno da acrasia?

Para compreender o que está em causa quando perguntamos «O que é uma ação?», analisemos o

seguinte exemplo:

1. João deseja herdar uma fortuna e crê que o melhor a fazer para satisfazer o seu desejo é matar o

seu pai abastado. Mas este pensamento põe-no tão nervoso que, ao conduzir desajeitadamente o seu

carro, mata um peão que é, afinal, o seu pai! Cometeu ou não um parricídio?

A atribuição da responsabilidade depende de determinarmos se a morte de seu pai constitui, ou

não, uma ação de João.

Temos, então, de procurar qual é o aspeto que nos permite dizer que um acontecimento é uma ação.

Page 2: A rede conceptual da ação

Filosofia Nov 2014

Será a sua associação a um ser humano? Mas há acontecimentos que envolvem pessoas, mas

que claramente não são ações – por exemplo, escorregar.

Será a existência de movimentos corporais? Mas há ações sem movimento corporal (estar

imóvel a estudar) e há movimentos corporais que não são ações (respirar).

Uma outra resposta a este problema afirmaria que a intenção é aquilo que distingue os

acontecimentos que contam como ações:

Um acontecimento é uma ação apenas no caso de ser possível descrevê-lo de forma a exibir a

presença de uma intenção no agente.

O que é uma intenção? É um estado mental mediante o qual se concretiza, se anula ou se

mantém um certo estado de coisas.

Os desejos e as crenças, e o seu discutido papel causal nas ações, são exemplos de estados

mentais intencionais.

No exemplo 1, existe claramente um desejo (herdar uma fortuna) e uma crença, e parece que à

custa deles João concretiza um acontecimento – a morte de seu pai. Tudo aponta, pois, que se trate

de uma ação de João. Concordas?

Para compreender o que está em causa quando perguntamos «Como distinguir as ações umas

das outras?», analisemos o seguinte exemplo:

2. Os membros de uma família estão sentados à mesa a comer uma feijoada. Estão todos a fazer a

mesma ação ou ações diferentes?

Por um lado, podemos dizer que todos os familiares estão a comer a mesma coisa, no mesmo local

e à mesma hora;

Por outro lado, cada pessoa poderá possuir intenções diferentes ao comer (apenas matar a fome,

regozijar-se com o sabor dos feijões, etc.) e os seus movimentos físicos não são inteiramente

coincidentes nem no espaço nem no tempo.

Existem, então, duas respostas possíveis para aquela pergunta:

1. Diremos «sim» se considerarmos a ação «comer uma feijoada» como sendo um ato genérico definido

como «ingestão de feijões».

Page 3: A rede conceptual da ação

Filosofia Nov 2014

2. Diremos «não» se considerarmos a ação «comer uma feijoada» como algo realizado concretamente

por alguém, nalgum lugar, a alguma hora e com movimentos físicos individualizados.

� Cada uma destas respostas traduz duas conceções filosóficas diferentes da ação:

1. A ação como uma entidade genérica e abstrata; para os filósofos que, como Jaegwon Kim, a

concebem deste modo, uma ação é algo meramente ideal (tal como a ideia de Triângulo) e que pode

ser exemplificado cada vez que um agente a perfaz (tal como exemplificamos a ideia de Triângulo ao

desenharmos uma figura triangular);

2. A ação como acontecimento concreto; para filósofos que, como Donald Davidson, a concebem

deste modo, as ações são acontecimentos localizados no espaço e no tempo (têm lugar num certo

sítio e a uma dada hora) e são individualmente realizados

(feitas por alguém);

Qual destas conceções consideras correta? Porquê?

Para compreender o que está em causa quando perguntamos «Como explicar a existência de

preferências irracionais?», analisemos o seguinte exemplo:

3. Uma pessoa afirma que prefere os Limp Bizkit a Norah Jones e esta cantora a Bach. No entanto, diz

preferir Bach aos Limp Bizkit. Como explicar esta irracionalidade das suas preferências?

Dizemos que as suas preferências são irracionais porque são não transitivas.

O que é a transitividade? É uma propriedade de relações: se uma entidade X tem uma certa

relação com uma entidade Y e se esta entidade Y tem o mesmo tipo de relação com uma entidade Z,

então a entidade X está nesse tipo de relação com a entidade Z. Exemplos:

1. O Zé é mais alto do que o Chico; o Chico é mais alto do que o Quim. Logo, o Zé é mais alto do que o

Quim. A relação ser mais alto do que é transitiva.

2. O Guilherme é o pai do Pedro; o Pedro é o pai da Joana. Mas o Guilherme não é o pai da Joana! A

relação ser pai de é não transitiva.

Ora, as ações são objeto de preferências e as nossas preferências, se forem racionais, deverão

ser transitivas:

Se preferes comer feijoada a comer filetes de pescada

e se preferes comer filetes de pescada a comer Nestum,

o que será racional que prefiras — feijoada ou Nestum?

Page 4: A rede conceptual da ação

Filosofia Nov 2014

É legítimo pensar que qualquer comportamento racional terá de se conformar à transitividade das

preferências. Mas os estudos empíricos da Psicologia mostram que isto nem sempre acontece, o

que intriga muito os filósofos.

Como explicar a irracionalidade das preferências?

Chama-se «acrasia» a uma falta de força de vontade. Um agente tem falta de força de vontade se

tiver o desejo de produzir um certo efeito e tiver a crença de que uma dada ação é a melhor forma

de produzir esse efeito e, no entanto, não realizar esta ação.

Para compreender o que está em causa quando perguntamos «Como compreender o fenómeno

da acrasia?», analisemos o seguinte exemplo:

Se desejas verdadeiramente respeitar os direitos dos animais e se acreditas que a melhor maneira de o

fazer é deixando de comer carne, peixe, leite ou ovos, como compreender que o continues a comer

tudo isto?

Aristóteles refletiu sobre a acrasia e pensou que a explicação das ações acráticas só poderia ser

feita se dispusesse de um modelo de explicação de ações racionais. Esse modelo explicativo

ficou conhecido como «silogismo prático»:

1. O agente tem o desejo de produzir um efeito E.

2. O agente crê que fazer a ação A é o melhor modo de alcançar E.

3. Logo, o agente faz A

Neste modelo as premissas 1 e 2 são a justificação racional da ação enunciada na conclusão, em

3. Se os agentes forem racionais, deverão poder explicar as suas ações com base nos seus

desejos e crenças, com os quais as ações devem ser coerentes.

Numa ação acrática, isto não acontece. Vejamos o exemplo do fumar como resultado de fraqueza

irracional da vontade:

1. O António tem o desejo de ser saudável.

2. O António acredita que não fumar é a melhor maneira de ser saudável.

3. No entanto, o António fuma.

Page 5: A rede conceptual da ação

Filosofia Nov 2014 Assim concluímos que para falar de ação, implica falar de um agente, uma intenção e uma

motivação.

Sendo resumido neste quadro:

Definição dos conceitos nucleares

Ação: é uma interferência consciente e voluntária de um ser humano (o agente), dotado de razão e de

vontade, no normal decurso das coisas, que sem a sua inferência seguiriam um caminho distinto;

Agente: é o ser humano que realiza consciente e voluntariamente uma ação;

Intenção: é o para quê, isto é, o propósito que o agente quer atingir;

Motivo: é a razão pela qual ele age.

Intenção Motivo Agente

o mesmo que projeto,

isto é, aquilo que nos

propomos fazer ou o

propósito da ação

(implica a tomada de

consciência do sentido

dos nossos atos);

o sentido da ação, isto é,

o significado atribuído a

uma ação, identificado

através da resposta à

pergunta «o quê?»;

o objeto da decisão e a

estratégia escolhida para

o concretizar.

identifica aquilo que explica e

permite compreender a intenção,

isto é, as suas razões;

refere-se ao porquê da intenção,

ou seja, «o que é que levou A a

fazer X»;

distingue-se do conceito de causa,

porque ao identificarmos os

motivos não podemos considerar

que existe sempre entre eles e a

intenção uma relação necessária;

há que ter em conta a intervenção

da vontade. A causa faria ocorrer

a ação independentemente da

vontade do agente.

o autor da intenção e da ação

,isto é, o que pratica a ação;

identifica aquele que, por sua

iniciativa (livre e

voluntariamente), produz

alterações no decorrer normal

das coisas;

por ser o autor, isto é, aquele

que pratica uma ação

intencionalmente, é aquele a

quem se atribui a

responsabilidade da ação, isto

é, aquele que responde por ela.

Page 6: A rede conceptual da ação

Filosofia Nov 2014

Determinismo e liberdade na ação humana

A liberdade de ação é um importante tópico discutido em Filosofia. Na tradição ocidental moral,

religiosa e jurídica, conceitos como os de responsabilidade, culpa e imputabilidade estão

vinculados ao de liberdade.

Nessa tradição, um agente é responsabilizável por uma ação apenas no caso de ter sido livre para

agir como agiu. Por exemplo, um indivíduo é culpado aos olhos de Deus se tiver pecado quando

podia não o ter feito; um criminoso é imputável aos olhos da Justiça se tiver cometido um crime

quando podia evitá-lo.

Mas se alguém é forçado a agir de uma certa forma, será legítimo responsabilizá-lo pela sua «ação»?

Que “forças” condicionam as nossas ações? Podemos reconhecer três tipos de condicionantes

da ação:

1. Físicas: as ações dependem da estrutura anatómica e fisiológica do agente e das leis naturais que

regem os fenómenos do mundo;

2. Psicológicas: a personalidade, o caráter, a força de vontade ou a falta dela, os estímulos e as

motivações são aspetos que influenciam o tipo de ações que empreendemos;

3. Culturais: as vivências, as normas, as tradições, os hábitos e costumes, e todas as circunstâncias

políticas, económicas e sociais que, enquanto agentes, nos relacionam com outros agentes,

condicionam claramente as nossas ações.

Será que as condicionantes da ação impossibilitam a liberdade de ação? Seremos realmente livres

ou a será a liberdade apenas uma ilusão?

Para compreendermos o significado desta pergunta, teremos de dominar uma noção essencial – a de

causalidade.

Uma cadeia causal é uma sucessão de acontecimentos na qual cada um deles é causa do

acontecimento que lhe sucede e cada um deles é efeito do acontecimento que o antecede:

Page 7: A rede conceptual da ação

Filosofia Nov 2014

Uma conceção determinista da ação salienta que as ações são acontecimentos que têm lugar no

mundo e que, portanto, estão integradas em cadeias causais: ora são efeitos de acontecimentos

anteriores (mentais ou físicos); ora são causas de acontecimentos posteriores.

Por outro lado, pensamos que devemos responder por muitos dos nossos atos, de que somos

responsáveis em consequência da nossa liberdade. Esta é uma visão não determinista da ação.

Isto gera um dilema, conhecido como «dilema de Hume»:

Se o determinismo for verdadeiro, então as nossas ações são causadas por acontecimentos remotos

que não controlamos, tornando-se inevitáveis, não sendo nós responsabilizáveis pelo que fazemos;

se o determinismo for falso, então as nossas ações são aleatórias, pelo que também não somos

responsabilizáveis por elas.

Conclusão: em qualquer caso, não há livre arbítrio nem responsabilidade.

O problema do livre arbítrio pode agora ser precisamente formulado:

Como compatibilizar a crença de que todos os acontecimentos, incluindo as ações, são causalmente

determinados, segundo as leis da natureza, com a crença de que o Homem é livre e responsável

pelas ações?

As respostas tradicionais ao problema do livre-arbítrio podem ser divididas em teorias

compatibilistas e teorias incompatibilistas.

As primeiras defendem que o livre-arbítrio é compatível com o determinismo; as segundas

defendem que o livre-arbítrio não é compatível com o determinismo.

Page 8: A rede conceptual da ação

Filosofia Nov 2014 Teorias que respondem ao problema do livre-arbítrio:

Exemplo do problema do livre-arbítrio

O problema do livre-arbítrio, um dos mais antigos e intratáveis da filosofia, começa com uma certa

inadequação terminológica. A expressão portuguesa "livre-arbítrio", assim como a expressão

"liberdade da vontade", que é tradução do inglês "freedom of the will", são enganosas, pois nem o

juízo nem a vontade são os fatores preponderantes. Menos comprometida seria a expressão

"liberdade de decisão" ou "liberdade de escolha" ou, melhor ainda (posto que mais abrangente),

"liberdade de ação".

Page 9: A rede conceptual da ação

Filosofia Nov 2014

Feita essa advertência terminológica, passemos à exposição do problema. Ele diz respeito ao conflito

existente entre a liberdade que temos ao agir e o determinismo causal. Podemos introduzi-lo

considerando as três proposições seguintes:

1. Todo o evento é causado.

2. As nossas ações são livres.

3. Ações livres não são causadas.

A proposição 1 parece geralmente verdadeira: cremos que no mundo em que vivemos para todo

evento deve haver uma causa. A proposição 2 também parece verdadeira: quando nos observamos

a nós mesmos, parece óbvio que as nossas decisões e ações são frequentemente livres. Também a

proposição 3 parece verdadeira: se as nossas ações fossem causalmente determinadas, elas não

poderiam ser livres.

O problema do livre-arbítrio surge quando percebemos que as três proposições acima formam um

conjunto inconsistente, ou seja: não é possível que todas elas sejam verdadeiras! Se admitimos que

todo evento é causado e que a ação livre não é causalmente determinada (que as proposições 1 e 3

são verdadeiras), então não somos livres, posto que as nossas ações são eventos (a proposição 2 é

falsa). Se admitimos que as nossas ações são livres e que como tais elas não são causalmente

determinadas (que 2 e 3 são proposições verdadeiras), então não é verdade que todo o evento seja

causado (a proposição 1 é fa1sa). E se admitimos que todo o evento é causado e que somos livres

(que as proposições 1 e 2 são verdadeiras), então deve haver a1go de errado com a ideia de

liberdade expressa na proposição 3.

Cada uma dessas alternativas possui um nome e foi classicamente defendida. A primeira delas é

chamada de determinismo; ela consiste em negar a verdade da proposição 2, ou seja, que somos

realmente livres. Ela foi mantida por filósofos como Espinosa, Schopenhauer e Henri d'Holbach. A

segunda alternativa chama-se libertismo: ela não tem problemas em admitir que o mundo ao nosso

redor é causalmente determinado, mas abre uma exceção para muitas de nossas decisões e ações,

que sendo livres escapam à determinação causal. Com isso o libertismo rejeita a validade universal

do determinismo expressa pela proposição 1. Essa é a posição de Agostinho, Kant e Fichte.

Finalmente há o compatibilismo, que tenta mostrar que a liberdade de ação é perfeitamente

Page 10: A rede conceptual da ação

Filosofia Nov 2014

compatível com o determinismo, rejeitando a ideia de liberdade expressa na proposição 3.

Historicamente, Hobbes, Hume e Mill foram famosos defensores do compatibilismo. No que se

segue, quero considerar isoladamente cada uma dessas soluções, argumentando finalmente a favor

do compatibilismo.

1. Determinismo

O determinismo parte da consideração de que, da mesma forma que podemos sempre encontrar

causas para os eventos físicos que nos cercam, podemos sempre encontrar causas para as nossas

ações, sejam elas quais forem. Com efeito, sendo como somos produtos de um processo de

evolução natural, seria surpreendente se as nossas ações não fossem causadas do mesmo modo

que o são outros eventos biológicos, tais como a migração dos pássaros e o fototropismo das

plantas. Mesmo que o princípio da causalidade não seja garantido e que no mundo da microfísica ele

tenha sido inclusive colocado em dúvida, no mundo humano, constituído pelas nossas ações,

pensamentos, decisões, vontades, esse princípio parece manter-se plenamente aceitável. De facto,

admitimos que as decisões ou ações humanas são causadas. Alguns poderão dizer que Napoleão

invadiu a Rússia por livre decisão da sua vontade. Mas os historiadores consideram parte do seu

ofício encontrar as causas, procurando esclarecer as motivações e circunstâncias que o induziram a

tomar essa funesta decisão. Na determinação das nossas ações, as causas imediatas podem ser

externas (alguém decide parar o carro diante de um sinal vermelho) ou internas (alguém resolve

tomar um refrigerante), sendo geralmente múltiplas e por vezes muito difíceis de serem rastreadas.

No entanto, teorias biológicas e psicológicas (especialmente. a psicanálise) sugerem que as nossas

ações são sempre causadas; "Fiz isso sem nenhuma razão" raramente é aceite como desculpa.

Com base em considerações como essas, a conclusão do filósofo determinista é a de que o livre-

arbítrio na verdade não existe, posto que se a ação fosse realmente livre ela não seria determinada

por outros fatores independentes dela mesma. A liberdade que parecemos ter ao tomarmos as

nossas decisões é pura ilusão, produzida por uma insuficiente consciência das suas causas. Mesmo

quando pensamos que poderíamos ter agido de outro modo, o que queremos dizer não é que

éramos realmente livres para agir de outro modo, mas simplesmente que teríamos agido de outro

modo se o sentimento mais forte tivesse sido outro, se soubéssemos aquilo que agora sabemos etc.

O argumento a favor do determinismo pode ser assim esquematizado:

Page 11: A rede conceptual da ação

Filosofia Nov 2014 1. Todo o evento é causado.

2. As ações humanas são eventos.

3. Portanto, todas as ações humanas são causadas.

4. As ações humanas só são livres quando não são causadas.

5. Portanto, as ações humanas não são livres.

A posição determinista encontra, porém, dificuldades. Não é só o sentimento de que somos livres

que perde a validade. Também o sentimento de arrependimento ou remorso parece perder o sentido,

pois como se justifica que nós possamos arrepender-nos das nossas ações, se não fomos livres para

escolhê-las? Também a responsabilidade moral perde a validade. Se nas nossas ações somos tão

determinados como uma pedra que cai ao ser solta no ar, faz tão pouco sentido responsabilizar uma

pessoa pelos seus atos quanto faz sentido responsabilizar a pedra por ter caído. Tais dificuldades

levam-nos a considerar a posição oposta.

2. Libertismo

O libertista rejeita o determinismo por considerar as conclusões acima inaceitáveis. Ele também

rejeita a primeira premissa do argumento determinista. O princípio da causalidade, enunciável como

"Todo o evento tem uma causa", não parece ter a sua validade universal garantida. Certamente,

esse princípio é extremamente útil, valendo em geral para o mundo que nos circunda e mesmo para

muitas de nossas ações. Mas nada nele garante que a sua validade seja universal. Não podemos

pensar que A = ~A ou que 1 + 1 = 3, mas podemos perfeitamente conceber um evento no universo

surgindo sem nenhuma causa. A isso o libertarista poderá adicionar que nós simplesmente sabemos

que somos livres. Há uma grande diferença entre um comportamento reflexo e um comportamento

resultante da decisão da vontade. Nós sentimos que no último caso somos livres, que podemos

decidir sempre de outro modo.

Para justificar essa posição, o libertista costuma lançar mão de uma teoria da ação, tal como foi

defendida por Richard Taylor ou por Roderick Chisholm. Segundo essa teoria às vezes, ao menos, o

agente causa os seus atos sem qualquer mudança essencial em si mesmo, não necessitando de

condições antecedentes que sejam suficientes para justificar a ação. Isso acontece porque o eu é

uma entidade peculiar, capaz de iniciar uma ação sem ser causado por condições antecedentes

Page 12: A rede conceptual da ação

Filosofia Nov 2014

suficientes! Você poderá perguntar-se como isso é possível. A resposta geralmente oferecida é que

não pode haver explicação. Para responder a uma pergunta como essa teríamos de interrogar o

próprio eu, considerando-o objetivamente. Mas, como quem deve considerar objetivamente o eu só

pode ser aqui o próprio eu, isso é impossível. Tentar interrogar o próprio eu é tentar, como o barão

de Münchausen, alçar-se sobre si mesmo pondo os pés sobre a própria cabeça. O eu da teoria da

ação é um eu esquivo [...]. Ele é um eu autodeterminador, capaz de iniciar ações sem ser causado.

Somos, quando agimos, semelhantes ao deus aristotélico: somos causas não causadas, motores

imóveis. O argumento que conduz à teoria da ação tem a forma:

1. Não é certo que todo o evento é causado.

2. Sabemos que as nossas ações são frequentemente livres.

3. As ações humanas livres não podem ser causadas.

4. Portanto, a ação humana não precisa de ser causada.

Embora essa solução preserve a noção de livre agência, ela tem o inconveniente de explicar o

obscuro pelo que é mais obscuro ainda, que é um mistério a ser aceite sem questionamento. A

pergunta que permanece é se não há uma solução mais satisfatória. A solução que veremos a

seguir, o compatibilismo, é hoje a mais aceite, sendo uma maneira de tentar preservar as vantagens

das outras duas sem as correspondentes desvantagens.

3. Compatibilismo: definições

Segundo o compatibilismo, também chamado de determinismo moderado ou reconciliatório, nós

permanecemos livres e responsáveis, mesmo sendo causalmente determinados nas nossas ações.

O raciocínio que conduz ao compatibilismo tem a forma:

1. Todo o evento é causado.

2. As ações humanas são eventos.

3. Portanto, todas as ações humanas são causadas.

4. Sabemos que as nossas ações são às vezes livres.

5. Portanto, as ações livres são causadas.

Page 13: A rede conceptual da ação

Filosofia Nov 2014

Um bom exemplo de argumento em defesa do compatibilismo é o de Walter Stace, para quem nós

confundimos o significado da noção de liberdade na sua conexão com o determinismo. Segundo

Stace, o determinista acredita que a liberdade da vontade é o mesmo que a capacidade de produzir

ações sem que elas sejam determinadas por causas. Mas isso é falso. Se assim fosse, uma pessoa

que se comportasse arbitrariamente, mesmo que contra a sua própria vontade, seria um exemplo de

pessoa livre. Mas o comportamento arbitrário não é visto como um comportamento livre. A diferença

entre a vontade livre e a vontade não-livre não deve residir, pois, no facto de a segunda ser

causalmente determinada e a primeira não. Além disso, tanto no caso de ações livres como no caso

de ações não-livres, nós costumamos encontrar determinações causais, como mostram os seguintes

exemplos, os três primeiros tomados do texto de Stace:

A. Atos livres B. Atos não-livres

1. Gandi passa fome porque quer libertar a Índia. Um homem passa fome num deserto porque não

há comida.

2. Uma pessoa rouba um pão porque está com

fome. Uma pessoa rouba porque o seu patrão a obrigou.

3. Uma pessoa assina uma confissão porque

quer dizer a verdade.

Uma pessoa assina uma confissão porque foi

submetida a tortura.

4. Uma pessoa decide abrir uma garrafa de

champanhe porque quer brindar ao Ano Novo.

Uma pessoa toma uma dose de aguardente,

mesmo contra a sua vontade, porque é alcoólica.

Note-se que a palavra "porque", que denota causalidade, é comum a ambas as colunas. Assim, a

coluna A não difere da coluna B pelo facto de não podermos encontrar causas das ações, decisões e

volições dos agentes. E às causas apresentadas podemos adicionar ainda outras, como razões

psicológicas e biográficas de Gandi, o costume de brindar ao Ano Novo abrindo uma garrafa de

champanhe etc. Mesmo nos casos de decisões arbitrárias (como quando alguém decide lançar uma

moeda no ar para que a sorte decida o que deve fazer), a decisão de escolher arbitrariamente

também possui alguma causa.

A diferença notada por Stace entre as ações livres da coluna A e as não-livres da coluna B é que as

primeiras são voluntárias, enquanto as segundas não. Daí que ele defina a diferença entre a vontade

Page 14: A rede conceptual da ação

Filosofia Nov 2014

livre e não-livre como residindo no facto de que as ações derivadas da vontade livre são voluntárias,

enquanto as ações derivadas da vontade não-livre são involuntárias, no sentido de se oporem à

nossa vontade ou de serem independentes dela. Se Gandi passa fome para libertar a Índia, se

alguém rouba um pão por estar com fome, essas são ações livres, posto que voluntárias; mas se

uma pessoa assina uma confissão sob tortura ou toma uma dose de aguardente contra a sua

vontade, essas são ações que se opõem à vontade dos agentes, por isso mesmo não são livres.

Embora a explicação de Stace seja geralmente bem-sucedida, ela não se aplica satisfatoriamente a

alguns casos. Considere os seguintes:

A. Atos livres B. Atos não-livres

5. Uma pessoa abre a janela porque faz calor. Uma pessoa abre a janela por efeito de sugestão

pós-hipnótica.

6. Um membro de uma equipa de cinema

explode uma bomba para efeitos de filmagem.

Um psicopata explode uma bomba porque ouve

vozes que o convenceram a realizar essa ação.

No exemplo B-5 a pessoa abre a janela porque o hipnotizador lhe disse que meia hora após ser

acordada da hipnose deveria abrir a janela, sem se lembrar de que faz isso por decisão do

hipnotizador (curiosamente, se interrogada, a pessoa submetida a esse tipo de experiência costuma

fornecer uma razão qualquer, como a de que está sentindo calor). � Nesse caso a pessoa realiza a

ação voluntariamente, pensando que o faz por livre e espontânea vontade, embora na verdade o

faça seguindo a instrução de quem a hipnotizou. No exemplo B-6, o psicopata também age

voluntariamente, e o mesmo poderíamos dizer de casos de fanáticos, de neuróticos e, em geral, de

pessoas presas a valores e padrões de conduta excessivamente rígidos, que sofrem por isso

limitações na capacidade de livre deliberação, apesar de agirem voluntariamente. A ação livre deve

aproximar-se de um ideal de racionalidade plena, o que aqui está longe de ser o caso.

Na minha opinião a diferença mais importante entre os casos apresentados, nas colunas A e B é que

em B, em que a ação não é livre, o agente age sob restrição, coerção ou limitação externa (exemplos

1, 2, 3 e 5) ou interna (exemplos 4 e 6), enquanto nos casos da coluna A, em que a ação é livre, o

agente age motivado por razões não-limitadoras ou "plenas". É difícil explicar o que sejam razões

não-limitadoras, mas a ideia é intuitiva: considere a diferença entre as razões de Gandi e as razões

de quem age por sugestão pós-hipnótica, por força de um delírio psicótico ou de uma crença

Page 15: A rede conceptual da ação

Filosofia Nov 2014

fanática; mesmo não-admiradores de Gandi admitiriam que as suas razões são comparativamente

menos limitadoras, menos restritivas, mais legítimas. Admitindo essa distinção de grau entre razões

limitadoras e não-limitadoras, chegamos a uma definição inerentemente negativa da ação livre, que é

mais abrangente do que a de Stace:

A ação livre é aquela em que o agente não é restringido fisicamente, nem coagido na sua

vontade, nem limitado na sua racionalidade ao realizá-la.

Livre-arbítrio versus determinismo

O problema do livre-arbítrio versus determinismo surge devido a uma aparente contradição entre

duas ideias plausíveis. A primeira é a ideia de que os seres humanos têm liberdade para fazer ou

não fazer o que queiram (obviamente, dentro de certos limites ― ninguém acredita que possamos

voar apenas por querermos fazê-lo). Esta é a ideia de que os seres humanos têm vontade livre ―

ou livre-arbítrio. A segunda é a ideia (...) de que tudo o que acontece neste universo é causado, ou

determinado, por acontecimentos ou circunstâncias anteriores. Diz-se de aqueles que aceitam esta

ideia que acreditam no princípio do determinismo e chama-se-lhes deterministas. (De aqueles que

negam esta segunda ideia diz-se que são indeterministas.)

Pensa-se frequentemente que estas duas ideias conflituam porque parece que não podemos ter

livre-arbítrio ― as nossas escolhas não podem ser livres ― se são determinadas por acontecimentos

ou circunstâncias anteriores.

Definição dos conceitos nucleares

Determinismo: princípio segundo o qual todo o fenómeno é rigorosamente determinado por aqueles

que o precederam ou acompanham, (leis da natureza: físicas e biológicas) ou (plano sobrenatural:

vontade de Deus, força do destino) sendo a sua ocorrência necessária e não dependente da vontade do

agente;

Liberdade: é ter a possibilidade de escolher e de decidir o que fazer de nós próprios, que tipo de

pessoa nos propomos construir tendo em conta todos os fatores e condicionalismos circunstanciais que

o contexto vivencial nos proporciona e que são simultaneamente limitações e desafios;

Liberdade humana: capacidade de autodeterminação, ou seja, a possibilidade e a necessidade de

sermos nós a orientar a nossa ação e, desse modo, a definir e a moldar a nossa personalidade, tendo

em conta as condicionantes da ação;

Causalidade: acontecimento que sucede à cadeia causal;

Finalidade: acontecimento que antecede à cadeia causal.