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Alimentos de homens e de deuses - 17/08/2006 A dieta do Mundo Clássico Mediterrâneo Compartilhar ' O vaso acima reproduz o symposium, momento em que os homens gregos se reuniam com seus “iguais” para discutir assuntos relacionados a vida em sociedade e também para celebrar seus deuses bebendo vinho. Durante o período que conhecemos como Antiguidade Clássica, ser civilizado significava em termos básicos pertencer a grupamentos que tivessem ascendência grega ou romana. Estar fora (ou dentro) dos limites que definiam as fronteiras espaciais das pólis gregas ou do Império Romano não era fator suficientemente significativo para determinar ou definir a pertença ou participação no mundo civilizado definido por romanos e gregos. A vivência de valores e práticas era muito mais importante para a definição e inserção dos indivíduos no referido mundo da alta cultura e dos valores elevados do que qualquer delimitação espacial seria jamais capaz de determinar. Nesse sentido o domínio da linguagem culta, ou seja, do idioma grego e/ou romano era considerado como óbvio elemento de entrada nesse universo. Roupas, hábitos do cotidiano, formas de relacionar-se com outras pessoas, religiosidade, habitação ou mesmo a adequação a padrões de vida próprios das cidades greco-romanas demonstravam aos cidadãos que fundaram as bases dessa pretensa civilidade e a seus herdeiros históricos que essa passagem para seu evoluído mundo estava se realizando entre as pessoas que se agregavam a partir de guerras e conquistas.

Alimentos de homens e de deuses

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Alimentos de homens e de deuses - 17/08/2006

A dieta do Mundo Clássico Mediterrâneo

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O vaso acima reproduz o symposium, momento em que os homens gregos se reuniam com seus “iguais” para discutir 

assuntos relacionados a vida em sociedade e também para celebrar seus deuses bebendo vinho.

Durante o período que conhecemos como Antiguidade Clássica, ser civilizado significava em termos básicos pertencer a grupamentos que tivessem ascendência grega ou romana. Estar fora (ou dentro) dos limites que definiam as fronteiras espaciais das pólis gregas ou do Império Romano não era fator suficientemente significativo para determinar ou definir a pertença ou participação no mundo civilizado definido por romanos e gregos.

A vivência de valores e práticas era muito mais importante para a definição e inserção dos indivíduos no referido mundo da alta cultura e dos valores elevados do que qualquer delimitação espacial seria jamais capaz de determinar. Nesse sentido o domínio da linguagem culta, ou seja, do idioma grego e/ou romano era considerado como óbvio elemento de entrada nesse universo.

Roupas, hábitos do cotidiano, formas de relacionar-se com outras pessoas, religiosidade, habitação ou mesmo a adequação a padrões de vida próprios das cidades greco-romanas demonstravam aos cidadãos que fundaram as bases dessa pretensa civilidade e a seus herdeiros históricos que essa passagem para seu evoluído mundo estava se realizando entre as pessoas que se agregavam a partir de guerras e conquistas.

Há, entretanto, um fator que pode ser considerado primordial para que essa migração/passagem viesse realmente a acontecer do ponto de vista dos citadinos que davam base e suporte para a perpetuação dessa sociedade e de sua ideologia. Esse fator estava relacionado a alimentação. Conclui-se que os hábitos e práticas relativos a produção de alimentos, o comportamento à mesa ou o consumo de tais ou quais produtos era esclarecedor para os gregos e romanos quanto aos níveis de civilidade dos indivíduos.

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A criação de ovinos e caprinos tinha como principais objetivos a obtenção de leite e lã. A carne desses animais, assim como a 

dos bovinos, era consumida em pequenas quantidades e normalmente acontecia em rituais religiosos.

Deve-se destacar, por exemplo, que o consumo de carnes é mais associado ao comportamento de grupamentos bárbaros do que propriamente aos civilizados. Isso não quer dizer que não ocorresse a utilização desses alimentos entre os habitantes das penínsulas balcânica e itálica durante a Antiguidade Clássica. Isso efetivamente até acontecia, mas as quantidades eram extremamente reduzidas e pouco significativas para o todo da dieta daquelas civilizações.

Consumia-se em média, não mais do que um ou dois quilos de carne por ano entre os habitantes das cidades-estado gregas. Entre os romanos o consumo de carne era um pouco mais acentuado já que a produção de porcos era bastante regular. Diga-se de passagem que a carne suína era a principal fonte abastecedora das necessidades de proteínas animais entre os romanos e que a partir do século III, os imperadores a incluíram entre os alimentos que eram distribuídos ao povo para manter a ordem pública e aumentar a estima da plebe quanto aos seus líderes.

O consumo de carne não era estimulado por não ser condizente com a idéia de frugalidade que prevalecia entre gregos e romanos. Esses povos procuravam definir suas identidades tendo por base uma vida simples, sem grandes luxos e desprovida de qualquer ostentação. Nesse sentido o consumo de carnes poderia promover a idéia de desperdício ou dispêndio além da conta. Diferentemente dos cereais, que prevalecem na dieta desses povos e também nas áreas por eles influenciadas culturalmente ou dominadas militarmente, as carnes nunca tiveram seus preços controlados e chegavam até mesmo a ter sua venda proibida durante alguns períodos do ano.

Gregos e romanos, como se sabe muito bem, tinham criações regulares de ovinos e caprinos, o que pode nos induzir a acreditar que essas carnes faziam parte do cardápio diário de alimentos então consumidos. Isso até podia acontecer em ocasiões especiais como festas particulares ou públicas e sacrifícios e oferendas aos deuses da mitologia. O consumo cotidiano de carnes de cabras, cabritos, ovelhas ou carneiros não era comum tendo-se em vista que a produção dos mesmos tinha como meta maior a obtenção de seus subprodutos, a lã e o leite.

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A ânfora e o pilão apresentados acima fazem parte de acervos de museus históricos que têm Roma como objeto de estudos e reforçam a idéia de que os habitantes da península itálica eram 

grandes consumidores de vinhos e pães, base principal de sua dieta.

Leite esse que gerava a produção de um alimento de consumo difundido ao longo de todo o mundo europeu Mediterrâneo e que forneceu as bases para a dieta atual de praticamente todos os povos da região balcânica. Ressalte-se que essa alimentação é considerada por um crescente número de especialistas em nutrição e dietética como sendo uma das mais saudáveis do mundo. Ao leite e ao queijo juntam-se também o azeite de oliva, as uvas e o vinho e os pães.

Os cereais constituem a maior de todas as matrizes alimentares das cidades daqueles povos. Nesse sentido gregos e romanos referiam-se a eles como definidores do padrão civilizacional e importantíssimo elemento de diferenciação entre esses povos e todos aqueles que por eles eram considerados como bárbaros. Isso acontece em virtude da própria forma como esses alimentos são obtidos, ou seja, através da agricultura.

A agricultura revela conhecimento, ciência, compreensão da natureza e de seus ciclos. A obtenção desses grãos de trigo, cevada, centeio, milhetes, aveia ou espelta demanda sabedoria que somente os grupos mais evoluídos poderiam ter atingido, conforme pensavam gregos e romanos. Os posteriores procedimentos que garantiam a transformação desses cereais em papas, sopas, pães ou bolos também os ajudavam a confirmar suas culturas como mais elevadas, enriquecidas e robustecidas em virtude do domínio de técnicas e saberes próprios da gastronomia (e não compartilhados com os bárbaros).

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De acordo com a mitologia a oliveira foi trazida para a Grécia pela deusa Atena que também ensinou os gregos a cultivá-la. As oliveiras tinham tamanha importância e consideração entre 

os gregos que moedas foram cunhadas com Atena usando uma coroa de folhas e frutos da oliveira e uma ânfora de azeite nas mãos.

Se o consumo de carne era bem reduzido como já pudemos demonstrar, os cereais, por sua vez, eram alimentos do cotidiano que compunham com as leguminosas o prato base das cenas (refeições rápidas e frugais) e que nunca estavam ausentes do prandium (refeições em que os romanos desfrutavam com maior tempo e qualidade dos alimentos em companhia da família e/ou de convidados).

Para melhor compreendermos essa relação intensa e próxima dos romanos com os cereais, por exemplo, devemos nos lembrar que os legionários que compunham o maior e mais poderoso exército de toda a Antiguidade tinham como principal provisão as farinhas que utilizavam para fazer o pão. Em média um soldado romano consumia entre 800 gramas e 1 quilo de pão por dia. Se não bastasse isso, após as efetivação das conquistas, os soldados eram orientados a iniciar produção de cereais nas terras anexadas ao império para que a oferta de alimentos por eles consumidos fosse regularizada naquelas regiões.

Apesar disso, é importante ressaltar que o pão não é a principal forma de consumo dos cereais entre os gregos e os romanos. As papas, sopas e caldos suplantam os pães até mesmo por serem mais fáceis de produzir e não demandarem a construção de fornos, inacessíveis a maior parte da população das duas civilizações.

A uva e o vinho, as oliveiras e os azeites são outros importantes e freqüentes membros da dieta Mediterrânea clássica que atravessou séculos e chegou ao nosso tempo. Para complementar os sabores que se tornaram parte marcante da mesa de gregos e romanos devemos considerar também o mel e os figos.

Tais alimentos possuem os atributos que os fazem ser considerados elementos da civilização já que para sua obtenção demandam a semeadura, o trabalho com a terra, a adequação de terrenos e solos, o conhecimento das estações no que tange a matéria-prima e a técnica para o surgimento de seus valiosos derivativos.

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Mosaico romano reproduz a colheita da uva. Alimento que criava entre os povos da Antiguidade Clássica Mediterrânea um elo que os ligava aos deuses da mitologia, a uva e o vinho eram bebidos adicionando-se água para evitar a embriaguez, a não ser quando 

o consumo relacionava-se a rituais religiosos.

Outro aspecto relativo a alimentação que é considerado como fator civilizacional para os gregos e romanos é a comensalidade. Compartilhar os alimentos à mesa tem um significado especial para esses povos por permitir a socialização com pessoas que se aproximam ou assemelham. A mesa reúne os pares sociais e, portanto distingue-os do restante da turba, criando espaços próprios em que se define também o status social dessas pessoas.

A reunião à mesa serve igualmente para diferenciar civilizados e bárbaros já que baseia seus rituais numa etiqueta não reconhecida/utilizada por povos limítrofes e atrasados. Essas diferenciações não se referem somente a diferentes grupos sociais ou povos, também equivalem ao reconhecimento da distância que existe entre os homens e seus deuses. Nesse sentido há os alimentos dos deuses e aqueles que foram criados para a humanidade. A carne, por exemplo, sorvida em rituais de forma muito esporádica representa para gregos e romanos um momento de comunhão com suas divindades...

O vinho é outro exemplo de concessão divina que deve ser compartilhado entre os homens com algumas restrições. Nesse sentido ao misturar água ao néctar dos deuses, os homens pretendem inibir o efeito inebriante da bebida. Essa “qualidade” deve ser trazida a tona apenas ou preferencialmente quando seus consumidores estiverem envolvidos em rituais através dos quais pretendem estar em contato com suas divindades.

O referencial civilizatório encontrado nos elementos da vida alimentar dos povos da Antiguidade Clássica Mediterrâneo não significa que gregos e romanos tivessem abandonado atividades que desconsideravam por pensarem se tratar de práticas próprias dos povos rudes a quem atribuíam a pecha de bárbaros. A caça, a pesca ou a coleta de frutos silvestres continuou a acontecer e complementavam a alimentação daquelas populações, em especial da plebe, mais desprovida.

O fato de não existirem registros e evidências quanto a essas ações desprestigiadas socialmente (coleta, pesca ou caça) revela a força do caráter ideológico das representações criadas pelas comunidades greco-romanas acerca de suas próprias civilizações e o empenho de seus governantes e pensadores em firmar um conceito acerca de si mesmos que demonstrasse para os outros povos a sua primazia, a sua hegemonia e a sua vitória...

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