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1 Clarice de Assis Libânio ARTE, CULTURA E TRANSFORMAÇÃO NAS VILAS E FAVELAS: um olhar a partir do Grupo do Beco Belo Horizonte Novembro de 2008

Arte, Cultura e Transformação nas vilas e favelas: Um olhar a partir do Grupo do Beco

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Clarice Libânio

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Clarice de Assis Libânio

ARTE, CULTURA E TRANSFORMAÇÃO NAS VILAS E FAVELAS: um olhar a partir do Grupo do Beco

Belo Horizonte Novembro de 2008

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Clarice de Assis Libânio

ARTE, CULTURA E TRANSFORMAÇÃO NAS VILAS E FAVELAS: um olhar a partir do Grupo do Beco

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Sociologia. Orientadora: profª Ana Lúcia Modesto

Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG

Departamento de Sociologia e Antropologia Novembro de 2008

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Clarice de Assis Libânio

ARTE, CULTURA E TRANSFORMAÇÃO NAS VILAS E FAVELAS:

um olhar a partir do Grupo do Beco

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Sociologia.

Dissertação defendida e aprovada em:

Banca examinadora:

____________________________________________ Prof.ª Ana Lúcia Modesto

___________________________________________ Prof. Ronaldo de Noronha

__________________________________________ Prof. José Márcio Pinto de Moura Barros

Belo Horizonte -- de novembro de 2008

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Para meus pais, que me deram muito mais do que exemplo. Para meus filhos, que me dão, a todo dia, força e alegria. Para meu marido, inexplicável. Para todos aqueles que me inspiraram a crença de que sim, é possível um mundo diferente.

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, ao Grupo do Beco, claro, por sua confiança em mim, por seu

carinho, por sua amizade, pela tolerância com a demora desse trabalho, pelo

companheirismo, pelo apoio nas horas difíceis e pela força, energia e

disponibilidade. Um abraço especial ao Nil e à Jose, que considero hoje amigos de

coração.

Aos amigos do Favela é Isso Aí, sem os quais nada teria sido possível nesses anos

de muita fé e muita descrença.

À minha orientadora, Ana Lúcia, pela infinita paciência, enorme competência,

orientação impecável e fundamental respeito ao meu momento e minhas

dificuldades.

Ao José Márcio Barros, a quem não me canso de agradecer as oportunidades e

inspirações que tem me dado sempre.

Aos meus pais, que me deram a grande chance de “escolher” essa profissão e me

encantar com ela.

Ao meu marido e meus filhos, pela compreensão, pelas ausências e pelo apoio em

todos os momentos.

Obrigada!

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Existir é diferir, e, de certa forma, a diferença é a dimensão substancial das coisas, aquilo que elas têm de mais próprio e mais comum. É preciso partir daí, evitando qualquer explicação; para onde tudo caminha, mesmo a identidade, de onde falsamente partimos. Pois a identidade é apenas um mínimo, não passando de uma espécie, e espécie infinitamente rara, de diferença, assim como o repouso é apenas um caso do movimento e o círculo uma variedade singular da elipse.

Gabriel Tarde, In Monadologia e Sociologia

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RESUMO

A dissertação tem como ponto de partida a pesquisa realizada pela autora, no ano de 2002, que culminou na publicação, em 2004, do Guia Cultural das Vilas e Favelas de Belo Horizonte. Naquele trabalho, a autora visitou as 226 vilas e favelas da Capital Mineira e cadastrou cerca de 7.000 artistas em atividade nesses locais. Durante a pesquisa, foi possível perceber que apenas 20% desses artistas tinham algum tipo de rendimento com as atividades culturais. Dessa constatação nasceu a hipótese de que a arte traz, a esse público, algo mais do que uma possibilidade de geração de renda. Esse algo a mais passa por uma modificação em sua forma de se relacionar com sua comunidade e para fora dela, bem como possibilita a transformação da visão que as favelas e seus moradores têm junto à mídia e à cidade em geral. O texto traz, então, uma visão dessas possibilidades de transformação através da arte, tendo como estudo de caso o Grupo do Beco, grupo de teatro formado por moradores da Barragem Santa Lúcia, em Belo Horizonte, e sua peça, Bendita a Voz Entre as Mulheres. A peça, construída a partir de entrevistas com 20 mulheres da comunidade, traz a história de Bendita, uma mulher que foi estuprada, expulsa de casa pelo pai, espancada, traída pelo marido e que consegue, contra todas as expectativas, mudar de vida a partir do momento em que se envolve com a arte, como cantora. A partir dessa experiência, a autora discute como a arte e a cultura são instrumentalizadas nas favelas, como meio de melhorar a auto-estima daqueles que com elas se envolvem, de criar novas formas de socialização e convivência grupal e, por fim, de ampliar a participação política, por vias não tradicionais, e o acesso aos bens e serviços da cidade e direitos do cidadão.

Palavras-chave: Favelas. Belo Horizonte. Arte e cultura popular.

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ABSTRACT

This dissertation has as starting point the research accomplished by the author, in the year of 2002, which culminated in the publication, in 2004, of the Cultural Guide of the Villas and Slums of Belo Horizonte. To accomplish that work, the author visited the 226 villas and slums of the Capital of Minas Gerais, and registered about 7000 artists in activity in those places. During that research, it was possible to notice that only 20% of those artists had some kind of revenue with their cultural activities. From this verification was born the hypothesis that art brings to that public something more than a possibility of income generation. This something more promotes a modification in their relationship with their community and beyond it, as well as it makes possible the transformation of the image that the slums and their residents have, in the opinion of the media and of the city in general. The text, then, brings a vision of those possibilities of transformation through the arts, having as case study the Grupo do Beco (Group of the Alley), theater group of residents of the Barragem Santa Lúcia, in Belo Horizonte, and their play, Blessed the Voice Among the Women. This play, built from interviews with 20 resident women from that community, brings the history of Bendita (Blessed), a woman that was raped, expelled from home by her father, beaten, cheated by her husband, and she achieves, against all expectations, to change her life starting at the moment she gets involved in art, as a singer. Starting from this experience, the author discusses as art and culture are instrumentalized in the slums, as a way of improving the self-esteem of those that are involved in it, of creating new forms of socialization and grupal coexistence, and, finally, of enlarging the political participation by non-traditional means, and the access to the goods and services of the city, and the citizen's rights. Key words: Slums. Belo Horizonte. Art and popular culture.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Planta de situação das vilas e favelas de Belo Horizonte.................. 56

FIGURA 2 - Unidades de Planejamento de Belo Horizonte, segundo Região

Administrativa......................................................................................................... 72

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LISTA DE TABELAS

TABELA 1 Número de núcleos constantes do universo de trabalho oficial da

URBEL, segundo número de domicílios e população total

residente, por Regional ................................................................................

57

TABELA 2 Número de grupos culturais cadastrados e de pessoas

envolvidas e média de pessoas por grupo, por vila e grupos por

vila, segundo Regional .................................................................................

64

TABELA 3 Grupos culturais cadastrados, segundo área cultural, por

Regional (%)................................................................................................

66

TABELA 4 Grupos culturais cadastrados, segundo tempo na atividade, por

Regional ................................................................................................

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

AVSI Associação de Voluntários para o Serviço Internacional

CEURB/UFMG Centro de Estudos Urbanos

CHISBEL Coordenação de Habitação de Interesse Social de Belo Horizonte

COHAB-MG Companhia Habitacional do Estado de Minas Gerais

DBP Departamento Municipal de Habitação e Bairros Populares

DVS Departamento de Vigilância Social

FAMOBH Federação das Associações de Moradores de Belo Horizonte

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IQVU Índice de Qualidade de Vida Urbana

PLAMBEL Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte

PROAS Programa de Reassentamento de Famílias em Decorrência de

Obras Públicas ou Vítimas de Calamidades

PRODECOM Programa de Desenvolvimento de Comunidades

PROFAVELA Programa Municipal de Regularização de Favelas

RMBH Região Metropolitana de Belo Horizonte

SEPLAN/MG Secretaria de Estado do Planejamento e Coordenação Geral

SMAC Secretaria Municipal de Ação Comunitária

UPM Unidade de Planejamento

URBEL Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte

UTP União dos Trabalhadores da Periferia

ZEIS Zona de Especial Interesse Social

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 13

1.1 Trilhas e pistas da pesquisa.......................................................................... 15

2 METODOLOGIA ................................................................................................. 18

3 CONCEITOS E REPRESENTAÇÕES DA FAVELA........................................... 23

3.1 Um século de favela: do bom selvagem ao abusado.................................. 23

3.2 Morro, asfalto, comunidade, cidade – o território como conceito-chave .. 34

4 UM BREVE RELATO SOBRE AS FAVELAS DE BELO HORIZONTE ............. 42

4.1 Histórico e caracterização da ocupação ...................................................... 42

4.2 Ocupação atual............................................................................................... 54

4.2.1 Características gerais da ocupação .......................................................... 55

4.2.2 Aspectos demográficos e indicadores sociais......................................... 59

4.2.3 Infra-estrutura e serviços urbanos ............................................................ 61

4.2.4 Organização social...................................................................................... 63

4.3 Produção artístico-cultural............................................................................ 64

5 BENDITA A VOZ ENTRE AS MULHERES – O CASO DO GRUPO DO BECO 71

5.1 O território....................................................................................................... 71

5.1.1 Características gerais da ocupação .......................................................... 71

5.1.2 Aspectos demográficos.............................................................................. 75

5.1.3 Qualidade de vida e infra-estrutura ........................................................... 76

5.1.5 Organização social e participação............................................................. 78

5.1.6 Manifestações culturais.............................................................................. 80

5.2 O Grupo........................................................................................................... 81

5.3 A peça.............................................................................................................. 89

5.3.1Teatro popular e criação coletiva ............................................................... 89

5.3.2 O texto e sua construção............................................................................ 92

5.3.3 Pessoas e personagens.............................................................................. 100

6 O PAPEL DA ARTE DA CULTURA NAS VILAS E FAVELAS .......................... 110

6.1 Auto-estima, identidade, diversidade ........................................................... 112

6.2 Grupo, redes, interação ................................................................................. 121

6.3 Mobilização, participação, cidadania............................................................ 124

7 CONCLUSÕES ................................................................................................... 129

REFERÊNCIAS...................................................................................................... 134

ANEXOS ................................................................................................................ 138

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1 INTRODUÇÃO

O trabalho que agora apresento é fruto de quase 20 anos de experiências, vivências

e pesquisas que desenvolvi junto aos moradores de vilas e favelas de Belo

Horizonte.

Essa trajetória se inicia em meados da década de 1980, quando iniciei minha

atividade profissional, ainda estudante, na Cia. Urbanizadora de Belo Horizonte –

URBEL, órgão da Prefeitura responsável pela política pública de habitação e

urbanização nessas comunidades.

Desde aquela época, fosse como estagiária, no princípio, fosse como profissional já

formada, depois, algumas questões me intrigavam e foram, aos poucos,

consolidando minha visão e teorias sobre as favelas, seus moradores e seu lugar na

sociedade.

Entre essas questões, a central e que informava todas as outras, basicamente, era a

noção de que havia uma divisão muito “clara” entre os moradores das favelas e os

moradores dos bairros, ainda que as divisões urbanas e culturais não fossem

explícitas em muitos casos.

Sempre fiquei muito intrigada com o fato de que tanto os moradores dos bairros

quanto os moradores das favelas referiam-se uns aos outros como seres diferentes:

nós e eles, os outros, os que não são nós. A noção de cidade dividida, apesar de

vizinha e convivente (no uso do espaço urbano, nas relações de trabalho etc.) ficou

para mim, desde então, como uma incógnita e, ao mesmo tempo, uma verdade a ser

combatida, sempre.

A bandeira da não-divisão da cidade, aliás, vem de família, porque meu pai,

sociólogo, desde que me entendo por gente trabalha com a regularização das

favelas e na minha infância e adolescência, divorciado, me levava para as reuniões

nas comunidades como programa familiar de sábado à tarde. Naquela época, claro

que eu, filha, não me sentia nada satisfeita com o programa com o pai, mas hoje

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sinto que ele me ensinou a ver com os mesmos olhos os “de lá” e os “de cá”.

Dentro da URBEL, nos quase dez anos que por lá fiquei, trabalhei em vários setores,

na articulação comunitária, na habitação, no social. Mas o trabalho que mais me

despertou e construiu minha vida profissional até hoje foi na área da pesquisa social.

Conhecer a realidade dessas comunidades sempre foi para mim o que havia de

mais instigante naqueles trabalhos.

Ao sair da instituição, para dedicar-me ao meu primeiro mestrado (aliás, capítulo à

parte), nunca deixei de pesquisar as vilas e favelas, de querer entender melhor

sobre elas e sobre a divisão da cidade.

Nesse momento, gostaria de abrir dois parênteses: um, sobre meus dois mestrados;

o outro, sobre a forma de conhecer as comunidades.

Em relação ao primeiro parêntese, me formei em ciências sociais, habilitação em

antropologia, no ano de 1992. Em 1994 já estava no mestrado da sociologia e

escolhi como tema o relacionamento existente entre bairros e favelas em Belo

Horizonte, seus afastamentos, estigmas e visões dominantes na sociedade.

Naquela época, fiz todos os créditos, mas não consegui finalizar a dissertação, parte

por me sentir órfã dentro do departamento com meu tema, parte por continuar

(desde sempre) trabalhando muito enquanto estudava.

Dez anos depois, jubilada, decidi tentar novamente a prova do mestrado e retomei o

tema, porém, já dentro de outras bases, tendo a cultura como foco, a partir de minha

experiência com a elaboração do Guia Cultural de Vilas e Favelas, do qual falarei

adiante.

Quanto ao segundo parêntese, confesso que já ouvi (por mais de uma vez)

comentários, explícitos ou velados, sobre as pessoas que, como eu, não nasceram

nas favelas, não vivem sua problemática na pele, mas querem estudá-las, conhecê-

las e contribuir, de alguma maneira, para mudar o quadro de exclusão e divisão que

se apresenta.

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Os comentários são sempre na linha de que nós, “os de fora”, estamos lá para sugar

“os de dentro”, para utilizarmos de seu conhecimento e sua vivência para nossas

teses e depois, como ratinhos de laboratório, descartá-los, não dar retorno, não

contribuir.

Já houve épocas em que me indignei com essas afirmações, mas hoje não levanto

mais a voz para protestar. Primeiro, porque sei que, de fato, é muito comum essa

prática, de pessoas que não têm compromisso com as outras, tão comum que o

“estudante universitário que sobe o morro” já virou personagem cristalizado nessas

comunidades. Segundo, porque sei que só com minha prática posso ter a chance,

ainda que mínima, de ser enquadrada em outra categoria: a daqueles que realmente

gostariam que a cidade fosse mais integrada, menos dividida, menos segregada.

1.1 Trilhas e pistas da pesquisa

Voltando ao processo de construção desta dissertação, no ano de 2002 comecei um

trabalho de pesquisa que tinha como objetivo fazer um levantamento nas favelas de

Belo Horizonte, mapeando todos os tipos de manifestações artísticas e culturais

existentes nessas comunidades.

O produto desse trabalho, lançado em agosto de 2004, foi o Guia Cultural das Vilas

e Favelas de Belo Horizonte, que cadastrou 6.911 artistas em atividade nessas

áreas, número este que vem se mostrando, a cada dia, apenas uma amostra do que

realmente fervilha na área cultural das comunidades periféricas da Capital.

Naquela época, esses resultados de fato foram para mim – e para grande parte das

pessoas ligadas ao cenário cultural mineiro – uma surpresa. A partir do

desvelamento desses grupos, descobrimos como estávamos desinformados a

respeito dessa “arte invisível”, presos em nosso apartamento e de uma certa forma

distantes dessa realidade.

Aliás, a experiência do Guia foi fundamental para que eu me deparasse com meus

próprios preconceitos. Como já disse, trabalho com favelas desde 1987, foi meu

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primeiro estágio, meu primeiro emprego e é o que faço, desde então. Sempre me

gabei de não ter preconceitos com relação aos moradores das favelas, a transitar

pelas comunidades, etc., etc.

Entretanto, quando a questão é a cultura, sem querer, a gente começa a reproduzir

o que ouve sistematicamente: aquela visão de que o que tem em favela é samba e

pagode e, hoje, hip hop. Sempre há esses rótulos, de tudo muito massificado, como

se fosse uma coisa só, igual, “a pobreza é toda igual, os barracos são iguais, a

cultura é igual”.

Quando me aprofundei nesse olhar para a cultura das comunidades, percebi que, de

fato, as coisas não são assim, é tudo bem ao contrário: se a favela de fora parece

um bloco, de cultura semelhante, do lado de dentro é completamente diferente. O

que eu já sabia do ponto de vista urbano, social e arquitetônico, fiquei sabendo com

relação ao que é artístico e cultural. A pluralidade e a diversidade são muito

grandes.

Foi no contexto do Guia que vim a conhecer o trabalho do Grupo do Beco e passei

então a acompanhar mais de perto sua trajetória, me encantei com eles e

redirecionei todo meu projeto de pesquisa para a dissertação.

Após o lançamento do Guia, me deparei com a necessidade de dar continuidade às

ações de apoio e divulgação dessa rica e intensa produção cultural que havíamos

mapeado, justamente por ter certeza de que o trabalho de pesquisa, apesar de toda

sua importância, perde seu objetivo se não avançar para a realização concreta da

mudança que se espera.

Confesso que foi essa minha incapacidade, desde sempre, de ser imparcial nos

processos de pesquisa, que me levou a fundar a ONG Favela é Isso Aí, dando,

então, continuidade às demandas identificadas mediante o Guia.

Lembranças e motivações à parte, a dissertação que agora, finalmente, publico, traz

reflexões baseadas, principalmente, em uma questão que muito me chamou a

atenção nos resultados do Guia: se somente 20% dos artistas cadastrados tinham

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renda com a atividade artístico-cultural, quais eram as motivações para continuarem

desenvolvendo seus trabalhos nessa área? Com essa questão em mente, parti,

então, para a pesquisa e as discussões que aqui se apresentam.

O trabalho está estruturado em seis capítulos, ademais dessa introdução. O

segundo traz as metodologias adotadas para a pesquisa, tanto do Guia, que aqui

também entra como fonte fundamental de informações, quanto do relacionamento

com o Grupo do Beco, recorte que fiz para minha dissertação.

O terceiro busca trazer uma discussão sobre a formação e componentes principais

da “mitologia urbana” que se formou em relação às favelas, suas representações e

conceitos principais.

Em seguida, o capítulo 4 volta seu olhar especificamente para a cidade de Belo

Horizonte e conta um pouco da história de ocupação e desocupação das áreas

faveladas ao longo das décadas e das sucessivas políticas públicas implantadas.

O capitulo 5 trata da realidade específica do Grupo do Beco: seu território, seus

atores, sua peça e suas motivações.

Por fim, os capítulos 6 e 7 trazem uma reflexão mais teórica que busca responder

àquela pergunta fundadora e dão algumas linhas que mostram a arte nas vilas e

favelas para além de sua função estética ou econômica.

Espero que essa experiência, vivida nos últimos 20 anos de minha vida profissional,

tenha algo a acrescentar ao debate de muitos, em Minas e fora dela, para o

reconhecimento das comunidades de vilas e favelas como elas são, ou seja, partes

do mesmo tecido social e urbano de que as cidades se constroem.

Como diria meu pequeno Benjamin, espantado ao ver, entre um prédio e outro, a

paisagem de um morro coalhado de casinhas: “Mãe, a favela ‘tá’ no meio do

mundo!!!”.

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2 METODOLOGIA

O trabalho para elaboração desta dissertação foi realizado através de três etapas

básicas, sobre as quais se discorrerá a seguir.

A primeira foi o aproveitamento da pesquisa do Guia Cultural de Vilas e Favelas de

Belo Horizonte, desenvolvido pela autora do presente estudo entre 2002 e 2004,

com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte – Fundo de

Projetos Culturais.

O projeto realizou o cadastramento, através de pesquisa de campo iniciada em

março de 2002 e concluída em novembro do mesmo ano, de todas as

manifestações culturais, artísticas, folclóricas e populares existentes e em

desenvolvimento nas vilas e favelas de Belo Horizonte. Vale destacar que entre o

início da pesquisa e sua publicação passaram-se quase três anos, por atraso na

liberação dos recursos, obrigando a que duas atualizações fossem feitas no período.

Para proceder ao levantamento dos dados, foram consideradas as seguintes áreas

culturais: Música, Teatro, Dança, Artes Plásticas, Artes Visuais, Literatura,

Artesanato, Folclore e Religiosidade, Escolas de Samba e Blocos Carnavalescos e

outras (atividades de caráter múltiplo, de cunho social ou que não se enquadravam

em nenhuma categoria mencionada).

Iniciou-se a pesquisa pela difícil delimitação do universo de trabalho. Difícil porque

percebeu-se que as áreas de ocupação com perfil designado vilas e favelas têm

grande fluidez em seu surgimento e adensamento, restando sempre a sensação de

que a base de dados está desatualizada.

Assim, optou-se por adotar a listagem oficial fornecida pela então Secretaria

Municipal de Habitação/URBEL, que indicava a presença de 226 áreas, incluindo

vilas e favelas com decreto ZEIS (Zona de Especial Interesse Social), além de

conjuntos habitacionais construídos pelo Poder Público municipal e outras áreas não

decretadas.

19

É importante realçar que das 226 áreas apontadas pela URBEL àquela época, 12

não foram localizadas em campo – algumas, porque já se urbanizaram e se

incorporaram à malha dos bairros do entorno; outras, porque de fato não existem

mais, como é o caso da Vila Camponesa (Regional Leste), desapropriada pelas

obras do metrô; e outras, porque ainda não estavam habitadas à época da pesquisa

de campo, como é o caso do Conjunto São Gabriel (Regional Nordeste). Quanto às

demais, foram todas visitadas pela equipe de campo do Guia e tiveram as

manifestações culturais e artísticas cadastradas.

Encontraram-se também núcleos de baixa renda não constantes da listagem oficial

da URBEL, mas optou-se por não incluí-los no levantamento, já que o parâmetro

adotado era o cadastramento das áreas constantes do universo reconhecido pelo

Poder Público municipal.

Definido o território, partiu-se para a realização de entrevistas com lideranças

comunitárias, a partir das quais se iniciou a busca de artistas e grupos culturais,

formando uma rede de informantes. O mapeamento em rede permitiu identificar e

cadastrar um número relevante de artistas em atividade, mas deixou de fora vários

deles, que não tinham sido indicados por ninguém, quebrando, de alguma maneira,

o ciclo da pesquisa que se propunha censitária.

Além do descompasso entre o universo de trabalho da URBEL e as vilas realmente

existentes na cidade, já mencionado, outros problemas enfrentados foram a

desatualização do cadastro de lideranças fornecido pelo órgão, a existência de

diversas lideranças no mesmo local, dificultando a identificação daquelas com maior

legitimidade e o desconhecimento, por parte das lideranças, dos artistas de sua

própria comunidade.

Foram utilizados dois questionários básicos para a pesquisa: um deles era destinado

às lideranças e levantava todo o contexto urbano e social da comunidade, incluindo

aspectos de saúde, educação, saneamento, segurança pública, iluminação, inclusão

social, emprego e renda; o outro era destinado aos artistas e buscava conhecer de

perto sua atividade, principais problemas e realizações.

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Além do cadastro dos artistas, foram também realizados cadastros de equipamentos

culturais, meios de comunicação locais e festas de cada uma das comunidades.

Os questionários foram digitados e tabulados e os dados e análises estatísticas

obtidos foram incorporados neste trabalho, como poderá ser visto no Capítulo 4.

Finalmente, vale destacar que o Guia, hoje, encontra-se totalmente desatualizado,

uma vez que a dinâmica das comunidades é bem grande, principalmente no que se

refere à formação e dissolução de grupos culturais. Entretanto, algumas

atualizações já estão sendo feitas e serão incorporadas, quando possível, na análise

deste trabalho.

A segunda etapa da pesquisa, após a escolha do Grupo do Beco como sujeito da

dissertação, foi a realização de entrevistas em profundidade com os participantes e

atores envolvidos no Grupo.

É importante, antes disso, destacar que a escolha do Grupo do Beco não se deu por

sua representatividade no universo da produção cultural das comunidades, já que,

no total de quase 700 grupos cadastrados pelo Guia, apenas 37, ou seja, menos de

5%, eram ligados à área do teatro.

A escolha se pautou pela tipicidade do trabalho do Grupo, dentro da temática

escolhida, isto é, um grupo que declaradamente se propunha a fazer arte em prol da

transformação social, um grupo que acreditava que o papel das manifestações

culturais nas vilas e favelas estava muito mais relacionado aos seus aspectos

sociais e políticos do que estéticos ou econômicos.

Após a escolha, o Grupo foi contatado e o projeto apresentado. A primeira reação foi

de rejeição. O Grupo colocou que já tinha sido, muitas vezes, objeto de análise de

outros estudantes e que não queriam ser sempre “ratinhos de laboratório”. Em

seguida, houve o questionamento, da parte deles, do que receberiam em troca da

pesquisa, fato que se dissolveu pelo contato permanente e aproximação mútua.

Realizaram-se, então, entrevistas coletivas com o Grupo, para conhecer sua história,

21

trajetória, sonhos, expectativas, etc. Esses encontros foram em número de quatro ou

cinco, todos gravados e conduzidos livremente a partir de um roteiro de questões de

cunho qualitativo.

As dificuldades de agenda do Grupo, somadas à necessidade e importância de se

ouvir cada um dos membros em separado, fizeram com que se partisse, então, para

as entrevistas individuais. No total, foram realizadas entrevistas com sete

representantes do Beco, com duas a três horas de duração cada uma, também

utilizando a mesma metodologia. Não foi possível entrevistar dois membros do

Grupo, além de um ator contratado, por problemas de agenda.

As entrevistas individuais aprofundaram mais na história de vida de cada ator do

Grupo, conhecendo sua trajetória prévia à sua entrada para o teatro e sua leitura da

importância da arte e da cultura em sua vivência e na de sua comunidade.

Em seguida, as entrevistas foram transcritas e analisadas, de forma a compor um

panorama geral do Grupo e do trabalho por ele desenvolvido. Em alguns momentos

do texto ora apresentado, são citadas partes das entrevistas sem, entretanto,

identificar o nome da pessoa ouvida, como forma de se preservar cada um dos

atores do Grupo.

Por fim, a terceira etapa do trabalho foi dada, não necessariamente nessa ordem,

pela leitura e análise de bibliografia relativa ao tema do trabalho e pela leitura e

análise dos materiais do Grupo, incluindo matérias de jornais, vídeos, fotos e o texto

da peça “Bendita a Voz entre as Mulheres”.

Do ponto de vista da bibliografia, mostrou-se ser pouco extensa e de difícil

identificação. Em primeiro lugar, no que se refere a um olhar específico sobre as

favelas de Belo Horizonte, já que a maioria absoluta dos trabalhos publicados foca

as favelas do Rio de Janeiro como fenômeno nacional. Em segundo, no que tange

às relações entre cultura e desenvolvimento social e humano, temática da qual muito

se tem falado, mas pouco publicado em termos de pesquisas empíricas conclusivas.

Talvez tenha sido esta a etapa mais difícil do trabalho, não somente porque

22

incorporou mais de perto o aspecto teórico em si e avançou na trilha das conclusões

do estudo, mas fundamentalmente, e principalmente, porque se utilizaram

parâmetros muito mais subjetivos na leitura das informações disponíveis.

Ao contrário dos dados do Guia, trabalhados estatisticamente e com potencial de

comparabilidade entre as diversas comunidades – ao contrário, também, das

informações vindas das entrevistas qualitativas, que focavam as histórias de vida em

suas particularidades, encontrando pontos de afastamento e aproximação –, a

análise da peça trouxe muito mais um olhar sobre o discurso, as representações e

visões dos próprios atores sobre sua comunidade, sua realidade e dificuldades,

vistas pelo ponto de vista de um observador não-morador, não detentor do código

utilizado pelos criadores da obra.

Nesse sentido, como se verá no capítulo dedicado à peça, buscou-se muito mais

descrever as falas e seu encadeamento do que interpretá-las de uma maneira

acabada e estanque, fornecendo ao leitor as respostas prontas.

23

3 CONCEITOS E REPRESENTAÇÕES DA FAVELA

Antes de iniciar a discussão a respeito da gênese e evolução das favelas em Belo

Horizonte e situar o tema da dissertação nesse contexto, buscar-se-á traçar um

breve relato a respeito dos aspectos simbólicos da temática favela. A intenção é

discorrer sobre as visões e representações da favela ao longo do tempo, abordando

um aspecto fundamental e determinante tanto para a identidade dos artistas

moradores dessas comunidades quanto para seu posicionamento perante o restante

da sociedade.

O que se pretende neste capítulo é apresentar um panorama das representações

sociais hegemônicas sobre as favelas, de forma a contextualizar o estudo das

manifestações artísticas ocorrentes nesses espaços e seus resultados do ponto de

vista da ação e da transformação social. Também interessa analisar como a

identidade da favela foi sendo construída ao longo do tempo, conformando essa

visão dominante.

3.1 Um século de favela: do bom selvagem ao abusado

Quando se pretende falar a respeito dos conceitos e representação das favelas na

sociedade em geral, bem como sua transformação ao longo do tempo, há, ao

contrário da temática da produção artística e seu papel, uma série de estudos já

disponíveis que aprofundam essa questão.

Ainda que praticamente todos eles estudem o fenômeno favela na cidade do Rio de

Janeiro, podem ser utilizados como referência para a discussão que se pretende

aqui realizar, pela proximidade das representações encontradas lá e cá a respeito

desses locais. Ademais, há que se lembrar que é a imagem da favela carioca que é

disseminada por todo o País e mesmo no exterior como estereótipo, pela mídia, o

que acaba contribuindo para nivelar um pouco as visões da sociedade a respeito de

todos os outros tipos de comunidade e ocupações humanas no restante do Brasil.

24

De acordo com Pandolfi (2003):

[...] poucos termos são ao mesmo tempo tão evidentes e tão opacos quanto favela. Sua evidência se dá num duplo sentido. O primeiro é estar ganhando visibilidade crescente, atraindo as atenções, ocupando de forma constante espaços significativos na mídia, constituindo-se em tema recorrente de debates. O segundo é que basta sua simples menção para que se produza, de modo automático, um efeito de reconhecimento e de assentimento. Isso significa não apenas que o termo se tornou de uso corrente, mas também que os seus sentidos passaram a ser partilhados, generalizados. Todos concordam a respeito do que é uma favela, todos são capazes de visualizar e de identificar claramente uma favela. (p. 21)

Essa familiaridade distante com o universo da favela, mediada pela televisão que

coloca dentro de cada casa a “realidade” dos morros, tem como conseqüência a

pasteurização, a homogeneização das áreas periféricas ou comunidades urbanas

ocupadas por populações de baixa renda. Áreas de morro, áreas de palafitas,

alagados, fundos de vale, áreas consolidadas urbanisticamente, áreas construídas

com materiais alternativos, áreas com ou sem infra-estrutura. Não importa: ao final,

tudo é visto como o estereótipo da favela carioca, no modelo Rocinha, por exemplo.

Essa concordância guarda relação com o fato de que as favelas são um dado concreto, são observáveis, têm uma objetividade. Elas delimitam um espaço com características próprias, que as distinguem do seu entorno. São estas características físicas, suas marcas externas mais aparentes, que, em primeiro lugar, dão base à sua identificação como ocupações irregulares do espaço urbano, cujas construções são toscas e feitas de forma desordenada. Desassistidas e privadas de infra-estrutura, de serviços básicos e de condições de higiene e saúde, estão mais sujeitas às intempéries, com deslizamentos nas que se localizam em áreas de risco de encostas, e enchentes naquelas instaladas em terrenos planos. Espaços-dormitório, as favelas seriam formadas por uma população que dela se desloca para trabalhar ou buscar trabalho e lá se encontra por absoluta falta de alternativa. Conseqüentemente, tão logo se apresente uma alternativa razoável, essa população tenderia a deixá-las, não vendo sua presença ali como algo definitivo. Mais do que dormitórios, portanto, elas seriam espaços transitórios, locais de passagem. (PANDOLFI, 2003, p. 21).

No caso específico de Belo Horizonte, a situação encontrada nas áreas

denominadas “vilas e favelas” desmente, na grande maioria dos casos, esse

panorama. Como se verá no capítulo que se segue, a partir da década de 1980 uma

série de programas foram sendo implantados nessas áreas, transformando sua

situação urbanística e reduzindo significativamente os problemas de infra-estrutura e

saneamento básico. Por outro lado, é cada vez maior o número de famílias que,

nascidas e crescidas nas favelas, não desejam se mudar de suas comunidades e

25

afirmam categoricamente as vantagens do “morro” em relação ao “asfalto”.

De qualquer forma, o imaginário coletivo continua identificando favela por seus

traços estereotipados e exagerados que, na maioria dos casos, não encontram eco

na realidade.

Partilhada pela mídia, pela academia, pelo Estado, pelas agências de desenvolvimento e pelas ONGs, essa representação das favelas extrai a sua força justamente de sua evidência, do fato de corresponder a dados concretos e de poder ser objetivamente observada. Nelas existem pobres, haja vista o próprio aspecto das moradias, a infra-estrutura e os serviços públicos são realmente precários, e não há como negar que hoje o tráfico de drogas tem ali uma de suas faces mais visíveis. Entretanto, se tudo isso é verdade e constitui uma pauta de graves problemas a serem solucionados, é preciso notar que é nessa evidência mesma que reside a opacidade da favela, pois ela produz a certeza de que já se conhece a favela, sem que seja preciso conhecê-la efetivamente. Ela induz e direciona o nosso olhar, condicionando o que ver e como ver; leva-nos a perceber e tratar como unidade a favela e os favelados, aquilo que, de fato, é marcado por uma extrema diversidade. A representação sobre a favela impõe-se, assim, à realidade das favelas. (PANDOLFI, 2003, p. 23).

A visão atualmente dominante a respeito das favelas no Brasil, da qual Belo

Horizonte não foge à regra, foi sendo construída ao longo do último século, tempo

de existência dessa formação urbana tipicamente nacional. 1

O discurso mais disseminado na análise da gênese e formação das favelas tem o

ano de 1897 como marco fundador, relacionado à ocupação do Morro da

Providência, no Rio de Janeiro, por veteranos da Guerra de Canudos, com

autorização do Ministério da Guerra, de onde teriam trazido o nome de uma planta

(fava) comum nas duas regiões.

Entretanto, Souza afirma que na verdade a ocupação desta área é anterior a 1865,

sendo que apenas no final deste século começou a ser vista como problema digno

de atenção pela sociedade, tanto do ponto de vista demográfico e urbano quanto

higiênico e sanitário.

1 Para maiores detalhes sobre a evolução das representações das favelas, ver Zaluar (2004), Silva (2005) e Valladares (2005). Apesar de algumas diferenças nas abordagens dos três autores, a linha histórica que traçam sobre as favelas cariocas é semelhante e foi utilizada como referência neste capítulo.

26

Segundo Maurício Abreu (1994), os barracões situados em morros não eram raros na paisagem carioca do século XIX. Alguns relatórios de 1865 já citavam essas habitações. Dispersas e pouco numerosas, no entanto, não se destacavam na paisagem urbana da época. Tais habitações populares ainda não faziam parte das preocupações da sociedade, mais assustada com os cortiços e casas de cômodos que não paravam de crescer na cidade, principalmente no centro. [...] Além de perigosos, os cortiços e casas de cômodos eram considerados ambientes insalubres, anti-higiênicos e focos de doenças (cólera, peste, varíola e febre amarela) que assolaram a cidade a partir de 1850. (SILVA, 2005, p. 25).

E é justamente da desocupação dos cortiços, pela guerra sanitarista, que vão se

intensificar as ocupações no Morro da Providência e outros morros cariocas,

transformando aos poucos um nome próprio (Morro da Favella) no nome genérico

favela.

Foi a partir do ‘Morro da Favella’ que se começou a generalizar, na imprensa, a associação do termo ‘favela’ à imagem de ‘perigo’ e de ‘desordem’. A favela já era lugar de malandros e marginais. [...] Tais conceitos são reforçados com a Revolta da Vacina (1904) e, com o decorrer dos anos, gradativamente a imagem de ‘terra sem lei’ acaba por refletir-se também em outros espaços populares da cidade com paisagens semelhantes. Os distúrbios mais sérios da Revolta da Vacina teriam ocorrido do sopé do Morro da Providência, onde muitos moravam ou passaram a refugiar-se, o que acabou aumentando a má fama da favela.... (SILVA, 2005, p. 27).

Deslocando-se a população dos cortiços para os morros e áreas menos centrais,

desloca-se também a preocupação sanitarista e higienista. “Assim, o discurso

higienista, que enfatizava os riscos das habitações precárias para a saúde pública,

passou a direcionar-se para esse tipo de alternativa habitacional.” (SILVA, 2005, p.

29).

Os discursos veiculados pela mídia e poderes constituídos, desde então, mostram o

Rio de Janeiro com uma visão dual, de duas cidades distintas dentro da mesma

Capital Federal. De acordo com Zaluar (2004), todos os autores que trataram a

cidade entre 1908 e 1923 usaram o conceito de dualidade em suas descrições,

pensamento cuja origem insere-se na visão dual da própria sociedade brasileira. “No

Rio de Janeiro, essa reflexão sobre a dualidade brasileira encontrou na oposição

favela x asfalto uma de suas encarnações.” (ZALUAR 2004, p. 13).

E ainda:

27

[...] a classificação bipolar surge de uma ordem social imaginada de tal modo que qualquer ambigüidade, fronteira sombreada e experiência contínua oferecem poucos instrumentos para pensar esses problemas. Essa classificação é devedora de uma ordem social que se estriba na clareza de quem são os amigos e os inimigos, ou seja, uma ordem pré-moderna, das sociedades de pequena escala, das províncias, mas dificilmente aplicável às metrópoles. (ZALUAR, 2004, p. 19-20);

Negativa quando se refere a condições de vida e segurança, positiva quando se fala

de arte e cultura, a favela conquista adeptos e perseguidores desde seu

aparecimento.

Do ponto de vista dos admiradores, vale citar o modernismo, já na década de 1920,

como um dos movimentos que reafirmou a beleza da favela e a idealizou como

característica genuinamente nacional, retrato da garra e criatividade do povo

brasileiro.

Logo também seria reconhecida como ‘berço do samba’ e dona de uma admirável beleza rústica, para indignação dos setores conservadores. Essa nova concepção da favela contribuiu para o aparecimento de uma lógica paradoxal que, dali até a década de 1980, conduziria os olhares sobre o território. O espaço popular da década de 1920 em diante passa a ser visto também na condição de palco de ‘musas e poetas’ do samba. Em sua pobreza, afinal, havia espaço para a beleza e o lirismo da cultura popular brasileira. É a exotização da favela e de seus moradores. (SILVA, 2005, p. 34).

A imagem do bom favelado foi mote nessa época e nas décadas vindouras,

especialmente na sociedade carioca, que tanto conviveu e convive com artistas

moradores das comunidades pobres. Ícone dessa convivência, Hélio Oiticica foi um

artista que, na década de 1960, era amigo do famoso Cara de Cavalo e realizou

obra de protesto após seu massacre pela polícia carioca.

A estereotipia das favelas e seus moradores faz-se presente não só na forma conservadora [...] como também em uma forma supostamente progressista. Na primeira, os jovens aparecem como criminosos em potencial ou como colaboradores de forças criminosas. Na representação progressista, os residentes em favelas, há algumas décadas, eram identificados por alguns setores sociais como ‘bons favelados’. O juízo estabelecia uma analogia com a visão romântica do bom selvagem, símbolo antimoderno de uma cidade racional e individualista. Embora essa idealização ainda se faça presente, tornou-se mais comum, entre os que assumem a perspectiva identificada como progressista, sua identificação como vítimas passivas – e intrinsecamente infelizes – de uma estrutura social injusta. (SILVA, 2005, p. 60).

28

De acordo com Oliveira e Marcier (apud ZALUAR, 2004), que estudaram os

conceitos e representações da favela por intermédio de letras de música, a favela foi

vista, ao longo de sua existência, das seguintes maneiras: o espaço do pobre, o

espaço do samba (ainda que este tenha subido, e não descido o morro), a não-

cidade, o locus da marginalidade urbana e, por fim, como uma questão social.

Ao mesmo tempo em que, por uma visão idealizada, as letras de música enaltecem o lugar, enaltecem também os laços de vizinhança, companheirismo e união existentes entre os moradores da favela. Em nítida oposição à ‘cidade’, onde predominariam as relações impessoais, a favela seria o locus, por excelência, das relações personalizadas: nela, todos se conhecem, todos se ajudam [...]. (OLIVEIRA; MARCIER apud ZALUAR, 2004, p.79).

Mas as próprias letras de música reforçam a favela como o local da violência, ontem

e hoje.

Mas se o conjunto dessas letras, produzindo uma visão mítica da marginalidade, tende por isso mesmo a reforçar o estigma que historicamente foi lançado sobre a favela como uma espécie de território sem lei e sobre seus moradores como ‘classes perigosas’, em outras tantas letras a imagem se dá exatamente na direção contrária [...] ao estigma da malandragem se contrapõe a representação de um trabalho duro e mal remunerado; ao da criminalidade, a caracterização de uma gente decente e honesta, que socializa seus filhos por meio de uma ética que enaltece o trabalho e recusa a delinqüência. ‘Ser pobre é não delinqüir’. (OLIVEIRA; MARCIER apud ZALUAR, 2004, p.96).

Vista também como lugar da desordem, inúmeros artigos veiculados pela imprensa

apresentam a favela como

[...] um espelho invertido da civilização (ZALUAR, 1998) e oposta aos anseios por uma cidade moderna, ordenada, civilizada e limpa. Colaborou para a construção deste estigma o fato de a lei de então classificar de vagabundo todo aquele que não tivesse domicílio certo [...], o que incluía, é claro, os moradores das favelas, pois suas casas não eram consideradas residências fixas, mas sim de caráter provisório. Como se não bastasse, ainda ocupavam terrenos de terceiros. (SILVA, 2005, p. 30).

De acordo com Silva (2005), as principais marcas da representação social

hegemônica sobre as favelas são os conceitos de ausência, de homogeneidade e de

distância. Assim, a favela é o lugar do “falta”, do “não tem”; as formas de ocupação

são consideradas todas muito semelhantes; e a distância entre nós e eles é sempre

reforçada, tanto do ponto físico quanto mental e social.

29

Concentrando a pobreza, elas também expõem de forma pura aquilo que é apontado como sua característica peculiar, tanto em termos positivos quanto negativos. Por um lado, são tidas como o lugar, por excelência, de determinadas formas de expressão marcadamente populares, como o samba e o carnaval. Por outro, são temidas como territórios dominados pela violência, por grupos, como os do tráfico de drogas, que impõem seu predomínio por meio das armas e do terror. Se por um lado a violência é percebida como traço identificador das favelas, por outro ela é atribuída não só à pobreza, mas também à ausência do Estado. Cumpre destacar, porém, que essa ausência não se traduz apenas na incapacidade de garantir a ordem, impondo o monopólio da violência legítima, mas também na inexistência de investimentos significativos em infra-estrutura, saneamento, saúde, educação e transporte. Portanto, ficando à margem daquilo que configura a pauta de direitos mínimos da cidadania, as favelas teriam na exclusão social mais uma de suas marcas identificadoras básicas. (PANDOLFI, 2003, p. 22).

Nesse sentido, os próprios conceitos utilizados nos dias atuais pelos Poderes

Públicos para definir as áreas de favela estão focados na noção de ausência. A

favela, em geral, pode ser caracterizada, nas representações que dela se faz, como

o lugar por excelência da ausência, da falta.

O eixo da representação da favela é a noção de ausência. Ela é sempre definida pelo que não teria: um lugar sem infra-estrutura urbana – água, luz, esgoto, coleta de lixo –, sem arruamento, sem ordem, sem lei, sem moral e globalmente miserável. Ou seja, o caos. (SILVA, 2005, p. 24).

Essa concepção da favela como local sem ordem, sem higiene, sem moral, sem lei,

está na origem das políticas públicas destinadas às favelas, que, desde seu início,

estiveram predominantemente focadas na remoção das famílias desses locais.

No caso do Rio de Janeiro, a expansão das favelas vai se dando de maneira

gradual, chegando ao ano de 1920 com cerca de 100 mil pessoas habitando

diversos núcleos, marcando definitivamente a afirmação dessa forma de solução

habitacional no seio da Capital da República. Em resposta aos apelos da sociedade

pela “civilização” da cidade, é criado o Plano Agache, em 1927, que tinha como

objetivo a “remodelação, extensão e embelezamento” da cidade, mas que,

entretanto, não logrou realizar a remoção das favelas do cenário da Cidade

Maravilhosa.

Somente na década de 1940 a remoção de algumas áreas de favela se dá, com a

constituição dos Parques Proletários, que tratavam não somente de construir novas

moradias – muito mais precárias, às vezes, do que as de origem dos removidos –,

30

mas também de impor-lhes regras de convivência, de moral e bons costumes, numa

“pedagogia civilizatória”.

Silva (2005) atenta para o fato de que pelo menos um ponto positivo adveio da

política dos Parques Proletários: a formação de organizações comunitárias dos

moradores de favelas, que deram origem a todo um movimento associativo cujo

ápice foram os anos de 1960.

Em 1948 realiza-se o primeiro censo das favelas do Rio de Janeiro, pela prefeitura,

que trouxe uma série de concepções vigentes à época, expressas pela voz oficial da

municipalidade.

Segundo o texto, os ‘pretos e pardos’ prevaleciam nas favelas por serem ‘hereditariamente atrasados, desprovidos de ambição e mal ajustados às exigências sociais modernas’. [...] ‘Renasceu-lhe [ao ‘preto’] a preguiça atávica, retornou a estagnação que estiola [...] como ele todos os indivíduos de necessidades primitivas, sem amor próprio e sem respeito à própria dignidade’ [...]. (ZALUAR, 2004, p. 13).

Assim, além de ser o local da desordem e da falta de higiene e moral, a favela

aparece como culpada por sua própria existência, por abrigar pessoas preguiçosas,

atrasadas, sem amor próprio, praticamente animais.

A política de remoções continua nas décadas de 1950 e 1960, ao mesmo tempo em

que se intensificam as ocupações de novas áreas. Em 1970, as estimativas indicam

um total de 162 favelas no Rio de Janeiro, com população de aproximadamente 565

mil habitantes. Silva relaciona a necessidade de liberar terrenos para a especulação

imobiliária na zona sul com a intensificação da prática remocionista nas décadas de

1960 e 1970.

Por um lado, o discurso sustentava-se na idéia de suprimento do déficit habitacional, oferecendo aos moradores das favelas a possibilidade de aquisição da casa própria, em condições legais. Por outro, ao atuar de forma muito mais enfática na zona sul da cidade, área muito valorizada do ponto de vista imobiliário, revelou-se o compromisso de liberar terrenos para a expansão imobiliária, de acordo com os interesses do mercado. (SILVA, 2005, p. 44).

Durante os anos do Governo Militar, a visão dominante era mais fortemente a da

necessidade de se disciplinar os favelados, recuperar moralmente, socialmente e

31

higienicamente as famílias e resgatar a estética da cidade.

[...] entre 1962 e 1973, quase 140 mil pessoas foram removidas e transferidas para conjuntos habitacionais. Os impactos foram profundos: redes sociais desfeitas e a proximidade do local de trabalho, que propiciava uma economia significativa com o transporte, não existia mais. Da mesma forma, fazer qualquer tipo de ‘bico’ para engrossar o orçamento tornou-se difícil. Para completar, as famílias não tinham mais com quem deixar os filhos ou com quem pegar algum dinheiro emprestado. Toda uma rede de relações criada ao longo de anos na vida da favela foi esfacelada. (SILVA, 2005, p. 47).

Somente a partir do final da década de 1970 começa a se criar um novo olhar sobre

as favelas e suas formas de tratamento. Tanto a partir de fatores exógenos, como as

políticas e preocupações de organismos internacionais e órgãos financiadores,

quanto endógenos, como a formação de organizações fortes de moradores e a

atuação da Igreja Católica, vão sendo transformadas as políticas remocionistas em

políticas urbanizadoras.

Os frágeis barracos, facilmente destrutíveis, desapareceram. Desde o final dos anos 70, a favela tem luz em cada casa. Durante os anos 80 ela adquiriu serviços, mais ou menos precários, de água e esgoto. Ninguém fala mais de remoção. (ZALUAR, 204, p. 21).

Nessa nova concepção, o importante passa a ser recuperar, urbanizar e regularizar

as áreas de favela, para que seus moradores possam ter melhores condições de

vida no próprio local. Essa visão foi o germe do programa Favela-Bairro, da

Prefeitura do Rio de Janeiro, que perdura até os dias atuais. Fundamental nesse

processo também é a participação popular, por meio das organizações comunitárias.

O processo de democratização ocorrido durante a década de 1980 deu novo impulso ao associativismo nas favelas, o que implicou a maior organização em torno de reivindicações estruturais. Paradoxalmente, a definição histórica das favelas centrada na degradação da paisagem facilitou o aumento de reivindicações por obras de infra-estrutura. A organização popular conseguiu uma significativa ampliação do acesso regular à água, esgoto, coleta de lixo, asfaltamento e iluminação. Além disso, difundiram-se as construções de escolas, creches e postos de saúde, bandeiras centrais na busca de uma melhor qualidade de vida para os moradores. O item no qual menos se avançou foi justamente o que coloca em questão, de modo mais incisivo, as formas de apropriação e uso do espaço urbano – no caso, o acesso à titulação da propriedade. (SILVA, 2005, p. 51).

Como se verá no próximo capítulo, o processo apresentado foi muito semelhante ao

32

ocorrido em Belo Horizonte, onde, a partir da década de 1980, surgiu o

PRODECOM, marco histórico na consolidação das favelas da cidade.

A partir da década de 1990, em geral, e particularmente a partir dos anos 2000, uma

nova transformação na visão e representações sobre as favelas vem se

processando. Essa nova visão está intimamente relacionada ao incremento do

tráfico de drogas e às guerras nos morros cariocas, e, mais recentemente, na cidade

de São Paulo, que trazem um novo modelo de marginalidade e convivência com a

violência, tanto aos moradores das favelas quanto à população como um todo.

A crueldade e a frieza dos chefes do tráfico são apresentadas cotidianamente na

mídia e contribuem para o acirramento das distâncias sociais e da discriminação

dada pelo local de moradia.

A lógica que caracteriza, de forma consciente ou não, a percepção desses setores sociais é de que o direito ao exercício da cidadania não é inerente ao nascimento do indivíduo no Estado-nação, conforme define a Constituição brasileira. O reconhecimento da cidadania é relativizado, de acordo com a cor da pele, o nível de escolaridade, a faixa salarial e/ou o espaço de moradia dos residentes na cidade. O juízo se expressa, de forma particular, no maior ou menor grau de tolerância com as diferentes manifestações de violência, de acordo com o alvo da agressão e não com o ato em si. (SILVA, 2005, p. 7-8).

As pesquisas realizadas por MV Bill e Celso Athayde, (2006) por um lado, e por Luiz

Eduardo Soares, por outro, e que tiveram como produtos o livro “Cabeça de Porco” e

o documentário “Falcões do Tráfico”, esse último apresentado no Fantástico, Rede

Globo, mostram uma face cruel do tráfico e uso de drogas nas favelas e bairros

populares em várias partes do País.

Da mesma forma que as obras de Zuenir Ventura (“Cidade Partida”) e Caco

Barcellos (“Abusado”) trazem a presença de um novo ator no cenário social da

favela: não mais o bom favelado, o bandido protetor da comunidade, o padrinho,

mas, sim, um ser mostrado pela mídia como quase “monstro”, com valores

completamente diferentes dos dominantes na sociedade, frio e pragmático.

O propósito do livro é traçar um vasto painel realista sobre a violência instalada em vários estados brasileiros. A intenção não é denunciar. É compartilhar com os leitores preocupações e reflexões, na perspectiva de

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manter viva a esperança. O inferno está perto de nós, é verdade. Mas há saída, sim. Basta olhar de perto e sentir o sopro de humanidade que vibra sob a máscara dos monstros. (ATHAYDE, 2006, p. 14).

O contraponto dessa visão, hoje, é a redescoberta das artes das favelas pela grande

mídia, através do funk e do rap, principalmente. Chegando às emissoras de maior

audiência, haja vista o programa Central da Periferia, na Rede Globo, mais uma vez

a indústria cultural busca na arte popular a expressão vendável e o alimento para o

mercado do entretenimento. De acordo com Zaluar (2004):

[A favela] sempre foi sobretudo o espaço onde se produziu o que de mais original se criou culturalmente nesta cidade: o samba, a escola de samba, o bloco de carnaval, a capoeira, o pagode de fundo de quintal, o pagode de clube. Mas onde também se faz outro tipo de música (como o funk), onde se escrevem livros, onde se compõem versos belíssimos ainda não musicados, onde se montam peças de teatro, onde se praticam todas as modalidades esportivas, descobrindo-se novos significados para a capoeira, misto de dança, esporte e luta ritualizada. (ZALUAR, 2004, p. 22).

Finalizando, o que se buscou mostrar neste capítulo é como os conceitos e

representações da favela, ao longo do tempo, pautaram-se por uma dualidade, um

paradoxo que tem como seus dois termos exaltação e discriminação.

Ainda que o segundo tenha predominado no imaginário popular, ligado

principalmente ao recrudescimento da violência e do tráfico de drogas a partir da

década de 1990 e a respectiva ênfase da mídia em seus aspectos negativos, é o

primeiro aspecto que tem contribuído para a transformação das formas de inserção

social e mobilização dos moradores das favelas com o restante da sociedade.

Ao longo da história, foi através de suas manifestações artísticas, endêmicas ou

importadas, que a favela teve algum tipo de reconhecimento e aceitação. Primeiro,

pelo samba e o carnaval; depois, pelo rap e pelo funk. Hoje, por sua multiplicidade e

diversidade cultural, é por intermédio da arte que o morador de favela encontra seu

lugar e seu valor nas representações sociais. Por isso, esse é o objeto deste

trabalho.

34

3.2 Morro, asfalto, comunidade, cidade – o território como conceito-chave

Como não poderia deixar de ser, a discussão a respeito das favelas, suas

representações e sua produção cultural passa necessariamente por um conceito-

chave que é o de território. Esse conceito é tão importante para a temática que,

qualquer que seja o viés que se adote, passa-se necessariamente por essa

discussão.

O trabalho, a cultura, o consumo, a moradia, os serviços, as ruas e avenidas, enfim, as bases materiais e simbólicas da sociedade repousam nas condições espaço-temporais em que as ações e intenções humanas se efetivam concretamente. A cidade é obra humana territorialmente impressa. É por isso que, quando falamos em sociedade, estamos falando sempre de uma relação sujeito-território. (SILVA, 2005, p. 100).

A importância do território para os moradores da periferia é maior do que deixam

antever as reportagens sobre moradores em fuga do tráfico e a construção social de

uma imagem do eterno migrante sem laços, mais vinculável, de fato, à população de

rua.

No caso de Belo Horizonte, em sua grande maioria oriundos de cidades do interior

de Minas ou de estados do Nordeste, os moradores das vilas e favelas enxergam,

apesar de quaisquer problemas, seu local de moradia como uma conquista.

Defender a casa com unhas e dentes, às vezes às expensas da própria vida,

recusar-se a mudar – a não ser em casos extremos –, construir com as próprias

mãos o seu lar e edificar laços de vizinhança duradouros são as regras e não as

exceções nas vilas e favelas.

É claro que esse sentimento é mais forte entre os mais velhos. Mas também entre

aqueles que já nasceram na favela, a afirmação da origem e o apego ao território

parecem ser processos presentes, ainda que as identidades sejam cada vez mais

múltiplas e não condicionadas apenas a este ou aquele fator.

Como recolhido em uma das entrevistas com o Grupo do Beco, companhia de teatro

cuja trajetória é narrada neste trabalho,

35

“ser identificado como artista de favela tem para nós um lado positivo e um lado negativo. O positivo é que, de uma forma ou de outra, nos dá mais visibilidade e faz com que as pessoas fiquem mais curiosas para conhecer o nosso trabalho. Quanto ao negativo, é perceber que todos se espantam ao ver a qualidade de nosso trabalho, como se favelado não pudesse fazer nada bom!”. (Entrevista com o Grupo Beco)

Nesse caso, a instrumentalização da origem territorial como fator distintivo esbarra

na difícil constatação de que o preconceito existe e parece se alastrar, em proporção

direta ao aumento da insegurança social.

A afirmação do território como base da identidade construiu, ao longo da história,

algumas dicotomias que identificam o lugar social de onde se fala, no caso das

favelas. Uma das principais dicotomias é aquela utilizada na expressão morro x

asfalto. Fruto de uma época e de uma configuração espacial específica (os morros

cariocas, e antes da chegada da urbanização), a dicotomia ainda hoje é usada – na

mídia, pela população e por pesquisadores – para marcar a distância entre as

comunidades faveladas e o restante da cidade.

Ademais, a utilização do termo “morro”, em contraposição a “asfalto”, além de não

refletir a real situação da maior parte das favelas, que se configura de maneira

diferencial no espaço, também traz em si o errôneo pressuposto de que haveria uma

identidade comum dada pelo local de moradia, isto é O Favelado, com maiúsculas.

As favelas e loteamentos irregulares são identificados, em geral, pelos órgãos públicos municipais do Rio de Janeiro como espaços informais, em função da ausência do cumprimento de determinadas normas urbanas legais. Nesse caso, os bairros seriam os espaços formais. A generalização dos termos contribui para ampliar a imprecisão sobre as características desses territórios. O termo asfalto, utilizado historicamente pelos moradores da favela para denominar os bairros, tem caído em desuso. Atualmente, nas favelas cariocas, quando se fala a respeito da própria localidade, utiliza-se, em geral, comunidade; mas quando se refere a outros espaços análogos, é usual o termo favela. (SILVA, 2005, pé de página, p. 57).

Essa discussão insere um novo conceito, que é o de comunidade. Mais complexo do

ponto de vista de sua conceituação, o termo comunidade é utilizado, nas favelas,

para designar um espaço social de iguais, ou seja, é um conceito fundamentalmente

de identidade coletiva. Fazem parte da comunidade não apenas aqueles que

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residem em seus limites físicos, mas aqueles com os quais se estabelece uma

identificação, com os quais se partilham as dificuldades e cumplicidade da vida na

favela.

A dicotomia cidade x favela, também comum, indica que as áreas faveladas

estariam fora da polis – como se isso fosse possível –, seriam a ela externas e

estranhas.

Eu tenho muito medo da cidade. A gente sempre, ai, eu tenho medo de subir o morro, mas eu tenho muito medo da cidade. Eu tenho muito medo de ser engolido por ela, dessa coisa do calculismo, tudo é concorrência, tudo. Você encontra uma pessoa, cê conversa com a pessoa, a pessoa já tá querendo te sugar, não como referência, mas como concorrência, entende? Eu fico me fiscalizando o tempo inteiro pra eu não me vender pra ela, sabe, porque eu tenho os meus ideais, eu tenho a minha ideologia, e eu tenho muito medo da cidade. Eu tenho muito medo, porque a cidade, ela não é humana. As relações humanas não existem, quando existem, são raras. Sabe, assim, essa coisa da superficialidade, eu não güento, eu não suporto. A favela, por mais fingimento, por mais fofoca que tenha, tem o lado humano. Por mais que fique uma pessoa o tempo inteiro na rua, vendo, controlando quem tá chegando, quem tá saindo, se você for conversar com essa pessoa, cê vai ver que tem um humano ali. Se você precisar dela, igual eu precisei, minha mãe faleceu, ela ficou aqui com meu pai, ficou telefonando pra Deus e o povo, sabe, deu maior assessoria, fez comida, sabe? Morre alguém no bairro Anchieta! O vizinho nem sabe que morreu! Eu tenho medo disso! A cidade, ela é muito maior! Essa coisa da concorrência exacerbada. E é tudo como um código de barra! A favela não tem, num dá essa importância que o código de barra tem. A cidade não. (CÉSAR - Grupo do Beco apud NOGUEIRA, 2004, p. 50).

As próprias letras de música expressam esta oposição:

[...] se, por um lado, nas letras das composições, o retrato da favela é feito com base em suas características intrínsecas, por outro, essa mesma imagem se constrói de forma relacional, sendo os elementos definidores traçados a partir da e com referência à cidade. Quando isso ocorre, o que chama a atenção, num primeiro plano, é a rígida demarcação que se estabelece entre ambas, fazendo com que a cidade seja vista como uma coisa e a favela como outra. Inúmeras são as referências musicais que tratam a favela como algo alheio, algo que não faz parte, algo, enfim, que é distinto da cidade, não importa a situação, os personagens ou os sentimentos que aí estejam envolvidos. (OLIVEIRA, apud ZALUAR, 2004, p. 90).

Referindo-se a artigo da revista Veja denominado “A periferia cerca a cidade”, Silva

(2005, p. 58) aponta:

37

[...] os espaços periféricos e favelados são vistos, nessa proposição, como externos à polis, ou seja, ao território reconhecido como o lugar, por excelência, de exercício da cidadania. Nessa lógica, o reconhecimento da cidadania é relativizado de acordo com a cor da pele, o nível de escolaridade, a faixa salarial e o espaço de moradia.

E completa: "O primeiro passo é acabar com a relação favela e asfalto. O

reconhecimento realmente democrático dos direitos à cidade passa por uma nova

apropriação do espaço urbano. A cidade, antes de mais nada, é uma só." (SILVA,

2005, p. 90).

Em Belo Horizonte, ao contrário do Rio de Janeiro, um termo habitualmente usado,

tanto no passado quanto nos dias atuais, é o de vila, como sinônimo de favela.

Ainda que haja tentativas de classificar e hierarquizar as duas designações, fato é

que ambas sempre foram usadas para tratar os mesmos espaços, apenas

considerando a distinção de que o termo vila seria menos pejorativo do que o termo

favela.

A Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte, responsável pela implementação da

política pública habitacional na cidade em geral, e nas favelas, em particular, define

favela como uma ocupação espontânea e irregular, sem propriedade legal, sem

infra- estrutura, por população de baixa renda (economicamente carente). Mais uma

vez a noção de ausência se impõe, assim como a noção de irregularidade, daquilo

que não é o certo, o desejável.

Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as favelas são

classificadas como aglomerados subnormais, isto é, ao pé da letra, localidades

abaixo do normal.

[...] também designados ‘assentamento informal’, independente do material utilizado em sua construção, como, por exemplo: favela, mocambo, alagado, barranco de rio, etc. O que caracteriza um aglomerado subnormal é a ocupação desordenada e quando de sua implantação não havia posse da terra ou título de propriedade. (IBGE, Manual do Recenseador, censo 2000, p. 43).

Também para o Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte

(PLAMBEL), primeiro órgão responsável pela normatização do espaço urbano na

Região Metropolitana de Belo Horizonte, o conceito de favela reforçava a noção de

38

“desobediência” ou desordem, ainda que tivesse a importância de introduzir, por

outro lado, o reconhecimento do “fenômeno favela” como alternativa habitacional.

Favelas são assentamentos residenciais de baixa renda, destituídos de legitimidade do domínio de terrenos, cuja forma de ocupação se dá em altas densidades e em desobediência aos padrões urbanísticos legalmente instituídos. Conformam-se em espaços de topografia acidentada, fragmentados em áreas de reduzidas dimensões e ocupadas por construções rudimentares. Seu sistema de articulação é adaptado às condições topográficas locais, constituindo-se em grande parte de caminhos de pedestre, sendo raras as vias para acesso externo. O fenômeno favela faz parte intrínseca da paisagem das grandes cidades brasileiras. Tem sua origem no modelo capitalista dependente no qual se insere o País. As favelas surgem como estratégia de apropriação do espaço pelos estratos de mais baixo poder aquisitivo e de menores condições de participação nos benefícios da cidade. Assim, na RMBH (Região Metropolitana de Belo Horizonte) essas aglomerações não podem ser consideradas como algo externo à sua comunidade socioeconômica, mas compreendidas como a alternativa encontrada por determinadas pessoas para se abrigarem e estarem próximas aos seus “negócios”; enfim, como maneira de habitar. O Poder Público, identificado com a lógica do sistema econômico, tende a canalizar seus investimentos segundo políticas excludentes, fazendo com que as camadas de menor poder aquisitivo pouco usufruam dos benefícios da urbanização. (PLAMBEL, 1983).

Por fim, basta olhar o Dicionário para compreender como o conceito de favela é

utilizado e definido pela sociedade brasileira: um local tosco e sem higiene. No Novo

Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, o vocábulo favela

está assim definido:

Favela. S.f. Bras. 1. Conjunto de habitações populares toscamente construídas (por via de regra em morros) e desprovidas de recursos higiênicos. [Sin.: morro (RJ) e caixa-de-fósforos (SP).] 2. V. faveleiro. (HOLANDA, s/d., p. 618).

É possível, também, um olhar para outras regiões do planeta para se discutir o

conceito de favela. “Planeta Favela” (Planet of Slums), de Mike Davis, é um livro

escrito por um americano sobre um tema que os brasileiros teimam em dizer que é

genuinamente nacional, a Favela. A pesquisa mostra como as periferias em todo o

mundo vêm crescendo em ritmo acelerado, a partir de estudos de crescimento

demográfico das grandes metrópoles, indicando que, seja na América, ou na Ásia, a

tendência é que o mundo se transforme em um grande bolsão de pobreza.

Nesse livro, o autor deixa de lado o purismo conceitual, adotado por muitos

39

estudiosos das favelas brasileiras, e, seguindo as definições adotadas pela ONU2,

compara áreas em todo o mundo com características semelhantes, principalmente a

alta densidade demográfica e concentração de populações economicamente

carentes em bolsões de pobreza urbana. De acordo com ele,

[...] os autores de The Challenge of Slums [...] conservam a definição clássica da favela, caracterizada por excesso de população, habitações pobres ou informais, acesso inadequado à água potável e condições sanitárias e insegurança da posse da moradia. Essa definição operacional, adotada oficialmente numa reunião da ONU em Nairóbi, em outubro de 2002, está ‘restrita às características físicas e legais do assentamento’ e evita as ‘dimensões sociais’, mais difíceis de medir, embora igualem-se, na maioria das circunstâncias, à marginalidade econômica e social. (DAVIS, 2006, p. 33).

Retomando a discussão anterior, a importância do território como fator de identidade

para o morador da favela é impactada pelas visões negativas que as diversas

designações do espaço carregam. Se a favela é sempre definida como lugar da

ausência, da subnormalidade e da irregularidade, como esse morador se vê ao

habitar tal território?

[...] Suas obras sempre foram interpretadas e tratadas como ilegais, irregulares, informais, subnormais e clandestinas, por não obedecerem aos padrões racionais de edificação, por terem se constituído sem o crivo do controle governamental e por não possuírem documentação escriturada de propriedade. Essa situação está longe de ser exclusiva das favelas, embora seja geralmente dirigida a elas. Segundo as informações da Secretaria de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, pelo menos 60% dos domicílios urbanos no Brasil não estão devidamente regularizados. (SILVA, 2005, p. 93).

Nos dias atuais, os moradores mais politizados e envolvidos em movimentos tendem

a chamar seu território ou pelo nome de comunidade ou pelo nome de favela,

assumindo a designação sem medo de negar a origem. Nessa perspectiva,

concordam com a afirmação de que

[...] a favela não é um problema, nem uma solução. A favela é uma das mais contundentes expressões das desigualdades que marcam a vida em sociedade em nosso país, em especial nas grandes e médias cidades brasileiras. É nesse plano, portanto, que as favelas devem ser tratadas, pois são territórios que colocam em questão o sentido mesmo da sociedade em que vivemos. SILVA, 2005, p. 91).

2 O documento citado é The Challenge of Slums [O desafio das favelas], relatório publicado em outubro de 2003 pelo Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas (UN-Habitat).

40

Independentemente de suas possíveis diferenças conceituais, neste trabalho serão

usadas as designações favela, vila e comunidade, indistintamente, referindo-se

sempre aos territórios que são objeto desta dissertação e da produção artística de

origem popular na cidade de Belo Horizonte.

Buscamos compreender o uso que os próprios moradores fazem do termo comunidade, pensando a apropriação do espaço em suas mais variadas formas e sentidos, entendendo a formação dos vínculos de sociabilidade que aí vão se forjar. É fato que [...] o termo comunidade inundou o senso comum, mas a apropriação feita pelos moradores das favelas assume a tentativa de encontrar para si uma conotação diferenciada, na forma de um exercício de construção identitária. Eles se autodenominam “comunidade”, constroem sua identidade grupal a partir dessa idéia que lhes soa protetora e digna, numa estratégia defensiva às estigmatizações que o termo favela recebe. Contudo, o seu uso generalizado acaba por reforçar exatamente a idéia de carência a ser preenchida por assistencialismo e reforça o rótulo de exclusão. A conquista dessa auto-estima, alicerçada como está nos valores da classe dominante, acaba por reforçar a identidade negativa quando não há, de fato, uma elaboração daqueles valores e de seus próprios, quando não há transformação. (NOGUEIRA, 2004, p. 92).

Finalizando, pode-se aproveitar um termo que é gíria nas comunidades e foi utilizado

por Magnani como categoria analítica, qual seja, o “pedaço” (atualmente mais

conhecido como “quebrada”).

São dois os elementos básicos constitutivos do “pedaço”: um componente de ordem espacial, a que corresponde uma determinada rede de relações sociais. [...] Não basta, contudo, morar perto ou freqüentar com certa assiduidade esses lugares: para ser do “pedaço” é preciso estar situada numa particular rede de relações, que combina laços de parentesco, vizinhança, procedência. (MAGNANI, 2003, p. 137-8).

Concordando com o autor, percebe-se que, de fato, são as relações focadas no local

de moradia, no caso das áreas periféricas, que determinam, além da família, a maior

parte da rede social dos indivíduos. Além disso, é no território que se constroem as

relações mais duradouras e mais personalizadas, menos possíveis em ambientes de

trabalho, lazer ou estudo, considerando a alta rotatividade que se registra nessas

esferas.

Vê-se, desta forma, que a periferia dos grandes centros urbanos não configura uma realidade contínua e indiferenciada. Ao contrário, está repartida em espaços territorial e socialmente definidos por meio de regras, marcas e acontecimentos que os tornam densos de significação, porque constitutivos de relações. Se se compara, por exemplo, este quadro com o que ocorre em bairros ocupados por outros segmentos sociais, pode-se avaliar a importância que o “pedaço” representa para as camadas de rendas

41

mais baixas. Diferentemente daqueles setores – onde na maioria das vezes os vínculos que ampliam a sociabilidade restrita da família nuclear não são os de vizinhança, mas o que se estabelecem a partir de relações profissionais –, uma população sujeita às oscilações do mercado de trabalho e a condições precárias de existência é mais dependente da rede formada por laços de parentesco, vizinhança e origem. (MAGNANI, 2003, p. 139-40).

42

4 UM BREVE RELATO SOBRE AS FAVELAS DE BELO HORIZONTE

4.1 Histórico e caracterização da ocupação

Como apresentado no capítulo anterior, o surgimento das favelas está relacionado

ao processo de metropolização e urbanização deflagrado a partir do final do século

XIX, que, entretanto, foi mais fortemente acelerado no Brasil a partir de meados do

século XX.

A industrialização e o êxodo rural são alguns dos fatores componentes desse

processo que, ligados à incapacidade de absorção da população migrante pelas

malhas urbanas e às ineficientes políticas públicas tanto para as áreas urbanas

quanto rurais, geraram um quadro grave de condições de habitabilidade nas

cidades. No Rio de Janeiro, a questão sanitária foi um dos mais fortes argumentos

tanto para a desarticulação dos cortiços quanto para as sucessivas tentativas de

remoção das favelas ao longo do último século.

Belo Horizonte não foge a esse cenário, vivenciando processos bastante

semelhantes aos ocorridos no Rio de Janeiro. Entretanto, o que diferencia o

surgimento das favelas na cidade é que aqui foi a própria hierarquização urbana que

propiciou a formação das favelas, como se estivessem “programadas” desde a

criação da nova Capital Estadual.

Belo Horizonte foi planejada pela Comissão Construtora da Nova Capital, buscando expressar espacialmente uma idéia de modernidade – que representasse o centro político-administrativo de Minas Gerais. Para tanto, foram observadas as referências importadas: ‘conhecimento e proximidade com relação ao plano de Washington, à reforma realizada por Haussmann em Paris e, sobretudo, ao plano de La Plata, na Argentina’ (GOMES & LIMA, 1999, p. 121). Suas largas ruas, desenhadas em xadrez e cortadas diagonalmente por avenidas, são a expressão da vanguarda, ignorando as determinações topográficas e hídricas, não se prendendo às especificidades do lugar, a partir da prática de um urbanismo do alinhamento, da classificação e da ordem. (OSTOS, 2004, p. 26)

De acordo com os relatos e estudos sobre a cidade planificada por Aarão Reis, a

ocupação do espaço urbano da nova capital foi planejada e sua planta tinha setores

predestinados a diversas atividades, bem como à moradia de funcionários públicos,

43

membros da elite e militares. No entanto, “os operários, tão necessários à

construção da cidade, como ressaltado nos relatórios dos primeiros prefeitos, não

têm espaço para morar." (AFONSO e AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987, p. 111.

Uma das principais conseqüências do plano segregador da cidade foi o inchaço de

suas zonas suburbanas e áreas convencionalmente consideradas inadequadas à

moradia humana.

Em 1912 (15 anos depois da inauguração da capital), 60% da população localizava-se nas zonas suburbanas e rural, o que mostra a importância dessa tendência no processo de crescimento da cidade. [...] As exigências para construir e morar no centro, o alto preço dos terrenos e a precariedade da infra-estrutura nas zonas suburbanas e rural fez com que parte dos setores mais pobres da população tentasse resolver seu problema habitacional através de ocupações não controladas de áreas centrais, próximas a seus locais de trabalho. Desde o início da construção da cidade, conhecem-se relatos acerca do surgimento de favelas nas áreas centrais, bem como de iniciativas do Poder Público visando erradicá-las. As primeiras favelas de Belo Horizonte abrigavam principalmente os operários que vieram para construir a cidade e se concentravam em duas zonas: Córrego do Leitão (atual Barro Preto) e a ‘Favela’ ou Alto da Estação (hoje Santa Tereza). (AFONSO e AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987, p. 112.

Da mesma forma que o surgimento das favelas em Belo Horizonte não pode ser

desvinculado do surgimento da cidade, também seu crescimento se fez de forma

concomitante. Em 1955, o IBGE realizou levantamento nas favelas do município,

cadastrando então 36.432 moradores. No ano de 1965, esse número havia mais que

triplicado: 119.799 pessoas residiam em áreas consideradas faveladas. (AFONSO e

AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987).

Havia uma contradição entre o modelo, os seus desdobramentos e as condições concretas, que o negavam. O modelo de cidade almejada, pelas frações das elites mineiras, orientada para um futuro dominado pela idéia de progresso, era contraposto inclusive pela localização das classes populares em áreas irregulares na própria zona urbana, ocupando cafuas, barracos e barracões, o que era tomado como a face visível do atraso, da ineficácia e da falta de beleza, contrariando o plano original, “concebido por Aarão Reis antes mesmo de ter sido definido o sítio onde ela (a capital) seria localizada” (GUIMARÃES, 1991, p. 45). O adensamento das áreas periféricas, como Lagoinha, Floresta, Santa Efigênia, Calafate e a subdivisão dos terrenos das ex-colônias agrícolas (zona rural), era tido como a expressão da desordem, contrariando a concepção de Aarão Reis, que previa o crescimento de Belo Horizonte do centro para a periferia. A ameaça ao modelo se configurou a partir do crescimento da periferia para o centro e da lógica de investimentos públicos no espaço, do centro para a periferia. Tal ameaça era a grande visibilidade do fosso entre o modelo original, concebido através de uma lógica formal, estatista, e a realidade vivida concretamente, dialetizada, qualificada, porém, como “desordem”, como ameaça. (OSTOS, 2004, p. 31-32.

44

Assim, pode-se afirmar que as favelas do município são, em sua maioria, de

ocupação muito antiga. Uma ou duas gerações já nasceram nesses locais e

continuam ocupando-os. No entanto, o surgimento de novas ocupações e o

adensamento populacional nas áreas já existentes também tem sido levado a cabo

pela migração de novas famílias antes residentes em outros bairros da própria

capital, como se verá mais adiante.

Um dos problemas mais sérios encontrado nas favelas está relacionado à sua

localização, predominantemente em beiras de córregos e encostas extremamente

íngremes e, muitas vezes, de alto grau de periculosidade para seus moradores. A

disponibilidade dessas áreas para ocupação deriva justamente de sua qualidade

inferior, uma vez que os melhores terrenos foram reservados e ocupados por

populações com maior poder aquisitivo, seguindo a lógica do mercado imobiliário,

restando à classe baixa ocupar as áreas consideradas insalubres ou inabitáveis.

Pela via da análise espacial, percebe-se a existência de uma inclusão efetiva dos diversos grupos sociais na cidade, ainda que numa participação social perversa, em que o caso das favelas é exemplar. Afinal, se determinado grupo existe, necessariamente ocupa de alguma forma o espaço, se apropria dele – ainda que de um espaço relegado, mesmo que tal participação se dê pela desqualificação. O que confirma a idéia de que se trata de uma inclusão perversa é a observação das diferentes possibilidades de apropriação desse espaço e, ainda, o impacto subjetivo que tal apropriação implica. A inclusão perversa mostra-se, por exemplo, na apropriação de ruas e viadutos, por moradores e trabalhadores. Mostra-se também em sua outra face, no surgimento de fenômenos como os chamados “condomínios fechados” (um novo feudo?) que efetua a transformação da rua, espaço público, em privado; na desejada construção de uma segregação espontânea. A inclusão perversa, observada pela ótica do espaço, pode ser apontada ainda em diversos outros exemplos (como elevadores de serviço, shopping centers e a própria existência da favela, como se verá), mas pode, ainda, como é mais comum, ser apontada pela via da apropriação da mão-de-obra, desqualificada e aprisionada. (NOGUEIRA, 2004, p. 66).

Dependendo do ponto de vista que se adota, o processo de favelização em Belo

Horizonte pode ser percebido como mecanismo de exclusão social, ao mesmo

tempo em que se revela como uma construção de novos valores pela classe baixa,

onde se avalia o custo de se morar na favela e o benefício de não morar em áreas

periféricas mais distantes e se "opta" pela comodidade em detrimento do status.

Do ponto de vista econômico, a favela foi a possibilidade de inserção das classes populares no espaço e nos circuitos econômicos que se

45

estabelecem no e com o espaço urbano. A proximidade do centro histórico de Belo Horizonte e dos centros regionais, em muitos casos, propiciou uma redução no custo de transporte e aumentou os contatos para obtenção de trabalho, viabilizando a permanência nos lugares da cidade “escolhidos” – compreendidos como local de oportunidades e maior acesso aos benefícios sociais. (OSTOS, 2004, p. 81-2).

A hipótese é que essa população não aceita ser empurrada para a periferia e acaba

construindo uma inclusão na malha urbana a seu modo e dentro de suas condições.

Assim, o que se vê é a convivência espacial das favelas com bairros de classe

média e alta, configurando um contraste não apenas urbanístico, mas,

principalmente, social e desbancando o conceito espacial de periferia para tratar

esses aglomerados humanos.

Esse cenário, tão presente na configuração urbana do município de Belo Horizonte,

coloca a premência de que as favelas sejam encaradas não mais como situação

transitória de moradia, mas antes como tendência constante no crescimento dos

núcleos urbanos, em especial no Terceiro Mundo.

Em decorrência dessa constatação, faz-se necessário cada vez mais pensar o

fenômeno favela não como aberração a ser extirpada da cidade, mas antes como

uma parte da malha urbana que, como outra qualquer, deve ser consolidada e

beneficiada mediante o atendimento de infra-estrutura básica e da articulação com o

entorno da cidade.

Nesse sentido, pode-se perceber uma evolução das políticas públicas específicas

para áreas faveladas, que seguem tendências semelhantes em todo o País, já que

condicionadas, na maioria das vezes, pela orientação política nacional e pela

representação coletiva e imagem da favela construída e disseminada na sociedade,

como antes discutido.

No caso de Belo Horizonte, desde a criação da capital até os dias de hoje,

ocorreram mudanças significativas no modo como o Poder Público vem encarando

as favelas e as soluções para o problema habitacional.

A fim de possibilitar que se perceba a dimensão em que ocorreram as citadas

46

mudanças, far-se-á um panorama geral das políticas públicas em favelas desde a

criação de Belo Horizonte. 3

A partir da fundação da cidade, em 1897, até início da década de 1980, ou seja,

mais de oitenta anos depois, a política oficial para favelas era a do desfavelamento.

É claro que ao longo desse período houve modificações nas diversas políticas

implantadas, mas todas elas calcadas na mesma filosofia: a de que a cidade deveria

ser "limpa" e os "invasores" enviados para fora do perímetro urbano. Esse

pensamento não era exclusivo da capital mineira, como já relatado, apresentando

similaridades com os processos em desenvolvimento no Rio de Janeiro e o

tratamento dispensado pelo governo às favelas cariocas.

Desde a criação da capital até o Estado Novo, o favelamento e sua erradicação

eram vistos como problema policial. Os moradores das áreas faveladas mais antigas

da capital narram diversos episódios de confrontos com a polícia e o eterno medo de

serem desalojados com o uso da força, sem direitos ou destino certo, muitas vezes,

inclusive, em “batidas”-surpresa, durante a noite. Em conseqüência, não havia

também investimento, por parte dos moradores, em suas habitações, com medo do

prejuízo financeiro com as demolições, o que fez com que só tardiamente algumas

áreas se consolidassem.

Em 1955, foi criado o DBP – Departamento Municipal de Habitação e Bairros

Populares, cuja política era ainda o desfavelamento, mas com o oferecimento de

outra moradia à família removida. Nessa época, já se registrava a formação e

organização de entidades comunitárias para defesa dos interesses dos moradores

das favelas. Entretanto, da mesma forma que o ocorrido no caso carioca, as famílias

continuavam a ser “empurradas” para conjuntos habitacionais populares longe do

centro da cidade, com todos os impactos que isso significava nos sistemas de

parentesco, vizinhança e ajuda mútua, bem como na empregabilidade da população

removida.

Após o golpe militar de 1964, a repressão aos movimentos favelados emergentes foi

recrudescida, voltando o desfavelamento a ser encarado como problema de polícia. 3 Para uma visão completa da questão, até a década de 1980, ver AFONSO E AZEVEDO, 1987.

47

Nesse período, em Belo Horizonte, a prefeitura operava como engrenagem auxiliar para os interesses nacionais. Se é certo que as condições gerais requeridas pela industrialização eram asseguradas em muitos aspectos (como a atualização da infra-estrutura do espaço, por exemplo) pelos investimentos maciços, efetuados pelo Estado em nível federal e estadual, à prefeitura cabia um papel complementar, que se explicitava, sobretudo, no âmbito da dominação política: desmobilização das massas, extinção dos partidos políticos e o tratamento das favelas como problema policial, esta última, com clara ajuda do governo municipal. (OSTOS, 2004, p. 44).

A história do movimento popular nas favelas de Belo Horizonte é assunto vasto e

não será tratado neste trabalho. Entretanto, faz-se necessário citar alguns nomes,

por sua importância na organização e mobilização dos moradores, consolidação e

garantia da manutenção da posse da terra e conquista de melhorias para as favelas

da cidade.

Fundamentais nesse processo foram a União dos Trabalhadores da Periferia (UTP),

fundada por Chico Nascimento, além da Pastoral de Favelas, da Igreja Católica, por

meio de representantes como Padre Piggi, Padre Mauro e Padre Mário, cada qual

com sua contribuição e apoio aos moradores das favelas da capital.

A União dos Trabalhadores da Periferia objetivava congregar associações de favelados e fornecer um plantão jurídico para buscar indenizações justas para aqueles que fossem desalojados para realização de obras públicas. Em 1981, estavam filiadas cerca de 40 associações comunitárias de favelas. (SOMARRIBA, 1984, p. 51).

Na década de 1960, as organizações de moradores foram perseguidas e extintas

pelo Governo Militar, incluindo-se as que representavam os interesses das vilas e

favelas.

[Em Belo Horizonte], logo após a mudança de regime, em março/abril de 1964, a Federação de Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte é colocada sob intervenção federal, que dura até agosto, quando se decreta sua extinção por ter sido, após inquérito policial-militar, considerada subversiva. Durante os meses de intervenção, fizeram ‘batidas’ nas sedes das UDCs em busca de ‘material subversivo’. Vários líderes do movimento de favelados foram intimados a depor no Departamento de Vigilância Social (DVS) e alguns foram processados e cumpriram penas de reclusão. (SOMARRIBA, 1984, p. 46).

Em dezembro de 1965, criou-se um órgão de assessoria ao DBP, os chamados

"Serviços Municipais para o Desfavelamento das Áreas Urbanas e Suburbanas".

"Este, nos três primeiros meses de existência, destruiu número muito maior de

48

barracões do que o DBP o fizera durante seus dez anos de funcionamento anterior."

(AFONSO e AZEVEDO in POMPEMAYER, 1987, p. 119).

No ano de 1971 foi criada a Coordenação de Habitação de Interesse Social de Belo

Horizonte (CHISBEL). Continuando na linha das políticas anteriores, a CHISBEL

substituiu a contrapartida utilizada pelo DBP (uma nova casa em troca da derrubada

dos barracos) pelo pagamento de indenizações em espécie, que, na maioria das vezes,

era insuficiente para a compra de outra moradia, a não ser em outra favela da capital.

A CHISBEL planejava o total desfavelamento de Belo Horizonte, através de um convênio com o BNH e a Companhia Habitacional do Estado de Minas Gerais (COHAB-MG), para construção de moradias. Elegia o desfavelamento como a solução para os “problemas sociais” de Belo Horizonte e acreditava na possibilidade de acabar com as favelas, conforme intenção expressa em relatórios: “A CHISBEL estima poder, num plano a se desenvolver até 1980, inicialmente estagnar e, a seguir, reduzir as favelas existentes em Belo Horizonte”. Essa intenção não foi alcançada concretamente, sua ação ficou restrita aos desfavelamentos para realização de obras públicas programadas, agindo como sustentáculo dos órgãos executores. Nos relatórios (discurso) e na prática, a partir da década de oitenta, é visível a mudança de orientação da CHISBEL: “a enorme migração e a diminuição do poder aquisitivo de um modo geral fizeram com que a população favelada crescesse de uma forma assustadora”, o que impõe uma mudança visando atingir um objetivo mais concreto – “desfavelar somente para urbanizar”. O entendimento do termo “urbanizar”, na redação realizada à época, é o da liberação da área para a execução da obra programada, não estando relacionado à provisão de infra-estrutura para a favela e, sim, à sua eliminação, para dar passagem às obras públicas, constantes no “Plano de Obras” da administração municipal. Portanto, “urbanizar” era o mesmo que “remover” favelas, “liberar” a área, quando não “limpá-la”. (OSTOS, 2004, p. 47).

É a década de 1980 que vai trazer um novo panorama e uma nova visão em relação

ao tratamento dispensado às favelas da capital mineira.

Quais foram os fatores que possibilitaram o reconhecimento das favelas, no discurso oficial do Estado? Os movimentos populares, muitos de base local, foram se reorganizando e reivindicando sua participação no sistema político que buscavam recriar, a partir da sensibilização quanto às condições de vida das classes populares. Para isso, no caso de BH, contribuíram as situações agravadas pelas enchentes de 1979 e 1982, com inúmeros desabrigados e os protestos: quebra-quebras de ônibus em Venda Nova (distrito de Belo Horizonte) e na região da Cidade Industrial (SOMARRIBA, 1984, p.50); a invasão da prefeitura em 1981, para que as favelas fossem “reconhecidas no mapa”, ou seja, fossem reconhecidas como lugares nos quais a atuação do Estado deveria se concretizar, no sentido da garantia dos direitos de cidadania; reivindicações, solicitando ajuda, para reconstrução de abrigos para as famílias removidas pela CHISBEL. (OSTOS, 2004, p. 56).

49

Em 1981, o Governo do Estado, em parceria com a entidade alemã GTZ, implantou

o Programa de Desenvolvimento de Comunidades (PRODECOM), dentro da

Secretaria de Estado do Planejamento e Coordenação Geral (SEPLAN/MG).

Pioneiro em uma nova visão sobre as favelas, o Programa passou a atuar em Belo

Horizonte de maneira estrutural, no sentido de urbanizar favelas e bairros

periféricos, promover o acesso ao título de propriedade, dotar as comunidades de

equipamentos públicos e fortalecer a participação e os movimentos comunitários

locais. Para tanto, focou sua atuação nos principais aglomerados da cidade, e foi o

responsável pela instalação, em regime de mutirão, de grande parte da infra-

estrutura que ainda hoje existe nesses locais.

A novidade do PRODECOM foi, em primeira medida, não considerar o desfavelamento e o afastamento das classes populares para áreas distantes da cidade como solução, isto é, considerou a ocupação desses espaços como uma conquista de seus moradores e como um direito a ser garantido. (OSTOS, 2004, p. 61).

As áreas de atuação do Programa foram o Aglomerado Santa Lúcia e o Aglomerado

da Serra, na Regional Centro-Sul; a Vila Senhor dos Passos e a Pedreira Prado

Lopes, na Regional Noroeste; as vilas Vista Alegre, Ventosa e Cabana Pai Tomás e

o Aglomerado Morro das Pedras, na Regional Oeste; e a Vila Cemig, na Regional

Barreiro; entre outras áreas.

Se, para a CHISBEL, urbanizar foi remover famílias, para dar lugar à obra programada, para o PRODECOM, urbanizar foi manter famílias, melhorar as condições de infra-estrutura, enfim, conferir melhores condições materiais ao “lugar” das classes populares urbanas. Esses programas atuavam no mesmo período, com práticas diferenciadas, não existindo, em Belo Horizonte, uma superação completa da prática de desfavelamento, principalmente daquela prática que, além de desfavelar, não se responsabilizava pelo destino de seus moradores. (OSTOS, 2004, p. 58).

Conviventes na mesma época, as duas políticas públicas divergiam em sua

essência, conceito e prática. Uma, praticada pela administração municipal, outra,

proposta pelo Governo do Estado, seu choque de concepções foi um marco para a

proposição de uma nova política consensual para o tratamento das áreas faveladas

da capital. “Em Belo Horizonte, a “era da urbanização” não excluiu a “era do

desfavelamento”, pelo contrário: foi no auge da atuação do PRODECOM (de 1979 a

50

1983) que houve mais desfavelamentos em Belo Horizonte.” (OSTOS, 2004, p. 59).

Apesar do grande avanço conquistado pela atuação do PRODECOM, em

comparação com as políticas anteriores, os críticos do Programa apontam algumas

falhas. Por um lado, a pequena capacidade do Programa em responder à questão

da propriedade da terra e, por outro, o efeito perverso gerado pela autonomia dada

às entidades comunitárias, que passaram a gerir recursos e, em muitos casos, de

forma irregular.

Com o apoio da Igreja e de amplas parcelas da população, o movimento de

favelados aprovou, por meio da Câmara Municipal, em 1983, a lei do PROFAVELA –

Programa Municipal de Regularização de Favelas. Essa lei reconhecia as favelas

instaladas no município até 1980 como áreas especiais de zoneamento, o chamado

Setor Especial 4 (SE-4), que deveriam: 1- ter legislação específica; 2- ser

urbanizadas respeitando a tipicidade da ocupação local e 3 - sofrer processos de

regularização fundiária, cabendo ao Estado transferir para os moradores a

propriedade da terra.

‘A favela não é um problema, mas uma solução’. Esse era o slogan da União dos Trabalhadores da Periferia (UTP) de Belo Horizonte, que lutava pelo reconhecimento do direito de permanecer nas favelas. Ao lado da UTP, houve o trabalho da Igreja, com diversas pastorais apoiando as organizações populares. O Padre Piggi, um dos grandes defensores do direito do favelado à posse da terra, buscava o reconhecimento desse direito e da capacidade das classes populares urbanas de resolver os problemas relacionados à favela. Suas observações eram e continuam sendo baseadas na capacidade de investimento das famílias nesses espaços e de reconstrução de comunidades, principalmente quando não há risco de expulsão, quando há garantia e estabilidade para a realização das melhorias. Em suma, acreditava, e ainda acredita, reconhecia, e continua reconhecendo, que as classes populares urbanas eram e continuam sendo agentes de sua própria melhoria. (OSTOS, 2004, p. 78).

Apesar da criação da Secretaria Municipal de Ação Comunitária (SMAC), designada

para implantar essa lei, o PROFAVELA só foi regulamentado e entrou efetivamente

em funcionamento em 1986, com a criação da Companhia Urbanizadora de Belo

Horizonte (URBEL).

Até o fim da década de 1980 e início dos anos 90, a URBEL, como gestora do

PROFAVELA, atuava no sentido de regularizar os terrenos ocupados por favelas

51

que fossem de propriedade municipal. No entanto, tinha como política não intervir

nas áreas onde o problema das remoções era mais grave, ou seja, nos terrenos de

propriedade particular. Ao mesmo tempo, a falta de recursos fazia com que a

urbanização ficasse em segundo plano.

A atuação do órgão ficou restrita, no período, pelas limitações apontadas, mas de

fato a aprovação da Lei do PROFAVELA trouxe ganhos reais à questão das favelas

em Belo Horizonte.

A primeira conquista das classes populares urbanas foi o reconhecimento dos lugares, considerados “ilegais”, como partes da cidade. [...] Contar esses lugares incluiu sua figuração na base cartográfica do município, uma legislação específica e mais permissiva, uma abertura do aparelho do Estado ao diálogo acerca de seus problemas e potencialidades, para desfazer concepções e, principalmente, para alterar o planejamento acerca do futuro desses lugares. [...] Como desdobramento dessa primeira conquista figura o reconhecimento do direito de quem usa a propriedade e não de quem a explora. Portanto, os beneficiados por programas sociais, melhorias físicas, emissão de título de propriedade são as pessoas que moram nas áreas de interesse social, mesmo que essas pessoas sejam locatárias. [...] A segunda conquista é a garantia da tipicidade e das características dos assentamentos, mediante um parcelamento específico do solo que institui a figura do lote-padrão e do lote máximo. Essa conquista é frontalmente contrária à lógica da especulação imobiliária, pois impede remembramentos (união de lotes), dificultando sua compra para construção de edifícios, e cria condições reais (pois, baseadas em características reais) para a regularização fundiária. [...] A terceira conquista é o direito de participar das decisões, incluindo a elaboração do planejamento e a politização do padrão de financiamento público. Isso abre a possibilidade de alteração da verticalidade do poder autoritário, de alteração da distribuição dos recursos públicos no espaço e, principalmente, do reconhecimento e conservação dos direitos, com destaque para os descritos acima. (OSTOS, 2004, p. 71-2).

A partir do início da década de 1990, o órgão centrou fogo na urbanização de

favelas, diminuindo até praticamente extinguir-se sua atuação na legalização de

terras, uma vez que não restavam mais terrenos públicos para regularizar.

Com o início das administrações dos partidos de esquerda no município, a URBEL

adotou nova filosofia de ação em favelas. Essa filosofia é a de que os dois

processos (legalização e urbanização) não podem ser levados a cabo em separado.

Ao contrário, deve-se investir em uma atuação casada, denominada Intervenção

Estrutural, como única forma de garantir a permanência dos moradores de favela em

suas comunidades, consolidando-as e elevando as condições de habitabilidade

52

nesses locais.

Em 1994, foi criado um Sistema Municipal de Habitação, com duas linhas de atuação: a primeira, a recuperação ambiental e a regularização fundiária dos assentamentos existentes, isto é, favelas e conjuntos habitacionais; a segunda, a produção de novos assentamentos, com a construção de novas moradias. (OSTOS, 2004, p. 84).

Na esteira dessa filosofia, foram implantados dois programas, principalmente, que

consideram a necessidade das intervenções casadas ou estruturais. O primeiro

deles foi o Programa Alvorada, implantado a partir de 1993 em convênio entre a

PBH/URBEL e a Associação de Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI),

entidade ligada ao Ministério Italiano. O segundo, que ainda encontra-se em

desenvolvimento, é a elaboração dos Planos Globais Específicos, que são

instrumentos de planejamento para cada uma das favelas em separado. Nesses

planos, construídos com participação da população, estão indicadas as principais

obras e ações sociais necessárias para cada comunidade, bem como a prioridade

de sua execução, custos e projetos de intervenção. De posse de seu Plano Global,

em geral as lideranças e moradores partem para a reivindicação da execução das

intervenções, em etapas, no Orçamento Participativo.

Todas as mudanças nas formas de ver e tratar as favelas e seus moradores,

ocorridas nas últimas décadas, não podem ser atribuídas a um único fator, mas

antes se inserem dentro de contextos multifacetados e dinâmicos, que necessitam

investigação histórica mais detalhada do que é possível fazer neste projeto.

No entanto, pode-se atribuir a evolução na atuação do Estado em favelas a três

fatores básicos: ao contexto político-social nacional, que, desde a criação da cidade,

passou por duas ditaduras e se encontra hoje em processo de consolidação

democrática; às orientações políticas específicas dos diversos governos que se

sucederam na direção da capital e do Estado de Minas Gerais; e às pressões dos

movimentos sociais ligados às áreas faveladas, com o apoio da Igreja Católica.

Por outro lado, vê-se que a postura do Poder Público municipal com relação às

favelas pode estar sendo novamente transformada, com a adoção constante de

práticas de remoção de famílias para realização de obras e intervenções viárias,

53

utilizando-se para tanto do Programa de Reassentamento de Famílias em

Decorrência de Obras Públicas ou Vítimas de Calamidades (PROAS), bem como na

filosofia dos novos Planos Globais Específicos, que acabam por trazer de volta o

fantasma da CHISBEL e do desfavelamento.

[...] persistem intervenções ‘removedoras de favelas’, para abrir espaço para uma nova fase de reprodução da metrópole de Belo Horizonte: prolongamento da avenida Pedro II, acesso à região Noroeste; avenida Antônio Carlos, acesso à região da Pampulha e Norte; construção da nova rodoviária no eixo leste-oeste. E persistem as propostas de “urbanização”, algumas delas com ênfase em projetos viários, em detrimento dos projetos de desenvolvimento social e de regularização fundiária. Nesses momentos, ganha visibilidade uma concepção de que as casas, os casebres, bairros inteiros, são “coisas” que continuam no caminho do progresso, do desenvolvimento norteado, ou melhor, definido por ele. (OSTOS, 2004, p. 171).

Por enquanto, essa postura ainda é tímida4, mas reflexões técnicas levadas a cabo

dentro do Poder Público apontam para uma situação em que o desfavelamento pode

se impor gradativamente às comunidades como única opção possível, em especial

quando foram “restando” à ação do Estado apenas as áreas críticas, de risco ou

sem condições viáveis de consolidação. Como dito em um documento oficial da

URBEL:

[...] os mapas elaborados sobre a ocupação em áreas de risco, de serventia e sob torres de alta tensão revelam problemas especialmente no que diz respeito à declividade, devendo-se, no entanto, considerar que nesse último caso o processo de ocupação, uma vez consolidado, pode mudar o quadro. A se considerar apenas o parâmetro estabelecido em lei de uso e ocupação do solo, seria recomendável a remoção da maior parte das ocupações, o que não é o caso, devendo cada situação ser objeto de análise específica. (PBH/CEURB, 1999, p. 119).

Nesse sentido, faz-se necessário refletir que, na prática, tanto no Brasil quanto em

escala mundial, as práticas remocionistas não foram totalmente eliminadas, em

nome de uma suposta tendência urbanizacionista das comunidades periféricas. O

que se vê é que ambas as posturas são conviventes no tempo e mesmo no espaço

e alternam-se, de acordo com os interesses em vigor.

De acordo com Davis, em todo o mundo há processos em andamento de remoção

4 Após a realização desse trabalho, foram realizadas grandes obras públicas na cidade, que realizaram a remoção de vilas inteiras, como é o caso das vilas Suzana I e II e São Miguel/Vietnã, removidas pela obra da Linha Verde, que liga o centro de Belo Horizonte ao Aeroporto de Confins.

54

dos “entraves humanos”.

A segregação urbana não é um status quo inalterável, mas sim uma guerra social incessante, na qual o Estado intervém regularmente em nome do ‘progresso’, do ‘embelezamento’ e até da ‘justiça social para os pobres’, para redesenhar as fronteiras espaciais em prol de proprietários de terrenos, investidores estrangeiros, a elite com suas casas próprias e trabalhadores de classe média. (DAVIS, 2006, p. 105).

Ao analisar áreas faveladas em todo o mundo, o autor ressalta que as práticas

remocionistas continuam acontecendo em escala global e ampliada.

A escala contemporânea de remoção populacional é imensa: todo ano, centenas de milhares, por vezes milhões de pobres – tanto aqueles que têm a posse legal quanto os invasores – são despejados à força de bairros do Terceiro Mundo. Em conseqüência, os pobres urbanos são nômades, ‘moradores transitórios num estado perpétuo de realocação’ (como o urbanista Tunde Agbola caracteriza o seu sofrimento em sua Lagos natal). (DAVIS, 2006, p. p. 106).

A Prefeitura de Belo Horizonte também está implantando um novo programa,

denominado Vila Viva, que tem gerado muita discussão nas comunidades afetadas,

como é o caso da Serra e do Morro das Pedras, entre outras. Os principais

questionamentos referem-se ao fato de que o número de remoções propostas é

significativo e as mudanças introduzidas, ao visar os benefícios das obras viárias

para a cidade como um todo, correm o risco de prejudicar a dinâmica social de

algumas áreas.

4.2 Ocupação atual

Ao se analisar os dados disponíveis a respeito da ocupação e situação atual das

favelas da cidade, em seu perfil geral, percebeu-se que há discrepâncias nas

informações, de acordo com a fonte consultada.

Por um lado, cada órgão público ou entidade possui informações sobre seu campo

específico de atuação (saúde, educação, obras, etc.), mas não há um banco de

dados consolidado que centralize as informações disponíveis sobre cada uma das

favelas da cidade, de forma a permitir uma consulta acerca de seu perfil, carências e

55

atividades em desenvolvimento.

Por outro lado, os números mudam de acordo com a fonte secundária escolhida (ex:

IBGE e URBEL), em virtude de metodologias distintas de coleta e cálculo, bem como

pela adoção de diferentes delimitações territoriais para determinação dos universos

de pesquisa. Casar, por exemplo, os limites das Zonas de Especial Interesse Social

(ZEIS), decretadas e utilizadas como referência pela URBEL, com os dos Setores

Censitários do IBGE, é tarefa penosa e, em muitos casos, impossível.

Há ainda o problema da discordância das lideranças comunitárias, em alguns locais,

quanto aos dados oficiais apresentados tanto pelo IBGE quanto pela URBEL, que

consideram subdimensionados no que se refere ao número de habitantes e

superdimensionados quanto às taxas de cobertura de serviços públicos e infra-

estrutura.

Para efeito deste trabalho, optou-se por utilizar o Plano Estratégico de Diretrizes e

Intervenções para Zonas de Especial Interesse Social (Planão), desenvolvido pela

URBEL/PBH em parceria com o Centro de Estudos Urbanos (CEURB/UFMG) no

ano de 1999. Apesar da defasagem temporal, este material tem a vantagem de

permitir a comparação entre todas as vilas e favelas de Belo Horizonte, com dados

coletados mediante uma pesquisa amostral com metodologia única para toda a

cidade. Quando possível, outras fontes de informação serão apresentadas e

cotejadas.

4.2.1 Características gerais da ocupação

Em 2000, segundo o Censo Demográfico do IBGE, o município possuía 2.238.526

habitantes. A população residente em vilas, favelas e conjuntos habitacionais

populares construídos pelo Poder Público, por sua vez, era, em 2002, segundo

estimativas da URBEL, de 498.656 pessoas residentes em 121.132 domicílios, ou

seja, cerca de 22% dos habitantes da Capital Estadual residiam em áreas com esse

perfil.

56

A FIG. 1 traz a distribuição das áreas que a URBEL considera como parte de seu

público-alvo.

FIGURA 2 – Planta de situação das vilas e favelas de Belo Horizonte Fonte: Secretaria Municipal de Habitação / URBEL. Universo de Trabalho 2002..

57

A TAB. 1, a seguir, mostra um resumo deste universo, no ano de 2002, distribuído

segundo as nove administrações regionais da cidade.

TABELA 1

Número de núcleos constantes do universo de trabalho oficial da URBEL, segundo

número de domicílios e população total residente, por Regional

Regional Núcleos Domicílios População

Barreiro 32 13.099 56.566

Centro-Sul 18 19.495 72.116

Leste 27 22.088 89.152

Nordeste 32 10.380 43.668

Noroeste 26 11.873 50.218

Norte 19 13.129 56.810

Oeste 30 19.333 81.227

Pampulha 16 2.643 10.398

Venda Nova 26 9.092 38.501

Total Geral 226 121.132 498.656

Fonte: Secretaria Municipal de Habitação / URBEL, 2002.

Como se pode ver, as regionais com maior participação no total da população

residente em favelas são Leste e Oeste (18% e 16%, respectivamente), ao passo

que a Pampulha é a que apresenta menor número de moradores em áreas incluídas

no universo de trabalho da URBEL.

É importante destacar que há grande heterogeneidade entre as diversas áreas

constantes deste universo de trabalho. Há diferenças entre as regionais, entre as

vilas e mesmo dentro de uma mesma vila, com áreas com perfis específicos e

distintos entre si. Entretanto, para fins desta caracterização geral, buscar-se-á

mostrar as situações mais recorrentes encontradas.

Como já mencionado, em geral as vilas de Belo Horizonte são de ocupação antiga e

encontram-se em elevado estágio de consolidação. Os dados constantes do Planão

indicam que 18% das famílias entrevistadas sempre moraram em favelas, isto é,

nasceram nesses locais e continuam ocupando-os, ao passo que 43% residem em

58

favelas há mais de dez anos.

Os moradores das vilas, favelas e conjuntos habitacionais da cidade são, em sua

maioria, oriundos da própria capital ou Região Metropolitana, situação encontrada

entre 64% dos entrevistados. Esse número indica que a motivação inicial da

ocupação das favelas belo-horizontinas, com a vinda de migrantes de outras cidades

do interior do Estado e do restante do País, vem sendo gradativamente substituída

por um processo de migração interna à própria cidade e região lindeira.

Fruto do empobrecimento da população, esse movimento é motivado, muitas vezes,

pela incapacidade da família em pagar aluguéis, encontrando, então, condições de

moradia mais baratas, ao mesmo tempo em que busca se aproximar de seus locais

de trabalho – centro da cidade, zona sul –, reduzindo gastos com deslocamentos e

pagamento de transporte.

Ademais, vale mencionar que vem sendo registrado aumento absoluto da população

residente nas favelas da cidade nos últimos anos, não apenas pela ocupação de

novas áreas, já que são poucos os espaços livres ainda não ocupados, mas,

principalmente, pelo adensamento dos lotes e pela verticalização das edificações.

Esse processo se dá tanto pela subdivisão e venda de partes dos lotes quanto pela

construção de novas edificações ou pavimentos para receber as famílias de filhos e

outros parentes.

De acordo com o documento consultado, está havendo um processo de

“encortiçamento” das favelas da cidade. Como conclui o documento do Planão:

O contínuo processo de favelização hoje presente nas cidades coloca para o Poder Público um triplo desafio: o de ser capaz de regularizar e urbanizar as áreas já existentes e de integrá-las à malha urbana, o de controlar o processo de ocupação e, ao mesmo tempo, desenvolver programas de habitação popular capazes de atender a essa população, a fim de evitar que o quadro da questão da moradia se agrave ainda mais. (PBH/CEURB, 1999, p. 121).

Quanto ao uso dos domicílios, predominam os residenciais unifamiliares – as casas

(cerca de 87%), a despeito do processo de adensamento mencionado. Os usos

mistos – residencial e comercial – representam apenas 8% dos imóveis, ainda que

59

tenha havido crescimento, nos últimos anos, dos pequenos negócios informais,

como alternativas ao desemprego ou complementação da renda familiar. De acordo

com os dados do Planão, do total de domicílios mistos encontrados, mais de 45%

eram bares.

No que se refere ao regime de ocupação dos domicílios, 82% são próprios, 10%

cedidos, 4% alugados e 4% estão em outras situações. Entre os que afirmaram ser

proprietários de suas residências, 80% não possuem escritura dos imóveis, o que

confirma que a questão da regularização fundiária continua sendo um fator definidor

da ocupação das favelas e uma necessidade ainda sem solução na cidade, mesmo

após os 20 anos da Lei do PROFAVELA.

4.2.2 Aspectos demográficos e indicadores sociais

Do ponto de vista da distribuição da população por gênero, seguindo o perfil

encontrado na população do município como um todo, pouco mais da metade dos

habitantes das vilas, favelas e conjuntos populares de Belo Horizonte são do sexo

feminino. Quando se analisa o sexo dos responsáveis pelos domicílios, entretanto,

essa situação se altera, já que 72% deles são homens.

Esse quadro também vem sendo alterado, já que estudos recentes apontam a

crescente elevação do percentual de domicílios chefiados e sustentados

exclusivamente por mulheres. Dados do IBGE para 2007 apontam que as mulheres,

na média nacional, são, em 33% dos domicílios, as pessoas de referência dos

arranjos familiares.

Em relação ao perfil etário, é significativo o percentual de pessoas nas faixas

inferiores. Segundo dados do Planão, as vilas e favelas contam com 32% de

crianças e adolescentes abaixo dos 14 anos, quando na Capital essa faixa abriga

24% da população. Do total da população residente nas comunidades sob foco,

quase 64% estão abaixo dos 30 anos, patamar esse que é de 53% na média belo-

horizontina. Essa distribuição etária aponta para a concentração da demanda por

serviços públicos em duas áreas fundamentais: primeiro, na educação de crianças e

60

adolescentes; e segundo, na oferta de programas de qualificação profissional e

empregabilidade.

Do ponto de vista dos indicadores educacionais, vê-se que a situação das vilas e

favelas também dista da apurada na média da cidade. Enquanto em Belo Horizonte

o analfabetismo entre pessoas com 5 anos ou mais gira em torno de 7%, o

levantamento da URBEL indica taxa de 8,3%, considerando apenas aqueles acima

de 7 anos, ou seja, tal número seria bem maior se incluídas as crianças de 5 e 6

anos, grande parte das quais não tinha ainda, em 2002, acesso à escola formal.

Acima de 60 anos a situação é ainda mais grave: a taxa de analfabetismo é de 14%

em Belo Horizonte e cerca de 40% nas favelas pesquisadas.

Ao se analisar o grau de instrução da população, vê-se que cerca de 47%

estudaram no máximo até a 4ª série do ensino fundamental; 35% cursaram entre a

4ª e a 8ª série do ensino fundamental; 9,5% cursaram o ensino médio, completo ou

incompleto; e apenas 0,5% alcançou o ensino superior.

Os dados do Planão indicam que cerca de 40% da população em idade escolar

residente nas vilas e favelas encontram-se fora da escola, sendo a situação mais

grave nas faixas etárias abaixo de 7 anos, onde 79% estão fora da creche ou não

têm acesso à educação infantil. É importante realçar que esse dado provavelmente

já foi alterado com as novas políticas educacionais implantadas nos últimos anos, de

inclusão das crianças nas escolas públicas a partir dos 6 anos.

Quanto à escolaridade dos responsáveis pelos domicílios, 16% são analfabetos;

53% estudaram no máximo até a 4ª série; 24% até a 8ª série do ensino fundamental;

e cerca de 4% apenas acessaram o ensino médio. Se por um lado a escolaridade

média dos chefes de domicílio é, em geral, inferior à apurada pelo conjunto da

população, por outro o percentual de chefes que alcançaram o ensino superior é

ligeiramente maior, da ordem de 1,8%.

Ligada à baixa escolarização de parte significativa da população também registra-se

a falta de qualificação profissional. De acordo com os dados do Planão, quase 27%

das pessoas que trabalham o fazem em profissões manuais não especializadas;

61

19% estão em profissões manuais especializadas em prestação de serviços e 16%

prestam serviços domésticos.

De fato, ao se fazer o cruzamento dos dados confirma-se que há uma correlação

positiva entre escolarização, qualificação e remuneração. Ao se analisar a renda

individual da população entrevistada, vê-se que 95% recebem menos de 5 salários

mínimos mensais, percentual este que fica na casa dos 81% quando se trata de

renda familiar. Essa diferença indica que a sobrevivência das famílias depende da

introdução de vários membros no mercado de trabalho, de forma a realizar a

complementação da renda do domicílio.

Vale destacar ainda que 14% dos chefes de domicílio não possuem nenhum

rendimento, vivendo das benesses de terceiros. Ademais, 1/3 deles encontravam-se

desempregados à época da pesquisa.

4.2.3 Infra-estrutura e serviços urbanos

As informações relativas às formas de ocupação do espaço nas favelas indicam,

como antes mencionado, que vem ocorrendo um processo de “encortiçamento”, de

adensamento das vilas, favelas e conjuntos populares em Belo Horizonte, com

conseqüências diretas nas condições de vida dessa população.

Se essas áreas já não eram suficientemente servidas pelos serviços urbanos

básicos, com a chegada de mais moradores e a sua disposição irregular no espaço

a situação se agrava e sua solução fica cada vez mais cara para o Poder Público.

Uma outra questão interessante apontada no Planão é o fato de que, muitas vezes,

as áreas que já foram objeto de programas de melhorias públicas apresentam, nos

dias atuais, situação pior que outras nunca beneficiadas. A explicação encontrada

refere-se justamente aos processos de adensamento e verticalização das

edificações, somados à ausência de manutenção das redes implantadas.

Do ponto de vista da cobertura dos serviços de saneamento básico, tem-se que 72%

62

dos domicílios nas favelas de Belo Horizonte contam com rede de esgoto oficial,

93% são abastecidos por intermédio da rede de água da COPASA e 80% têm

acesso aos serviços de coleta de lixo por parte da SCOMLU.

Em relação à energia elétrica, 92% dos domicílios são atendidos por meio de padrão

da CEMIG, ao passo que outros 6% usam a luz de “bico” ou “gato”.

Em resumo, vê-se que aos poucos as áreas vão sendo quase que totalmente

cobertas, quantitativamente falando, pelos serviços de água, esgoto e energia

elétrica. Do ponto de vista qualitativo, entretanto, é possível afirmar que os maiores

problemas ligados à temática da urbanização são a intermitência no abastecimento

de água, a falta de pavimentação das ruas, a falta de manutenção dos serviços

implantados, como já relatado, e a inexistência de equipamentos urbanos.

Nesse último aspecto, realça-se que 19% das áreas não possuem telefones

comunitários, 35% não têm posto de saúde, 81% não contam com posto policial e,

temática mais próxima do objeto dessa dissertação, 81% não dispõem de nenhum

tipo de equipamento de lazer e cultura. Entre as vilas que possuem algum tipo de

área de lazer implantada, destacam-se os campos de futebol, quadras esportivas e

raríssimas praças.

Finalizando a temática da qualidade de vida, viu-se que, apesar de toda a

heterogeneidade existente, as favelas de Belo Horizonte são formadas por casas

com tamanho médio de 50 m2, com 5 cômodos e 2,5 quartos. O padrão construtivo

varia de bom (52%) a regular (43%), sendo reduzido o número de edificações

consideradas precárias5.

5 Critérios utilizados para definição do padrão construtivo (Fonte: PBH/CEURB) – edificação precária – paredes de adobe e/ou madeira, piso de terra batida e/ou madeira, cobertura de lona e/ou lata; edificação regular – parede de alvenaria parcialmente revestida e/ou não revestida, piso de madeira e/ou cimento, cobertura de zinco e/ou amianto; edificação boa – parede de alvenaria revestida e/ou parcialmente revestida, piso de cimento e/ou cerâmica, cobertura de laje e/ou telha de cerâmica.

63

4.2.4 Organização social

Do ponto de vista da organização social, a pesquisa do Planão buscou ver o grau de

participação e de conhecimento, por parte dos moradores, das entidades

associativas e representativas existentes em cada uma das áreas.

Os resultados obtidos apontam para uma avaliação de que o associativismo nas

favelas de Belo Horizonte varia de médio a fraco. De acordo com os dados, 48% dos

entrevistados desconhecem a existência de associação de moradores na área

pesquisada. Entre os que conhecem, a metade afirma nunca ter participado de

nenhuma atividade da associação.

O próprio Orçamento Participativo, que envolve grande mobilização e campanha de

divulgação nos meios de comunicação da cidade, conta com apenas 7% de

participação nas vilas e favelas, enquanto 16% dos moradores afirmaram apenas

conhecer o programa.

A pesquisa apontou também que há, entre a população, profunda descrença quanto

ao Poder Público e à possibilidade de solução dos problemas. Ao serem

questionados a respeito de quem resolve os problemas da vila, 22% responderam

‘ninguém’, 20% mencionaram a Prefeitura de Belo Horizonte – PBH – e 16% citaram

as associações de moradores.

Apesar de tal descrença, 60% dos informantes consideram que tem havido

melhorias no local nos últimos anos, com destaque para ações de pavimentação das

vias (42% das citações), saneamento básico, transporte e urbanização em geral.

À época do levantamento dos dados em campo, as principais demandas das

comunidades eram, em ordem de importância: segurança, saneamento básico,

saúde e urbanização.

64

4.3 Produção artístico-cultural

Focando mais especificamente o objeto de estudo deste trabalho, e dada a

inexistência de informações de ordem cultural sobre as favelas nos órgãos públicos,

serão apresentados a seguir dados e informações levantados pelo Guia Cultural das

Vilas e Favelas de Belo Horizonte, relativos às manifestações artísticas existentes

em cada uma das favelas da capital.

Tendo realizado, no ano de 2002, pesquisa de campo em todas as favelas da

cidade, o Guia cadastrou 739 grupos artísticos em atividade, considerando as

diversas áreas culturais. Esses grupos envolvem quase 7 mil pessoas em sua

produção, incluindo artistas profissionais e jovens em processo de formação (ver

Tab. 2).

TABELA 2

Número de grupos culturais cadastrados e de pessoas envolvidas e média de

pessoas por grupo, por vila e grupos por vila, segundo Regional

Regional Núcleos Grupos culturais

Pessoas envolvidas

Média de pessoas por

grupo

Média de pessoas por

vila

Média de grupos por

vila

Barreiro 32 132 769 5,8 24,0 4,1

Centro-Sul 18 116 1.587 13,7 88,2 6,4

Leste 27 90 1.128 12,5 41,8 3,3

Nordeste 32 89 1.069 12,0 33,4 2,8

Noroeste 26 86 528 6,1 20,3 3,3

Norte 19 61 432 7,1 22,7 3,2

Oeste 30 98 982 10,0 32,7 3,3

Pampulha 16 20 139 7,0 8,7 1,3

Venda Nova 26 47 277 5,9 10,7 1,8

Total geral 226 739 6.911 9,4 30,6 3,3

Fonte: LIBÂNIO, 2004.

65

Como se vê, o maior número de grupos culturais foi encontrado no Barreiro, seguido

das regionais Centro-Sul e Oeste, ao passo que o maior número de pessoas

envolvidas registrou-se na regional Centro-Sul, onde os grupos têm, em média, 14

membros (número este de menos de 6 pessoas por grupo no Barreiro e em Venda

Nova). Destaca-se que metade dos 739 cadastrados são pessoas que trabalham

sozinhas, de maneira não só individual, mas também isolada.

É importante realçar que esses números já se encontram defasados, visto, por um

lado, a grande dinâmica dessas áreas, com nascimento e morte de grupos em

tempo recorde, e, por outro, a própria impossibilidade de identificar todos os artistas

residentes nas favelas, já que muitos deles produzem isoladamente em sua própria

residência, sem visibilidade, divulgação ou contato com outros artistas locais6.

De qualquer maneira, tais números são um norte, um indicativo útil do que de fato

pode ser ainda encontrado nas favelas da cidade, do potencial que são essas áreas,

sem pretensões de esgotá-las em toda sua multiplicidade e dinâmica.

Se, nas palavras de Gabriel Tarde, as pessoas tendem a supor homogêneo tudo

aquilo que desconhecem, a primeira boa surpresa que se tem ao se debruçar sobre

o Guia é que a diversidade é a grande marca da produção cultural das vilas e

favelas. Há representantes e artistas nas favelas em todas as áreas culturais, em

diversos estilos, cada qual com sua especificidade.

A TAB. 3, a seguir, traz a distribuição dos grupos por área cultural, segundo

Regional.

6 Para se ter uma idéia do tamanho desse universo, o Projeto Banco da Memória, realizado pela ONG Favela é Isso Aí, atualizou os dados do Guia Cultural em 18 comunidades, no ano de 2006. Os resultados encontrados indicam a presença, naquele ano, de 776 grupos culturais nas 18 comunidades, envolvendo 4.220 artistas. Esses números são impressionantes, considerando que, em 2004, o Guia Cultural das Vilas e Favelas havia cadastrado cerca de 7.000 artistas nas 226 favelas de Belo Horizonte, ou seja, menos de duas vezes mais do que cadastrou em apenas 18 vilas e favelas. Tais diferenças numéricas têm como explicação dois fatores distintos: por um lado, a própria dinâmica da produção cultural nas comunidades, que de fato é crescente e vem adquirindo visibilidade e reconhecimento. Por outro, houve mudança na metodologia de pesquisa de campo, com envolvimento de jovens moradores das próprias comunidades pesquisadas no processo de coleta de dados, o que modificou sobremaneira a inserção do projeto nesses locais e ampliou a sua abrangência.

66

TABELA 3

Grupos culturais cadastrados, segundo área cultural, por Regional (%)

Área Cultural Regional Artes

Plásticas Artes

Visuais Artesanato Dança Folclore e

religiosidade Literatura Música Teatro Outras

Barreiro 16,8 2,3 29,8 7,6 1,5 5,3 32,8 3,8 -

Centro-Sul 9,3 - 16,0 18,7 2,7 - 46,7 6,7 -

Leste 19,1 1,1 13,5 18,0 1,1 4,5 37,1 2,5 3,4

Nordeste 16,5 1,0 26,8 13,4 - 2,1 32,0 6,2 2,1

Noroeste 6,0 - 18,1 15,7 2,4 1,2 50,6 7,2 -

Norte 16,9 - 23,7 10,2 1,7 3,4 35,6 5,1 3,4

Oeste 7,1 2,0 25,5 10,2 4,1 1,0 45,9 4,1 -

Pampulha 10,5 - 26,3 5,3 - - 42,1 5,3 10,5

Venda Nova 10,6 - 38,3 12,8 - - 36,2 2,1 -

Total Geral 13,0 1,0 23,8 12,6 1,7 2,4 39,4 4,7 1,3

Fonte: LIBÂNIO, 2004.

A área de música foi a que apresentou maior incidência de registros na pesquisa,

com 39% do total de grupos cadastrados. Essa prevalência da música, por um lado,

relaciona-se ao fato de que é mais fácil encontrar os músicos nas comunidades, pois

esses têm maior visibilidade e reconhecimento junto aos vizinhos. Entretanto,

também é um indicador de um maior desenvolvimento dessa área cultural nas vilas

e favelas, em detrimento de outras.

O pessoal do funk e do rap; pagodeiros e forrozeiros e evangélicos em geral são os

que mais se destacam numericamente nessas áreas e que conformam as principais

correntes e expressões musicais atuais nas vilas da capital. Além deles, encontram-

se também diversos músicos de axé, MPB, rock e pop rock, death metal, rap core,

samba, música sertaneja, música clássica e instrumental, música sacra, reggae,

blues, rap romântico/charme, funk melody, chorinho, música caipira, moda de viola,

música romântica, new age, etc., etc., etc., além de outras classificações

inclassificáveis, com combinações rítmicas para todos os gostos.

Depois da música aparece o artesanato, correspondente a 24% dos grupos ou

artistas-solo das favelas, os quais têm dois perfis distintos. De um lado, os mais

velhos: senhoras, donas de casa, que há décadas fazem trabalhos manuais,

67

bordados, tricô e outros do gênero; senhores que fazem da madeira, do couro e do

gesso sua matéria de trabalho. De outro lado, a nova geração: adolescentes que

buscam uma fonte de renda na produção de bijuterias, embalagens, tapeçaria,

produtos com materiais reciclados. Apesar da diversidade também ser a marca

dessa área cultural, com registro de técnicas, materiais e suportes diversos, foi

possível perceber sutil supremacia numérica dos artesãos que fazem bijuterias,

bordados e artefatos de madeira.

Dança e artes plásticas, que em outras épocas eram consideradas artes de elite,

comparecem em terceiro lugar relativo nas vilas e favelas, cada uma com 13% dos

artistas cadastrados. Na dança, os grupos mais representativos são aqueles ligados

à capoeira e à street dance. Já nas artes plásticas, o desenho e o grafite são as

grandes vedetes. Essa última modalidade vem sendo incentivada pelo Projeto

Guernica7, da Prefeitura, que foi citado por vários dos entrevistados nas vilas e

favelas da cidade.

Teatro, literatura, folclore e religiosidade e artes visuais foram, em ordem

decrescente, as áreas com menor número de grupos e artistas-solo encontrados na

pesquisa, ainda que também tenham seus representantes legítimos. Na área de

teatro predominam os grupos ligados a instituições religiosas, católicas ou

evangélicas.

Na literatura, área que sofre com a dificuldade de se localizar os artistas, que em

geral produzem sozinhos e não têm como publicar ou divulgar seu trabalho, há

maior representatividade da poesia. Entre os sete representantes encontrados na

área das artes visuais predominam os fotógrafos, com menor expressão da

produção de vídeo.

A única área cultural que parece vir perdendo participantes nos últimos anos é

aquela agrupada sob o título de folclore e religiosidade, que tem como principal

manifestação o congado. As entrevistas com os grupos encontrados mostraram que

7 O projeto Guernica foi criado no ano de 1999, na gestão do então prefeito Célio de Castro, e buscou se constituir em espaço de estudo e pesquisa sobre a pichação urbana, a questão do patrimônio, do urbanismo e da história, direcionando e oferecendo oficinas de técnicas artísticas do grafite.

68

eles têm sofrido reduções sucessivas no número de integrantes, com a morte de

pessoas das gerações mais velhas e pouco interesse dos jovens em manter a

tradição das guardas.

Ao se tomar as especificidades de cada regional, é possível perceber que os grupos

ou artistas ligados às artes plásticas são mais expressivos na regional Leste,

enquanto aqueles ligados à dança se sobressaem nas regionais Centro-Sul e Leste.

A regional Noroeste tem a maioria dos grupos ligada à música; e a Oeste foi a região

onde se encontrou maior número de grupos da área de folclore e religiosidade em

atuação.

Em relação ao tempo em que desenvolvem a atividade (ver TAB. 4), são maioria nas

vilas e favelas da Capital os grupos com no máximo 5 anos de existência, inclusive,

com ocorrência significativa de artistas que estão desenvolvendo seus trabalhos há

menos de 1 ano. As regionais Barreiro e Norte são as que têm maior incidência de

grupos com mais de 11 anos de existência.

TABELA 4

Grupos culturais cadastrados, segundo tempo na atividade, por Regional

Tempo na atividade Regional

até 1 ano 2 a 5 anos

6 a 10 anos

11 a 20 anos

21 a 30 anos

31 a 40 anos

41 anos ou mais

Barreiro 14,5 39,7 18,3 21,4 3,0 0,8 2,3

Centro-Sul 16,0 64,0 14,7 2,7 1,3 - 1,3

Leste 13,5 39,3 21,3 15,7 9,0 1,1 -

Nordeste 13,4 43,3 25,8 14,4 3,1 - -

Noroeste 19,3 44,6 21,7 6,0 3,6 2,4 2,4

Norte 25,4 35,6 8,5 20,3 3,4 1,7 5,1

Oeste 18,4 40,8 18,4 14,3 6,1 2,0 -

Pampulha 42,1 31,6 15,8 5,3 5,3 - -

Venda Nova 19,1 46,8 8,5 17,0 6,4 2,1 -

Total Geral 17,5 43,4 18,2 14,0 4,4 1,1 1,3

Fonte: LIBÂNIO, 2004.

De acordo com as colocações do Guia Cultural, o fato de não gerar renda, na

69

maioria dos casos, faz com que a atividade artística fique muitas vezes em segundo

plano pelos moradores das favelas, e que seja rapidamente abandonada nos casos

de necessidade, o que explica a alta rotatividade dos grupos culturais nesses locais.

De fato, a dificuldade em se obter rendimentos com a atividade artística é uma

característica generalizada nesses locais: em todas as áreas pesquisadas, a média

é de apenas 20% de artistas e grupos que sobrevivem de arte e cultura, em especial

aqueles ligados ao artesanato, que de fato têm um produto mais “palpável” para

vender no mercado, seguidos dos músicos de pagode e forró, estilos que já têm na

cidade um circuito de bares e casas de show voltado para diversos segmentos

sociais, com tradição de acolher esses grupos.

A grande maioria dos grupos encontrados continua dependendo de seus trabalhos

“oficiais” para manter a atividade artística, quase como um luxo. Nas vilas e favelas

da cidade se encontram fazendo arte pessoas com as mais diversas ocupações:

pedreiros, office-boys, faxineiras, porteiros, motoristas, vigias, donas de casa,

estudantes, domésticas, etc. É claro que há também aqueles que persistem e se

dedicam integralmente à arte, mesmo que isso signifique passar provações e

dificuldades de toda ordem.

As regionais Pampulha, Venda Nova, Nordeste e Norte são as que apresentam

maior incidência de artistas que vivem da atividade, ao passo que Leste, Centro-Sul

e Barreiro são os locais onde há menor percentual de pessoas vivendo

exclusivamente de arte nas vilas e favelas.

É importante realçar que o principal local utilizado pelos grupos e artistas

cadastrados para desenvolver os trabalhos é sua própria casa, local onde ensaiam,

pintam, serram, criam e tentam vender sua produção.

Após desenvolvidos, há casos em que os trabalhos são mostrados em locais

públicos, em geral em eventos filantrópicos, como colégios, igrejas, centros culturais,

associação de moradores, bares, casas de shows, praças públicas e ruas, além do

70

projeto Arena da Cultura8, que já deu oportunidade a diversos grupos entrevistados

para a capacitação e realização de apresentações. Entretanto, ainda são poucos os

artistas pesquisados nas vilas e favelas de Belo Horizonte que de fato estão

inseridos no mercado de arte e cultura da capital.

Em busca de patrocinadores, as principais demandas dos artistas cadastrados pelo

Guia Cultural referem-se a locais para mostrar seu trabalho, transporte para realizar

apresentações fora das vilas, compra de matéria-prima, uniformes, instrumentos e

equipamentos para o Grupo, cursos de aperfeiçoamento, divulgação e outras do

tipo.

Há também diversos grupos que já têm CD gravado, mas não sabem como divulgá-

lo, onde vendê-lo ou a quem recorrer. Também nessa situação estão os artesãos,

que não têm onde mostrar seu trabalho e comercializá-lo.

Por fim, a pesquisa do Guia Cultural realçou que os artistas das favelas colocam

como fundamental a valorização do trabalho pelo público em geral e a quebra do

preconceito, ainda vigente entre partes da população, que vê artistas como

desocupados, grafiteiros como pichadores e marginais, moradores de vilas e favelas

como bandidos, artistas de rua como pedintes.

No próximo capítulo, será mostrado o caso de um grupo artístico em particular: o

Grupo do Beco, formado por moradores do Aglomerado Santa Lúcia, que tem como

foco o teatro como instrumento de transformação social.

O Grupo foi escolhido como estudo de caso para esta dissertação justamente pelo

fato de ser emblemático dos processos e relatos encontrados durante a pesquisa do

Guia Cultural, em que a arte ultrapassa sua função de fruição e também sua função

econômica e assume novos significados e papéis para os artistas das comunidades

faveladas.

8 O Arena da Cultura é um projeto realizado desde 1998 pela Secretaria (atual Fundação) Municipal de Cultura de Belo Horizonte, em parceria com as nove regionais da cidade. Suas ações concentram-se nas áreas de formação, capacitação e difusão cultural, com foco em jovens, adolescentes e adultos.

71

5 BENDITA A VOZ ENTRE AS MULHERES – O CASO DO GRUPO DO BECO

5.1 O território

O Grupo do Beco, do qual se falará mais detidamente a seguir, é formado por jovens

moradores do Aglomerado Santa Lúcia. Atualmente, o Aglomerado é formado por

quatro vilas: Santa Rita de Cássia (mais conhecida como Morro do Papagaio),

Estrela, Santa Lúcia e Vila Esperança (ou Bicão).

Considerando a importância do território na formação da identidade e da própria

produção artística do Grupo, optou-se por trazer algumas informações sobre o

Aglomerado e sua ocupação atual.

5.1.1 Características gerais da ocupação

Localizado na Regional Centro-Sul, o Aglomerado tem como vizinhos bairros de alto

padrão construtivo e poder aquisitivo médio-alto, notadamente Santo Antônio, São

Pedro, Sion, São Bento e Belvedere (ver FIG. 5, com as Unidades de Planejamento

de Belo Horizonte), cujas principais vias de acesso são as avenidas Prudente de

Morais e Nossa Senhora do Carmo.

Ao contrário do Aglomerado, que em 1994 era considerado a Unidade de

Planejamento (UPM) com pior qualidade de vida entre as 81 da cidade

(SECRETARIA MUNICIPAL DE PLANEJAMENTO / PBH, 1994), os bairros do

entorno são dotados de toda a infra-estrutura sanitária e viária, bem como atendidos

pelos serviços urbanos e sociais básicos. Contam também com comércio bem

desenvolvido, com grande variedade de estabelecimentos.

Além da questão da oferta de mão-de-obra para os bairros de maior poder

aquisitivo, as relações do Aglomerado com o entorno próximo se dão mediante a

utilização, pela população da favela, de serviços públicos instalados nos bairros

vizinhos, entre eles escolas e unidades de saúde. Paralelamente, a utilização dos

72

serviços privados fica comprometida pelo baixo poder aquisitivo da população da

Barragem, que acaba, então, por não ter acesso às ofertas disponíveis em seu

entorno.

Os desníveis entre o Aglomerado e seu entorno continuam quando se analisam os

rendimentos da população. Em 1994, o estudo do Índice de Qualidade de Vida

Urbana (IQVU) mostrava que a renda média da Barragem era cerca de 20 vezes

menor do que a registrada nos bairros vizinhos.

Cafezal

Sales

Mariano

Tupi /

Nordeste

Centro-Sul

Leste

Norte

Sta.Efigênia

Antônio

Barro

Francisco

S.Bento Sta.Lúcia

São Francisco

São

S.João

Santo Morro das

Pedras

Estoril / Buritis

Ja rdim América

Montanhês

Bairro

de Cima

Indústrias

Machado

Pampulha

Venda Nova

Oeste

Noroeste

Barreiro

de Abreu

Pompéia Taquaril

Baleia

Belmonte

de Abreu

Plana lto

Bernardo Floramar

de Morais

Centro

Prudente

Serra

São Paulo / Goiânia

Savassi

Gorduras

Cachoei rinha

Machado

Batista

Europa

Caiçara

Jardim

Furquim

Isidoro Norte

Céu Azul

Jaqueline

Camargos

Maria

Vista

Pi lar Oeste

Belvedere

Cabana

Barroca

Jaraguá

UFMG

Pampulha

Braúnas Santa Amélia

PUC

Antônio

Glória

Jardim

Carlos

Prado

Preto Castelo

Sarandi

Confisco

Ouro

Barrei ro-Sul

D'Água

das

Lindéia Barrei ro

Barrei ro

Cardoso

Jatobá

Boa

Sta. Inês

Capi tão Eduardo

Ribeiro

Mangabeiras

Sta.Tereza Floresta /

Primeiro de Maio

Insti tuto

Cristiano

Concórdia

Agronômico

Felicidade

Wernek

Preto

Sion Anchieta/

Lopes

Verde Serra

Jardim

Padre Eustáquio

Olhos

Piratininga

Nova Venda

Copacabana

Abílio

Mantiqueira/Sesc

de Baixo

Santa

Garças /

Betânia

Barragem

FIGURA 2 - Unidades de Planejamento de Belo Horizonte, segundo Região Administrativa Fonte: PBH / SMPL, 1994.

73

A UPM Barragem também apresentava a pior situação de infra-estrutura da região,

considerando indicadores diversos, como cobertura das redes de esgoto,

pavimentação e telefonia, padrão de acabamento das residências e densidade

habitacional. O lazer também é restrito à população, que, ainda hoje, só tem o

Parque Ecológico da Barragem à disposição, local este que praticamente não

atende os moradores das vilas Estrela e Santa Rita, dadas as distâncias e

dificuldade de acesso ao local.

Do ponto de vista da formação histórica da área, dados recolhidos em cartórios e

registros oficiais indicam que toda a região do Aglomerado pertencia à Colônia

Afonso Pena e seu processo de ocupação espontânea teria se iniciado a partir dos

anos de 1920 pela região da Vila Estrela. Segundo moradores mais antigos do local,

a área recebeu o nome de Estrela devido à presença, àquela época, de uma única

moradia ali instalada, cuja luz da lamparina reluzia no alto e, quando vista ao longe,

parecia uma estrela.

Se, por um lado, as vilas Santa Rita e Estrela são as de ocupação mais antiga,

ambas formadas por populações oriundas do interior do Estado e mesmo de outros

bairros da Capital, por outro a área de ocupação mais recente é a Vila Esperança

(Bicão), cujos moradores mais antigos encontram-se no local há, no máximo, 20

anos. Entretanto, seu processo de adensamento ainda está em curso, encontrando-

se registros de pessoas que continuam se mudando para a área. Possui o pior

acesso do Aglomerado, ocupando uma encosta considerada de risco geológico e

sem infra-estrutura, além de não estar incluída na atual Zona de Especial Interesse

Social (ZEIS), que garante diretrizes especiais para as regiões ocupadas por

favelas.

Quanto à vila Santa Lúcia, seu histórico relaciona-se à construção da Barragem, em

1957, que tinha como objetivo represar as águas do Córrego do Leitão, que

inundavam toda a região próxima à Cidade Jardim na época das chuvas. De acordo

com dados da URBEL, a região da vila Santa Lúcia pertencia a um único dono que

repassou os terrenos ao Estado como forma de pagamento de suas dívidas, no

início dos anos de 1970.

74

Conforme constante no documento consultado, a comunidade do Aglomerado

compreendia área maior do que a atualmente existente. Aos poucos, parte da área

foi sendo urbanizada, cedendo lugar à construção de partes dos bairros São Bento e

São Pedro.

Nessa época, foram retiradas famílias da região conhecida por “ninho de rato” ou

“caminho de rato”, sendo o parcelamento realizado pela empresa "Pampulha", que,

segundo moradores da Vila, não indenizou as famílias, que acabaram por se

mudarem para a barragem Santa Lúcia, engrossando a ocupação que já existia.

Apenas por volta de 1974 se iniciou o processo de urbanização do Aglomerado,

quando o então prefeito Jorge Carone pavimentou a rua Principal, implantou energia

elétrica e pontos de água em alguns becos. Foram também construídos chafarizes,

permitindo que a comunidade buscasse água em local mais próximo da moradia.

Entretanto, as maiores conquistas para a comunidade se deram no final dos anos de

1970 e início da década de 1980, mediante intervenção do PRODECOM – Programa

de Desenvolvimento de Comunidades, já mencionado no Capítulo 4. Esse programa

não só contribuiu para a instalação de redes de infra-estrutura e saneamento básico

em todo o Aglomerado, como implantou escolas, creches, postos de saúde e

equipamentos sociais diversos na favela.

A partir da década de 1990, a comunidade tem se mobilizado para participação nos

Orçamentos Participativos, conquistando obras pontuais de urbanização, tais como

abertura, alargamento e pavimentação de becos diversos, além da elaboração de

seu Plano Global Específico.

De acordo com a avaliação constante no documento do Plano Global, desde

meados dos anos de 1990 o Aglomerado vinha sofrendo com a escalada da

violência, especialmente relacionada ao tráfico de drogas, com focos variáveis ao

longo do tempo.

Por outro lado, moradores e lideranças locais avaliam que o aumento da violência

coincidiu com a instalação do 22º Batalhão da Polícia Militar no limite da área, há

75

cerca de 15 anos, inclusive com aumento do armamento das facções rivais da

chamada “guerra” no Aglomerado.

Há na comunidade várias entidades que desenvolvem ações visando ao combate à

violência, com especial destaque para a Paróquia Nossa Senhora do Morro, tema

que será tratado mais adiante neste trabalho. De acordo com os entrevistados para

composição deste estudo, nos últimos anos houve arrefecimento das disputas

internas, com redução dos processos de violência, ainda que continue havendo

momentos e épocas de maior tensão na área.

5.1.2 Aspectos demográficos

Do ponto de vista do perfil demográfico, de acordo com dados da URBEL9, havia no

Aglomerado, no ano 2000, 4.639 domicílios, totalizando em torno de 18 mil

habitantes na área. Esses números são questionados pelas lideranças locais, que

estimam a presença de 35 mil moradores na comunidade.

A dinâmica migratória no Aglomerado é grande, uma vez que é pequeno o

percentual de famílias que residem no local há mais de 20 anos. A mobilidade das

famílias se dá tanto dentro da própria vila quanto para outros bairros e vilas da

Capital. A questão da violência é apontada como um dos fatores que contribuem

nesse sentido, e é também considerada responsável pela presença de quase 8% de

domicílios vagos na comunidade (dados de 2000).

A taxa de ocupação dos domicílios para fins residenciais é de 85%, enquanto as

unidades comerciais são mais concentradas nas ruas São Tomás de Aquino (Santa

Rita) e rua Principal, que atravessa todo o Aglomerado. Os estabelecimentos mais

comuns são bares e mercearias.

Quanto ao regime de ocupação das residências, 86% eram próprias no ano 2000,

9 A título de esclarecimento, para obtenção destes números a equipe que elaborou o Plano Global do Aglomerado realizou uma contagem de domicílios em todas as ruas e becos da comunidade, quadra a quadra, de forma a identificar a quantidade de famílias e população residente no local.

76

mas os moradores não possuem escritura de seus terrenos.

O perfil demográfico do Aglomerado, no que se refere ao sexo e à idade da

população, tem pequena diferença ao padrão do município, com ligeiro predomínio

do gênero masculino e população mais jovem, ainda que também em processo de

envelhecimento.

Quanto ao analfabetismo, segundo dados do IBGE, era de 15% no Aglomerado

relativos aos maiores de 5 anos de idade, acima, portanto, da média belo-

horizontina. Os dados constantes do Plano Global indicam que, no ano 2000, 27%

dos chefes de família da comunidade eram analfabetos, percentual este de 21%

entre seus cônjuges.

Uma das conseqüências do baixo grau de instrução dos responsáveis pelos

domicílios é a restrição de suas possibilidades de inserção no mercado de trabalho,

limitada àquelas profissões que exigem menor qualificação e permitem menores

rendimentos. Por um lado, é grande no Aglomerado a presença de empregadas

domésticas, faxineiras, pedreiros e serventes e, por outro, o desemprego atinge

quase 25% dos chefes de domicílio, percentual este que era de 7% na média de

Belo Horizonte, segundo dados da Fundação João Pinheiro para 1998. Dados já

atualizados para o ano de 2008 mostram que esse índice é de 9,6% na Região

Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).

Também os rendimentos apurados são menores do que os registrados na média da

Capital. A renda familiar no Aglomerado é inferior a três salários mínimos mensais

(situação presente em 54% dos domicílios) e a renda per capita média é inferior a

meio salário mínimo por pessoa/mês

5.1.3 Qualidade de vida e infra-estrutura

Do ponto de vista das condições de vida e habitabilidade, o Aglomerado apresenta

situação desigual entre as diversas regiões que o compõem. Em geral, os domicílios

da comunidade apresentam padrão variável de regular a bom, mas vê-se na Vila

Esperança/ Bicão a presença de edificações com padrão construtivo precário e em

77

área de risco.

Os dados da URBEL apontam casas com tamanho médio de 49 m2 e média de 4,7

cômodos, com paredes de alvenaria em 87% dos casos. O amianto é o material

utilizado como cobertura em quase 60% das residências, ao passo que a presença

de pintura externa às edificações é pequena, predominando as casas rebocadas ou

chapiscadas.

A carência de áreas verdes também é uma constatação na área, visto que a maioria

dos domicílios não tem espaço suficiente para o plantio.

Como antes mencionado, a infra-estrutura instalada na favela apresenta menor

cobertura do que a dos bairros vizinhos, de classe média e média-alta. Entretanto,

ao se analisar a questão internamente vê-se que houve evolução nesses

indicadores entre 1991 e 2000, com aumento das taxas de saneamento básico em

todo o Aglomerado.

No ano 2000, os domicílios ligados à rede de esgoto eram 83% do total; 89% eram

servidos através de rede de água da COPASA; 82% tinham seu lixo coletado e

quase 100% dos domicílios eram ligados à rede elétrica (ainda que 14% deles

através de redes clandestinas, os chamados bicos ou gatos).

Ainda que tenha havido melhorias nos últimos anos, as principais causa mortis entre

os menores de um ano no Aglomerado ainda eram, no ano 2000, as infecções

perinatais; doenças respiratórias, infecciosas e parasitárias, estas últimas de

veiculação hídrica, ligadas a precárias condições de higiene e falta de saneamento

básico. Entre os adultos, predominam mortes por doenças cardiovasculares e

respiratórias, além das mortes violentas.

As principais reivindicações da comunidade nesse mesmo ano eram, por ordem de

ocorrência: combate à violência e aumento do policiamento (63%), melhoria do

saneamento básico (42%), implantação de posto médico e melhoria do serviço de

saúde (28%).

78

Em resumo, o Aglomerado encontra-se em elevado estágio de consolidação,

considerando a infra-estrutura instalada, os equipamentos existentes e atendimento

dos serviços públicos, parte dos quais implantados na década de 1980 por

intermédio da atuação do PRODECOM.

Apesar da ampliação do atendimento de infra-estrutura e da melhoria das condições

de habitabilidade no Aglomerado, nos últimos anos, o documento da URBEL

apontou que a qualidade de vida da população não teve ascensão proporcional, em

virtude, por um lado, da escalada da violência, que amedronta os moradores,

interfere em seu cotidiano e os expõe a riscos diários, e, por outro, o aumento do

desemprego, comprometendo o consumo e a manutenção da família.

Quando se analisam os dados do IQVU para 1994, percebe-se que a Unidade

Barragem é considerada a pior área de Belo Horizonte em termos de qualidade de

vida – não pelos aspectos infra-estruturais, mas, ao contrário, pelo baixo

desempenho dos aspectos sociais, com destaque para as variáveis renda,

segurança, cultura, esporte e lazer, principalmente.

É importante reforçar, como já relatado, que os entrevistados consideram que, nos

últimos anos, esse panorama vem sendo alterado, com redução da violência e

melhoria da qualidade de vida da população.

5.1.5 Organização social e participação

No que se refere à organização social, de acordo com dados retirados do Plano

Global, datado do ano 2000, há uma série de entidades em atuação no Aglomerado,

em diversas áreas e com objetivos distintos. Ainda que essa situação certamente

tenha sido alterada nos últimos anos, vale tecer um breve comentário a respeito do

tema, de forma a mostrar um perfil do associativismo na área.

Em primeiro lugar, realça-se que todas as vilas do Aglomerado contam com

associações de moradores, ainda que a participação seja pequena e até mesmo

declinante. Entre elas, menciona-se a Associação da União Comunitária da

79

Barragem Santa Lúcia e o Centro de Defesa Coletivo da Vila Santa Rita.

Em segundo, encontram-se em atuação na comunidade diversas entidades

governamentais e não-governamentais, com destaque para o Projeto Agente Jovem

da Cidadania, do Governo Federal, em parceria com a PBH; do projeto "Polos

reprodutores de cidadania" – desenvolvido pela Faculdade de Direito da

Universidade Federal de Minas Gerais em conjunto com a Coordenadoria de Direitos

Humanos; e do Centro Catequético, tendo Padre Mauro como pároco.

As lideranças formais e informais da área reclamam da falta de participação da

população como um todo e da sobrecarga de atividades, uma vez que as mesmas

pessoas acabam assumindo funções e tarefas múltiplas. Uma das causas citadas

para a baixa participação foi a reclusão dos moradores em virtude do tráfico e da

violência, criando uma cultura da não-participação. A apatia relativa da população

também é atribuída ao descrédito em relação ao Poder Público e às sucessivas

ações introduzidas por entidades exógenas ao Aglomerado.

Como se discutirá no próximo capítulo deste trabalho, é possível perceber no

Aglomerado, como na maioria das favelas da cidade, uma ampliação da participação

via movimento cultural, paralelamente à redução da participação tradicional nas

organizações comunitárias, indicando a emergência de novas formas de ação

política nessas localidades.

O Plano Global apontou também que, em 2000, as diversas ações em

desenvolvimento na Barragem, por entidades governamentais ou da sociedade civil,

em geral eram feitas de maneira desarticulada, isolada e mesmo com sobreposição

dos trabalhos, contribuindo também para dividir a já restrita participação dos

moradores.

O próprio processo de elaboração do Plano Global do Aglomerado, conduzido pela

URBEL, encontrou dificuldades diversas para formar o Grupo de Referência com as

lideranças locais, apesar da atuação intensa na comunidade durante mais de um

ano.

80

Finalizando a caracterização do território que abriga o Grupo do Beco, serão

apresentadas algumas características relativas aos aspectos artísticos e culturais.

5.1.6 Manifestações culturais

No Aglomerado Barragem o Guia Cultural das Vilas e Favelas cadastrou 27 grupos

em 2002, que envolviam 603 artistas em suas atividades. É importante destacar que

esse número já se encontra alterado nos dias atuais, dada a grande dinâmica

encontrada nessas áreas, como antes mencionado.

Para atualizar esses dados, a equipe da ONG Favela é Isso Aí trabalhou na

comunidade durante o período de um mês, ao final de 2007, tendo sido cadastrados,

então, pela equipe, 43 artistas e/ou grupos culturais que desenvolvem trabalhos

artísticos na comunidade, envolvendo um total de 502 pessoas.

Na época da pesquisa de campo, a música era a manifestação mais importante na

comunidade, tanto do ponto de vista quantitativo (21 grupos, ou seja, 49% do total

encontrado) quanto qualitativo, pela representatividade da cultura tradicional local.

Entre os 21 grupos musicais destacavam-se aqueles ligados ao pagode,

notadamente na vila Estrela. Os grupos encontrados na área da música foram,

segundo o estilo:

� Pagode e Samba – oito grupos (Que Delícia, Simplicidade, Super Samba Show,

Curtição, Ousadia do Samba, Supla Samba, Pura Sedução, Nossa Cara); e um

artista-solo (Mareno Santa);

� Rap – seis grupos (Versos do Morro, Mente Fria, R.A.P - Respeito Atitude e

Proceder, União da Sul, Real Mina, Irmãos de Sangue 3 Insano);

� Música Gospel – um grupo (Ei );

� Forró, brega e sertanejo – 1 grupo (Alex é o show o mineirinho do forró);

� Punk Rock alternativo – um grupo (Hematoma):

� Rock – dois grupos (22 HC, Desk Top);

� DJ de Funk, Black music e hip hop ( DJ Lui);

� Um Bloco Carnavalesco (Bloco Caricato dos Invasores Santo Antônio).

81

Em segundo lugar, vinham os grupos ligados à área de artesanato, num total de 9

representantes, com destaque para o Grupo da 3ª Idade Nossa Senhora da Guia,

formado por 28 pessoas.

Nas artes plásticas foram cadastrados quatro grupos, com destaque para o artista

Pelé, que trabalha com pintura e grafite.

Na área da dança se destacam quatro grupos:

� dança afro - 2 grupos (Primeira Dança Afro-brasileiras e Africanas, Vozibilidade

dos Tambores);

� capoeira - 1 grupo (Grupo Cuenda);

� quadrilha - 1 grupo (Quadrilha do Sabuco Duro).

As demais áreas culturais apresentam menor número de grupos dentro do

Aglomerado, mas também têm seus representantes legítimos. Na área de teatro

realça-se o Grupo do Beco, na área de folclore e religiosidade há a Guarda de

Marujos São Cosme e Damião.

Além dos mencionados, encontraram-se no Aglomerado um produtor cultural e um

grupo de organização de eventos culturais.

A maior necessidade relatada pelos artistas entrevistados é a de recursos materiais

e financeiros para produção do trabalho artístico, citada por 38 deles (84,4%). Cinco

(11,1%) disseram ter necessidade de divulgação de seu trabalho e 13 (28,9%)

disseram ter necessidade de espaço para produzir, ensaiar, expor e/ou apresentar

seu trabalho.

5.2 O Grupo

O Grupo do Beco é juridicamente representado pela Associação Cultural do Grupo

do Beco, instituída no ano de 2001. Entretanto, o Grupo e seus integrantes atuam na

comunidade do Aglomerado Santa Lúcia dede 1995, primeiramente por meio do

grupo Armação (1995/1998), depois EMcenAÇÃO (1998/2001).

82

De acordo com os membros do Grupo, o nome original da companhia foi alterado

durante o processo de planejamento estratégico, por não representar as

especificidades do Grupo, podendo aplicar-se a qualquer coletivo teatral, em

qualquer parte. A opção foi a colocação de um nome que relacionasse o Grupo com

seu território e especificidade, daí, “Grupo do Beco”.

A história de formação do Grupo se inicia com a inscrição de Nil César num curso de

teatro no TU – Teatro Universitário, com duração de três meses. Logo surgiu a

oportunidade de participar do 27º Festival de Inverno da UFMG, em Ouro Preto,

onde ficou 20 dias na oficina ministrada por Fernando Limoeiro. Na volta, Nil propôs

ao grupo de jovens da comunidade - JUSC - repassar a eles seu aprendizado. Como

era monitor dentro de um projeto social de vinculação religiosa, a Casa Santa Paula,

braço social do Colégio Santa Dorotéia, localizado dentro do Aglomerado Santa

Lúcia, iniciou os ensaios dentro do espaço da instituição, direcionando também as

aulas para as crianças e jovens atendidas pela Casa para o teatro.

Foi lá que Nil conheceu parte dos integrantes do grupo, deu aulas de teatro a eles e,

quando sairam da Casa Santa Paula, foi por eles convidado a criar um trabalho

teatral fora da Casa. Juntamente com os jovens, fundaram o projeto “Adolescer ou

Não” (1999), montando algumas peças no período (ver abaixo).

As principais peças realizadas pelo Grupo, desde sua fundação, foram:

� “Consumidores à Beira de um Ataque de Nervos” – 1996;

� “O Casal” – 1998;

� “Casamento e Bronca na Roça”, “Coisa de Criança” e “O Afilhado da Morte”,

todas em 1999;

� “Quis 500?”, uma crítica sobre as comemorações dos 500 anos de Brasil – 2000;

� “Bendita a Voz entre as Mulheres” – 2003;

� “Morro de Amores” – 2006 / 2007;

� “A Laje” – em fase de montagem - 2008.

Formado por moradores do próprio Aglomerado, o Grupo coloca como seu

diferencial a utilização da linguagem do teatro como instrumento para um trabalho

de transformação social.

83

Com oito anos de existência, [o Grupo] vem trabalhando com o objetivo de buscar referências da cultura erudita e técnicas que, somadas à riqueza cultural da própria comunidade, ampliem as possibilidades de expressão de seus moradores. Desde o início, vem tentando fazer com que o teatro, atividade popular em sua origem mas elitizada em nossos tempos, volte a ser acessível ao povo. (FONSECA, 2004, p. 3).

De acordo com o coordenador e fundador do Grupo, Nil César, o processo de

planejamento estratégico, conduzido em 2004 por Rômulo Avelar, assessor do

Grupo Galpão e ex-presidente da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, demonstra

que o “negócio” do Grupo do Beco não é teatro, mas, sim, transformação social. Isso

significa que o teatro, nesse caso, é pensado apenas como uma ferramenta a

serviço de um engajamento mais efetivo dos atores com a comunidade onde vivem.

Interessante observar as colocações que resultaram desse planejamento estratégico

e que indicam as intenções e concepções do Grupo. Ao pensarem sobre quem são

os “clientes” do Grupo do Beco, ou seja, a quem dirigem suas ações, foi concluído

pelos seus membros:

[...] os clientes principais do Grupo são os moradores do Aglomerado Santa Lúcia. Entretanto, existem outros públicos de grande relevância, que devem ser considerados em todas as ações a serem programadas: os habitantes da cidade de Belo Horizonte, com destaque para aqueles que residem nas imediações do Aglomerado, para os moradores de outras comunidades carentes e para todos aqueles que se aproximam do Grupo, na condição de voluntários ou não. (FONSECA, 2004, p. 26).

Quanto ao benefício esperado por esses “clientes”, o Grupo conclui que:

Os clientes, sejam eles moradores do Aglomerado Santa Lúcia ou não, têm a expectativa de que o Grupo do Beco promova melhorias no padrão de qualidade de vida de sua comunidade. Esperam que o trabalho desenvolvido resulte em transformação social. Além disso, é crescente o número de pessoas que vê o Grupo como uma equipe capaz de promover a aproximação de dois universos absolutamente distantes: o dos moradores de favela e o da população de classes média e alta. Essas pessoas esperam que o Grupo seja uma “ponte” sobre o grande abismo existente entre esses mundos. (FONSECA, 2004, p. 27).

Nesse sentido, considera-se como diferencial competitivo do Grupo, ante outros

projetos sociais com os quais disputam recursos e visibilidade, a opção de trabalhar

as ações de transformação social tendo como base o teatro. Ademais, reforça-se

84

com outros diferenciais:

- O Grupo optou por adotar como tema para a sua arte a realidade da própria comunidade, ou seja, “cenas da vida real”. São moradores de uma favela falando sobre seu cotidiano, seus anseios e seus conflitos, sem o filtro da mídia, que distorce os fatos e reforça o preconceito. - A própria existência da Casa do Beco é um diferencial. O espaço abrigará o primeiro teatro sediado em uma favela em Minas, e um dos únicos do País. - Os integrantes do Grupo são capacitados para cumprir seu papel de “ponte” entre a favela e o restante da cidade. Grandes investimentos vêm sendo feitos na sua bagagem pessoal, para que possam desempenhar funções de representação em eventos políticos, sociais, culturais e acadêmicos. - O Grupo tem credibilidade em sua própria comunidade e vem consolidando também um conceito positivo nos meios cultural e acadêmico de Belo Horizonte. (FONSECA, 2004, p. 27).

Ressalte-se que o foco no uso da arte como ferramenta de transformação social veio

junto à história dos integrantes do Grupo, que tinham, desde jovens, envolvimento

com os movimentos sociais na comunidade. De acordo com texto do próprio Grupo:

O histórico do Grupo é marcado pelo envolvimento de integrantes com movimentos sociais comunitários – Associação de Moradores, Cooperativa Cultural, Comissão de Direitos Humanos, bem como mobilizações diversas em defesa do coletivo. Essas intervenções tinham como base o entendimento, ainda comungado pelo Grupo, de que a arte e a cultura estão extremamente vinculadas à vida social da comunidade. Atualmente, em função da opção de aprimorar o trabalho artístico, o vínculo direto com as instituições do movimento social diminuiu. Contudo, a própria concepção de trabalho cultural que o Grupo adota contempla o envolvimento com questões sociais. Dito de outra maneira, este enfoque permeia todo o trabalho. Além disso, o Grupo está sempre presente, dentro do possível, nas mobilizações de interesse comunitário, tais como a Caminhada pela Paz no Aglomerado Santa Lúcia e o Circuito Off, que envolve um coletivo de artistas da cidade em torno de discussões pertinentes às demandas da classe artística.10

Note-se que, apesar do afastamento dos movimentos sociais, acima mencionado, o

Grupo ainda realiza trabalhos em parceria, dentro e fora da comunidade. Do ponto

de vista interno, o principal parceiro é a Paróquia Nossa Senhora do Morro (com

oficinas para a comunidade), enquanto as parcerias externas mais relevantes são

dadas pelo apoio do Grupo Galpão (com assessoria a projetos e viabilização de

formação artística dos atores) e a participação, até 2007, em um coletivo de projetos

10 Diagnóstico do Grupo no Curso de Gestão, 2004.

85

sociais que se chamava Rede Telemig Celular de Arte e Cidadania.

À época da pesquisa para este trabalho, a equipe do Grupo era composta por nove

pessoas, sendo dois atores, cinco atrizes e duas produtoras. Os membros do Grupo

são: Nil César (fundador e diretor), Suzana Cruz, Célia Rodrigues, Cris Corrêa,

Ivanete Guedes, Janete Maia, Maicon Sipriano, Josemeire Alves e Graziane

Gonçalves, as duas últimas como produtoras. Além deles, havia um ator contratado

para a peça Bendita, não considerado membro do Grupo11.

Nos dias atuais, atores e produtoras revezam-se na realização de tarefas

administrativas e gerenciais, tanto do Grupo em si quanto do espaço cultural

denominado Casa do Beco. A Casa do Beco é um espaço conquistado pelo Grupo

no ano de 2003, por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura e patrocínio da

Telemig Celular.

Está situada em imóvel de três andares, dois dos quais do Grupo, na rua que limita a

comunidade com o bairro e às margens da área de lazer da Barragem. Estratégica

do ponto de vista de sua localização e acessibilidade, a intenção do Grupo é

transformar a Casa do Beco em um Centro Cultural com teatro, atendendo tanto a

comunidade quanto ao público externo.

O trabalho cresce e, hoje, já não é mais tão distante o sonho de seus integrantes de construírem um centro cultural em sua comunidade, onde possam continuar contribuindo, mas em outra dimensão, para a melhoria das condições de vida de seus moradores. No final de 2003, o Grupo deu um grande passo em direção a essa meta: adquiriu dois andares de um edifício estrategicamente localizado próximo à Barragem Santa Lúcia. No momento, busca recursos para a concretização da reforma do espaço, que irá abrigar, futuramente, um teatro com capacidade para 100 espectadores, uma biblioteca e salas destinadas a ensaios e cursos. O Grupo do Beco já desenvolve neste local, mesmo antes da reforma, um trabalho artístico com cerca de quarenta adolescentes, que visa ao seu desenvolvimento pessoal, ao resgate de sua auto-estima e à conquista de sua cidadania. (FONSECA, 2004, p. 4).

Na época da pesquisa com o Grupo, foi evidenciado que a Casa sofria com as más

condições estruturais do imóvel e com a resistência de moradores, especialmente

11 Após a finalização das entrevistas, o Grupo passou por modificações, com saída de membros e reestruturação dos processos internos. Entre alguns fatores, pesou a falta de recursos para sustento dos atores e o surgimento de conflitos internos.

86

jovens, que passaram a depredar o espaço e utilizar seu andar superior para

práticas ilícitas e satisfação das necessidades fisiológicas. Uma explicação

encontrada pelo Grupo do Beco para essa situação refere-se ao fato de que, antes

da compra do imóvel, funcionava no local uma academia de capoeira, muito utilizada

por esses jovens, que teriam ficado insatisfeitos com a nova destinação do imóvel.

Outra explicação perpassa pelos códigos internos da “guerra” e do tráfico, com a

demarcação de territórios. Felizmente, após a conclusão da pesquisa, essa situação

foi resolvida e a Casa totalmente reformada.

Ressalte-se que durante todo esse tempo, o Grupo trabalhou para trazer para a

Casa eventos, oficinas e espetáculos com maior aceitação junto a esse público, que

não tem afinidade específica com a área do teatro. Mediante parcerias com outros

grupos culturais das periferias, vem realizando, desde então, oficinas de percussão,

dança e outras do tipo.

É importante frisar que, além do projeto que viabilizou a compra da Casa do Beco, o

Grupo já conseguiu aprovar e realizar diversos projetos, via leis de incentivo à

cultura, destacando-se:

� “Mãos de Mulher” – Lei Estadual de Incentivo à Cultura – Realizado entre 2002 e

2003, com previsão de oficinas para a formação de atores do Grupo do Beco e a

realização de entrevistas com mulheres da comunidade, como subsídio para a

montagem de um espetáculo teatral. Como resultado, pode-se destacar a criação

de “Bendita a Voz entre as Mulheres”, peça da qual se falará mais

detalhadamente a seguir;

� “Grupo do Beco – Manutenção e Cursos” – Fundo Municipal de Incentivo à

Cultura (2002) – Em execução entre 2003 e 2004. Foi constituído por oficinas

para a formação artística dos atores do Grupo do Beco, oficinas para a

comunidade e pela circulação do espetáculo “Bendita a Voz entre as Mulheres”

pela cidade de Belo Horizonte, em especial em comunidades da periferia e outros

espaços alternativos;

� “Grupo do Beco – Manutenção e Programação 2004” – Fundo Municipal de

Incentivo à Cultura (2003) – Foram realizadas oficinas para formação artística de

atores do Grupo do Beco, oficinas artísticas para a comunidade do Aglomerado

Santa Lúcia e execução de apresentações teatrais nas nove regionais da cidade

87

de Belo Horizonte;

� Teatro na Laje – Brazil Foundation (2006) – Foram desenvolvidas oficinas

artísticas na comunidade, que tiveram como produto a montagem de um

espetáculo, que seria apresentado nas lajes da comunidade.

Vale destacar ainda o trabalho realizado pelo Grupo com os jovens de sua

comunidade, através de dois projetos: o “Adolescer ou não”, que oferece formação

teatral para jovens, e o Projeto “Jogos Teatrais”, que busca trabalhar, através do

teatro, noções como auto-estima, cidadania, participação e identidade, entre outras.

Fruto deste trabalho, foi realizada a montagem, em 2004, do espetáculo “Em Que

Mundo Você Vive”, por cinco jovens do Projeto Adolescer ou Não, apresentado em

locais diversos e com grande aceitação do público. A peça tratava da realidade dos

jovens das comunidades, vista por eles próprios, na convivência com a violência e

com a atração do mundo do crime, contrapostas aos sonhos de uma vida melhor, ao

lado da pessoa amada.

Ao longo de sua trajetória e ainda nos dias atuais, um dos principais problemas

enfrentados pelo Grupo do Beco é a falta de remuneração de seus integrantes. Com

dificuldades para garantir a própria sobrevivência, os atores e produtores acabam

tendo que trabalhar em empregos convencionais, prejudicando sua dedicação ao

trabalho artístico.

Além dos problemas financeiros, houve relatos, por parte dos integrantes, de

problemas de ordem comportamental e interpessoal, dificuldades operacionais,

complicações de ordem técnica e artística e problemas com a infra-estrutura de

ensaios e funcionamento da Casa do Beco.

O Grupo do Beco, a exemplo de praticamente todos os grupos e entidades culturais do País, tornou-se extremamente dependente das leis de incentivo à cultura existentes nos níveis federal, estadual e municipal. Essa situação torna-se cada vez mais incômoda, na medida em que esses mecanismos começam a se mostrar insuficientes para o atendimento à crescente demanda de recursos para o setor. Na verdade, os patamares de renúncia fiscal são irrisórios diante da explosão do mercado cultural brasileiro, o que provoca grandes disputas pelos incentivos e reduz drasticamente os montantes aprovados para cada projeto. É preciso, pois, buscar fontes de captação de recursos alternativas às leis

88

de incentivo. O Grupo do Beco, particularmente, vem sofrendo com a instabilidade dessas leis, o que chega a ameaçar a própria continuidade de suas atividades. A falta de recursos, tanto para os trabalhos artísticos e sociais quanto para a sobrevivência de seus próprios integrantes, é um obstáculo a ser transposto, para que o Grupo ganhe estabilidade e cumpra suas finalidades. É fundamental, portanto, que sejam avaliadas as fontes de recursos existentes no mercado e identificados meios para sua captação efetiva. Além disso, há que se considerar as enormes dificuldades enfrentadas por seus integrantes, geradas pela sua própria condição de favelados. É preciso empreender esforços dobrados para que o Grupo consiga se impor em um ambiente marcado pela enorme desconfiança e pelo preconceito da sociedade. Embora já exista entre os seus membros uma forte preocupação com a qualidade em todos os seus aspectos, é necessário considerar as enormes barreiras para a obtenção de melhorias nos processos de trabalho, pela carência generalizada de recursos e pela própria cultura da favela. Há que se levar em conta também as limitações técnicas e de formação dos próprios integrantes do Grupo, que se apresentam como um sério obstáculo a ser transposto. Essas pessoas, embora se destaquem em sua comunidade e apresentem enorme potencial, ainda não têm a formação adequada para o cumprimento dos objetivos propostos. Além disso, devem ser consideradas também as dificuldades geradas pela ocorrência, nos últimos meses, de diversos conflitos internos, que vêm provocando instabilidade no Grupo. Tais conflitos, naturais em trabalhos coletivos, devem, no entanto, ser objeto de atenção especial, na medida em que vêm se sucedendo com certa regularidade. (FONSECA, 2004, p. 4-/5).

Ao serem questionados sobre os pontos fracos que ameaçam a atuação do Grupo,

os membros apontam também problemas relacionados à segurança na favela,

prejudicando a livre circulação em alguns locais.

Outro ponto apontado como positivo e negativo ao mesmo tempo é o fato de o

Grupo estar sediado em uma favela. Se, por um lado, esse fator traz discriminação e

preconceito, por outro, paradoxalmente, contribui para ampliar a curiosidade do

público em relação ao trabalho desenvolvido. Ademais, “atrai o interesse da mídia e

de profissionais da área de artes cênicas”.

Os pontos fortes e diferenciais apontados pelo Grupo são:

� Diferencial de imagem – o próprio fato de estar sediado na favela e propor-se a

fazer um trabalho diferenciado;

� Existência do hábito de reuniões de planejamento e tomada de decisões;

� Concretização do projeto Mãos de Mulher, por meio das entrevistas com as

moradoras e possibilidade de ampliação da rede de apoiadores a partir da peça

“Bendita”;

� Inserção comunitária dos integrantes do Grupo e respaldo da comunidade;

89

� Existência da Casa do Beco;

� Existência do Projeto Jogos Teatrais.

Na meta traçada pelo Grupo prevê-se, para daqui a cinco anos, torná-lo referência

brasileira no campo sociocultural. Essa meta tem sido trabalhada considerando os

pontos fracos identificados no planejamento estratégico. É importante destacar que

a proposta de visibilidade nacional do Grupo não está focada nos aspectos artísticos

(tornar-se um grupo de teatro reconhecido nacionalmente), mas, sim, nos aspectos

sociais (tornar-se referência nacional no campo sociocultural), confirmando sua

missão e foco ligados à transformação social.

No que se refere à busca pela qualidade artística e aprimoramento nos campos

administrativo e de produção, o Grupo já participou de projetos e capacitações

diversos, entre eles o “Arena da Cultura”, da PBH; o curso “Administração de Grupos

Teatrais”, em parceria com o Grupo Galpão; o Curso de Planejamento e Gestão

Cultural, realizado com recursos do Fundo Municipal de Incentivo à Cultura pelo

antropólogo José Márcio Barros. Ademais, o Grupo já recebeu consultoria de vários

artistas profissionais de Belo Horizonte, relatados adiante.

Para Rômulo Avelar, essa experiência é ímpar pelo poder de mobilização e pelo

compromisso com a comunidade. “Esse trabalho é o primeiro passo para a

consolidação de um novo movimento cultural no Aglomerado Santa Lúcia e tem

como objetivo a abertura de oportunidades de crescimento para os jovens da

região.”

5.3 A peça

5.3.1Teatro popular e criação coletiva

Ainda que não seja o foco deste trabalho discutir o teatro como linguagem artística e

aprofundar em seus aspectos técnicos, serão traçados alguns elementos que

permitam ao leitor conhecer as bases filosóficas adotadas pelo Grupo do Beco na

90

elaboração de seu trabalho, especialmente na peça analisada nesta dissertação.

De acordo com Nil César, o Grupo não segue uma teoria teatral na montagem de

suas peças, não adota uma metodologia específica e única. O que há, de acordo

com ele, é uma busca pessoal sua, como diretor, que acaba por ser repassada e

reflete na organização do Grupo. “Como filosofia a gente segue o teatro de Boal, de

Brecht, de Gianfrancesco Guarnieri e de Viola Spolin, entre outros autores.”

Os autores citados por Nil César têm, cada qual, sua contribuição para a formação

do teatro contemporâneo, configurando um panorama que praticamente perpassa a

maior parte dos grupos de teatro da atualidade. Bertold Brecht dá essa base comum

e constitui-se em referencial dos demais autores citados, mediante criação das

técnicas teatrais do chamado Teatro Épico.

O Teatro Épico utiliza uma série de instrumentais diretamente ligados à técnica narrativa do espetáculo, onde os mais significativos são: a comunicação direta entre ator e público, a música como comentário da ação, a ruptura de tempo-espaço entre as cenas, a exposição do urdimento, das coxias e do aparato cenotécnico, o posicionamento do ator como um crítico das ações da personagem que interpreta, e como um agente da história.12

Percebe-se que no Grupo do Beco, todos esses elementos estão presentes,

inclusive na disposição do cenário, que é remontado pelos próprios atores ao longo

da encenação.

Vale destacar que o processo de construção das peças do Grupo adota a criação

coletiva,

processo de construção do espetáculo em que o texto é gerado pelo jogo dos atores que, guiados ou não por um diretor, debruçam-se sobre um tema, uma história ou qualquer outro tipo de material. Em muitos casos, não apenas a função do dramaturgo é substituída pelo trabalho dos intérpretes, como também outras funções de criação, como o cenógrafo, o figurinista, o iluminador, o diretor musical. Em geral, os atores que optam pela criação coletiva estão no contexto do teatro de grupo e têm como objetivo ampliar sua participação, deixando de ser apenas aqueles que se encarregam de criar personagens e representá-las para se tornarem autores e produtores. 13

Nessa linha está o trabalho de improvisação como base do texto teatral, método 12 www.itaucultural.org.br 13 www.itaucultural.org.br

91

desenvolvido por Viola Spolin, que, além de ser considerada a avó norte-americana

do teatro improvisacional, teve o mérito de sistematizar o sistema de jogos teatrais,

que são, inclusive, o nome de um dos projetos desenvolvidos atualmente pelo Grupo

do Beco com crianças da comunidade.

Por fim, dois autores fundantes da filosofia que o Grupo busca trabalhar em suas

peças são Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, ambos ícones do teatro popular

no Brasil das décadas de 1950, 1960 e 1970.

Ressalte-se que Augusto Boal foi o fundador do Teatro do Oprimido, cujas técnicas

e práticas difundiram-se pelo mundo, notadamente nas três últimas décadas do

século XX, sendo largamente empregadas não só por aqueles que entendem o

teatro como instrumento de emancipação política, mas também nas áreas de

educação e saúde mental e no sistema prisional. O autor preconiza que o teatro

deve ser um auxiliar das transformações sociais e formar lideranças nas

comunidades. Para isso, organizou uma sucessão de exercícios simples, porém,

capazes de oferecer o desenvolvimento de uma boa técnica teatral amadora,

auxiliando a formação do ator de teatro.

Gianfrancesco Guarnieri, por sua vez, destaca-se por ter lançado textos voltados à

realidade nacional, que discutiam, com densidade dramática, problemas

sociopolíticos de impacto. Eles Não Usam Black-Tie (1958) e Gimba (1960) são dois

grandes exemplos de sua produção, tendo como mote, respectivamente, a vida dos

operários em greve e a dura sobrevivência das populações marginalizadas nos

morros cariocas.

Esses textos ostentam, pela temática e proposições estéticas, vínculos com o realismo socialista; possuindo o mérito de deslocar o olhar cênico para as camadas populares, seus problemas e contradições próprias, sem a óptica paternalista tradicional.14

Tendo os problemas sociais como fonte de sua dramaturgia, vários autores

reforçaram o que veio a ser chamado de Teatro Popular, seja através das histórias

da periferia urbana, seja da pobreza do Brasil rural da década de 1950.

14 .itaucultural.org.br

92

Nasce assim uma tendência que seria predominante nos anos seguintes. Jorge Andrade, Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Dias Gomes, Antônio Callado, Augusto Boal, Millôr Fernandes fazem parte de uma geração que descobre nos problemas sociais a fonte de sua dramaturgia. No dizer de Paulo Pontes, o povo é "a única fonte de identidade nacional". Entende-se esse povo como aquele que é explorado, que leva uma vida à margem dos meios de produção e do saber. A idéia de que os fracos, unindo-se, derrotam os fortes, ganha muitas versões. Os heróis que morrem por uma causa coletiva – Lampião, Antônio Conselheiro, Padre Cícero, Zumbi, Tiradentes – merecem várias peças.15

Configura-se, nesse contexto, a ressignificação da arte, como espaço de reflexão da

realidade, de construção de uma nova consciência e de aproximação entre ficção e

vida real. No caso do Grupo do Beco, como se verá a seguir, essa aproximação vai

além de uma “imersão artística” dos atores e diretores na construção da peça, já que

toda ela é ambientada e redigida a partir da vivência dos próprios membros do

Grupo e seus iguais.

5.3.2 O texto e sua construção

No ano de 2003 foi produzida a peça “Bendita a Voz entre as Mulheres”, pelo Grupo

do Beco, produto do projeto Mãos de Mulher, antes mencionado, e que foi escolhida

para análise neste trabalho.

A peça, que estreou em Belo Horizonte no Dia Internacional da Mulher, 8 de março

de 2003, já foi apresentada em escolas (públicas e particulares), espaços culturais

como o Galpão Cine Horto e o Centro Cultural da UFMG, Casa do Conde, entre

outros.

Também foi mostrada no Teatro Marília, no Projeto “Novos Registros”, promovido

pelo Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. A apresentação de “Bendita” foi

seguida de debate sobre o processo de produção do espetáculo, tendo em destaque

a realização das entrevistas e a utilização delas como fonte de pesquisa artística. As

vinte gravações, com os depoimentos das mulheres entrevistadas, foram doadas

pelo Grupo do Beco ao Arquivo Público da cidade. Nil César também já deixou seu

15 .itaucultural.org.br

93

registro no Museu da Pessoa, motivado por esse processo de conhecimento das

histórias das mulheres da vila.

É importante realçar que, apesar de já ter experiências anteriores com outras

montagens, foi a partir deste projeto e da montagem de “Bendita” que o Grupo do

Beco modificou suas relações com o meio artístico da cidade e ampliou sua

visibilidade para fora dos limites da comunidade onde vivem seus membros.

Fundamentais nesse processo foram as etapas de formação de membros do Grupo

na área de gestão cultural; a parceria conquistada com o assessor de planejamento

do Grupo Galpão; a conquista de financiamento via Leis de Incentivo à Cultura e ,

por fim, o envolvimento de uma série de profissionais já consagrados no mercado

para montagem da peça.

Nesse sentido, cita-se o envolvimento, no projeto, dos diretores Ana Domitila e Júlio

Maciel, do Grupo Galpão; do diretor musical Ricardo Garcia; da dramaturga Letícia

Andrade; do cenógrafo e figurinista Léo Piló; da preparadora vocal Babaya; da

coreógrafa Dudude Herrmann; além de Valéria Braga, Anthônio, Amaury Borges e

Lica Gimarães. Com o apoio desses profissionais, foram realizadas oficinas de

expressão corporal, interpretação, improvisação, técnica vocal e musicalização,

capacitando o Grupo do ponto de vista artístico e técnico e permitindo também dar o

salto de qualidade no cenário cultural da cidade.

É importante destacar que o olhar que se pretende aqui sobre a peça não tem o

objetivo de se constituir como uma análise da narrativa propriamente dita,

considerando os diversos métodos existentes para esse tipo de trabalho, mas antes

busca, livremente, entender o contexto do Grupo e da comunidade onde vivem a

partir de um texto teatral. Concordando com Magnani, “a produção da significação

transcende o plano textual lingüístico-discursivo, principalmente quando nela

intervêm outros códigos – a linguagem do corpo, dos gestos, dos objetos”

(MAGNANI, 2003, p. 78) e, no caso do Grupo do Beco, os códigos da comunidade.

O Projeto “Mãos de Mulher”, que deu origem à peça, foi o primeiro aprovado pelo

Grupo ante a Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Realizado entre 2002 e 2003,

94

idealizou-se a realização de entrevistas com mulheres da comunidade, como

subsídio para a montagem de um espetáculo teatral.

A pesquisa foi realizada com 20 mulheres, com idades variáveis entre 21 e 80 anos,

por intermédio do método da história oral. Incentivou-se cada entrevistada a contar

um pouco de sua vida, “revelando vivências, experiências e sonhos permeados pelo

machismo, pela discriminação racial e social, retratando também a diversidade de

perfis existentes na comunidade”.

A leitura das entrevistas deixa antever uma realidade que, de fato, é o panorama

mais comum encontrado hoje no Brasil perante as famílias de baixa renda: a cada

dia, a mulher assume um papel mais ativo na família e na sociedade, não apenas

como esteio emocional e força impulsora, mas também como provedora e

sustentáculo de marido e filhos.

“É o caso, por exemplo, da única mulher pastora do Aglomerado, da dona de casa que fica por conta dos filhos, da mulher que trabalha fazendo carretos, da líder comunitária e da mulher mais velha, dentre outras.” (Entrevista com o Grupo do Beco)

A opção do Grupo pelo foco nas mulheres como fio condutor das pesquisas e da

própria peça foi baseada na percepção de que a temática de gênero é fundante nas

relações que se estabelecem nas classes baixas, em geral, e na Barragem Santa

Lúcia, em particular. Nas palavras de uma das atrizes do Grupo do Beco:

"Também a questão da força que as mulheres do morro têm, acho que ninguém ainda reparou nisso, nem elas mesmas. O tanto que elas são chefes de família, responsáveis pela construção desse morro. A maioria aqui na ocupação do morro era mulher, elas faziam os barracos delas, os policiais chegavam aqui à meia-noite e destruíam tudo, aí elas iam montando tudo de novo. Então, tudo isso aqui foi construído à base de mulher, e os homens procuram o caminho mais fácil que é a bebida, infelizmente. Vê-se que aqui os malandros são minoria. O resto são pessoas que querem um futuro na vida, que querem ter uma profissão bacana, são mães que lutam para os filhos estudarem, para terem uma profissão melhor que a delas, para que eles não sejam humilhados, não passarem a situação que elas já passaram. Porque morar em favela não é

95

fácil, a humilhação às vezes é muita, você chega às vezes num bairro e o pessoal te trata mal mesmo. Infelizmente, isso ainda é realidade." (Entrevista com o Grupo do Beco)

Os membros do Grupo chamam a atenção para o fato de que também nos projetos

sociais e artísticos, as mulheres se sobressaem.

“O próprio Grupo do Beco tem 7 mulheres e 2 homens, porque, no meu ponto de vista, as mulheres são muito mais observadoras e elas querem mudar a situação daqui do morro, por isso o Grupo tem tantas mulheres.” (Entrevista com o Grupo do Beco)

De acordo com as entrevistas, o processo de construção dos personagens da peça

foi muito marcante para as próprias atrizes, também moradoras do Aglomerado, mas

que nunca tinham tido um olhar atento para a realidade que vivenciavam, não

tinham ainda colocado a questão de gênero como um foco no seu dia-a-dia.

Outra atriz do Grupo comenta:

"As entrevistadas, quando vão falar da vida delas, a expressão delas cai totalmente, porque elas têm a vida muito sofrida. Fiquei surpresa com o jeito de levarem a vida, enfrentarem o marido. Se tinha alguma coisa incomodando, elas chegavam no marido e falavam, nem que tivessem que brigar com eles, nos tapas mesmo. Eu achei uma forma de saber me defender, achei muito bonito isso, porque a maioria fica calada, os homens fazem delas o que quiserem, ficam com outras mulheres na cama mesmo, no mesmo quarto que elas e ainda mandam levar comida pra eles e elas não fazem nada, ficam caladas, como se o marido tivesse o direito de fazer delas o que quiser, mas esta entrevistada que eu fui na casa dela foi completamente diferente – a firmeza dela, a coragem que ela sempre teve." (Entrevista com o Grupo do Beco)

A partir dessas histórias, o texto do espetáculo foi construído em processo

colaborativo entre os integrantes do Grupo do Beco e a dramaturga Letícia Andrade,

além dos diretores da Peça, Ana Domitila e Júlio Maciel, ambos integrantes do

Grupo Galpão e apoiadores do Grupo do Beco.

"Mãos de Mulher tem como desdobramentos importantes

96

instrumentos de construção da memória coletiva do Aglomerado Santa Lúcia: o pequeno acervo de depoimentos das mulheres entrevistadas, além de incluir-se nesse conjunto de instrumentos, serviu como matéria-prima para a produção de um videodocumentário, já em fase de edição e dirigido por Marcelo Braga (Emvídeo) – também produtor – e Rodolfo Vaz (ator do Grupo Galpão). Também foi utilizado como fonte do trabalho acadêmico ‘AGLOMERADO SANTA LÚCIA – PARA ALÉM DO HORIZONTE PLANEJADO – representações do trabalho feminino nas histórias de vida de mulheres da periferia’, da moradora e [então] estudante de história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Josemeire Alves, desenvolvido em 2002." (Entrevista com o Grupo do Beco)

Do ponto de vista da estrutura, a peça contém os elementos clássicos dos dramas: a

apresentação de uma carência inicial, a ocorrência de um dano que agrava a

carência, a desagregação causada pelo dano e, por fim, a reparação do dano,

recuperando um certo equilíbrio. Ao analisar as peças circenses, Magnani destaca:

[...] em cada uma das peças analisadas, o dano responsável pelo desencadeamento da ação dramática sobrepõe-se a uma situação inicial já marcada pela carência, o que coloca as personagens identificadas com o bem [...] à mercê das forças do mal: pobreza [...]; doença [...]; orfandade [...]; incredulidade [...]; violência [...]; desobediência [...]; desemprego [...]; morte [...]. (MAGNANI, 2003, p. 87).

Atente-se a que, no caso de Bendita, a situação de carência inicial inclui a moradia

precária na favela, a discriminação racial (“macaca, macaca, preta fedorenta!”) a

bebida do pai, a resignação da mãe e a convivência com as situações adversas da

comunidade. De acordo com a sinopse da peça, enviada pelo Grupo aos meios de

comunicação, “Bendita” conta a saga de uma mulher:

[...] negra, pobre e com um sonho que a acompanha desde o nascimento – o de ser cantora. A personagem-título do espetáculo do Grupo do Beco vive, no palco, um pouco da vida de cada mulher moradora de favelas brasileiras. Sofre, na infância, as mazelas do preconceito racial; é violentada na juventude e traída pelo parceiro. Contudo, Bendita também sonha e é a força deste sonhar que a desperta para a felicidade.

Após a carência inicial, o segundo momento é a ocorrência de um fato que vai

introduzir a ação dramática.

Essa situação de carência é agravada pelo dano propriamente dito: crime

97

[...]; sedução [...]; roubo [...]; maldição fatal [...]. A partir dessas rupturas, a ação dramática encaminha-se em direção ao estabelecimento do equilíbrio e resolução da carência, com casamento e reafirmação dos laços conjugais [...]; justiça [...]; perdão [...] amor materno e fraterno [...]; fé [...]; reconhecimento da inocência [...]. (MAGNANI, 2003, p. 87).

A protagonista Bendita tinha desde criança o sonho de ser cantora e, apesar de

todas as dificuldades, lutou pelo seu sonho, enfrentando um pai alcoólatra, um

amigo que a violou, espancou, traiu, e um marido que entendia que lutar pela vida

era para as mulheres dos outros, e não para a sua.

“O dano – seja qual for sua natureza – acarreta sempre desagregação nas relações

familiares, ou, nos casos em que a situação inicial já apresenta algum tipo de

desequilíbrio nesse plano, constitui um fator de agravamento.” (MAGNANI, 2003, p.

87.) No caso de Bendita, o dano é dado pelo estupro pelo vizinho Caxeta e posterior

gravidez. A desagregação nas relações familiares se expressa pela expulsão de

casa pelo pai, pelo corte forçado do relacionamento com a mãe e o irmão, pela

convivência diária com a traição dentro de casa, o espancamento e a humilhação.

Por fim, culmina com a morte do pai que, alcoolizado, enfrenta o “genro” violador e é

por ele assassinado.

Contra todas as probabilidades, dadas pelas estatísticas e chances de progressão

social junto aos moradores de favela, Bendita luta e atinge seu objetivo. Livra-se do

marido desequilibrado, casa-se com o homem que tinha sonhado, enfrenta-o quando

este tenta desconsiderar sua vontade e alcança o sonho de ser cantora.

A reparação do dano, no final, termina restabelecendo o equilíbrio ou, no mesmo plano, com uma volta à situação anterior – harmonia no lar [...]; eliminação do perigo [...]; ou, em outro plano, com um novo casamento [...] e, finalmente, pela exaltação do sentimento ou virtude desqualificados na etapa da carência. (MAGNANI, 2003, p. 87-8).

Por um lado, a estória da peça é considerada pelos integrantes do Grupo como uma

estória universal, que encontra identificação entre mulheres em situações sociais

muito diferentes daquela vivida pela personagem central. Como mostras dessa

identificação é citada a profusão de lágrimas e risos despertados na platéia durante

as apresentações, e os relatos recolhidos nos debates que se seguem.

98

No caso específico do Grupo, essa identificação ampliada é favorecida pela forma

como foram construídas as personagens, isto é, a partir da compilação da fala de

várias mulheres, cada qual com suas vivências, constituindo uma noção muito

interessante de perfil compartilhado. Ademais,

[...] o ‘efeito de realidade’ de certos discursos, isto é, a sensação que produzem de remeter diretamente aos fatos, não é o resultado de uma adequação entre discurso e realidade, mas da correspondência entre discurso e representações prévias, através de determinados mecanismos e manobras estilísticas próprias do gênero. (MAGNANI, 2003, p. 92).

Verifica-se que a identificação é tanta que, às vezes, o próprio Grupo se espanta,

como foi o caso de uma apresentação seguida de debate realizada com alunas do

curso de psicologia de uma faculdade de Belo Horizonte. Nesse dia, a comoção na

sala de aula foi tão grande e escandalosa que os membros do Grupo,

compenetrados na encenação, faziam grande esforço para não rir da histeria que a

peça despertou nas mulheres, classe média e média alta, nível universitário.

De acordo com Canclini, esse suposto desencontro entre os emissores e receptores

nada mais é que resultado da própria característica do campo das artes, onde os

diferentes referenciais e vínculos com a sociedade produzem diferentes leituras e

significados das obras. Ademais, "o caráter aberto das peças artísticas e os textos

literários modernos os tornam particularmente disponíveis para que no processo de

comunicação os vazios, os lugares virtuais sejam ocupados com elementos

imprevistos". (CANCLINI, 2000, p. 150).

Se, por um lado, são retratatados sentimentos e vivências de identificação ampla,

por outro, na estória contada na peça, fala-se da vida particular das moradoras da

Barragem Santa Lúcia, cada qual ouvida durante a montagem da peça.

Ao se analisar a peça Bendita do ponto de vista técnico, pensando nas

características e tendências da arte e do teatro contemporâneo, é possível perceber

uma série de aspectos relevantes.

Em primeiro lugar, vê-se que é muito presente no trabalho do Grupo a referência da

realidade onde vive, sem fronteiras muito claras entre representação e vivência.

99

Especificamente a respeito da peça “Bendita”, fica totalmente explícito como o

contexto interfere no processo criativo do Grupo, já que todos os atores são pessoas

da comunidade e o tema proposto por eles parte diretamente de suas histórias e

vivências.

E se o ator é, ao mesmo tempo, material e organizador de seu trabalho, o Grupo do Beco expressa com clareza a dubiedade dos papéis de produtor e artista, quando distribui funções administrativas aos atores e torna necessária a complementação de renda para sustento do Grupo, em atividades que perpassam pelos papéis de babá, oficineiro e outras do tipo. Entretanto, se o teatro é a arte de reavivar memórias, comunicando ao ser humano um outro plano, diferente da realidade cotidiana, também transmite verdades que permaneciam ocultas, é um ato revelador, ao mostrar, poeticamente, aquilo que a crueza do dia-a-dia dificulta o reconhecimento. Essa característica do teatro é muito forte na proposta do Grupo do Beco, não apenas pela forma de elaboração dos textos, baseados nas histórias da comunidade, mas também pela opção de realizar debates após cada apresentação, discutindo com o público os elementos que perpassam, mas extrapolam o roteiro original da peça. (ALBERTO, 2006, p. 5).

Relatos de Nil César e demais integrantes do Grupo a respeito dos debates com os

espectadores mostram como é distante a percepção do público em geral, moradores

da cidade formal, sobre a vida em uma favela. Surpresas ante situações tão comuns

e cotidianas para o Grupo do Beco mostram que, de fato, há muito caminho a se

trilhar antes de conseguir, através de que meio artístico seja, uma nova visão sobre

as comunidades de baixa renda da cidade.

"Eis também o papel do teatro na sociedade: a construção de uma ponte que

permite a comunhão entre realidades distintas, a celebração de uma vivência

experimentada de maneira mediada pela prática do ator." (ALBERTO, 2006, p.7).

Entende-se que a experimentação na área técnica é outra das características do

Grupo do Beco, sempre trabalhando oficinas de corpo, voz, postura, entre outras,

como já mencionado. Após Bendita, é feita nova montagem pelo Grupo, Morro de

Amores, uma peça de rua onde todos os atores estavam sobre pernas de pau, numa

homenagem aos grupos do teatro popular em geral e ao Grupo Galpão, em

particular. Para essa montagem, todos os atores tiveram que trabalhar novas

técnicas e experimentar além do que já tinham costume de realizar com suas peças

anteriores.

100

Além da utilização da linguagem, contemporânea por estar próxima da fala popular, da temática do dia-a-dia, e da proximidade com a realidade, na minha observação acredito também que o trabalho do Grupo do Beco como um todo é contemporâneo, por diversos motivos. Em primeiro lugar, por ser um grupo que tem em seu cerne a experimentação e a criação coletiva como motes. A partir das entrevistas com as mulheres da favela, cada ator constrói seu personagem em improvisações, que aos poucos vão sendo moldados coletivamente e se consolidam num papel dentro da peça. No caso do texto de “Bendita a Voz entre as Mulheres”, foi ele todo redigido sobre essas improvisações, de maneira coletiva. (ALBERTO, 2006, p. 7).

Do ponto de vista do espaço cênico, o Grupo também reflete as características do

teatro contemporâneo, uma vez que suas montagens, em geral, prescindem da

caixa cênica tradicional, adaptando-se a espaços diversos – escolas, igrejas, centros

comunitários. Essa escolha coaduna-se com a filosofia do Grupo, que entende a

necessidade de propiciar o acesso à arte pelas comunidades carentes, o que, por si

só, pressupõe uma maleabilidade nos cenários e jogos de cena.

Comentário importante nesse sentido refere-se ao projeto Teatro na Laje, proposto

pelo Grupo e aprovado pela organização internacional Brazil Foundation, que

consiste, justamente, na realização de espetáculos sobre lajes, nos telhados da

comunidade, para pequenos públicos ali presentes, aproximando comunidade e

teatro, realidade e ficção, vida cotidiana e fruição artística.

Destaca-se outra característica da arte contemporânea que se impõe ao Grupo:

[...] o questionamento constante a respeito do limite entre arte e realidade. Será que o que o Grupo do Beco está fazendo é arte? Retratar a realidade de sua vila, mostrar a história de suas mulheres? Enfim, é nessa dúvida constante que seus trabalhos se desenvolvem, evoluem e ampliam seu público a cada dia. Segundo reflexão de Cristina Tolentino, o papel do ator no teatro contemporâneo se confunde com a sua realidade: o ator é aquilo que ele carrega, sua obra é o que ele constrói ao longo de sua trajetória. Nesse sentido, é indiscutível a profunda relação com o trabalho do Grupo do Beco – o ator no limite da auto-representação – quando é que eles são moradores da favela, quando são atores? E quando esse afastamento ou aproximação é percebido pelo público? (ALBERTO, 2006, p. 8).

5.3.3 Pessoas e personagens

Impõe-se que a personagem Bendita, por exemplo, é uma composição de diversas

101

mulheres entrevistadas. Desvela-se uma delas, Mariza, mãe aos vinte e um anos:

[...] ser mãe pra mim está sendo o máximo, é uma coisa assim inexplicável sabe, também ser mãe parece que você ganhou alguma coisa a mais, sabe, uma coisa muito importante, e que você vai ter que levar pra vida inteira e, por exemplo, fazer essa poesia, e sabe, encaminhar ela pra vida, e isso, por exemplo, ensinar ela coisas assim, como é estar aqui neste mundo e tal, e pra ela ser uma pessoa de bem. (Extrato das entrevistas do projeto Mãos de Mulher)

Afigura-se outra, Durica, que enfrenta o marido, mesmo fisicamente:

Uma vez, foi no Natal, eu tava fazendo a ceia aqui pra gente cear, eu e os meninos e ele, aí ele me chamou: ô Dú, vem cá. Eu disse: num posso não, eu tô fazendo a comida aqui, depois eu vou beber. E ele: não, vem cá, depois você fala que ninguém te chamou. Eu disse: espera eu terminar aqui, se não vai queimar. Aí ele: depois fala, anda preta, vem cá. Eu peguei e fui... saí daqui, fui lá no Ladim e lá tinha um baile... Que que ocê tava fazendo? Fritando um frango, ele tinha pedido pra fritar pra ele, pra tirar o gosto do buteco... Eu peguei e fui, larguei, baixei o fogo e fui. Cheguei lá, ele abriu uma cerveja e falei assim: ô preto, num quero tomar cerveja agora não, depois eu tomo, deixa eu terminar lá em casa primeiro? Não, vamos tomar essa aqui, depois você termina. Aí um moço lá tava dançando e tava muito cheio, o moço me esbarrou, vim com o braço assim, a minha mão esbarrou assim no rosto dele, aí ele pegou e virou pra mim e falou comigo assim: ô preta, num bate na minha cara não! Mas eu num ti bati não, o moço que tava dançando com você que esbarrou na minha mão e esbarrou no seu rosto. Ocê me bateu, mulher, num me bate na minha cara não! Falei assim: Mas eu não te bati... ô moço, explica pra ele que foi o sinhô que esbarrou em mim. Foi, seu Zé, fui eu que esbarrei... e ele: não puxa o saco dela, ela bateu em mim. Aí eu achei desaforo, e eu falei e ele pondo aqueles nomes feios em mim, eu num te bati na cara... Ah bateu, sim. Não bati não. E eu chamei: então, já que eu bati, vem cá pra mim te bater então (risos) enfezei, enfezei aí eu bati, mas sentei, montei nele, empurrei ele lá no chão, sentei a perna assim no pescoço dele assim ó pra levar... Lá... no meio da rua, no Natal, dia vinte quatro pra vinte cinco, peguei a minha perna e tracei no pescoço dele, amassei, e eles gritando: Bate Durica, e eu PÁ, PÁ, PÁ na cara dele. Aí, eu agora eu bati, ainda até cortei meu pé aqui ó, tem a marca até hoje, nem sei onde que cortou. Aí, ele levantou, eu já vim cá pra casa, passei a mão num pedaço de pau: vem, vem que agora nós vamos conversar é aqui dentro. Agarrei nos badalo dele, agarrei, meu filho, na hora que ele veio eu bati a minha mão lá, segurou e eu mudei de mão, fui lá de novo, com essa mão aqui... já tava meio cansada (gargalhadas). Ah, mas aqui é que foi fogo, o pai da Dalva é que me tirou, mas ele me xingou demais, coitadinho. (Extrato das entrevistas do projeto Mãos de Mulher)

Percebe-se essa cena, inclusive, dentro da peça, como uma das que desperta no

público o riso e o relaxamento. Bendita controlando e dominando o segundo marido,

João, através do “aperto” nos testículos. A questão da introdução da comicidade no

102

texto aparece em outros momentos e será discutida posteriormente.

De acordo com os membros do Grupo, relatos como o de Mariza e Durica são

apenas alguns que colaboram para a formação da personagem Bendita, entre as

diversas falas das mulheres da favela.

Configura-se Bendita como a menina que não se conforma, desde pequena, com as

situações que lhe são dadas ou impostas: com o fato de ser xingada de macaca na

escola pelos meninos, de não ser branca como o irmão Samuel, de ter um pai que

bebe e uma mãe conformada, de ter que se submeter às agressões do marido

forçado e de quase ter que abrir mão de seu sonho por causa do segundo marido.

Mesmo diante da violência de Caxeta, seu estuprador e marido forçado, reage com

coragem: (após ser agredida, grávida).

“Fica longe, Caxeta. Você não vai me tocar nunca mais. Seu nojento! Meu filho é a única coisa que me restou, cê num vai fazê nada com ele. Vai embora!”

Fica claro que Bendita é a representação da mulher favelada que batalha, não se

dobra ante as carências e problemas e não se cala defronte as injustiças. Bendita

pode perfeitamente ser o retrato de qualquer uma das provedoras das casas da

comunidade, uma mulher capaz de sustentar casa, família, marido, filhos...

Além da protagonista, Bendita, o texto conta com outros personagens marcantes e

importantes para a composição do quadro social, no palco e fora dele, que serão

elencados a seguir.

Apresentam-se os personagens masculinos, que são quatro: José Maria Ferreira da

Silva, o Pai; Caxeta, o Violador; Samuel, o Irmão inocente; João / Jonny Cat, o Galã

que se torna segundo marido. Na estória, cada um deles tem seu papel nos diversos

momentos condutores da ação.

Vê-se que José, o pai, é homem que desde o início da peça já mostrava sua

fraqueza: o apelo do boteco. Pela bebida, trocava uma noite de amor com a mulher

Maria, o acompanhamento do crescimento dos filhos, a dignidade diante do

103

estuprador de sua filha, dono da biboca onde ele pendurava as contas, enfim

acabou por trocar a própria vida. José se mostra o estereótipo do morador de favela

do sexo masculino, no ponto de vista de seus habitantes: honesto, trabalhador, bom

marido, mas dominado pela cachaça.

"(No nascimento da filha): É o paizão. Vem pro papai, vem. Minha primeira filha, vai ser o orgulho da família. Olha, olha Maria, ela ri que nem minha vó. (decidido) Então, vai chamar Bendita! [...]. Isso merece uma comemoração daquelas, (Maria e Bendita se empolgam), vô pro boteco."

Se o processo de pesquisa para constituição da peça tivesse ouvido também

homens, certamente José teria sido um modelo dos mais comuns, mais universal

dentro das comunidades, pelo menos como representação. Também seu destino

trágico, assassinado por uma briga despropositada num bar, referencia-se aos

diversos acontecimentos que são registrados cotidianamente nas favelas: morte sem

propósito claro ou justificado, brigas simples terminando em tragédia, a defesa da

honra como último bastião da dignidade dos estigmatizados, de uma forma ou de

outra.

Agora, volta-se o olhar para o seu opositor na peça, Caxeta. Amigo da família,

sedutor, atrai Bendita para ver seus equipamentos musicais (o sonho dela é cantar),

a seda e a estupra, desmaiada. Nesse momento, o pai entra e se depara com a

cena. Caxeta recebe de brinde pelo acontecido a mulher, que engravida e passa a

viver em sua casa, dividindo o quarto com as diversas amantes que ele leva para a

cama.

Caxeta é personificado, pelos moradores das comunidades, como o anti-homem,

com H maiúsculo, o anti-herói: desonesto, mentiroso, agressivo, covarde, violento,

totalmente vil.

“(após o estupro e a chegada de José) Eu acho melhor você ficar de bico calado, senão eu te mato e te jogo na rua, tá entendendo? (joga Bendita no chão).”

Se dá bem durante toda a peça, humilha, maltrata e bate em Bendita, mesmo

quando grávida, despreza sua mãe e sua filha, mas ao final, no momento da

reparação, é quem tem que fugir, após assassinar o “sogro” José, e acaba

104

perseguido pela polícia e por Samuel.

Constitui-se Samuel, o irmão, como criança que cresce ao longo da peça. Branco

(diferente da irmã), ingênuo, configura-se quase como um anjo: é dele o papel de

ligar a mãe e a filha expulsa de casa, de consolar Maria nos momentos de

desespero e tristeza, de velar o pai morto e, mais, até de garantir sua subida aos

céus [...]

"(com o pai morto no chão) Sabe, pai, a mãe me contou que quando morria alguém lá na roça, as pessoas amarravam um barbante na mão do morto e esticava bem esticadinho, bem lá no alto que é pra alma do defunto ir direto pro céu. (Desenrola o barbante e fica olhando para o céu) Pronto! Pode subir pai. Sobe, pai! (a alma de Zé sobe no barbante, mas Samuel não percebe, olha para “o corpo” caído do pai e, um tempo depois: Num vai subi não?!) (Entra Dita. Samuel agacha no “corpo do pai”, pega o chapéu, coloca-o na cabeça e fala para Dita) – Ô Dita, será que o pai não foi pro céu? (pausa, vai saindo e dizendo para si mesmo) Será que eu não amarrei direito? (saem os dois)."

Também é Samuel que vai atrás do foragido Caxeta para vingar o assassinato do

pai e restabelecer a honra da família ultrajada.

Revela-se, por fim, o último personagem masculino, João, também conhecido

artisticamente como Jonny Cat. Já no início da peça, antes de Bendita ser

“desgraçada” por Caxeta, os dois haviam se conhecido num ônibus lotado e tido

atração um pelo outro. João ainda não era Jonny Cat, estava justamente indo fazer

uma entrevista para o emprego de locutor numa rádio. Na trama novelesca, é

justamente nessa rádio que a mãe de Bendita a inscreve para um concurso de

cartas, contando a história de sua vida. Essa carta é a premiada e Bendita, quando

vai buscar o prêmio, uma panela de pressão, acaba por reencontrar João, agora

Jonny.

Se, por um lado, João/Jonny se define a contraponto simbólico de Caxeta (homem

honesto, apaixonado, carinhoso, galã), por outro não poderia deixar de incorporar as

características que o definem como homem na favela: machista, ciumento, quer

mandar na mulher, começa também a beber, e, depois de casado, tenta impedir que

ela continue cantando. “Não, mulher minha não é artista não”, “[...] a gente já

conversou que essa história de cantá não vai levar a nada, num dá camisa a

105

ninguém...”.

Mas, apesar da tentativa de domínio sobre a mulher, no final vê-se que é ela quem

escolhe seu destino. Enfrenta o marido e toma para si a decisão.

"João – quer saber de uma coisa: VO/CÊ NÃO VAI CAN/TAR! Bendita – ah, num vô não? (levanta a mão e, em câmara lenta, enquanto toca um pandeiro, abaixa e gruda no saco dele. Solta a mão) Bendita – ah, minha mão cansou! (repete a câmara lenta, e ela com a outra mão continua a apertar o saco) Bendita – ô Couves, liga minha música aí agora. (Bendita solta-o, que vai até a frente caindo) (todos aglomeram-se sobre ele em burburinhos. Bendita pega o microfone e começa a cantar)."

João acaba por aceitar a opção da mulher e mesmo a dizer pra todo mundo que é

seu “tipo” empresário (e ela: “tipo segurança mesmo”...), acompanhando a mulher

artista pelas apresentações e afastando os engraçadinhos que tentam dela se

aproximar.

Quanto às personagens femininas, Maria evidencia-se como uma das mais

relevantes. Mãe de Bendita, Maria oscila entre a resignação/submissão ao marido

alcoólatra, e a resistência e apoio ao sonho de sua filha.

"Quando eu dava banho nele eu tinha minhas intenções, porque dar banho em bêbado num é coisa que eu sonhei pra minha vida, não! (ela liga o rádio – música de sedução) Pssssiu! (faz uma pose sensual numa cadeira, esperando Zé repará-la, Zé não ouve, Maria chama de novo) Pssssiu! (faz a pose novamente e deixa um olho aberto para ver a reação de Zé, ele se mexe, mas não a repara; Maria decepciona-se, desmancha a pose; olha para o público, desanimada, vai para perto dele, dançando com um xale, passando-o nos pés e no rosto do marido, que por sua vez estapeia seu próprio rosto achando que o xale era mosquito; ela ri da reação dele e senta-se ao seu lado)."

Nota-se, aqui, o padrão recorrente entre as mulheres do morro: Maria, a mãe, a

genitora, a mulher universal, ama o marido e por ele suporta a agressividade, a

bebedeira, o trabalho desgastante, enfim, as agruras do dia-a-dia. Maria é o

estereótipo – real e não exagerado – da mulher de classe baixa moradora de favela:

trabalhadora, sustenta marido e filhos e busca uma vida melhor para a família. Como

a história de vida de uma das atrizes do Grupo do Beco:

“Minha mãe faleceu há poucos anos, era doméstica de manhã

106

e catava papelão à tarde. Eu e minha irmã catávamos com ela, papelão, latinha, era a tarde inteira assim. Minha mãe é exemplo de vida, ela é guerreira, se não fosse ela eu não tinha estudado. Eu fui começar a estudar com 9 anos, porque meu pai dizia que a gente não tem que estudar, ‘tem que agradecer a deus pela vidinha que nós temos’. Meu pai ainda é vivo – pelo que me lembro, até os meus 8, 10 anos, ele trabalhava de pedreiro. Depois, ele tava fazendo uma obra e caiu da laje, quebrou uma costela, mas não foi nada grave assim não, se ele tiver que carregar um botijão, ele consegue, etc., mas não trabalhou mais não, é aposentado agora. Meu pai sempre foi muito acomodado, deixava tudo nas costas da minha mãe, nunca tomou frente de nada.” (Entrevista com o Grupo do Beco)

Destaca-se outra mulher importante na peça: Anunciação, a fofoqueira solteirona da

vila. Com perfil bastante estereotipado e responsável pelos momentos cômicos da

peça, toma conta da vida de todos e precipita o destino de Bendita. Não aceita

cabresto: homem para ela, nem pensar! Ninguém vai mandar nela não.

"Anunciação – Maria! Maria – Oi, Anunciação. Anunciação – Cumé que ocê tá, heim? E a Dita, aquela lá não sai mais de casa, não? Maria – Ela deve tá trabalhando demais. Anunciação – É, o marido dela deve tá prendendo ela dentro de casa, de chicote e tudo. Maria – Oh, Anunciação, bate na boca três vezes. Nossa Senhora protege minha filha. Anunciação – Se precisar de mim, eu tô aí: levo e trago notícias. Pra mim não é nenhum problema. Eu não tenho marido para mim prender, né?"

O caráter cômico de Anunciação é reforçado pela montagem: ela aparece sempre

emoldurada por uma janela aberta, que carrega para todos os lados, imagem típica

da fofoqueira de bairro ou das cidades do interior, que muito têm a ver com as

favelas.

De acordo com Magnani (2003), a comicidade é também uma das características do

drama popular e do chamado melodrama, não como elemento estranho a ele, mas

como parte de sua própria estrutura. Além de aliviar um pouco a tensão do público

após momentos dramáticos, a comicidade cumpre o papel de distrair o público,

prender sua atenção e fazer com que agüente mais um ou dois atos até o desfecho

final.

107

Anunciação, dentro das entrevistas com as mulheres, mostra-se brigona igual à

Durica:

"Eu briguei com a dona Figênia, tadinha... (risos). Hoje ela mora na Capelinha. Eu coloquei minha lata... eu levantei cinco horas da manhã e coloquei a lata na fila, pra marcar lugar pra pegar água que tinha chegar 7 horas. Aí eu fui, pus a lata na fila e fui embora dormir. E a minha hora, a minha vez da minha lata chegou, ela foi e tirou minha lata e pôs pra trás da fila e a fila tava grande e eu tinha que levar minha irmã prá escola e aí eu perguntei: Quem é que tirou minha lata daqui? Ah, foi fulana... Ah, chegou e eu já fervi nela. Dei nela umas duas latadas boas nas costas (risos) pá! Costa afora, ela correu lá em casa e contou pro meu pai." (Extrato das entrevistas do projeto Mãos de Mulher)

Forte igual à Beth, pastora evangélica:

"Eu não sou dona do mundo, mas sou filha do dono. Outra coisa, não existe nada que eu não possa fazer, nada. Eu aprendi uma coisa, as pessoas, por piores que elas sejam, têm sempre um lado bom, [...] eu aprendi a lição, mesmo morando na favela, veja um rapaz armado, sei que ele tem algo de bom e eu valorizo o que há de bom nessa pessoa, quem vem até a mim, valorizo essa pessoa. Então, deixo essa mensagem: todos têm uma coisa boa, valorize o que ela tem de bom e você muda tudo na vida da pessoa, o maior problema é que vemos alguém armado e já dizemos que não vale nada, ele vale sim. [...] Eu sou uma mulher fora de série. Por exemplo, camisetas iguais, mesmo padrão, tamanho, e cor, então, quando uma camiseta sai com defeito, com uma gola virada ao contrário, ela saiu da série, então uma mulher fora de série é porque eu sou diferente das outras mulheres. Estão em casa preocupadas com filhos, marido, eu sou a única mulher que é líder, né? E aqui da Barragem sou a única que preocupa com areia, cimento, a loja predileta pra mim é depósito de construção. Quanto vale martelo, prego, gosto de ver se tá na medida certa, coisas semelhantes, então eu sou fora de série. Mas todos nós somos fora de série, tá? Eu digo isso porque tenho convicção, mas nossa carteira de identidade prova que somos diferentes uns dos outros, então as pessoas é que ainda não descobriram que são fora de série em uma área, entendeu? Por isso é que digo que sou fora de série, basta você se considerar, ninguém é igual a ninguém, alguma coisa é diferente." (Extrato das entrevistas do projeto Mãos de Mulher)

Segue-se outra personagem: Consolação, mãe de Caxeta. Consolação tem a

resignação da mãe que não concorda, mas no fundo sempre desculpa as atitudes

dos filhos e acha que a vida de cada um é o fardo que tem que carregar. Por outro

lado, é quem ajuda Bendita na ausência da mãe, apóia, consola, ajuda.

"Consolação – (percebe o choro de Bendita) Menina... (pausa, escuta) Ô, menina, vem cá vê o bordado que eu tô fazendo. (Bendita chorando vai ao encontro de Consolação) Senta aqui. Ô minha filha, cê é fia da Maria num

108

é? Num liga para esse meu fio, não, que ocê se acostuma. No meu tempo de moça, briga de namorado era normal. E eu, quando tinha sua idade, assim, eu era namoradeeeeira, tive sete namorados..."

Uma atriz do Grupo do Beco que participou das entrevistas com as mulheres do

morro realça:

"Nas entrevistas, o que mais me surpreendeu foi a questão do amor da mulher pelo filho dela. Ela tem um filho que está preso, então toda vez que ela vai visitar, ela tem que tirar a roupa toda, ela fala assim que é muito constrangedor para ela ficar tirando a roupa para visitar o filho na cadeia, daí ela disse pra ele que não ia visitar ele mais porque era uma situação muito difícil para ela. Se o filho dela visse isso acho que ele não ia mais mexer com droga, ou roubar, porque eu vi a tristeza no olhar da mãe dele quando ela falou – até cheguei em casa e contei para os meus sobrinhos, falei para eles tomarem muito cuidado, para não entrarem nessa vida, porque não tem volta, vão morrer cedo – isso me marcou muito. Ao mesmo tempo, era uma pessoa muito alegre – com tudo o que ela passou – outro filho dela morreu há pouco tempo, ela levantando o astral da gente – eu até comecei a chorar, ao ver a força que ela tem." (Entrevista com o Grupo do Beco)

Apesar das dificuldades vividas pelas mulheres na peça, sua última cena demonstra

uma mensagem de esperança e resistência, onde todos os atores cantam juntos no

palco a música Nome Sagrado:

“O nome de mulher é tão sagrado Mulher é nome pra ser respeitado A cobra não morde uma mulher gestante Porque respeita seu estado interessante Minha mãe também tem nome de mulher Tenho que defender Eu choro quando vejo ela sofrer Deus nosso Senhor devia castigar O infeliz Que faz uma mulher chorar.“

É importante realçar que a questão do gênero é somente um dos recortes possíveis

a partir da peça. Apesar de forte e estruturante na narrativa, não é o foco deste

trabalho, uma vez que o que se pretende aqui é tratar do papel da arte na

transformação social nas comunidades faveladas.

Como se buscará discutir no próximo capítulo, é através das manifestações

artísticas que os moradores das comunidades vêm sendo confrontados com novas

109

realidades e novos horizontes. Esse confronto propicia-lhes vivências e

oportunidades que têm se revelado transformadoras em aspectos que vão desde a

questão da auto-estima e da identidade pessoal até as formas de relacionamento e

participação em processos coletivos em suas comunidades.

A peça “Bendita a Voz entre as Mulheres” foi escolhida para efeitos de análise neste

trabalho justamente por trazer para a ficção esse processo de transformação a partir

da arte.

Nas palavras de uma das atrizes do Grupo:

"Agora, como atriz, eu acho que a gente serve como exemplo, porque as pessoas acham que a gente do morro tem que ser faxineira, tem que ser pedreiro, e a gente mostra que pode ser algo a mais, sabe? Não tenho nada contra, para mim não existe serviço subalterno, a humildade tem que estar em primeiro lugar, né? Se eu tiver que ser, vou ser. Mas se a pessoa quer ser uma professora, uma advogada, por que não correr atrás?" (Entrevista com o Grupo do Beco)

Percebe-se que a peça reforça, por intermédio de sua narrativa, dois momentos

distintos na vida de Bendita: antes e depois de seu envolvimento com a arte, como

cantora. Antes, submissão, falta de controle de seu destino, violência doméstica,

passividade, depressão. Depois, auto-estima elevada, desejo de lutar por seus

ideais, reconhecimento, satisfação pessoal e controle das relações familiares.

Na peça, vê-se que é através da arte que Bendita se reconhece e parte para a ação.

Na realidade dos artistas das favelas, a situação mostra-se muito parecida, em todos

os aspectos.

110

6 O PAPEL DA ARTE DA CULTURA NAS VILAS E FAVELAS

A análise da questão cultural nas vilas e favelas de Belo Horizonte, em geral, e do

caso do Grupo do Beco, em particular, leva à reflexão a respeito do papel da arte e

da cultura nas comunidades ditas periféricas.

Essa reflexão se impõe a partir do momento em que se verifica que a produção

cultural, na maioria das vezes, não representa fonte de renda para esses artistas.

Conforme apontado pelo Guia Cultural das Vilas e Favelas de Belo Horizonte,

somente 20% dos artistas cadastrados têm algum tipo de renda com essa atividade.

A partir dessa constatação, é possível aventar a hipótese de que a atividade artística

cumpre outros papéis diferentes nas vilas e favelas, não diretamente relacionados

ao mercado cultural stricto sensu. Nem renda e nem visibilidade, já que também

apenas uma pequena parcela dos envolvidos na produção cultural na periferia

conquista espaço na mídia ou chega a sobressair-se fora de sua comunidade, como

é o caso do Grupo do Beco.

Essa visão considera a cultura como um recurso, ou seja, como um capital do qual

se lança mão com objetivos e em momentos distintos.

A cultura é, hoje, vista como algo em que se deve investir, distribuída nas mais diversas formas, utilizada como atração para o desenvolvimento econômico e turístico, como mola propulsora das indústrias culturais e como uma fonte inesgotável para novas indústrias que dependem da propriedade intelectual. (YÚDICE, 2004, p. 11).

A instrumentalização da cultura, mais do que teoria, vem sendo praticada com

freqüência nas vilas e favelas e em projetos sociais, que se utilizam das práticas

artísticas para obter resultados e atingir objetivos os mais diversos. “[...] a cultura é

invocada para resolver problemas que anteriormente eram da competência das

áreas econômica e política.” (YÚDICE, 2004, p. 13).

Algumas hipóteses estão presentes nessa reflexão e informam o presente trabalho.

Considerando as falas dos artistas entrevistados e o estudo das práticas culturais

111

nas comunidades, o que se verifica é que a produção artística nas vilas e favelas,

instrumentalizada, pode atender a três facetas principais.

Em primeiro lugar, há os aspectos relacionados à elevação da auto-estima, auto-

reconhecimento e construção de uma nova representação do indivíduo perante o

outro e o Grupo. Em segundo, realçam-se aspectos relacionados às formas de

sociabilidade e convivência intergrupal. E, por fim, são fundamentais nesse processo

os aspectos ligados à participação e mobilização comunitária, mediante novas

formas de ação coletiva e ampliação dos direitos da cidadania.

Ao longo da experiência adquirida com a elaboração do Guia Cultural das Vilas e

Favelas e na atuação ligada à ONG Favela é Isso Aí, construiu-se o entendimento

de que, para os moradores das comunidades, participar de grupos artísticos tem

reflexos em seu crescimento pessoal, individual, sem sombras de dúvida.

Entretanto, também pode ser percebida uma questão de cunho mais coletivo, já que

a participação nesses grupos promove e constrói novas relações, novas articulações

e novos movimentos dentro da própria comunidade.

Os poucos estudos existentes que relacionam cultura com redução da violência e da

criminalidade indicam que o impacto não é só pessoal, mas, ao contrário, extrapola

as fronteiras do indivíduo, perpassando por impactos comunitários, sociais, ainda

que muitas vezes não esperados ou mensuráveis.

O presente capítulo pretende trazer um olhar sobre esses aspectos, por meio da

análise da bibliografia disponível, de forma a subsidiar uma visão da temática em

pauta.

Nesse sentido, é importante salientar que a bibliografia específica sobre o tema

deste trabalho é escassa – e essa foi uma das principais dificuldades para a

discussão da problemática em foco. Apesar de muito se falar sobre arte e

transformação social, pouco se tem avaliado e publicado a respeito dos reais

impactos e implicações das políticas culturais sobre as populações marginalizadas

ou em risco social.

112

6.1 Auto-estima, identidade, diversidade

A expressão auto-estima é a que mais se ouve quando se relaciona arte e favela.

Tanto na fala dos muitos projetos sociais que atualmente trabalham nesse enfoque,

quanto dos próprios artistas e envolvidos na produção cultural, moradores dessas

comunidades, parece uníssona a afirmação de que a arte e a cultura transformam o

indivíduo no que ele tem de mais íntimo: sua visão de si mesmo.

Essa temática aparece como relevante ao se aventar a hipótese de que é a partir da

transformação de sua visão de si mesmo, de seu auto-reconhecimento e elevação

da auto-estima que o sujeito, morador de favela ou não, transcende a barreira do

individual e transforma sua ação e relacionamento com o mundo.

A transformação do indivíduo pode, assim, impactar no coletivo, e esse impacto tem

como fonte geradora uma série de variáveis, que, entretanto, ainda não são tão

claras para os pesquisadores. Definir indicadores para a cultura ainda é uma tarefa

em construção.

Os pesquisadores dos estudos culturais muitas vezes enxergam a agência cultural de forma mais circunscrita, como se a expressão ou a identidade individual ou grupal em si levasse à mudança. Mas, como Iris Marion Young aponta: “nós nos encontramos situados em relações de classe, gênero, raça, nacionalidade, religião e assim por diante, [dentro de uma 'dada história de significados sedimentados e uma paisagem material, interagindo com outros no campo social'] que são fontes tanto de possibilidades de ação quanto de coação. (YÚDICE, 2004, p. 15).

Vale realçar que grande parte do que aqui será dito não se aplica somente a

moradores de vilas e favelas, em que pese a constante necessidade da sociedade

de marcar as diferenças individuais a partir das diferenças sociais.

No caso da forma como a arte impacta o indivíduo, as diferenças sociais ficam um

pouco menos evidentes. De qualquer forma, ainda que o que será dito se aplique à

grande parte dos indivíduos, o objetivo aqui é falar dos artistas moradores de favelas

e suas relações com a atividade artística.

113

O envolvimento dos moradores das favelas com a arte, especialmente quando se

encontram na condição de produtores, de “fazedores de arte”, tem sido apontado

como um importante fator de transformação social. Como antes mencionado, os

argumentos vão em direção da elevação da auto-estima, da construção de uma

nova visão de si mesmo e, portanto, da produção de novas formas de se relacionar

com o mundo e com a comunidade.

Por outro lado, vê-se que esse processo ainda é restrito e de pequena dimensão,

principalmente pelo fato de que se desvalorizam, na sociedade, as artes ditas

populares, em contraposição tanto às eruditas quanto às de massa.

Mesmo nos países em que o discurso oficial adota a noção antropológica de cultura, aquela que confere legitimidade a todas as formas de organizar e simbolizar a vida social (obs.: que também é o caso do Brasil desde a era Gilberto Gil no Ministério da Cultura), existe uma hierarquia dos capitais culturais: a arte vale mais que o artesanato, a medicina científica mais que a popular, a cultura escrita mais do que a transmitida oralmente. (CANCLINI, 2000, p. 194).

Há relatos muito interessantes que falam de como os indivíduos moradores de

favela se sentem mais confiantes após envolver-se com a arte. De como perdem a

vergonha de circular por locais que antes consideravam inadequados para si. De

como passam a participar de círculos de amizade e relacionamento que antes lhes

pareciam inacessíveis. De como passam a ter acesso à informação e ao

conhecimento em áreas diversas. Enfim, de como deixam de se sentir humilhados e

diminuídos em virtude de seu local de moradia e transformam a vergonha em força,

orgulho pela origem e auto-afirmação.

Esse é um processo de empoderamento, neologismo da moda originário do inglês

empowerment, geralmente aplicado em processos de desenvolvimento local, que

tem sido usado significando tomar o destino em suas próprias mãos, reconhecer sua

importância e seu papel na construção da sociedade e agir em prol da

transformação das condições de vida.

No caso das vilas e favelas, pode-se dizer que o empoderamento começa

justamente pela construção de uma nova identidade. Se, como se discutiu no

primeiro capítulo, o que o morador de favela recebe como sua imagem, construída e

114

disseminada na sociedade, é um retrato que soma ausências a desvios de caráter, o

reflexo no espelho, o que devolve tende a ser uma imagem invertida desse

personagem no qual não se reconhece.

A identidade só existe no espelho e esse espelho é o olhar dos outros, é o reconhecimento dos outros. É a generosidade do olhar do outro que nos devolve nossa própria imagem ungida de valor, envolvida pela aura da significação humana, da qual a única prova é o reconhecimento alheio. (SOARES in ATHAYDE, 2005, p. 206).

Romper o ciclo vicioso do espelho e do sentimento de revolta e inadequação é um

processo difícil que tem na arte um aliado precioso, justamente como mecanismo de

visibilidade do eu frente ao outro.

Nós nada somos e valemos nada se não contarmos com o olhar alheio acolhedor, se não formos vistos, se o olhar do outro não nos reconhecer e salvar da invisibilidade – invisibilidade que nos anula e que é sinônimo, portanto, de solidão e incomunicabilidade, falta de sentido e valor. Por isso, construir uma identidade é necessariamente um processo social, interativo, de que participa uma coletividade e que se dá no âmbito de uma cultura e no contexto de um determinado momento histórico. (SOARES in ATHAYDE, 2005, p. 206).

Nesse sentido, entende-se que a arte e a produção cultural lançam o indivíduo para

fora da invisibilidade, conferem-lhe existência (positivamente qualificada, o que é

melhor) e contribuem para essa inclusão na coletividade.

A literatura a respeito da temática da identidade é vasta e a cada dia vem sendo

alimentada por novas discussões e vieses. Não se pretende, neste capítulo,

aprofundar a questão da identidade e seus autores, mas, sim, contribuir para a

análise de um dos três papéis da cultura (instrumentalizada) na favela, propostos

neste trabalho.

Retornando à questão, vários autores apontam o caráter contrastivo da identidade. É

na relação com o outro que o indivíduo se constrói para si mesmo. A identidade

contrastiva implica a afirmação de nós diante dos outros, motivo pelo qual surge por

oposição, não se afirmando isoladamente.

Sendo a identidade uma experiência da relação, que se dá sempre na esfera da inter-subjetividade, dos símbolos, das linguagens, da cultura, ela é

115

sempre uma experiência histórica e social. Não há como focalizar a problemática da identidade e driblar a questão do pertencimento. (SOARES in ATHAYDE, 2005, p. 207).

No caso em pauta, fica claro que o artista morador de favela se posiciona a partir da

visão que a sociedade tem dele, visão sobre a qual não tem domínio e não

consegue mudar, apesar de todos os esforços.

O dualismo, que aparta o morro e o asfalto, impõe ao morador das favelas uma habilidade muito especial na construção de sua identidade (mal vista, como mostramos, pelos outros moradores da cidade) e, principalmente, no trânsito pelo resto da cidade – que parece desconhecer o que, de fato, existe e acontece nesse que, para eles, seria o “outro lado”. Seus moradores são ininterruptamente bombardeados por inúmeras construções ideológicas (como o discurso da pobreza, o mito da marginalidade, as diferentes máscaras do preconceito, as ações discriminativas, etc.), e são por elas influenciados, claro, e sobre elas agem por diversos mecanismos, que atuam na construção identitária e na organização social, micro e supra. A população moradora das favelas apresenta incontáveis iniciativas na busca de seu desenvolvimento a partir da base comunitária, valorizando os atores locais e participando efetivamente na dinâmica social. Podemos perceber diversas estratégias de defesa e oposição, de resistência, de busca de melhores condições de vida, de luta contra a invalidação da qual são objetos, colocados regularmente numa posição de bode expiatório dos problemas da cidade. (NOGUEIRA, 2004, p. 83).

Essa visão é conformada especialmente a partir dos preconceitos, dos estereótipos

e estigmas, dos pontos negativos que forçam a oposição, que pedem um

posicionamento positivo e proativo.

Uma das formas mais eficientes de tornar alguém invisível é projetar sobre ele ou ela um estigma, um preconceito. Quando o fazemos, anulamos a pessoa e só vemos o reflexo de nossa própria intolerância. Tudo aquilo que distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo; tudo o que nela é singular desaparece. O estigma dissolve a identidade do outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos. (SOARES iIn ATHAYDE, 2005, p. 175).

A diferença e a afirmação da diferença se expressam e se constroem durante o

contato com o outro, isto é, a identidade dos sujeitos é construída na relação, o que

leva à afirmação de que a relação é, portanto, mais importante que os termos, os

conteúdos preestabelecidos. As formas de relacionamento do morador de favela

com os moradores do restante da cidade é que são marcantes para a construção

mútua das imagens e das identidades. Nesse sentido, a manifestação artística

transforma completamente a relação estabelecida, confrontando assim novas

116

configurações identitárias.

Os relatos dos integrantes do Grupo do Beco expressam bem essa transformação. A

partir de seu envolvimento com a prática artística, afirmam que passaram a ver-se a

si mesmos e a serem vistos de maneira diferente pela sociedade. Conquistaram o

respeito e a admiração dos outros, revertendo toda uma história de invisibilidade

e/ou discriminação e preconceito da qual já haviam sido vítimas e atores, de uma

forma ou de outra.

A fala de uma das atrizes é paradigmática:

"[Para mim] é mais uma satisfação pessoal. Dinheiro, dinheiro, não entra não, é mais a alegria de estar ali, a sensação de estar passando uma energia para o público, de poder dar aula de teatro pros meninos do Bicão, a alegria deles quando encontram com a gente, é mais a alegria de estar podendo repassar do que receber. Também a questão de você ir a alguns lugares que quando pequena não tinha coragem de entrar, passava e achava aquilo um monstro, tipo shopping, Palácio das Artes, teatros, coisas mais chiques – antes a gente não entrava, hoje para a gente é supernatural. Ficava com vergonha, oprimido, sentindo desse tamanhozinho – de estar ali e achar que aquilo ali não é seu espaço, seu lugar, seu mundo." (Entrevista com o Grupo do Beco)

Concebe-se que, além de contribuir para uma nova visão de si mesmo, a atividade

artística tem o papel da dar voz àqueles que tradicionalmente foram excluídos das

esferas públicas. Durante muito tempo retratados pelos agentes que subiam o

morro, ou antes pelos que olhavam o morro de longe, atualmente os moradores das

favelas têm se instrumentalizado para se expressar através da arte e dos meios de

comunicação popular, alternativa.

[...] as vantagens das elites tradicionais na formação e nos usos do patrimônio se relativizam frente às transformações geradas pelas indústrias culturais. A redistribuição maciça dos bens simbólicos tradicionais pelos canais eletrônicos de comunicação gera interações mais fluidas entre o culto e o popular, o tradicional e o moderno. (CANCLINI, 2000, p. 197).

Em relação à questão dos meios de comunicação, apesar de não ser o enfoque

deste trabalho, faz-se necessário tecer algumas considerações, dada sua estreita

117

relação com a favela, as representações sociais e a produção artística local. Em

linhas gerais, é possível identificar as seguintes interfaces da temática em pauta

com a análise dos meios de comunicação de massa:

� Recepção x produção – isto é, o quanto a população favelada constrói e contribui

para o conteúdo da mídia e o quanto absorve conteúdos construídos pelas

classes hegemônicas. No caso das vilas e favelas, a principal interação com a

mídia ainda é no papel de receptores, seja por falta de condições de acesso à

produção, seja pela desconfiança da população com os meios de comunicação,

focada tanto em experiências pessoais negativas quanto no próprio uso que o

jornalismo policial faz da favela e sua imagem;

� Mídia e favelas – como, nos dias atuais, os moradores de vilas e favelas se

apropriam das mídias alternativas (e quais são elas) para transmitir uma imagem

própria de si e de sua comunidade;

� Mídia e violência – como se apresenta o estereótipo da favela nos jornais e como

essas matérias repercutem nas comunidades e seus moradores;

� Mídia e juventude – interessa ver, por um lado, como há a recusa da mídia

tradicional por uma parte dessa juventude das periferias, principalmente pelo

movimento hip hop, que se queixa de rotulagem, discriminação, sensacionalismo.

Por outro, como a juventude, mediante diversos projetos socioculturais, vem

usando as novas mídias para transformar e fazer a diferença.

É importante destacar que todos os itens acima poderiam ser aprofundados no

contexto do trabalho em pauta, uma vez que têm interface com as vivências do

Grupo do Beco e dos moradores das comunidades. Entretanto, o que mais interessa

aqui é o que relaciona mídia, juventude e projetos socioculturais.

De fato, o que se vê é que os movimentos artísticos e culturais nas comunidades

existem há mais tempo, ainda que não com a força e o apoio que têm tido nos dias

atuais. Antes, eram muito ligados à ação da Igreja, que exercia o papel de

estimulador e apoiador, como o próprio caso do Grupo do Beco exemplifica. Hoje em

dia, o que se depreende é que há uma ampliação dessa abrangência, das redes de

apoiadores, enfim, que a temática encontrou um terreno fértil na sociedade.

Há evidências de que a sociedade e a mídia que a representa têm, nos últimos

118

anos, prestado atenção às manifestações que surgem nos espaços populares,

principalmente para as artes das periferias urbanas, o que traz às comunidades

outro tipo de visibilidade e reconhecimento, que não passa pelo sensacionalismo da

mídia tradicional.

É sabido que a entrada da arte popular urbana nas agendas, especialmente no

Brasil, da mesma forma que os processos ambientais, por exemplo, vem puxada

pela ação das organizações não-governamentais e dos movimentos sociais. A

reboque, vem a mídia, interessada naquilo que é a “bola da vez”. Também o Poder

Público vem a reboque, criando políticas para atender às pautas dessa agenda,

pressionado ou sensibilizado pelos movimentos sociais.

É importante salientar que, em Belo Horizonte, a mídia, apesar dessa abertura,

ainda não conseguiu, em sua maioria, conciliar as notícias das comunidades com as

notícias dos outros bairros da cidade ou outros grupos sociais. Quando se destaca a

produção das favelas, é sempre com um caráter “folclórico”, isto é, uma exceção que

deve ser conhecida e apoiada por sua estranheza e raridade.

No Rio e São Paulo, talvez, essa postura possa estar um pouco diferente, visto que

a própria Rede Globo incorporou em sua programação projetos que trazem o

cotidiano das periferias e das artes populares de todo o País.

Destaque-se que a atratividade da produção cultural das favelas, pelo menos em

Minas, fica restrita também pelo fato de que a arte que nelas é feita não tem o apelo,

a priori, do ponto de vista das massas. Ao contrário do Rio de Janeiro (onde o foco é

o funk, que arrasta multidões), ou de São Paulo (com predomínio do rap), percebe-

se que em Belo Horizonte a produção das comunidades é, por um lado,

extremamente diversificada e, por outro, dispersa, com pouca união e mobilização

dos grupos. Por fim, acaba pesando contra uma tendência a focar na cultura de

caráter “regional” mineira, nas manifestações mais ligadas à origem rural, tradicional

(contraposto ao moderno) e de menor apelo nos meios de comunicação.

"Os produtos gerados pelas classes populares costumam ser mais representativos

da história local e mais adequados às necessidades presentes do grupo que os

119

fabrica. Constituem, nesse sentido, seu patrimônio próprio." (CANCLINI, 2000, p.

196).

Desse modo, pode-se dizer que a arte das periferias representa o particular, em

oposição ao universal, e o tradicional, em oposição ao moderno. Sendo assim, não

apresentam, a princípio, atratividade para fora das fronteiras da comunidade.

Para reverter esse quadro, nos últimos anos, o que se tem visto é a apropriação de

algumas mídias pelas comunidades periféricas, cujo grande exemplo é a Rádio

Favela.

A emissora tem um papel fundamental na cidade, pois se assume como um veículo da favela, não usa nenhum tipo de subterfúgio ao se autodenominar. Misael Avelino, um de seus fundadores, desapega-se da carga negativa que o termo carrega e, em suas próprias palavras, “usa o microfone para amplificar o que os moradores de favelas têm a dizer”. [...] a Rádio Favela se torna um marco em Belo Horizonte, justamente por questionar e propor uma nova representação da favela e dos moradores de favelas. (CRUZ in LIBÂNIO, 2004, p. 66).

Foram encontradas, na pesquisa para o Guia Cultural das Vilas e Favelas, em 2004,

22 rádios comunitárias, além de 11 jornais impressos ou fanzines nas áreas

visitadas. Por um lado, são veículos que, a rigor, não se enquadrariam, a não ser

pela questão técnica, na definição de mass media, por seu pequeno alcance e

audiência. Por outro, vêm ampliando seus horizontes, saindo cada qual de sua

favela (super local, prestação de serviços comunitários) e realizando verdadeiros

movimentos de integração entre as diversas favelas existentes, entre si e com o

restante da cidade.

Nesse contexto, as tecnologias de comunicação e informação (TICs) abrem novas perspectivas. A informação colocada no ciberespaço potencialmente pode ultrapassar limites físicos e atingir um público diferido (não presencial e imediato) e difuso (uma ampla gama de pessoas). [...] Grupos sociais das favelas, principalmente os culturais, identificaram, há um tempo, a potencialidade desse deslocamento e estão investindo nos processos comunicativos no ciberespaço como forma de intensificar as trocas entre diferentes atores das cidades. A internet surge como um canal para os moradores de favelas apresentarem suas demandas na esfera de visibilidade midiática. (CRUZ in LIBÂNIO, 2004, p. 68).

Vê-se que a comunicação popular também tem sido ampliada em todo o País,

principalmente após a criação do programa dos pontos de cultura, pelo Ministério da

120

Cultura, que tem o mérito de dotar de equipamentos e capacitar jovens e

movimentos socioculturais para a prática da comunicação via rádio, vídeo, jornais e

outros meios, principalmente a internet.

Feito tal parênteses, retoma-se a discussão a respeito da importância da cultura

para o fortalecimento das identidades locais, apoiadas pelas novas mídias. Entende-

se que estas, ao contrário do que se imagina de fora, são construídas a partir da

diversidade de manifestações, e não de uma suposta homogeneidade ou unicidade.

Aliás, de acordo com Yúdice, “a cultura como recurso pode ser comparada à

natureza como recurso, especialmente desde que ambas negociem através da

moeda da diversidade” (YÚDICE, 2004, p.13). E no caso das favelas, pode-se dizer

que a diversidade aparece não somente como nata (os estereótipos da “criatividade

do pobre” e da “musicalidade do negro”, entre outros), mas também, e

principalmente, como uma construção cotidiana, como forma de resistência, de

recusa aos rótulos e de marcação de uma diferença.

De fato, a teoria antropológica discute que, da mesma forma que a identidade, a

diversidade se constrói não pelo isolamento, mas via contato entre culturas, já que

as sociedades humanas nunca se encontram isoladas – em especial, nas áreas

urbanas, como aqui, mantêm entre si estreitos relacionamentos. Parte das

diferenças constitutivas das identidades é justamente fruto do desejo de oposição,

de se distinguirem, de serem elas próprias.

Por meio das novas músicas não tradicionais como o funk e o rap, eles procuram estabelecer novas formas de identidade, mas não aquelas pressupostas na autocompreensão do Brasil, tão anunciadas, como sendo uma nação de diversidade sem conflitos. Pelo contrário, a música é sobre a desarticulação da identidade nacional e a afirmação da cidadania local. (YÚDICE, 2004, p. 162).

Concebe-se que a diversidade cultural, mais do que um direito formal, é exercitada

como prática e torna-se objeto de políticas específicas para sua proteção e

promoção, seja pelos poderes públicos, seja pelas organizações não-

governamentais e organismos internacionais.

121

Segundo Barros,

[...] diversidade cultural refere-se [...] aos diversos modos de agir com e sobre a natureza, mas também aos dinâmicos e inesgotáveis processos de atribuição de sentidos e significados. A idéia de desenvolvimento que a cultura realiza [...] é tanto a geração de um bem subjetivo – o desenvolvimento espiritual do homem e o aprimoramento das relações sociais através dos inúmeros processos de socialização, quanto a constituição de uma economia de bens simbólicos, um mercado de troca de sentidos que permite e desafia a vida coletiva. Na primeira dimensão, a cultura gera desenvolvimento humano porque fornece instrumentos de conhecimento, reconhecimento e auto-reconhecimento, ou seja, gera identidade. Na segunda dimensão, a cultura oportuniza a vida coletiva e pode incidir sobre as condições materiais de vida, gerando riquezas e organizando um mercado de bens culturais. (BARROS, 2008, p. 50).

A Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões

Culturais, adotada pela UNESCO em 2005, visa, entre outros:

� defender a riqueza cultural, em sua capacidade de gerar interação;

� promover e proteger a diversidade das expressões culturais;

� fortalecer as ligações entre cultura e desenvolvimento, este considerado tanto no

seu sentido material quanto no seu sentido simbólico.

Adotando-se a diversidade como vivência e discurso, uma nova identidade do

morador de favela, construída a partir de sua valorização como artista, seja em seu

meio e comunidade, seja fora deles, tem conseqüências diretas nas formas de

socialização e relacionamentos e contribui para a construção de uma nova visão dos

moradores de favela na sociedade. É sobre isso que se falará a seguir.

6.2 Grupo, redes, interação

Outro aspecto que merece ser realçado quando se fala de arte e favela é a

importância das manifestações culturais na formação ou fortalecimento de grupos

sociais e no estabelecimento de redes de relacionamento interna e externa.

Nesse sentido, engloba-se a faceta da arte como fator de socialização, aspecto

especialmente importante quando se fala de juventude. Ainda que o recorte etário

não seja excludente nesse aspecto, é com os jovens que a arte assume seu

122

principal papel, pois são justamente eles que se encontram num ponto de inflexão

mais grave no que se refere aos riscos sociais e à tomada de decisões a respeito

dos rumos e destinos futuros.

Estudos a respeito da evolução da criminalidade nas vilas e favelas têm tendido a

mostrar queda nas taxas de homicídios em áreas em que se implantam projetos que

têm na arte seu instrumento de aglutinação de jovens. Nessa linha, destaca-se o

projeto Fica Vivo, em Belo Horizonte, realizado pelo Governo do Estado, e os

projetos adotados pela ONG Afroregae, no Rio de Janeiro. Ambos têm a intenção de

trabalhar a redução da violência por meio da arte e da cultura.

A defesa da centralidade da cultura para a solução de problemas sociais não é novidade, mas ela tomou diferentes formas no passado [...]. A arte se dobrou inteiramente a um conceito expandido de cultura que pode resolver problemas, inclusive o de criação de empregos. [...] os artistas estão sendo levados a gerenciar o social. (YÚDICE, 2004, p. 28-9).

Esse autor, estudando sobre o funk no Rio de Janeiro, comenta:

Embora o funk tenha sido inicialmente visto pelas classes médias e autoridades como uma arma usada pelos jovens pobres para se insinuar no espaço social das elites, dentro do contexto da iniciativa para se renovar a cidade com a participação de todos, esse movimento musical tornou-se um recurso, bem parecido com o samba de outrora, para a integração daqueles setores da sociedade segregados uns dos outros. (YÚDICE, 2004, p. 197).

Além da integração dentro da própria comunidade, portanto, o autor realça a

importância da arte como fator de integração externa, isto é, de construção de um

relacionamento com a sociedade que até então discriminava aquilo que vinha das

favelas. Nesse sentido, entende-se que tem sido muito importante o papel das

ONGs e projetos socioculturais que utilizam como estratégia a aproximação das

pessoas (moradoras das favelas e dos bairros) via manifestações artísticas e

culturais, de forma que elas possam se conhecer mutuamente e interagir,

momentânea ou duradouramente.

Ateste-se que as redes de relacionamento que se têm formado a partir desses

processos de integração, via cultura e arte, são, em geral, de caráter aberto,

flexíveis, sem organização rígida. Ademais, são baseadas nos encontros cotidianos,

com aspecto muitas vezes efêmero, inscrição local e composição mutável.

123

Constata-se que esse tipo de socialidade é o mais comum entre os grupos culturais

da periferia e deles para o restante da cidade. Estabelecem-se relações fundadas

nas afinidades (identificações, mais do que identidades) musicais e de hábitos, que

acabam por formar novos grupos e redes onde a arte é o fio condutor e o cimento

que une as pessoas. Maleáveis e mutáveis, essas relações podem ter, muitas

vezes, pequena duração, mas grande papel na coesão social.

Silva realça:

[...] quando os preconceitos e estereótipos são deixados de lado, é possível enxergar regras, acordos e normas nas favelas. As relações de parentesco, de vizinhança e do reconhecimento das instituições locais são modos que formalizam contratos de aquisição de benfeitorias e a cessão de posse de imóveis. As associações de moradores há muito tempo oferecem e garantem os registros que formalizam as transações imobiliárias entre pares do local, funcionando como um cartório popular. Há, enfim, extensas redes sociais que constroem modos bastante particulares de reconhecer a posse de imóveis e terrenos. (SILVA, 2005, p. 93).

No caso de Belo Horizonte, especificamente, o que se vê é que há um duplo

movimento de identificação entre os moradores das favelas, considerando as

categorias trabalhadas por Canclini. Por um lado, há a identificação local-local,

baseada nas relações de vizinhança, amizade e parentesco que se estabelecem

dentro de uma mesma vila, e, por outro, a identificação local-metropolitano, ainda

que incipiente, que se baseia nas trocas simbólicas e interações do tipo profissional

e de afinidades culturais entre os diversos grupos situados na cidade como um todo.

Exemplos dessa segunda forma de interação existentes são os movimentos culturais

e políticos da juventude, como o D-ver-Cidade Cultural e o Hip-hop Chama.

Entre as organizações vicinais, nos Estados Unidos, logo surgiram nos anos 20 deste século as gangues juvenis nos bairros pobres, habitados por imigrantes que ainda não se haviam integrado ou ascendido socialmente. Já no Rio de Janeiro, e posteriormente em outras cidades brasileiras, nesse mesmo período surgiram, nas favelas e bairros populares, as escolas de samba, os blocos de carnaval e os times de futebol para representá-los e expressar a rivalidade entre eles. Várias diferenças entre os dois países ficam claras desde então: entre as gangues estadunidenses, os conflitos eram manifestamente violentos [...]. No Rio de Janeiro, a rivalidade entre os bairros pobres e as favelas, sem excluir totalmente o conflito violento, expressava-se na apoteose dos desfiles e concursos carnavalescos, nas competições esportivas entre os times locais, atestando a importância da festa como forma de conflito e socialidade que prega a união, a comensalidade, a mistura, o festejar como antídotos da violência sempre presente mas contida ou transcendida pela festa. (ZALUAR, 2004, p. 20).

124

É importante realçar que, em outra época, até o início dos anos de 1990, essa

interação entre as comunidades em Belo Horizonte se deu menos no campo dos

movimentos culturais e mais na reivindicação comunitária e urbana, notadamente

com a ação de entidades como a União dos Trabalhadores da Periferia (UTP), a

Federação das Associações de Moradores de Belo Horizonte (FAMOBH) e das

pastorais da Igreja Católica. Entretanto, nos últimos anos essa participação

organizada foi declinando, inclusive reforçada com a morte de vários de seus líderes

históricos.

Para finalizar essa reflexão, cabe apontar a necessidade de se introduzir novas

variáveis e categorias para avaliar os processos vivenciados pela juventude, em sua

busca de afirmação e diferenciação. Nas favelas, são os jovens que introduzem

novas perspectivas, através de seus relacionamentos e práticas, distintos dos

tradicionalmente vividos pelos moradores das comunidades.

O enfrentamento da violência presente no Rio de Janeiro [...] exige a criação de mecanismos que ampliem o tempo e o espaço sociais de seus moradores, que permitam o reconhecimento da cidade como o lugar do encontro das diferenças por excelência. A esse respeito, os jovens têm muito a ensinar. Em diferentes realidades, eles formam contrastantes redes sociais, marcadas pela produção de práticas inovadoras de sociabilidade, de regras de convivência e de parâmetros para disputas pelas posições mais prestigiadas. Eles formulam mecanismos variados para a expressão dos seus desejos, temores e crenças – enfim, da sua subjetividade. Em uma ordem urbana marcada pela segregação, estão cada vez mais buscando novos espaços. Seja por meio da cultura – música, dança, capoeira, teatro – do engajamento na defesa ambiental ou na busca da democratização da educação – como demonstram os cursos pré-vestibulares comunitários –, eles conquistam novos contatos e, com isso, novas redes. (SILVA, 2005, p.62).

6.3 Mobilização, participação, cidadania

Finalizando a discussão sobre o papel da cultura, instrumentalizada, nas vilas e

favelas de Belo Horizonte, a partir do estudo de caso do Grupo do Beco, faz-se

fundamental discutir os aspectos desse papel que se relacionam com a política

(micropolítica?), com a participação e com a cidadania. Nesse sentido, cabe discutir

que a arte e a cultura vêm substituindo nas favelas as formas tradicionais de

mobilização e participação, a partir da constituição das redes de afinidades, antes

125

mencionadas.

Para Zaluar, a cidade moderna perdeu a importância da ação política de seus

indivíduos. Na polis grega, a oratória era vista como forma de diferenciação,

afirmação e imortalidade do indivíduo.

A ironia do que se vive hoje nas cidades brasileiras, incluindo o Rio de Janeiro, é que a polis, a cidade inventada pelos gregos, como forma política, criação do espaço público e da convivência democrática, é o locus da busca da imortalidade, da permanência de uma pessoa na memória dos homens pela atividade pública, pela ação política na condução das ‘ações que se fazem por meio de palavras’, pelo ‘ato de encontrar as palavras adequadas no momento certo, independentemente da informação ou comunicação que transmitem’. É o discurso, como meio de persuasão, que dava o significado e a imagem dominante da vida na polis grega: tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através da força e da violência. (ZALUAR, 2004, p. 15-6).

Essa reflexão aponta para a possibilidade de que a manifestação artística nas

favelas substitua, nos dias atuais, a oratória como forma de diferenciação do

indivíduo. “As artes, o esporte e, em alguns momentos, a atividade guerreira na

defesa das nações substituíram essa procura, sem se oporem totalmente ao mundo

da intimidade ou à esfera privada.” (ZALUAR, 2004, p. 16).

É importante destacar que a queda da participação política e o aumento do

envolvimento nas manifestações artísticas são movimentos paralelos nas cidades,

ainda que não pareçam existir entre eles relações de causalidade. O que se tem

percebido, nas periferias dos grandes centros, é que a juventude vem utilizando

novas formas de expressão, realizando uma ação micropolítica, na busca do

reconhecimento, da inserção social e de conquista dos direitos da cidadania.

Nota-se, não somente no Brasil, mas em outras partes do mundo, que a juventude

tem traçado novas formas de participação, que, em geral, perpassa fortemente pela

veia do artístico e do uso das ferramentas da comunicação popular, como já

mencionado. Apesar de que muitos possam discordar de que esses sejam

movimentos com caráter político (ainda que muitas vezes não tenham a política

como fim), fica claro que é, sim, uma participação que tem resultados importantes,

ainda que se constitua de uma forma diferente daquela praticada pelas gerações

anteriores.

126

Há que se relevar que essa atuação não se baseia mais nos movimentos sindicais,

que ao longo das décadas foram perdendo força em velocidade diretamente

proporcional ao aumento do desemprego e da oferta de mão-de-obra no mercado;

nem nas associações de bairro, que ficaram cada vez mais enfraquecidas pela falta

de participação, ou foram cooptadas pelos governos. No caso das organizações

populares, sua desmobilização se deu a partir dos anos de 1990, em que as

tradicionais associações de moradores foram perdendo espaço de ação e força em

suas comunidades. Essa perda relaciona-se, por um lado, à resolução de grande

parte dos problemas urbanos vividos nas favelas, que durante décadas foram sua

bandeira e, por outro, ao próprio esvaziamento da participação popular nessas

áreas, seja pelo medo e aumento da violência, seja pela falta de atratividade dos

processos tradicionalmente adotados, seja pela recusa ao aparelhamento pelo qual

passaram grande parte das entidades comunitárias, nos diversos governos e

partidos que se sucederam nas administrações públicas.

O desgaste do modelo que tem o ideal comunitário e a valorização da participação como elementos centrais da ação política, referência comum a inúmeros movimentos sociais surgidos na década de 70, processou-se lentamente ao longo das décadas seguintes. É que a sobreposição, ocorrida em meados da década de 80, do tráfico às associações de moradores nas favelas do Rio de Janeiro (ZALUAR, 1995) teria não apenas fortalecido a organização do narcotráfico como aparelho, mas também explicitado o descrédito da utopia participativa emancipatória. Essa utopia fora responsável por quase uma década de mobilização popular, num movimento tão intenso, criador de novos atores e aglutinador de composições específicas de forças sociais, que chegou a merecer o nome de Novo Associativismo Local (PEPPE, 1992). (MAFRA in ZALUAR, 2004, p. 286).

Nesse sentido, pode-se dizer que o cultural, as manifestações artísticas, passam a

assumir esse outro papel, também muito importante, que é a discussão dos direitos

da cidadania por uma outra via, mais lúdica, mais moderna e, por seu próprio

caráter, muito mais atrativa e aglutinadora da juventude, trazendo aqueles que não

participariam dos movimentos coletivos tradicionais.

Nas favelas de Belo Horizonte, o que se tem percebido é que o aumento da

violência, ocorrido na década de 1990, principalmente, gerou uma reação da

população, moradores, entidades e Poder Público, que teve como mote o caminho

da produção cultural. A uma ação que contribuía para a queda da qualidade de vida

127

nas favelas e para a ampliação do estigma no restante da sociedade, houve uma

mobilização para uma reação em bases diametralmente opostas.

Nota-se que outro processo que contribuiu para a transformação das práticas de

ação coletiva nas favelas foi o crescimento do número de universitários nessas

áreas, o que tem contribuído sobremaneira para a geração de um novo pensamento

sobre as comunidades, construídos de dentro, e não de fora delas.

Soma-se a isso o fortalecimento das comunidades e sua juventude a partir da

constituição de um novo olhar da mídia, já discutido; a mudança de foco dos projetos

sociais que atuam nessas áreas, com ações menos voltadas para a

profissionalização e mais para a produção artística e, por fim, a presença de uma

série de projetos públicos, em âmbito municipal (por exemplo, o Arena da Cultura e

o Guernica), estadual (Fica Vivo, Vozes do Morro e Valores de Minas) e federal

(Pontos de Cultura, Cultura Viva, etc.), que introduzem novas ferramentas e eixos

conceituais para a prática da mobilização social nas vilas e favelas.

[...] Fernandes distingue essas iniciativas de ação de cidadania como o Viva Rio de movimentos representativos, sejam eles sindicatos, associações de bairros ou mesmo movimentos sociais. As iniciativas de ação de cidadania “não dependem do complexo jogo político que é obrigatório nos sistemas representativos para que sejam legitimadas suas decisões (FERNANDES, 1994, p. 71). O que se procura é o poder da manobra, para mover outras pessoas à ação, sem o retardo da inércia nem a morosidade da burocracia. (YÚDICE, 2004, p. 196).

Ainda segundo o autor:

[...] a história revela uma dialética interessante entre a desvalorização de grupos minoritários [...] e o ativismo daqueles grupos que inverteram a tese da “cultura da pobreza”, valorizando exatamente aquilo que os desqualificava aos olhos da cultura dominante. (YÚDICE, 2004, p. 42).

Nesse universo, introduz-se a discussão a respeito dos direitos da cidadania, não

uma suposta “cidadania de segunda-classe”, ou “subcidadania”, definidas, mais uma

vez, pelas ausências, pela precariedade do acesso aos serviços públicos e à

democracia, mas a garantia de que os seres conviventes na cidade têm, por

definição, o mesmo direito a ela, independente de seu lugar de moradia.

128

O termo cidadania também sofreu usos diversos, seguindo as mais variadas determinações. Tornou-se o que se chama de conceito “mala ou bonde”: podendo ser levado a qualquer lugar, podem carregar as mais diversas significações. Hoje é, muitas vezes, usado como rótulo para velhas idéias, de forma que a referência a ele deve ser feita de maneira crítica e cuidadosa. Cada momento definiu a condição cidadã de um jeito diferente. A idéia nasce na Grécia antiga, mas o termo só surge para vesti-la no século XVIII. Como sugere Gomes (2002), é importante perceber que desde sua origem há, na idéia de cidadania, uma matriz territorial: etimologicamente vem de civitas, aquele que habita a cidade. O cidadão é o indivíduo em um lugar, lhe é inerente esse componente territorial e, na Grécia, a construção dessa idéia significou uma reconfiguração espacial. É no território como está configurado hoje que se dá a cidadania: ambos incompletos. É importante também se apontar que, mesmo sendo o berço da democracia, quando o princípio de cidadania surge já se elaborava sobre uma paradoxal desigualdade. Define-se a idéia fundamental de cidadania, de forma superficial, como o direito elementar de acesso às várias esferas do campo social que todos os indivíduos nele inseridos devem possuir. Um corpo de direitos concretos, individuais, inseparáveis. Ora, não existe cidadania plena: existe cidadania ou ausência de cidadania. (NOGUEIRA, 2004, p. 75).

Finalizando, então essa discussão, fica a sensação de que o uso da cultura, na

perspectiva das comunidades de baixa renda, em geral, dos artistas moradores de

favela e da juventude, em particular, nada mais é que a adoção de estratégias em

busca de um objetivo comum: a aceitação da diferença, a participação na

distribuição das benesses da cidade, o reconhecimento do valor e a reinvenção das

representações.

Uma vez que a cultura é o que “cria o espaço onde as pessoas ‘se sentem seguras’ e ‘em casa’, onde elas se sentem como pertinentes e partícipes de um grupo”, de acordo com essa perspectiva, ela é condição necessária para a formação da cidadania. (YÚDICE, 2004, p. 43 (citando FLORES).

E ainda:

[...] a cultura é, assim, mais do que um ajuntamento de idéias e valores. Ela é, segundo Flores e Benmayor, fundamentada na diferença, que funciona como um recurso. O conteúdo da cultura diminui em importância à medida que a utilidade da reivindicação da diferença como garantia ganha legitimidade. O resultado é que a política vence o conteúdo da cultura. (YÚDICE, 2004, p. 43).

129

7 CONCLUSÕES

A partir do estudo da peça “Bendita a Voz entre as Mulheres”, do Grupo do Beco, e

da literatura existente sobre as produções artísticas dos setores populares e o uso

da cultura como recurso, foi possível perceber uma série de aspectos que devem ser

retomados nessa breve conclusão.

Em primeiro lugar, verificou-se, por meio do Guia Cultural de Vilas e Favelas, que a

produção cultural nas chamadas periferias de Belo Horizonte é vasta, plural e

diversificada. Ela é composta por um grande número de artistas, das mais diferentes

áreas culturais, estilos, técnicas e graus de organização.

Constatou-se, ainda, que, além de ser plural, diversa e ampla, essa produção, que

vem dos setores populares urbanos, tem entrado nas agendas da sociedade nos

últimos anos, passando a receber apoio público, governamental ou não, para sua

ampliação, replicação e fortalecimento.

Ademais, vem conquistando espaços na mídia, ainda que com limitações, como se

viu, relativas à permanência de um olhar que ainda considera essas manifestações

como exóticas, situações de exceção. De qualquer forma, é fato que essa

visibilidade pela veia do artístico tem contribuído para uma mudança, lenta, mas

promissora, da imagem e dos estereótipos negativos das vilas e favelas na

sociedade.

Ainda que não existam estudos avançados sobre a eficácia da instrumentalização da

cultura nos projetos socioculturais e nas comunidades beneficiadas, visto não terem

ainda sido definidos indicadores que possam mensurar os reais impactos dessas

práticas, existe uma idéia disseminada de que a arte e a cultura transformam os

indivíduos que com elas entram em contato.

Verifica-se, no caso do Grupo do Beco, que a cultura serviu e serve como recurso

para uma série de conquistas, que vão, dentre outras, desde o reconhecimento do

Grupo dentro e fora de sua comunidade; a conquista de espaços e visibilidades

130

antes inacessíveis; e a participação em um círculo social até então distante; até o

acesso à informação e aos bens culturais de maneira ampliada.

No lado oposto da moeda, mostrou-se também que ainda há uma série de

dificuldades nas comunidades para efetivação de suas práticas culturais,

relacionadas, principalmente, a questões como a falta de apoio e recursos; ao

preconceito que diferencia e desvaloriza a arte popular da chamada arte erudita;

bem como à falta de informação e background dos artistas para conhecer e acessar

as oportunidades no mercado da cultura.

Na área dos recursos, a falta de espaços para o desenvolvimento das atividades

(tanto na produção quanto na comercialização e circulação da produção) é um

problema relevante identificado, que tem sido enfrentado pelo Poder Público

municipal, em Belo Horizonte com a construção de centros culturais

descentralizados. Em paralelo, as próprias organizações sociais e grupos culturais,

como o próprio Grupo do Beco, têm buscado criar e manter espaços nas

comunidades como suporte das atividades socioculturais.

Evidencia-se que a própria falta de recursos financeiros em si é uma questão

complexa e que ainda não tem tido soluções concretas. Como se tem visto nas

comunidades, poucos são os artistas e grupos que têm algum acesso às leis de

incentivo, bem como aos mecanismos de patrocínio e apoio, público ou privado. O

Grupo do Beco, nesse sentido, constitui-se uma exceção, pelo fato de ter tido a

oportunidade de ter apoiadores na área do planejamento estratégico, ter participado

de cursos de gestão cultural e ter conseguido aprovar seus projetos e captar

recursos via leis de incentivo à cultura. Mesmo assim, fica claro que os recursos

ainda são insuficientes para garantir a sobrevivência dos membros do Grupo, que

têm, então, buscado empregos tradicionais para manter-se e às suas famílias.

Apesar das dificuldades e considerando as oportunidades que foram identificadas,

há, no mínimo, que se afirmar que um novo panorama tem se desenhado para

esses artistas e suas comunidades, que tem significado transformações, micro ou

macro, nas realidades com as quais convivem.

131

Ao olhar para o Grupo do Beco, em particular, pôde-se perceber o quanto, de fato,

foi transformador para o Grupo a prática artística, tanto em nível individual quanto

coletivo, e o quanto isso significou uma nova participação dos atores em sua

comunidade e fora dela. Os seus relatos são emblemáticos dessa mudança,

reforçados pela própria trajetória do Grupo e seu reconhecimento para além dos

limites da Barragem Santa Lúcia.

Sob esse prisma, pode-se concluir que a peça “Bendita a Voz entre as Mulheres”

reforça esse paradigma, ao narrar a história de uma personagem que só se liberta a

partir da auto-estima, da coragem, do empoderamento que a arte lhe proporcionou.

Vê-se que é da arte que vem a força de Bendita e que lhe permite superar as

dificuldades e barreiras do contexto que a cerca. Carência, dano, superação. A

estrutura narrativa da peça baseia-se totalmente na arte como fator de

transformação individual e social.

Entretanto, apesar de sua positividade em termos de realizações e visibilidade, o

exemplo do Grupo do Beco aponta também para outras questões. A primeira delas é

que as condições alcançadas pelo Grupo, premissas de suas conquistas, ainda são

pouco disseminadas nas comunidades e não se encontram disponíveis para uma

ampla parcela dos moradores de vilas e favelas. Nesse sentido, assevera-se que o

Grupo do Beco ainda é um exemplo a ser seguido para que, de fato, as

transformações supostas nesse trabalho tenham abrangência e extensão.

A segunda é um questionamento em que se compreende que as mudanças

apontadas na situação do Grupo são posicionais e não necessariamente

pressupõem uma durabilidade no tempo. Dessa forma, é possível se perguntar se,

caso o Grupo acabasse, seus integrantes manteriam as distinções que obtiveram

por ser um grupo de teatro na comunidade, se suas conquistas (para si e seu

círculo) e se as mudanças apontadas teriam ou não permanência. Essa questão

vem no sentido de avaliar se existe realmente uma mudança apropriada e

incorporada pelo indivíduo findo o fato que a gerou, ou se existe apenas uma

situação transitória e posicional, que deixará de existir quando não existir mais o

móvel inicial.

132

Por fim, uma terceira questão que se coloca diz respeito à multiplicação dos

benefícios conquistados pelo Grupo do Beco e outros artistas das favelas. Se, de

fato, a arte e a cultura fazem diferença para quem delas participa, se transformam

do ponto de vista pessoal, político e social, resta saber se, para além das fronteiras

do Grupo e dos indivíduos que o compõem, existe realmente alguma apropriação de

benefícios, alguma transformação concreta e mensurável.

Os produtos gerados pelas classes populares costumam ser mais representativos da história local e mais adequados às necessidades presentes do grupo que os fabrica. Constituem, nesse sentido, seu patrimônio próprio. Também podem alcançar alto valor estético e criatividade, conforme se comprova no artesanato, na literatura e na música de muitas regiões populares. Mas têm menor possibilidade de realizar várias operações indispensáveis para converter esses produtos em patrimônio generalizado e amplamente reconhecido: acumulá-los historicamente [...], torná-los base de um saber objetivado [...], expandi-los mediante uma educação institucional e aperfeiçoá-los através da investigação e experimentação sistemática. (CANCLINI, 2000, p. 196).

Nesse sentido, a pergunta a se fazer é: em que medida a arte transmuda para a

comunidade que não está envolvida no processo? Em que o Grupo do Beco e outros

movimentos socioculturais nas favelas trazem de diferença para sua comunidade (e

para o restante da sociedade, fora dela) e não apenas para si mesmos e seu círculo

restrito?

Apesar de se ter defendido e tentado mostrar, neste trabalho, por hipótese, de que

existe, sim, apropriação, multiplicação, extensão e talvez mesmo durabilidade dos

mencionados processos e seus benefícios, sua comprovação, empírica, depende de

um estudo de avaliação de impactos, em médio prazo. Entende-se que esse é um

novo trabalho a ser feito: conhecer, na comunidade, os reais impactos dos projetos

socioculturais, sejam do Grupo do Beco ou outros, para visualizar a abrangência

dessas ações já tão disseminadas nas favelas nos dias atuais.

Aqui, interessou-se, principalmente, em tomar o Grupo do Beco, um caso em

particular, não apenas por si só, com sua fascinante trajetória e conquistas, mas

como exemplo concreto do que tem ocorrido nas favelas de Belo Horizonte e outras

partes do País. Como ele, constata-se que há vários, cada qual escrevendo, a seu

modo e com os recursos de que dispõe, uma história de mobilização comunitária e

de construção de novos caminhos.

133

Eu vejo que a arte e a cultura é uma grande porta de auto-realização [...] de realização da pessoa, né? Se eu fizer, se eu achar vários pontos... Onde cê investiria? Eu faria um grande investimento na área cultural, porque a favela, ela é muito rica culturalmente, né? De manifestação cultural. [...] e as pessoas que se envolveram, que em algum momento da própria vida foram pegas por alguma atividade cultural, artística, né? Aí cê vai encontrar vários artistas dentro do morro. Eu acho essas pessoas muito realizadas. Muito felizes e com uma interferência muito positiva e que não, e que quase sempre elas, nessa questão de poder, elas também são mais solucionadas. São pessoas que têm essa visão do poder como um serviço pra comunidade também. Então aí, eu, concluindo assim, eu acho que também a arte é uma grande porta pra cidadania, né? (PADRE MAURO citado por NOGUEIRA, 2004, p. 131).

Por fim, é válido apontar que a cultura como recurso introduz também novas

perspectivas, que passam – mais que pela resolução de problemas sociais – pela

instrumentalização dos sujeitos para participação na modernidade. Se não pelo tipo

do conteúdo, pelo menos pelo processo, concebe-se que é através da arte, das

manifestações culturais e do uso das tecnologias de comunicação e informação que

as culturas populares transcendem seus limites geográficos, históricos, estéticos e

sociais, rumo aos futuros possíveis e desejáveis.

134

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ANEXOS

ANEXO A – TEXTO DA PEÇA

Apresenta: BENDITA, A VOZ ENTRE AS MULHERES

Belo Horizonte, 8 de março de 2003. Estréia: Espaço Andante

Direção: Ana Domitila e Júlio Maciel Direção Musical: Ricardo Garcia

Dramaturgia: Letícia Andrade, em processo colaborativo com o Grupo do Beco e Direção

Atores Personagens

Célia Rodrigues Dona Consolação

Cris Corrêa Maria José Ferreira da Silva

Ivanete Guedes Bequete 1/ Passageira do Ônibus / Anunciação

Janete Maia Bequete 2 / Passageira do Ônibus / Celina / Vitória

Maicon Sipriano Locutor / Passageiro / Samuel

Nil César José Maria Ferreira da Silva / João – Jonny Cat

Suzana Cruz Bendita

Ator convidado Couves / Caxeta

Cena 1: A Rádio do Beco (Entra Maria José e liga o rádio. Senta-se na cadeira e o locutor começa a falar na rádio) Maria - (suspira) Ainda bem que eu tô sozinha, vô poder escutar minha rádio sossegada. Locutor 1 – Você está na melhor: Locutoras – Rádio do beco Locutor 1 – 199.5, Locutoras – A FM que te escuta... Locutor 2 – Ligue pra gente... Locutor 3 – E conte a sua história Locutor 1 – O nosso telefone é... Locutor 2 – 3297 Locutor 3 – 4794 Locutor 1 – E agora vamos mandar um abraço todo especial pra... Locutor 2 – Dona Emerenciana Locutor 3 – Piquita Locutor 2 – Almira

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Locutor 3 – Zilda Locutor 2 – Nadir Locutor 3 – Ordália Locutor 1 – Da Rua São Tomás de Aquino Locutor 2 – E pra D. Nair Locutor 3 – E Durica Locutor 1 – Da Rua Principal Todos – e pra todos os ouvintes. Locutor 1 – E se você acabou o servicinho e está com aquele cheirinho, nada melhor que usar os: Sabonetes Lavador (começa a cantar a vinheta do sabonete lavador)

Lave sua alma / Lave o que sujou / Lave o seu amor / Com sabonetes lavador (Locutor solta a música Pinga ni mim, de Sérgio Reis, e começa a falar) Locutor 1 – E agora vamos mandar essa música pro pessoal lá do (opcional) Armazém do Hélio que ligou, pediu e levou! (Maria começa a cantar a música junto com rádio, entra José, ela o desliga) Cena 2: José Maria Ferreira da Silva e Maria José Ferreira da Silva Maria – (assustada, apagando o cigarro e desligando o rádio) Zé?! José – (afirmando) O pai! José Maria Ferreira da Silva. Maria – Profissão: José – Pedreiro. Maria – Trabalhava o dia inteirinho, carregando tijolo, chapiscando parede e fazendo massa... (Enquanto isso, com o corpo, Zé ilustra as ações que Maria narra) José – Tudo isso, debaixo de um sol de rachar. Maria – Quando chegava de tardinha e o sol já tava fraquinho, ele já ficava ansioso pra voltar pra casa. José – E quando chegava em casa, dava uma bitoca na esposa. (Se beijam) Maria - E a Bendita lá, chamando. José – José... José.... (Bendita, da coxia, também chama) Mas a voz do boteco era sempre mais alta. Vozes do bar – José!... José! Meu velho, cê vem ou não? (Zé quase sai para o bar, quando Maria puxa-o) José – A mãe. Maria – Maria José Ferreira da Silva. José – Profissão: Maria – Do lar. José – Ficava o dia inteiro lavando, cozinhando e costurando. E quando dava o finzinho da tarde... (Enquanto isso, com o corpo, Maria ilustra as ações que Zé narra) Maria – Aquele cansaço. José – E a Bendita lá chamando: Maria – Maria!... Maria! (Bendita, da coxia, também chama). José – E ela cedia, tomava seu banho à espera do marido que viria: – cheguei! “Uma bitoquinha na esposa...” (Se beijam)

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Maria – (Marido sai para a coxia) E ia pro boteco, tomava uma, duas, três... bebia até cair, (Entra Zé, completamente bêbado) porque banho que era bão, nem pensar. (vira para o marido) “Ó Zé, vão tomar banho”! José – Ah, mulher, tomar banho desgasta a pele... Maria – Desgasta a pele... é uma vergonha cê vim do serviço cansado, suado, fedorento e ir pro buteco. Ô, meu bem, cê tem que tomar banho bem cheiroso, já tem um tempo que eu tô querendo uma filhinha... (Conduzindo Zé até a cadeira e simulando um banho no marido) José – Lá vem você com essa história de filhinha de novo!... Eu tô é com fome e tô com sono! Maria – Pode ir lá pro quarto que eu já vou levar sua comidinha... (Zé deita-se no fundo do palco, Maria fala para o público) Quando eu dava banho nele eu tinha as minhas intenções, porque dar banho em bêbado num é coisa que eu sonhei pra minha vida, não! (ela liga o rádio – música de sedução) Pssssiu! (faz uma pose sensual numa cadeira, esperando Zé repará-la, Zé não ouve, Maria chama de novo) Pssssiu! (faz a pose novamente e deixa um olho aberto para ver a reação de Zé, ele se mexe, mas não a repara; Maria decepciona-se, desmancha a pose; olha para o público desanimada, vai para perto dele, dançando com um xale, passando-o nos pés e no rosto do marido, que por sua vez estapeia seu próprio rosto achando que o xale era mosquito; ela ri da reação dele e senta-se ao seu lado) (cochichando) Maria – Baixinho! Baixinho! José – (Ignorante) Que que foi, mulher! Maria – Vão? José – Vão pra onde, uma hora dessa? Maria – Cê acha que eu dei banho nocê, pra quê? José – Hum!... Safadinha... (com seu xale, Maria laça Zé pelo pescoço que engatinha como cachorro) Maria – vem, meu cachorrinho, vem pra mim, vem. Vem pra casinha. Vem meu totozinho, Faz au-au faz. Au au! Vem, meu bem, Ó, Zé! vem logo (Zé levanta-se, espreguiça-se, olha para o público e olha para o seu órgão sexual) Cena 3: A Gravidez de Maria (Fazem amor. Zé uiva. Entra debaixo do vestido e assopra um balão que está debaixo, simulando uma barriga) Maria – (Para o público) Foi aí que a Bendita veio!... Cena 4: O Nascimento de Bendita (Vai abaixando a música, entra o tema do nascimento de Bendita. A mãe sai em direção à cadeira para o parto – Zé continua dormindo) Maria – Ai, meu Deus, já tá na hora, ô, Zé!... Alguém me ajuda!!... Meu neném tá querendo nascer... ô, meu Deus! (Aumenta a música na hora do nascimento - Bendita passa embaixo da cadeira da mãe, vai abaixando o volume pra o diálogo) José – (empolgado e para o público) E a bezerrinha nasceu com 5k e 900g. Bendita - (cantando) Mãaaaae... José – E já nasceu cantando!

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Maria - Minha filha que eu tanto sonhei... (Bendita encanta-se com o rádio, pega-o e sacode-o; depois vê o pai que chama-a com a mão) Bendita – Papai! José – É o paizão. Vem pro papai, vem. Minha primeira filha, vai ser o orgulho da família. Olha, olha, Maria, ela ri que nem minha vó. (decidido) Então, vai chamar Bendita! Maria – Bendita!!! (decepcionada) É uma boa homenagem pra sua vó... José – Num é! Isso merece uma comemoração daquelas, (Maria e Bendita se empolgam) vô pro boteco... Cena 5: A Escola Maria – (para o público) E assim a Bendita foi crescendo, e um sonho também foi crescendo dentro dela. Mas tinha uma coisa que ela não gostava. (para Bendita) Menina, vai pra escola! Anda! (Tempo de mudança; Bendita vai crescendo; aprendendo a andar e vai em direção ao rádio) Bendita – Ah, não, deixa eu ficar ouvindo música, uai... Maria – Bendita, eu não vou falar de novo! (Enfática)Vai! Bendita – Também, quando eu crescer, eu nunca mais vou pra escola. Maria – Oh, minha filha, seu grande sonho num é ser cantora? Artista também tem que estudar. Vai, minha filha, vai! (Bendita vai pra escola. A caminho, os meninos começam a humilhá-la): Todos – Macaca, Macaca, preta fedorenta! (5X) (Vai um a um falando, na medida em que Bendita passa. Ela senta-se. Os colegas continuam a cantar. Num determinado tempo ela não agüenta e sai correndo de volta para casa) Maria – Bendita, eu já mandei cê ir pra escola. O que que cê tá fazendo aqui? Bendita - Os meninos tudo me xingô de novo, daquilo que ocê sabe muito bem... Maria – Ô, minha filha, eu já num falei se ocê fosse macaca cê ia tá no zoológico? Lembra? Bendita – Eu sei. A senhora já me falou isso... agora vai lá e fala isso pra eles. Maria – Bendita, cê sabe que o seu pai não gosta que eu caço confusão com os outros. Bendita – Cê num caça confusão com os outros e outros caça comigo e eu não faço nada. É só porque eu sô preta. Maria – Ô, meu bem, num liga pra isso não, brinca com seu irmãozinho Samuel, brinca.... Bendita - Não! Eu num quero brincar com ele, não! (pausa; Maria canta boi-da-cara-preta para Samuel; Bendita olha para o irmão) Por que o Samuel é branco e eu não? (Maria pára de cantar) Maria – Ô, minha filha, foi Deus que quis assim... Bendita – Tamém eu num queria é ser preta... não queria mesmo.

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Cena 6: Os 15 anos (Bendita liga o rádio, canta e dança – música “Dores da vida”, do NUC) Maria - Bendita, minha filha, olha o bordado lindo que eu fiz. Já que eu não posso te dar uma festa, vou, pelo menos, fazer uma saia de presente, é pro seus 15 anos. Cê gostou? Bendita – Nossa, mãe, adorei... (Começam as duas a fazer as medidas e a falar baixo. Entra a rádio) Locutor 1 – Você está na melhor Locutoras – Rádio do Beco Locutor 1 – 199.5 Locutoras – A FM que te escuta! Locutor 1 – E vem aí, o 1 o. Concurso de cantores... Bendita e Maria - Concurso?!?! Locutoras – É, “coração rima com paixão”! Locutor 1 – Participe com a gente! O nosso telefone é... Locutora 2 – 3297 Locutora 3 – 4794 Locutor 1 – Repetindo... Bendita e Maria – 3297 4794. Locutor 1 – Venha e solte sua voz. Bendita – Ah, mãe!... Deixa eu participar, deixa... Maria – Se seu pai deixar, pode... Bendita – Paiêê... Cena 7: O Ônibus (João desloca a cadeira e fuma enquanto as locutoras vão falando) Locutor 1 – E agora, vamos mandar um abraço pro Aglomerado Santa Lúcia e pra Zenólia da lojinha que ligou e mandou essa música para: Locutora 2 – Mariza Reis. Locutora 3 – D. Taís. Locutora 2 – Graça da Fazendinha. Todos os locutores – E pra Janetão do Caminhão. (Locutores pegam um bastão e simulam estar segurando o ferro do ônibus – de costas) Passageiro 3 – Ô, moço, apaga esse cigarro, aí! (João assopra fumaça na pessoa que reclama) Bendita – Licença, gente, licença. Passageiro 2 – Ah, não, num tem espaço aqui não, o meu pé, hein? Passageiro 1 – Hum... que cheiro de cecê.... Bendita – Ai, desculpa, desculpa, gente. (vê João que continua fumando) Nossa, moço, apaga esse cigarro, por favor... João – (ignorando) Vai ter jeito não. Bendita – É que eu tenho alergia João – (virando para Bendita, olham-se e apaixonam-se) Aqui ó, paguei. Ce qué sentá no meu lugar? Bendita – Ah, não. Brigada. Passageiro 3 – Vai, moça.

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Passageiro 2 – Deixa de sê boba! Passageiro 1 – Senta logo. João – Não, eu faço questão! (levanta para Bendita assentar) Desculpa pelo cigarro, viu! Bendita – Deixa eu levar o seu casaco? João – Faz favor (entrega-lhe o casaco). Como é que você se chama? Bendita – (vergonha) Bendita. João – Cê é lindinha, hein, Bendita! Bendita – Nossa, nunca ninguém me falou isso João – É porque todo mundo é cego. Passageiro 3 – Cantadinha barata... João – Cê faz o que, hein, Bendita? Bendita – De vez em quando eu trabalho em casa de família né, mas eu canto... João – Cê canta? Bendita – Não, quer dizer, eu canto... João – Cê canta ou não canta? Bendita – Não é que eu caaaanto (exagera), eu canto... (simplória) João – Ah, bom... Então, canta pra mim? Passageiro 2 – Ah, não. Só faltava essa! Bendita – Ah, não, eu tenho vergonha... João – Faz de conta que a gente tá sozinho, canta, vai! Passageiro 2 – Não tá sozinho, não! Bendita – (canta) “Meu coração, Passageiro 1 – Desafinada. Bendita – não sei por que.... Passageiro 2 – Música horrorosa! (João começa a cantar também). João e Bendita – Bate feliz... Passageiro 1 – Agora é os dois. João e Bendita – quando te vê...” (Bendita pára de cantar quando ele a encara) João – Parou de cantá por que, Bendita? Bendita – Ah, o pessoal não tava gostando muito, não. Passageiro 2 e 3 – Tamo gostando mesmo, não! João – Quem me dera ... eu, um reles pedreiro, mas... Bendita – Nossa, meu pai também é pedreiro. João – Seu pai é pedreiro? Bendita – É, sim. João – Mas eu tô indo agora olhar um outro trabalho que tem tudo a ver com cê. Bendita – Ah é , de quê? João – (lembra do ponto) Ó, motô, meu ponto. Pára aê, motorista (vai saindo) Bendita, quando você fizer sucesso, lembra de mim, tá? João, (gritando) João... Passageiro 2 – Ih, moço, até eu sei que ocê é João. (João desce do ponto, Bendita lembra que o casaco de João está em seus braços) Bendita – Gente, o moço esqueceu o casaco. Motorista, pára o ônibus, o João esqueceu o casaco dele (vai saindo do ônibus), dá licença...

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Cena 8: Bendita e Caxeta (Caxeta entra com um olhar malicioso para Bendita e toca pandeiro enquanto ela canta) Bendita – (chamando e procurando) João, João. (colocando o casaco e como se lembrasse de João) ...mas mesmo assim, foges de mim” (Caxeta interrompe Bendita com uma forte palmada no pandeiro. Ela, por sua vez, assusta-se) Ah Caxeta... Caxeta – Bendita! Cê tá boa? Desceu no ponto errado, é, princesa? Bendita – (desorientada) É, não, quer dizer, tô bem, sim, e você? Caxeta – Adivinha, eu tenho uma novidade pra você. Bendita – O que que é? Ih... lá vem você com suas histórias? Caxeta – Que história, gatinha? História é o seu pai que vive dependurando conta lá no meu boteco. Bendita – Eu sabia que você vinha de novo só pra falar do meu pai. Caxeta – Não, Bendita deixa isto pra lá. Do que que você mais gosta? (sempre rodeando) Bendita – Ah... de cantar, ué! Caxeta – Então, chuta um palpite. (rodeia Bendita tocando o pandeiro) Bendita – Ah, Caxeta... Um rádio? Caxeta – Não. Pensa um pouco. Bendita – Um gravador. (toda feliz) Caxeta – Dita, mais alto, Caxeta. (se gaba) Bendita – Caxeta, alto, gravador, num sei, fala logo, Caxeta! Caxeta – (Pára o pandeiro. Vai até o seu ouvido) Comprei um microfone. Bendita – (eufórica) O quê? Cê comprou um microfone, Caxeta? Caxeta – É pra alugar lá pro pessoal que vai cantar no Concurso da rádio! Bendita – Eu vou participar! Caxeta – Ah, é? Então vamos lá em casa, porque para você é de graça. Bendita – Ah, não. Agora não. Tá tarde e se o meu pai descobre, ele me mata!(a euforia diminui) Caxeta – Poxa, Dita. É que junto com o microfone eu comprei um tanto de disco. Bendita – (não acreditando) Disco? (olha se tem alguém vendo) Caxeta – E aí, vamos? Bendita – Mas você jura que não conta para ninguém? Caxeta – Boca de siri, princesa, eu juro. (entra a fofoqueira Anunciação em cena com sua janela em mãos) Anunciação – Cês parece que tão com um tanto de segredinho aí, hein! Caxeta – Oi, Dona Anunciação! Anunciação – Bendita, e o que você tá fazendo na rua uma hora dessas? Cê viu o que aconteceu ontem: teve um tiroteio tão bravo que até acertaram um menino! A noite não tá brincadeira, não viu? Inda mais para você que é moça direita... Bendita – Mas oh, dona Anunciação, eu já tava indo embora agora mesmo. Anunciação – Mas pelo que eu saiba sua casa é pra cá (alertando) Oh, Bendita, cê fica de butuca com esse aí, viu! Caxeta – (para Bendita, baixo) Deixa essa intrometida para lá. Vão! (malicioso) vão. Bendita – Tchau, dona Anunciação. Anunciação – Credo, então , tchau, né! (saem) (Anunciação vê os dois saindo de mãos dadas e sai de cena) (Consolação entra e coloca sua cadeira de frente para o público, assenta-se e começa a costurar na sala) Caxeta – Vem!

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Consolação – Meu filho, cê? Caxeta – Sou eu, mãe! (para Bendita) Olha, pode pegar (mostrando o som e o microfone-cadeira). Bendita – Nossa! Que legal! (Não acreditando no que está vendo.) Caxeta – (Vai até a cadeira e pega o microfone) Vai, testa. Bendita – Alô, alô, Bendita (Bendita testa) Tá desligado. Caxeta – (Liga) Deixa que eu ligo. Bendita – “Saudade, palavra triste (Bendita confirma que está ligado; ela começa a cantar)

quando se perde um grande amor, na estrada longa da vida eu vou chorando a minha dor...”

(Caxeta fica rodeando-a como forma de sedução e a toca por trás, Bendita pára de cantar) Caxeta – Ô, Bendita, desculpa. Pode cantar. Eu não vou mais atrapalhar, não! (Caxeta tira a camisa e coloca clorofórmio na camisa e coloca no nariz de Bendita que desmaia. Depois de Bendita no chão, Caxeta levanta-lhe o vestido e estupra-a no chão. Enquanto isso, o pai passa por trás da cena e a fofoqueira Anunciação chama-o para conversar) Cena 9: Anunciação e José Maria Anunciação – Ei, seu Zé, tudo bem? (Dispara a falar) E o Samuel, ainda tá de caxumba? Zé – (só põe a mão no chapéu, como que cumprimentando, levanta o braço) Tá, tá, tá, Anunciação! (passa direto por ela) Anunciação – Ô, seu Zé, a Bendita tá namorando o Caxeta? Zé – (volta) Comé que é? Que história é esta? Anunciação – Ó, eu não sou de me intrometer, mas é que eu vi a Bendita e o Caxeta passando aqui agorinha. Tavam de mãos dadas e tudo. Até que eles fazem um casal até bonitim, né, seu Zé? Quando vai ser o casório? Porque eu pensei... Zé – E ocê pensa, Anunciação? Que mané casório o quê? Pra ondé quês foi? Anunciação – Credo, num precisa ofender... parece que o Caxeta levou ela lá pra casa dele. Zé – (sai em direção à casa de caxeta) Filho da puta. (Anunciação sai de cena) Cena 10: A Deserdada (Nesse momento, Zé entra na casa de Caxeta, vê ele deitado por cima de Bendita beijando-a. Caxeta vê seu Zé e levanta-se rápido) Zé – Desgraçado (tirando Caxeta de cima da filha) Caxeta – Seu Zé! (assustado) Zé – (chutando Bendita) Levanta, levanta. Que pouca vergonha... (nesse momento, Bendita acorda sem entender o acontecido, se vê nua e vai em direção ao pai com vergonha. Eles se olham). Bendita – (pedindo socorro) Pai, é... Pai, não é nada disso que o senhor está pensando... Zé – (interrompendo a filha) Eu não tô pensando, eu tô vendo (ameaçando) Bendita – (dispara a falar, a falar) Pois é, eu tava no ponto de ônibus, né, aí,

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Caxeta.... Zé – Cala a boca (Bendita dispara a explicar) Cala a boca. Cala! (Zé puxa o cabelo da filha e joga-a no chão. Bendita se cala) Bendita – Mas eu num tive culpa. Zé – Cala sua boca, se não eu arrebento sua cara! (volta-se para Caxeta, com fúria) Caxeta – Seu Zé, ela veio cantar, ó (mostrando o microfone a Zé) (Zé encara-os com raiva e catatônico. Ao ser encarado, Caxeta abaixa a cabeça de vergonha e medo e guarda o microfone) Zé – A partir de hoje, Bendita, cê vai poder cantar à vontade. Num é isso que cê sempre quis? A mulher é sua, agora! Bendita – (vai em direção ao pai, desesperada) Não, pai, pelo amor de Deus, não me deixa aqui, não. Zé – Cê fica aqui, com a roupa do corpo. Num precisa nem chegar perto de minha casa. Lá, ocê num passa mais nem na porta. Caxeta – Mas, seu Zé, eu num posso ficar com a Bendita aqui não! A casa é da minha mãe. Zé – Dobra a língua para falar comigo, rapaz. Honra a memória do seu pai. Ele era homem, ocê é um rato, um merda. Cê num quis arrumar confusão, agora se vira e cuida da mulher! Bendita – (lamentando-se mais uma vez) Pai... Zé – Pai? Esquece que cê já teve pai e mãe algum dia! (sai resmungando) Desonrada, vagabunda... (Caxeta e Bendita ficam em silêncio, se olhando) Consolação – Que bagunça é essa aí, meu filho? (Caxeta e Bendita trocam olhares de ódio) Caxeta – Nada não, mãe. Consolação – É sua namorada? Caxeta – Não, É uma mulher que me arrumaram. Bendita – (para Caxeta – enfrentando) Arrumaram nada! Você que desgraçou minha vida! Caxeta – Eu acho melhor você ficar de bico calado, senão eu te mato e te jogo na rua, tá entendendo? (jogando Bendita no chão) Bendita – Me solta, me larga! Caxeta – Agora que o seu pai te virou as costas, a coisa é só entre nós dois. E quem manda aqui sou eu! Eu vô sair, quando eu voltar, a gente conversa (pega a camisa no chão e sai): Tchau, mãe! Consolação – Tchau, meu filho. Vai com Deus! Caxeta – (voltando para Bendita, que está no chão) E tem mais uma coisa: quando eu te quiser, cê vai dormir aqui. E se eu não quiser, lá. (sai) Cena 11: A briga de Zé com Maria Zé – (entra gritando a mulher) Mulher... (pausa) Maria! Maria – (assustada) Que que foi, Zé? Zé – Junta as coisa de Bendita tudo. Maria – Pra quê? Zé – Vamo quemá. Maria – Que que aconteceu, homem, cadê a minha fia? Zé – Sua filha agora é mulher de Caxeta. Maria – Do Caxeta, como assim?

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Zé – Ela não é mais moça... Maria – Ô, Zé, cê tá falano da nossa fia. Zé – (Samuel entra brincando com carrinho no meio da discussão dos pais) Pára com isso, Samuel, pára! (Zé bate-lhe na cabeça, Samuel assusta-se e pára de brincar; fica entre os pais) Bem antes dela nascer, ela sempre foi mais sua do que minha. Eu fui bobo de acreditar que ela ia ser o nosso orgulho, porque com essa história de cantar, o que ela fez foi manchar o nome de minha vó! Maria – Eu não vou juntá, nem queimar nada. (enfrentando) Ela é minha filha! Zé – (ignorante, pega Maria e aperta-lhe o braço) Cê não vai juntá? Eu junto! Maria – Mas ela é minha única filha! (estapeia-lhe o rosto) Zé – Cê não vai queimá? Eu quêmo! E se ocê defendê ela, cê sai daqui também! (sai) Maria – Oh, minha Nossa Senhora, guarda minha filha, ela sempre foi tão boa pra mim, nunca fez mal a ninguém. (desespera) Samuel – A Bendita não vai mais morar aqui, não, mãe? Maria – Samuel, leva esse rádio que ela tanto gostava, lá na casa do Caxeta, não deixa seu pai vê não. Corre menino, que eu vou rezar, eu vô pedir... Samuel – Tá, mãe! (menino sai correndo com o rádio escondido) Cena 12: Samuel entrega o rádio à sua irmã (Bendita chora muito) Consolação – (percebe o choro de Bendita) Menina... (pausa, escuta) Ô, menina, vem cá vê o bordado que eu tô fazendo. (Bendita, chorando, vai ao encontro de Consolação) Senta aqui. Ô, minha filha, cê é fia da Maria, num é? Num liga para esse meu fio, não, que ocê se acostuma. No meu tempo de moça, briga de namorado era normal. E eu quando tinha sua idade, assim, eu era namoradeeeeira, tive sete namorado.... Samuel – Bendita!! (pausa) Ô, Bendita! Bendita – (Bendita, deitada, escuta o irmão chamando, levanta rapidamente) Meu irmão! (sussurrando) (abraça-o forte) Samuel – Bendita!... A mãe mandou pro cê. Pega. (entrega-lhe o rádio) O pai tá bravo; ele bateu na mãe, queimou suas coisas tudo e num quer ocê lá mais não. (Consolação começa a ouvir a conversa dos dois, Bendita o empurra um pouquinho pra mais longe) Bendita – Então vai embora, senão o pai briga com a mãe e bate n’ocê, respeita a mãe, (pausa) respeita o pai também. Samuel – Tá, tchau! Bendita – Tchau! (o menino sai correndo e vai embora. Bendita passa em frente a D. Consolação) Consolação – Que rádio bonito! Bendita – (liga o rádio) Foi minha mãe que mandou pra mim. Consolação – Sua mãe é boazinha dimais? Minha mãe também era assim. Tenho saudade dos meus pais. Eles já faleceram. No meu tempo de moça saía muito pros baile, dançar forró, ouvia muito Roberto Carlos... (entra música de Adoniram Barbosa, faixa 5) João – Você está na rádio do beco, 199.5, a FM que te escuta. E você, que se sente solitária, o programa FALA COMIGO vem para desafogar todas as suas mágoas, pois aqui, só toca o que te toca. E hoje o seu novo apresentador é Jonny Cat. Se

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você gostou da minha voz, ligue e peça que eu fique. Amantíssimas ouvintes, especialmente para vocês, uma música que, desde cedo, não me sai do pensamento. Ouça esta canção, com seu coração. (para Couves) E aí Couves, como é que foi? Couves – Boa, cara! Volta amanhã às 9h! (Pixinguinha, Carinhoso – Bendita sai de cena) Cena 13: Anunciação e Dona Maria (Um ano depois. Na hora em que o locutor acaba de falar e colocar a música Carinhoso, D. Maria vem andando e coloca a lata no chão – Anunciação entra correndo) Anunciação – Maria! Maria – Oi, Anunciação. Anunciação – Cumé que ocê tá, hein? E a Dita, aquela lá não sai mais de casa, não? Maria – Ela deve tá trabalhando demais. Anunciação – É, o marido dela deve tá prendendo ela dentro de casa, de chicote e tudo. Maria – Oh, Anunciação, bate na boca três vezes. Nossa Senhora protege minha filha. Anunciação – Ô, Maria, já tem um ano que a Dita tá com o Caxeta, não tem? Maria – Tem. Anunciação – Tá na hora da senhora ser vovó. Maria – Que, Anunciação? Anunciação – Já tá passando da hora da Dita ter um filhinho. Eu, pelo menos, acho. Maria – Eu tô é com saudade da minha fia. Anunciação – Ah, é? A senhora não tá indo lá vê ela, não? Maria – Cê sabe que o Zé não deixa e também ia me cortá o coração ver ela daquele jeito. Anunciação – Se precisar de mim, eu tô aí: levo e trago notícias. Pra mim não é nenhum problema. Eu não tenho marido para mim prender, né? (entra o Caxeta tocando pandeiro e com Celina, sua amante, dançando) Anunciação – Maria, Maria! Celina – (sem graça) Ei, dona Maria. Maria – E sua mãe, já melhorou? (faz sinal de afirmativo em silêncio e sai com Caxeta) Anunciação – Coitada da Dita! Maria – Tchau, Anunciação. Anunciação – (Ri, sem graça ) É, então tchau, né? (para o público) É por isso que eu não arrumo marido. Ficô é loco. Cena 14: Caxeta leva a amante para casa (Caxeta e Celina falam fora de cena) Caxeta – Vamos, Celina! Celina – Não, Caxeta, você sempre fala a mesma coisa. É chato pra mim, né, a Dita tá lá!

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Caxeta – Oh, Celina, cê tem que entender... Celina – Entender o que, Caxeta? Eu conheço a Dita desde de quando a gente era criança. Caxeta – E você quer o que, Celina, que eu pego ela e jogo ela na rua... Celina – Não, Caxeta, não é isso. Caxeta – Se é isso que cê quer, eu mando ela embora agora mesmo, mas tem uma coisa: a culpa vai ser toda sua... Celina – Assim também não, coitada. Eu só quero resolver a nossa situação de uma vez. Caxeta – Oh, Celina, se você entrar hoje, eu prometo que eu converso com ela amanhã mesmo. Sem falta. Celina – Cê promete? Caxeta – Palavra de Caxeta. (começa a tocar o pandeiro conquistando Celina) Oh, Celina, samba para mim, samba... Isso, dá um sorriso, vai... Celina – (vai cedendo ao Caxeta) Aí, Caxeta, cê não vale nada mesmo... (enquanto isso, Dita faz comida de frente para o público, e dona Consolação costura sentada de frente. Caxeta, então, entra em cena com Celina sambando) Caxeta – Oi , mãe! Consolação – Oi, meu filho! Celina – (sempre sambando) Cê toca bem, Caxeta. Caxeta – (sempre tocando pandeiro) E você dança demais, princesa. (pausa) Cê tá com fome? Celina – Tô, sim. Caxeta – Dita, traz a comida! Consolação – Bendita, minha filha, liga não, meu marido era desse jeito. Caxeta – (Dita não responde – Ignorante) Dita a comida! Bendita – Já vai! (Bendita traz a comida e deixa perto do casal, eles param de dançar) Bendita – Oi Celina, sua mãe tá boa? (Celina responde que sim apenas com a cabeça) (sussurrando para ela) Cuidado, Celina, muito cuidado! (depois, Dita sai para o quarto e Caxeta vai atrás dela e pega-a pelo braço) Caxeta – Cuidado você, com essa sua língua. Hoje cê vai dormir aqui! (mostra para o quarto da mãe) Consolação – Não tá na hora do programa daquele locutor? Aquela voz bonita que você tanto gosta? (Dita liga o rádio, feliz) Jonny Cat – (na rádio) E a rádio do beco, 199.5, a FM que te escuta e o programa FALA COMIGO que só toca o que te toca, têm hoje um motivo muito especial para comemorar: um ano de Jonny Cat no ar. E para vocês: ouvintes amorosas, meu muito obrigado, sem suas histórias este programa não seria possível. Continue ouvindo a estação que fala com o coração. Cena 15: O pressentimento de Maria (saem Bendita e Consolação, entram Samuel e Maria em cena) Samuel – Uai, mãe, cê não vai na missa hoje, não? Num vai mesmo não. Tá caindo o maior chuvão lá fora e o pai também tá sem chave, né? Onde que o pai foi, mãe? (Pausa) Mãe, mããããe... Mãe – Que foi, meu filho? Samuel – Cê tá doente, mãe?

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Maria – Oh, meu filho, depois que a Dita foi embora dessa casa, minha vida virou um inferno: seu pai só fica no boteco, cada dia bebendo mais e mais. Já faz um ano do acontecido e ele ainda nesse rancor. E o pior: essa fofocaiada no meio da rua, eu não tô agüentando isso mais, não! Sabe o quê que ês tão falando agora? Que a Dita tá grávida. Samuel – Uai, mãe, mas ela não é casada? Maria – Oh, meu filho tem alguma coisa me dizendo que essa história num vai acabar bem. Samuel – Num fica assim não, mãe (deita no colo da mãe; ajuda a mãe a se levantar) (trilha Egberto Gismonti) Cena 16: Caxeta bate em Bendita grávida Caxeta – Mãe! Cadê aquela vagabunda? Consolação – A Bendita tá no quintal (toda ingênua) Caxeta – Dita, Dita! Vem cá, sua vadia. (ela fica com medo e não vai.) Vem cá. (Caxeta a busca pelo cabelo, e lança-a no chão, sobe sobre ela para enforcá-la) Caxeta – Tá todo mundo falando que você tá grávida? É verdade? Bendita – É verdade! Caxeta – E de quem é esse menino? Bendita – É seu, Caxeta. Caxeta – Eu vou te matar e arrancar esse menino da sua barriga. Você acabou com a minha vida, sua vagabunda. (ao ver o filho batendo em Bendita, Consolação levanta-se depressa, para ajudar Dita) Consolação – Sai daí, meu filho, cê num vai desgraçá mais a vida dessa minina. (Caxeta empurra a mãe, Consolação, que cai no chão, e Dita busca uma faca) Bendita – (de posse da faca) Fica longe, Caxeta. Você não vai me tocar nunca mais. Seu nojento! Meu filho é a única coisa que me restou, cê num vai fazê nada com ele. Vai embora! Caxeta – Se é isso que cê quer. Cê vai ter! Cena 17: A morte de seu Zé (No buteco.) Zé – (para o balconista imaginário) Mais uma. (pausa – recebendo o copo) Que mané anotá o que, rapaz? Esse é o buteco do meu genro. Encha esse copo aí. Eu não tenho nada pra falar com aquele filho da puta. Eu como e bebo aqui à vontade, ele não faz isso com a minha filha?! Caxeta – Vamos resolver esse problema então, seu Zé?!. Zé – Ah, é ocê? Eu num tenho nada pra falá com ocê, não. Caxeta – Sua filha me aprontou mais uma! Ela tá grávida, o senhor sabe o que eu vou fazer? Zé – (debochando) Se ocê que é o marido num sabe, eu que vou saber?! Caxeta – Seu Zé, a culpa é toda sua!(coloca-lhe o dedo no nariz. Zé reage) Zé – (empurrando a mão de Caxeta) Tira a mão da minha cara, rapaz! (pega Caxeta pela camisa) Cê não aponta dedo pra homem, não! (Dá um tapa na cara de Caxeta

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que cai no chão. Enquanto isso, Zé vai até o balcão) Eu faço questão de pagar cada anotação. Eu vou ficá deveno pra Caxeta? (irônico) Caxeta – (vai até o “balcão” e pega a arma, aponta para Zé) Eu não aponto dedo pra homem, não, eu aponto isso! (aponta a arma.) Zé – (ri) IIh, cê nunca foi de nada, meu caro, não vai ser hoje... (duvidando e saindo, ignorando a arma e o próprio Caxeta) Caxeta – Se não for pra sua filha, é pr’ocê, seu velho desgraçado! (atira em Zé pelas costas que se vira para Caxeta, cambaleando, levando então mais um tiro no peito – cai no chão e Caxeta dá mais dois tiros em Zé deitado) (sai correndo). (trilha Egberto Gismonti) Voz em off da rádio: E ATENÇÃO: ESTÁ FORAGIDO O ASSASSINO DE JOSÉ MARIA FERREIRA DA SILVA. O SUSPEITO DO CRIME É O CONHECIDO CAXETA. MAIS NOTÍCIAS, A RÁDIO DO BECO VOLTA A QUALQUER MOMENTO... (surge em cada coxia um personagem do espetáculo para ver a cena) Cena 18: Anunciação avisa a morte de seu Zé (Anunciação aparece na janela): Anunciação – Maria! Ô, Maria! Vai lá no buteco. Seu marido tá caído no chão. Teve a maior brigaiada. Cena 19: Samuel se despede do pai morto (Entra Samuel e vê o pai caído) Samuel – Pai! (Samuel aproxima-se do cadáver) Pai! Ô, pai, levanta daí. O senhor falou que ia consertar o meu rolimã. Levanta! (Dita surge correndo, ajoelha-se em frente ao cadáver) Bendita – Pai, (pausa) Ô, pai, não era para ser assim... (entra Maria) Maria – Zé?... (gritando) Meu marido! Quem fez uma maldade dessa? (pausa, para Bendita – chorando) Filha, o que que a gente vai fazer agora? (coloca o pano sobre o marido – Bendita tira a mãe de cena, deixando Samuel sozinho com o corpo do pai. Samuel usa o barbante do carrinho que fica o tempo inteiro com ele.) Samuel – Sabe, pai, a mãe me contou que quando morria alguém lá na roça, as pessoas amarrava um barbante na mão do morto e esticava bem esticadinho, bem lá no alto que é pra alma do defunto ir direto pro céu. (desenrola o barbante e fica olhando para o céu) Pronto! Pode subir, pai. Sobe, pai! (a alma de Zé sobe no barbante, mas Samuel não percebe, olha para “o corpo” caído do pai e um tempo depois) Num vai subi, não?! (entra Dita). Bendita – Samuel, vão embora pra casa, vão? (Samuel agacha no “corpo do pai”, pega o chapéu, coloca-o na cabeça e fala para Dita) Samuel – Ô Dita, será que o pai não foi pro céu? (pausa, vai saindo e dizendo para si mesmo) Será que eu não amarrei direito? (saem os dois) Cena 20: Bendita ganha o concurso da carta Radialista Couves – Rádio do Beco 199.5, a FM que te informa todas as notícias do

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Aglomerado. Caros ouvintes, aqui quem fala é o Couves, o seu radialista do dia-a-dia. E atenção que vamos mandar a dica do dia: se a chuva não tá brincadeira e o seu telhado anda te pregando uma peça, gotejando para valer na sua cabeça, não se preocupe: pegue o sabão de cachorro e passe no local que tá rachado. Depois, deixe secar e adeus para aquele pinga-pinga infernal. E agora, uma notícia com o todo nosso respeito: hoje foi a missa de um ano da morte do nosso amigo José Maria Ferreira da Silva. O assassino, o Caxeta, está foragido até hoje. Sabendo de seu paradeiro, ligue para nós. Porque aqui, no programa Notícias do Beco, você sempre fica bem informado. E continue com a nossa programação. Maria – A missa foi bonita (melancólica, pausa) Consolação – Meu filho mandou mais uma carta. (pausa) Não tinha endereço. Só veio com o meu nome. Maria – E ele, tá bem? Consolação – Bem nada, tá fugido da polícia. Maria – Ô, Consolação, esconde essa carta. Não deixa o Samuel vê não. Consolação – Pode deixar, Maria, tá guardada bem guardadinha. Maria – Mas a nossa netinha Vitória tá tão bonita. Consolação – Linda, mesmo, e quando ela crescer, vai ser namoradeira igual a vovó aqui. No meu tempo de moça, eu era namoradeira. Tive sete namorado numa semana só. Maria – Numa semana só? Consolação – É, Maria. Um dia chegou dois lá em casa – e eu sem saber o que fazer. Minha irmã ficou com um, enquanto eu saía com o outro. Maria – Mas cê era danada mesmo, hein, Consolação! Consolação – Namorava mermo. Ô, tempo que era bom!!! Eu vou aumentar o volume dessa música. Que são minhas conhecidas lá do grupo de idosas. Essa música é bonita! (Maria se assusta com o volume, pois ela está com a filha de Bendita – Vitória – no colo) Maria – Nossa, Consolação! Abaixa um pouquinho. Consolação – Não, minha filha, a música é bonita! Maria – (gritando) Bendita, Bendita! Bendita – (entra, assustada com o barulho) Nossa, dona Consolação, a senhora qué deixar minha filha surda (pega a filha do colo de Maria e sai) Jonny Cat (na rádio) E o programa “Fala Comigo” tem o prazer de anunciar a grande vencedora do concurso “Histórias do Coração”: você que escreveu sua carta, contou sua história, está concorrendo a um par de alianças e a uma panela de pressão. (pausa, toca a música) Amantíssimas ouvintes, li com atenção e carinho todas as suas cartas, mas aquela que mais me comoveu e ganhou foi a da ouvinte (pausa, suspense) Bendita Ferreira da Silva!!! (dona Consolação presta atenção na rádio) Maria e Consolação – Bendita!? Maria – Bendita, minha filha, vem cá. Escuta! (Bendita entra, assustada) Jonny Cat – Bendita Ferreira da Silva, você que ganhou o nosso concurso, passe hoje mesmo na nossa rádio para pegar o seu prêmio, estamos te esperando. Bendita – Mas eu não mandei carta nenhuma! Consolação – Fui eu que escrevi. Maria – Vai lá, pega a panela de pressão e as aliança. Consolação – É bom que ocê casa. Bendita (saindo) Eu não vou casá nunca mais, Dona Consolação.

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Consolação – Se ocê num qué as alianças, pega a panela de pressão: é pra nós cozinhá pezinho de galinha. (Consolação e Maria saem cochichando) Jonny Cat – Enquanto a Bendita não vem, vamos tocar uma música para uma Bendita que atravessou meu caminho. Afinal de contas, quem nunca teve uma Bendita na vida. (toca música Pixinguinha – Carinhoso) Cena 21: Reencontro de Bendita e João (Bendita chega na rádio, Jonny Cat está arrumando os objetos da rádio e “escondido”) Bendita – Com licença? Jonny – Ô, senhorita, não pode ir entrando assim não. Bendita – Moço, eu vim por causa da panela de pressão, é que eu ganhei o concurso. Jonny – (dentro da rádio, mostra apenas a mão mandando- a esperar) Ah, sim, só um momento (entra em cena, enquanto Bendita continua se arrumando) Bendita, seu nome, né? Bendita – É sim, senhor (Bendita, nesse momento, está de costas para Jonny, este vira-se para arrumar algo e fumando) Moço, apaga esse cigarro, por favor. Jonny – (de costas pra ela) Vai tê jeito, não. Bendita – É que eu tenho alergia. Jonny – (virando-se para ela quando a reconhece, apaga o cigarro assim como a cena do ônibus) Oh, é ocê? Aqui ó, apaguei. Bendita – Jonny Cat, é você? Jonny – Pra você, eu sou João, lembra, o João do Ônibus? Bendita – Lembro, então quer dizer que o trabalho que ocê ia conseguir é este? Jonny – É, sim, e então quer dizer que a Bendita da carta é também a minha Bendita do Ônibus, (vira-se para Bendita, que está séria, sem graça) quer dizer, a Bendita que eu conheci naquele ônibus? (pausa, suspiro) Poxa, quanto tempo... Bendita – Pois é, muito tempo... Jonny – Me perdoe os modos, é a confusão dessa rádio. Bendita – Não tem de que, eu também só vim pegar meu prêmio. Jonny – Ah, sim... (vão se aproximando), a panela de pressão tá lá dentro, mas as alianças... (procurando, acha) tão aqui! (entrega a Bendita) Bendita – (apenas balança a cabeça afirmando, vê as alianças) Ah, não, eu num quero a aliança não, eu quero só a panela de pressão mesmo. (Jonny fica triste) Jonny – Mas por que, lindinha? Bendita – É que... (encanta-se com João) Pensando bem, eu quero a aliança, sim! (Jonny fica feliz) mas só pra comprar fralda pra minha filha. Jonny – (aproximando-se dela e pegando-a pela mão) Mas eu sei que agora você está solteira. Bendita – Sozinha. Jonny – Poxa! Eu tinha tanta coisa para te dizer, mas parece que agora tudo, ó, sumiu, assim...(estala os dedos) Bendita – Eu também tinha muita coisa para dizer, mas também me fugiu, assim, ó...(estala os dedos – Jonny se aproxima e faz que vai beijá-la) Bendita – (desvia) Sua boca tá fedendo a cigarro. Jonny – (falando para si) Mas eu já apaguei, (joga o cigarro por cima do cenário –

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fora) e eu parei de fumar, viu? Bendita – Parô????? Jonny – Por sua causa. Bendita – (toda feliz) Por mim. (vão se aproximando como se fossem se beijar, viram-se e rodam, ficam um de frente para o outro, viram para o público e dão um passo à frente) Cena 22: O Casamento (Música de casamento, Couves veste terno em Jonny Cat. Entra a mãe de Bendita com um véu para lhe colocar na cabeça) Maria – (coloca o véu nela) Finalmente, Nossa Senhora atendeu minhas preces. Cê vai ser muito feliz, minha filha. Deus te abençoe! Consolação – (entrega para Bendita uma flor) Ô, Bendita, dos sete namorado, eu ganhei sete flô, e todas as sete, eu te dou. Uma para cada dia da semana que vai te trazer muito amor. Celina – Ei, Bendita, sabe... Na minha vida já passaram muitos homens, uns bons, outros não, ganhei muitas flores também. Fica com essas, quem sabe elas vão te trazer mais sorte?... Anunciação – Dita, você tá bonita, aqui, aceita a minha também. Ó, pode pegar, é de coração. O negoço lá do Caxeta, você esquece, que não foi por mal. E boa sorte nesse novo casamento. (acontece o casamento. Seguem andando em direção ao público. Beijam-se. Chega o irmão de Bendita, Samuel, e cumprimenta João. Vão para o fundo. As mulheres gritam para Bendita jogar o bouquet) Mulheres – O bouquet, o bouquet! Cena 23: O bouquet Bendita – Um, dois, três (todas as mulheres repetem; Bendita joga o bouquet que cai na mão de Samuel) Samuel – Peguei! (João arrasta Bendita pelo braço, saindo de cena) (todas as mulheres se juntam em Samuel para lhe tomar o bouquet) Maria – Uai, meu filho, homem pegá bouquet não vale, não, dá pra mamãe, dá! Samuel – Ah, mãe! Eu também quero casar! Anunciação – Isso não é coisa prá homem, não. (Samuel faz gesto de não entregar) Consolação – Deixa pras moça, meu filho! Celina – Dá, Samuel, eu também quero casar!! Samuel – Cês querem pegar bouquet? Então vão no meu casamento! (sai correndo e todas atrás) Cena 24: Piolhos de Vitória (Aproximadamente dez anos depois. Duas cenas sobrepostas: assim que as mulheres saem atrás de Samuel, na primeira cena, João entra no boteco, e na outra cena, entra Vitória e Bendita em casa)

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João – Me dá outra. (chega Anunciação com sua janela no buteco) Anunciação – Ei, Seu João, tudo bem? E a Dita, tá boa? Já tá passando da hora de vocês terem um filhinho, hein... João – Mas a gente já tem a Vitória. Anunciação – Mas a Vitória é filha do Caxeta! Mas ainda bem que você assumiu essa menina. Porque a coisa mais triste é ser filha de bandido, né? Aquele lá é que não valia nem uma agulha... João – Pai é quem cria, Dona Anunciação! Anunciação – Então, já que você tá criando a menina, seu João, vê se passa um remedinho nela, que a coitada tá pingando piolho. João – Oh, Dona Anunciação, a senhora não tem mais coisa pra fazer, não? Anunciação – Tenho, mas isso aqui é mais importante. E a Dita? Ela tá animada para cantar? João – Não! Mulher minha não é artista, não! Anunciação – Credo, seu João, mas é o sonho dela. João – Qué sonhar, deita na cama e sonha!... Anunciação – Então, quer dizer que ela não vai participar mesmo, né?! João – Não (bafora na cara dela). Já falei que não! (para o público) Que mulher chata! (Anunciação vai até a casa de Bendita. Entra Vitória primeiro, depois, Bendita) Bendita – Vitória, eu já não mandei cê ir para escola? Que que ce tá fazendo aqui, menina? Vitória – Eu não vou para escola nunca mais! Bendita – Mas por que, minha filha? Vitória – Os meninos tão tudo me chamando de piolhenta e de cabeça de farinha. Só porque eu tenho lêndea! Bendita – Deixa eu ver sua cabeça?! (Bendita olha a cabeça de Vitória) Vitória!!! Cr”em Deus Pai! Os piolhos tão tudo pulando (mata os piolhos no ar) Ah, desse jeito, vou ter que pedir o seu tio Samuel pra rapar sua cabeça! Vitória – Ah não, senão os menino vão me chamar é de macho-fêmea! Bendita – Essa menina deve ter o sangue doce. É piolho de defunto, só pode! Eu já passei querosene, álcool, vinagre, até bombril no pente... (entra Anunciação) Anunciação – Dita! Vitória – (com vergonha) Dona Anunciação! (esconde o cabelo) Anunciação – Tá que cata piolho, hein? Vitória – Num é piolho, não. Anunciação – Cala a boca, menina. Bendita – Oh, Anunciação, cê num tem uma roupa pra lavar? Anunciação – Já lavei. Bendita – Então, vai lavar uma vasilha, vai! Anunciação – Já fiz isso também. Ô Dita, você num vai participar do concurso, não? Bendita – Que concurso? Anunciação – O concurso de cantoras que vai ter lá na rádio? Bendita – Vô não. Anunciação – Num vai mesmo. Porque eu acabei de ver seu marido e ele falou que ocê num vai de jeito maneira. Bendita – Tá bom, Anunciação, muito obrigada. Tchau! (Anunciação sai) Vitória – Ah, mãe, participa do concurso. Bendita – Se seu pai deixar, eu participo. (entra o pai, Vitória corre para abraçá-lo) Vitória – Pai!!!

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João – (afasta-a) Ó, distância!!!! Distância!!!! Vitória – Por que, pai? João – Eu num quero pegar piolho. Bendita – Oh, João, num faz isso com a menina não, cê sabe que ela gosta d’ocê como um pai. João – Eu também gosto dela, só não gosto dos piolhos que ela tem. Bendita – Então me ajuda a cuidar que ela não fica assim! João – O papel de mãe aqui é seu. Vitória – Oh, pai, deixa a mãe participar do concurso. João – Não. Vitória – Ah, pai, ela tem a voz tão bonita. João – Eu também acho, só que é mais bonita ainda no pé do meu ouvido, né, amor? (Bendita fica séria). Cê entende, né ? É que o clima da rádio não é familiar e .. (Bendita continua séria e sem graça. Jonny beija-a). Tchau, tô indo trabalhá. (sai, deixando Bendita a catar piolho da filha) Bendita – (para si mesma) Ele é que pensa que eu não vou participar! Vitória – O que, mãe? Bendita – Nada, não, minha fia. Vai lá na casa da vovó e pede para ela terminar de cuidar do seu cabelo porque a mamãe tem que sair, mas volta logo. Cena 25: Baile do Concurso de Cantoras (Jonny na rádio, todos entram com cadeiras esperando as cantoras) Jonny Cat – Você está na rádio do Beco, 199.5, a FM que te escuta. Estamos aqui hoje ao vivo do nosso salão de comemorações para a grande decisão do Concurso “Cantoras Sabiá”. Você que cansou de cantar no banheiro e tá a fim de descolar um dinheiro, fez sua inscrição. E hoje, aqui, teremos três lindas vozes. Enquanto elas não vêm, curta a nossa canção. (música de Dominguinhos, as pessoas dançam pelo salão, Anunciação dança com Couves e Vitória com o seu tio, Samuel. Burburinhos) Samuel – Oh, Dita, essa menina é muito sem educação. Bendita – Vitória, fecha as perna, senta direito, minha filha. Maria – Oh, Dona Consolação, senta aqui! (Dona Consolação assenta no lugar de Samuel, Vitória aproveita do tio em pé e puxa-o para dançar, Couves e Anunciação que estavam em clima de paquera também dançam) Jonny – E atenção, caros convidados, favor liberar o salão. Anunciação – Mas já? Num se pode nem dançá! (empurrando Samuel que assentado estava no lugar de Anunciação) Sai pra lá, menino! Jonny – Sem reclamação. E sem confusão, Anunciação. Pois já temos os três nomes das finalistas que cantarão com suas belas vozes aqui, hoje. Lembramos que a nossa comissão julgadora é transparente. E o nome das vencedoras são: Em terceiro lugar, Irene Rodrigues da Silva. Em segundo lugar, a Dupla Dona Miltes e Dona Marta. E em primeiríssimo lugar, ... (pára a música e grita, surpreso) Bendita!!!! (vai até ela) Que história é essa d’ocê se inscrever pra esse concurso? Bendita – Ô, João, eu num queria não, sabe? Mas dona Consolação me inscreveu e agora que eu ganhei, eu vou cantar! João – Não, cê num vai cantar... Consolação – Oh, meu filho, o sonho dela é cantar. E ela é uma menina que batalha muito, ela merece...

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João – Ô, dona Consolação, eu sei que a senhora teve boa intenção, mas a gente já conversou que esta história de cantá não vai levá a nada, num dá camisa a ninguém... (todos ficam a favor de Bendita) Bendita – Conversou não, João, ocê que decidiu e eu não concordo uai, eu vô cantar, sim! (João pega Bendita pelo braço) João – Bendita, vão embora, amor. (Bendita sai em direção ao palco) (João agarra o braço dela e começa a puxar-lhe para fora) Bendita – Me solta, João, me larga! (Entra Couves, pra tentar separar) Couves – Que é isso, gente, num vão brigar não. (no meio da confusão, com João empurrando Bendita, ela resistindo e Couves tentando separar Bendita, esbarra em João que cai e levanta indignado) João – Você bateu na minha cara? Bendita – Eu num te bati não, João. Pelo amor de Deus, João, eu num te bati não. Anunciação – Bateu, sim, seu João, que eu vi (Bendita vai agredir Anunciação, João pega Bendita pelo braço) João – Homem pior do que eu cê já teve , lembra? (com essa fala, João desarma Bendita e aponta o dedo na cara dela) Bendita – Que é isso, João? João – Quer saber de uma coisa: VO / CÊ NÃO / VAI/ CAN / TAR! Bendita – Ah, num vô, não?! (levanta a mão e, em câmara lenta, enquanto toca um pandeiro, abaixa e gruda no saco dele e solta a mão) Bendita – Oh, minha mão cansou! (repete a câmara lenta com a outra e continua a apertar o saco) Bendita – Ô, Couves, liga minha música aí, agora. (Bendita solta-o e ele vai até a frente, caindo) (todos se aglomeram sobre ele em burburinhos. Bendita pega o microfone e começa a cantar) Bendita – “O nome de mulher é tão sagrado

Mulher é nome pra ser respeitado A cobra não morde uma mulher gestante Porque respeita seu estado interessante Minha mãe também tem nome de mulher Tenho que defender Eu choro quando vejo ela sofrer Deus, Nosso Senhor, devia castigar O infeliz Que faz uma mulher chorar.”

(durante o canto de Bendita, todos vão deixando João abandonado no chão e se encantam com a voz dela. João também, ele se levanta e fala com o público) João – Bendita, minha mulher. Agora ela tá cantando aqui e cantando ali, e eu, por causa dos meus contatos virei o “tipo” empresário dela, homem de negócios, compreende, né? Bendita – Na verdade, o João não é meu empresário. Ele é meu segurança mesmo... (os dois brigam)

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João – Deixa de gracinha, Bendita. Tá querendo me envergonhar na frente do público? Bendita – Mas é isso mesmo... Você é meu segurança! João – (para o público) Tipo Empresário! Bendita – (para o público) Tipo Segurança! João – Empresário! Bendita – Segurança, João, você não lembra o que você fez com aquele rapaz lá fora? João – Mas ele tava te cantano! (Bendita ignora-o e vai para o fundo do palco, João vai atrás e ficam simulando a briga dos dois) (entram os personagens narrando suas histórias finais) (Vitória, filha de Bendita) Vitória – Eu não conheci meu verdadeiro pai, o Caxeta. Mas encontrei um pastor que me apresentou Jesus. Ele disse que para ser forte na igreja, tinha que arrumar três mil almas, já consegui umas trinta, mas tenho fé que um dia eu chego lá. Amém! Samuel – Eu fui atrás do Caxeta vingá a morte do meu pai. Consolação – Eu continuei esperando meu filho se arrepender e voltar, enquanto isso, tô aqui morando com a Maria, né, Maria? Maria – É... Meu filho Samuel também sumiu no mundo. Mas, ao mesmo tempo, eu tô feliz com a nossa netinha e tamo também vendendo uns paninho de prato, que nós mesmo fizemo. Se vocês quiser comprar... Anunciação – Gente, eu tenho novidade: casei. Arranjei marido. Sabe com quem? Com o Couves. Eu acho que eu paguei foi língua, só pode... Couves – Oh, muié, eu num já te falei que eu num gosto dessa história de você ficar nessa janela. (os atores formam uma fila na boca de cena e cumprimentam o público. João e Bendita levantam-se com um beijo na boca, atrás dos atores, voltam pra frente e cumprimentam o público, saem de cena e voltam cantando o trecho da música “Nome Sagrado”)

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ANEXO B - ROTEIRO PARA ENTREVISTA COM O GRUPO DO BECO

A princípio, serão realizadas duas ou três reuniões coletivas com os integrantes do Grupo do Beco, de forma a perceber sua visão e posicionamento de grupo. Nesse momento, pretende-se focar mais as questões relativas à história do Grupo, trajetória e processo de criação da peça “Bendita a Voz entre as Mulheres”. Objetiva-se realizar as entrevistas com suporte de um gravador, caso o Grupo não se oponha. Principais questões a serem tratadas: 1. Sobre o Grupo e seu histórico

� Como o Grupo se formou? � Como começou? � Como se conheceram? � Há quanto tempo estão com a formação atual? Já houve outras? � Peças já realizadas pelo Grupo anteriormente – Pegar cada uma das peças

citadas e relatar: 1. Temática – Sobre o que falavam? Qual o conteúdo? Qual a

mensagem? Qual o objetivo deles com a peça? 2. Onde apresentaram? 3. Formato, descrição da cena 4. Formação do Grupo na época 5. Como foi a recepção?

� As peças são: 6. Quis 500? 7. Consumidores à beira de um ataque de nervos 8. O casal 9. Casamento e bronca na roça 10. Coisa de criança 11. O afilhado da morte

� O Grupo tem algum tipo de trabalho / envolvimento comunitário? Qual?

Descrever. � Projeto Mãos de Mulher – detalhar: em que consiste, como é, quando, etc.,

etc. � Projeto Adolescer ou Não? Idem anterior. � Como é ser um grupo de teatro em uma favela? Falar sobre a relação interna

(com a comunidade) e relação externa (com o restante da cidade). � Quais são as dificuldades de se produzir arte na favela (ou a partir da

favela)? � Por outro lado, o que ser um grupo de moradores de favela facilita/ajuda na

trajetória do Grupo?

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2. Sobre a peça Bendita � Como surgiu a idéia? Como se deu a criação do argumento e roteiro? � Quem escreveu a peça? Houve colaboradores externos? � Qual era o objetivo? Qual a mensagem que o Grupo quer passar com a

peça? � Qual é, na opinião dos integrantes do Grupo, seu cerne, seu ponto

fundamental? Quais os valores em discussão na peça? � Na visão do Grupo, como vem sendo a recepção da peça pelo público? � O entendimento do público a respeito da peça condiz com a mensagem que

o Grupo quer passar? � Quais os retornos e comentários que o Grupo tem tido do público a respeito

da montagem? � Como foram os debates com o público após as apresentações? O que foi

dito, etc.? � Nas apresentações da Bendita na comunidade – Qual a reação do público?

Sentiram que aqui no Aglomerado vocês atuaram de maneira diferente? Ocultaram, acrescentaram ou modificaram algo?

� Como o Grupo vê a contribuição de terceiros na peça? Qual foi a importância dessa contribuição e em que alterou substancialmente a idéia inicial do Grupo?

� Por que do título escolhido para a peça? � Qual a intenção da referência religiosa do título e também dos personagens

(José, Maria, Conceição, Anunciação, Samuel, Bendita)? Qual a relação dos integrantes do Grupo com a(s) Igreja(s)?

� Acham que Bendita é universal? Trata do cotidiano de toda mulher negra, favelada? O que ela tem de universal e o que tem de particular, único?

3. Sobre o processo de coleta de informações para a peça (entrevistas com as mulheres do morro)

� Por que o Grupo decidiu partir para entrevistas com as mulheres da vila? � O que estavam buscando nesse momento inicial? � As entrevistas agregaram ao Grupo algum tipo de vivência ou informação

que ele já não tivesse anteriormente? O quê? � Quais foram as realidades que o Grupo apurou nas entrevistas com as

mulheres? Como vivem, o que pensam, como agem? � Como as entrevistadas receberam o tipo de trabalho do Grupo? � Como se sentiram ao ver a peça pronta? Houve reconhecimento de sua

situação nas personagens da peça? Houve rejeição/discordância? � No próximo trabalho, pretendem repetir esta forma de pesquisa para

composição da peça? Por quê? 4. Visão de Mundo

� Relação com a mídia – Como a vêem? O que pensam dos meios de

comunicação? O que eles dizem da vila? O que dizem do Grupo do Beco? � Por que desconfiam tanto dos “outros”, dos que vêm de fora? Inconsciente

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coletivo? Experiência negativa pessoal? Em que se baseia a desconfiança? � Em sua opinião, qual o nível de consciência cidadã proativa do Aglomerado

como um todo? – direito à cidadania, construção coletiva de uma identidade, assumir o papel de sujeito – isso se dá de fato junto a esta população? É disseminado? Ou ainda é minoria?

� José cita a “ocultação da história local” pelo Poder Público. Como vêem o Poder Público? Como atua no Aglomerado? Quais os problemas?

� O Aglomerado “incomoda a cidade” – não há mais como ignorá-lo: como incomoda? Por quê?

� “Se almeja maior interação da favela com a cidade, sem sua descaracterização simbólica e cultural”. Como?

� Relação favela x cidade: Como se dá, do ponto de vista cultural? Como se dá, do ponto de vista simbólico/ideológico?

� Vocês colocam que o Grupo visa à intervenção social por meio da arte. Que

tipo de intervenção seria esta? Que mudança vocês almejam? Como pensam que podem contribuir?

� O que pensam que já contribuíram de fato? O que mudou com a atuação de vocês? O trabalho de vocês já “fez a diferença” na comunidade? Como/em quê?

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ANEXO C - ROTEIRO PARA ENTREVISTAS INDIVIDUAIS COM MEMBROS DO

GRUPO DO BECO

Depois desses primeiros encontros, vão ser realizadas entrevistas individuais com os membros do Grupo, buscando conhecer suas motivações e envolvimento pessoal com o projeto, além de sua visão de mundo particular. Supõe-se que, a princípio, apenas uma entrevista com cada integrante do Grupo (entre produção e artistas) seria suficiente, o que totalizaria em torno de 8 a 10 encontros. Caso necessário, retornar-se-ia para complementar ou aprofundar com algum deles que tenha mais envolvimento com a vila ou com a peça. Também nesse momento pretende-se usar gravador. Principais questões a serem tratadas:

� Sexo, idade, local de nascimento, local de moradia

� Família – idade, escolaridade e profissão dos pais e irmãos

� Qual sua formação escolar?

� Qual sua formação artística?

� Quando começou a trabalhar com arte? Qual sua trajetória pessoal antes de participar do Grupo do Beco?

� Como/quando se deu sua entrada para o Grupo do Beco?

� Já participou de outros espetáculos teatrais antes do “Bendita”? Quais, quando, com quem?

� Participou no processo de criação da peça? Como?

� Teve algum envolvimento no processo de entrevista com as mulheres da vila? Qual?

� E na redação do texto da peça?

� E nos cenários, figurinos, enfim, na montagem em geral?

� Qual é, em sua opinião, a imagem que a peça “Bendita” passa da favela?

� Essa imagem é recebida de maneira diferente por moradores da vila e outras platéias? Como é em cada grupo?

� Para você, como é ser artista e morar na vila? Quais são os pontos positivos e as dificuldades dessa situação?

� Como você vê a produção cultural do Aglomerado? E de outras favelas da cidade?

� Você tem algum outro trabalho paralelo ou vive do teatro? Como vê essa questão?

� Para você, qual a importância do teatro e do Grupo do Beco em sua vida?

� Para você, o que é arte? Porque faz arte? O que te leva a querer continuar a

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ser artista?

� Para você, o que é cultura?

� O que a arte e a cultura te trazem de bom?

� Você tem expectativa de viver de teatro? Pretende um dia ganhar dinheiro como ator? O que pensa sobre a relação arte e dinheiro?

� Você gostaria de ser famoso? Tem pretensão de um dia fazer sucesso? O que é a fama e o sucesso para você?

� Para você, o que é a Cidade? O que ela tem de positivo? O que ela tem de negativo? Como ela trata a vocês, Grupo do Beco? E como ela trata a vocês, moradores de favela? O que você gostaria de dizer para a cidade? Com amor? E com raiva?

� E para você, o que é a Favela? O que ela tem de positivo? O que ela tem de negativo? Como ela trata vocês, Grupo do Beco? E como ela trata vocês, moradores da favela? O que você gostaria de dizer para a favela com amor? E com raiva?

� Trabalho – o que é para você? Qual o papel dele na sua vida?

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ANEXO D - Release - Grupo do Beco monta espetáculo com histórias das

mulheres do morro

O Grupo do Beco estreou, no último dia 8 de março – Dia Internacional da Mulher, o espetáculo “Bendita a Voz entre as Mulheres”, com direção de Júlio Maciel, ator do Grupo Galpão, e Ana Domitila, atriz e professora de teatro do Galpão Cine Horto. Esse trabalho é o resultado de quatro meses de pesquisas com mulheres do Aglomerado Santa Lúcia, conjunto de favelas que reúne cerca de 40 mil habitantes na região Centro-Sul de Belo Horizonte. O espetáculo é patrocinado pela Açoforja Indústria de Forjados S/A e faz parte do projeto “Mãos de Mulher”, desenvolvido pelo Grupo do Beco e aprovado pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Vinte mulheres, com idades entre 21 e, aproximadamente, 70 anos, contaram um pouco de suas vidas na comunidade, marcadas pela violência e também pela luta por melhores condições de vida. Elas revelaram vivências, experiências e sonhos permeados pelo machismo, pela discriminação racial e social. Essas mulheres retratam a diversidade de perfis existentes na comunidade. É o caso, por exemplo, da única mulher pastora do Aglomerado, da dona de casa que fica por conta dos filhos, da mulher que trabalha fazendo carretos, da líder comunitária e da mulher mais velha, dentre outras. O texto do espetáculo foi construído a partir dessas histórias, em processo colaborativo que envolveu o próprio Grupo do Beco, os diretores e a dramaturga Letícia Andrade. “Bendita a Voz entre as Mulheres” tem sido apresentado em escolas (públicas e particulares) de Belo Horizonte, bem como em espaços como o Galpão Cine Horto e o Centro Cultural da UFMG, atingindo público diversificado, tanto no que concerne às condições sociais quanto à idade (a classificação é para pessoas acima de 12 anos). No último dia 11 de setembro, o Grupo se apresentou no Teatro Marília, em BH, por ocasião do Projeto “Novos Registros”, promovido pelo Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. A apresentação de “Bendita” foi seguida de debate sobre o processo de produção do espetáculo, tendo em destaque a realização das entrevistas e utilização delas como fonte de pesquisa artística. As vinte gravações com os depoimentos das mulheres entrevistadas foram doadas pelo Grupo do Beco ao Arquivo Público da cidade. Construção de um Projeto – Paralelamente à preocupação com os temas sociais, a busca pela qualidade artística também é uma marca do Grupo do Beco, bem como o seu aprimoramento nos campos administrativo e de produção. Após a participação em diversas atividades do projeto “Arena da Cultura”, da PBH, entre elas o curso “Administração de Grupos Teatrais” em parceria com o Grupo Galpão, os integrantes do Grupo do Beco buscaram a experiência e a integração de vários artistas profissionais de Belo Horizonte ao Projeto “Mãos de Mulher”. Alguns deles: Babaya, Dudude Herrmann, Valéria Braga, Anthonio, Amaury Borges e Lica Gimarães. A partir daí, foram realizadas oficinas de expressão corporal,

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interpretação, improvisação, técnica vocal e musicalização. Também o artista plástico Leo Piló se integrou ao Grupo, assinando cenário e figurinos do espetáculo. Já a direção musical está sob a responsabilidade de Ricardo Garcia. Para Romulo Avelar, Assessor de Planejamento do Grupo Galpão, que há dois anos presta assessoria também ao Grupo do Beco, essa experiência é ímpar pelo poder de mobilização e pelo compromisso com a comunidade. “Esse trabalho é o primeiro passo para a consolidação de um novo movimento cultural no Aglomerado Santa Lúcia e tem como objetivo a abertura de oportunidades de crescimento para os jovens da região. Nesse aspecto, foi fundamental o envolvimento de uma empresa do porte da Açoforja, que abraçou o projeto com entusiasmo desde o início”, ressalta Avelar. Mãos de Mulher tem como desdobramentos importantes instrumentos de construção da memória coletiva do Aglomerado Santa Lúcia: o pequeno acervo de depoimentos das mulheres entrevistadas, além de incluir-se neste conjunto de instrumentos, serviu como matéria-prima para a produção de um videodocumentário, já em fase de edição e dirigido por Marcelo Braga (Emvídeo) – também produtor – e Rodolfo Vaz (ator do Grupo Galpão); também foi utilizado como fonte do trabalho acadêmico “AGLOMERADO SANTA LÚCIA – PARA ALÉM DO HORIZONTE PLANEJADO Representações do trabalho feminino nas histórias de vida de mulheres da periferia”, da moradora e estudante de história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Josemeire Alves, desenvolvido em 2002. Oito anos de estrada – Criado em 1995, o Grupo do Beco é composto por atrizes e atores da própria comunidade. Desde sua fundação, a reflexão social está presente em seus trabalhos. Em 2000, o Grupo montou o espetáculo “Quis 500?”, uma crítica sobre as comemorações dos 500 anos do Brasil. Em 1996 fora a vez de “Consumidores à Beira de um Ataque de Nervos”; 1998, “O Casal”; e, em 1999, “Casamento e Bronca na Roça”, “Coisa de Criança” e “O Afilhado da Morte”.

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ANEXO E – FICHA TÉCNICA DA PEÇA

Elenco Bruno Silva (Caxeta / Couves)

Célia Rodrigues (Dona Consolação) Cris Corrêa (Maria)

Ivanete Guedes (Anunciação / Bequete 1) Janete Maia (Celina / Bequete 2 / Vitória)

Maicon Sipriano (Samuel / Locutor) Nil César (Seu Zé / João - Jonny Cat)

Suzana Cruz (Bendita)

Direção Ana Domitila Júlio Maciel

Dramaturgia

Letícia Andrade (em processo colaborativo com os atores do Grupo do Beco e Direção)

Direção Musical Ricardo Garcia

Cenário, Figurino e Adereços

Leo Piló

Preparadora Vocal Valéria Braga

Oficinas Preparatórias

Amaury Borges e Lica Guimarães (Interpretação) Dudude Herrmann (Corpo) Anthônio (Técnica Vocal)

Valéria Braga (Técnica Vocal e Percepção Musical) Babaya (Técnica Vocal e orientação de Suzana Cruz)

Criação Gráfica Giovani Damásio

Assessoria de Imprensa

Márcia Maria

Assessoria de Comunicação Júnia Alvarenga

Fotografia Guto Muniz

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Produção Executiva Josemeire Alves

Assistentes de Produção

Graziane Gonçalves Meire Brito

Assessoria de Planejamento e Produção

Rômulo Avelar

Produção Grupo do Beco

Apoio

Grupo Galpão – Emvídeo – Paróquia Nossa Senhora do Morro – Paróquia Menino Jesus/ Comunidade N. Sra. De Nazaré – Lei Estadual de Incentivo à Cultura –

Studio Audioartte

Realização Grupo do Beco