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A crise do islão - Guerra Santa e Terror ímpio Bernard Lewis A Crise do Islão Guerra Santa e Terror ímpio Relógio D’Água Editores Rua Sylvio Rebelo, nº 15 1000-282 Lisboa tel. 21 8474450 fax: 21 8470775 www.relogiodagua.pt relogiodagua @ relogiodagua.pt © 2003 by Bernard Lewis Esta tradução é publicada por acordo com a Modern Library, uma marca da Random House Publishing Group, uma divisão da Random House, Inc. Título: A Crise do Islão - Guerra Santa e Terror ímpio Título original: The Crisis of Islam - Holy War and Unholy Terror (2003) Autor: Bernard Lewis Tradução: Margarida Periquito Revisão técnica: Alda Couto Capa: Relógio D’Água Editores sobre pormenor do Alhambra em Granada © Relógio D’Água Editores, Janeiro de 2006 Composição e paginação: Relógio D’Agua Editores Impressão: Rainho & Neves, Lda. / Sta. Maria da Feira Depósito Legal nº: 236829/05 Bernard Lewis A Crise do Islão

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A crise do islão - Guerra Santa e Terror ímpio

Bernard Lewis

A Crise do IslãoGuerra Santa e Terror ímpio

Relógio D’Água EditoresRua Sylvio Rebelo, nº 151000-282 Lisboatel. 21 8474450fax: 21 8470775

www.relogiodagua.pt

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© 2003 by Bernard Lewis

Esta tradução é publicada por acordo com a Modern Library,uma marca da Random House Publishing Group,uma divisão da Random House, Inc.

Título: A Crise do Islão - Guerra Santa e Terror ímpio

Título original: The Crisis of Islam - Holy War and Unholy Terror(2003)

Autor: Bernard Lewis

Tradução: Margarida Periquito

Revisão técnica: Alda Couto

Capa: Relógio D’Água Editores sobre pormenor do Alhambra em Granada

© Relógio D’Água Editores, Janeiro de 2006

Composição e paginação: Relógio D’Agua Editores

Impressão: Rainho & Neves, Lda. / Sta. Maria da Feira

Depósito Legal nº: 236829/05

Bernard Lewis

A Crise do Islão

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Guerra Santa e Terror Impio

Tradução Margarida Periquito

Antropos

A Harold Rhodecom amizade

Índice

MapasA Era dos Califas 11O Império Otomano 12A Era do Imperialismo 13O Médio Oriente Hoje 14Introdução 15I. Definição do Islão 29II. A Casa da Guerra 47III. Dos Cruzados aos Imperialistas 59IV. À Descoberta da América 71V. Satanás e os Soviéticos 83VI Modelos Ambíguos 97VII. Uma Falha da Modernidade 105VIII. O Casamento entre o Poder Saudita e a Doutrina Wahhabita 111IX. A Origem do Terrorismo 123

Agradecimentos 143

Epílogo 145

Notas 149

Nota: Os mapas referenciados no índice foram suprimidos desta versão digitalizada por não ser possível transcrevê-los para texto.

Introdução

O presidente Bush e outros políticos ocidentais têm-se esforçado para tornar claro que a guerra em que nós estamos envolvidos é uma guerra contra o terrorismo - não uma guerra contra os Árabes, nem, de modo mais generalizado, contra os muçulmanos, que são induzidos a unirem-se a nós nesta luta contra o inimigo comum. A mensagem de Osama bin Laden é o oposto. Para Bin Laden e os seus seguidores trata-se de uma guerra religiosa, uma guerra do Islão contra os infiéis, e por conseguinte, inevitavelmente, contra os Estados Unidos, a maior potência do mundo dos infiéis.Nas suas declarações, Bin Laden faz frequentes referências à história. Uma das mais dramáticas foi a menção que fez, na sua videocassete de 7 de Outubro de 2001, à

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«humilhação e ignomínia» que o Islão sofreu durante «mais de oitenta anos.» A maior parte dos observadores americanos - e também, sem dúvida, europeus - do cenário do Médio Oriente deram início a uma busca ansiosa de algo que tivesse acontecido há «mais de oitenta anos», e sugeriram várias respostas. Mas podemos estar certos de que os ouvintes muçulmanos de Bin Laden - aqueles a quem ele se dirigia - identificaram a alusão imediatamente e perceberam o seu sentido.Em 1918 o sultanato otomano, o último dos grandes impérios muçulmanos, foi finalmente derrotado - Constantinopla, a capital, foi ocupada, o soberano foi feito prisioneiro, e grande parte do seu território foi dividido entre os impérios britânico e francês, seus conquistadores. As anteriores províncias otomanas de língua árabe do Crescente Fértil foram divididas em três novas entidades, com novos nomes e novas fronteiras. Dois deles, o Iraque e a Palestina,

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ficaram sob jurisdição britânica; o terceiro, denominado Síria, foi atribuído aos Franceses. Mais tarde, a França dividiu o território sob sua administração em dois, chamando a uma das partes Líbano e conservando o nome Síria para a outra parte. Os Ingleses fizeram outro tanto na Palestina, criando uma divisão entre as duas margens do Jordão. O segmento oriental recebeu o nome de Transjordânia, e mais tarde passou a ser simplesmente Jordânia; o nome Palestina foi mantido, sendo reservado para o segmento ocidental, ou seja, a parte cisjordana do território.Nessa altura considerou-se que a Península Arábica, constituída em grande parte por desertos e montanhas áridos e inacessíveis, não justificava a maçada de a conquistar, tendo sido permitido aos seus governantes conservarem uma independência precária e limitada. Os Turcos acabaram por conseguir libertar a sua terra, a Anatólia, não em nome do Islão mas sim por acção de um movimento nacionalista secular, dirigido por um general otomano chamado Mustafá Kemal, mais conhecido por Kemal Ataturk. Ao mesmo tempo que lutou - com êxito - para libertar a Turquia do domínio do Ocidente, deu os primeiros passos no sentido da adopção dos costumes ocidentais, ou modernos, como ele preferia chamar-lhes. Um dos seus primeiros actos foi a abolição do sultanato, em Novembro de1922.O soberano otomano não era apenas um sultão que governava um estado específico; era também reconhecido por todos como o califa, o chefe de todo o Islão sunita, e o último de uma série de governantes que remontava à morte do profeta Maomé, em 632 d.C, e à nomeação de um sucessor para o substituir, não como chefe espiritual mas sim religioso e político, do estado e da comunidade muçulmana. Após uma curta experiência de um califa à parte, em Março de 1924 os Turcos aboliram também o califado.Durante os seus quase treze séculos, o califado passara por muitas vicissitudes, mas mantivera-se como um símbolo poderoso da unidade muçulmana e mesmo da sua identidade; o seu desaparecimento, devido ao duplo ataque de imperialistas estrangeiros e modernistas nacionais, foi sentido em todo o mundo muçulmano. Foram feitas algumas tentativas bastante timoratas por parte de diversos monarcas e líderes muçulmanos para reivindicar o título vago, mas nenhum deles obteve grande apoio. Muitos muçulmanos estão

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ainda dolorosamente conscientes desse vazio, e diz-se que o próprio Osama bin Laden tinha - ou tem - aspirações ao califado.A palavra «califa» vem do árabe khalifa, que, graças a uma ambiguidade muito conveniente, combina em si o significado de «sucessor» e de «substituto». Originalmente, o chefe da comunidade islâmica era «o Khalifa do Profeta de Deus». Alguns, mais ambiciosos, encurtaram o título para «o Khalifa de Deus». Esta pretensão de autoridade espiritual foi veementemente contestada e por fim posta de parte, embora houvesse um título que expressava uma pretensão semelhante - «a Sombra de Deus na Terra» -, que era largamente usado por governantes muçulmanos. Ao longo da maior parte da história da instituição, os detentores do califado contentaram-se com o título mais modesto de Amir al-Mu’minin, habitualmente traduzido por «Comandante dos Fiéis».Alusões históricas como a de Bin Laden, que podem parecer obscuras a muitos americanos, são comuns entre os muçulmanos, e só podem ser perfeitamente entendidas dentro do contexto da noção de identidade do Médio Oriente e tendo como pano de fundo a história do Médio Oriente. Os próprios conceitos de história e identidade requerem uma redefinição para o ocidental que tenta compreender o Médio Oriente contemporâneo. No uso americano actual, a frase «isso é história» usa-se comummente para rejeitar qualquer coisa por ela não ter importância, porque não é relevante para os interesses actuais, e embora se faça um enorme investimento no ensino e na escrita da história, o nível geral de conhecimento histórico da sociedade americana é abissalmente baixo. Os povos muçulmanos, como todos os outros neste mundo, são moldados pela sua história, mas, ao contrário de alguns outros, estão profundamente conscientes disso. Contudo, essa sua consciência data do advento do Islão, e inclui talvez algumas referências mínimas aos tempos pré-islâmicos, necessárias para compreender as alusões históricas presentes no Corão e nas tradições e crónicas islâmicas primitivas. Para os muçulmanos, a história islâmica tem um importante significado religioso e também legal, uma vez que reflecte a realização do desígnio de Deus para a Sua comunidade, ou seja, aqueles que aceitam os ensinamentos

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do Islão e obedecem à sua lei. A história dos estados e dos povos não-muçulmanos não transmite essa mensagem, e portanto é desprovida de valor ou de interesse. Mesmo nos países com uma civilização antiga como os do Médio Oriente, o conhecimento da história pagã dos seus próprios antepassados - cujos monumentos e inscrições se encontravam por toda a parte à sua volta - era mínimo. As línguas e escritas antigas foram esquecidas e os registos antigos queimados, até serem recuperados e decifrados nos tempos modernos por arqueólogos e filólogos curiosos. Mas, no que respeita ao período que tem início com o advento do Islão, os povos muçulmanos produziram uma rica e variada narrativa histórica - com efeito, em muitas regiões e até mesmo em países com uma culturaantiga, como a índia, os textos históricos sérios têm início com a chegada do Islão.Mas, história de quê? No mundo ocidental, a unidade básica de organização humana é a nação, que do ponto de vista americano - mas não do europeu - é sinónimo virtual de país. Este é depois dividido de várias maneiras, uma das quais pela religião. Os muçulmanos, porém, tendem para ver não uma nação dividida em grupos religiosos, mas uma religião dividida em nações. Não há dúvida que isto acontece, em parte, porque a maioria das nações-estado que constituem o actual Médio Oriente são de criação relativamente recente,

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vestígios da época de dominação imperial anglo-francesa que se seguiu à conquista do Império Otomano, que conservam a estrutura de estado e as demarcações de fronteira feitas pelos seus anteriores senhores imperiais. Até os seus nomes reflectem essa artificialidade: o Iraque era uma província medieval com fronteiras muito diferentes das da actual república, que não compreendia a Mesopotâmia a norte e incluía uma fatia da zona ocidental do Irão; Síria, Palestina e Líbia são nomes da antiguidade clássica, que não eram usados naquela região havia mil anos ou mais, até que foram recuperados e impostos - também eles com novas fronteiras, em muitos casos diferentes - pelos imperialistas europeus no século XX; Argélia e Tunísia nem sequer existem como palavras em árabe, e o mesmo vocábulo serve tanto para a cidade como para o país. O mais extraordinário de tudo é que na língua árabe não existe nenhuma palavra para Arábia, e designa-se a actual Arábia Saudita por «o reino saudito-árabe» ou «a península dos Árabes», dependendo do

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contexto. Isto não acontece por o árabe ser uma língua pobre - o contrário é que é verdade - mas simplesmente porque os Árabes não pensaram em termos de uma combinação das identidades étnica e territorial. Com efeito, o califa Umar é referido como tendo dito aos Árabes: «Aprendam quais as vossas genealogias, e não sejam como os camponeses locais que, quando lhes perguntam quem são, respondem: ”Sou de tal sítio assim e assim.

Nos primeiros séculos da era muçulmana, a comunidade islâmica era um único estado com um único governante. Mesmo depois de essa comunidade se dividir em muitos estados, o ideal de uma única comunidade política islâmica persistiu. Os estados eram quase todos dinásticos, com fronteiras variáveis, e é sem dúvida significativo que, na historiografia imensamente rica do mundo islâmico escrita em árabe, persa e turco, haja histórias de dinastias, de cidades e, sobretudo, do estado e da comunidade islâmicos, mas não existam histórias da Pérsia ou da Turquia. Estes nomes, ao contrário de Síria, Palestina ou Iraque, não designam entidades políticas novas, mas sim velhas, com séculos de independência e soberania. Contudo, até aos tempos modernos estes nomes também não existiam em árabe, persa ou turco. O nome Turquia, que designa um país habitado por pessoas a que se chama Turcos e que fala uma língua chamada turco, parece ajustar-se ao padrão europeu normal de identificar os países pelos nomes étnicos. Mas este nome só foi adoptado na Turquia depois da proclamação da república, em 1923. Pérsia é uma adaptação europeia, originalmente grega, do nome Pars, mais tarde Fars, que era o nome de uma província no oeste do Irão. Após a conquista árabe, como no alfabeto árabe não existe a letra p, passou a ser conhecida por Fars. Do mesmo modo que o castelhano passou a chamar-se espanhol, e o toscano passou a ser italiano, também o farsi, o dialecto regional de Fars, veio a ser a língua oficial do país, mas no uso persa o nome da província nunca foi aplicado ao país como um todo.Tanto os Árabes como os Turcos produziram uma vasta literatura descrevendo as suas lutas contra a Europa cristã, desde as primeiras incursões árabes no século VII até à retirada turca final, no século XX. Mas até à era moderna, em que as ideias e as categorias europeias se tornaram dominantes, os soldados, oficiais e historiadores quase nunca se referiam aos seus opositores em termos territoriais

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ou nacionais, mas simplesmente como infiéis (kâfir), e algumas vezes usando termos gerais imprecisos, como Francos ou Romanos. Do mesmo modo, nunca se referiam a si próprios como Árabes, Persas ou Turcos; identificavam-se como muçulmanos. Esta perspectiva ajuda a explicar, entre outras coisas, a preocupação do Paquistão com os Talibãs e os seus sucessores, no Afeganistão. O nome Paquistão, uma invenção do século XX, designa um país que é inteiramente definido pela sua religião e fidelidade ao islamismo. Em todos os outros aspectos, o país e o povo do Paquistão fazem parte da índia há milénios. Um Afeganistão caracterizado pela sua identidade islâmica seria um aliado natural, ou mesmo um satélite, do Paquistão. Ao passo que um Afeganistão caracterizado por uma nacionalidade étnica, pelo contrário, poderia ser um vizinho perigoso, que apresentaria reivindicações irredentistas em relação às zonas do noroeste do Paquistão de língua pashto, e que possivelmente até se aliaria à índia.As referências à história passada, e mesmo à história antiga, são um lugar-comum nos discursos públicos. Nos anos 80 do século XX, durante a guerra Irão-Iraque, por exemplo, ambas as partes promoveram enormes campanhas de propaganda que frequentemente evocavam acontecimentos e personalidades que remontavam a tempos tão antigos como o século VII, às batalhas de Qadisiyya (637 d.C.) e de Karbala (680 d.C). A batalha de Qadisiyya foi ganha pelos muçulmanos árabes que invadiram o Irão, contra o exército defensor do xá dos Persas, ainda não convertidos ao Islão, e portanto ainda pagãos e infiéis aos olhos dos muçulmanos. Por conseguinte, ambas as partes podiam reclamar a vitória como sua: para Saddam Hussein, era a vitória dos Árabes sobre os Persas, e para o Ayatollah Khomeini era a dos muçulmanos sobre os infiéis. As referências a estas batalhas não eram descrições ou narrações detalhadas, mas sim alusões breves e incompletas; no entanto, ambas as partes fizeram uso delas com a certeza de que seriam identificadas e compreendidas pelas suas respectivas audiências, até mesmo pelas largas percentagens dessas audiências que eram iletradas. É difícil imaginar que os comunicadores de propaganda de massas do Ocidente apresentem as suas ideias por meio de alusões que se reportem a épocas tão antigas, isto é, à heptarquia anglo-saxónica em Inglaterra ou aos monarcas carolíngios em França. Dentro desse

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mesmo espírito, Osama bin Laden insulta o presidente Bush comparando-o a um faraó, e acusa o vice-presidente Cheney e o secretário de Estado Powell (referidos em conjunto) de terem forjado uma devastação do Iraque, através da Guerra do Golfo em 1991, maior do que a que foi perpetrada pelos cãs mongóis que em meados do século XIII conquistaram Bagdad e destruíram o califado dos Abássidas. O conhecimento da história no Médio Oriente é fomentado pelo púlpito, pelas escolas e pelos meios de comunicação, e embora ele possa ser - e sem dúvida muitas vezes é - oblíquo e inexacto, é no entanto vivo e fortemente ressonante.A 23 de Fevereiro de 1998, oAl-Quds al-’Ambí, um jornal árabe publicado em Londres, editou o texto integral de uma «Declaração da Frente do Mundo Islâmico para ajihad contra os judeus e os cruzados». De acordo com a publicação, a declaração fora-lhes enviada por fax assinada por Osama bin Laden e pelos líderes dos grupos dâjihad no Egipto, Paquistão e Bangladesh. O texto - um magnífico fragmento de prosa árabe, eloquente e por vezes poético - revela uma versão da história que a maior parte dos ocidentais achará pouco

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comum. As afrontas de Bin Laden, tal como são reveladas neste documento, não são exactamente aquilo que muitos esperariam. A declaração começa com um exórdio que cita as passagens mais militantes do Corão e das palavras do profeta Maomé, e depois prossegue: «Desde que Deus criou a Península Arábica e o seu deserto e a rodeou pelos seus mares, nunca nela aconteceu uma calamidade como estas chusmas de cruzados que por ela se espalharam como gafanhotos, cobrindo o seu chão, comendo os seus frutos e destruindo a sua vegetação; e isto num tempo em que as nações contendem contra os muçulmanos como glutões que se acotovelam em volta de uma tigela de comida».A partir daqui o texto continua, falando da necessidade de compreender a situação e de agir por forma a corrigi-la. Os factos, diz, são do conhecimento de todos, e são apresentados em três tópicos principais.Primeiro - Há mais de sete anos que os Estados Unidos ocupam as terras do Islão no mais sagrado dos seus territórios, a Arábia, saqueando as suas riquezas, oprimindo os seus governantes, humilhando

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o seu povo, ameaçando os seus vizinhos, e usando as suas bases nesta península como uma ponta de lança para lutar contra os povos islâmicos vizinhos.Embora no passado alguns tenham discutido a verdadeira natureza desta ocupação, o povo da Arábia na sua totalidade já a reconheceu.Não há melhor prova disso do que a constante agressão americana contra o povo do Iraque, feita a partir da Arábia a despeito dos seus governantes, que se opõem, todos eles, à utilização do seu território para esse fim, mas que são dominados.Segundo - Apesar da enorme destruição infligida ao povo do Iraque às mãos da aliança entre cruzados e judeus, e apesar do terrível número de mortos, que excede um milhão, os Americanos contudo, não obstante tudo isso, estão uma vez mais a tentar repetir essa medonha carnificina. Parece que o longo bloqueio que se seguiu a uma guerra feroz, o desmembramento e a destruição não são bastante para eles. Por isso vêm hoje de novo para destruir o que resta deste povo e para humilhar os seus vizinhos muçulmanos.Terceiro - Embora os objectivos dos Americanos nestas guerras sejam de natureza religiosa e económica, também servem os interesses do insignificante estado dos judeus, para desviar as atenções da sua ocupação de Jerusalém e dos assassínios de muçulmanos aí perpetrados.Não há melhor prova de tudo isso do que a sua ânsia de destruir o Iraque, o mais forte dos estados árabes vizinhos, e a sua tentativa de desmembrar todos os estados da região, como o Iraque, a Arábia Saudita, o Egipto e o Sudão, em pequenos estados insignificantes, cuja divisão e enfraquecimento garantiriam a sobrevivência de Israel e a continuação da calamitosa ocupação das terras da Arábia pelos cruzados.Estes crimes, diz o texto a seguir, equivalem a uma «clara declaração de guerra dos Americanos contra Deus, o Seu profeta e os muçulmanos. Em tal situação, é opinião unânime do ulemá ao longo dos séculos que quando os inimigos atacam as terras muçulmanas, a Jihad passa a ser um dever pessoal de cada muçulmano». Os signatários citam diversas autoridades muçulmanas e prosseguem para a parte final e mais importante da sua declaração, afatwa, deixando expresso que «matar Americanos e os seus aliados, tanto civis como militares, é um dever pessoal de todos os muçulmanos que forem capazes de o fazer, em qualquer país onde isso seja possível,

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enquanto a mesquita Aqsa [em Jerusalém] e a mesquita Harâm [em Meca] não forem libertadas das suas garras, e enquanto os seus exércitos, destroçados e sem fôlego, não saírem de todas as terras do Islão, incapazes de ameaçar qualquer muçulmano».Depois de citar mais alguns versículos relevantes do Corão, o documento continua: «Com a permissão de Deus, apelamos a todos os muçulmanos que acreditam em Deus e que esperam ser recompensados por obedecer às ordens de Deus, para matarem os Americanos e saquearem os seus bens onde quer que os encontrem e sempre que puderem. Apelamos igualmente aos ulemás, líderes, jovens e soldados muçulmanos para lançarem ataques contra os exércitos dos demónios americanos e contra aqueles, de entre os ajudantes de Satanás, que são seus aliados». A declaração e ãfatwa encerram com mais uma série de citações das escrituras muçulmanas.

A Guerra do Golfo de 1991, no comum entendimento ocidental, foi uma iniciativa dos Estados Unidos e de uma coligação de árabes e outros aliados para libertar o Koweit da invasão e ocupação por parte do Iraque, e para proteger a Arábia Saudita de um ataque do Iraque. Ver esta guerra como um ataque americano contra o Iraque pode parecer um pouco estranho, mas é essa a perspectiva aceite por todos no mundo islâmico. À medida que a lembrança do ataque de Saddam Hussein ao Koweit se vai desvanecendo, as atenções concentram-se nas sanções contra o Iraque, nos aviões americanos e ingleses a patrulhar os céus a partir de bases na Arábia, no sofrimento do povo iraquiano e, cada vez mais, no visível apoio americano a Israel.As três zonas que eram objecto de queixas na declaração - Arábia, Iraque e Jerusalém - serão familiares aos observadores do cenário do Médio Oriente. Aquilo que pode ser menos familiar é a ordem pela qual são apresentadas e a ênfase com que são mencionadas. Isso não constituirá surpresa para quem for versado em história e literatura islâmicas. Nós, no Ocidente, temos tendência para esquecer que para os muçulmanos a Terra Santa por excelência é a Arábia, e sobretudo a região do Hejaz e as suas duas cidades santas - Meca, onde o Profeta nasceu, e Medina, onde ele

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fundou o primeiro estado muçulmano: o país cujo povo foi o primeiro a aderir à nova religião e se tornou o seu porta-estandarte. O profeta Maomé viveu e morreu na Arábia, o mesmo acontecendo com os seus sucessores imediatos, os califas, líderes da comunidade. Depois disso, com excepção de um breve período em que se fixou na Síria, o centro do mundo islâmico e cenário dos seus principais empreendimentos foi o Iraque, e a sua capital, Bagdad, foi a sede do califado durante meio milénio. Para os muçulmanos, é impensável renunciar de modo definitivo a qualquer parcela das terras em tempos acrescentadas ao reino do Islão, mas nenhuma se compara à Arábia e ao Iraque em importância.E dessas duas, a Arábia é de longe a mais importante. Os historiadores árabes clássicos dizem-nos que no ano 20 da era muçulmana, correspondente ao ano 641 d.C, o califa Umar decretou que os judeus e os cristãos deviam ser retirados da Arábia, com excepção das suas orlas sul e este, em cumprimento de uma determinação do Profeta pronunciada no seu leito de morte: «Não permitam que haja duas religiões na Arábia».Os povos em questão eram os judeus do oásis de Khaybar, a norte, e os cristãos de Najran,

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no sul. Ambos constituíam comunidades antigas e profundamente enraizadas, árabes pela língua, cultura e estilo de vida, que apenas diferiam dos seus vizinhos na religião.A atribuição destas palavras ao Profeta foi refutada por algumas autoridades islâmicas anteriores. Mas de um modo geral foi aceite e posta em vigor. A expulsão de minorias religiosas é extremamente rara na história islâmica; ao contrário do que se passou com a cristandade na Idade Média, para quem a expulsão de judeus e, após a reconquista, de muçulmanos, era normal e frequente. Em comparação com as expulsões realizadas na Europa, o decreto de Umar era não só limitado como clemente. Não incluía o Sul e o Sudeste da Arábia, que não eram considerados como fazendo parte da Terra Santa islâmica. E ao contrário dos judeus e muçulmanos expulsos de Espanha e de outros países europeus, que tiveram de procurar refúgio noutros lugares conforme puderam, os judeus e cristãos da Arábia foram realojados em terras que lhes foram atribuídas: os judeus na Síria e Palestina, e os cristãos no Iraque. Além disso, o processo foi gradual e não repentino, e há registo da presença de judeus e cristãos em Khaybar e Najran durante algum tempo após a publicação do

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decreto.A expulsão completou-se na devida altura, e desde então até agora a Terra Santa de Hejaz tem sido território proibido a não-muçulmanos. De acordo com a escola islâmica de jurisprudência aceite pelo estado saudita e por Osama bin Laden e seus sequazes, o simples facto de um não-muçulmano pôr o pé no solo sagrado é uma grande ofensa. No resto do reino, os não-muçulmanos, embora admitidos como visitantes temporários, não tinham autorização para fixar residência nem para praticar a sua religião. O porto de Jedda, no mar Vermelho, serviu durante muito tempo como uma espécie de zona de quarentena religiosa, na qual diplomatas, pessoal dos consulados e representantes comerciais estrangeiros tinham autorização para viver numa base estritamente temporária.A partir dos anos 30, a descoberta e exploração de petróleo e o consequente crescimento da capital saudita, Riade, que de uma pequena cidade de oásis se transformou numa grande metrópole, ocasionou muitas mudanças e uma afluência considerável de estrangeiros, predominantemente americanos, o que afectou o estilo de vida árabe em todos os seus aspectos. A sua presença, que ainda é vista por muitos como uma profanação, pode ajudar a explicar o crescente sentimento de indignação.A Arábia foi alvo de uma ameaça breve dos cruzados no século XII d.C. Depois da sua derrota e expulsão, a ameaça dos infiéis à Arábia que se registou a seguir teve início no século XVIII, com a consolidação do poder europeu no Sul da Ásia e o aparecimento de navios europeus, ou, noutras palavras, cristãos, ao largo das costas da Arábia. A sensação de ultraje daí resultante foi pelo menos um dos factores do despertar religioso incutido na Arábia pelo movimento wahhabita e liderado pela Casa de Saud (Su’ud em árabe), os fundadores do estado saudita. Durante o período de influência, e depois domínio, anglo-francês no Médio Oriente nos séculos XIX e XX, estas potências imperiais governaram o Egipto, o Sudão, o Iraque, a Síria e a Palestina. Depenicaram nas orlas da Arábia, em Adem e no golfo Pérsico, mas foram suficientemente prudentes para não terem qualquer envolvimento militar, e apenas um envolvimento político mínimo, nos assuntos da península.Enquanto esse envolvimento estrangeiro foi exclusivamente económico e as recompensas

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foram mais do que satisfatórias para mitigar

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todos os agravos, a presença dos forasteiros era suportável. Mas nos últimos anos as condições do compromisso mudaram. Com a queda dos preços do petróleo e o crescimento da população e dos gastos, as recompensas deixaram de ser satisfatórias; os agravos tornaram-se mais numerosos e mais sonoros. Nem o envolvimento se limita já às actividades económicas. A revolução no Irão, as ambições de Saddam Hussein e o consequente agravamento de todos os problemas da região, sobretudo o conflito israelo-palestino, acresceram dimensões políticas e militares ao envolvimento estrangeiro, e deram uma certa plausibilidade aos gritos de «imperialismo» que se ouvem cada vez mais. Quando a sua Terra Santa está em causa, muitos muçulmanos tenderão a classificar a luta, e por vezes também o inimigo, em termos religiosos, e a ver as tropas americanas, enviadas para libertar o Koweit e para proteger a Arábia Saudita de Saddam Hussein, como invasores e ocupantes infiéis. Esta ideia é intensificada pela inquestionável primazia da América entre as potências do mundo infiel.Para a maioria dos Americanos, a declaração de Bin Laden é uma mascarada, uma enorme distorção da natureza e do objectivo da presença americana na Arábia. E deviam também estar conscientes de que para muitos, talvez mesmo para a maioria dos muçulmanos, aquela declaração é uma mascarada igualmente grotesca da natureza do Islão, e também da sua doutrina à Jihad. O Corão tanto fala de paz como de guerra. As centenas de milhar de tradições e de dizeres atribuídos ao Profeta, com um grau de credibilidade variável e por vezes interpretados de maneiras muito diversas, proporcionam uma vasta série de exemplos, sendo a interpretação militante e violenta da religião um entre muitos.Entretanto, um número considerável de muçulmanos está pronto para aprovar, e alguns deles para pôr em prática, esta interpretação da sua religião. O terrorismo necessita apenas de alguns. Obviamente, o Ocidente deve defender-se por todos os meios que possam ser eficazes. Mas para planear os meios para combater os terroristas, seria sem dúvida útil compreender quais as forças que os impelem.

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I

Definição do Islão

É difícil generalizar acerca do Islão. Para começar, a própria palavra é habitualmente usada com dois significados relacionados mas distintos, equivalentes a cristianismo e cristandade. Num dos sentidos designa uma religião, um sistema de fé e de culto; no outro, designa a civilização que cresceu e floresceu sob a égide dessa religião. Por conseguinte, a palavra «Islão» designa mais de catorze séculos de história, 1,3 biliões de pessoas, e uma tradição religiosa e cultural de enorme diversidade. Cristianismo e cristandade representam um número maior e um período de tempo mais longo: mais de 2 biliões de pessoas, mais de vinte séculos, e uma diversidade ainda maior. Contudo, algumas generalizações podem ser e são feitas acerca daquilo a que variavelmente se chama civilização cristã, judaico-cristã, pós-cristã e - de modo mais simples - civilização ocidental. Embora generalizar acerca da

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civilização islâmica possa ser difícil e por vezes, num certo sentido, perigoso, não é contudo impossível, e de certo modo pode ser útil.Em termos de espaço, o reino do Islão estende-se de Marrocos à Indonésia, e do Cazaquistão ao Senegal. Em tempo, remonta a mais de catorze séculos atrás, ao advento e missão religiosa do profeta Maomé na Arábia no século VII d.C, e à criação, sob a sua liderança, da comunidade e do estado islâmicos. No período que é visto pelos historiadores europeus como um interlúdio de trevas entre as antigas civilizações - Grécia e Roma - e o aparecimento da civilização moderna - Europa -, o Islão era a civilização dominante no

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mundo, caracterizada como tal pelos seus grandes e poderosos reinos, a sua indústria e comércio ricos e diversificados, e pela originalidade e criatividade das suas ciências e letras. O Islão foi, muito mais que a cristandade, o estádio intermédio entre o Oriente antigo e o Ocidente moderno, para o qual contribuiu notavelmente. Mas durante os últimos três séculos, o mundo islâmico perdeu o seu domínio e liderança, ficando para trás em relação ao Ocidente moderno e também ao Oriente em processo de modernização rápida. Esta brecha que se alarga coloca problemas cada vez mais prementes, tanto de natureza prática como emocional, para os quais os governantes, os pensadores e os rebeldes do Islão ainda não encontraram respostas eficazes.O Islão, como religião, está em todos os aspectos muito mais próximo da tradição judaico-cristã do que de qualquer das grandes religiões da Ásia, como o hinduísmo, o budismo e o confucionismo. O judaísmo e o Islão partilham a crença numa lei divina que regula todos os aspectos da actividade humana, incluindo até a comida e a bebida. Cristãos e muçulmanos partilham um triunfalismo comum. Em contraste com as outras religiões da humanidade, incluindo o judaísmo, acreditam que somente eles são os afortunados receptores e guardiões da mensagem final de Deus à humanidade, que têm a obrigação de levar ao resto do mundo. Comparadas com as mais remotas religiões do Leste, as três religiões do Médio Oriente -judaísmo, cristianismo e Islão - são todas estreitamente aparentadas, e surgem como variantes da mesma tradição religiosa.A cristandade e o Islão são em muitos aspectos civilizações irmãs, bebendo ambas da herança comum da revelação e da profecia judaicas e da filosofia e ciência gregas, e alimentando-se ambas das tradições imemoriais da Antiguidade no Médio Oriente. Durante a maior parte da sua história comum têm travado uma luta corpo-a-corpo, mas mesmo envolvidas em luta e em polémica revelam o seu parentesco essencial e os aspectos comuns que as ligam uma à outra e as separam das civilizações mais remotas da Ásia.Mas do mesmo modo que há semelhanças, há também disparidades profundas entre elas, que vão para além das diferenças óbvias no que respeita a dogmas e ao culto. Diferenças essas que são mais profundas - e mais evidentes - nas atitudes dessas duas religiões, e dos seus representantes autorizados, perante as relações entre governo, religião e sociedade, do que em qualquer outro aspecto. O

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fundador do cristianismo ordenou aos seus seguidores: «dai a César aquilo que é de César; e a Deus aquilo que é de Deus» (Mateus, XXI 121); e durante séculos o cristianismo cresceu e desenvolveu-se como uma religião dos oprimidos, até que, com a conversão do

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imperador Constantino ao cristianismo, o próprio César se tornou cristão e deu início a uma série de mudanças, pelas quais a nova religião conquistou o Império Romano e transformou a sua civilização. O fundador do Islão foi o seu próprio Constantino, que fundou o seu estado e império próprios. Por conseguinte ele não criou - ou não precisou de criar - uma igreja. A dicotomia regnum e sacerdotium, tão crucial na história da cristandade do Ocidente, não teve equivalência no Islão. Durante a vida de Maomé, os muçulmanos tornaram-se imediatamente uma comunidade política e religiosa, com o Profeta como chefe de Estado. Nessa qualidade, ele governou um lugar e um povo, exerceu a justiça, cobrou impostos, comandou exércitos, declarou a guerra e fez a paz. A primeira, e fundadora, geração de muçulmanos, cujas aventuras constituem a história sagrada do Islão, não foi posta à prova durante muito tempo através de perseguições nem teve uma história de resistência a um poder estatal hostil. Muito pelo contrário, o estado que os governava era o do Islão, e a aprovação dada por Deus à sua causa foi-lhes manifestada na forma de vitória e império neste mundo.Na Roma pagã, César era Deus. Para os cristãos, há uma escolha entre Deus e César, e gerações infinitas de cristãos foram apanhadas na ratoeira dessa escolha. No Islão não houve uma escolha dolorosa como essa. Na nação islâmica universal tal como é concebida pelos muçulmanos, não existe César mas apenas Deus, que é o único soberano e a única fonte emanadora de leis. Maomé foi o Seu profeta, que ao longo da sua vida ensinou e governou em nome de Deus. Quando Maomé morreu, em 632 d.C, a sua missão espiritual e profética de levar à humanidade o livro de Deus estava completa. O que faltava realizar era a tarefa religiosa de propagar a revelação de Deus até que todo o mundo a tivesse aceitado. Isto seria conseguido através do alargamento da autoridade, e, portanto, do número de membros da comunidade que abraçava a verdadeira fé e fazia com que a lei de Deus fosse cumprida. Para garantir a coesão e liderança necessárias a esta tarefa, era preciso um representante ou sucessor do Profeta. A palavra árabe khalifa foi o título adoptado

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pelo sogro de Maomé e seu primeiro sucessor, Abu Bakr, cuja ascensão à chefia da comunidade islâmica representou a fundação da grande instituição histórica do califado.Sob os califas a comunidade de Medina, onde o Profeta tinha sido empossado, em apenas um século transformou-se num vasto império, e o Islão tornou-se uma religião mundial. Na experiência dos primeiros muçulmanos, que foi preservada e registada para as gerações futuras, a verdade religiosa e o poder político estavam indissoluvelmente associados: a primeira santificava o segundo e o segundo apoiava a primeira. O Ayatollah Khomeini uma vez fez notar que «o Islão ou é política ou não é nada». Nem todos os muçulmanos iriam tão longe, mas a maioria concordaria que Deus se ocupa de política, crença essa que é confirmada e apoiada pela shari’a, a Lei Santa, que se ocupa extensivamente da aquisição e exercício do poder, da natureza da legitimidade e da autoridade, dos deveres do governante e do súbdito, resumindo, daquilo a que nós, no Ocidente, chamaríamos lei constitucional e filosofia política.A longa interacção entre Islão e cristianismo e as muitas semelhanças e influências mútuas entre os dois têm levado por vezes os observadores a negligenciar algumas diferenças significativas. Diz-se que o Corão é a Bíblia muçulmana; que a mesquita é a igreja muçulmana; que os ulemás são o clero muçulmano. As três afirmações são verdadeiras, no entanto, todas elas são seriamente enganadoras. O Antigo e o Novo Testamento são ambos

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constituídos por colectâneas de livros vários, abrangendo um vasto período de tempo e vistos pelos crentes como contendo a revelação divina. O Corão, para os muçulmanos, é um simples livro, feito de uma vez só por um só homem, o profeta Maomé. Depois de um debate ao vivo nos primeiros séculos do Islão, foi adoptada a doutrina de que o Corão em si é indestrutível e eterno, divino e imutável. Isto tornou-se um princípio básico da religião.A mesquita é de facto a igreja muçulmana, na medida em que é um lugar de culto comunal. Mas não se pode falar «da mesquita» como se fala «da Igreja», isto é, de uma instituição com a sua própria hierarquia e as suas leis, destacada do Estado. Os ulemás (que no Irão e nos países muçulmanos influenciados pela cultura persa são conhecidos por mulas) podem ser definidos como um clero em sentido sociológico, enquanto profissionais da religião, acreditados

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como tal através de instrução adequada e diploma. Mas no Islão não existe sacerdócio - não há mediação sacerdotal entre Deus e o crente, não há ordenação, nem sacramentos, nem rituais que só um clero ordenado pode celebrar. No passado poder-se-ia acrescentar que não há concílios nem sínodos, nem bispos para definir a ortodoxia ou inquisidores para a fazer cumprir. Hoje isto já não é inteiramente verdade, pelo menos no Irão.A função fundamental do ulemá - deriva de uma palavra árabe que significa «conhecimento» - é fazer cumprir e interpretar a Lei Santa. A partir de finais da Idade Média começou a surgir algo semelhante a um clero paroquial, que acudia às necessidades das pessoas comuns em cidades e aldeias, mas que habitualmente nada tinha a ver com os ulemás nem merecia a confiança destes, estando mais relacionado com o Islão místico do que com o dogmático. Nas últimas monarquias islâmicas da Turquia e do Irão apareceu uma espécie de hierarquia eclesiástica, mas que não tinha raízes na tradição muçulmana clássica, e os membros dessas hierarquias nunca exigiram, e muito menos exerceram, os poderes dos prelados cristãos. Nos tempos modernos houve muitas alterações, sobretudo devido a influências ocidentais, e surgiram instituições e profissões que apresentam semelhanças suspeitas com as igrejas e os clérigos cristãos. Mas representam um afastamento do Islão clássico, e não um regresso a ele.Se é possível falar de um clero no mundo islâmico num sentido sociológico limitado, de laicidade, porém, não é possível falar em sentido nenhum. A simples ideia de algo separado ou possível de separar da autoridade religiosa, que em linguagem cristã se exprime por termos como «leigo, temporal ou secular», é totalmente estranha ao pensamento e à prática islâmicos. Só em tempos relativamente recentes surgiram vocábulos equivalentes a estes em árabe. Foram copiados dos usados por cristãos de língua árabe, ou inventados recentemente.Desde os tempos do Profeta que a sociedade islâmica teve um carácter duplo. Por um lado, era uma nação - uma chefatura que se tornou sucessivamente um estado e um império. Por outro lado era, ao mesmo tempo, uma comunidade religiosa fundada por um profeta e governada pelos seus representantes, que eram também seus sucessores. Cristo foi crucificado, Moisés morreu sem ter entrado na

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terra prometida, e as crenças e atitudes dos seus seguidores religiosos continuam a ser

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profundamente influenciadas pela lembrança destes factos. Maomé triunfou em vida, e morreu como um soberano e um conquistador. As atitudes muçulmanas daí resultantes só podem ter sido confirmadas pela história posterior da sua religião. Na Europa ocidental, os invasores bárbaros mas susceptíveis de aprendizagem vieram para onde já existia um estado e uma religião: o Império Romano e a Igreja Cristã. Os invasores reconheceram ambos e tentaram satisfazer os seus próprios objectivos e necessidades dentro das estruturas existentes da nação romana e da religião cristã, que usavam ambas a língua latina. Os invasores muçulmano-árabes que conquistaram o Médio Oriente e o Norte de África trouxeram consigo a sua própria religião, com as suas próprias escrituras escritas na sua própria língua; criaram a sua própria nação, com um novo conjunto de leis, uma nova língua imperial e uma nova estrutura imperial, com o califa como chefe supremo. Este estado e este governo foram definidos pelo Islão, e só podiam considerar-se seus membros aqueles que professavam a religião dominante.A carreira do profeta Maomé, modelo que todos os bons muçulmanos desejam emular, nisso e em tudo o mais, divide-se em duas partes. Na primeira, durante os anos que passou no seu lugar de nascimento, Meca (7570-622), ele era um antagonista da oligarquia pagã reinante. Na segunda, depois de se mudar de Meca para Medina (622-632), foi o chefe de um Estado. Estas duas fases da carreira do Profeta, uma de resistência e outra de governação, estão ambas reflectidas no Corão, onde, em diferentes capítulos, se ordena aos crentes que obedeçam ao representante de Deus e desobedeçam ao faraó, paradigma do governante injusto e tirano. Esses dois aspectos da vida e do trabalho do Profeta inspiraram duas tradições no Islão: uma autoritária e quietista, e outra radical e activista. Ambas estão amplamente reflectidas, por um lado no desenvolvimento da tradição, e por outro no desenrolar dos acontecimentos. Nem sempre foi fácil determinar quem era o representante de Deus e quem era o faraó; muitos livros foram escritos e muitas batalhas se travaram, na tentativa de o fazer. O problema persiste, e ambas as tradições são ainda claramente visíveis nas polémicas e lutas dos nossos dias.Entre os extremos do quietismo e do radicalismo existe uma atitude de reserva, e mesmo de desconfiança, em relação ao governo,

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muito difundida e bastante explícita. Exemplo disso é a diferença nítida de atitude que era comum, na época medieval, para com o qadi, um juiz, e o mufti, um jurisconsulto segundo a Lei Santa. O qadi, que era nomeado pelo chefe do governo, é apresentado na literatura e no folclore como uma figura corrupta e até ridícula; o mufti, instituído no Islão medieval com o reconhecimento dos seus colegas e da população em geral, gozava de consideração e respeito. Um topos das biografias de homens piedosos - que temos às centenas de milhar - é ser oferecida ao herói uma nomeação para o governo e ele recusar. A oferta comprova a sua erudição e reputação, e a recusa, a sua integridade.Na época otomana deu-se uma mudança importante. O qadi adquiriu muito mais poder e autoridade, e mesmo o mufti foi integrado no quadro público de autoridade. Mas a velha atitude de desconfiança para com o governo persistiu, e é frequentemente expressa em provérbios, contos populares e até na literatura erudita.Durante mais de mil anos, o Islão proporcionou o único conjunto de regras e princípios universalmente aceitáveis para regulamentar a vida pública e social. Mesmo durante o período de máxima influência europeia, nos países governados ou dominados pelas

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potências imperiais europeias e também naqueles que se mantiveram independentes, as ideias e atitudes políticas islâmicas continuaram a ter uma influência profunda e difusa. Em anos recentes tem havido muitos sinais de que estas ideias e atitudes podem estar a recuperar a sua antiga influência, embora sob formas alteradas.

É no campo da política - tanto nacional, como regional ou internacional - que nós observamos as mais notáveis diferenças entre o Islão e o resto do mundo. Os chefes de Estado ou ministros dos Negócios Estrangeiros dos países escandinavos e do Reino Unido não se reúnem de tempos em tempos em conferências de líderes protestantes, nem nunca foi prática corrente dos governantes da Grécia, Jugoslávia, Bulgária e União Soviética realizar encontros regulares, com base na sua actual ou passada adesão à Igreja Ortodoxa, esquecendo temporariamente as suas divergências políticas e ideológicas. De modo análogo, os estados budistas do Este e Sudeste

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da Ásia não constituem um bloco budista nas Nações Unidas, nem em nenhuma das suas actividades políticas. A simples ideia de agrupamentos desse género, baseados na religião, no mundo actual pode parecer anacrónica e até absurda. Mas no que respeita ao Islão, não é anacrónica nem absurda. Durante os tempos de tensão da guerra fria e mesmo depois, mais de cinquenta governos muçulmanos - incluindo monarquias e repúblicas, conservadores e radicais, regimes capitalistas e socialistas, apoiantes do bloco do Ocidente, o bloco do Oriente, e um conjunto de diversos graus de neutralidade - constituíram um elaborado organismo de consulta, e em muitos casos de cooperação, internacional.Em Setembro de 1969, numa conferência de líderes islâmicos realizada em Rabat, Marrocos, decidiu-se criar um organismo a que se chamaria Organização da Conferência Islâmica (OCI), com um secretariado permanente em Jedda, na Arábia Saudita. Esse organismo foi devidamente criado e desenvolveu-se rapidamente na década de 70. A OCI preocupava-se sobretudo com a ajuda aos países muçulmanos pobres, o apoio às minorias muçulmanas em países não-muçulmanos, e com a situação internacional do Islão e dos muçulmanos - os direitos islâmicos do homem, nas palavras de um observador.Essa organização conta agora com cinquenta e sete estados membros, mais três com o estatuto de observadores. Dois desses estados, a Albânia e a Turquia, estão ou aspiram a estar na Europa (a Bosnia tem apenas estatuto de observador); outros dois, o Suriname (admitido em 1996) e a Guiana (admitida em 1998), situam-se no hemisfério ocidental. Os restantes situam-se na Ásia e na África, e, com poucas excepções, obtiveram no último meio século a independência de países da Europa ocidental ou, mais recentemente, do império soviético. A maior parte deles são esmagadoramente muçulmanos em termos de população, mas alguns foram admitidos com base nas suas significativas minorias muçulmanas. Além destes estados, existem minorias muçulmanas importantes noutros países - algumas delas semelhantes à maioria, como na índia, outras étnica e religiosamente diferentes, como os Tchetchenos e os Tártaros da Federação Russa. Alguns países, como a China, têm minorias muçulmanas dessas duas categorias. Vários outros países estão agora a adquirir minorias muçulmanas através da imigração.

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Houve e continua a haver limites importantes à eficácia da OCI como factor da política internacional. A invasão soviética do Afeganistão em 1979, um acto flagrante de agressão contra uma nação muçulmana soberana, não suscitou protestos sérios e foi até defendida por alguns estados membros. Mais recentemente, a organização não mostrou qualquer interesse pelas guerras civis ocorridas em estados membros como o Sudão e a Somália. A sua folha de serviços no que toca a questões regionais também não é impressionante. Entre 1980 e 1988, dois países islâmicos, o Iraque e o Irão, travaram uma guerra devastadora, tendo infligido um ao outro danos enormes. A OCI nada fez para evitar essa guerra nem para lhe pôr fim. Dum modo geral, a OCI, ao contrário da Organização dos Estados Americanos e da Organização da Unidade Africana, não dá atenção às violações dos direitos humanos e outros problemas internos dos estados membros; as suas preocupações com os direitos humanos têm-se limitado aos muçulmanos que vivem em estados não-muçulmanos, sobretudo na Palestina. Contudo, a OCI não pode ser menosprezada. As suas actividades culturais e sociais são importantes e estão em crescimento, e os mecanismos que ela proporciona para uma regular troca de impressões entre os estados membros pode crescer em importância à medida que a guerra fria e o factor de separação que ela representava se diluem no passado.Passando da política internacional e regional para a interna, a diferença entre o Islão e o resto do mundo, embora menos notável, é ainda assim substancial. Em alguns dos países que têm regimes de democracia multipartidária, há partidos políticos que têm designações religiosas - cristãs no Ocidente, hindus na índia, e budistas no Oriente. Mas esses partidos são em número relativamente reduzido, e aqueles que desempenham um papel de relevo são ainda menos. E mesmo nestes, os temas religiosos são habitualmente de pouca importância nos seus programas e nas suas formas de atrair o eleitorado. Contudo, em muitos países islâmicos, aliás na maior parte deles, a religião continua a ser um factor político fundamental - muito mais, de facto, nos assuntos internos, do que nos internacionais ou nos regionais. Porquê tal diferença?Há uma resposta que é óbvia: os países muçulmanos, na sua maioria, são ainda profundamente muçulmanos, duma forma e num sentido que os países cristãos, na sua maior parte, já não são cristãos.

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Temos de reconhecer que em muitos desses países a fé cristã e o clero que a defende ainda representam uma força poderosa, e embora o seu papel já não seja o que foi em séculos passados, não se pode dizer que é insignificante. Mas actualmente, não há nenhum país cristão em que os líderes religiosos possam contar com o grau de fé e de participação que continua a ser normal em terras muçulmanas. Em poucos países cristãos, ou mesmo em nenhum, os valores sagrados cristãos gozam de imunidade ao comentário ou discussão crítica que é aceite como normal até nas sociedades muçulmanas ostensivamente seculares e democráticas. Com efeito, essa imunidade privilegiada foi alargada aos países ocidentais onde existem agora comunidades muçulmanas, e onde a fé e as práticas religiosas muçulmanas gozam de um nível de imunidade à crítica que as maiorias cristãs perderam e as minorias judaicas nunca tiveram. Particularmente importante é o facto de, com muito poucas excepções, o clero cristão não exercer e nem sequer reclamar a espécie de autoridade pública que ainda é normal e aceite na maioria dos países muçulmanos.O nível mais elevado de fé e de prática religiosa entre os muçulmanos em comparação com

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os crentes de outras religiões explica em parte a atitude única dos muçulmanos em relação à política; não constitui a explicação completa, pois pode-se encontrar a mesma atitude em indivíduos e até em grupos cuja relação com a fé e a prática religiosa é, no mínimo, negligente. O Islão não é apenas uma questão de fé e de prática religiosa; é também uma identidade e uma lealdade - para muitos, uma identidade e uma lealdade que transcende qualquer outra.A superfície, a importação das noções ocidentais de patriotismo e nacionalismo alterou tudo isto e levou à criação de uma série de modernos estados-nação que se estendem através do mundo islâmico, de Marrocos à Indonésia.Mas nem tudo é aquilo que à superfície parece ser. Dois exemplos devem bastar. Em 1923, depois da última guerra greco-turca, os dois governos concordaram em resolver os seus problemas de minorias com uma troca de populações: foram enviados Gregos da Turquia para a Grécia, e Turcos da Grécia para a Turquia. Pelo menos, é assim que os livros de história costumam contar o episódio. Os factos foram um pouco diferentes. O protocolo que os dois governos assinaram

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em Lausana em 1923, que incluía o acordo de troca, não fala em «Gregos» e «Turcos». Designa as pessoas a trocar por «súbditos turcos de religião ortodoxa grega residentes na Turquia» e «súbditos gregos de religião muçulmana residentes na Grécia». Por conseguinte, o protocolo reconhece apenas dois tipos de identidade: uma definida pelo facto de se ser súbdito de um estado, e outra por se ser crente de uma religião. Não faz qualquer referência a nacionalidade étnica ou linguística. A precisão com que este documento expressa as intenções dos signatários foi confirmada pela troca efectiva. Muitos dos chamados Gregos da província turca de Karaman, na Anatólia, tinham o turco como língua materna, mas escreviam-no em caracteres gregos e praticavam o culto em igrejas ortodoxas. Muitos dos chamados Turcos da Grécia sabiam pouco ou nada de turco e habitualmente falavam grego, mas escreviam-no em caracteres turco-árabes. Um observador ocidental, acostumado a um método de classificação ocidental, poderia muito bem ter concluído que aquilo que os governos da Grécia e da Turquia acordaram e cumpriram não foi uma troca e repatriamento de minorias nacionais gregas e turcas, mas sim uma dupla deportação para o exílio - de Gregos muçulmanos para a Turquia e de Turcos cristãos para a Grécia. Até muito recentemente a Grécia e a Turquia, duas democracias em processo de ocidentalização, uma delas membro da União Europeia e a outra aspirante a sê-lo, tinham nos seus documentos de identificação emitidos pelo Estado uma linha para a religião.O segundo exemplo é o Egipto. Poucas nações haverá, se é que há alguma, com mais direito a reivindicar o estatuto de nação: é um país claramente definido tanto pela história como pela geografia, com uma história de civilização contínua que remonta a mais de cinco mil anos atrás. Mas os Egípcios têm várias identidades, e durante a maior parte dos últimos catorze séculos, ou seja, desde a conquista árabo-islâmica do Egipto no século VII e a subsequente islamização e arabização do país, a identidade egípcia raramente foi a predominante, concedendo essa honra à identidade cultural e linguística do arabismo e, durante a maior parte da sua história, à identidade religiosa do Islão. O Egipto, como nação, é uma das mais velhas do mundo. Como estado-nação o Egipto é uma instituição moderna, e enfrenta ainda muitos desafios internos. Actualmente, o mais forte desses desafios, tanto no Egipto como noutros países

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muçulmanos, é constituído pelos grupos radicais islâmicos hoje vulgarmente designados, ainda que erroneamente, por «fundamentalistas».

Desde os tempos do seu fundador, e portanto das suas sagradas escrituras, que o Islão está associado, nas mentes e na memória dos muçulmanos, ao exercício do poder político e militar. O Islão clássico reconhecia uma distinção entre as coisas deste mundo e as do outro, entre considerações de natureza religiosa e de natureza mundana. Não reconhecia uma instituição à parte, com uma hierarquia e leis próprias, para regulamentar as questões religiosas.Significa isto que o Islão é uma teocracia? No sentido em que Deus é visto como o soberano supremo, a resposta teria de ser sim. No sentido de um governo exercido por um clero, a resposta é definitivamente não. O aparecimento de uma hierarquia clerical que assumiu a autoridade suprema dentro do estado é uma inovação recente e é um contributo sem paralelo do falecido Ayatollah Khomeini, do Irão, para o pensamento e os usos islâmicos.A Revolução Islâmica no Irão, tal como as Revoluções Francesa e Russa, com as quais tem muitas semelhanças, teve um impacte tremendo não só no próprio país e no seu povo, mas também em todos os países e povos com os quais partilhava um universo comum de raciocínio. Como aconteceu com as Revoluções Francesa e Russa nos seus tempos, originou uma esperança e um entusiasmo extraordinários. Tal como aquelas revoluções, passou pelo seu Terror e pela sua Guerra de Intervenção; à semelhança delas, tem os seus jacobinos e bolcheviques, determinados a esmagar qualquer sinal de pragmatismo ou moderação. E tal como essas revoluções anteriores, sobretudo a russa, possui a sua rede própria de agentes e emissários que se esforçam de diversas maneiras para promover a causa da revolução ou, pelo menos, do regime que é visto como a sua encarnação.A palavra «revolução» tem sido usada muito abusivamente no Médio Oriente moderno, sendo aplicada - ou reivindicada a sua aplicação - a muitos acontecimentos que seriam designados de modo mais adequado pela expressão francesa coup d’etat, a alemã Putsch, ou a espanhola pronunciamiento. A experiência política dos povos de língua inglesa, curiosamente, não dispõe de um vocábulo41

equivalente. O que aconteceu no Irão não foi nada disso, mas nas suas origens foi um autêntico movimento revolucionário de mudança. Como as suas antecessoras, correu muito mal em muitos aspectos, tendo levado à tirania no país e ao terror e subversão fora dele. Ao contrário da França e da Rússia revolucionárias, ao Irão revolucionário faltam os meios, os recursos e as competências para se tornar uma grande potência e uma ameaça mundial. A ameaça que ele representa recai em primeiro lugar e de maneira esmagadora sobre os muçulmanos e o próprio Islão.

A onda revolucionária do Islão tem várias componentes. Uma delas é um sentimento de humilhação: o sentimento de uma comunidade de indivíduos habituados a considerarem-se os únicos guardiões da verdade de Deus, encarregados por Ele de a levarem aos infiéis, que de repente se vêem dominados e explorados por esses mesmos infiéis e, mesmo quando já não dominados, ainda

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profundamente afectados de uma maneira que altera as suas vidas, afastando-os dos verdadeiros caminhos do Islão para outros caminhos. À humilhação juntou-se a frustração à medida que as várias soluções, a maior parte delas importadas do Ocidente, foram sendo experimentadas e uma após outra falharam.

Depois da humilhação e da frustração veio uma terceira componente, necessária ao ressurgimento: uma nova confiança e sensação de poder. Teve origem na crise do petróleo de 1973, quando, em apoio à guerra do Egipto contra Israel, os países árabes produtores de petróleo usaram o fornecimento e o preço do petróleo como aquilo que comprovadamente foi uma arma muito eficaz. A riqueza, o orgulho e a autoconfiança daí resultantes foram reforçados por outro elemento novo: o desprezo. Relacionando-se mais de perto com a Europa e a América, os visitantes muçulmanos começaram a ver e a descrever aquilo que viam como a depravação moral e consequente fraqueza da civilização ocidental.Numa época de tensões intensas, de ideologias vacilantes, de lealdades desgastadas e instituições a desmoronarem-se, uma ideologia expressa em termos islâmicos oferecia várias vantagens: uma base comovedoramente familiar de identidade de grupo, solidariedade e exclusão; uma base aceitável de legitimidade e autoridade; e uma formulação de princípios de compreensão imediata para uma crítica do presente e um programa para o futuro. Através delas, o Islão

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podia proporcionar os mais eficazes símbolos e slogans de mobilização, a favor ou contra uma causa ou um regime.Os movimentos islâmicos têm ainda outra vantagem enorme em relação a toda a concorrência. Nas mesquitas, dispõem de uma rede de associação e de comunicação que nem o governo mais ditatorial consegue controlar totalmente. Com efeito, as ditaduras implacáveis favorecem-nos de modo não intencional, por eliminarem os concorrentes que se lhes opõem.O islamismo radical, a que se tornou usual chamar fundamentalismo islâmico, não é um movimento homogéneo único. Há muitos tipos de fundamentalismo islâmico em vários países e por vezes até no mesmo país. Alguns são patrocinados pelo Estado - fundados, usados e promovidos por um ou outro governo muçulmano para servir os seus objectivos; outros são movimentos populares genuínos vindos de baixo. Entre os movimentos islâmicos patrocinados pelo Estado há-os de várias espécies, radicais e conservadores, subversivos e dissuasores. Os movimentos conservadores e dissuasores foram iniciados por governos no poder que procuravam proteger-se da onda revolucionária. Trata-se de movimentos encorajados em épocas diversas pelos Egípcios, Paquistaneses e, sobretudo, pelos sauditas. A outra espécie de movimentos, de importância muito maior, vem de baixo, tem uma base popular autêntica. O primeiro desses movimentos a tomar o poder e que o exerceu com mais êxito foi o movimento conhecido como revolução islâmica no Irão. Regimes islâmicos radicais estão actualmente no poder no Sudão e governaram durante algum tempo o Afeganistão, e os movimentos islâmicos representam uma maior ameaça à ordem existente em outros países, especialmente a Argélia e o Egipto, já de si em risco.Os fundamentalistas muçulmanos, ao contrário dos grupos protestantes cujo nome foi transferido para eles, não diferem da corrente principal em questões de teologia e na interpretação das escrituras. A sua crítica é, num sentido mais amplo, social. O mundo islâmico, na sua opinião, tomou a via errada. Os seus líderes chamam a si mesmos

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muçulmanos e fazem uma simulação do Islão, mas na verdade são apóstatas que aboliram a Lei Santa e adoptaram leis e costumes estrangeiros e infiéis. Para eles, a única solução é um regresso ao estilo de vida muçulmano autêntico, e para isso o afastamento dos governos apóstatas é um primeiro passo essencial.

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Os fundamentalistas são anti-ocidentais na medida em que vêem o Ocidente como a fonte do mal que está a corromper a sociedade muçulmana, mas o seu ataque principal é dirigido contra os seus próprios governantes e líderes. Foram movimentos como esses que levaram a cabo a deposição do xá do Irão em 1979 e o assassinato do presidente Sadat do Egipto dois anos depois. Eram ambos vistos como sintomas de um mal mais profundo que tinha de ser corrigido através de uma purificação interior. No Egipto assassinaram o líder mas não conseguiram apoderar-se do país; no Irão destruíram o regime existente e criaram o deles.

O Islão é uma das grandes religiões do mundo. Conferiu dignidade e sentido a vidas infelizes e empobrecidas. Ensinou homens de raças diferentes a viver em fraternidade, e pessoas de credos diferentes a viver lado a lado num clima razoável de tolerância. Inspirou uma grande civilização em que outros que não só os muçulmanos viveram vidas criativas e úteis e que, com esse feito, enriqueceram o mundo inteiro. Mas o Islão, como outras religiões, também passou por períodos em que inspirou em alguns dos seus seguidores sentimentos de ódio e violência. Por infelicidade nossa temos de nos confrontar com o mundo muçulmano quando ele atravessa um desses períodos, e quando a maior parte desse ódio - embora de modo nenhum todo ele - é dirigido contra nós.Porquê? Não devemos exagerar as dimensões do problema. O mundo muçulmano está longe de ser unânime na sua rejeição do Ocidente, assim como as regiões muçulmanas do Terceiro Mundo não têm estado sós na sua hostilidade. Ainda há um número significativo de muçulmanos, que em algumas regiões talvez sejam uma maioria, com os quais partilhamos certas crenças e aspirações básicas de natureza cultural e moral, ou social e política; ainda há uma presença ocidental significativa - cultural, económica, diplomática - em terras muçulmanas, algumas das quais são aliadas do Ocidente. Mas existe uma onda de ódio que angustia, alarma e sobretudo confunde os Americanos.Muitas vezes esse ódio ultrapassa o nível de hostilidade para com interesses ou acções específicos, políticas ou mesmo países, e

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transforma-se numa rejeição da civilização ocidental como tal, não tanto por aquilo que ela faz como por aquilo que ela é, e pelos princípios e valores que ela pratica e professa. Estes são vistos, de facto, como um mal inato, e aqueles que os promovem ou aceitam são vistos como os «inimigos de Deus».Esta frase, que ocorre com tanta frequência nas declarações dos líderes do Irão, tanto nos seus processos judiciais como nos discursos políticos, devem parecer muito estranhos ao outsider moderno, seja ele religioso ou leigo. A ideia de que Deus tem inimigos, e necessita da ajuda humana para os identificar e se desembaraçar deles, é um bocado difícil de assimilar. Contudo, não é assim tão estranha. O conceito de inimigos de Deus é familiar na Antiguidade pré-clássica e clássica, e tanto no Antigo como no Novo Testamento e no

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Corão.No Islão, a luta entre o bem e o mal adquiriu, desde o início, dimensões políticas e também militares. Maomé, como se lembrarão, não foi apenas um profeta e um professor, como os fundadores de outras religiões; foi também um governante e um soldado. Por isso a sua luta envolveu um estado e respectivas forças armadas. Se os combatentes da guerra pelo Islão, a guerra santa «na senda de Deus», lutam por Deus, quer dizer que os seus adversários lutam contra Deus. E como Deus é, em princípio, o soberano, o chefe supremo do estado islâmico, tendo o Profeta, e após o Profeta os califas, como Seus vice-gerentes, então Deus como soberano comanda o exército. O exército é o exército de Deus, e o inimigo é o inimigo de Deus. O dever dos soldados de Deus é despachar os inimigos de Deus o mais depressa possível para o lugar onde Deus os há-de punir, ou seja, o outro mundo.A pergunta-chave que ocupa os políticos ocidentais actualmente pode ser posta de maneira simples: é o Islão, fundamentalista ou de qualquer outra espécie, uma ameaça para o Ocidente? A esta simples pergunta foram dadas várias respostas simples, e como é próprio das respostas simples, na sua maioria são enganadoras. De acordo com uma escola de pensamento, após o colapso da União Soviética e do movimento comunista, o Islão e o fundamentalismo islâmico substituíram-nos como a principal ameaça para o Ocidente e o estilo de vida ocidental. Segundo outra escola de pensamento, os muçulmanos, incluindo os fundamentalistas radicais, são basicamente

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pessoas decentes, amantes da paz e piedosas, algumas das quais perderam a paciência com todas as coisas horríveis que nós, os do Ocidente, lhes fizemos. Nós decidimos vê-los como inimigos porque temos uma necessidade psicológica de um inimigo que substitua a defunta União Soviética.Ambos os pontos de vista contêm elementos verdadeiros, e ambos estão perigosamente errados. O Islão em si mesmo não é um inimigo do Ocidente, e há um número crescente de muçulmanos, tanto lá como aqui, que tudo o que mais desejam é um relacionamento mais próximo e mais amigável com o Ocidente e a criação de instituições democráticas nos seus próprios países. Porém, um número significativo de muçulmanos - sobretudo mas não só aqueles a quem chamamos fundamentalistas - são hostis e perigosos, não porque nós precisemos dum inimigo mas sim porque eles precisam.Em anos recentes, deram-se algumas mudanças de discernimento e, consequentemente, de tácticas por parte dos muçulmanos. Alguns deles ainda vêem o Ocidente em geral, e em particular o seu actual líder, os Estados Unidos, como o velho e irreconciliável inimigo do Islão, o verdadeiro obstáculo à restauração da fé e da lei de Deus nos seus países e ao seu triunfo universal definitivo. Para estes, o único caminho é a guerra até à morte, em cumprimento daquilo que eles consideram os mandamentos da sua religião. Outros há que, embora sejam muçulmanos convictos e cientes dos defeitos da sociedade ocidental moderna, no entanto reconhecem também os seus méritos - o seu espírito investigador que produziu a ciência e a tecnologia modernas, a sua preocupação com a liberdade que originou os modernos governos democráticos. Estes, embora conservando as suas crenças e a sua cultura, procuram juntar-se a nós na tentativa de alcançar um mundo mais livre e melhor. Há ainda outros que, embora considerando o Ocidente o seu inimigo derradeiro e a fonte de todos os males, todavia estão conscientes do seu poder e pretendem um alojamento temporário, para melhor se prepararem para a luta final. Temos de ser prudentes para não

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confundir os segundos com os terceiros.

II

A Casa da Guerra

Ao longo da história da humanidade, muitas civilizações surgiram e desapareceram - China, índia, Grécia, Roma, e, antes delas, as antigas civilizações do Médio Oriente. Durante os séculos que na história europeia são designados por Idade Média, a civilização mais avançada do mundo era sem dúvida a do Islão. Pode ter sido igualada - ou mesmo ultrapassada em alguns aspectos - pela índia e pela China, mas estas ficaram limitadas essencialmente a uma região e a um grupo étnico, e o seu impacte no resto do mundo foi proporcionalmente reduzido. A civilização do Islão, pelo contrário, tinha uma visão ecuménica do mundo e era-o explicitamente nas suas aspirações.Uma das tarefas básicas deixadas em testamento aos muçulmanos pelo Profeta foi âjihad. Esta palavra vem da raiz árabe j-h-d, que basicamente significa «empenho» ou «esforço». Em textos clássicos é frequentemente usada com um significado muito próximo de «luta», e a partir daí também de «combate». E citada com frequência na frase do Corão: «lutando na senda de Deus» (p. ex.: IX, 24; LX, 1; etc.), e tem sido variamente interpretada como significando luta moral ou luta armada. Normalmente é muito fácil compreender pelo contexto qual destes cambiantes de significado se pretendeu dar-lhe. No Corão a palavra ocorre muitas vezes, com estes dois sentidos distintos mas relacionados. Nos primeiros capítulos, que datam do período de Meca, quando o Profeta ainda era o líder de um grupo minoritário que lutava contra a oligarquia pagã dominante, a palavra tem frequentemente

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o significado, apoiado pelos exegetas modernistas, de luta moral. Nos últimos capítulos, publicados em Medina, onde o Profeta era chefe de Estado e comandava o exército, habitualmente tem uma conotação explicitamente mais prática. Em muitos, o sentido militar é inequívoco. Encontra-se um bom exemplo em IV, 95: «Aqueles de entre os crentes que ficarem em casa, para além dos incapacitados, não são iguais àqueles que lutam na senda de Deus com os seus bens e as suas pessoas. Deus colocou aqueles que lutam com os seus bens e as suas pessoas num nível mais elevado do que aqueles que ficam em casa. Deus prometeu recompensa a todos os que crêem, mas Ele distingue aqueles que combatem, acima daqueles que ficam em casa, com uma recompensa grandiosa». Conceitos semelhantes encontram-se em: VIII, 72; IX, 41, 81, 88; LXVI, 9; etc.Alguns muçulmanos modernos, sobretudo quando se dirigem ao mundo exterior, explicam o dever da jihad em sentido espiritual e moral. A esmagadora maioria das autoridades do passado, citando as passagens relevantes do Corão, os comentários e as tradições do Profeta, discutem a jihad em termos militares. De acordo com a lei islâmica, é legítimo fazer guerra contra quatro tipos de inimigos: infiéis, apóstatas, rebeldes e bandidos. Embora esses quatro tipos de guerra sejam legítimos, só os dois primeiros contam como jihad. A jihad é, pois, uma obrigação religiosa. Discutindo acerca da obrigação da guerra santa, os juristas muçulmanos clássicos fazem distinção entre guerra ofensiva e defensiva. Na ofensiva, a jihad é uma obrigação da comunidade muçulmana como um todo, e portanto pode ser executada por voluntários e profissionais. Numa guerra defensiva, ela torna-se

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uma obrigação de todo o indivíduo fisicamente apto. Foi este princípio que Osama bin Laden invocou na sua declaração de guerra contra os Estados Unidos.Durante a maior parte dos catorze séculos de história muçulmana registada, a jihad foi geralmente interpretada como luta armada para a defesa ou o avanço do poder muçulmano. Na tradição muçulmana, o mundo está dividido em duas casas: a Casa do Islão {Dar al-Islâm), onde os governantes muçulmanos governam e a lei muçulmana impera, e a Casa da Guerra (Dâr al-Harb), que é o resto do mundo ainda habitado e, mais importante ainda, governado pelos infiéis. O que se presume é que o dever da jihad continuará a ser exercido, interrompido apenas por tréguas temporárias, até que

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todo o mundo adopte a religião muçulmana ou se submeta ao domínio muçulmano. Aqueles que lutam na jihad habilitam-se a recompensas nos dois mundos - o saque neste, e o paraíso no outro. Nesta questão, como em tantas outras, a orientação do Corão é ampliada e elaborada nas hadiths, ou seja, nas tradições relativas às acções e elocuções do Profeta. Muitas delas têm a ver com a guerra santa. Seguem-se alguns exemplos.A jihad é o vosso dever sob qualquer governante, seja ele piedoso ou iníquo.Um dia e uma noite de combate na fronteira é melhor do que um mês de jejum e oração.A ferroada de uma formiga magoa mais um mártir do que a estocada de uma arma, pois estas são mais agradáveis para ele do que a água doce e fresca num dia quente de Verão.Aquele que morre sem ter tomado parte numa campanha morre como se fosse um descrente.Deus admira-se com as pessoas [aqueles a quem o Islão, é imposto pela conquista] que são arrastadas para o paraíso acorrentadas.Aprendam a disparar, pois o espaço entre o alvo e o archeiro é um dos jardins do paraíso.O paraíso está na sombra das espadas.As tradições também estabelecem algumas regras de guerra para o desempenho da jihad:Tenham o cuidado de tratar bem os prisioneiros. O saque não é mais legítimo que o cadáver. Deus proibiu que se matem mulheres e crianças. Os muçulmanos estão vinculados aos seus acordos, desde que estes sejam legítimos.Os tratados jurídicos clássicos sobre a shari’a contêm normalmente um capítulo acerca da jihad, entendida no sentido militar, como uma guerra regular contra infiéis e apóstatas. Mas esses tratados preceituam o comportamento correcto e o respeito pelas regras de guerra, em questões como a abertura e o encerramento das hostilidades e a forma de tratar os não combatentes e os prisioneiros, para não falar nos representantes diplomáticos.

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Na maior parte da história escrita do Islão, desde o tempo de vida do profeta Maomé em diante, a palavra jihâd foi usada num sentido basicamente militar. Maomé iniciou a sua missão profética em Meca, lugar onde nasceu, mas devido à perseguição que ele e os seus seguidores sofreram às mãos da oligarquia pagã que governava aquela cidade, mudaram-se para a cidade de Medina, onde foram bem-recebidos pelas tribos locais, que deram ao Profeta o cargo de arbitrador e depois de governador. Em árabe, esta mudança é conhecida por Hijra, por vezes escrita na forma ortograficamente errada «Hegira», e erradamente traduzida por «fuga». A era muçulmana começa no início do ano árabe em que teve lugar a

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Hijra. A primeira jihad foi empreendida pelo Profeta contra os governantes da sua cidade natal e terminou com a conquista de Meca no mês do Ramadão do ano 8 da Hijra, que corresponde a Janeiro de 630 da era cristã. Os líderes de Meca renderam-se quase sem luta, e aos habitantes da cidade, excluindo aqueles que eram acusados de ofensas específicas contra o Profeta ou contra algum muçulmano, foi concedida imunidade para as suas vidas e bens, desde que se comportassem de harmonia com o acordo. A tarefa seguinte foi o alargamento do domínio muçulmano ao resto da Arábia e, sob a autoridade dos califas, sucessores do Profeta, ao resto do mundo.Nos primeiros séculos da era islâmica isso pareceu ser um resultado possível ou mesmo provável. Dentro de um espaço de tempo bastante curto os exércitos muçulmanos triunfantes tinham derrubado o antigo império da Pérsia e anexado todos os seus territórios aos domínios do califado, abrindo caminho à invasão da Ásia Central e da índia. Para ocidente, o Império Bizantino ainda não tinha sido derrubado, mas já fora despojado de grande parte dos seus territórios. As então províncias cristãs da Síria, Palestina, Egipto e Norte de África foram absorvidas e em devido tempo islamizadas e arabizadas, e serviram de bases para a sequente invasão da Europa e conquista da Espanha e de Portugal, e de grande parte do sul de Itália. Em inícios do século VIII, os exércitos árabes vitoriosos atravessavam os Pirenéus, penetrando em França.Após vários séculos de vitórias quase ininterruptas, a jihad foi finalmente detida e repelida pela Europa cristã. No Oriente, os Bizantinos resistiram na grande cidade cristã de Constantinopla, repelindo uma série de ataques árabes. No Ocidente teve início o longo

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e moroso processo conhecido na história de Espanha como «a Reconquista», que por fim levou à expulsão dos muçulmanos dos territórios que tinham conquistado em Itália e na Península Ibérica. Foi igualmente empreendida uma tentativa de levar a Reconquista até ao Médio Oriente, a fim de recuperar a terra onde Cristo nasceu, conquistada pelos muçulmanos no século VII. Essa tentativa, conhecida por Cruzadas, falhou completamente, e os cruzados foram repelidos em fuga desordenada.Mas a jihad não tinha terminado. Uma nova fase foi iniciada, desta vez não por Árabes mas por mais recentes convertidos ao Islão, os Turcos e os Tártaros. Estes conseguiram conquistar a Anatólia, até ali terra cristã, e em Maio de 1453 tomaram Constantinopla, que a partir de então passou a ser a capital dos sultães otomanos, sucessores do antigo califado na liderança da jihad islâmica. Os Otomanos nos Balcãs e os Tártaros islamizados na Rússia renovaram a tentativa de conquistar a Europa, desta vez a partir do Leste, e durante um certo tempo pareceu que o sucesso estava à vista.Mas uma vez mais a Europa cristã conseguiu expulsar os invasores, e de novo, desta vez com mais sucesso, contra-atacou os domínios do Islão. Por esta altura a jihad tinha-se tornado quase unicamente defensiva - resistindo à Reconquista em Espanha e na Rússia e aos movimentos de libertação nacional dos súbditos cristãos do Império Otomano, e por fim, segundo o ponto de vista dos muçulmanos, defendendo o coração das terras do Islão do ataque dos infiéis. Esta fase veio a ser conhecida por imperialismo.Mesmo neste período de retirada, a jihad ofensiva não foi de modo nenhum abandonada. Já em 1896, os Afegãos invadiram a região montanhosa do Hindukush, que fica actualmente no Nordeste do Afeganistão. Até essa altura os seus habitantes não eram muçulmanos e por isso a região era conhecida pelos muçulmanos como «Kafiristão» - «Terra dos Infiéis».

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Depois da conquista afegã passou a ser chamada «Nuristão» - «Terra da Luz». Durante o mesmo período, diversos géneros de jihads foram levados a cabo em África, contra populações não-muçulmanas. Mas na sua maioria, o conceito, a prática e a experiência da jihad no mundo islâmico moderno têm sido esmagadoramente defensivos.O uso predominantemente militar do vocábulo manteve-se até tempos relativamente recentes. No Império Otomano a cidade de

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Belgrado, base avançada da guerra contra os Austríacos, recebeu o título condizente de Dar al-Jihâd (Casa da Jihad). No início do século XIX, quando o líder modernizador do Egipto, Muhammad ’Ali Pasha, reformou as forças armadas e a respectiva administração segundo os modelos francês e inglês, criou um «departamento da guerra» para as administrar. Em árabe era conhecido por Conselho de Estado dos Assuntos da Jihad (Diwân al-Jihâdiyya), e o seu chefe por supervisor dos assuntos da jihad (Nâzir al-Jihâdiyya). Poderíamos citar outros exemplos em que a palavra jihad perdeu o sentido sagrado e conservou apenas a conotação militar. Nos tempos actuais tanto o uso militar do vocábulo como o uso moral foram recuperados, e são entendidos e aplicados de modos diferentes por grupos diferentes de pessoas. Organizações que nos nossos dias reclamam o nome de jihad na Caxemira, na Tchetchénia, na Palestina e por toda a parte, é evidente que não usam a palavra para designar luta moral.A jihad é por vezes apresentada pelos muçulmanos como o equivalente à Cruzada, e as duas são vistas como sendo mais ou menos equivalentes. Num certo sentido isto é verdade: ambas foram proclamadas e empreendidas como guerras santas, em nome da fé verdadeira contra um inimigo infiel. Mas há uma diferença. A Cruzada é um desenvolvimento tardio na história cristã e, de certo modo, marca um afastamento radical dos valores cristãos básicos conforme expressos nos Evangelhos. A cristandade estivera sujeita a ataques desde o século VII e tinha perdido vastos territórios para o domínio muçulmano; o conceito de guerra santa ou, mais comummente, guerra justa, era familiar desde a Antiguidade. Mas na longa guerra entre o Islão e a cristandade, a Cruzada foi tardia, limitada, e de duração relativamente curta. A jihad está presente desde o início da história islâmica - nas escrituras, na vida do Profeta, e nas acções dos seus companheiros e sucessores imediatos. Continuou ao longo da história do Islão e conserva o seu fascínio até aos nossos dias. A palavra «cruzada» deriva como é evidente da cruz e, originalmente, designava uma guerra santa para o cristianismo. Mas no mundo cristão há muito tempo que ela perdeu esse significado, e é usada com o sentido genérico de uma campanha moralmente impulsionada por uma boa causa. Pode-se empreender uma cruzada pelo ambiente, pela água pura, por melhores serviços sociais, pelos direitos da mulher,

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e por uma série interminável de outras causas. O único contexto em que a palavra «cruzada» hoje em dia não é usada é precisamente o contexto religioso original. A palavra «jihad» também é usada numa diversidade de sentidos, mas ao contrário de «cruzada» conservou o seu significado original e primário.Aqueles que perdem a vida na. jihad chamam-se mártires, shahid em árabe e noutras línguas muçulmanas. A palavra portuguesa «mártir» vem do grego mártyr, «testemunha»,

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pelo latim eclesiástico mãrtyre, e no uso judaico-cristão designa aquele que está pronto a sofrer a tortura e a morte para não renegar a sua fé. O seu martírio é pois um testemunho ou prova dessa fé, e da sua prontidão para sofrer e morrer por ela. O vocábulo árabe shahid também significa «testemunha» e é normalmente traduzido por «mártir», mas tem uma conotação bastante diferente. No uso islâmico o vocábulo «martírio» é normalmente interpretado como significando a morte numa jihad, e a sua recompensa é a felicidade eterna, descrita com algum pormenor em textos religiosos antigos. O suicídio, pelo contrário, é um pecado mortal e merece a condenação eterna, mesmo para aqueles que sem ele teriam um lugar assegurado no paraíso. Os juristas clássicos distinguem claramente entre enfrentar a morte certa às mãos do inimigo e pôr fim à vida com as próprias mãos. A primeira conduz ao céu, a segunda ao inferno. Alguns juristas fundamentalistas recentes, e alguns outros, esbateram ou descartaram mesmo essa distinção, mas o seu critério está longe de ser unanimemente aceite. O bombista suicida corre, pois, um risco considerável devido a uma subtileza teológica.Como a guerra santa é uma obrigação religiosa, encontra-se cuidadosamente regulamentada na shari’a. Os combatentes de uma. jihad estão proibidos de matar mulheres, crianças e idosos, excepto se eles atacarem primeiro, de torturar ou mutilar prisioneiros, e são obrigados a dar aviso claro do recomeço das hostilidades a seguir a uma trégua e a honrar os acordos. Os juristas e teólogos medievais discutem até certo ponto as regras da guerra, incluindo questões como quais as armas que são permitidas e quais as que o não são. Há mesmo um certo debate nos textos medievais acerca da legalidade dos mísseis e da guerra química, no primeiro caso referindo-se a manganelas e catapultas, e no segundo a flechas com as pontas envenenadas e ao envenenamento das reservas de água do inimigo.

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Sobre estas questões há uma considerável variação. Alguns juristas permitem, outros colocam restrições e outros desaprovam o uso dessas armas. A razão apontada para a sua preocupação é o número indiscriminado de vítimas que elas provocam. Em nenhum ponto os textos básicos do Islão prescrevem o terrorismo e o assassínio. Em nenhum ponto - que eu saiba - ponderam sequer a matança indiscriminada de espectadores não implicados.Os juristas insistem em que os despojos de guerra devem ser um benefício acidental e não um objectivo principal. Alguns vão ao ponto de dizer que se eles se tornarem o objectivo principal, isso invalida a jihad e anula os seus benefícios, se não neste mundo, no outro. Ajihad, para ter alguma validade, deve ser empreendida «na senda de Deus», e não pelo interesse no ganho material. Contudo, há queixas frequentes acerca do mau uso que é feito do nome honroso da jihad para fins desonrosos. Principalmente os juristas africanos lamentam o uso que é feito do termo jihad por captores de escravos para justificar as suas pilhagens e afirmar a posse legal das suas vítimas. A Lei Santa ordena que seja dado bom tratamento aos não-combatentes, mas confere aos vencedores amplos direitos sobre os bens e também sobre as pessoas e os familiares dos vencidos. De acordo com o costume universal da Antiguidade, os inimigos capturados na guerra eram escravizados juntamente com as suas famílias, e podiam ser vendidos ou conservados pelos seus captores para uso pessoal. O Islão trouxe uma alteração a esta regra, limitando o direito de escravizar àqueles que eram capturados numa Jihad, mas não em qualquer outra forma de guerra.As regras para a guerra contra os apóstatas são um tanto diferentes e bastante mais rigorosas do que as da guerra contra os não-crentes. O apóstata ou renegado, aos olhos dos

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muçulmanos, é de longe pior do que o não-crente. O não-crente ainda não viu a luz, e há sempre a esperança de que eventualmente venha a vê-la. Entretanto, desde que preencha as condições necessárias poderá beneficiar da tolerância do estado muçulmano e ser autorizado a continuar a praticar a sua religião, e até a cumprir as leis da sua própria religião. O renegado é alguém que conheceu a verdadeira fé, ainda que por breve tempo, e a abandonou. Para esta ofensa não existe perdão humano e, de acordo com a esmagadora maioria dos juristas, o renegado deve ser condenado à morte - isto é, se for homem. Para

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as mulheres, uma pena mais leve de açoitamento e prisão pode bastar. Deus, na sua misericórdia, pode perdoar ao renegado no outro mundo, se assim decidir. Mas nenhum humano tem autoridade para o fazer. Esta distinção é de certa importância hoje em dia, em que os líderes militantes proclamaram uma jihad dupla: contra os infiéis estrangeiros e contra os apóstatas domésticos. A maioria, se não a totalidade, dos líderes muçulmanos que nós, no Ocidente, consideramos com prazer nossos amigos e aliados, são vistos como traidores ou, pior ainda, como apóstatas pela maioria ou a quase totalidade do seu próprio povo.Desde tempos remotos, foi feita uma distinção legal entre os territórios adquiridos pela força (’anwatan em árabe, equivalente à expressão jurídica romana vi et armis) e os adquiridos por sulhan, isto é, por qualquer tipo de tréguas ou de rendição pacífica. As regras relativas ao saque e, de modo mais geral, ao tratamento a dar à população dos territórios acabados de obter, diferiam em alguns aspectos importantes. Segundo a tradição, a diferença era simbolizada na mesquita todas as sextas-feiras. Nos territórios tomados por ’anwatan, o pregador levava uma espada; nos que tinham sido tomados por sulhan, um cajado de madeira. A simbologia da espada continua a ser importante. Até aos dias de hoje, a bandeira saudita tem duas divisas sobre um campo verde. Uma delas é o texto árabe do credo muçulmano: «Não há nenhum Deus a não ser Deus, Maomé é o profeta de Deus». A outra é a representação inequívoca de uma espada.Em certas alturas, os juristas reconheceram uma categoria intermédia - a Casa das Tréguas {Dâr al-Sulh) ou Casa da Aliança {Dâr ai- ’Ahd) - entre as Casas da Guerra e do Islão. Era constituída por países não-muçulmanos, habitualmente cristãos, cujos líderes estabeleciam qualquer espécie de acordo com os líderes do Islão, mediante o qual pagavam um género de imposto ou tributo, visto como o equivalente ao jizya, ou imposto por cabeça, e conservavam uma grande capacidade de autonomia nos seus assuntos internos. Um dos primeiros exemplos foi o acordo feito pelos califas omíadas no século VII com os príncipes cristãos da Arménia. O exemplo clássico da Dâr al-Sulh, ou Casa das Tréguas, foi o pacto acordado em 652 d.C. com os líderes cristãos da Núbia, segundo o qual estes não pagavam o imposto por cabeça mas prestavam um tributo anual

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constituído por um número específico de escravos. Ao decidirem ver as ofertas como tributo, os líderes muçulmanos e os seus conselheiros legais podiam adaptar a lei de modo a cobrir uma grande variedade de relações políticas, militares e comerciais com governos não-muçulmanos. Esta abordagem não desapareceu por completo.

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Os muçulmanos souberam, desde muito cedo, que havia certas diferenças entre os povos da Casa da Guerra. Na sua maioria eram simplesmente politeístas e idólatras que não representavam uma ameaça séria para o Islão e eram prováveis candidatos à conversão. Encontravam-se essencialmente na Ásia e em África. A principal excepção eram os cristãos, que os muçulmanos reconheciam que tinham uma religião do mesmo género da sua, e eram portanto os seus maiores rivais na luta pelo domínio do mundo - ou, como eles o diriam, pela iluminação do mundo. O cristianismo e o Islão são duas civilizações definidas pela religião, que entraram em conflito não devido às suas diferenças mas sim às suas semelhanças.O mais antigo edifício religioso muçulmano existente fora da Arábia, a Cúpula da Rocha, em Jerusalém, foi terminado em 691 ou692 d.C. A construção deste monumento no lugar do antigo templo judaico, e no mesmo estilo e na proximidade de monumentos cristãos como o Santo Sepulcro e a Igreja da Ascensão, enviou uma mensagem clara aos judeus, e, mais importante ainda, aos cristãos. As suas revelações, apesar de autênticas em tempos passados, tinham sido corrompidas pelos seus indignos guardiães e eram por isso substituídas pela revelação final e perfeita contida no Islão. Tal como os judeus tinham sido derrotados e substituídos pelos cristãos, também a ordem do mundo cristão passava agora a ser substituída pela fé muçulmana e pelo califado islâmico. Para realçar esse ponto de vista, as inscrições corânicas feitas na Cúpula da Rocha denunciam aquilo que os muçulmanos consideram os erros principais dos cristãos: «Louvado seja Deus, que não gerou nenhum filho e não tem qualquer parceiro» e «Ele é Deus, uno e eterno. Não gera, não foi gerado, e não tem par» (Corão, CXII). Isto era claramente um desafio aos seguidores de Cristo no seu lugar de nascimento.

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Um milénio depois, o estacionamento de tropas americanas na Arábia foi visto por muitos muçulmanos e em especial por Osama bin Laden como um desafio semelhante, desta vez feito pelos cristãos ao Islão.Para realçar este primeiro desafio à cristandade, o califa, pela primeira vez, cunhou moedas de ouro, prerrogativa sua e da Roma imperial. É significativo que o nome da primeira moeda de ouro islâmica, o dinâr, seja copiado do denarius romano. Algumas dessas moedas ostentam o nome do califa, o seu título de «Comandante dos Fiéis», e os mesmos versículos polémicos. A mensagem era clara. No entendimento dos muçulmanos, os judeus e mais tarde os cristãos tinham-se extraviado e seguido falsas doutrinas. Por conseguinte, ambas as religiões foram invalidadas e substituídas pelo Islão, a revelação final e perfeita na sequência estabelecida por Deus. Os versículos corânicos citados na Cúpula e nas moedas de ouro condenam aquilo que para os muçulmanos é a pior das corrupções da verdadeira fé. É evidente que há ainda uma mensagem adicional do califa para o imperador: «A tua fé é corrupta, o teu tempo acabou. Eu agora sou o líder do império de Deus na terra».A mensagem foi bem entendida, e a cunhagem das moedas de ouro foi vista pelo imperador como um casus belli. Durante mais de mil anos os califas do Islão empreenderam a sua luta desde as sucessivas capitais, Medina, Damasco, Bagdad, Cairo e Istambul, contra os imperadores cristãos em Constantinopla, Viena, e mais tarde, usando outros títulos, em países mais distantes e mais para ocidente. Cada um deles, a seu tempo, foi o alvo principal da jihad.É claro que na prática a aplicação da doutrina da jihad nem sempre foi rigorosa ou violenta.

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O estado de guerra canonicamente obrigatório podia ser interrompido por aquilo que era legalmente designado por tréguas, mas que pouco diferia dos chamados tratados de paz que as potências europeias em guerra assinavam umas com as outras. Tais tréguas eram feitas pelo Profeta com os seus inimigos pagãos, e tornaram-se a base daquilo a que poderíamos chamar lei internacional islâmica. De acordo com a shari’a, a tolerância em relação às religiões com base em revelações divinas prévias não era um mérito mas sim um dever (Corão, II, 245: «Em religião não há coacção»). Nas terras sob domínio muçulmano, a lei islâmica exigia que judeus e cristãos fossem autorizados a praticar as suas religiões

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e a administrar os seus negócios, ficando sujeitos a alguns inconvenientes, o mais importante dos quais era um imposto por cabeça a que eram obrigados todos os adultos do sexo masculino. Esse imposto, chamado jizya, está especificado no Corão em IX, 29: «Lutai contra aqueles que não acreditam em Deus ou no dia final, que não proíbem aquilo que Deus e o Seu apóstolo declararam ser proibido, que não praticam a religião da verdade, mesmo que sejam os povos do Livro [isto é, judeus e cristãos], enquanto eles não pagarem a jizya, directa e humildemente». As últimas palavras têm sido interpretadas de várias maneiras, tanto em literatura como na prática.Outros inconvenientes incluíam o uso de trajes ou distintivos que os diferenciassem, e a proibição de usar armas, montar a cavalo, possuir escravos muçulmanos ou exceder a altura dos edifícios muçulmanos. Com excepção dos dois últimos e da jizya, nunca foram rigorosamente cumpridos. Em compensação, os súbditos não-muçulmanos tolerados no estado muçulmano gozavam de uma larga margem de autonomia na administração dos assuntos internos da comunidade, incluindo educação, impostos, e o cumprimento das suas próprias leis de direitos individuais, nomeadamente o casamento, o divórcio e a herança. O pacto ou contrato entre o estado muçulmano e uma comunidade de súbditos não-muçulmanos chamava-se dhimma, e aos membros dessas comunidades toleradas chamava-se dhimmis. Em linguagem moderna, os judeus e os cristãos no estado islâmico clássico eram aquilo a que poderíamos chamar cidadãos de segunda classe, mas a cidadania de segunda classe, estabelecida de acordo com a lei e a revelação, e reconhecida pela opinião pública, era de longe melhor do que a ausência total de cidadania que era o destino dos não-cristãos e até de alguns cristãos com comportamentos anómalos no Ocidente.A jihad também não impediu os governos muçulmanos de procurarem ocasionalmente aliados cristãos contra os seus adversários muçulmanos, mesmo durante as Cruzadas.

III

Dos Cruzados aos ImperialistasAs Cruzadas ocupam lugar de grande destaque na consciência e no discurso do moderno Médio Oriente, tanto da parte dos nacionalistas árabes como dos fundamentalistas islâmicos, especialmente de Osama bin Laden. Não foi sempre assim.A tomada de Jerusalém pelos cruzados em 1099 d.C. foi um triunfo para a cristandade e um desastre para os muçulmanos e também para os judeus da cidade. A julgar pela historiografia árabe dessa época, despertou pouco interesse na região. Os pedidos de ajuda dos muçulmanos locais a Damasco e Bagdad ficaram sem resposta, e os principados recém-criados pelos cruzados desde Antióquia a Jerusalém depressa se inseriram no jogo político

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do Levante, com alianças entre religiões opostas, num modelo de rivalidades individuais e colectivas entre muçulmanos e príncipes cristãos.A grande Contra-Cruzada que havia de vencer e expulsar definitivamente os cruzados só teve início quase um século mais tarde. A sua causa imediata foram as actividades de pilhagem de um líder cruzado, Reinaldo de Châtillon, que teve à sua guarda a fortaleza de Kerak, actualmente no sul da Jordânia, entre 1176 e 1187 d.C, e se serviu dela para lançar uma série de assaltos contra caravanas e comerciantes muçulmanos nas regiões vizinhas, incluindo o Hejaz. Os historiadores das Cruzadas talvez tenham razão quando dizem que a motivação de Reinaldo era basicamente económica, ou, por outras palavras, a vontade de saquear. Mas os muçulmanos viram as suas campanhas como uma provocação e um desafio dirigidos contra os

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lugares santos do Islão. Em 1182, violando um acordo entre o rei cruzado de Jerusalém e o líder muçulmano Saladino, atacou e saqueou caravanas muçulmanas, incluindo uma de peregrinos que se dirigiam para Meca. Ainda mais ultrajante do ponto de vista dos muçulmanos foi a sua ameaça à Arábia e, sobretudo, uma expedição de pirataria no mar Vermelho que incluiu assaltos a navios muçulmanos e aos portos do Hejaz que serviam Meca e Medina. Foram estes acontecimentos que directamente levaram Saladino a proclamar uma jihad contra os cruzados - exemplo eloquente da importância central da Arábia na consciência islâmica.As vitórias de Saladino e a sua tomada de Jerusalém aos cruzados em 1187 foram durante muito tempo e são ainda hoje uma fonte de inspiração para os líderes árabes. Saddam Hussein refere-se frequentemente a dois anteriores líderes do Iraque que ele aponta como os que o antecederam na sua missão: Saladino, que pôs fim à ameaça do Ocidente no seu tempo, derrotando e expulsando os cruzados, e Nabucodonosor, que resolveu de forma rápida e conclusiva o problema sionista. A 8 de Outubro de 2002, o primeiro-ministro francês, Jean-Pierre Raffarin, discursando perante a Assembleia Nacional francesa, disse que Saladino foi capaz de «vencer os cruzados na Galileia e libertar Jerusalém». Este interessante uso da palavra «libertar», feito por um primeiro-ministro francês para descrever a tomada de Jerusalém aos cruzados por Saladino, pode ser um reflexo dos actuais realinhamentos políticos, ou então um caso de extrema correcção política. Em certos países esta formulação poderia ser atribuída a ignorância histórica, mas não em França, evidentemente.Até na Europa cristã Saladino foi justamente celebrado e admirado pelo tratamento cavalheiresco e generoso que dispensou aos seus inimigos derrotados. Esse tratamento, porém, não foi extensivo a Reinaldo de Châtillon. O grande historiador árabe Ibn al-Athir explica as circunstâncias. «Duas vezes [disse Saladino] eu tinha prometido que o mataria se o tivesse nas minhas mãos; uma vez foi quando ele marchou sobre Meca e Medina, e outra quando ele traiçoeiramente capturou a caravana [que se dirigia para o Hejaz]». Após a grande vitória de Saladino, quando muitos dos príncipes e chefes cruzados foram feitos prisioneiros e mais tarde libertados, ele separou Reinaldo de Châtillon dos restantes, e matou-o e decapitou-o com as suas próprias mãos.

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Depois do êxito da jihad e de recuperar Jerusalém, Saladino e os seus sucessores parecem ter perdido o interesse pela cidade, e em1229 um deles chegou a ceder Jerusalém ao imperador Frederico II, como parte de um acordo de compromisso geral entre o governador muçulmano e os cruzados. Veio a ser tomada de novo em 1244, depois dos cruzados tentarem fazer dela uma cidade puramente cristã. Após um longo período de relativa obscuridade, o interesse pela cidade reacendeu-se no século XIX, primeiro devido às querelas das potências europeias pela custódia dos lugares santos cristãos, e depois por causa da recente imigração dos judeus.No mesmo período assistiu-se a um primeiro despertar do interesse dos muçulmanos pelas Cruzadas, que muito pouca atenção tinham merecido na altura em que ocorreram. A vasta e rica historiografia árabe desse período regista oportunamente a chegada dos cruzados, as suas batalhas e os estados por eles criados, mas dá pouca ou nenhuma conta da natureza e objectivos da sua aventura. As palavras «Cruzada» e «cruzado» nem sequer surgem na historiografia árabe desse tempo, na qual os cruzados são designados por «os infiéis», «os cristãos» ou, com mais frequência, «os Francos», um nome genérico dado aos cristãos europeus católicos - e mais tarde também protestantes - para os distinguir dos seus confrades ortodoxos e orientais. A consciência das Cruzadas como um fenómeno histórico distinto data do século XIX, e da tradução de livros europeus de história. A partir daí há uma nova percepção das Cruzadas como um protótipo inicial da expansão do imperialismo europeu no mundo islâmico. Uma descrição mais precisa apresentá-las-ia como uma reacção muito atrasada, limitada e que se revelou ineficaz, hjihad. As Cruzadas terminaram em fracasso e derrota, e depressa foram esquecidas em terras do Islão, mas mais tarde outras tentativas europeias de resistir e impedir o avanço muçulmano em terras cristãs foram mais bem sucedidas, e deram início àquilo que veio a ser uma série de dolorosas derrotas nas fronteiras do mundo islâmico.

Sob o domínio do califado árabe medieval, e também sob as dinastias persas e turcas, o império do Islão foi a região mais rica,

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mais poderosa, mais criativa e mais instruída do mundo, e durante grande parte da Idade Média a cristandade esteve na defensiva. No século XV o contra-ataque cristão expandiu-se. Os Tártaros foram expulsos da Rússia, e os Mouros de Espanha. Mas no sudeste da Europa, onde o sultão otomano defrontou primeiro o imperador bizantino e depois o Sacro Império Romano, o domínio muçulmano prevaleceu, e aqueles reveses foram considerados insignificantes e periféricos. No século XVII os paxás turcos ainda governavam Budapeste e Belgrado, os exércitos turcos sitiavam Viena, e corsários da Berberia assaltavam navios e terras costeiras em lugares tão distantes como a Inglaterra, a Irlanda, e, ocasionalmente, até a Madeira e a Islândia. Os corsários eram muito ajudados no seu trabalho por Europeus que, por um motivo ou por outro, se fixaram no Norte de África e os ensinaram a construir, equipar e manobrar navios de longo curso no mar do Norte e até no Atlântico. Esta fase não durou muito tempo.A seguir deu-se a grande mudança. O segundo cerco de Viena pelos Turcos, em 1683, terminou num fracasso total, a que se seguiu uma retirada precipitada - uma experiência inteiramente nova para os exércitos otomanos. Esta derrota, sofrida por aquela que era então a maior força militar do mundo muçulmano, esteve na origem de um novo debate,

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que num certo sentido tem durado desde então até agora. O debate começou entre as elites otomanas da classe militar, política, e mais tarde também intelectual, como uma análise de duas questões: por que razão os exércitos otomanos, outrora sempre vencedores, tinham sido derrotados pelo desprezível inimigo cristão?; e como poderiam eles recuperar o seu anterior domínio? Com o tempo, o debate alargou-se das elites a círculos mais vastos, da Turquia a vários outros países, e apreciou uma variedade de questões cada vez mais dilatada.Havia bons motivos para preocupação. As derrotas seguiram-se umas às outras, e as forças europeias cristãs, depois de libertarem as suas terras, perseguiram os invasores até aos seus lugares de origem na ásia e em África. Até pequenos países europeus como a Holanda e Portugal conseguiram construir vastos impérios no Oriente e assumir um papel dominante no comércio. Em 1593, um oficial otomano que também desempenhou o cargo de cronista de acontecimentos do dia-a-dia, Selaniki Mustafa Efendi, registou a chegada a

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Istambul de um embaixador inglês. Não parece ter tido grande interesse no embaixador, mas ficou muito impressionado com o navio inglês em que ele fez a viagem: «Um navio tão estranho como este nunca entrou no porto de Istambul», escreveu. «Atravessou 3.700 milhas por mar e transportou oitenta e três espingardas e ainda outras armas. [...] Era um prodígio da época, nunca tendo sido visto ou descrito nada de semelhante». Outro motivo de admiração era o soberano que enviou o embaixador: «O líder da ilha de Inglaterra é uma mulher que governa o reino que herdou [...] com poder total». Havia outro pormenor, que o historiador otomano não menciona, que também era de alguma importância. O embaixador inglês em questão fora de facto formalmente nomeado pela rainha Isabel, mas tinha sido escolhido e era sustentado, não pelo governo inglês, mas sim por uma associação comercial - um acordo útil numa época em que o principal interesse do mundo ocidental em relação ao Médio Oriente era o comércio. Com efeito, foi a rápida e inovadora expansão tecnológica e económica do Ocidente - a fábrica, o navio de longo curso, a sociedade anónima - que marcou o início da nova era. Os navios da Europa ocidental, construídos para o Atlântico, facilmente excediam as capacidades dos navios construídos para o Mediterrâneo, o mar Vermelho ou o oceano Índico, tanto os de guerra como os comerciais, e o comércio era ainda mais fortalecido por dois hábitos ocidentais: a cooperação e a competição. No século XVIII os produtos tradicionais do Médio Oriente, como o café e o açúcar, eram cultivados nas novas colónias dos países ocidentais tanto na Ásia como nas américas, e exportados para o Médio Oriente por mercadores e associações ocidentais. Os próprios peregrinos muçulmanos, que viajavam do Sul e do Sudeste da Ásia para as cidades santas da Arábia, por vezes compravam passagens em barcos europeus, uma vez que eles eram mais rápidos, mais baratos, mais seguros e mais confortáveis.

Para a maioria dos historiadores, tanto do Médio Oriente como do Ocidente, o início convencional da história moderna no Médio Oriente dá-se em 1798, quando a Revolução Francesa, na pessoa de um jovem general chamado Napoleão Bonaparte, desembarcou no

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Egipto. Num espaço de tempo espantosamente curto, o general Bonaparte e a sua pequena

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força expedicionária conseguiram conquistar, ocupar e governar o país. Antes disto tinha havido ataques, retiradas e perdas de território nas fronteiras remotas, onde os Turcos e os Persas enfrentavam a Áustria e a Rússia. Mas que uma pequena força militar ocidental invadisse uma das zonas centrais do Islão, era um choque profundo. E a retirada dos Franceses foi, em certo sentido, um choque ainda maior. Não foram os Egípcios nem os seus suseranos, os Turcos, que os obrigaram a ir-se embora, mas sim um pequeno esquadrão da Marinha Real britânica comandado por um jovem almirante chamado Horatio Nelson. Foi esta a segunda lição amarga que os muçulmanos tiveram de aprender: não só era possível que uma potência ocidental chegasse, invadisse e governasse à sua vontade, como só outra potência ocidental era capaz de correr com ela.O imperialismo é um tema de particular importância na questão médio-oriental, e, sobretudo, islâmica, contra o Ocidente. Para eles, a palavra «imperialismo» tem um significado especial. É uma palavra que, por exemplo, nunca é usada pelos muçulmanos dos grandes impérios muçulmanos - os primeiros dos quais foram fundados pelos Árabes, e os últimos pelos Turcos, que conquistaram vastos territórios e populações e os anexaram à Casa do Islão. Para os muçulmanos era inteiramente legítimo conquistar e governar a Europa e os Europeus, permitindo-lhes assim - mas sem os obrigar - abraçar a verdadeira fé. Mas consideravam um crime e um pecado que os Europeus conquistassem e governassem os muçulmanos e, pior ainda, que tentassem desencaminhá-los. No entendimento dos muçulmanos, a conversão ao Islão é um benefício para o convertido e um mérito para aqueles que o converteram. Na lei islâmica, renegar o Islão é apostasia - uma ofensa punível com a pena de morte, tanto para aquele que é desencaminhado como para quem o desencaminha. A lei é clara e inequívoca sobre esta questão. Se um muçulmano renuncia ao Islão, mesmo que seja um recém-convertido que regressa à sua anterior religião, o castigo é a morte. Nos tempos modernos, o conceito e a prática do takfir - reconhecer e denunciar a apostasia - foi muito ampliado. Não é raro que nos círculos extremistas e fundamentalistas seja decretado que uma política, uma acção ou até uma elocução pronunciada por

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um muçulmano declarado seja considerada equivalente à apostasia e que seja pronunciada a sentença de morte para o culpado. Foi este o princípio invocado na fatwa contra Salman Rushdie, contra o assassino do presidente Sadat e muitos outros.As actividades europeias em terras islâmicas passaram por várias fases. A primeira foi a expansão comercial e, do ponto de vista dos muçulmanos, a exploração do seu povo e dos seus países, como mercados e como fontes de matérias primas. Depois veio a invasão armada e a conquista, através da qual as potências europeias estabeleceram o seu domínio efectivo em áreas consideráveis do mundo islâmico: os Russos no Cáucaso e regiões transcaucásicas, e mais tarde na Ásia Central; os Ingleses na índia; os Ingleses e Holandeses na Malásia e Indonésia; e, numa fase final, os Ingleses e Franceses no Médio Oriente e Norte de África. Os imperialistas governaram estes lugares durante períodos de tempo variáveis - em alguns, como o Sudeste da Ásia e a índia, durante séculos; noutros, como nas terras árabes do Médio Oriente, durante interlúdios relativamente curtos.Em qualquer desses casos, deixaram as suas marcas. No mundo árabe, o período do domínio imperial anglo-francês teve início com os Franceses na Argélia (1830) e os Ingleses em Aden (1839); continuou com a ocupação inglesa do Egipto (1882), o

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alargamento do domínio francês à Tunísia (1881) e Marrocos (1911) e a influência britânica no Golfo Pérsico; e atingiu o seu auge com a divisão das províncias árabes otomanas do Crescente Fértil entre os dois principais impérios da Europa ocidental. Desta vez os territórios recém-adquiridos não foram simplesmente anexados, à maneira tradicional, como colónias ou dependências. Foram atribuídos à Inglaterra e à França para que os administrassem como forças mandatárias, sob a autoridade da Sociedade das Nações, com a incumbência explícita de os prepararem para a independência. Tratou-se de um episódio breve, que teve início após a Primeira Guerra Mundial e terminou depois da Segunda Guerra Mundial, altura em que os mandatos cessaram e os territórios sob mandato se tornaram independentes. A maior parte da Península Arábica não foi abrangida pelo domínio das potências imperiais.Contudo, o impacte do imperialismo foi considerado enorme e, aos olhos da maior parte das pessoas da região, inteiramente nocivo.

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O impacte e os danos foram sem dúvida consideráveis, mas provavelmente menos importantes e menos parciais do que as mitologias nacionalistas fariam crer. Ao fim e ao cabo houve alguns benefícios- infra-estruturas, serviços públicos, sistemas educativos, bem como algumas mudanças sociais, entre as quais se destacam a abolição da escravatura e a considerável redução - embora não a eliminação- da poligamia. As diferenças podem ser vistas muito claramente, se compararmos os países que sofreram sob o jugo imperial, como o Egipto e a Argélia, com aqueles que nunca perderam a independência, como a Arábia e o Afeganistão. Na Arábia Saudita as universidades surgiram tarde e em número reduzido. Actualmente, para uma população estimada em 21 milhões, existem oito universidades - mais uma do que os sete estabelecimentos de ensino superior fundados pelos Palestinos desde a ocupação israelita dos territórios em1967. A escravatura na Arábia Saudita só foi abolida por lei em1962, e a sujeição das mulheres continua totalmente em vigor.Mas houve sem dúvida importantes consequências negativas do imperialismo e, ainda mais extensas, da influência ocidental ou europeia, mesmo naqueles países que conseguiram conservar a sua independência política, como a Turquia e o Irão. Entre os efeitos da modernização são de realçar o fortalecimento da autoridade do Estado através do reforço dos dispositivos de vigilância, da repressão e da doutrinação, e ao mesmo tempo o enfraquecimento ou eliminação das forças intermediárias que, na ordem tradicional, limitavam o poder efectivo dos governantes autocráticos. A mudança social, com o colapso das antigas relações e obrigações sociais, prejudicou grandemente a sociedade e deu origem a novas e profundas diferenças, que as comunicações modernas tornaram ainda mais visíveis. Já em 1832 um perspicaz observador britânico, um jovem oficial da marinha de seu nome Adolphus Slade, notou essa diferença entre aquilo a que ele chamava a velha nobreza e a nova nobreza. A velha nobreza, dizia ele, vivia nas suas propriedades. Para a nova nobreza, a sua propriedade era o Estado. Isto continua a ser verdade em grande parte da região, nos dias de hoje.No início do século XX - embora a Turquia e o Irão e alguns países mais remotos, como o Afeganistão, que na altura não pareciam justificar o incómodo de os invadir, conservassem

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uma independência precária - a quase totalidade do mundo muçulmano tinha sido

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anexada aos quatro impérios europeus da Grã-Bretanha, França, Rússia e Holanda. Os governos e as facções do Médio Oriente foram obrigados a aprender a virar esses poderosos adversários uns contra os outros. Durante algum tempo fizeram esse jogo com um certo êxito. Uma vez que os aliados ocidentais - Grã-Bretanha e França e, depois, os Estados Unidos - dominavam efectivamente a região, os resistentes do Médio Oriente procuravam naturalmente o apoio dos inimigos desses aliados. Na Segunda Guerra Mundial viraram-se para a Alemanha; durante a guerra fria, para a União Soviética.Já em 1914 a Alemanha, então aliada do Império Otomano, tentara mobilizar o sentimento religioso dos súbditos muçulmanos dos impérios britânico, francês e russo contra os seus dominadores e, por conseguinte, a favor da Alemanha. O esforço produziu magros resultados e foi eficazmente ridicularizado pelo grande orientalista holandês Snouck Hurgronje, num famoso artigo intitulado «Guerra Santa: Made in Germany».Onde o kaiser falhara, Hitler foi durante algum tempo particularmente bem sucedido. Nos finais de Março de 1933, a poucas semanas da subida de Hitler ao poder, o mufti de Jerusalém, Hajj Amin al-Husseini, dirigiu-se ao cônsul-geral da Alemanha em Jerusalém, Dr. Heinrich Wolff, e ofereceu-lhe os seus serviços. O cônsul, ao dar conhecimento desta oferta a Berlim, recomendou que a mesma fosse rejeitada ou, pelo menos, ignorada. Enquanto houvesse alguma esperança de conquistar o Império Britânico para aliado da Alemanha, não havia interesse em antagonizar os Ingleses criando laços com o que na altura era um movimento fundamentalmente antibritânico. Só depois dos acordos de Munique de 1938, quando Hitler finalmente desistiu da sua esperança de convencer os Ingleses a fazer uma aliança ariana com a Alemanha, é que as propostas das chefias palestinianas foram aceites. A partir daí e ao longo dos anos da guerra, as suas ligações foram muito fortes, e o mufti, primeiro em Jerusalém, a seguir em Beirute e depois em Bagdad, e por fim a partir do seu gabinete nos arredores de Berlim, desempenhou um importante papel na política interárabe. Em 1941, com a ajuda da Alemanha através da Síria controlada pelo governo de Vichy, Rashid ’Ali conseguiu estabelecer durante algum tempo no Iraque um regime pró-Eixo. Foi derrotado pelas tropas aliadas e fugiu para a Alemanha. O

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próprio Anwar Sadat admitiu pessoalmente ter trabalhado como espião a favor da Alemanha no Egipto ocupado pelos Ingleses.A derrota e colapso do Terceiro Reich e das suas diversas agências deixou um vazio doloroso. Segundo muitas opiniões, foi durante o interlúdio daí resultante que em 1948 os judeus conseguiram estabelecer o seu estado e infligir uma derrota humilhante aos exércitos árabes que foram enviados para o evitar. Precisava-se urgentemente de um patrono e protector, um substituto para o Terceiro Reich. Foi encontrado na União Soviética.Mas depois deu-se o colapso da União Soviética, que deixou os Estados Unidos como única superpotência mundial. A era da história do Médio Oriente que tinha sido iniciada por Bonaparte e Nelson foi encerrada por Mikhail Gorbachev e George Bush sénior. A princípio parecia que a era da rivalidade imperial tinha terminado com a retirada dos dois

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adversários - a União Soviética porque não podia, e os Estados Unidos porque não desempenhariam o papel de império. Mas em breve surgiram acontecimentos, sobretudo a Revolução Iraniana e as guerras do ditador do Iraque, Saddam Hussein, que obrigaram os Estados Unidos a um envolvimento mais directo nos assuntos da região. O Médio Oriente viu isto como uma nova fase do velho jogo imperial. Os Americanos não, e mostraram que não tinham o desejo nem a aptidão para desempenhar o papel de império.Os líderes muçulmanos, tanto no governo como na oposição, reagiram de maneiras diferentes a esta nova situação. Para alguns, a resposta natural era procurar um novo patrono - um sucessor do Terceiro Reich e da União Soviética, para quem se pudessem voltar em busca de estímulo, apoio, e ajuda na guerra contra o Ocidente. O Ocidente como um bloco de força tinha-se entretanto deslocado mais para ocidente e consistia agora essencialmente nos Estados Unidos, dando uma interessante nova possibilidade à Europa continental de assumir o papel oposto. De facto alguns Europeus, partilhando por razões pessoais o rancor e a hostilidade do Médio Oriente para com os Estados Unidos, mostraram vontade de aceitar esse papel. Mas embora tenham a vontade, faltam-lhes os meios.O colapso da União Soviética, seguido da derrota de Saddam Hussein na Guerra do Golfo de 1991, foi um golpe devastador para os movimentos nacionalistas seculares, sobretudo o dos Palestinos,

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que uma vez mais, tal como em 1945, se viram privados do apoio e da ajuda de uma grande potência para a sua causa. O protector soviético desaparecera. Mesmo os seus apoiantes financeiros árabes do Koweit e Arábia Saudita, enfurecidos com o apoio entusiástico dos Palestinos a Saddam Hussein, interromperam os seus subsídios durante algum tempo, deixando os Palestinos isolados, empobrecidos e debilitados. Foi essa situação que os levou a pensar o impensável e a entrar num processo de paz com Israel. A OLP foi apoiada, de forma ignominiosa aos olhos dos fundamentalistas, pelos Americanos e Israelitas, e persuadida a entrar num aviltante diálogo com Israel.Tudo isto conferiu uma maior plausibilidade à visão do mundo por parte dos fundamentalistas, e uma maior atracção para a sua causa. Interpretaram - e sobretudo Osama bin Laden - o colapso da União Soviética de forma diferente. No seu entendimento eram eles, e não a América, que tinham ganho a guerra fria. Aos seus olhos, a União Soviética não era a ajuda benigna na luta comum contra os judeus e os imperialistas do Ocidente, mas sim a fonte do ateísmo e da descrença, o opressor de muitos milhões de súbditos muçulmanos, e o invasor do Afeganistão. Do seu ponto de vista, não de todo improvável, fora a sua luta no Afeganistão que derrotara o poderoso Exército Vermelho e levara os soviéticos à derrota e ao colapso. Tendo eliminado a mais feroz e mais perigosa das duas superpotências infiéis, a sua próxima tarefa era tratar da outra, os Estados Unidos, e nesta guerra os que fizessem concessões eram ferramentas e agentes do inimigo infiel. Por várias razões, os fundamentalistas islâmicos estavam convencidos de que combater a América seria tarefa mais simples e fácil. Segundo eles, os Estados Unidos tinham-se tornado moralmente corruptos, socialmente degenerados, e, consequentemente, enfraquecidos política e militarmente. Esta convicção tem uma história interessante.

IV

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À Descoberta da América

Durante muito tempo soube-se muito pouco acerca da América em terras do Islão. A princípio, as viagens de descoberta despertaram algum interesse - a única cópia que resta do mapa da América feito por Cristóvão Colombo é uma tradução e adaptação turca, que ainda se conserva no Museu do Palácio Topkapi, em Istambul. Uma descrição da descoberta do Novo Mundo, feita no século XVI por um geógrafo turco e intitulada A História das índias Ocidentais, foi um dos primeiros livros impressos na Turquia, no século XVIII. Mas o interesse foi mínimo, e pouco foi dito acerca da América em turco, árabe, ou noutras línguas muçulmanas, até tempos relativamente recentes. A Revolução Americana, ao contrário da Revolução Francesa alguns anos mais tarde, passou quase despercebida e foi vista, quando muito, como uma espécie de insurreição familiar. Um embaixador marroquino, que se encontrava em Espanha nessa altura, escreveu aquilo que deve ser com certeza o primeiro relato árabe da Revolução Americana:O embaixador inglês deixou Espanha por causa da guerra que rebentou entre os Espanhóis e os Ingleses. A causa da mesma foi que os habitantes da América eram súbditos do rei de Inglaterra e, graças ao imposto que lhes cobrava, ele era mais forte que os outros povos cristãos. Diz-se que ele aumentou a carga de contribuições e impostos sobre eles, e lhes enviou um barco carregado de chá e os obrigou a pagar por ele mais do que era costume. Eles recusaram-se a pagar e pediram-lhe que aceitasse o dinheiro que lhe era devido da parte deles e que não lhes impusesse contribuições excessivas. Tendo ele

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recusado, eles sublevaram-se em rebelião contra ele, pretendendo a independência. Os Franceses ajudaram-nos na sua rebelião contra os Ingleses, esperando assim lesar e enfraquecer o rei de Inglaterra, porque ele era o mais forte de entre as diferentes raças de cristãos que andam no mar, (1).O sultão de Marrocos assinou um tratado de amizade com os Estados Unidos em 1787, e depois disso a nova república teve alguns contactos, uns amigáveis e outros hostis, a maior parte de natureza comercial e todos eles limitados, com outros estados muçulmanos.A primeira menção da América como símbolo político registada no mundo islâmico foi feita em Istambul a 14 de Julho de 1793, quando o embaixador da República Francesa recentemente chegado realizou uma comemoração pública que culminou com uma salva de tiros disparada de dois navios franceses ancorados no promontório de Seraglio. De acordo com o relatório do embaixador, eles içaram as cores do Império Otomano, das Repúblicas Francesa e Americana, e «as de alguns outros países que não tinham manchado as suas armas na ímpia aliança dos déspotas», (2).Um embaixador francês que veio depois para Istambul, o general Aubert du Bay et (posteriormente Dubayet), chegando ali em 1796, era de certa forma americano, pois tinha nascido em Nova Orleães e combatera no exército dos Estados Unidos. Desenvolveu alguns esforços para difundir as ideias da revolução na Turquia.Mas isto eram iniciativas francesas, não americanas, e enquanto as ideias da Revolução Francesa se repercutiam no pensamento e nas letras turcas e árabes ao longo do século XIX, a Revolução Americana, e a República Americana a que ela deu origem, durante muito tempo foram ignoradas e até desconhecidas. Mesmo a presença crescente de Americanos - mercadores, cônsules, missionários e professores - despertou pouca ou nenhuma

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curiosidade, e quase não é mencionada na literatura e nos jornais da época. Os compêndios de geografia, a maior parte deles traduzidos ou adaptados de originais europeus, contêm breves alusões factuais ao hemisfério ocidental; os jornais incluem poucas referências dispersas a acontecimentos ocorridos nos Estados Unidos, em geral designados pela forma francesa do nome, États Unis, Itâzúni em árabe, ou qualquer coisa parecida. Um compêndio escolar publicado no Egipto em1833, traduzido do francês e adaptado pelo famoso escritor e tradutor

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Sheikh Rifa’a Râfi’ al-Tahtâwi (1801-1873), inclui uma breve descrição dos Itâzúni «como um país (dawlá) composto por diversas regiões (iqlím), unidas numa república, em terras da América do Norte. Os seus habitantes são tribos que vieram [...] de Inglaterra e tomaram posse daquelas terras. Depois libertaram-se do domínio dos Ingleses e passaram a ser livres e independentes. Este país é um dos mais civilizados da América, e nele é permitido o culto de todas as fés e as comunidades religiosas. A sede do seu governo é uma cidade chamada Washington», (3). As frases finais são notáveis.Em finais do século XIX e inícios do século xx dá-se um pouco mais de atenção à América em compêndios e enciclopédias e também nos jornais, mas é ainda muito limitada e parece ter sido, no essencial, confinada às minorias não-muçulmanas. As referências à América na área geral da literatura são na sua totalidade nem positivas nem negativas, mas brevemente descritivas. Os missionários é claro que não eram apreciados nos círculos muçulmanos, mas tirando isso não parece que tenha havido desconfiança, e muito menos ódio. Depois do final da guerra civil, alguns oficiais americanos desempregados chegaram a fazer carreira ao serviço de governantes muçulmanos, ajudando-os a modernizar os seus exércitos. Os missionários americanos, embora proibidos de converter muçulmanos, conseguiram fazer com que alguns cristãos ortodoxos passassem a ser presbiterianos, e, mais importante que isso, conseguiram proporcionar um ensino moderno, de nível secundário e superior, a um número cada vez maior de rapazes e mais tarde também de raparigas, a princípio provenientes das minorias e por fim também muçulmanos. Alguns dos alunos formados por essas escolas foram mesmo para os Estados Unidos, a fim de prosseguirem os seus estudos em institutos e universidades americanas. Também estes, a princípio, provinham principalmente das minorias cristãs; mas foram em devido tempo seguidos por um número sempre crescente de compatriotas muçulmanos, alguns dos quais subsidiados até pelos governos dos seus países.A Segunda Guerra Mundial, a indústria do petróleo e as evoluções do pós-guerra levaram muitos Americanos a terras islâmicas; um número cada vez maior de muçulmanos veio também para a América, primeiro como estudantes, depois como professores, homens de negócios ou então visitantes, e por fim como imigrantes. O cinema e mais tarde a televisão deram a conhecer o estilo de vida

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americano ou, de alguma maneira, uma versão do mesmo, a muitos milhões de pessoas para quem o simples nome da América não tinha até aí qualquer significado ou era desconhecido. Uma vasta gama de produtos americanos, sobretudo nos anos que se seguiram imediatamente ao pós-guerra, em que a concorrência europeia foi virtualmente

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eliminada e a concorrência japonesa ainda não tinha surgido, alcançou os remotos mercados do mundo muçulmano, conquistando novos clientes e, o que é talvez mais importante, originando novos gostos e ambições. Para alguns, a América representava liberdade, justiça e oportunidade. Para muitos mais, representava riqueza, poder e sucesso, num tempo em que estas qualidades não eram consideradas pecados ou crimes.E depois deu-se a grande mudança, quando os líderes de um despertar religioso muito difuso e alargado procuraram os seus inimigos e os identificaram como os inimigos de Deus, e lhes atribuíram «uma morada localizada e um nome» no hemisfério ocidental. Subitamente, ou pelo menos assim pareceu, a América tinha-se tornado o grande inimigo, a encarnação do mal, o oposto diabólico de tudo o que é bom e especificamente, aos olhos dos muçulmanos, do Islão. Porquê?

Entre as componentes do clima de antiamericanismo contavam-se certas influências intelectuais provenientes da Europa. Uma delas vinha da Alemanha, onde uma visão negativa da América fazia parte de uma escola de pensamento que incluía escritores tão diferentes como Rainer Maria Rilke, Oswald Spengler, Ernst Jiinger e Martin Heidegger. Segundo as suas ideias, a América era o exemplo acabado da civilização sem cultura; rica e confortável, materialmente avançada, mas desprovida de alma e artificial; resultante de uma montagem ou, quando muito, de uma construção, e não de um processo de crescimento; mecânica e não orgânica; tecnologicamente complexa, mas sem a espiritualidade e a vitalidade das culturas nacionais enraizadas e humanas dos Alemães e dos outros povos «autênticos». A filosofia alemã e sobretudo a filosofia da educação gozaram de uma popularidade considerável entre os intelectuais árabes e outros muçulmanos durante a década de 30 e o início

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dos anos 40 do século XX, e esse antiamericanismo filosófico fazia parte da mensagem. A versão nazi das ideologias alemãs era influente nos círculos nacionalistas, sobretudo entre os fundadores e seguidores do Partido Ba’th na Síria e no Iraque. Após a rendição da França à Alemanha em Junho de 1940, os territórios da Síria e do Líbano, sob mandato da França, continuaram a ser controlados pelas autoridades de Vichy, e portanto eram de fácil acesso aos Alemães, servindo-lhes de base para as suas actividades no mundo árabe. Entre estas foi particularmente notável a tentativa - durante algum tempo bem sucedida - de estabelecer um regime pró-nazi no Iraque. A fundação do Partido Ba’th data desse período. Estas actividades terminaram com a ocupação da Síria e do Líbano pelos Ingleses (e pela França Livre) em Julho de 1941, mas o Partido Ba’th e as suas ideologias características sobreviveram.O tema da artificialidade americana e da falta de uma identidade nacional genuína como a dos Árabes aparece com frequência nos textos do Partido Ba’th e é ocasionalmente invocado por Saddam Hussein, como por exemplo num discurso de Janeiro de 2002. À medida que as guerras - a Segunda Guerra Mundial e depois a guerra fria - continuavam, e a liderança do Ocidente por parte da América se tornava mais evidente, a quota americana do ódio daí resultante foi-se tornando mais significativa.Após o colapso do Terceiro Reich e o fim da influência alemã, outra potência e outra filosofia, ainda mais antiamericanas, ocuparam o seu lugar: a versão soviética do marxismo, com a sua denúncia do capitalismo ocidental, e da América como a sua forma

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mais avançada e mais perigosa. O facto de os Russos terem dominado, com mão nada leve, o vasto império asiático conquistado pelos czares e reconquistado pelos soviéticos, não os impediu de assumir, com considerável sucesso, a posição de defensores e patrocinadores dos movimentos anti-imperialistas que alastraram pelo mundo após a Segunda Guerra Mundial, principalmente mas não apenas no Médio Oriente. Em 1945, segundo se afigurava nesse tempo, o socialismo era a onda do futuro. Na Europa de Leste, a União Soviética triunfara no campo de batalha. Na Europa Ocidental, o Partido Trabalhista inglês chegou a derrotar o grande Winston Churchill nas eleições gerais de 1945. Várias formas de socialismo foram avidamente abraçadas por governos e movimentos em todo o mundo árabe.

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Mas, embora estes patrocinadores estrangeiros e filosofias importadas fornecessem ajuda material e expressão intelectual ao antiocidentalismo e antiamericanismo, não foram eles que lhes deram origem, e sem dúvida não explicam o antiocidentalismo generalizado que fez com que tantos, no Médio Oriente e em todo o mundo islâmico, fossem receptivos a essas ideias. É bem evidente que aquilo que favoreceu a aceitação dessas doutrinas totalmente diversas não foi a teoria da raça dos nazis, que pouco interesse pode ter tido para os Árabes, nem o comunismo ateu dos soviéticos, que não tem nenhum atractivo para os muçulmanos, mas sim o seu antiocidentalismo básico. O nazismo e o comunismo eram as principais forças que se opunham ao Ocidente, não só como estilo de vida mas também como uma força no mundo, e nessa qualidade podiam contar com a simpatia ou mesmo com a colaboração daqueles que viam no Ocidente o seu principal inimigo.Mas porquê? Se passarmos do geral ao específico, o que não falta são políticas e acções individuais, seguidas e praticadas por governos ocidentais, que despertaram, cada uma por si, a ira arrebatada do Médio Oriente e de outros povos islâmicos, expressa nas suas várias lutas - para se tornarem independentes do controlo ou domínio estrangeiro; para libertarem os seus recursos naturais, sobretudo o petróleo, da exploração estrangeira; para derrubar governantes e regimes considerados agentes ou imitadores do Ocidente. No entanto, o que acontece muitas vezes quando essas políticas são postas de parte e os problemas são solucionados, é registar-se apenas, quando muito, um alívio local e temporário. Os Ingleses saíram do Egipto e os Franceses da Argélia, e tanto uns como outros abandonaram as suas outras possessões árabes; as monarquias foram derrubadas no Iraque e no Egipto; o ocidentalizado xá saiu do Irão; as companhias de petróleo ocidentais renunciaram ao controlo dos poços de petróleo que tinham descoberto e desenvolvido, e contentaram-se com os acordos que lhes foi possível fazer com os governos desses países - contudo, o ressentimento generalizado dos fundamentalistas e outros extremistas contra o Ocidente mantém-se, e aumenta, e não abranda.

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O mais citado exemplo de interferência do Ocidente e das suas consequências talvez seja o derrube do governo de Mosaddeq no Irão, em 1953. A crise começou quando o líder nacionalista popular Mosaddeq decidiu, com o apoio geral do país, nacionalizar as companhias petrolíferas, sobretudo a mais importante de todas, a Companhia Anglo-iraniana. É claro que as condições em que esta e outras companhias petrolíferas

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concessionárias funcionavam eram muito justamente consideradas desiguais e desfavoráveis. Por exemplo, a companhia petrolífera anglo-iraniana pagava mais em impostos ao governo britânico do que em direitos de exploração ao governo do Irão. Os Estados Unidos envolveram-se na questão, primeiro como aliados da Grã-Bretanha e depois, de modo crescente, por temer o envolvimento soviético ao lado do governo de Mosaddeq. Os governos americano e britânico decidiram então, alegadamente de acordo com o xá, ver-se livres de Mosaddeq através de um golpe de Estado. De início, o golpe não correu muito bem. Mosaddeq simplesmente prendeu o mensageiro do xá e ordenou a prisão do general Zahedi, líder do golpe e pretenso chefe do novo governo do xá. Durante um certo tempo os apoiantes de Mosaddeq e membros do Partido Comunista Tudeh realizaram manifestações de massas nas ruas, acusando o xá e o seu pai e gritando: «Vão para casa, ianques». O próprio xá fugiu com a esposa para o Iraque, onde se encontrou secretamente com o embaixador americano, e depois prosseguiu a fuga para Roma.Entretanto o carácter das manifestações em Teerão mudou. Primeiro tinham sido todas contra o xá; agora começavam a ser-lhe favoráveis, com a particularidade de os militares aparecerem nas ruas a apoiá-lo. Depois de uma série de manifestações, Mosaddeq foi derrubado e Zahedi substituiu-o como primeiro-ministro. A 19 de Agosto de 1953 o xá recebeu as notícias num telegrama da Associated Press: «Teerão: Mosaddeq derrubado. Tropas imperiais controlam Teerão. Zahedi primeiro-ministro.» Pouco depois o xá regressou a Teerão e voltou a ocupar o seu trono.As consequências, de acordo com os padrões da região, foram bastante suaves. O ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Mosaddeq foi executado e vários dos seus apoiantes condenados à prisão. Mosaddeq foi levado a julgamento e sentenciado a três anos de prisão domiciliária. Após a libertação em Agosto de 1956 viveu sob vigilância permanente na sua propriedade, até 1967. Devido

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à intervenção activa da CIA americana e da MI6 inglesa no derrube do regime e regresso do xá, este passou a ser visto por grupos consideráveis de súbditos primeiro como uma marioneta dos Ingleses e depois dos Americanos.Se assim era, os manejadores da marioneta não eram de fiar nem eficientes. Quando se deu a Revolução Iraniana em 1979, nem os Ingleses nem os Americanos mexeram um dedo para que o xá não fosse derrubado. A administração americana então no governo não só não prestou qualquer ajuda como deixou claro que não tinha a intenção de fazer fosse o que fosse. De modo ainda mais dramático, durante algum tempo foi recusado asilo ao xá e à sua família nos Estados Unidos. O xá fugiu de Teerão em meados de Janeiro de1979, escapando-se, via Egipto, para Marrocos, onde ficou por tempo breve como hóspede do rei. Mas o rei de Marrocos tinha outras preocupações, sobretudo um encontro da Organização da Conferência Islâmica que ele devia acolher em Rabat no início de Abril. O rei Hassan pediu por isso ao xá que partisse antes de 30 de Março. Este informou o embaixador americano de que agora gostaria de aceitar a oferta de asilo do presidente Carter, vindo a saber que essa oferta tinha sido retirada, aparentemente na convicção de que o estabelecimento de boas relações com os novos governantes do Irão tinha prioridade em relação à concessão de asilo ao xá e à família. Os Estados Unidos só cederam quando o xá se encontrou às portas da morte e urgentemente necessitado de cuidados médicos. A 22 de Outubro de 1979, o xá foi informado de que podia dirigir-se para os Estados Unidos.

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Chegou a Nova Iorque no dia seguinte de manhã cedo e foi directamente para o hospital. Tendo-se apercebido de que a sua presença estava a causar problemas aos Estados Unidos, apesar da sua grave doença deixou o país e foi para o Panamá, onde escapou por um fio à extradição para o Irão, e do Panamá regressou ao Egipto, onde morreu em 1980.Vários grupos da região tiraram duas lições destes acontecimentos: uma, que os Americanos estavam dispostos a usar a força e a intriga para instalar ou repor os seus governos-fantoche nos países do Médio Oriente; outra, que eles não eram protectores em quem se pudesse confiar quando esses fantoches eram seriamente atacados pelo seu próprio povo, limitando-se a abandoná-los. Uma suscitava o ódio e a outra o desprezo - uma combinação perigosa.

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É evidente que está em causa algo mais profundo do que estes agravos específicos, por mais numerosos e importantes que eles possam ser, algo mais profundo que transforma qualquer desacordo num problema e torna qualquer problema insolúvel. Aquilo com que nos confrontamos agora não é uma simples queixa acerca de uma ou outra medida política americana, mas sim uma rejeição e condenação, ao mesmo tempo irada e insolente, de tudo quanto se considera que a América representa no mundo moderno.Figura-chave do aparecimento destas novas atitudes foi Sayyid Qutb, um egípcio que se tornou um dos principais ideólogos do fundamentalismo muçulmano e membro activo da organização fundamentalista conhecida por Irmãos Muçulmanos. Nasceu numa aldeia do Alto Egipto em 1906, estudou no Cairo e trabalhou durante alguns anos como professor, e depois como funcionário do Ministério da Educação egípcio. Nessa qualidade foi enviado em missão de estudos especializados para os Estados Unidos, onde permaneceu de Novembro de 1948 a Agosto de 1950. O seu activismo e textos fundamentalistas tiveram início pouco tempo após o seu regresso da América para o Egipto. Depois do golpe militar de Julho de 1952, nos primeiros tempos manteve relações próximas com os chamados Funcionários Livres, mas afastou-se da sua companhia porque os seus preceitos islâmicos colidiam com as políticas secularistas do grupo. Depois de vários conflitos com as autoridades, em 1955 foi condenado a quinze anos de prisão. Graças a uma intercessão a seu favor do presidente Arif, do Iraque, foi libertado em 1964, e mais tarde, nesse mesmo ano, publicou uma das suas obras mais importantes, Ma’alim fil-Taríq (Postes de Sinalização no Caminho). A 9 de Agosto de 1965 foi preso de novo, desta vez sob a acusação de traição, concretamente de planear o assassínio do presidente Nasser. Após um julgamento sumário foi condenado à morte a 21 de Agosto de 1966. A sentença foi executada oito dias depois.A estada de Sayyid Qutb nos Estados Unidos parece ter sido um período crucial para o desenvolvimento das suas ideias acerca das relações entre o Islão e o mundo exterior e, de modo particular, no seu próprio interior. O estado de Israel tinha acabado de se formar e de sobreviver depois de combater e vencer a primeira de uma série de guerras israelo-árabes. Era o tempo em que o mundo

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começava a ter conhecimento da quase total eliminação dos judeus na Europa nazi, e a opinião pública na América, assim como em grande parte do mundo, estava

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esmagadoramente a favor de Israel. As relações que o Terceiro Reich mantivera durante a guerra com alguns líderes árabes importantes, como o mufti de Jerusalém e Rashid ’Ali do Iraque, também eram novidade, e as simpatias populares inclinavam-se naturalmente para aqueles que eram considerados vítimas de Hitler, na sua luta para escapar à morte às mãos dos cúmplices do líder nazi. Sayyid Qutb estava chocado com o nível de apoio que na América se dava àquilo que ele via como um ataque dos judeus ao Islão, com a cumplicidade dos cristãos.Mais reveladora ainda foi a sua reacção de choque ao estilo de vida americano - principalmente à sua natureza pecaminosa e depravada e à sua propensão para aquilo que ele considerava promiscuidade sexual. Sayyid Qutb tomou como um dado adquirido o contraste entre a espiritualidade oriental e o materialismo ocidental, e descreveu a América como uma forma particularmente extrema deste último. Todas as coisas na América, escreveu ele, até a religião, são avaliadas em termos materiais. Observou que havia muitas igrejas, mas avisou os seus leitores que o seu número não devia ser erroneamente interpretado como uma expressão de verdadeira religião ou sentimento espiritual. As igrejas na América, dizia, funcionam como negócios, competindo entre si para arranjar clientes e por publicidade, usando os mesmos métodos que as lojas e os teatros para atrair clientes e espectadores. Para o pastor de uma igreja, tal como para o gerente de uma loja ou de um teatro, o que conta é o sucesso, e o sucesso mede-se pelo tamanho - volume, números. Para atrair clientela, as igrejas anunciam indecorosamente, oferecendo aquilo que os Americanos mais procuram - «gozo» ou «divertimento» (citou estas palavras em inglês no seu texto em árabe). O efeito disso é que os salões de recreio das igrejas, com a bênção do clero, realizam bailes em que pessoas de ambos os sexos se encontram, se misturam e se tocam. Os sacerdotes vão ao ponto de baixar as luzes, a fim de facilitar o frenesi da dança. «A dança é estimulada pelas notas do gramofone», registou com evidente repulsa; «o salão de baile transforma-se num turbilhão de calcanhares e coxas, braços cingem ancas, lábios e peitos tocam-se, e no ar paira a luxúria». Também citou os Kinsey Reports [Relatórios Kinsey]

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sobre o comportamento sexual, para documentar a sua descrição e condenação do deboche americano generalizado. Esta percepção do Ocidente e dos seus costumes pode ajudar a explicar a razão por que terroristas devotos consideram que salões de baile, clubes nocturnos e outros lugares onde homens e mulheres se encontram são alvos legítimos. As acusações que Sayyid Qutb fez ao estilo de vida americano foram tão veementes que em 1952 foi obrigado a abandonar o seu posto no Ministério da Educação. Aparentemente, foi depois disso que ele se juntou aos Irmãos Muçulmanos.O principal ataque dos escritos e da pregação de Sayyid Qutb era dirigido contra o inimigo interno - aquilo a que ele chamava a nova era da ignorância, jâhiliyya em árabe, um vocábulo islâmico clássico que designa o período de paganismo que existiu na Arábia antes do advento do Profeta e do Islão. Na opinião de Sayyid Qutb, uma nova jâhiliyya tinha dominado os povos muçulmanos e os novos faraós que os governavam - correctamente interpretado como uma alusão aos regimes então existentes. Mas a ameaça do inimigo externo era grande e cada vez maior.Tem-se alvitrado que o antiamericanismo de Sayyid Qutb é simplesmente o resultado do facto de ele ter por acaso visitado a América, e que teria reagido de modo semelhante se o

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seu ministério o tivesse enviado para qualquer país europeu. Mas nessa altura o que contava era a América, e a sua liderança - para o bem ou para o mal - do mundo não-islâmico era cada vez mais reconhecida e discutida. A natureza pecaminosa e a depravação da América e sua consequente ameaça para o Islão e os povos muçulmanos tornaram-se artigos de fé nos círculos fundamentalistas muçulmanos.Actualmente existe uma litânia quase estandardizada de ofensas americanas que é recitada em terras do Islão, nos meios de comunicação, em panfletos, em sermões e em discursos públicos. Um exemplo digno de nota foi uma alocução de um professor egípcio na reunião conjunta da União Europeia com a Organização da Conferência Islâmica, realizada em Istambul em Fevereiro de 2002. O rol de crimes vem desde a ocupação inicial da América do Norte, com aquilo que é descrito como a expropriação e extermínio dos anteriores habitantes e os continuados maus tratos infligidos aos que deles sobreviveram. Continua com a escravidão, importação e exploração dos negros (uma acusação curiosa vinda daquela fonte) e dos imigrantes

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nos Estados Unidos. Inclui crimes de guerra contra o Japão em Hiroshima e Nagasaki, e também na Coreia, Vietname, Somália e em toda a parte. Entre esses crimes de agressão imperialista são dignas de nota as acções americanas no Líbano, Cartum, Líbia, Iraque, e, evidentemente, a ajuda a Israel contra os Palestinos. De modo mais geral, o rol de acusações inclui apoio aos déspotas do Médio Oriente e outros, como o xá do Irão e Hailé Selassie da Etiópia, e ainda uma lista variável, adaptada às circunstâncias, de déspotas árabes que tiranizaram o seu povo.Todavia, a acusação mais forte de todas é a depravação e o deboche do estilo de vida americano, e a ameaça que ele representa para o Islão. Essa ameaça, classicamente formulada por Sayyid Qutb, tornou-se parte regular do vocabulário e ideologia dos fundamentalistas islâmicos e, o que é mais importante, da linguagem da Revolução Iraniana. É isso que se pretende significar com o termo Grande Satanás, aplicado aos Estados Unidos pelo falecido Ayatollah Khomeini. Satanás, tal como é descrito no Corão, não é imperialista nem explorador. É um sedutor, «o tentador insidioso que sussurra nos corações dos homens» (Corão, CXIV, 4, 5).

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V

Satanás e os Soviéticos

O novo papel da América - e a percepção que dele tinha o Médio Oriente - foi expressivamente ilustrado por um incidente ocorrido no Paquistão em 1979. A 20 de Novembro, um bando de mil religiosos muçulmanos radicais apoderou-se da Grande Mesquita de Meca e defendeu-a durante algum tempo contra as forças de segurança sauditas. O seu objectivo declarado era «purificar o Islão» e libertar a terra santa da Arábia da «panelinha real de infiéis» e dos líderes religiosos corruptos que os apoiavam. O seu chefe, em discursos difundidos por altifalantes, acusava os ocidentais de serem os destruidores dos valores islâmicos fundamentais e o governo saudita de ser seu cúmplice.

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Exigia um retorno às velhas tradições islâmicas de «justiça e igualdade». Depois de duro combate, os rebeldes foram dominados. O seu líder foi executado a 9 de Janeiro de 1980, juntamente com sessenta e dois dos seus sequazes, entre os quais havia cidadãos egípcios, koweitianos, iemenitas, e de outros países árabes.Entretanto, realizou-se uma manifestação em apoio dos rebeldes na capital do Paquistão, Islamabad. Tinha circulado o boato - corroborado pelo Ayatollah Khomeini, que estava então em vias de se assumir como o líder revolucionário do Irão - que tropas americanas tinham estado envolvidas nos distúrbios ocorridos em Meca. A embaixada americana foi atacada por uma multidão de manifestantes muçulmanos, tendo sido mortos dois americanos e dois funcionários paquistaneses. Por que razão apoiou Khomeini um boato que não só era falso como absolutamente improvável?

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Estes acontecimentos tiveram lugar inseridos no contexto da Revolução Iraniana de 1979. A 4 de Novembro a embaixada dos Estados Unidos foi tomada, e sessenta e dois americanos foram feitos reféns. Dez deles, que eram mulheres e afro-americanas, foram imediatamente libertados; os restantes foram mantidos como reféns durante 444 dias, até que a 20 de Janeiro de 1981 foram libertados. Os motivos para isto ter acontecido, na altura confusos para muita gente, têm-se entretanto tornado mais claros, graças a posteriores declarações e revelações feitas pelos raptores e por outros. É agora evidente que a crise dos reféns se deu, não porque as relações entre o Irão e os Estados Unidos se estivessem a deteriorar, mas sim porque estavam a melhorar. No Outono de 1979 o relativamente moderado primeiro-ministro iraniano, Mehdi Bazargan, fizera diligências para se encontrar com o conselheiro americano para a segurança nacional, Zbigniew Brzezinski, sob a égide do governo da Argélia. Os dois homens encontraram-se a 1 de Novembro, e referiu-se que tinham sido fotografados a apertar as mãos. Parecia existir a possibilidade real - um verdadeiro perigo aos olhos dos radicais - de se poder dar uma certa reconciliação entre os dois países. Os opositores tomaram a embaixada e fizeram reféns os diplomatas americanos, a fim de eliminar qualquer esperança de prosseguimento do diálogo. Nisto tiveram, pelo menos até agora, um êxito completo.Para Khomeini, os Estados Unidos eram o principal inimigo contra quem ele tinha de lançar a sua guerra santa pelo Islão. Então, tal como no passado, este mundo de não-crentes era visto como a única força séria que antagonizava e impedia a divulgação divinamente ordenada do Islão e o seu triunfo. Nos primeiros textos de Khomeini, e sobretudo no seu livro Governo Islâmico, de 1970, os Estados Unidos eram raramente mencionados, e quando o eram era sobretudo no contexto do imperialismo - primeiro como ajudante e depois como sucessor do Império Britânico, mais familiar. Na altura da revolução e do confronto directo a que ela deu origem, os Estados Unidos, para ele, tinham-se tornado o principal adversário e o alvo central da raiva e do desprezo dos muçulmanos.A singular hostilidade de Khomeini para com os Estados Unidos parece ter começado em Outubro de 1964, quando ele fez um discurso em frente da sua residência em Qum, condenando veementemente,

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a lei que fora apresentada à apreciação da Assembleia iraniana, que conferia um estatuto

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extraterritorial à missão militar americana, bem como às suas famílias, pessoal, conselheiros e servidores, e imunidade em relação à jurisdição iraniana. Parecia não ter conhecimento de que imunidades semelhantes tinham sido pedidas e concedidas, como coisa normal, às forças americanas estacionadas na Grã-Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial. Mas a questão das chamadas capitulações, imunidades extraterritoriais concedidas no passado a mercadores e outros viajantes ocidentais em terras islâmicas, era uma questão sensível, e Khomeini jogou habilmente com ela. «Eles rebaixaram o povo iraniano a um nível inferior ao de um cão americano. Se alguém atropelar um cão pertencente a um americano, será processado. Mesmo que fosse o próprio xá a atropelar um cão pertencente a um americano, seria processado. Mas se um cozinheiro americano atropelar o xá, o chefe de Estado, ninguém terá o direito de se intrometer», (1). Khomeini, que já vinha tendo problemas com as autoridades, em virtude deste discurso foi desterrado do Irão a 4 de Novembro. Voltou a esta questão posteriormente, em diversos discursos e textos escritos, insultando os americanos sobretudo acerca do seu alegado respeito pelos direitos humanos e o seu desrespeito desses mesmos direitos no Irão e noutros lugares, incluindo a América Latina, situada «no seu próprio hemisfério». As outras acusações incluíam o saque das riquezas do Irão e o apoio à monarquia iraniana.Em discursos que fez após o seu regresso ao Irão, tanto a lista dos protestos como a dos inimigos tinham aumentado muito, mas a América agora estava à cabeça da lista. E não só no Irão. Num discurso pronunciado em Setembro de 1979 em Qum, ele queixou-se de que todo o mundo islâmico se encontrava nas garras da América e apelou aos muçulmanos no mundo inteiro para que se unissem contra o inimigo. Foi mais ou menos nesta altura que se começou a referir à América como «o Grande Satanás». Foi também por esta altura que acusou Anwar Sadat do Egipto e Saddam Hussein do Iraque de serem lacaios e agentes da América. Sadat servira a América ao fazer a paz com Israel; Saddam Hussein trabalhara para a América ao fazer a guerra com o Irão. Os confrontos com a América durante a crise dos reféns e a invasão do Iraque, e em muitos campos de batalha diplomáticos e económicos, confirmaram a

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opinião de Khomeini de que a América ocupava a posição central na luta entre o Islão e o Ocidente. A partir daqui a América foi «o Grande Satanás», Israel, considerado um agente da América, era «o Pequeno Satanás», e a ordem do dia era «morte à América». Era este o slogan brandido e gritado nas manifestações contra a América em 1979. Mais tarde foi-lhe dado um carácter cerimonial, quase ritualizado, que o esvaziou de quase todo o seu significado real.Os observadores americanos, alertados pela retórica da Revolução Iraniana para o seu novo estatuto de Grande Satanás, tentaram encontrar motivos para o sentimento antiamericano que havia algum tempo se intensificara no mundo islâmico. Uma explicação que durante um certo tempo foi amplamente aceite, sobretudo nos círculos da política externa americana, foi que a imagem da América fora manchada pela guerra e aliança permanente com as antigas potências coloniais da Europa. Em defesa do seu país, alguns comentadores americanos fizeram notar que, ao contrário dos imperialistas da Europa ocidental, a América fora ela própria uma vítima do colonialismo; os Estados Unidos foram o primeiro país a libertar-se do domínio britânico. Mas a esperança de que os súbditos dos antigos impérios britânico e francês no Médio Oriente aceitassem a Revolução Americana como

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modelo para a sua própria luta anti-imperialista assentou numa falácia básica que os colunistas árabes depressa apontaram. A Revolução Americana, como eles observam frequentemente, não foi feita por nacionalistas americanos nativos mas por colonizadores ingleses, e, longe de ser uma vitória contra o colonialismo, representou sim o triunfo máximo do colonialismo; os Ingleses na América do Norte foram tão bem sucedidos na colonização da terra que já nem precisavam do apoio da pátria contra os habitantes originais.Pouco surpreende que os antigos súbditos coloniais no Médio Oriente considerassem a América manchada pela mesma espécie de colonialismo que a Europa ocidental. Mas o ressentimento do Médio Oriente em relação às potências imperiais nem sempre foi consistente. A União Soviética, que conservou e alargou as conquistas imperiais dos czares da Rússia, dominou com mão pesada dezenas de milhões de súbditos muçulmanos na Ásia Central e no Cáucaso. Mas não obstante isso, a União Soviética não foi alvo de semelhante reacção de ira e ódio por parte da comunidade árabe.

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O interesse da Rússia pelo Médio Oriente não era novo. Os czares tinham-se expandido para sul e leste durante séculos, e tinham anexado ao seu império vastos territórios muçulmanos, à custa da Turquia e da Pérsia e dos estados muçulmanos da Ásia Central antes independentes. A derrota do Eixo em 1945 trouxe uma nova ameaça soviética. Os Russos estavam agora fortemente entrincheirados nos Balcãs e podiam ser uma ameaça para a Turquia tanto na sua fronteira oriental como na ocidental. Já estavam no interior do Irão, ocupando a província persa do Azerbaijão. A sua ameaça para o Irão já era de longa data. Nas guerras russo-iranianas de 1804-1813 e 1826-1828, os Russos tinham conquistado a parte norte do Azerbaijão, que passou a ser uma província do império czarista e mais tarde uma república da União Soviética. Na Segunda Guerra Mundial, juntamente com os Ingleses, ocuparam o Irão, para garantir as suas vias de comunicação para uso comum. Quando a guerra terminou, os Ingleses retiraram-se; mas os soviéticos ficaram, aparentemente com a intenção de acrescentar à União Soviética a parte que faltava do Azerbaijão.Dessa vez foram repelidos. Graças, em grande medida, ao apoio da América, os Turcos conseguiram recusar os pedidos dos soviéticos para instalar bases na zona dos estreitos, enquanto os Iranianos desmantelaram o estado-fantoche comunista que eles tinham instalado no Azerbaijão persa e restabeleceram a soberania do governo do Irão em todos os seus territórios.Durante algum tempo a tentativa soviética de realizar o velho sonho dos czares encontrou oposição, e tanto a Turquia como o Irão fizeram alianças com o Ocidente. Mas o acordo militar entre a Rússia e o Egipto em 1955 trouxe de novo a Rússia para o cenário do Médio Oriente, e desta vez com um papel de liderança. Os Turcos e os Iranianos tinham uma longa experiência do imperialismo russo e por isso estavam devidamente precavidos. Já os estados árabes tinham uma experiência do imperialismo que era exclusivamente ocidental, tendo tendência para ver os soviéticos com melhores olhos. Saltando por cima da barreira a norte e negociando directamente com os estados árabes de independência recente, os Russos conseguiram, dentro de um curto espaço de tempo, conquistar uma posição muito forte.A princípio procederam de maneira muito semelhante à dos seus antecessores da Europa

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ocidental: bases militares, fornecimento de

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armas, «orientação» militar, penetração económica e cultural. Mas para o estilo de relações soviéticas isto era apenas o princípio, pois a intenção era claramente ir muito mais longe. Não restam muitas dúvidas de que, se não tivesse sido a oposição da América, a guerra fria e por fim o colapso da União Soviética, o mundo árabe teria, na melhor das hipóteses, tido sorte idêntica à da Polónia e Hungria, ou mais provavelmente à do Usbequistão. E não é tudo. Ao mesmo tempo que procuravam estabelecer um protectorado em relação aos seus aliados do Médio Oriente, os soviéticos revelavam-se uns protectores muito ineficazes. Na guerra israelo-árabe de 1967 (Guerra dos Seis Dias), bem como na de 1973, não quiseram ou não foram capazes de salvar os seus protegidos da derrota e da humilhação. O melhor que conseguiram fazer foi juntar-se aos Estados Unidos para pedir a Israel que detivesse o seu avanço.No início dos anos 70 a presença soviética tornara-se não só ineficaz como também incómoda. Tal como os seus antecessores imperiais do Ocidente, os Russos tinham estabelecido bases militares em solo egípcio em que nenhum egípcio podia entrar e avançaram para a fase clássica seguinte de pactos desiguais.Houve alguns líderes do Médio Oriente que aprenderam a lição e se voltaram, com maior ou menor relutância, para o Ocidente. De destacar, entre eles, o presidente Anwar Sadat do Egipto, que herdara as relações com os soviéticos do seu predecessor, o presidente Nasser. Em Maio de 1971 foi instigado a assinar um «tratado de amizade e cooperação» muito parcial com a URSS, (2); em Julho de1972 ordenou aos seus conselheiros militares soviéticos que abandonassem o país e deu os primeiros passos no sentido de uma aproximação aos Estados Unidos e à paz com Israel. O presidente Sadat, todavia, parece ter estado quase sozinho na sua avaliação e nos seus programas políticos, e dum modo geral estes acontecimentos parecem não ter trazido nenhuma diminuição da benevolência para com os soviéticos, e nenhum aumento da benevolência para com os Estados Unidos. Os soviéticos não sofreram nenhum castigo ou sequer censura pela sua repressão do Islão nas repúblicas centro-asiáticas e transcaucásicas, onde duzentas mesquitas foram autorizadas a prover às necessidades religiosas de 50 milhões de muçulmanos. Assim como, no que respeita à mesma questão, os Chineses não foram censurados pelas suas lutas contra os muçulmanos em Sinkiang. Da

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mesma maneira que os Americanos não receberam qualquer consideração pelos seus esforços para salvar muçulmanos na Bosnia, Kosovo e Albânia. É óbvio que havia outras considerações em curso.Talvez o exemplo mais dramático desta disparidade tenha sido a invasão do Afeganistão em finais de Dezembro de 1979 e a instalação, ali, de um governo-fantoche. Seria difícil encontrar um caso mais evidente e óbvio de agressão, conquista e dominação imperialista. Contudo, a reacção dos árabes e, de modo mais geral, do mundo islâmico, foi impressionantemente silenciosa. A 14 de Janeiro de1980, após longas demoras, a Assembleia Geral das Nações Unidas conseguiu finalmente aprovar uma resolução sobre este acontecimento, não como tinha sido sugerido,

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condenando a agressão soviética, mas «lamentando profundamente a recente intervenção armada no Afeganistão». A palavra agressão não foi usada, e o «interveniente» não foi mencionado. A resolução foi aprovada por104 contra 18 votos. Entre os países árabes, a Síria e a Argélia abstiveram-se; o Iémen do Sul votou contra; a Líbia não estava presente. O observador da OLP não votou e fez um discurso em que defendia a acção dos soviéticos. A Organização da Conferência Islâmica pouco melhor fez. A 27 de Janeiro, após muitas manobras e negociações, a OCI conseguiu realizar um encontro em Islamabad para discutir a questão soviético-afegã. Dois estados membros, o Iémen do Sul e a Síria, boicotaram a reunião; o delegado da Líbia proferiu um ataque violento aos EUA, e o representante da OLP, membro pleno da OCI, absteve-se de votar a resolução anti-soviética e apresentou as suas reservas por escrito.No mundo muçulmano houve uma certa reacção à invasão soviética - algum dinheiro saudita, algumas armas egípcias, e muitos voluntários árabes. Mas coube aos Estados Unidos organizar, com um certo êxito, um contra-ataque islâmico ao imperialismo soviético no Afeganistão. A OCI pouco fez para ajudar os Afegãos, preferindo concentrar a sua atenção em outras questões: pequenas populações muçulmanas em zonas ainda não descolonizadas e, evidentemente, o conflito israelo-palestiniano.Israel é um entre os muitos pontos - Nigéria, Sudão, Bosnia, Kosovo, Macedonia, Tchechénia, Sinkiang, Caxemira, Timor, Mindanau, etc. - em que o mundo islâmico e o não-islâmico se encontram. Cada um deles constitui a questão central para os que estão

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envolvidos nela, e uma aborrecida divagação para os outros. Os ocidentais, pelo contrário, tendem a dar mais importância aos problemas que eles esperam que possam ser resolvidas à custa dos outros. O conflito entre Israel e a Palestina tem atraído sem dúvida mais atenções do que qualquer dos outros, por várias razões. Primeiro, porque sendo Israel uma democracia e uma sociedade aberta, é muito mais fácil informar - e desinformar - sobre o que lá se passa. Segundo, porque há judeus envolvidos, o que habitualmente garante um público significativo entre aqueles que, por uma ou outra razão, são a favor deles ou contra. Um bom exemplo dessa diferença é a guerra Irão-Iraque, que durou oito anos, de 1980 a1988. Provocou muito mais mortos e destruição do que todas as guerras israelo-árabes juntas, mas atraiu muito menos atenção. Por um lado, porque nem o Iraque nem o Irão são democracias, e por isso era muito mais difícil e arriscado fazer reportagens. Por outro, porque não havia judeus envolvidos, nem como vítimas nem como agressores, e isso tornava a informação menos interessante.Uma terceira razão, e decisivamente a mais importante para que a questão palestiniana tenha a primazia, é o facto de ela ser, digamos assim, o problema autorizado - o único de que se pode falar livremente e sem correr riscos nos países muçulmanos em que os meios de comunicação pertencem inteiramente ao governo ou são por ele controlados. Com efeito, Israel é usado como uma útil cobaia para responder às reclamações acerca da privatização da economia e da repressão política em que vive a maior parte dos muçulmanos, e como uma maneira de desviar a ira daí resultante. Este método é largamente facilitado pelo cenário interno de Israel, onde qualquer má acção do governo, do exército, dos colonos ou de qualquer outro é imediatamente divulgado e qualquer mentira imediatamente revelada pelos críticos israelitas, tanto judeus como árabes, nos meios de comunicação israelitas e no parlamento. A maioria dos antagonistas de Israel não permite nenhum obstáculo semelhante

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na sua diplomacia pública.Com o declínio dos impérios da Europa ocidental, o antiamericanismo do Médio Oriente foi atribuído a outras causas mais específicas: a exploração económica, muitas vezes descrita como pilhagem dos recursos naturais das terras islâmicas, o apoio a tiranos locais corruptos que servem os objectivos da América oprimindo e

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roubando o seu próprio povo e, causa mais importante de todas, o apoio da América a Israel - primeiro no seu conflito com os Árabes da Palestina, e depois no conflito com os estados árabes vizinhos e o mundo islâmico em geral. Estas hipóteses encontram apoio em declarações dos Árabes e dos Persas, mas o argumento de que sem um ou sem outro destes obstáculos tudo teria corrido bem para as políticas americanas no Médio Oriente parece um tanto improvável. O problema palestino causou sem dúvida uma ira grande e crescente, de tempos em tempos renovada e agravada por políticas e acções de governos ou partidos israelitas. Mas será essa realmente, como alguns argumentam, a causa primeira do sentimento antiocidental?Há determinadas incongruências que surgem e que são recorrentes no registo histórico. Nos anos 30, as políticas da Alemanha nazi foram a principal causa da migração dos judeus para a Palestina, então sob mandato britânico, com a consequente consolidação no local da comunidade judaica. Os nazis não só permitiram essa migração, como até a facilitaram até a guerra rebentar, ao passo que os Ingleses, na esperança um tanto desesperada de conquistar a simpatia dos Árabes, impuseram restrições e fizeram-nas cumprir. Todavia, a liderança palestiniana da época, tal como muitos outros líderes árabes, preferia apoiar os Alemães, que mandaram os judeus para a Palestina, e não os Ingleses, que tentavam impedi-los de vir.Uma discrepância do mesmo género pode observar-se nos acontecimentos que levaram à formação do estado de Israel e aos que se lhe seguiram, em 1948. A União Soviética desempenhou um papel importante na obtenção da maioria pela qual a Assembleia Geral das Nações Unidas votou a favor do estabelecimento de um estado judaico na Palestina e deu depois imediato reconhecimento de jure a Israel. Os Estados Unidos foram mais hesitantes e deram apenas o reconhecimento de facto. Mais importante que isso, o governo americano manteve o embargo parcial de armas a Israel, enquanto a Checoslováquia, com autorização de Moscovo, enviou de imediato um fornecimento de armamento que permitiu ao novo estado sobreviver. O motivo para esta política soviética na altura não foi boa vontade para com os judeus nem má vontade para com os Árabes. Baseou-se na ideia errada - mas muito divulgada na época - de que a Grã-Bretanha ainda era a principal potência ocidental e, por

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conseguinte, o principal adversário de Moscovo. Com base nessa ideia, quem causasse problemas aos Ingleses - como tinham feito os judeus nos últimos anos do mandato da Palestina - era merecedor do apoio soviético. Mais tarde, Estaline apercebeu-se do seu erro e passou a dar mais atenção à América do que à Grã-Bretanha.Na década que se seguiu à fundação de Israel, as relações da América com o estado judeu continuaram a ser reduzidas e cautelosas. Depois da Guerra do Suez em 1956, os Estados

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Unidos intervieram de forma enérgica e decisiva para garantir a retirada das forças israelitas, inglesas e francesas. O líder soviético Khrushchev, que ficara prudentemente calado nas primeiras fases da guerra, verificou que uma declaração pró-árabe não lhe trouxera perigo de colisão com os Estados Unidos, e então - mas só então - colocou-se fortemente do lado árabe. Por altura da guerra de 1967, Israel contou com fornecedores de armamento europeu, principalmente franceses, e não com os Estados Unidos.Todavia, o regresso do imperialismo russo, agora na forma de União Soviética, a um papel mais activo nos assuntos do Médio Oriente, produziu uma reacção entusiástica no mundo árabe. Após algumas visitas diplomáticas e outras actividades, as novas relações tornaram-se claras com o anúncio oficial, em finais de Setembro de1955, de um acordo de armamento assinado entre a União Soviética e o Egipto, que durante os anos que se seguiram se tornou cada vez mais um satélite de Moscovo. Ainda mais dramático do que o acordo de armamento em si foi o modo como ele foi recebido no mundo árabe, transcendendo as diferenças e os problemas locais. As câmaras de deputados da Síria, Líbano e Jordânia reuniram-se imediatamente e votaram resoluções de enviar felicitações ao então primeiro-ministro Nasser; até Nuri Said, o governante pró-ocidental do Iraque e rival de Nasser pela liderança pan-árabe, se sentiu na obrigação de felicitar o seu colega egípcio. Quase toda a imprensa árabe deu a sua aprovação entusiástica.Porquê esta reacção? É claro que os Árabes não amavam particularmente a Rússia, nem os muçulmanos, no mundo árabe ou noutras partes do mundo, desejavam introduzir a ideologia comunista ou o poder soviético nos seus países. Nem se tratava de uma recompensa pela política de Moscovo em relação a Israel, pois esta fora bastante amigável. O que encantou os Árabes foi terem visto o

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tratado de armamento - correctamente, sem dúvida - como uma bofetada na face do Ocidente. A bofetada, e a reacção visivelmente perturbada do Ocidente e mais particularmente da América, reforçaram o sentimento de ódio e rancor para com o Ocidente e encorajaram os seus manifestantes.A expansão da influência soviética no Médio Oriente e a reacção entusiástica que ela despertou encorajaram os Estados Unidos a olhar de modo mais favorável para Israel, que agora era visto como um aliado de confiança e potencialmente útil numa região muito hostil. Hoje há a tendência para esquecer que a relação estratégica entre os Estados Unidos e Israel foi uma consequência, e não uma causa, da penetração soviética.A primeira preocupação de qualquer governo americano é, evidentemente, definir os interesses dos E.U. e planear políticas para sua protecção e progresso. No período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, a política americana no Médio Oriente, como em qualquer outra parte, era dominada pela necessidade de impedir a penetração soviética. Os Estados Unidos lamentavelmente cederam a outros a superioridade moral das linhas secundárias e foram-se envolvendo por fases: primeiro, apoiando a Inglaterra cuja posição se estava a desagregar, e depois, quando isso se tornou claramente insustentável, intervindo mais directamente, e por fim substituindo a Grã-Bretanha como defensora do Médio Oriente contra ataques externos, especificamente da União Soviética.A necessidade imediata no pós-guerra era resistir à pressão soviética na faixa norte - para garantir a retirada dos soviéticos do Azerbaijão iraniano e contrariar as suas pretensões em relação à Turquia. Esta política foi clara e compreensível e, no seu todo, foi bem sucedida

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na protecção à Turquia e ao Irão. Mas a tentativa de a alargar ao mundo árabe através do Pacto de Bagdad produziu um desastroso efeito inverso e antagonizou ou subverteu aqueles que pretendia atrair. O líder egípcio, Gamai ’Abad al-Nasser, vendo o pacto como uma ameaça à sua liderança, voltou-se para os soviéticos; o regime pró-ocidente do Iraque foi derrubado, e os regimes amigáveis da Jordânia e do Líbano correram perigo, a ponto de ambos precisarem de ajuda militar do Ocidente para se aguentarem. Desde que os soviéticos, em 1955, tinham transposto a orla a norte para penetrar no mundo árabe, tanto a ameaça como os meios para

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a combater mudaram radicalmente. Enquanto a faixa a norte aguentou firme, as terras árabes tornaram-se hostis ou, na melhor das hipóteses, receosamente neutras. Nesta situação a relação da América com Israel entrou numa nova fase.Essa relação foi durante muito tempo moldada por dois valores diferentes: um pode-se definir como ideológico ou sentimental; o outro, estratégico. Os Americanos, ensinados pela Bíblia e pela sua própria história, vêem facilmente o nascimento do novo estado de Israel como um novo Êxodo e um regresso à Terra Prometida, e é-lhes fácil criar empatia com o povo que parece estar a repetir a experiência dos Pilgrim Fathers, os pioneiros, e dos seus sucessores. Os Árabes, evidentemente, não vêem as coisas dessa maneira, e muitos europeus partilham do seu ponto de vista.O outro laço entre os Estados Unidos e Israel é a relação estratégica, que teve início nos anos 60, floresceu nos anos 70 e 80, oscilou nos anos 90, e ganhou uma nova importância quando os Estados Unidos enfrentaram as ameaças concomitantes das ambições hegemónicas de Saddam Hussein, do terrorismo fundamentalista da Al-Qaeda, e do descontentamento enraizado e crescente entre os aliados árabes da América. O valor de Israel para os Estados Unidos como uma vantagem estratégica tem sido muito discutido. Algumas pessoas nos E.U. têm visto Israel como um importante aliado estratégico na região e um bastião firme contra os inimigos externos e os regionais. Outras têm argumentado que Israel, longe de ser uma vantagem estratégica, tem sido um problema estratégico, azedando as relações dos Estados Unidos com o mundo árabe e causando o malogro das políticas americanas na região.Mas se compararmos a lista de políticas americanas no Médio Oriente com a de outras regiões, ficamos espantados, não com o seu fracasso mas sim com o seu êxito. Apesar de tudo, não há no Médio Oriente um Vietname, uma Cuba, Nicarágua ou El Salvador, nem sequer uma Angola. Pelo contrário, ao longo das crises sucessivas que têm abalado a região, tem-se registado sempre uma imponente presença americana, política, económica e cultural, quase sempre em vários países - e isto, até à Guerra do Golfo de 1991, sem que fosse necessária qualquer intervenção militar de relevo. E mesmo nessa altura a sua presença foi necessária para resgatar as vítimas de uma agressão entre Árabes, que não esteve relacionada com os Israelitas

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nem com os Palestinos. Aqueles que olham apenas para o Médio Oriente estão permanentemente ao corrente das dificuldades e malogros da política naquela região, mas se olharmos para o quadro numa perspectiva mais ampla, não podemos deixar de nos

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admirar com a eficácia da política americana no Médio Oriente se comparada, por exemplo, com as do Sudeste Asiático, da América Central ou do Sul da África.Desde o colapso da União Soviética, uma nova política americana emergiu no Médio Oriente, preocupada com objectivos diferentes. O seu objectivo principal é evitar o aparecimento de uma hegemonia regional - que uma única potência da região possa dominar a zona e assim estabelecer o controlo monopolista do petróleo do Médio Oriente. Essa tem sido a preocupação fundamental subjacente às sucessivas políticas americanas em relação ao Irão, Iraque, ou a qualquer outra futura ameaça detectada na região.A política até agora adoptada com a finalidade de evitar uma tal hegemonia é a de encorajar, armar, e quando necessário apoiar um pacto de segurança regional e, por conseguinte, essencialmente árabe. Esta política evoca inevitavelmente a infeliz lembrança de tentativas anteriores, que fizeram mais mal do que bem. Desta vez o pacto proposto poderá ter melhor sorte. O presumível inimigo já não é a terrível União Soviética, e os governantes da região vêem agora o mundo e o lugar que nele ocupam com olhos mais realistas. Mas um tal pacto, firmado com regimes instáveis que governam sociedades volúveis, é inerentemente precário, e a corrente não é mais forte que o seu elo mais fraco. A história recente do Iraque ilustra as diferentes formas como uma política dessas pode ser mal sucedida. Ao receber o xá, os E.U. fizeram com que fosse derrubado; ao encorajar Saddam Hussein, alimentaram um monstro. Seria fatalmente fácil repetir um ou ambos estes erros, com um risco considerável para os interesses do Ocidente na região e consequências terríveis para o povo que ali vive.Neste contexto, a vontade de alguns governos árabes de negociar a paz com Israel e a preocupação americana em fazer avançar o processo de paz tornam-se claras. Muitos árabes começaram a perceber que segundo a melhor estimativa da força de Israel e a pior estimativa das intenções de Israel, o estado judaico não é o seu problema mais sério, nem a maior ameaça que enfrentam. Um estado de Israel

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em guerra com os seus vizinhos seria um perigo constante, uma distracção que poderia sempre ser usada por um novo - ou até pelo mesmo - Saddam Hussein. Mas um estado de Israel em paz com os vizinhos poderia representar, no mínimo, um elemento de estabilidade democrática na região.Há, em geral, dois géneros diferentes de aliança. Um deles é estratégico e pode ser um acordo simplesmente temporário com base na percepção de ameaças comuns. Esse género de acordo pode ser alcançado com qualquer espécie de governante - o tipo de governo que ele dirige ou o modelo de sociedade que governa são ambos irrelevantes. O outro participante dessa aliança pode mudar de ideias em qualquer altura, ou pode ser ele a alterá-la se for derrubado ou substituído. Portanto, a aliança pode terminar devido a uma mudança de regime, uma mudança de líder, ou até devido a uma mudança de perspectiva. Aquilo que pode acontecer está devidamente exemplificado por acontecimentos na Líbia, no Iraque, no Irão e no Sudão, onde as mudanças políticas trouxeram uma inversão total dos programas políticos, ou, noutro sentido, pelo Egipto, onde mesmo sem mudança de regime os governantes foram capazes de se virar do Ocidente para os soviéticos e depois regressar de novo a um alinhamento com o Ocidente.A mesma flexibilidade existe também do lado americano. Do mesmo modo que aqueles aliados podem abandonar a qualquer momento os Estados Unidos, também os Estados

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Unidos se têm sentido livres, como é óbvio, de abandonar esses aliados, se a aliança se tornar muito problemática ou deixar de compensar os custos - como aconteceu, por exemplo, no Vietname do Sul, no Curdistão e no Líbano. Abandonar um aliado com o qual há apenas um acordo estratégico é algo que se pode fazer sem remorsos e sem correr o risco de receber críticas sérias no nosso país.O outro género de aliança é aquele que se baseia numa afinidade genuína de instituições, aspirações e estilo de vida - e está muito menos sujeito a alterações. Os soviéticos no seu auge estavam bem cientes disso e tentaram criar ditaduras comunistas em toda a parte onde chegaram. As democracias são mais difíceis de criar. Mas também são mais difíceis de destruir.

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VI

Modelos Ambíguos

Nas últimas décadas, os povos do Médio Oriente têm pronunciado cada vez mais uma acusação mais delicada, uma queixa nova contra a política americana: não apenas a cumplicidade da América com o imperialismo ou com o sionismo, mas algo mais próximo e mais imediato - a cumplicidade dos Estados Unidos com os déspotas corruptos que os governam. Por motivos óbvios, esta queixa particular não surge muitas vezes nos discursos públicos, nem é provável que seja mencionada nas conversas entre os funcionários dos ministérios dos Assuntos Estrangeiros e os diplomatas. Os governos do Médio Oriente, como o do Iraque, o da Síria e a Autoridade da Palestina, desenvolveram uma grande perícia no controlo dos seus meios de comunicação e na manipulação dos países ocidentais. Por razões óbvias, o assunto não é abordado nas negociações diplomáticas. Mas é discutido, cada vez com mais ansiedade e urgência, em conversas privadas com ouvintes de confiança, e recentemente até em público - e não apenas por radicais islâmicos, para quem ele é uma, ou melhor, a, questão fundamental. É interessante lembrar que a Revolução Iraniana de 1979 foi um período durante o qual este ressentimento era manifestado abertamente. O xá era acusado de apoiar a América, mas a América também era atacada por impor, como seu fantoche, aquele que os revolucionários consideravam um líder ímpio e déspota. Nos anos que se seguiram, os Iranianos descobriram que os déspotas religiosos podiam ser tão maus como os déspotas ímpios ou ainda piores, e que

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esta qualidade de despotismo não podia ser imputável a patrocinadores ou modelos estrangeiros.Há uma certa justiça numa acusação que é frequentemente dirigida contra os Estados Unidos e de modo geral contra o Ocidente: os povos médio-orientais queixam-se cada vez mais de que o Ocidente os julga segundo modelos diferentes e inferiores aos que usa para os Europeus e Americanos, tanto em relação àquilo que se espera deles como àquilo que eles devem esperar, no que concerne ao seu bem-estar económico e à sua liberdade política. Reclamam eles que os porta-vozes do Ocidente ignoram repetidamente ou defendem mesmo certas acções e apoiam certos governantes que não tolerariam nos seus próprios

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países.São relativamente poucos os que hoje no mundo ocidental pensam em si próprios como estando envolvidos num confronto com o Islão. Contudo, existe uma ideia muito difundida de que há diferenças significativas entre o avançado mundo ocidental e o resto, sobretudo os povos do Islão, e que estes são de algum modo diferentes, habitualmente com a presunção tácita de que são inferiores. As mais flagrantes violações dos direitos civis, da liberdade política e até da decência humana são ignoradas ou mesmo encobertas, e os crimes contra a humanidade, que num país europeu ou americano suscitariam uma onda de indignação, são vistos como normais e até aceitáveis. Os regimes que praticam tais violações são não só tolerados, como até eleitos para a Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, cujos membros incluem a Arábia Saudita, a Síria, o Sudão e a Líbia.O pressuposto subjacente a tudo isto é o de que esses povos são incapazes de gerir uma sociedade democrática e que não têm nem qualquer preocupação nem capacidades no que respeita à decência humana. Haja o que houver, serão governados por déspotas corruptos. Não compete ao Ocidente corrigi-los, e muito menos mudá-los, mas simplesmente fazer com que os déspotas sejam amigáveis e não hostis em relação aos interesses ocidentais. Nesta perspectiva, é perigoso intrometer-se na ordem existente, e os que procuram uma vida melhor para si e para os seus compatriotas são menosprezados, e muitas vezes energicamente desencorajados. É mais simples, mais económico e mais seguro substituir um déspota problemático por um déspota dócil, do que enfrentar os riscos imprevisíveis de uma

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mudança de regime, sobretudo de uma mudança ditada pela vontade do povo expressa em eleições livres.O princípio do «antes um diabo que já conhecemos do que um desconhecido» parece subjazer às políticas externas de muitos governos ocidentais em relação aos povos do mundo islâmico. Esta atitude é por vezes apresentada e até aceite como uma expressão de simpatia e apoio aos Árabes e às suas causas, aparentemente na convicção de que se eximirmos os governantes e líderes árabes das regras normais de um comportamento civilizado, estamos de algum modo a conceder uma dádiva aos povos árabes. Na realidade, porém, essa isenção não significa nada desse género, sendo quando muito a busca de uma aliança temporária baseada num interesse de ambas as partes e dirigida contra um inimigo comum, e por vezes também apoiada por um preconceito comum. A um nível mais profundo da realidade, é uma expressão de falta de respeito e indiferença - falta de respeito pelo passado árabe e indiferença pelo presente e pelo futuro dos Árabes.Esta abordagem goza de algum apoio tanto nos círculos diplomáticos como académicos nos Estados Unidos, e de forma mais ampla na Europa. Os governantes árabes podem por isso chacinar dezenas de milhar de súbditos, como na Síria e na Argélia, ou centenas de milhar, como no Iraque e no Sudão, privar os homens da maioria dos direitos civis e as mulheres da sua totalidade, e ensinar às crianças nas escolas o fanatismo e o ódio aos outros, sem incorrer em qualquer protesto significativo por parte dos meios de comunicação liberais do Ocidente, e muito menos em qualquer alusão a penalizações, como boicotes, perda de regalias ou denúncias, em Bruxelas. Esta atitude, por assim dizer, diplomática para com os governos árabes tem sido na verdade muito prejudicial para os povos árabes, facto de que eles se estão dolorosamente a aperceber.

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Aos olhos dos povos médio-orientais, a posição básica dos governos europeus e americano é: «Não nos importamos com o que fazem ao vosso próprio povo na vossa terra, desde que sejam cooperantes no que respeita à satisfação das nossas necessidades e à protecção dos nossos interesses».Ocasiões houve em que, mesmo estando em causa interesses americanos, o governo dos Estados Unidos traiu aqueles a quem tinha prometido apoio e que tinha persuadido a correrem riscos. Um

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exemplo significativo ocorreu em 1991, quando os Estados Unidos pediram ao povo iraquiano que se revoltasse contra Saddam Hussein. Os Curdos no Norte do Iraque e os Xiitas no Sul fizeram-no, e as forças vitoriosas dos Estados Unidos ficaram sentadas a assistir enquanto Saddam Hussein, utilizando os helicópteros que o acordo de cessar-fogo lhe permitira arrecadar, os repelia e os chacinava, grupo a grupo e região a região.O raciocínio que está por trás desta acção - ou, antes, inacção - não é difícil de ver. Não há dúvida que a coligação vitoriosa na Guerra do Golfo queria uma mudança de governo no Iraque, mas esperava um golpe de Estado e não uma revolução. Acharam que um levantamento popular genuíno podia ser perigoso - podia levar à incerteza ou mesmo à anarquia na região. Podia até originar um estado democrático, perspectiva alarmante para os «aliados» da América na região. Um golpe seria mais previsível e podia alcançar o efeito desejado: a substituição de Saddam Hussein por outro ditador mais cooperante, que podia ocupar o seu lugar entre os aliados da coligação. Esta política falhou miseravelmente e foi interpretada diferentemente na região como traição, fraqueza, loucura ou hipocrisia.Outro exemplo desse modelo ambíguo aconteceu na cidade síria de Hamah em 1982. Os distúrbios tiveram ali início com uma sublevação chefiada pelo movimento radical Irmãos Muçulmanos. O governo sírio respondeu rapidamente e em força. Não usaram canhões de água e balas de borracha, nem mandaram soldados enfrentar atiradores furtivos e armadilhas em buscas casa-a-casa, para encontrar e identificar os seus inimigos entre a população civil local. Usaram um método mais simples, mais seguro e mais expedito. Atacaram a cidade com tanques, artilharia e aviões bombardeiros, e a seguir a estes mandaram buldózeres para completar o trabalho de destruição. Num período de tempo muito curto tinham reduzido grande parte da cidade a entulho. O número de mortos foi calculado pela Amnistia Internacional algures entre dez mil e vinte e cinco mil.A acção, que foi ordenada e supervisionada pelo presidente sírio, Hafiz ai-Assad, poucas atenções atraiu na altura. Esta fraca reacção contrastou acentuadamente com a que foi suscitada por outro massacre, poucos meses depois nesse mesmo ano, nos campos de refugiados palestinos em Sabra e Shatila, no Líbano. Dessa vez, setecentos ou oitocentos palestinos foram massacrados por uma milícia

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cristã libanesa aliada de Israel. Isto suscitou uma forte e generalizada condenação de Israel, que se reflecte ainda nos dias de hoje. O massacre em Hamah não impediu os Estados Unidos de em seguida cortejarem Assad, que recebeu uma longa sucessão de visitas dos secretários de Estado americanos James Baker (onze vezes entre Setembro de 1990 e Julho de 1992), Warren Christopher (quinze vezes entre Fevereiro de 1993 e Fevereiro de 1996),

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e Madeline Albright (quatro vezes entre Setembro de 1997 e Janeiro de 2000), e até do presidente Clinton (uma visita à Síria e dois encontros na Suíça entre Janeiro de 1994 e Março de 2000). É muito pouco provável que os Americanos se tivessem mostrado tão ansiosos por cair nas graças de um governante que tivesse perpetrado tais crimes em solo ocidental, com vítimas ocidentais. Hafiz ai-Assad nunca se tornou aliado da América, ou, como outros diriam, seu fantoche, mas com certeza não foi por falta de tentativas por parte da diplomacia americana.Os fundamentalistas tomavam conhecimento de mais uma disparidade - outro caso não menos dramático de modelos ambíguos. Aqueles cujo massacre em Hamah despertou tão pouco interesse no Ocidente eram Irmãos Muçulmanos e as suas famílias e vizinhos. Aos olhos do Ocidente, segundo parecia, os direitos humanos não se aplicavam a vítimas religiosas muçulmanas, nem as regras da democracia aos seus assassinos «seculares».A desconfiança do Ocidente em relação aos movimentos políticos islâmicos, e a sua predisposição para tolerar ou mesmo apoiar ditadores que afastavam tais movimentos do poder pareceram ainda mais dramáticas no caso da Argélia, onde uma nova constituição democrática foi adoptada por referendo em Fevereiro de 1989 e o sistema multipartidário oficialmente estabelecido em Julho do mesmo ano. Em Dezembro de 1991, a Frente de Salvação Islâmica (FSI) saiu-se muito bem na primeira volta das eleições para a Assembleia Nacional, e pareceu mais do que provável que obteria uma clara maioria na segunda volta. A FSI já desafiara o exército argelino, acusando os militares de terem mais habilidade para reprimir o seu próprio povo do que para ajudar um irmão em dificuldades. O irmão em dificuldades era Saddam Hussein, cuja invasão do Koweit e provocação ao Ocidente despertou grande entusiasmo entre os fundamentalistas muçulmanos no Norte de África, e persuadiu os respectivos

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líderes a transferir a sua fidelidade aos padrinhos sauditas para o novo herói iraquiano. Em Janeiro de 1992, depois de um intervalo de tensão crescente, os militares cancelaram a segunda volta das eleições. Nos meses que se seguiram dissolveram a FIS e instalaram um regime «secular», que na realidade era uma ditadura implacável que mereceu sinais de aprovação em Paris, Washington e outras capitais ocidentais. Seguiu-se uma luta encarniçada e sangrenta, com acusações recíprocas de massacres - dos fundamentalistas pelo exército e outros agentes do governo menos formais, e dos secularistas e modernistas e observadores não envolvidos, pelos fundamentalistas. Em 1997 a Amnistia Internacional avaliou o número de vítimas desde o início das lutas em oitenta mil, na sua maioria civis.A Al-Qaeda responsabilizou explicitamente os Estados Unidos pela instalação do poder militar na Argélia. Aqui como em toda a parte, a América, como potência dominante do mundo dos infiéis, era naturalmente culpada por tudo o que corresse mal, e de modo particular pela repressão dos movimentos islâmicos, a chacina dos seus apoiantes, e o estabelecimento daquilo que era visto como ditaduras anti-islamitas apoiadas pelo Ocidente, especificamente pela América. Também aqui os Americanos eram culpados, por muitos, de não protestarem contra a violação das liberdades democráticas, e por alguns, de encorajarem e apoiarem activamente o regime militar. Problemas semelhantes surgem no Egipto, no Paquistão e noutros países muçulmanos onde parecia provável que eleições genuinamente livres e justas viriam a resultar numa vitória islâmica.Nisto, os democratas estão evidentemente em desvantagem. A sua ideologia exige que eles,

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mesmo quando estão no poder, concedam liberdades e direitos aos islamitas da oposição. Os islamitas, quando estão no poder, não estão sujeitos a essa obrigação. Pelo contrário, os seus princípios exigem que eles suprimam aquilo que consideram actividades ímpias e subversivas.Para os islamitas, a democracia, por expressar a vontade do povo, é a estrada para o poder, mas é uma estrada de sentido único, pela qual não há regresso, não há rejeição da soberania de Deus, conforme é exercida através dos Seus representantes escolhidos. A sua política eleitoral foi classificada sumariamente como: «Um homem (só os homens), um voto, uma vez».

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Torna-se claro que, no mundo islâmico tal como era na Europa, eleições livres e justas são o culminar, e não o início, do processo de evolução democrática. Mas isso não é razão para dar mimo a ditadores.

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VII

Uma Falha da Modernidade

O mundo muçulmano na sua quase totalidade é afectado pela pobreza e pela tirania. Ambos estes problemas são atribuídos, sobretudo por aqueles que têm algum interesse em desviar as atenções de si próprios, à América - o primeiro, ao domínio económico e à exploração por parte da América, agora ligeiramente disfarçados de «globalização»; o segundo, ao apoio da América a muitos dos chamados déspotas muçulmanos que servem os seus objectivos. A globalização tornou-se um assunto de relevo nos meios de comunicação árabes, e surge quase sempre associada à penetração económica americana. A situação económica cada vez mais miserável da maior parte do mundo muçulmano, em comparação não apenas com o Ocidente mas também com as economias em crescimento rápido do Este da Ásia, alimenta estas frustrações. A proeminência da América, tal como os povos médio-orientais a vêem, indica para onde deve ser dirigida a culpa e a consequente hostilidade.A combinação da baixa produtividade com a elevada taxa de nascimentos no Médio Oriente produz uma mistura instável, com uma população numerosa e crescente de jovens desempregados, sem instrução e frustrados. De acordo com todos os indicadores das Nações Unidas, do Banco Mundial e de outras autoridades, os países árabes - em questões como a criação de emprego, a instrução, a tecnologia e a produtividade - registam um atraso que aumenta continuamente em relação ao Ocidente. Pior ainda, as nações árabes também apresentam um atraso em relação a países que aderiram recentemente à modernidade de estilo ocidental, como a Coreia, Taiwan e Singapura.

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Os números comparativos referentes ao desempenho dos países muçulmanos, tal como estas estatísticas revelam, são devastadores. Na lista das economias por produto interno bruto, o que ocupa melhor posição entre os países de maioria muçulmana é a Turquia, com

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64 milhões de habitantes, em vigésimo terceiro lugar, entre a Áustria e a Dinamarca, que têm cerca de 5 milhões cada uma. A seguir vem a Indonésia, com 212 milhões, em vigésimo oitavo lugar, seguindo-se a Noruega que tem 4,5 milhões e é seguida pela Arábia Saudita, com 21 milhões. Num estudo comparativo do poder de compra, o primeiro estado muçulmano é a Indonésia em décimo quinto lugar, seguida pela Turquia em décimo nono. O país árabe que ocupa o lugar mais elevado é a Arábia Saudita, na vigésima nona posição, seguida pelo Egipto. No que respeita ao nível de vida tendo como indicativo o produto interno bruto per capita, o primeiro estado muçulmano é o Qatar, em vigésimo terceiro lugar, seguido pelos Emirados Árabes Unidos em vigésimo quinto lugar e o Koweit em vigésimo oitavo.Numa lista de acordo com a produção industrial, o país muçulmano que ocupa a melhor posição é a Arábia Saudita, em vigésimo primeiro, seguido pela Indonésia em vigésimo segundo, a par da Áustria e da Bélgica, e da Turquia em vigésimo sétimo juntamente com a Noruega. Numa lista relativa à esperança de vida, o primeiro estado árabe é o Koweit, em trigésimo segundo lugar, a seguir à Dinamarca e antes de Cuba. No que se refere à detenção de linhas telefónicas por cada cem pessoas, os Emirados Árabes Unidos são o primeiro país muçulmano da lista, em trigésimo terceiro lugar, a seguir a Macau e seguido pela Reunião. Quanto à posse de computadores por cada cem pessoas, o primeiro estado muçulmano da lista é o Bahrein, em trigésimo lugar, seguido do Qatar em trigésimo segundo e dos Emirados Árabes Unidos em trigésimo quarto.A venda de livros apresenta um quadro ainda mais triste. Uma lista de vinte e sete países, que começa com os Estados Unidos e termina com o Vietname, não inclui um único país muçulmano. Num índice de desenvolvimento humano, o Brunei é o número 32, o Koweit o 36, o Bahrein o 40, o Qatar o 41, os Emirados Árabes Unidos o 44, a Líbia o 66, o Cazaquistão o 67, e a Arábia Saudita partilha o número 68 com o Brasil.

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Um relatório sobre Desenvolvimento Humano Árabe de 2002, preparado por um comité de intelectuais árabes e publicado com o patrocínio das Nações Unidas, revela uma vez mais contrastes impressionantes. «O mundo árabe traduz cerca de 330 livros por ano, um quinto daqueles que a Grécia traduz. O número acumulativo total de livros traduzidos desde a época do califa Maa’moun’s (sic), (século IX), é de cerca de 100.000, quase o número que em média a Espanha traduz por ano». A situação económica não é melhor: «O PIB combinado de todos os países árabes atingiu 531,2 biliões de dólares em 1999 - menos do que o de um único país europeu, a Espanha (595,5 biliões de dólares)». Outro aspecto do subdesenvolvimento é apresentado num quadro de «cientistas em actividade de investigação, artigos citados com frequência e jornais frequentemente citados, por milhão de habitantes, de 1987», (1).

País Cientistas investigadores

Artigos citados com frequência

Número de jornais frequentemente citados por milhão de pessoas

Esstados Unidos

466.211 10.481 42,99

Índia 29.509 31 0,04

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Áustrália 24.963 280 17,3

Suíça 17.028 523 79,90

China 15.558 31 0,03

Israel 11.617 169 36,63

Egipto 3.782 1 0,02

Rep. Da Coreia

2255 5 0,12

Arábia Saudita

1915 1 0,077

Koweit 884§ 1 0,53Argélia 362 1 0,01

Isto dificilmente surpreende, dados os relativos números de analfabetismo.

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Numa lista de 155 países referente à liberdade de economia, de2001, os países do Golfo Pérsico estão bastante bem situados, sendo o Bahrein o número 9, os Emirados Árabes Unidos o 14, e o Koweit o 42. Mas o desempenho económico geral do mundo árabe, e de modo mais amplo do mundo muçulmano, continua a ser relativamente pobre. De acordo com o Banco Mundial, em 2000 o rendimento anual médio dos países muçulmanos, de Marrocos ao Bangladesh, era apenas metade da média mundial, e nos anos 90 os produtos nacionais brutos combinados da Jordânia, Síria e Líbano - isto é, três dos vizinhos árabes de Israel - eram consideravelmente menores do que o de Israel sozinho. Os números per capita são piores. De acordo com estatísticas das Nações Unidas, o PIB per capita de Israel era igual a três vezes e meia o do Líbano e da Síria, doze vezes o da Jordânia, e treze vezes e meia o do Egipto.O contraste em relação ao Ocidente, e agora também ao Extremo Oriente, é ainda mais desconcertante. Em tempos passados, essas discrepâncias podiam passar despercebidas às vastas massas da população. Hoje, graças aos meios de comunicação e informação, até os mais pobres e mais ignorantes estão dolorosamente conscientes das diferenças que existem entre eles e os outros, tanto a nível pessoal como familiar, local e social.A modernização na política não tem corrido melhor - talvez ainda pior - do que na guerra e na economia. Muitos países islâmicos tiveram experiências com instituições democráticas de uma ou outra espécie. Em alguns, como a Turquia e o Irão, elas foram introduzidas por reformadores locais inovadores; noutros, como em diversos países árabes, foram instaladas e depois deixadas em herança pelos imperialistas quando partiram. Os registos, com excepção da Turquia, mostram um insucesso quase permanente. Os partidos e parlamentos ao estilo ocidental acabaram quase invariavelmente em tiranias corruptas, mantidas à custa de repressão e doutrinação. O único modelo europeu que funcionou, no sentido de cumprir

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os seus objectivos, foi a ditadura unipartidária. O Partido Ba’th, diferentes ramificações do qual governaram o Iraque e a Síria durante décadas, encarnava os piores aspectos dos seus modelos nazi e soviético. Desde que o presidente egípcio Nasser morreu, em 1970, nenhum líder árabe conseguiu conquistar um vasto apoio fora do seu próprio país. Na realidade, nenhum líder árabe

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mostrou vontade de submeter a uma votação livre a sua pretensão ao poder. Aqueles que estiveram mais perto de conquistar a aprovação pan-árabe foram o líder líbio Muamar ai Kadhafi nos anos 70 e, mais recentemente, Saddam Hussein. O facto de estes dois serem aqueles que, de todos os líderes árabes, gozariam de uma popularidade tão vasta, é em si mesmo simultaneamente aterrador e revelador.Em face disto, não nos surpreende que muitos muçulmanos falem do malogro da modernização e respondam aos diferentes diagnósticos de doença da sua sociedade com receitas diferentes para a sua cura.Para alguns, a resposta é mais e melhor modernização, pondo o Médio Oriente a par do mundo moderno e modernizador. Para outros, a modernização é que constitui o problema e a fonte de todas as suas desgraças.Os habitantes do Médio Oriente estão cada vez mais conscientes do profundo e extenso abismo que existe entre as oportunidades do mundo livre fora das suas fronteiras e as terríveis privações e repressão no interior das mesmas. A raiva daí resultante é naturalmente dirigida em primeiro lugar contra os seus governantes, e depois contra aqueles que eles consideram que mantêm esses governantes no poder por razões de seu interesse. É com certeza significativo que todos os terroristas que foram identificados nos ataques do 11 de Setembro a Nova Iorque e Washington fossem oriundos da Arábia Saudita e do Egipto - isto é, de países cujos governantes se supõe que sejam amigos dos Estados Unidos.Uma explicação para este facto curioso, apresentada por um operacional da Al-Qaeda, é que os terroristas de países amigáveis têm menos problemas para obter vistos de entrada nos E.U. Uma razão mais básica é o facto de a hostilidade ser mais profunda nos países onde os Estados Unidos são considerados responsáveis pela manutenção de regimes déspotas. Um caso particular, actualmente sob intensa investigação, é a Arábia Saudita, onde elementos importantes do próprio regime parecem por vezes partilhar e fomentar essa hostilidade.

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VIII

O Casamento entre o Poder Saudita e a Doutrina Wahhabita

A rejeição da modernidade a favor de um regresso ao passado sagrado tem uma história variada e ramificada na região e deu origem a diversos movimentos. O mais importante deles foi sem dúvida o que ficou conhecido por wahhabismo, a partir do nome do seu fundador. Muhammad Ibn ’Abd al-Wahhab (1703-1792) era um teólogo da região de Nayd na Arábia, governada por xeques locais da Casa de Saud. Em 1744 ele lançou uma campanha de purificação e renovação. O seu objectivo declarado era regressar ao Islão puro

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e autêntico do Fundador, afastando e quando necessário destruindo todos os posteriores acréscimos e distorções.A causa wahhabita foi abraçada pelos governantes sauditas de Nayd, que a promoveram, durante algum tempo com sucesso, pela força das armas. Através de uma série de campanhas levaram o seu domínio e a sua fé a grande parte da Arábia central e oriental e fizeram até incursões às terras do Crescente Fértil, sob administração directa dos Otomanos. Depois de saquearem Karbala, o lugar sagrado dos Xiitas no Iraque, voltaram as suas atenções para o Hejaz, e em 1804-1806 ocuparam e - nas palavras deles - purificaram as cidades santas de Meca e Medina. Agora já estavam claramente a confrontar e a desafiar o sultão otomano, que o líder saudita acusou de ser um apóstata da religião muçulmana e um usurpador no estado muçulmano.O Império Otomano, mesmo nesta fase do seu declínio, foi capaz de lutar contra um rebelde do deserto. Com a ajuda do paxá do

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Egipto e das suas tropas, a tarefa completou-se em 1818, quando a capital saudita foi ocupada e o emir saudita enviado para Istambul e decapitado. Naquela altura o estado saudita deixou de existir, mas a doutrina wahhabita sobreviveu, e a partir de cerca de 1823 um outro membro da Casa de Saud conseguiu reconstituir o principado saudita, com a capital em Riade. Uma vez mais, os caciques da Casa de Saud ajudaram e foram ajudados pelos representantes da doutrina wahhabita.O aparecimento do wahhabismo na Arábia do século XVIII foi em grande medida uma reacção às circunstâncias que naquela altura se estavam a alterar. Uma delas foi, é claro, o retrocesso do Islão e correspondente avanço do cristianismo. Isto já vinha a acontecer havia muito tempo, mas era um processo lento e gradual e teve início nas remotas periferias do mundo islâmico. No século XVIII começara a tornar-se evidente também no centro. A longa e lenta retirada dos Otomanos nos Balcãs e o avanço dos Ingleses na índia estavam ainda muito distantes da Arábia, mas o seu impacte foi sentido, tanto através dos Otomanos por um lado, como no Golfo Pérsico pelo outro, e repercutiu-se sem dúvida através dos peregrinos que vinham todos os anos à Arábia de todos os cantos do mundo muçulmano. A ira dos Wahhabitas foi dirigida em primeiro lugar não contra os intrusos, mas contra aqueles que na sua opinião traíam e aviltavam o Islão lá dentro: por um lado os que tentavam qualquer espécie de reforma modernizadora, e por outro - e este era o alvo mais imediato - aqueles que os Wahhabitas achavam que corrompiam e humilhavam a verdadeira herança islâmica do Profeta e dos seus Companheiros. Como é óbvio, opunham-se fortemente a qualquer escola ou versão do Islão, tanto sunita como xiita, que não fosse a sua. Opunham-se especialmente ao sufismo, condenando não só o seu misticismo e tolerância mas também aquilo que consideravam cultos pagãos a ele associados.Sempre que podiam, punham em prática as suas crenças com a maior dureza e ferocidade, demolindo túmulos, profanando aquilo a que chamavam lugares sagrados falsos e idólatras, e chacinando grande número de homens, mulheres e crianças que não correspondiam aos seus padrões de pureza e autenticidade islâmicas. Outra prática introduzida por Ibn ’Abd al-Wahhab foi a condenação e queima de livros. Consistiam sobretudo em obras islâmicas de

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teologia e direito consideradas contrárias à doutrina wahhabita. A queima dos livros era muitas vezes acompanhada da execução sumária daqueles que os escreviam, copiavam ou ensinavam.A segunda aliança da doutrina wahhabita com a força saudita começou nos últimos anos do Império Otomano e continuou até aos dias de hoje. Dois acontecimentos do início do século XX transformaram o wahhabismo numa força essencial no mundo islâmico e fora dele. O primeiro foi a expansão e consolidação do reino saudita. Nos últimos anos do Império Otomano, o xeque ’Abd ai-’Aziz Ibn Saud (nascido em 1880, governou entre 1902-1953) jogou habilidosamente com a luta entre os Otomanos por um lado, e a expansão do poder britânico no oriente da Arábia por outro. Em Dezembro de 1915 assinou um acordo com os Ingleses segundo o qual, embora conservando a sua independência, obteve um subsídio e a promessa de auxílio se fosse atacado. O fim da guerra e a desagregação do Império Otomano puseram fim a esta fase e deixaram-no cara a cara com os Ingleses apenas. Foi muito bem sucedido com estas novas disposições e conseguiu expandir, em fases sucessivas, o reino que tinha herdado. Em 1921 venceu finalmente o seu adversário de longa data Ibn Rashid, no Norte do Nayd, anexou os seus territórios e assumiu o título de sultão de Nayd.O cenário estava agora montado para uma luta mais crucial, pela conquista do Hejaz. Esta região, que incluía as duas cidades santas muçulmanas de Meca e Medina, fora governada por membros da dinastia hashimita, descendentes do Profeta, durante mais de um milénio, e nos últimos séculos estivera sob a suserania negligente dos Otomanos. O estabelecimento de monarquias hashimitas dirigidas por vários ramos da família no Iraque e na Transjordânia, como parte da reestruturação das antigas províncias árabes otomanas após a Primeira Guerra Mundial, foi visto por Ibn Saud como uma ameaça ao seu reino. Depois de vários anos de um relacionamento cada vez pior, o rei Hussein do Hejaz deu-lhe um duplo pretexto, primeiro proclamando-se califa, segundo recusando-se a autorizar os peregrinos wahhabitas a realizarem a sua peregrinação às cidades santas. Ibn Saud reagiu invadindo o Hejaz em 1925.A guerra de conquista dos sauditas foi um sucesso total. As suas forças tomaram primeiro Meca; depois, a 5 de Dezembro de 1925 e após um assédio de dez meses, Medina rendeu-se pacificamente.

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Duas semanas mais tarde o rei ’Ali, que sucedera a seu pai, Hussein, pediu ao vice-cônsul britânico em Jedda que informasse Ibn Saud da sua retirada do Hejaz com os seus bens pessoais. Isto foi interpretado como uma abdicação, e no dia a seguir as forças sauditas entraram em Jedda. Estava aberto o caminho para Ibn Saud se proclamar rei do Hejaz e sultão do Nayd e suas possessões ultramarinas, a 8 de Janeiro de 1926. O novo regime foi imediatamente reconhecido pelas potências europeias, sendo de destacar a União Soviética, que o fez por meio de uma nota diplomática enviada a Ibn Saud a 16 de Fevereiro, «com base no princípio do direito dos povos à autodeterminação e por respeito pela vontade do povo do Hejaz, expressa na decisão de o escolher a si como seu rei», (1). A 20 de Maio de 1927 foi assinado um tratado formal entre Ibn Saud e a Grã-Bretanha, reconhecendo a independência total do reino. Alguns outros estados europeus seguiram-lhe o exemplo.O reconhecimento dos muçulmanos, pelo contrário, foi mais lento e mais relutante. Uma missão muçulmana da índia visitou Jedda e pediu ao rei que entregasse o controlo das

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cidades santas a um comité de representantes a ser nomeado por todos os países muçulmanos. Ibn Saud não respondeu a este pedido e mandou a missão de regresso à índia por mar. Em Junho do mesmo ano convocou um congresso de todo o Islão em Meca, convidando os soberanos e presidentes dos estados muçulmanos independentes e os representantes das organizações muçulmanas nos países sob regime não-muçulmano. Sessenta e nove pessoas vindas de todo o mundo islâmico assistiram ao congresso. Dirigindo-se a todos, Ibn Saud deixou claro que agora o líder do Hejaz era ele. Cumpriria os seus deveres como guardião dos lugares santos e protector da peregrinação, mas não permitiria qualquer interferência externa no seu desempenho dessas tarefas.Nessa altura suscitou reacções mistas dos seus convidados. Alguns discordaram e foram-se embora; outros aceitaram e reconheceram a nova ordem. Destaque-se que entre os últimos estava o chefe da delegação dos muçulmanos da União Soviética, cujo líder, numa entrevista à agência noticiosa soviética TASS, anunciou que este Congresso Islâmico reconhecera o rei Ibn Saud como Guardião dos Lugares Santos; exigira ainda a transferência de partes da Jordânia para o novo reino de Hejaz, e manifestara o apoio geral a Ibn Saud. O reconhecimento por parte dos estados muçulmanos levou

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mais tempo, e o dos estados árabes ainda mais. Foram assinados tratados de amizade com a Turquia e o Irão em 1929, com o Iraque em1930, e com a Jordânia em 1933. A anexação do Hejaz pelos sauditas não foi formalmente reconhecida pelo Egipto antes do acordo de Maio de 1936.Entretanto, Ibn Saud procedeu rapidamente à reorganização e reestruturação do seu dilatado reino, e em Setembro de 1932 proclamou um novo estado unitário, que se chamaria Reino da Arábia Saudita. No ano seguinte nomeou o seu filho mais velho, Saud, herdeiro do trono.No mesmo ano assistiu-se ainda a outro acontecimento importante naquela região, com a assinatura, a 19 de Maio de 1933, de um acordo entre o ministro saudita das finanças e um representante da Standard Oil da Califórnia. A política saudita e as doutrinas wahhabitas assentavam agora em sólidos alicerces financeiros.O interesse do Ocidente no petróleo do Médio Oriente datava do início do século XX e era manifestado principalmente por companhias inglesas, holandesas e francesas. O interesse da América surgiu no início da década de 1920, quando começou a aumentar a preocupação com o esgotamento das reservas nacionais de petróleo e o receio de um monopólio europeu do petróleo do Médio Oriente. Inicialmente, as companhias americanas entraram no mercado do petróleo da região como sócias mais novas de associações europeias. A Standard Oil da Califórnia era a primeira companhia americana a dedicar-se à exploração do petróleo a sério. Depois de algumas tentativas inconsequentes nos países do Golfo, a Standard Oil finalmente virou-se para os sauditas, e em 1930 pediu autorização para uma pesquisa geológica na província oriental. O rei Ibn Saud a princípio recusou o pedido, mas depois concordou em fazer negociações, as quais culminaram com o acordo de 1933. Um dos factores que induziram o rei a mudar de ideias foi, sem dúvida, a depressão que teve início em 1929 e que ocasionou sérios e crescentes danos às finanças do reino.Menos de quatro meses após a assinatura do acordo, os primeiros geólogos americanos chegaram ao leste da Arábia. No final do ano

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o grupo de pesquisas estava em pleno funcionamento e no ano seguinte equipas de pessoal americano começaram a extrair e exportar petróleo. O processo de desenvolvimento foi interrompido pela Segunda Guerra Mundial, mas foi retomado quando a guerra acabou. Os números relativos ao petróleo extraído na Arábia, em milhões de barris, dão-nos uma indicação da escala de evolução do processo:1945 - 21,3;1955 - 356,6;1965 - 804,8;1975 - 2.582,5.

O fluxo de petróleo que saía e o correspondente fluxo de dinheiro que entrava trouxeram enormes mudanças ao reino saudita, à sua estrutura interna e estilo de vida, e ao seu papel e influência externa, não só nos países consumidores de petróleo como, mais fortemente ainda, no mundo islâmico. A mudança mais significativa teve a ver com o impacte do wahhabismo e o papel dos seus protagonistas. O wahhabismo era agora a doutrina oficial, imposta pelo Estado, de um dos governos mais influentes de todo o mundo islâmico - o guardião dos dois lugares mais sagrados do Islão e anfitrião da peregrinação anual, que traz milhões de muçulmanos de todas as partes do mundo para comungarem dos seus ritos e rituais. Ao mesmo tempo, os professores e pregadores do wahhabismo tinham ao seu dispor enormes recursos financeiros, que usavam para promover e difundir a sua versão do Islão. Mesmo em países ocidentais da Europa e da América em que os sistemas públicos de instrução são bons, os centros de aprendizagem wahhabitas podem ser as únicas formas de instrução islâmica à disposição dos recém-convertidos e dos pais muçulmanos que querem dar aos seus filhos algumas bases da tradição religiosa e cultural que herdaram. Essa instrução é ministrada em escolas particulares, seminários religiosos, escolas das mesquitas, campos de férias e, cada vez mais, nas prisões.No uso islâmico tradicional o termo madrasa designava um centro de instrução superior, de erudição, ensino e investigação. A madrasa islâmica clássica foi o antepassado, e em vários aspectos o modelo, das grandes universidades medievais europeias. No uso moderno, a palavra madrasa adquiriu um significado negativo; passou a designar um centro de instrução de fanatismo e violência. Um exemplo revelador disso pode encontrar-se nos antecedentes de muitos indivíduos turcos presos por suspeita de cumplicidade em

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actividades terroristas. Todos eles nasceram e foram educados na Alemanha, nenhum deles na Turquia. O governo alemão não inspecciona o ensino religioso de grupos minoritários. O governo turco está atento a essas questões. Na Europa e na América, devido à relutância do Estado em envolver-se nos assuntos religiosos, o ensino do Islão em escolas ou noutros lugares tem de um modo geral escapado a qualquer vigilância das autoridades. Esta situação favorece claramente aqueles que têm menos escrúpulos, convicções mais fortes e mais dinheiro.O resultado talvez possa ser representado através de uma analogia fictícia. Imaginemos que a Ku Klux Klan ou qualquer grupo semelhante obtinha o controlo total do estado do Texas, do seu petróleo e, consequentemente, do rendimento desse petróleo, e que, conseguido isso,

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utilizava esse dinheiro para criar em todo o mundo cristão uma rede de escolas e colégios bem equipados, onde difundia o seu tipo peculiar de cristianismo. Esta analogia é um pouco menos assustadora do que a realidade, uma vez que a maioria dos países cristãos têm os seus próprios sistemas funcionais de escolas públicas. Em alguns países muçulmanos isto não acontece, e as escolas e colégios apadrinhados pelos Wahhabitas representam, para muitos jovens muçulmanos, o único meio de instrução disponível. Desta maneira os Wahhabitas têm feito chegar a sua mensagem a todo o mundo islâmico e, cada vez mais, às comunidades de minorias islâmicas noutros países, sobretudo na Europa e América do Norte. A vida pública organizada, a instrução e até o culto dos muçulmanos são, numa proporção alarmante, financiados e por conseguinte orientados por Wahhabitas, e a versão do Islão que eles praticam e pregam é dominada pelos princípios e atitudes wahhabitas. A custódia dos lugares santos e os rendimentos do petróleo deram um impacte mundial àquilo que de outro modo teria sido um resíduo extremista num país marginal.A exploração do petróleo trouxe muita riqueza nova e, com ela, novas tensões sociais cada vez mais cáusticas. Na sociedade antiga as desigualdades de riqueza tinham sido limitadas e os seus efeitos contidos - por um lado, pelos tradicionais laços e obrigações sociaisque

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uniam ricos e pobres, e por outro, pela privacidade da vida doméstica dos muçulmanos. A modernização tem em grande medida aumentado as distâncias, destruído esses laços sociais, e, através da universalidade dos modernos meios de comunicação, tornado dolorosamente visíveis as desigualdades daí resultantes. Tudo isto tem dado origem a audiências novas e receptivas aos ensinamentos dos Wahhabitas e de outros grupos com ideias idênticas, entre os quais os Irmãos Muçulmanos no Egipto e na Síria, e os Talibãs no Afeganistão.O dinheiro do petróleo também teve efeitos políticos negativos, por inibir a criação de instituições representativas. A máxima «sem representatividade não há impostos» assinala um passo crucial no desenvolvimento da democracia ocidental. Infelizmente, o inverso também é verdade - sem impostos não há representatividade. Os governos enriquecidos pelo petróleo não precisam de assembleias populares para lançar e cobrar impostos, e podem-se permitir, pelo menos durante algum tempo, ignorar a opinião pública. Esta expressão tem até pouco significado nesse tipo de sociedades. Na falta de qualquer outra via de escape, o novo e crescente descontentamento também encontra expressão nos movimentos religiosos extremistas.Já se tornou normal designar estes movimentos como fundamentalistas. O termo é infeliz, por uma série de razões. Era originalmente um termo dos protestantes americanos, usado para designar certas igrejas protestantes que diferiam das igrejas normais em alguns aspectos. As duas diferenças principais eram a teologia liberal e a crítica bíblica, ambas consideradas inconvenientes. A teologia liberal constituiu um ponto de debate entre os muçulmanos no passado e pode voltar a sê-lo no futuro. Actualmente não é. A divindade e infalibilidade literal do Corão é um dogma básico do Islão, e embora alguns possam duvidar disso, ninguém o contradiz. Estas diferenças não têm qualquer semelhança com as que dividem os muçulmanos fundamentalistas dos islamitas normais, e por isso o termo pode ser enganador. No entanto, é de uso comum hoje em dia, e até foi traduzido à letra para árabe, persa e turco.O eclipse do pan-arabismo fez do fundamentalismo islâmico a alternativa mais atraente

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para todos aqueles que sentiram que tem de haver algo melhor, mais verdadeiro e mais auspicioso do que as tiranias ineptas dos seus governantes e as ideologias falidas que lhes foram impingidas de fora. Esses movimentos alimentam-se de

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privações e de humilhação, e da frustração e ressentimento a que estas dão origem, após o malogro de todas as panaceias políticas e económicas, sejam as importadas do estrangeiro ou as imitações locais. Na opinião de muitos no Médio Oriente e no Norte de África, tanto o capitalismo como o socialismo foram tentados e falharam; tanto o modelo ocidental como o oriental produziram apenas pobreza e tirania. Pode parecer injusto que na Argélia pós-independência, por exemplo, o Ocidente deva ser culpabilizado pela política pseudo-estalinista de um governo antiocidental, pelo malogro de uma e a inépcia do outro. Mas o sentimento popular não está totalmente errado por ver o mundo ocidental e as ideias ocidentais como a causa derradeira das principais mudanças que transformaram o mundo islâmico no último século ou mais. Em consequência disso, grande parte da raiva do mundo islâmico é dirigida contra o Ocidental, visto como o velho e imemorial inimigo do Islão desde os primeiros embates entre os califas muçulmanos e os imperadores cristãos, e contra o ocidentalizador, visto como um instrumento ou um cúmplice do Ocidente e como um traidor da sua própria fé e do seu povo.O fundamentalismo religioso goza de diversas vantagens em relação às ideologias rivais. E facilmente compreensível tanto para os muçulmanos instruídos como para os não instruídos. Proporciona uma série de temas, slogans e símbolos, que são profundamente familiares e portanto eficazes para granjear apoio e para formular não só uma crítica daquilo que está errado como também um programa para o corrigir. Os movimentos religiosos gozam ainda de outra vantagem prática em sociedades como as do Médio Oriente e Norte de África, que se encontram sob regimes mais ou menos autocráticos: os ditadores podem proibir os partidos, podem proibir as reuniões - mas não podem proibir o culto público, e só podem controlar os sermões até certo ponto.Em consequência disso, os grupos religiosos da oposição são os únicos que têm lugares de encontro autorizados onde se podem reunir, e dispõem de uma rede fora do controlo do Estado, ou pelo menos não inteiramente subordinada a ele. Quanto mais opressor é o regime, mais favorece os fundamentalistas, dando-lhes um monopólio virtual da oposição.O radicalismo islâmico militante não é novo. Em várias ocasiões, desde os inícios do impacte do Ocidente no século xvm, tem havido

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movimentos militantes de oposição de expressão religiosa. Até ao presente todos têm falhado. Algumas vezes falharam de modo fácil e relativamente indolor, sendo derrotados e eliminados, e nesses casos a coroa do martírio trouxe-lhes um certo sucesso. Outras vezes falharam de modo difícil, conquistando o poder e tendo de enfrentar depois grandes problemas económicos e sociais para os quais não tiveram resposta adequada. Aquilo que mais habitualmente aconteceu foi terem-se tornado, com o tempo, tão opressores e tão cínicos como os antecessores por eles desalojados. É nesta fase que se podem tornar realmente perigosos, quando - isto para usar uma tipologia europeia - a revolução entra na fase napoleónica ou, talvez seja melhor dizer, na fase estalinista. Num programa de

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agressão e expansão estes movimentos gozariam, tal como os seus antecessores jacobinos e bolcheviques, da vantagem de dispor de quintas colunas em todos os países e comunidades com os quais partilham um universo discursivo comum.Falando em termos gerais, fundamentalistas muçulmanos são aqueles que sentem que os problemas do mundo muçulmano nos tempos actuais não são o resultado da modernização insuficiente, mas sim da modernização excessiva, por eles considerada uma traição dos valores islâmicos autênticos. Para eles, o remédio é um retorno ao verdadeiro Islão, incluindo a abolição de todas as leis e outros empréstimos sociais do Ocidente, e a restauração da Lei Santa islâmica, a shari’a, como verdadeira lei da terra. Do seu ponto de vista, a luta definitiva não é contra o intruso ocidental mas contra o traidor ocidentalizador no seu país. Os seus mais perigosos inimigos, na sua opinião, são os muçulmanos falsos e renegados que governam os países do mundo islâmico, os quais importaram e impuseram costumes infiéis aos povos muçulmanos.A questão é claramente expressa num texto de ’Abd al-Salâm Faraj, um egípcio que foi executado juntamente com outros em Abril de 1982, sob a acusação de ter conspirado e incitado ao assassínio do presidente Sadat. As suas afirmações lançam alguma luz sobre a motivação daquele acto:A base da existência do imperialismo nas terras do Islão são os governantes iguais a este. Para começar, a luta contra o imperialismo é um trabalho que não é glorioso nem útil, e é apenas uma perda de

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tempo. O nosso dever é concentrarmo-nos na nossa causa islâmica e esse é o primeiro de todos os preceitos da lei de Deus no nosso próprio país e que faz com que a palavra de Deus prevaleça. Não há dúvida que o primeiro campo de batalha da jihad é a extirpação destes líderes infiéis e a sua substituição por uma ordem islâmica perfeita, e daí nos virá o alívio para os nossos trabalhos, (2).Nos poucos instantes que decorreram entre o assassínio do presidente Sadat e a detenção dos seus assassinos, o líder destes exclamou triunfantemente: «Matei o faraó! Não tenho medo de morrer». Se aos olhos dos assassinos, tal como se presumiu de modo geral no Ocidente nessa altura, o crime de Sadat era ter feito as pazes com Israel, «faraó» parecia uma escolha particularmente inadequada para epíteto. Obviamente, eles não se referiam ao faraó dos modernos compêndios escolares egípcios, a personificação da grandeza e da glória do antigo Egipto. Era o faraó do Êxodo, o qual, tanto no Corão como na Bíblia, é o déspota pagão que oprime o povo de Deus. Foi sem dúvida neste sentido que Osama bin Laden falou do presidente Bush como o faraó dos dias de hoje. Nos tempos do Êxodo, os Filhos de Israel eram o povo de Deus. Os muçulmanos de hoje na sua maioria não reconhecem o moderno estado de Israel como legítimo herdeiro dos antigos Filhos de Israel - Banú Isrâ’ il no Corão - e é evidente que os assassinos de Sadat não aprovavam as suas negociações com aquele estado. Mas, como o posterior interrogatório dos homicidas e dos seus cúmplices deixou bem claro, a paz com Israel, aos seus olhos, era um fenómeno relativamente insignificante - mais um sintoma do que uma causa do pecado maior de abandonar a fé de Deus, oprimir o povo de Deus, e macaquear os costumes dos infiéis.

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IX

A Origem do Terrorismo

A maioria dos muçulmanos não é fundamentalista, e na sua maioria os fundamentalistas não são terroristas, mas os terroristas de hoje são na sua maior parte muçulmanos e identificam-se orgulhosamente como tal. De modo compreensível, os muçulmanos queixam-se de que os média falam dos movimentos e acções terroristas como «islâmicos» e perguntam por que razão não identificam eles, de modo semelhante, os terroristas e o terrorismo irlandeses e bascos como «cristãos». A resposta é simples e óbvia - eles não se designam como tal. A queixa dos muçulmanos é compreensível, mas devia ser dirigida àqueles que fazem as notícias e não àqueles que as dão. Osama bin Laden e os seus sequazes da Al-Qaeda podem não representar o Islão, e muitas das suas afirmações e das suas acções contradizem claramente os princípios e ensinamentos islâmicos básicos, mas eles surgem do interior da civilização muçulmana, tal como Hitler e os nazis surgiram do interior da cristandade, e também eles devem ser vistos no seu contexto cultural, religioso e histórico.Actualmente há várias formas de extremismo islâmico em curso. As mais conhecidas são o radicalismo subversivo da Al-Qaeda e de outros grupos semelhantes em todo o mundo muçulmano, o fundamentalismo dissuasor do governo saudita, e a revolução institucionalizada da hierarquia iraniana no poder. Todas elas são, num certo sentido, islâmicas na sua origem, mas algumas desviaram-se muito das origens.

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Todos estes diferentes grupos extremistas santificam a sua acção através de referências religiosas aos textos islâmicos, sobretudo ao Corão e às tradições do Profeta, e cada um dos três afirma representar um Islão mais verdadeiro, mais puro e mais autêntico do que aquele que é normalmente praticado pela vasta maioria dos muçulmanos e sancionado pela maior parte, mas não pela totalidade, dos líderes religiosos. São todavia muito selectivos na escolha e interpretação dos textos sagrados. Na apreciação dos dizeres do Profeta, por exemplo, descartam os métodos tradicionais desenvolvidos pelos juristas e teólogos para testar a exactidão e a autenticidade das tradições transmitidas oralmente, e em vez disso aceitam ou rejeitam até textos sagrados, conforme estes apoiam ou contrariam as suas posições dogmáticas e militantes. Alguns vão ao ponto de banir certos versículos corânicos, dando-os como «anulados» ou «abolidos». O argumento que usam para justificar isso é que os versículos revelados durante os primeiros anos da missão do Profeta podem ser substituídos por outros que são revelações mais tardias e presumivelmente mais ponderadas.Um exemplo revelador desse desvio foi a famosa fatwa lançada pelo Ayatollah Khomeini a 14 de Fevereiro de 1989 contra o escritor Salman Rushdie por causa do seu romance intitulado Os Versículos Satânicos. Na. fatwa, o Ayatollah informava «todos os zelosos muçulmanos de todo o mundo que o sangue do autor deste livro [...] que foi coligido, impresso e publicado em oposição ao Islão, ao Profeta e ao Corão, bem como o de todos os implicados na sua publicação e que conheciam o seu conteúdo, é pela presente declarado como a pena a pagar pelo seu crime. Apelo a todos os muçulmanos zelosos que os despachem depressa, onde quer que sejam encontrados, para que mais ninguém se atreva a

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insultar de novo os sentimentos sagrados do Islão. Se alguém for morto ao dar este passo, será considerado um mártir», (1).Para complementar e antecipar as recompensas do paraíso, uma caridosa trust islâmica de Teerão ofereceu um prémio a quem matasse Salman Rushdie, constituído por20 milhões de tumans (naquela altura cerca de 3 milhões de dólares ao câmbio oficial, e cerca de 170.000 dólares ao câmbio do mercado livre) se fosse um iraniano, ou 1 milhão de dólares se fosse um estrangeiro. Alguns anos mais tarde o valor do prémio, ainda não reclamado, foi aumentado pela trust.

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Não surpreende que muitos leitores pouco informados do mundo ocidental tenham ficado com a impressão de que «emitir uma fatwa» era o equivalente islâmico de «encomendar um assassínio» - isto é, ter uma vítima como alvo e oferecer uma recompensa monetária pelo seu assassínio. Tal como aconteceu com o termo madrasa, a palavra, fatwa adquiriu, no uso comum internacional, uma conotação totalmente negativa. Isto é, de facto, uma enorme incongruência. Fatwa é um termo da jurisprudência islâmica que designa um parecer ou decisão jurídica sobre uma questão de direito. Na shari’a, é o equivalente à responsa prudentium do direito romano. O jurisconsulto islâmico que tem autoridade para emitir uma fatwa chama-se mufti, que é um particípio activo proveniente da mesma raiz que fatwa. Ao fazer uso de uma fatwa para pronunciar uma sentença de morte e recrutar um assassino, o ayatollah desviava-se consideravelmente do uso islâmico clássico.O desvio não ocorria apenas no veredicto e sentença, mas também na natureza da acusação. Insultar o Profeta - acusação feita a Salman Rushdie - é sem dúvida um crime no direito muçulmano, e os juristas discutem-no com uma certa minúcia. Quase todas essas discussões giram em torno da questão de um súbdito não-muçulmano de um estado muçulmano que insulta o Profeta. Os juristas dedicam grande atenção à definição do crime, às normas da apreciação de provas e ao castigo adequado. Mostram preocupar-se muito com o facto de as acusações desse crime não poderem ser usadas como um estratagema para levar a cabo alguma vingança particular, e insistem numa cuidadosa averiguação das provas antes que seja pronunciado qualquer veredicto ou sentença. Na opinião da maioria, o açoitamento e um período de reclusão são castigo suficiente - dependendo a severidade do açoitamento e a duração do período de reclusão da gravidade do crime. O caso do muçulmano que insulta o Profeta dificilmente é tido em apreciação e deve ter acontecido muito raramente. Quando é discutido, a opinião habitual é que esse acto é equivalente à apostasia.Foi essa a acusação específica feita a Salman Rushdie. A apostasia é um crime grave no direito muçulmano e para os homens conduz à pena de morte. Mas a palavra importante nesta afirmação é «direito». A jurisprudência islâmica é um sistema de direito e justiça, não de linchamento e terror. Formula processos, de acordo com

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os quais uma pessoa acusada de um crime é levada a julgamento, é confrontada com o seu acusador e é-lhe dada a oportunidade de se defender. Depois, um juiz emite o veredicto e, se achar que o réu é culpado, pronuncia a sentença.Há no entanto outro parecer, sustentado por uma minoria de juristas, de que o crime

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cometido por um muçulmano que insulta o Profeta é tão grave que se pode, ou melhor, deve-se, dispensar as formalidades do processo criminal, julgamento e condenação, e proceder imediatamente à execução. Este parecer fundamenta-se num dito atribuído ao Profeta, mas de modo nenhum aceite por todos como autêntico: «Se alguém me insultar, então qualquer muçulmano que ouça o insulto deve matá-lo imediatamente». Mesmo entre os juristas que aceitam este dito como autêntico existe desacordo. Alguns deles insistem em que é necessário que haja alguma forma de processo ou autorização, e que a execução sumária sem essa autorização é assassínio e como tal deve ser punida. Outros argumentam que o texto daquele dito, tal como foi transmitido, não deixa dúvidas de que a execução sumária e imediata do blasfemo não é apenas legal mas obrigatória, e que aqueles que o não fizerem estão eles próprios a cometer um crime. Mesmo os mais rigorosos e extremistas de entre os juristas clássicos só exigem que um muçulmano mate alguém que insulte o Profeta se ouvir o insulto e estiver na sua presença. Nada dizem acerca de um assassínio encomendado, por causa de um insulto de que se teve conhecimento ocorrido num país distante.A santificação do assassínio contida na fatwa de Khomeini surge duma forma ainda mais avançada na prática - e no culto - do assassino suicida.

Se observarmos os registos históricos, a abordagem dos muçulmanos à guerra não difere muito da dos cristãos, nem da dos judeus em tempos muito antigos e muito recentes, quando essa opção lhes foi dada. Enquanto os muçulmanos, talvez com mais frequência que os cristãos, fizeram guerra contra os seguidores de outras religiões para os trazerem para o campo do Islão, os cristãos - com a excepção, digna de nota, das Cruzadas - propenderam mais para empreender

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guerras religiosas internas contra aqueles que eles consideravam cismáticos ou hereges. O Islão, devido, sem dúvida, ao envolvimento político e militar do seu fundador, tem aquilo a que se pode chamar uma visão mais pragmática das realidades da sociedade e do Estado do que os Evangelhos. A sua posição está mais próxima da dos primeiros livros do Antigo Testamento e da doutrina de perseguição aos Amalecitas, do que dos Profetas e dos Evangelhos. Os muçulmanos não são ensinados a oferecer a outra face, nem esperam converter as suas espadas em enxadões e as suas lanças em foices de podar (Isaías, 2:4).É claro que estes preceitos não impediram os cristãos de fazer uma série de guerras religiosas sangrentas no âmbito da cristandade e guerras de agressão fora dela.Isto levanta a questão mais vasta da tendência das religiões para a força e para a violência, e mais especificamente para o terrorismo. Seguidores de vários credos têm invocado uma vez ou outra a religião para justificar a prática do assassínio, tanto a retalho como por grosso. Duas palavras derivadas desses movimentos nas religiões orientais entraram até na língua inglesa: thug [assassino], proveniente da índia, e assassin, do Médio Oriente, ambas celebrando seitas religiosas fanáticas cuja forma de culto era assassinar aqueles que consideravam inimigos da fé.A prática e depois a teoria do assassínio no mundo islâmico surgiram em tempos muito antigos, com as disputas pela chefia política da comunidade muçulmana. Dos quatro primeiros califas islâmicos, três foram assassinados: o segundo, por um escravo cristão descontente, o terceiro e o quarto por rebeldes muçulmanos piedosos que se arvoraram em

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executores que desempenhavam a vontade de Deus. A questão levantou-se de forma enérgica em 656 d.C. com o assassínio do terceiro califa, ’Uthman, por rebeldes muçulmanos. Travou-se a primeira de uma série de guerras civis à volta da questão de saber se os assassinos estavam a executar ou a desafiar as ordens de Deus. O direito e a tradição islâmicos são muito claros no que respeita ao dever de obediência ao soberano islâmico. Mas também citam duas frases atribuídas ao Profeta: «Não há obediência em pecado» e «Não obedecei a uma criatura contra o seu criador». Se um soberano ordena algo que é contrário à lei de Deus, então o dever de obediência é substituído pelo dever da desobediência. A noção de tiranicídio - a eliminação justificada de um tirano - não

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foi uma inovação islâmica; era familiar na Antiguidade entre os judeus, os Gregos e os Romanos de igual modo, e os que o praticavam eram muitas vezes aclamados como heróis.Os membros da seita muçulmana conhecida por «os Assassinos» (do árabe Hashíshiyya), activos no Irão e depois na Síria entre os séculos XI e XII, parecem ter sido os primeiros a transformar o acto que deles recebeu o nome num sistema e numa ideologia. As suas acções, contrárias à crença popular, foram inicialmente dirigidas não contra os cruzados mas sim contra soberanos muçulmanos que eles consideravam usurpadores ímpios. Neste sentido os Assassinos são os verdadeiros antecessores de muitos dos chamados terroristas islâmicos dos nossos dias, alguns dos quais fazem questão disso explicitamente. O nome Hashíshiyya, com a sua conotação de «consumidores de haxixe», foi-lhes atribuído pelos seus inimigos muçulmanos. Eles auto-intitulavam-se fidayeen, do árabe fida’t - aquele que está pronto a sacrificar a vida pela causa.Após a derrota e eliminação dos Assassinos no século XIII, a palavra deixou de se usar. Foi ressuscitada por breve tempo em meados do século XIX, por um pequeno grupo de conspiradores turcos que tramaram para depor e talvez assassinar o sultão. A trama foi descoberta e os conspiradores foram presos. O vocábulo reapareceu no Irão, no chamado Islão fida ’iyan-i, os fida’is do Islão, um grupo terrorista político-religioso de Teerão que entre 1943, ano em que iniciou a sua actividade, e 1955, quando foi eliminado, levou a cabo uma série de assassinatos políticos. Depois de um atentado frustrado contra a vida do primeiro-ministro em Outubro de 1955, foram presos, julgados em tribunal e os seus líderes executados. A palavra foi de novo recuperada pela ala militante da Organização para a Libertação da Palestina, e a partir dos anos 60 passou a designar as actividades terroristas das organizações palestinianas.Os Assassinos diferenciavam-se claramente dos seus actuais sucessores em dois aspectos: na escolha das armas e na escolha das vítimas. A vítima era sempre uma individualidade, um líder político, militar ou religioso de categoria elevada que era visto como a fonte do mal. Ele, e apenas ele, era morto. Esta acção não era terrorismo no sentido actual da palavra, mas antes aquilo a que agora se chama assassínio com um alvo fixo. A arma era sempre a mesma: o punhal. Os Assassinos desdenhavam o veneno, as bestas e outras

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armas que podiam ser usadas à distância, e esperavam - segundo parecia, até o desejavam - não sobreviver ao seu acto, que acreditavam lhes garantiria a bem-aventurança eterna. Mas em nenhuma circunstância cometiam suicídio. Morriam às mãos dos seus captores. Os

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Assassinos foram por fim vencidos por expedições militares que se apoderaram dos seus refúgios e bases no Irão e na Síria, os dois principais países onde actuavam. Pode muito bem acontecer que os assassinos dos dias de hoje também venham a ser vencidos, mas o caminho será longo e difícil. Os Assassinos medievais eram uma seita extremista, muito afastada da corrente principal do Islão. O que não se aplica aos seus actuais imitadores.O século XX trouxe um ressurgimento dessas acções no Médio Oriente, embora de tipos diferentes e com objectivos diferentes, e o terrorismo passou por diversas fases. Durante os últimos anos do Império Britânico, os Ingleses enfrentaram movimentos terroristas nas suas possessões no Médio Oriente, os quais representavam três culturas diferentes: gregos em Chipre, judeus na Palestina e árabes em Aden. Os três agiam mais por motivos nacionalistas do que religiosos. Apesar de muito diferentes nos antecedentes e circunstâncias políticas, eram os três bastante semelhantes nas suas tácticas. O seu objectivo era persuadir a potência imperial de que permanecer na região não compensava o que isso lhe custava em sangue. O seu método era atacar pessoal e instalações militares e, em menor proporção, pessoal e instalações administrativas. Cada um dos três actuava apenas dentro do seu território e geralmente evitava provocar danos indirectos. Os três foram bem sucedidos nos seus esforços.Para os terroristas modernos, o massacre de civis inocentes e não implicados não é «danos indirectos». É o objectivo principal. Inevitavelmente, a retaliação contra os terroristas - que, evidentemente, não usam uniformes - também tem civis como alvo. A confusão de distinções que daí resulta é imensamente útil aos terroristas e aos seus simpatizantes.Graças ao rápido desenvolvimento dos média, e em especial da televisão, as mais recentes formas de terrorismo não são dirigidas a

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objectivos inimigos específicos e limitados, mas à opinião mundial. O seu propósito fundamental não é derrotar ou sequer enfraquecer militarmente o inimigo, mas obter publicidade e inspirar medo - uma vitória psicológica. A mesma espécie de terrorismo foi praticada por diversos grupos europeus, sobretudo na Alemanha, Itália, Espanha e Irlanda. Um dos mais bem sucedidos e mais persistentes nesta actividade tem sido a Organização para a Libertação da Palestina.A OLP foi fundada em 1964, mas ganhou importância em 1967, após a derrota dos exércitos árabes aliados na Guerra dos Seis Dias. A guerra formal tinha falhado; era altura de tentar outros métodos. Os alvos desta forma de luta armada não eram militares nem outras instituições governamentais, que habitualmente estão muito bem guardadas, mas lugares públicos e ajuntamentos de qualquer espécie, que são esmagadoramente civis e em que as vítimas não estão necessariamente relacionadas com o inimigo declarado. Como exemplos desta táctica contam-se, em 1970, o desvio de três aviões - um suíço, um inglês e um americano - que foram todos levados para Amã; o assassínio de atletas israelitas nos Jogos Olímpicos de Munique de 1972; a ocupação da embaixada saudita em Cartum, em 1973, onde foram assassinados dois americanos e um diplomata belga; a tomada do barco de cruzeiro italiano Achille Lauro, em1985, com o assassínio de um passageiro paraplégico. Foram perpetrados outros ataques contra escolas, zonas comerciais, discotecas e até contra passageiros em filas de espera em aeroportos europeus. Estas e outras operações da OLP foram notavelmente bem sucedidas em atingir os seus objectivos imediatos - a ocupação dos cabeçalhos dos jornais e dos ecrãs

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de televisão. Também obtiveram um grande apoio em lugares por vezes inesperados e elevaram os seus executantes ao estrelato, vindo a desempenhar papéis no drama das relações internacionais. Não admira que outros tenham sido encorajados a seguir-lhes o exemplo. Os terroristas árabes das décadas de 70 e 80 deixaram bem claro que estavam a fazer uma guerra por uma causa nacional árabe ou palestiniana, e não em nome do Islão. Com efeito, uma percentagem significativa dos líderes e activistas da OLP eram cristãos.Mas apesar dos seus êxitos mediáticos, a Organização para a Libertação da Palestina não obteve resultados significativos onde isso

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importava - na Palestina. Em todos os territórios árabes, com excepção da Palestina, os nacionalistas alcançaram os seus objectivos: a derrota e consequente retirada dos dominadores estrangeiros e a instituição da soberania nacional com líderes nacionais.Durante algum tempo, liberdade e independência foram usadas como palavras mais ou menos sinónimas e permutáveis. No entanto, a experiência inicial da independência revelou que isso era um triste erro. Independência e liberdade são coisas muito diferentes, e em muitos casos a obtenção de uma significou o fim da outra e a substituição dos suseranos estrangeiros por déspotas domésticos mais entendidos, mais familiarizados e menos contidos na sua tirania.Houve a necessidade urgente e crescente de um esclarecimento daquilo que estava errado, e de uma nova estratégia para o corrigir. As duas coisas foram encontradas no sentimento religioso e na identidade religiosa. Esta escolha não era nova. Na primeira metade do século XIX, quando os impérios europeus avançavam por muitas das terras do Islão, a resistência mais significativa ao seu avanço foi inspirada e definida pela religião. Os Franceses na Argélia, os Russos no Cáucaso e os Ingleses na índia, todos eles enfrentaram grandes tumultos de natureza religiosa, que só conseguiram vencer após longas e amargas lutas.Uma nova fase de mobilização religiosa principiou com o movimento conhecido nas línguas ocidentais por pan-islamismo. Iniciado nas décadas de 60 e 70 do século XIX, é provável que devesse alguma coisa aos exemplos dos Alemães e Italianos, bem sucedidos nas suas lutas pela unificação nacional naqueles anos. Os seus contemporâneos muçulmanos, seus imitadores, inevitavelmente identificaram-se e definiram os seus objectivos em termos religiosos e comunais e não em termos nacionalistas ou patrióticos, que ao tempo eram ainda estranhos e desconhecidos. Mas com o alastrar da influência e da educação europeia, essas ideias ganharam raízes e durante um certo tempo dominaram o discurso e a luta em terras muçulmanas. Contudo, a identidade religiosa e a lealdade à religião eram ainda profundamente sentidas, e encontraram expressão em vários movimentos religiosos, sobretudo o dos Irmãos Muçulmanos. Com o retumbante fracasso das ideologias seculares, esses movimentos ganharam uma nova importância e tomaram a seu cargo o combate - e muitos dos combatentes - dos fracassados nacionalistas.

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Tanto para os fundamentalistas como para os nacionalistas, as diversas questões territoriais são importantes, mas de uma forma diferente, mais intratável. Por exemplo, para os fundamentalistas em geral não é possível a paz nem nenhum acordo com Israel, e qualquer concessão feita é apenas um passo no sentido da verdadeira solução final - a dissolução do

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estado de Israel, a restituição da terra aos seus verdadeiros donos, os Palestinos muçulmanos, e a morte ou a retirada dos intrusos. Todavia, isso de modo nenhum bastaria para satisfazer as exigências dos fundamentalistas, as quais se estendem a todos os outros territórios em disputa - e a própria obtenção destes seria apenas um passo no sentido da luta mais longa e final.Grande parte da velha táctica foi conservada, mas numa forma bastante mais vigorosa. Tanto na derrota como na vitória, os terroristas religiosos adoptaram e melhoraram os métodos em que foram pioneiros os nacionalistas do século XX, sobretudo a ausência de preocupação com o massacre de pessoas inocentes. Essa despreocupação atingiu proporções novas na campanha de terror lançada por Osama bin Laden no início dos anos 90. O primeiro grande exemplo foi o ataque à bomba a duas embaixadas americanas na África Oriental, em 1998. Para matarem doze diplomatas americanos, os terroristas não se importaram de chacinar mais de duzentos africanos, muitos deles muçulmanos, que se encontravam por acaso nas imediações. Na sua edição logo a seguir a estes ataques, uma revista fundamentalista em língua árabe chamada Al-Sirât al-Mustaqim, publicada em Pittsburgh, Pensilvânia, manifestava o seu pesar pelos «mártires» que deram as suas vidas nestas operações e apresentava uma lista dos seus nomes, tal como lhe fora fornecida pela agência da Al-Qaeda em Peshawar, no Paquistão. O colunista acrescentava uma expressão de esperança «de que Deus [...] possa juntar-nos a eles no paraíso». O mesmo desprezo pela vida humana, a uma escala muito mais vasta, esteve na base dos ataques a Nova Iorque e Washington em 11 de Setembro de 2001.

Uma figura importante nestas operações foi o terrorista suicida. Num certo sentido isto representava uma nova evolução. Os terroristas nacionalistas das décadas de 1960 e 70 geralmente tinham o

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cuidado de não morrer juntamente com as suas vítimas, arranjando maneira de realizar os ataques a uma distância segura. Se tinham o azar de ser capturados, as suas organizações habitualmente tentavam, às vezes com êxito, obter a sua libertação fazendo reféns e ameaçando fazer-lhes mal ou matá-los. Homicidas mais antigos de inspiração religiosa, sobretudo os Assassinos, desdenhavam sobreviver às suas operações, mas na verdade não se suicidavam. O mesmo se pode dizer dos soldados juvenis iranianos na guerra de 1980-1988 contra o Iraque, que caminhavam através de campos de minas armados apenas com um passaporte para o paraíso, para abrir o caminho às tropas regulares.O novo tipo de missão suicida no sentido exacto da palavra parece ter tido como pioneiras organizações religiosas como a Hamas e a Hizbullah, que a partir de 1982 executaram algumas dessas missões no Líbano e em Israel. Continuaram ao longo dos anos 80 e 90, com repercussões em outras zonas, como na parte oriental da Turquia, no Egipto, na índia e no Sri Lanka. Pela informação de que dispomos, parece que os candidatos escolhidos para estas missões eram, com excepções ocasionais, do sexo masculino, jovens e pobres, muitas vezes originários de campos de refugiados. Era-lhes oferecida uma dupla recompensa: no além-túmulo, as delícias do paraíso minuciosamente descritas; neste mundo, donativos e remunerações para as suas famílias. Uma inovação notável foi a utilização de mulheres como bombistas suicidas - pelos terroristas curdos na Turquia em 1996-1999, e pelos Palestinos a partir de Janeiro de 2002.

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Ao contrário do guerreiro sagrado ou assassino medieval, que estava disposto a enfrentar a morte certa às mãos dos seus inimigos ou captores, o novo terrorista suicida morre às suas próprias mãos. Isto levanta uma questão importante dos ensinamentos islâmicos. Os livros de direito islâmico são muito claros acerca do tema do suicídio. É um pecado grave e é punido com a danação eterna sob a forma de repetição interminável do acto através do qual o suicida se matou. As passagens que se seguem, tiradas das tradições do Profeta, elucidam claramente a questão:O Profeta disse: Aquele que se matar com uma lâmina será atormentado com essa lâmina no fogo do Inferno. O Profeta também disse:

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Aquele que se estrangular a si próprio continuará a estrangular-se no Inferno, e aquele que se apunhalar continuará a apunhalar-se no Inferno. [...] Aquele que se atirar de uma montanha e se matar, há-de atirar-se para o fogo do Inferno para todo o sempre. Aquele que beber veneno e se matar, levará esse veneno na sua mão e bebê-lo-á no Inferno para todo o sempre. [...] Aquele que se matar seja de que maneira for, será atormentado dessa mesma maneira no Inferno. [...] Aquele que se matar neste mundo seja de que maneira for, será atormentado de igual maneira no dia da ressurreição2.As autoridades mais antigas fazem uma clara distinção entre enfrentar a morte certa às mãos do inimigo e morrer às próprias mãos. Uma tradição muito primitiva do tipo conhecido por hadith qudsi, indicando uma afirmação do Profeta que cita o próprio Deus, dá-nos um exemplo óbvio. O Profeta estava presente quando um homem mortalmente ferido na guerra santa se matou para abreviar o sofrimento. Após o que, Deus disse: «O meu servo antecipou-se-me, arrancando a sua alma com as próprias mãos; por conseguinte não será admitido no paraíso». De acordo com outra tradição primitiva, o Profeta recusou-se a orar sobre o corpo de um homem que provocara a própria morte, (3).Dois aspectos marcam os ataques de 11 de Setembro e outras acções semelhantes: a disposição dos perpetradores para cometerem suicídio e a crueldade daqueles que os enviaram, tanto em relação aos seus emissários como às suas numerosas vítimas. Podem estes aspectos ser de algum modo justificados em termos do Islão?A resposta só pode ser um claro não.A indiferença pela chacina de milhares de pessoas no World Trade Center, incluindo muitas que não eram americanas, algumas das quais eram muçulmanos oriundos de países muçulmanos, não encontra justificação na doutrina ou no direito islâmicos e não tem precedentes na história do Islão. Com efeito, há poucas acções de deliberada e indiscriminada perversidade que se lhe possam comparar na história da humanidade. Não se trata aqui simplesmente de crimes contra a humanidade e contra a civilização; com efeito, trata-se também - do ponto de vista muçulmano - de actos de blasfémia, pois aqueles que perpetram tais crimes clamam que o fazem em nome de Deus, do Seu Profeta e das Suas escrituras.

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A reacção de muitos árabes e muçulmanos ao ataque ao World Trade Center foi de choque e horror perante a terrível destruição e carnificina, juntamente com vergonha e raiva por isto estar a ser feito em seu nome e em nome da sua religião. Foi esta a reacção de muitos -

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mas não de todos. Houve relatos e até imagens de regozijo nas ruas de cidades árabes e de outros países muçulmanos, perante as notícias que chegavam de Nova Iorque. A reacção foi, em parte, a reacção da inveja - sentimento que se encontrava também muito difundido, de forma mais silenciosa, na Europa. Entre os pobres e os perversos houve um certo grau de satisfação - para alguns foi mesmo de prazer - por verem que os ricos e comodistas Americanos estavam a levar uma lição.As reacções na imprensa árabe aos massacres de Nova Iorque e Washington traduziram-se num equilíbrio instável entre a rejeição e a aprovação, bastante semelhante à sua reacção ao Holocausto. Acerca do Holocausto registam-se com certa frequência três posições nos meios de comunicação árabes: nunca aconteceu; foi muito exagerado; de qualquer modo, os judeus escaparam a ele. Sobre esta última posição, alguns colunistas mais atrevidos acrescentam-lhe uma censura a Hitler por não ter terminado o trabalho. Ainda ninguém afirmou que a destruição do World Trade Center nunca aconteceu, embora com o passar do tempo isso não esteja fora do âmbito das capacidades dos teóricos da conspiração. A linha actualmente seguida por muitos comentadores muçulmanos, embora de modo nenhum por todos eles, é a de argumentar que aquilo não podia ter sido feito por muçulmanos nem por Árabes. Em vez disso, propõem outras explicações. Estas incluem supremacistas brancos americanos e milícias, aludindo evidentemente a Oklahoma e a Timothy McVeigh; opositores da globalização; Europeus, Chineses e outros que se opõem ao projecto do escudo de defesa contra mísseis; os Russos, procurando vingar-se do colapso da União Soviética; os Japoneses, numa represália muito retardada por Hiroshima; e outras do mesmo género. Um colunista sugere mesmo que o ataque foi organizado pelo presidente Bush, para desviar as atenções da sua eleição por «uma minúscula minoria que não teria chegado para eleger um conselheiro duma aldeia do Alto Egipto». Este colunista também implica Colin Powell como cúmplice dos dois presidentes Bush.

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Mas a explicação que é de longe a mais popular atribui o crime, com variações pouco importantes, aos seus vilões favoritos - a Israel, à Mossad (segundo alguns, em ligação com a CIA), aos Anciões de Sião, ou, de forma mais simples e satisfatória, «aos judeus». Isto permite-lhes de imediato apreciar os ataques e não os reconhecer como seus. O motivo atribuído aos judeus para os realizarem é fazer com que os Árabes, e de modo mais geral os muçulmanos, sejam considerados maus, e semear a discórdia entre estes e os Americanos. Um colunista jordano acrescentou-lhe um interessante tema adicional: que «as organizações sionistas» perpetraram o ataque, para que Israel pudesse destruir a mesquita de Al-Aksa enquanto as atenções mundiais estavam voltadas para a América. Este tipo de explicação não impede - pelo contrário, encoraja - a opinião frequentemente manifestada de que aquilo que aconteceu, embora com carácter criminoso, foi uma justa retribuição pelos crimes da América. Talvez a reacção mais dramática - e mais explícita - tenha sido a do semanário da Hamas, Al-Risâla, publicado em Gaza, na sua edição de 13 de Setembro de 2001: «Alá respondeu às nossas orações».A medida que a total dimensão de horror da operação foi sendo conhecida, alguns colunistas condescenderam em expressar a condenação dos perpetradores e compaixão pelas vítimas. Mas mesmo esses, raramente perdiam a oportunidade de realçar que os Americanos tinham tido aquilo que mereciam. O catálogo de crimes da América que referem é longo e detalhado, começando com a conquista, colonização e ocupação -

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palavras emocionantes - do Novo Mundo, e prosseguindo até aos dias de hoje; igualmente longa é a lista dos que caíram vítimas da ganância e crueldade da América, na Ásia, África e América Latina.Osama bin Laden deixou bem claro de que modo entende a luta, designando repetidamente os seus inimigos por «cruzados». Os cruzados, lembramos uma vez mais, não eram americanos nem judeus; eram cristãos que combatiam numa guerra santa para recuperar os lugares santos da cristandade que tinham perdido. Uma «carta à América», publicada em Novembro de 2002 e atribuída a Osama bin Laden, enumera com algum pormenor vários crimes cometidos não apenas pelo governo mas também pelo povo dos Estados Unidos, e anuncia, em sete tópicos, «aquilo que vos ordenamos que façam, e aquilo que queremos de vós». O primeiro é que abracemos

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o Islão; o segundo, «parem com as vossas opressões, mentiras, imoralidade e deboche»; o terceiro, que revelemos e admitamos que a América é «uma nação sem princípios nem maneiras»; o quarto, que deixemos de proteger Israel na Palestina, os Indianos na Caxemira, os Russos contra os Tchetchenos, e o governo de Manila contra os muçulmanos no sul das Filipinas; o quinto, «façam as malas e saiam das nossas terras». Isto é apresentado como um aviso para bem da América, «para que não nos obriguem a mandar-vos de volta como carga, em caixões». O sexto, «deixem de apoiar os líderes corruptos dos nossos países. Não interfiram na nossa política e método de educação. Deixem-nos em paz, caso contrário podem esperar por nós em Nova Iorque e Washington; sétimo, lidem e interajam com os muçulmanos numa base de interesses e benefícios mútuos, em vez das políticas de subjugação, roubo e ocupação». O documento termina dizendo aos Americanos que, se não fizerem caso deste aviso, serão derrotados como todos os anteriores cruzados, e «terão a mesma sorte que os soviéticos, que fugiram do Afeganistão para ir ao encontro da derrota militar, do colapso político, da ruína ideológica e da falência económica».A causa contra a América apresentada neste documento é muito detalhada. Inclui, além da já familiar lista de afrontas específicas, uma série de acusações gerais e particulares. Estas são de proveniência variada e normalmente reconhecível, reflectindo as sucessivas ideologias que têm influenciado, em épocas diferentes, os políticos e as políticas do Médio Oriente. Algumas datam da era nazi, como por exemplo degeneração e domínio final dos judeus; outras, do período de influência soviética, como por exemplo ganância e exploração capitalistas. Muitas são de origem europeia e até americana recente, e provêm tanto da esquerda como da direita. Incluem a poluição mundial e a recusa de assinar os acordos de Quioto, a corrupção política através do financiamento de campanhas, privilegiar a «raça branca», e, proveniente da direita, o mito supremacista branco neonazi de que Benjamin Franklin alertou contra o perigo judeu. O papel sinistro dos judeus é enfatizado em quase todos esses ultrajes.Até os propalados méritos do estilo de vida americano se transformam em crimes e pecados. A liberdade das mulheres significa deboche e o uso comercial das mulheres como «produtos de consumo».

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As eleições livres significam que o povo americano escolhe livremente os seus líderes e por

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isso deve ser considerado responsável e punível pelas más acções desses líderes - ou seja, não há «civis inocentes». O mais grave de tudo é a separação entre Igreja e Estado: «Vocês são a nação que, em vez de se regular pela shariah de Alá na sua Constituição e Leis, opta por inventar as suas próprias leis de acordo com a sua vontade e desejo. Vocês separam a religião das vossas políticas, contrariando a natureza pura que confere Autoridade Absoluta ao Senhor vosso Criador». Em suma: «Vocês são a pior civilização presenciada pela história da humanidade». Este juízo é o mais notável, por ser feito numa altura em que as ditaduras nazi e soviética ainda são memórias vivas -já para não falar de antigas tiranias preservadas nos registos históricos que Osama bin Laden e os seus sócios tantas vezes referem.A razão básica é a América ser actualmente entendida como o líder daquilo que é variavelmente designado por o Ocidente, a cristandade ou, mais em geral, as «Terras dos Infiéis». Neste sentido, o presidente americano é o sucessor de uma longa linha de soberanos- os imperadores bizantinos de Constantinopla, os imperadores do Sacro Império Romano-Germânico em Viena, a rainha Vitória e os seus imperiais colegas e sucessores na Europa. Hoje como no passado, este mundo de infiéis cristãos é visto como a única força séria rival que impede a expansão divinamente decretada do Islão, que resiste e que atrasa, mas não impede, o seu final e inevitável triunfo universal.Não há dúvida que a fundação da Al-Qaeda e consecutivas declarações de guerra de Osama bin Laden marcaram o início de uma nova e sinistra fase na história do Islão e do terrorismo. Aquilo que desencadeou as acções de Bin Laden, como ele próprio explicou de modo muito claro, foram a presença da América na Arábia durante a Guerra do Golfo - uma profanação da Terra Santa muçulmana- e a utilização da Arábia Saudita pelos Estados Unidos como base para atacar o Iraque. Se a Arábia é o lugar mais simbólico no mundo do Islão, Bagdad, sede do califado durante meio milénio e cenário de alguns dos capítulos mais gloriosos da história islâmica, é o segundo.Houve outro factor, talvez o mais importante, a impelir Bin Laden. Dantes, os muçulmanos que lutavam contra o Ocidente tinham

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sempre a possibilidade de se virar para os inimigos do Ocidente em busca de conforto, encorajamento, e ajuda material e militar. Agora, pela primeira vez em séculos, não existe esse inimigo tão útil. Bin Laden e os seus capangas depressa verificaram que na nova configuração do poder no mundo, se queriam lutar contra a América tinham de ser eles próprios a fazê-lo. Em 1991, no mesmo ano em que a União Soviética deixou de existir, Bin Laden e os seus capangas criaram a Al-Qaeda, na qual se incluíam muitos veteranos da guerra do Afeganistão. A sua tarefa deve ter parecido desencorajante aos olhos de toda a gente, mas eles não a viram dessa maneira. Do ponto de vista deles, já tinham corrido com os Russos do Afeganistão, e com uma derrota de tal modo esmagadora que conduzira directamente ao colapso da União Soviética. Tendo vencido a superpotência que eles sempre viram como a mais formidável, sentiram-se preparados para tomar a outra; nisto foram encorajados pela opinião muitas vezes manifestada por Bin Laden, entre outros, de que a América era um tigre de papel.Essas convicções já antes tinham influenciado outros terroristas muçulmanos. Uma das

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revelações mais surpreendentes das memórias daqueles que ocuparam a embaixada americana em Teerão de1979 a 1981 foi que a sua intenção original tinha sido apoderar-se do edifício e dos reféns durante alguns dias apenas. O que os fez mudar de ideias foram declarações feitas em Washington que mostraram claramente que não havia perigo de uma acção séria contra eles. Acabaram por libertar os reféns, conforme explicaram, unicamente porque recearam que o presidente eleito, Ronald Reagan, pudesse abordar a questão «como um cowboy». Bin Laden e os seus sequazes, é evidente que não têm receios desses, e o seu ódio não é constrangido pelo medo nem diluído pelo respeito. Como antecedentes, referem repetidamente as retiradas americanas do Vietname, do Líbano e - a mais importante de todas na sua opinião - da Somália. As observações de Bin Laden numa entrevista a John Miller, da ABC News, em 28 de Maio de 1998, são particularmente reveladoras:Nas últimas décadas temos assistido ao declínio do governo americano e à fraqueza do soldado americano, que está pronto para fazer guerras frias e impreparado para combater em guerras longas. Isso

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provou-se em Beirute, quando os Marines fugiram após duas explosões. O que também prova que são capazes de fugir em menos de vinte e quatro horas, e isto voltou a repetir-se na Somália. [...] [Os nossos] jovens ficaram surpreendidos com o baixo moral dos soldados americanos. [...] Após alguns rebentamentos bateram em retirada. [...] Esqueceram-se que são o líder do mundo e o líder da nova ordem mundial. Foram-se embora, arrastando os seus mortos e a sua derrota vergonhosa.Para Osama bin Laden, a sua declaração de guerra aos Estados Unidos marca o recomeço da luta pelo domínio religioso do mundo, que teve início no século VII Para ele e para os seus sequazes, este é um momento oportuno. Hoje, a América é o modelo da civilização e encarna a liderança da Casa da Guerra e, tal como Roma e Bizâncio, degenerou-se e perverteu-se e está pronta a ser derrubada. Mas apesar da sua fraqueza, ela também é perigosa. A designação «o Grande Satanás», dada por Khomeini aos Estados Unidos, era reveladora, e para os membros da Al-Qaeda é a sedução da América e do seu estilo de vida depravado e dissoluto que representa a maior ameaça para o género de Islão que eles querem impor aos seus companheiros muçulmanos.Mas há outros para quem a América apresenta outro tipo de tentação - a promessa de direitos humanos, de instituições livres, e de um governo responsável e representativo. Há um número cada vez maior de indivíduos e até alguns movimentos que têm empreendido a complexa tarefa de introduzir instituições idênticas nos seus países. Não é fácil. Tentativas semelhantes, como já referimos, levaram a muitos dos regimes corruptos do nosso tempo. Dos cinquenta e sete estados que são membros da Organização da Conferência Islâmica, apenas um, a República Turca, teve em funcionamento instituições democráticas durante um período longo de tempo e, apesar das dificuldades e problemas contínuos, fez progressos na instalação de uma economia liberal, de uma sociedade livre e da ordem política.Em dois países, o Iraque e o Irão, onde os regimes são fortemente antiamericanos, há opositores democráticos capazes de tomar posse e formar governo. Nós, naquilo a que gostamos de chamar mundo livre, poderíamos fazer muito para os ajudar e temos feito pouco. Na maioria dos outros países da região, há pessoas que partilham os

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nossos valores, que simpatizam connosco e que gostariam de partilhar o nosso modo de vida. Crêem na liberdade e querem usufruir dela no seu país. É-nos mais difícil ajudar essas pessoas, mas ao menos podíamos não lhes colocar obstáculos. Se eles conseguirem, teremos amigos e aliados na verdadeira acepção da palavra, e não apenas em sentido diplomático.Entretanto, há um problema mais urgente. Se os líderes da Al-Qaeda conseguirem convencer o mundo islâmico a aceitar os seus pontos de vista e a sua liderança, então uma luta longa e amarga apresenta-se pela frente, e não apenas para a América. A Europa, sobretudo a Europa ocidental, alberga hoje uma comunidade muçulmana grande e em rápido crescimento, e muitos europeus começam a ver na sua presença um problema, para alguns até uma ameaça. Mais tarde ou mais cedo a Al-Qaeda e outros grupos semelhantes entrarão em choque com os outros vizinhos do Islão - Rússia, China, índia - que poderão revelar-se menos escrupulosos do que os Americanos em usar a sua força contra os muçulmanos e os seus valores sagrados. Se os fundamentalistas estiverem correctos nos seus cálculos e forem bem sucedidos na sua guerra, então um futuro negro espera o mundo, principalmente aquela parte dele que abraça o Islão.

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Agradecimentos

O núcleo deste livro foi um artigo publicado no The New Yorker em Novembro de 2001. Ao actualizá-lo e aumentá-lo, passando de um longo artigo a um livro breve, adaptei algumas passagens de publicações anteriores, sobretudo alguns artigos publicados no Foreign Affairs e no The Atlantic Monthly. O restante é novo.Resta-me a agradável tarefa de agradecer àqueles que colaboraram na preparação e produção deste livro. Estou uma vez mais particularmente grato ao meu determinado e inestimável editor, Joy de Menil, e à minha assistente, Annamarie Cerminaro, pelo seu incansável apoio e ajuda; à minha amiga Buntzie Churchill pela leitura crítica dos meus rascunhos iniciais e sugestões para o seu aperfeiçoamento; a Eli Alshech, estudante licenciado em Princeton, que ajudou de diversas formas no processo de investigação e preparação. Quaisquer erros que tenham escapado são, evidentemente, de minha inteira responsabilidade.

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Epílogo

A intervenção militar americana no Afeganistão e depois no Iraque teve dois objectivos imediatos: o primeiro e mais imediato, deter e destroçar o terrorismo; o segundo, levar a liberdade, a que por vezes se chama democracia, aos povos desses países e outros mais.Os patrocinadores e organizadores do terrorismo são de duas espécies, embora possam colaborar entre si e muitas vezes o façam. Uma delas é local ou regional e é formada por sobreviventes do antigo regime iraquiano, encorajados e apoiados pelos governos de outros

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países da região que se sentem ameaçados por aquilo que possa suceder no Iraque. O objectivo destes grupos é proteger - ou, no caso do Irão, restaurar - as tiranias em que esses países até agora têm vivido. Se, como muitos insistem, os Americanos decidirem abandonar esta operação dispendiosa e problemática e voltar simplesmente para casa, isso pode ser o bastante para contentar os patrocinadores locais do terror. Alguns deles poderão até propor o desejado reinício daquilo que é considerado relações amistosas.O outro grupo de terroristas veria a expulsão dos Americanos do Afeganistão e do Iraque não como o fim, mas como o início - não como uma vitória numa guerra mas sim numa batalha, apenas um passo de uma guerra mais longa e mais ampla, que deve ser prosseguida até à vitória final e global.Também os Americanos anunciaram um objectivo mais vasto e mais longo para a sua intervenção; não apenas o de derrotar e pôr fim ao terrorismo, mas também o de dar aos povos há muito oprimidos do Afeganistão e do Iraque, e eventualmente de outros países, a oportunidade de acabar com os regimes corruptos e opressores

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que suportam há décadas e de restaurar ou criar uma ordem política respeitada pelo povo e responsável perante este pelos seus actos. Isto suscita um forte apoio da parte de muita gente na região. Mas, devido à experiência passada e ao discurso actual, esse apoio é compreensivelmente circunspecto.É óbvio que a criação de uma democracia no Médio Oriente não será mais rápida ou mais fácil do que foi na Europa ou nas Américas. Também ali deverá surgir por fases graduais. Ir demasiado longe demasiado depressa daria imediatamente vantagem aos peritos nas artes da manipulação e da intimidação. Como foi demonstrado pelo exemplo da Argélia, pode até levar a um choque violento entre os dois.O tipo de ditadura que existe hoje no Médio Oriente resultou em grande medida da modernização, mais especificamente da influência e do exemplo europeus. Isto incluiu o único modelo político europeu que realmente funcionou no Médio Oriente - o do Estado unipartidário nas versões nazi ou comunista, que não diferiam grandemente uma da outra. Nestes sistemas o partido não é, como no Ocidente, uma organização para atrair votos e ganhar eleições; faz parte do aparelho de Estado e está particularmente incumbido da doutrinação e do seu cumprimento. O Partido Ba’th tem uma dupla ascendência, fascista e comunista, e consegue representar muito bem essas duas tendências.Mas para além destas há tradições mais antigas, bem representadas nos textos políticos e na experiência política do Médio Oriente islâmico: tradições de um governo sujeito à lei, por acordo e até por contrato.Alterações ao espírito destas tradições dariam uma oportunidade a outras versões do Islão, para além da doutrina fanática e intolerante dos terroristas. Embora actualmente tenha uma ampla adesão e grande apoio financeiro, esta versão está longe de ser representativa da corrente tradicional do Islão ao longo dos séculos. As tradições da autoridade e obediência estão de facto enraizadas, mas há outros elementos na tradição islâmica que podiam contribuir para uma forma de governo mais aberta e mais livre: a rejeição pelos juristas tradicionais do domínio déspota e arbitrário a favor do acordo na formação do governo e do consenso na sua condução; assim como a sua insistência em que o mais poderoso dos governantes está

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tão sujeito à lei como o mais humilde dos seus servos. Outro desses elementos é a aceitação, ou melhor dizendo, a necessidade de tolerância, contida em certas máximas como o versículo corânico «não existe coacção na religião», e a antiga tradição que diz que «a diversidade na minha comunidade é uma graça de Deus». Isto é levado um passo mais além no ideal sufista do diálogo entre religiões, numa busca comum da realização das aspirações que partilham.A tentativa de levar a liberdade ao Médio Oriente suscita dois receios: um, nos Estados Unidos e mais ainda na Europa, de que ela venha a falhar; e outro, entre muitos dos actuais líderes da região, de que ela venha a vingar. Não há dúvida de que as políticas de liberalização política no Afeganistão e no Iraque representam uma ameaça mortal para os regimes que só conseguem sobreviver pela tirania em casa e o terror fora dela. Os inimigos da liberdade são perigosos, não se prendem a escrúpulos de espécie nenhuma e não se deixam dominar pelo remorso ou pela compaixão, mesmo em relação ao seu próprio povo. Estão prontos a usar não apenas indivíduos e famílias, mas nações inteiras como bombistas suicidas, para serem sacrificados desde que isso seja necessário, a fim de derrotar e expulsar o inimigo infiel e estabelecer a sua própria supremacia.A criação de uma sociedade livre, como a história das democracias existentes no mundo claramente mostra, não é coisa fácil. A experiência da república turca ao longo do último meio século, e de alguns outros países muçulmanos mais recentemente, demonstrou duas coisas: primeiro, que de facto é muito difícil criar uma democracia numa tal sociedade, e segundo, que apesar de difícil não é impossível. O estudo da história islâmica e da vasta e rica literatura política islâmica encoraja a crença de que pode muito bem ser possível criar instituições democráticas - não necessariamente na nossa definição ocidental desse termo tão indevidamente usado, mas num sentido que derive da sua própria história e cultura e que garanta, à sua maneira, um governo limitado sujeito à lei, a aconselhamento e abertura, numa sociedade civilizada e humana. Há elementos bastantes na cultura tradicional do Islão por um lado, e na experiência moderna dos povos muçulmanos por outro, para fornecerem as bases de um avanço em direcção à liberdade no verdadeiro sentido da palavra.

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As forças da tirania e do terror são ainda muito fortes, e as suas consequências estão longe de ser conhecidas. Mas à medida que a luta se encarniça e intensifica, certas coisas que antes eram obscuras estão-se a tornar claras. A guerra contra o terrorismo e a busca da liberdade estão inextrincavelmente ligadas, e uma não poderá ter êxito sem a outra. A luta já não está confinada a um ou dois países, como alguns ocidentais ainda conseguem estar convencidos. Adquiriu primeiro uma dimensão regional, e depois global, com consequências profundas para todos nós.Se a liberdade falhar e o terror triunfar, os povos do Islão serão as primeiras e maiores vítimas. Porém, não estarão sozinhos, muitos outros sofrerão com eles.Princeton, N.J., 1 de Dezembro de 2003

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Notas

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Introdução1. O primeiro destes nomes reapareceu por breve tempo eb m finais do período otomano, quando a província de Damasco foi rebaptizada como província da Síria (Suriye). As suas fronteiras eram bastante diferentes das da república formada no pós-guerra. O nome romano-bizantino da Palestina foi mantido durante algum tempo pelos conquistadores árabes, mas já tinha sido esquecido na altura em que os cruzados ali chegaram. Reapareceu com o estabelecimento do Mandato Britânico a seguir à Primeira Guerra Mundial. O nome romano Líbia era desconhecido até ter sido oficialmente reintroduzido pelos Italianos.

2. Ibn Khaldun, Al-Muqaddima, ed. E. Quatremère (Paris, 1858), vol. I, p. 237.

Capítulo II

1. Estes e outros textos sobre a jihad poderão encontrar-se nas colectâneas oficiais das tradições do Profeta, algumas das quais estão disponíveis também em tradução inglesa. Aqueles que aqui se referem foram extraídos de ’Alâ’ al-Dín ’Ali ibn Husâm al-Din al-Muttaqí, Kanz al-’Ummal, 8 partes (Hyderabad, 1312; 1894-1895), vol. 2, pp. 252-286.

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NotasCapítulo III

1 Ibn al-Athir, Al-Kâmil fi’1-Ta’rikh, ed. C. J. Tornberg, vol. 11, ano 583 (Leiden, 1853-1864), pp. 354-355.

2. Selaniki Mustafa Efendi, Tarih-i Selaniki, ed. Mehmet Ip_irli, segunda edição, Istambul, 1999, p. 334.

3 Adolphus Slade, Turkey and the Crimean War: A Narrative of Historical Events (Londres, 1867), pp. 30-32.

4 Para uma versão inglesa ligeiramente revista, ver Snouck Hurgronje, Verspreide Geschriften, vol. 3 (Leiden, 1923), pp. 257 ss.

5. Anwar al-Sadat, Al-Bahth ’an al-dhât (Cairo, 1978), pp. 50-86; versão inglesa, In Search of Identity, an Autobiography (Nova Iorque, 1978), pp. 31 ss.

Capítulo IV

1. Muhammad ibn ’Uthmân al-Miknâsi (embaixador de Marrocos em Espanha, 1779 e 1788), Al-Iksirfí Fikâk al-Asir, ed. Muhammad al-Fâsi (Rabat, 1965), p. 97. Ver ainda Ami Ayalon, «The Arab Discovery of America in the Nineteenth Century», Middle Eastern Studies, vol. 20 (Outubro 1984), pp. 5-17.

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2. E. de Marcère, Une Ambassade à Constantinople; la politique orientate de la Revolution française (Paris, 1927), vol. 2, pp. 12-15.

3. Rifa’a Râfi’ al-Tahtâwi, Qala’id al-Mafâkhir fi gharib ’awa’id al-awa’il wa’1-awâkhir (Bulaq, 1833), p. 1, p. 14; cf. Ayalon, «Arab Discovery of America», p. 9.

4 Sayyid Qutb, Al-Islâm wa-mushkilât al-hadâra (s.L, 1967), pp. 80 ss. Ver também John Calvert, « ’The World is an Undutiful Boy!’ Sayyid Qutb’s American Experiences», in Islam and Christian-Muslim Relations, 2 (Março 2000), pp. 87-103. Qutb dedicou um livro à parte, que foi publicado postumamente na Arábia Saudita, a «a nossa luta com os judeus»: Ma’rakatuna ma’a’1-Yahâd (Jedda, 1970). Além do conflito específico entre Árabes e judeus, fala do papel nocivo dos judeus na guerra contra o Islão e de modo mais geral contra os valores religiosos: «Por trás do conceito ateu e materialista está um judeu [Marx]; por trás do conceito sexual obsceno, um judeu [Freud]; por trás da destruição da família e da ruptura dos laços sagrados da sociedade, um judeu [Durkheim]». Na realidade, os três não são nomeados por Sayyid Qutb mas pelo seu editor, que lhes acrescenta ainda um quarto, em nota de rodapé - Jean-Paul Sartre, transformado em judeu para este propósito, como inspirador da literatura da desintegração e da ruína. Parece verosímil que a inspiração de Sayyid Qutb para esta e outras passagens antijudaicas (por se diferenciarem das anti-israelitas e anti-sionistas) tenha sido europeia ou americana.

Capítulo V

1. Estes e outros textos poderão encontrar-se em Islam and Revolution: Writings and Declarations of Imam Khomeini, traduzidos e anotados por Hamid Algar (Berkeley, 1981). O seu Islamic Government era uma série de conferências dadas no centro xiita de Najaf, Iraque, lugar de exílio de Khomeini, e publicado pouco depois em árabe e em persa. Para aqueles que o leram, o imediato decurso da revolução islâmica no Irão não deve ter representado nenhuma surpresa.

3. Sobre este tratado, ver: Bernard Lewis, «Orientalist Notes on the Soviet-United Arab Republic Treaty of 27 May 1971», Princeton Papers in Near Eastern Studies, n°. 2 (1993), pp. 57-65.

Capítulo VII

1. The Arab Human Development Report 2002: Creating Opportunities for Future Generations, apoiado pelo Secretariado Regional para os Estados Árabes/PDNU, Fundo Árabe para o Desenvolvimento Económico e Social.

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Capítulo VIII

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1. Citado em Alexei Vassiliev, The History of Saudi Arabia (Londres, 1998), p. 265.2. Abd al-Salâm Faraj, Al-Jihâd: al-Farída al-Gha’iba (Amman, 1982); tradução inglesa em Johannes J. G. Jansen, The Neglected Duty: The Creed of Sadat’s Assassins and Islamic Resurgence in the Middle East (Nova Iorque, 1986), pp. 159 ss.

Capítulo IX

1. O texto completo dãfatwa foi publicado na imprensa iraniana e internacional naquela altura.

2. Esta tradição e outras semelhantes poderão encontrar-se nas compilações oficiais de hadiths, por exemplo o Sahih de al-Bukhârí, Recueil des Traditions Mahométanes, vol. 1, ed. M. Ludolf Krehl (Leiden, 1862), p. 363; vol. 2 (Leiden, 1864), pp. 223-224, 373; vol. 4, ed. Th. W. Juynboll (Leiden, 1908), pp. 71, 124, 243, 253-254, 320, 364. Para um debate completo ver Franz Rosenthal, «On Suicide in Islam», Journal of the American Oriental Society, vol. 66 (1946), pp. 239-259.

3. Citado, inter alia, em Ibn Hanbal, Musnad (Cairo, 1313; 1895-1896), vol. 5, p. 87.

4. Para estes e outros registos acerca dos média árabes, procurar no Middle East Media Research Institute, Washington, D.C. (www.roemri.org).

5. O texto completo da carta, tanto em árabe como em inglês, foi amplamente divulgado na Internet em Novembro de 2002. Devido a diferenças de estilo e perspectiva, a autoria pessoal de Osama bin Laden é improvável.

Nesta Colecção

1. Philippe Aries: A Criança e a Vida Familiar No Antigo Regime2. Elisabeth Badinter: O Amor Incerto3. Elisabeth Badinter: Um é o Outro4. Mircea Eliade: Ferreiros e Alquimistas5. Ortega y Gasset: A Rebelião das Massas6. Edward T. Hall: A Dimensão Oculta7. Gilles Lipovetsky: A Era do Vazio8. Agostinho da Silva: Carta Vária9. Miguel de Unamuno: Do Sentimento Trágico da Vida10. Oliver Sacks: O Homem que Confundiu a Mulher com Um Chapéu11. Agostinho da Silva: As Aproximações12. Lou Andreas-Salome: Eros13. Manuel Laranjeira: Prosas Dispersas14. Jean Baudrillard: Simulacros e Simulação15. Paul Watzlawick: A Realidade é Real?16. Hannah Arendt: Homens em Tempos Sombrios17. Francesco Alberoni: A Árvore da Vida18. Gianni Vattimo: A Sociedade Transparente19. Philippe Aries: O Tempo da História

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20. Walter Benjamin: Rua de Sentido Único e Infância em Berlim Por Volta de 190021. Walter Benjamin: Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política22. Oliver Sacks: Despertares23. George Steiner: No Castelo do Barba Azul24. Isabel do Carmo: Saúde em Tempo de Risco25. Erving Goffman: A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias26. Evelyne Sullerot: Que Pais? Que Filhos?27. Edward T. Hall: A Linguagem Silenciosa28. Maria Zambrano: Os Sonhos e o Tempo29. Michel Foucault: História da Sexualidade I - A Vontade de Saber30. Michel Foucault: História da Sexualidade II - O Uso dos Prazeres31. Michel Foucault: História da Sexualidade III - O Cuidado de Si32. Maria Zambrano: O Homem e o Divino33. Fernando Savater: O Conteúdo da Felicidade34. Cario Ginzburg: História Nocturna35. Maria Zambrano: Clareiras do Bosque36. George Steiner: Antígonas37. Oliver Sacks: Um Antropólogo em Marte38. Victoria Camps: Paradoxos do Individualismo39. Edward T. Hall: A dança da Vida40. António Barreto: Tempo de Mudança41. Camille Paglia: Vampes & Vadias42. José Gil: Metamorfoses do Corpo43. Maria Filomena Molder: Semear na Neve44. Junichiro Tanizaki: Elogio da Sombra45. Mário Vieira de Carvalho: Razão e Sentimento na Comunicação Musical46. Erving Gofíman.Os Momentos e os Seus Homens47. Oliver Sacks: Perna para Que Te Quero48. Fernando Savater: Livre Mente49. Hannah Arendt: A Condição Humana50. George Steiner: Errata: Revisões de Uma Vida51. Hannah Arendt: Compreensão e Política e Outros Ensaios52. José Gil: Movimento Total- O Corpo e a Dança53. Hannah Arendt: Sobre a Revolução54. Ernst Júnger: Drogas, Embriaguez e outros temas55. George Steiner: Gramáticas da Criação56. Jared Diamond: Armas, Germes e Aço57. Ortega y Gasset: Estudos Sobre o Amor58. António Barreto: Tempo de Incerteza59. George Steiner: Depois de Babel60. João Barrento: O Poço de Babel61. George Steiner: Nostalgia do Absoluto62. George Steiner: Paixão Intacta63. António Barreto: Novos Retratos do Meu País64. Maria Filomena Molder: A Imperfeição da Filosofia65. Georg Simmel: Fidelidade e Gratidão e Outros Textos66. Max Weber: A Bolsa

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67. Simone Weil: A Gravidade e a Graça68. Georg Simmel: Fragmento sobre o Amor e Outros Textos69. Olga Pombo: Interdisciplinaridade: Ambições e Limites70. Abdelwahab Meddeb: A Doença do Islão

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