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1 O Antigo Regime e a Sociedade de Ordens Por Raul Silva Na Idade Moderna vigorou na Europa uma economia de tipo pré-industrial caracterizada por uma base agrícola e pelo atraso tecnológico. A debilidade tecnológica não permitia aumentar a produtividade, logo, o aumento da população era afectado pelas fomes. As crises demográficas caracterizavam-se por um crescimento elevado das mortes para o dobro ou o triplo da Taxa de Mortalidade corrente, acompanhada por uma quebra muito acentuada nos nascimentos e dos casamentos, a que se seguia uma fase de recuperação da crise, restabelecendo-se os índices habituais de mortalidade, natalidade e nupcialidade. No século XVII, em virtude do arrefecimento climático, as colheitas apodreciam, pelo que o preço dos cereais se elevava e, em consequência, os mais pobres eram atingidos pela fome. Por seu turno, a fome tornava os corpos menos resistentes às epidemias: peste negra, peste bubónica, difteria, cólera, febre tifóide, varíola, tosse convulsa, escarlatina, tuberculose, malária, sífilis e outros males saltam de região para região, de cidade para cidade. A falta de condições de higiene e de assistência médica, em especial nas cidades, agravavam o panorama das crises populacionais. Somava-se a estes dois factores a guerra, responsável por um número elevado de perdas humanas, quer pelo confronto entre tropas inimigas, quer pelos efeitos da passagem dos exércitos pelas aldeias. Com os exércitos marcham também as epidemias que sempre proliferaram nas concentrações excessivas de homens, sobretudo numa época em que se desrespeitam as mais elementares regras sanitárias. CADERNODIÁRIO EXTERNATO LUÍS DE CAMÕES N.º 5 http:// externatohistoria.blog spot.pt/ 1 de Outubro de 2013

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O Antigo Regime e a Sociedade de OrdensPor Raul Silva

Na Idade Moderna vigorou na Europa uma economia de tipo pré-industrial caracterizada por uma base agrícola e pelo atraso tecnológico. A debilidade tecnológica não permitia aumentar a produtividade, logo, o aumento da população era afectado pelas fomes.As crises demográficas caracterizavam-se por um crescimento elevado das mortes para o dobro ou o triplo da Taxa de Mortalidade corrente, acompanhada por uma quebra muito acentuada nos nascimentos e dos casamentos, a que se seguia uma fase de recuperação da crise, restabelecendo-se os índices habituais de mortalidade, natalidade e nupcialidade. No século XVII, em virtude do arrefecimento climático, as colheitas apodreciam, pelo que o preço dos cereais se elevava e, em consequência, os mais pobres eram atingidos pela fome.Por seu turno, a fome tornava os corpos menos resistentes às epidemias: peste negra, peste bubónica, difteria, cólera, febre tifóide, varíola, tosse convulsa, escarlatina, tuberculose, malária, sífilis e outros males saltam de região para região, de cidade para cidade. A falta de condições de higiene e de assistência médica, em especial nas cidades, agravavam o panorama das crises populacionais.Somava-se a estes dois factores a guerra, responsável por um número elevado de perdas humanas, quer pelo confronto entre tropas inimigas, quer pelos efeitos da passagem dos exércitos pelas aldeias. Com os exércitos marcham também as epidemias que sempre proliferaram nas concentrações excessivas de homens, sobretudo numa época em que se desrespeitam as mais elementares regras sanitárias.

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Os lares europeus do século XVII

“Verificámos que, quase por todo o lado, o número de famílias diminuiu. (…) Que lhes aconteceu? A miséria dissipou-as. Debandaram-se para pedir esmolas nas cidades e acabaram por morrer nos hospitais ou pelo caminho.Já não se vêem, nas aldeias e pequenas vilas, jogos ou divertimentos; tudo aqui desfalece; tudo está triste porque a alegria e o prazer só se encontram na abundância e eles mal conseguem sobreviver.De facto, já não há camponeses que tenham algum bem como próprio, o que é um grande mal. Um outro mal, muito pernicioso, é que quase não há trabalhadores equipados. Outrora, eles estavam fornecidos de tudo o que era necessário para a exploração das quintas (…). Hoje, só encontramos jornaleiros sem nada (…).Mas onde se pode conhecer, melhor que em qualquer outro lado, a miséria dos camponeses é nos seus lares, onde se encontra uma pobreza extrema. Dormem sobre a palha; não possuem outro vestuário senão o que trazem vestido e que se apresenta em péssimas condições; não possuem móveis nem qualquer outro equipamento para a vida: enfim, tudo neles representa necessidade.”

“Mémoire des comissaires du roi Louis XIV sur la misère du peuple”, in Mémoires des Intendents sur l’ état des Généralités, 1687

A partir da análise da fonte, descreve as condições da vida dos camponeses na Europa do Antigo Regime.

A triologia negra

“As poucas pessoas que andavam pelas ruas cobriam o rosto com o manto e traziam frasquinhos de perfume nas mãos, que levavam ao nariz e à boca. Todos suspeitavam uns dos outros e se afastavam mesmo que fossem parentes ou amigos. (…) A cada passo se encontravam corpos caídos (…). Dentro das casas encontrávamos, na mesma cama, um doente a dar o último suspiro, outro desesperado e um terceiro a dormir um sono profundo. Para chegar junto dos doentes, tínhamos quase sempre de passar pelo meio dos corpos, como me aconteceu na primeira casa a que fui chamado para confessar uma mulher cujo marido jazia estendido ao pé da porta.”

Testemunho do Padre Jean Grillet, Lyon Apavorada com o Contágio

Redige um comentário sobre a incidência da trilogia negra no século XVII.

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Uma Família de Camponeses, de Louis la Main (1600-1610)

Analisa a fonte, interpreta-a; integra-a na época histórica em que foi realizada.

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A morte no centro da vida

“Em 1661 [a esperança média de vida] atingiria os 25? Estes números brutais significam que, nesse tempo, tal como o cemitério estava no centro da vila, a morte estava no centro da vida. Em cada 100 crianças nascidas, 25 morriam antes da idade de um ano; 25 outras não atingiam os vinte; outras 25 desapareciam entre os vinte e os quarenta anos. Uma dezena chegava a sexagenário. O octogenário triunfante, rodeado de uma lenda que o transformava em centenário, via-se rodeado do respeito supersticioso que coroa os campeões; desde há muito perdera todos os seus filhos, todos os seus sobrinhos, assim como uma boa parte dos seus netos e sobrinhos-netos. Este sábio será olhado como um oráculo. A morte do herói tornava-se um acontecimento regional.”

P. Goubert, “Louis XIV et vingt millions de Français”, in P. Guillaume e J. Poussou, Demographie Historique, Paris, Liv. Armand Colin, 1970

Redige um comentário sobre a esperança média de vida no século XVII.

A desigualdade na hierarquização social

“Não podemos viver todos na mesma condição. É necessário que uns comandem e outros obedeçam. Os que comandam têm várias categorias ou graus: os soberanos mandam em todos os do seu reino, transmitindo o seu comando aos grandes, os grandes aos pequenos e estes ao povo. E o povo, que obedece a todos eles, está, por sua vez, dividido em várias categorias.Na sociedade, uns dedicam-se ao serviço de Deus, outros a defender o Estado pelas armas, outros a alimentá-lo e a mantê-lo pelo exercício da paz.”

Charles Loyseau, “Traité des ordres et simples dignitez”, in Roland Mousnier, As Hierarquias Sociais, Lisboa, Pub. Europa-América, 1974

Com base na fonte, indica os fundamentos teóricos dessa hierarquização.

Manifestações da hierarquia social no tratamento

“Ao nobre [português] parece não existir nobreza semelhante à sua, pelo que julga que todos os outros lhe ficam muito atrás. Procura, em todas as coisas, fazer como fazem os reis ou príncipes (…). Em casa chama os criados pelo nome dos seus cargos: mordomo, secretário, criado de quarto, moço das cavalariças (…).Só estuda questões de gravidade e etiqueta porque é em coisas como estas e não na virtude que consiste a nobreza. Ponderam a quem devem tratar por tu, por Vós, por Mercê, por Senhoria, por Excelência e por Alteza, porque o título de majestade ainda lá não chegou. (…)Dão tratos à cabeça para pensar a quem devem tirar o chapéu, se meio, se por completo, se baixá-lo até baixo, se conservá-lo alto; se fazer cobrir-se aquele com quem fala ou se deixá-lo de cabeça descoberta, ou se devem cobrir-se eles próprios (…).Estudam, por fim, que todos os seus actos sejam medidos com termos de gravidade mais do que cansativos.”

Anónimo italiano de inícios do século XVII, “Retrato e reverso do Reino de Portugal”, in A.H. de Oliveira Marques, Revista Nova História – Século XVI, n.º 1, 1984, Editorial Estampa

A partir da fonte, enuncia os privilégios do clero e da nobreza.

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Preocupação com a mobilidade social

“Mas para quê falar de estados? Hoje eles estão todos misturados, de modo que já não se distinguem uns dos outros e a todo o momento ouvimos dizer: Ele não é mais do que eu. Sou tão rico como ele. O filho de um miserável artesão, cujo pai conseguiu, com sacrifício, algo de seu, muda rapidamente de hábitos, de linguagem, de tom, quase de figura. E, nos actos públicos, dá-se o título de Senhor. (…)O vosso pai lavrara ele mesmo o seu campo, e Vós já quereis ter rendeiros. A vossa mãe trajava de lã e vós quereis seda para a vossa mulher e vossas filhas (…) A fúria de vos elevardes acima da vossa condição apaga em vós o espírito do cristianismo. Só vos vejo orgulho, inveja e ciúme. (…)Em nome de Deus, ficai no vosso lugar. Sede o que os vossos pais foram; vivei como eles viveram e não procureis sair do estado em que a Providência Divina vos fez nascer.”

Régis, cura do Gap, A Voz do Pastor, Discurso Para os seus Paroquianos (1773)

Mostre a preocupação do autor em preservar a ordem social estabelecida.

As revoltas populares

“Senhor (…), de há dois meses para cá os camponeses e aldeãos das castelanias de Barbezieu (…) levantaram-se em armas e, em certa medida, foram dominados pelo cuidado e boa ordem do Senhor Sobrau. (…) Mas (…) sexta-feira última, os habitantes da castelania de Blauzac (…) levantaram-se com cerca de quatro mil homens armados de arcabuzes e lanças (…), apresentaram-se em Blauzac (…) com um clamor de ameaças confusas contra a vida de todos os fiscais, entendendo por esta palavra todos os colectores de Sua Majestade (…).A raiva popular era tão grande que tudo o que procedia do Conselho os irritava.”

Documento n.º 10, “La Fosse”, 9 de Junho de 1636, in Documents d’Histoire Vivan

Identifique os motivos da revolta dos populares.

Um século de guerras

“Quando os cavaleiros entraram na casa do meu pai, a primeira coisa que fizeram foi instalar lá os cavalos; depois cada um aplicou-se à sua tarefa particular que parecia ser a de tudo destruir e de tudo saquear. Enquanto alguns se punham a degolar os animais, a cozer ou assar a carne (…) outros faziam grandes embrulhos de roupa, de vestuário, de toda a espécie de utensílios (…). Aquilo que não contavam levar era feito em pedaço. Alguns trespassavam com a espada os montes de feno e de palha (…), outros esvaziavam os colchões (…). Escaqueiravam a loiça de cobre e estanho (…). Queimavam as camas, as mesas, as cadeiras e os bancos (…). Os soldados tinham já metido no forno um dos camponeses feitos prisioneiros e queimavam-no embora ele ainda não tivesse confessado nada. (…). O meu pai confessou tudo o que eles queriam saber e revelou onde se encontrava escondido o seu tesouro.”

Grimmelhau, “Les aventures de Siplicius Simplicissimus”, in Troux, Lizerand, Moreau, Les Temps Moderns, Dessain, 1959

A partir da fonte, pronuncie-se sobre os conflitos que assolavam a Europa.

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