1
Carolina Descobri que a Carolina da 3ª classe é poeta... melhor poetisa! Nem bonita, nem esperta, nem cuidadosa... Apenas poetisa, Senhor! Esta descoberta paralisou-me aquele ressentimento pelos problemas errados nas vírgulas, pelos ditados com erros e faltas de acentos, pela indolência constante ao folhear livros e cadernos. A Carolina nunca havia sido minha aluna... É a 4.ª vez que frequenta a 3.ª classe... A mãe veio contar-me as causas deste «passo marcado»: Bronquite... pulmões... fígado... sífilis... Mas a mãe não me disse que tinha uma filha poeta... - «A Primavera é a estação das flores, dos passarinhos e da alegria nas pessoas. O céu é mais azul e à noite, nem parece noite, porque o luar é grande e as casas ficam com as paredes cheias de luar branco. Eu gosto muito da Primavera porque os passarinhos, cantam nos ninhos e nós também cantamos quando vamos ceifar a erva para o nosso gado. A Primavera é a estação em que me sinto com o coração mais leve. No Inverno eu ando mais triste e nem me apetece ir ceifar a erva. És linda, Primavera!» A Carolina... poeta, a Carolina! Perdoai, Senhor, a tabuada que exijo de cor e salteada... Perdoai a perfeição da letra, causa de certas reguadas nas mãos da Carolina... Perdoai tudo o que de rotineiro parado, duro, persistente, monótono e pardo eu tenho ensinado à Carolina... É que... eu não sabia... A mãe dela também não... Perdoai- me, principalmente, perdoai-me a aversão que eu tinha ao «passo marcado» da Carolina na 3ª classe... -Eu descobri a causa... E só hoje! A Carolina tem alma de poeta... Haverá poesia nos tais problemas de frações que a Carolina nunca aprenderá a fazer? Maria Helena Amaro In, «Maria Mãe», 1973. Data da conclusão da edição no blogue 4 de julho de 2012 http://mariahelenaamaro.blogspot.com/

Carolina

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Carolina

Carolina

Descobri que a Carolina da 3ª classe é poeta... melhor poetisa! Nem bonita, nem esperta, nem cuidadosa... Apenas poetisa, Senhor! Esta descoberta paralisou-me aquele ressentimento pelos problemas errados nas vírgulas, pelos ditados com erros e faltas de acentos, pela indolência constante ao folhear livros e cadernos. A Carolina nunca havia sido minha aluna... É a 4.ª vez que frequenta a 3.ª classe...

A mãe veio contar-me as causas deste «passo marcado»: Bronquite... pulmões... fígado... sífilis... Mas a mãe não me disse que tinha uma filha poeta...

- «A Primavera é a estação das flores, dos passarinhos e da alegria nas pessoas. O céu é mais azul e à noite, nem parece noite, porque o luar é grande e as casas ficam com as paredes cheias de luar branco. Eu gosto muito da Primavera porque os passarinhos, cantam nos ninhos e nós também cantamos quando vamos ceifar a erva para o nosso gado.

A Primavera é a estação em que me sinto com o coração mais leve. No Inverno eu ando mais triste e nem me apetece ir ceifar a erva. És linda, Primavera!»

A Carolina... poeta, a Carolina! Perdoai, Senhor, a tabuada que exijo de cor e salteada...

Perdoai a perfeição da letra, causa de certas reguadas nas mãos da Carolina... Perdoai tudo o que de rotineiro parado, duro, persistente, monótono e pardo eu tenho ensinado à Carolina...

É que... eu não sabia... A mãe dela também não... Perdoai-me, principalmente, perdoai-me a aversão que eu tinha ao «passo marcado» da Carolina na 3ª classe... -Eu descobri a causa... E só hoje! A Carolina tem alma de poeta...

Haverá poesia nos tais problemas de frações que a Carolina nunca aprenderá a fazer?

Maria Helena Amaro

In, «Maria Mãe», 1973. Data da conclusão da edição no blogue – 4 de julho de 2012

http://mariahelenaamaro.blogspot.com/