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Claros sinais de loucura karen harrington

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Sinopse: Claro Sinais de Loucura - Karen Harrington Amor pode ser uma palavra-problema para algumas pessoas. Loucura também. Eu sei bem. Você nunca conheceu ninguém como Sarah Nelson. Enquanto a maioria dos amigos adora Harry Potter, ela passa o tempo escrevendo cartas para Atticus Finch, o advogado de O Sol é para Todos. Coleciona palavras-problema em um diário, tem uma planta como melhor amiga e vive tentando achar em si mesma sinais de que está ficando louca. Não é à toa: a mãe tentou afogá-la e ao irmão quando eles tinham apenas dois anos, e desde então mora em uma instituição psiquiátrica. O pai, professor, tornou-se alcoólatra. Fugindo da notoriedade do crime, ele e Sarah já se mudaram de diversas cidades, e a menina jamais se sentiu em casa em nenhuma delas. Com a chegada do verão em que completa doze anos, ela está cada vez mais apreensiva. Sente falta de um pai mais presente e das experiências que não viveu com a mãe, já se acha grande demais para passar as férias na casa dos avós, está preocupada com a árvore genealógica que fará na escola e ansiosa pelo primeiro beijo de língua que ainda não aconteceu. Mas a vida não pode ser só de preocupações, e, entre uma descoberta e outra, Sarah vai perceber que seu verão tem tudo para ser muito mais. Bem como seu futuro.

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Copyright © 2013 by Karen HarringtonEsta edição foi publicada mediante acordo com Little,Brown and Company, Nova York, NY, EUA.Todos os direitos reservados.

TÍTULO ORIGINALSure Signs of Crazy

PREPARAÇÃOAline Leal

REVISÃOMarcela LimaShirley Lima

ADAPTAÇÃO DE CAPAJulio Moreira

GERAÇÃO DE EPUBIntrínseca

REVISÃO DE EPUBFernanda Neves

E-ISBN978-85-8057-508-8

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Edição digital: 2014

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA INTRÍNSECA LTDA.Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar22451-041 — GáveaRio de Janeiro — RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

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SumárioCapaFolha de rostoCréditosMídias sociaisDedicatóriaCapítulo 1Capítulo 2Capítulo 3Capítulo 4Capítulo 5Capítulo 6Capítulo 7Capítulo 8Capítulo 9Capítulo 10Capítulo 11Capítulo 12

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Capítulo 13Capítulo 14Capítulo 15Capítulo 16Capítulo 17Capítulo 18Capítulo 19Capítulo 20Capítulo 21Capítulo 22Capítulo 23Capítulo 24Capítulo 25Capítulo 26Capítulo 27Capítulo 28Capítulo 29Capítulo 30Capítulo 31Capítulo 32Capítulo 33

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Capítulo 34Capítulo 35AgradecimentosSobre a autora

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Para as extraordinárias Gigi e Lauren

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capítulo I

Você nunca conheceu alguémcomo eu. A menos, é claro, queconheça alguém que tenhasobrevivido a uma tentativa deafogamento pela própria mãe eque agora more com o paialcoólatra. Se existem outraspessoas assim, gostaria deconhecê-las de pronto. Pronto,que é minha palavra favorita nosúltimos tempos, é muito usada nos

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seriados policiais quando umdetetive quer alguma informaçãodepressa. Eu poderia aprendermuita coisa com pessoas assim,especialmente se fossem maisvelhas que eu, que tenho quasedoze anos. Do jeito que é hoje,tenho que aprender a maioria dascoisas por conta própria.

Isso é o que eu teria escrito no meudiário de verdade. Nunca poderia falaressas coisas em voz alta. Nunca.

É bom você saber que tenho um diáriode verdade e um falso. O falso é odisfarce, o que fica escondido, mas bem

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à vista. Se alguém encontrá-lo e resolverler, vai pensar que é de uma pessoanormal e não vai dar importância. Tudoo que você precisa fazer quando estáescrevendo nesse é fingir que tem umadulto lendo e colocar lá algo tipo:

Hoje foi um dia ótimo. Tirei 10 naprova de matemática e tenho umanova amiga chamada Denise, quecantarola nas aulas de álgebra.

O diário real é só para mim. Éparticular e verdadeiro. Ultimamente,tenho escrito sobre alguns problemasque estou tentando resolver. O que

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escrevi:

Faltam duas semanas para as aulasacabarem. Assim que tocar oúltimo sinal, vou ter doisproblemas gigantescos.

Problema 1: Vou ter um verãochato e vou ser obrigada a ficarcom os meus avós na casa chatadeles.

Problema 2: Vou começar osétimo ano em três meses e vouser obrigada a fazer aqueleprojeto horroroso de árvoregenealógica que a irmã da Lisa

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teve que fazer este ano. Todomundo na escola vai descobrirsobre minha mãe.

Posso tentar contornar oProblema 1, mas o Problema 2 étragicamente insolúvel. Nãoconsigo encontrar nenhum jeito deevitar o tal trabalho, a menos queeu me mude e vá para outraescola. Vale investigar essaopção.

É um pouco difícil manter doisdiários ao mesmo tempo, mas énecessário. Tenho que deixar os fatos,

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as pistas e listas de palavras ondeninguém além de mim possa ver. Nemtodo mundo reage às palavras da mesmamaneira. Algumas são palavras-problema. Uma palavra-problema mudaa expressão da pessoa que a escuta.Amor pode ser uma palavra-problemapara algumas pessoas. Loucura também.

Eu sei bem.Uma vez, quando tínhamos acabado

de nos mudar para Garland, para nossacasa alugada, marrom e feia em YaleCourt, meu pai ficou nervoso de um jeitoque parecia que ia socar alguma coisa,porque usei a palavra louca paradescrever minha mãe. Foi por causa do

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dia da orientação vocacional na escola.Ele me perguntou se eu tinha algumaideia do que eu queria ser. Para sersincera, eu ainda estava pensando sobreisso, porque queria esperar para ver seia ficar louca como ela.

Então respondi para o meu pai: “Nãoé melhor esperar até descobrir se eu vouherdar a loucura antes de escolher umaprofissão?” Não sei por que disseaquilo em voz alta. Normalmente tomomuito cuidado com as palavras.

Vi um sofrimento nos olhos do meupai que me deu vontade de fugir. Mas,como ele estava bloqueando a únicasaída da nossa cozinha, eu não tinha

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para onde ir. Meu plano B era entrar emum armário da cozinha e me esconder.Isso quer dizer muito quando você pensaem como os armários de cozinha emcasas alugadas são nojentos. Sehouvesse uma lista dos lugares maisnojentos da face da Terra, essesarmários estariam nela.

“Desculpe”, falei.Ele respirou fundo e me disse que

não, eu não ia ficar louca, e que, porfavor, nunca, NUNCA mais usasseaquela palavra para descrevê-la,mocinha! Eu não sabia o que responder,porque estava com medo. Queria tercoragem suficiente para dizer a ele que

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eu tinha procurado a palavra loucura nodicionário.

Eu sabia que tinha usado a palavracerta.

loucura s. f. perturbação mental;demência, insanidade

Acrescentei loucura à minha lista depalavras-problema.

Eu escondo o diário verdadeiro entreduas toalhas dobradas embaixo da piado meu banheiro e deixo o falso namesinha de cabeceira. Ele tem umcadeado dourado e brilhante, por isso dáa impressão de que esconde palavras

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importantes.

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capítulo 2

Eu tinha só dois anos quando minha mãeencheu de água a pia da cozinha e tentoume afogar. Às vezes parecia que ela eraa mãe de alguma outra família da rua, enós assistíamos à tal história nonoticiário da tevê e pensávamos: Uau,coitada dessa família. Os terapeutasque meu pai me mandou ver passavam otempo todo tentando arrancar ou enfiardetalhes no meu cérebro sobre o queeles chamavam de “o incidente”.

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Um deles, o Dr. Madrigal, tinha tantacerteza de que eu me lembrava de algumdetalhe daquele dia que sempre meperguntava se eu tinha pesadelos comágua ou se tinha medo de água. Não, nãotenho. Mas vou dizer uma coisa: se eutivesse passado mais tempo noconsultório dele, com certeza teriaficado com medo de nadar.

Então, apesar de eu ser filha dela ede ela ter tentado me matar, só sei dahistória pelo que está escrito, preto nobranco. Digamos que eu seja umaespécie de investigadora. Muitosdetalhes estão à disposição de qualquerum com um computador, mas tenho medo

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de procurar essas coisas em casa, porisso fiz minhas pesquisas na biblioteca,usando os termos julgamento JaneNelson.

Jane Nelson é minha mãe.Se fizer essa busca, o resultado no

Google vai ser: “Aproximadamente821.000 resultados”. Dá para ver que ocaso ficou bem famoso na internet. Vocêpode clicar primeiro na página naWikipédia e descobrir o básico. JaneNelson nasceu no Texas. A mãe dela foimorta quando Jane tinha nove anos. Foicriada pelo pai. Estudou enfermagem.Foi mãe aos trinta e um anos e, aos trintae cinco, foi internada em um hospital

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psiquiátrico.Você também pode clicar em

reportagens sobre o julgamento edescobrir detalhes que torceria para nãoserem verdadeiros, como:

JANE NELSON ABRIU A TORNEIRADEPOIS QUE O MARIDO, TOM NELSON,SAIU PARA O TRABALHO.

Ela me afogou primeiro. DepoisSimon, meu irmão mais velho. Ele é meugêmeo, nascido três minutos e meioantes de mim. Um carteiro chegou ànossa porta e viu nossa mãe ensopada dacabeça aos pés. Ela pediu a ele queligasse para a emergência. O restante dahistória envolve casos criminais, de

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quem estava certo ou errado e de provarque ela era louca.

Não sei muita coisa sobre osjulgamentos. E, sim, eu dissejulgamentos.

Foram dois.Primeiro, o da minha mãe, que foi

considerada insana e condenada a ficarinternada por prazo indeterminado emuma instituição para doentes mentaisaqui no Texas. Segundo, o do meu pai,por não ter nos protegido. Não me peçapara explicar isso, já que ele estava notrabalho quando minha mãe se tornouuma criminosa, e é claro que teria nosprotegido. Apesar disso, os jornais não

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escreveram coisas legais sobre ele,mesmo depois que foi inocentado.

A única coisa que sei com certeza éque Simon não teve tanta sorte quantoeu. Ele está morto em um pequenotúmulo em Houston, e eu estou nestacasa marrom e feia em Garland, com umcelular rosa-brilhante chamando com otoque Sapo Maluco, e por isso sei que éLisa quem está ligando.

Deixo meu diário de lado.— Oi.— Você viu?— Vi o quê?— Emma Rodriguez está oficialmente

em um relacionamento.

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É bom você saber que Lisa éobcecada por relacionamentos.

— Com quem? — pergunto.— Vai ver e me ligue de volta.— Só me diz logo.— Vai ver!Quando desligamos, tem uma nuvem

de aborrecimento em volta de mim. Éisso o que ela costuma fazer. Provocaras pessoas com informações. Seria legalse eu pudesse conversar com ela sobrecoisas de verdade.

Como Simon.O Dr. Madrigal disse que eu devia

tentar “compartilhar meus sentimentos”com crianças da minha idade, mas ele

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não sabe de nada. Ele sempre merelembrava de que os crimes da minhamãe não eram culpa minha. Bem, isso eudescobri sozinha, muitíssimo obrigada.Minha mãe não me conhecia do jeito queuma pessoa realmente conhece a outra.Ela era doente, e eu só tinha dois anos.Você pode achar que nada dissoimporta, porque aconteceu muito tempoatrás, mas não é verdade. Os jornalistasgostam de ficar lembrando às pessoasdo que aconteceu com a gente.

Quando surge um caso novo de umamulher que mata o filho, quase semprehá alguma referência à minha mãe. Paravocê ver como a história dela é famosa.

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Então dá para entender por que estoumorrendo de medo, com M maiúsculo,do sétimo ano. É simplesmenteimpossível me imaginar apresentandoum trabalho sobre minha árvoregenealógica, com nomes, datas, gráficos,acontecimentos importantes na históriada família e “a conexão maisinteressante que você vê entre asgerações”.

A irmã da Lisa fez o trabalho no anopassado, e Lisa só falava em uma coisaalém de como ia roubar o trabalho dairmã para não precisar fazer outro: erasobre a avó, que tinha atuado naBroadway. Lisa disse que era por isso

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que ia conseguir o papel principal emGuys and Dolls, o que acabouacontecendo mesmo, por isso não haviacomo fazê-la calar a boca.

Claro que eu podia mentir e inventaruma família inteira com ótimasqualidades, como talento paramarcenaria. Podia dizer: Ah, minhafamília fez estantes para GeorgeWashington, e veja este lápis que euacabei de esculpir.

Mas mesmo assim eu ainda teria queestar com todas aquelas pessoasconvencidas, tipo Lisa, que esperamcoisas boas da vida, e de qualquerforma meu pescoço sempre fica

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vermelho quando minto. Especialmentequando tenho que apresentar algumtrabalho na frente da toda arrumadinhada Angela Nee. Angela e eu ficamoslado a lado no anuário da escola, masesse é basicamente o único momento emque estaremos juntas em qualquer coisa.

Angela Nee: alta e de olhos verdes.Cabelo perfeito, preto e brilhoso. Aspessoas sempre acham que ela émodelo. Levanta a mão na aula e dá asrespostas certas.

Sarah Nelson: baixa e de olhoscastanhos. Cabelos castanhos curtosprecisando de um corte. As pessoassempre acham que ela é aluna do quinto

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ano. Só responde quando a professorafaz uma pergunta direta.

Talvez eu não queira ser uma aluna dosétimo ano com um trabalho de árvoregenealógica que informe ao mundo que ogene da loucura está na minha família,mas eu gostaria de saber mais sobreminha mãe, é claro que sim. Queriadescobrir mais sobre ela e guardar tudosó para mim. Talvez nós duas sejamosboas com plantas. Talvez nós duas asfaçamos crescerem sem problemas.

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capítulo 3

Acaba que Emma Rodriguez está em umrelacionamento com Jimmy Leighton.Foi por isso que Lisa me provocou. Elasabe que gosto de Jimmy. Bem.

Depois que escrevi sobre osProblemas 1 e 2, passei a contar os diasaté as férias de verão. Mais treze diasde sexto ano, incluindo o fim de semana.Lisa vai para o acampamento assim quea aula acabar, então “compartilharsentimentos” com ela de nada adianta.

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Por isso escrevo que preciso mesmoé de um informante, uma palavra quedescobri uma noite dessas no dicionário.

informante s.m. Aquele que forneceinformações a um investigador;alcaguete; dedo-duro

Se quer saber, uso tanto meudicionário que as páginas estão finas emacias. Minhas palavras favoritas estãodestacadas em azul. Meu pai odeia queeu escreva nos livros, mas amo palavrasde todos os tipos, então é isso que achoque devo fazer.

Meu pai devia ser meu informante

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principal, mas um informante fala, e elenão gosta de falar sobre nada além doque precisa trazer do mercado.

Um exemplo de conversa com ele:— Ainda tem leite? Cereal? O que

você acha de fazermos panquecas nosábado?

Nessas conversas, minhacontribuição de fato não faz a menordiferença. Eu tenho que insistir muitopara conseguir extrair algumainformação de verdade. Ele é como umsorvete duro e congelado, e eu sou umacolher fina. O que descobri foi: vocênão consegue tirar muito sorvete, pormais esforço que faça, e a colher acaba

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envergando.Como sempre, tenho que descobrir as

coisas por contra própria e responder àsperguntas que o meu cérebro inventa. Sevocê quer saber, estou à procura dequalquer sinal de estar enlouquecendo.Quanto mais informação eu tiver, melhorpoderei me defender do mundo, docérebro dentro de mim que pode ou nãoser igual ao dela.

Até agora, eu só decidi uma coisasobre como resolver o problema dosétimo ano. Vou ficar em cima do caso,como se fala nos seriados policiais datelevisão. Eu mesma vou procurarpistas. Resolvi escrever os nomes de

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todas as pessoas que sabem mais sobreminha mãe que eu. Elas podem serminhas fontes. Meu pai, meus avós. E, éclaro, minha mãe. Quando conseguirinformação suficiente, vou saber o quefazer.

Embaixo do nome do meu pai, anotoque ele nem sempre fala a verdade.

1. Fonte não confiável.2. Diz para as pessoas que é

viúvo.

Depois tem meus avós. Escrevo onome deles em outra página e façoanotações sobre pistas que eles podemfornecer.

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1. Além do papai, são asúnicas pessoas queconheço que conheciamminha mãe antes do“incidente”.

2. Minha avó uma vez achamou de boêmia.

boêmio s.m. pessoa, como artista ouescritor, que vive e se comporta semobservar as regras e práticasconvencionais.

O tom da vovó não tinha sido muito

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elogioso. Era parecido com o jeito comoàs vezes digo a Lisa que a roupa delaestá “legal” quando na verdade estáobviamente um horror.

Em outra página do diário, escrevo onome da minha mãe. Fico olhando paraele por um bom tempo.

Jane Nelson.A página fica em branco.Eu queria poder simplesmente

levantar, ir até ela e perguntar (do jeitoque faz minha professora de Inglês):“Por favor, com suas própriaspalavras, conte o que aconteceu no diaem que você tentou me matar.” Masnão posso fazer isso. Fecho meu diário e

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o guardo no esconderijo entre as toalhas.Depois encaro o espelho até meus olhosparecerem os de uma pessoa calma edestemida. Digo a mim mesma: Euquero saber, com suas própriaspalavras, o que aconteceu. Antes deresponder, saiba que não vou ficarchateada. Estou apenas fazendo umaentrevista. Sua cooperação será degrande ajuda.

Ensaio minhas falas na frente daPlanta, que, se você ler meu diário deverdade, com certeza vai saber que éminha melhor amiga. Há apenas duascoisas nossas que passaram por todas ascasas alugadas: Planta e a caixa de

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cacarecos. Levo Planta para dentro dacasa nova, e o papai deixa a caixa doscacarecos na garagem. Quando pergunteisobre a caixa, ele disse que cacarecossão as coisas que você não sabe queprecisa até vê-las.

Na maioria dos dias, quando regoPlanta, tenho uma nova palavra-problema para contar a ela. Todas seenterram bem fundo na terra. Sesegredos fossem sementes, Planta teriafolhas que me fariam corar.

E, se elas brotassem mesmo emostrassem ao mundo todos os meussegredos, eu simplesmente não sei o quefaria. Provavelmente mentiria e diria:

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“Ah, ela já estava aí quando a gente semudou. Esses são os segredos de outragarota.”

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capítulo 4

Planta concorda comigo. Vamoscomeçar nossa investigação assim queas aulas acabarem. Por enquanto,continuo sofrendo em uma tarde quentede sábado por saber que Jimmy Leightonestá em um relacionamento sério.

É oficial: odeio este dia.Sabe, eu tento não usar a palavra

ódio. Uma das razões por que vejo OHomem do Rifle na tevê é que o caubóiLucas McCain sempre diz coisas do

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tipo: “Ódio é uma palavra forte demaispara você usar só porque discorda dealguém.” Mas a véspera do seuaniversário de doze anos deveria ser umdia divertido no qual você vai aoshopping escolher seu presente deaniversário.

Bem, o papai destruiu esse plano,porque resolveu passar o dia com seuuísque Jim Beam e se embebedar. Issonão é raro. Quando está sóbrio, pareceque ele é do serviço secreto. Mas bastaele tomar uma dose que eu fico porconta própria. Então, me desculpe,Lucas McCain, também conhecido como“homem do rifle”, mas eu continuo

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odiando este dia.Meu pai esconde o uísque em uma

garrafa de refrigerante Dr Pepper, maseu sei mesmo assim. E, quando ele bebe,é quase sempre por causa da minha mãe.Bem, era de se esperar. Meu aniversárioo deixa triste. Meu aniversário nunca édivertido para ele, então eu não deviater criado grandes expectativas emrelação ao shopping.

Claro, meu aniversário também é oaniversário do Simon, o que dá umapista sobre as razões de o meu pai nãogostar de comemorar. Ou seria oaniversário dele. Falamos sobre Simonainda menos do que falamos sobre a

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minha mãe. O nome do meu irmão é umapalavra-problema elevada ao quadrado.

Fico triste quando penso no que eleiria querer comprar de presente deaniversário no shopping. Quando euvejo as coisas de que os garotos daminha idade gostam, às vezes paro epenso: Será que o Simon ia gostardisso? Será que ia gostar de ler essetipo de livro? Será que a gente iagostar de fazer as mesmas coisas?Como não posso ter certeza, dou a elepresentes imaginários. Este ano meuspresentes foram um patinete motorizadotodo iluminado e binóculos de visãonoturna. No ano passado dei um

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bumerangue e O livro perigoso paragarotos, que eu li várias vezes(especialmente as partes sobremeninas). Simon me sugeriu esse livroem um sonho. Nós dois gostamos.

É, às vezes eu converso com meuirmão gêmeo morto. Isso é um clarosinal de que vou acabar ficando louca,mas com quem eu poderia falar sobrecertas coisas? Além de Planta, ele éprovavelmente quem me conhecemelhor.

Os confidentes de Sarah = umorganismo que faz fotossíntese e umirmão morto.

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O Dr. Madrigal uma vez me disse que émelhor pensar em como as coisasrealmente são, e não em como elasdeveriam ser, mas nem sempre dá paracontrolar a imaginação. Ultimamente,tenho imaginado como seria se a minhamãe estivesse aqui. Eu poderia encheruma página inteira do meu diáriopensando em como deveria ser. Nós nãoviveríamos em uma rua sem saída,encarando o chão cinzento e aturando oslatidos daquele cachorro chato que ficapulando na cerca de arame. Meu cabeloseria comprido e trançado, e minhasroupas sempre seriam dobradas assimque saíssem da secadora. Se quer saber,

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ninguém nunca fez trança em mim, enormalmente eu pego uma camisa limpae amarrotada direto do cesto dalavanderia.

— O que acha de ir ao shopping? —perguntou o papai, apertando meuombro, o hálito já manchado de uísque.

— Claro — respondi.Mas então ele sentou no sofá e ficou

vendo filmes de bangue-bangue ouqualquer seriado policial que tivessegravado. Ver tevê é uma das coisas deque ele mais gosta de fazer, então achoque é só o que temos em comum. Noentanto, ver programas demais é outro

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sinal de que o papai está infeliz.Eu disse a ele que ia lá para fora e

pedi que me avisasse quando estivessepronto para ir ao shopping. Ele piscoupara mim, o que me deixou na dúvidasobre nosso plano. O que normalmenteacontece quando papai fica com aquelacara é que acaba dormindo por horas.Eu estava torcendo para isso nãoacontecer daquela vez, porque já tinharesolvido que ia passar na Claire’s edepois na loja da Apple. Queriacomprar um iPod Shuffle verde paraouvir música enquanto ando de voltapara casa depois da escola e um vale-presente da Claire’s. Lisa e eu tínhamos

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combinado de usar o vale-presente nofim de semana seguinte, afinal, quem vaiquerer o pai junto na hora de escolheruma bolsa azul ou uma pulseira preta?

Além disso, embora Lisa às vezesseja um desastre com roupas, ela aindasabe mais que eu sobre combinaracessórios. Ela tem uns vinte pares desapatos e me dá os que não usa mais. Senão fosse por Lisa, eu só teria algunstênis e um par de sapatos chiques paraocasiões especiais, normalmente commeus avós, por isso quase nunca é usadoe está sempre apertado demais. Lisa medeu uns chinelos coloridos para eu nãoficar totalmente ridícula.

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Talvez eu seja uma pessoa má porainda querer um presente hoje. Enquantopapai está apagado, pego vinte dólaresda carteira dele. Por que tenho quepassar o dia inteiro em casa? Vou daruma volta sozinha no Walgreens, quefica a cerca de uma quadra da nossacasa, passando por um grandecruzamento. Ele que se preocupe quandoacordar, oras. Ele que se sinta mal aponto de me deixar furar as orelhas. Soupraticamente a única pessoa de dozeanos que conheço com orelhas semnenhum acessório.

Passo quase duas horas noWalgreens, bebendo uma Coca e lendo

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umas revistas, até um funcionáriosugerir, de um jeito não muito simpático,que aquilo é uma loja, não umabiblioteca, e que eu devia compraralguma coisa ou dar o fora. Entãocompro um saco grande de M&M’s e umromance de bolso chamado O valentelibertino. Quero descobrir como umlibertino pode ser valente. Na saída, ocaixa malvado me encara enquantopassa o livro pelo leitor de código debarras.

Também compro uma faixa de cabelopreta com uma fileira de strass no meio.Lisa disse que é o acessório perfeitopara alguém com cabelos castanhos na

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altura dos ombros, como eu.Com o celular, tiro uma foto minha

usando a faixa e mando para Lisa.Ela responde na mesma hora com

uma dela, exibindo brincos azuisreluzentes, e uma mensagem:

Dá 1 jeito nas suas orelhas.Bem.Eu respondo: Esqueceu que eh meu níver

amanhã?Ela responde com uma carinha

sorridente.Não há nada que eu possa fazer em

relação às minhas orelhas. Meu pai achaque orelhas furadas são só paramulheres adultas, mas o que ele entende

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de moda? Quase todos os dias tenho queconferir se está saindo com meiascombinando e cortar fios soltos dosbolsos das suas calças.

Quando volto do Walgreens, nadamudou no meu beco sem saída. Ascigarras ainda estão zumbindo nasárvores como cascavéis, e faz tantocalor que eu suo só de ficar parada. Pelomenos agora meu cabelo tem um novoacessório de strass, que é atualmenteminha palavra favorita. Deve ser a únicapalavra que conheço com três letras s.

strass s.f. pedra de acrílico, vidro oucristal de rocha que imita diamante e

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pedra preciosa

A única coisa diferente aqui é acaminhonete da Gramados e JardinsSanchez na casa do Sr. Gustafson. Ele éo único vizinho do quarteirão que nãocorta a própria grama. Acho que éporque é tão encurvado que estácomeçando a ficar que nem um cabo deguarda-chuva.

A equipe de jardineirosprovavelmente não se importa muitocom plateia, mas eu vou até a casa doSr. Gustafson assim mesmo. Um rapazmexicano de boné vermelho começa atrabalhar. Ele não parece muito mais

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velho que eu, e me pergunto se já sabetransformar um quintal em um tapete lisoe listrado de grama. Por que ele nãoexperimenta padrões diferentes, comoaqueles círculos que os alienígenasfazem nas plantações? Como acontece àsvezes, meu cérebro está pensando emtanta coisa que se esquece de dizer ameu corpo para continuar se mexendo.

Fico parada até que o garotopigarreia como se eu estivesse nocaminho, coisa que, por sinal, estoumesmo.

— Ah, desculpa — digo saindo dafrente. — Então, você gosta dessetrabalho? É divertido cortar grama?

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— No hablo inglés.— O quê? Ah. Entendi.Não é que eu nunca tenha convivido

com gente que não fala inglês. Afinal,não sou de Marte. Mas, nesse momento,o fato de o garoto na minha frente serincapaz de me entender é um tesourorecém-descoberto. Eu poderia dizerqualquer coisa.

— Arco-íris bolo chocolate invernoneve varanda.

Ele balança a cabeça como se eutivesse falado algo que fizesse todosentido em blá-blá-blá alienígena. Ossapatos dele são velhos e manchados degrama, o que faz com que eu me pergunte

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de quantas casas ele cuida. Esseemprego deve ser divertido. É ao arlivre e sempre tem coisas novas para sever. Vou anotar isso no meu diário comouma possibilidade de carreira. Seriadivertido ver tantos bairros diferentes.Aposto que eu saberia identificar logoas casas alugadas. Elas são marrons, têmmais ervas-daninhas e, como a nossa,normalmente têm um tronco de árvoremorta no jardim. Tem uma casa assim aum quarteirão daqui, e as pessoaspuseram uma planta em um vaso emcima do toco, como se isso pudessedisfarçá-lo. Tudo o que eu queria eraraptar aquela planta, porque ela

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provavelmente vai morrer de vergonhaali.

O garoto de boné vermelho ficaparado, esperando para ver se eu voufalar alguma coisa. O simples fato dedizer seus segredos em voz alta podefazer você se sentir melhor, o que euaprendi depois de conversar com Planta.Ela não é uma pessoa, mas é um servivo, então sei que me escuta.

Eu começo.— Nunca dei um beijo de língua em

um garoto — digo enquanto ele pega umsoprador de folhas na caminhonete.

Esse foi um.— Meu pai me deixou dirigir o carro

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uma vez.Dois. Certo, ele ainda está em pé na

minha frente.Então paro um pouco e respiro fundo.

Quando alguém descobre que somosaquela família e que minha mãe éaquela mulher e que eu sou aquelamenina, nós nos mudamos. Mas, nesseinstante, o desejo de dizer isso é quaseinsuportável.

Se eu lhe dissesse meu nome, vocêpoderia dar uma busca no computadore, junto com uma pequena menção ameu irmão gêmeo, Simon, lá estaria eu,a filha daquela mulher. A filha dalouca.

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O garoto inclina a cabeça e aperta osolhos como se eu tivesse apontado umalanterna para o rosto dele. Ele liga osoprador de folhas e passa ao meu redorpara conseguir terminar o trabalho.

Eu podia contar a ele, mas já faleidemais para um dia. Fico parada pertodo meio-fio, mordiscando os M&M’smeio derretidos, e observo enquanto ogaroto deixa a calçada limpa, parecendonova. Os dois outros homens da equipeguardam o equipamento na caminhonetevermelha, abrem garrafas de Gatorade esentam no para-choque traseiro. Umdeles diz algo que faz o outro rir e me dávontade de saber um pouco de español,

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mas eu não sei.— Bem, você trabalha muito bem —

digo. O garoto de boné vermelho, queestá ocupado ajustando alguma coisa nosoprador de folhas, olha outra vez paramim. Então aponto para o gramado efaço um sinal de positivo, supondo queeste deve ser um sinal universal deaprovação. Ele assente. — Legal, então.A gente se vê por aí.

Faço toda a volta no final da rua semsaída e aceno para os jardineirosquando eles vão embora, imaginando oque o garoto poderia ter me perguntadose soubesse falar inglês, quais segredosele teria. Por mais que eu não goste de

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gente enxerida, também adoro saber umsegredo interessante.

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capítulo 5

Esta deve ser a tarde mais longa nahistória das tardes. Meu pai ainda estábêbado.

Dei uma olhada pela porta de tela e,para variar, ele continuava esparramadono sofá, uma das mãos pendurada naalmofada, a outra em cima da testa comose ele tivesse acabado de recebernotícias ruins e estivesse paralisado.

É longe demais e está muito quentepara ir até a biblioteca agora, então

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estou empacada aqui no jardim de casac o m O valente libertino, aquelesM&M’s derretidos e nada de novo paraadicionar ao meu conhecimento domundo. Eu já poderia escrever um livrocom o que conheço desta cidadezinhaidiota. Enchi um capítulo inteiro dodiário só com isso, para o caso de ficarfamosa e precisar escrever minhasmemórias um dia. Rá, rá!

Vivemos em uma área onde todas asruas têm nomes de faculdadesconhecidas. Você poderia pensar queisso significa que aqui é um lugarbacana, mas não, não é verdade. Aqui éo contrário de bacana. Duvido que a

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maior parte das pessoas daqui tenhasequer ido à faculdade. A mãe da Lisadiz que, como todas as pessoas são partedo corpo de Cristo, algumas acabamtendo que ser o sovaco. Ela diz que, noTexas, o estado da estrela solitária,Garland é um sovaco trabalhador. É umaparte necessária do corpo, mas não ébonita e pode ser bem fedida,especialmente se você estiver contra ovento que vem da estação de tratamentode esgoto, que é o nosso caso. Semcontar as árvores que cresceram demaise tiveram que ser cortadas ao meio paradar passagem aos cabos de energia, nãohá muita natureza por aqui, se é disso

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que você gosta, mas as pessoas sãolegais e sorriem para você sem nenhumarazão especial.

Se meu pai e eu fôssemos o tipo defamília que passa o tempo no jardimfazendo amizade com o entregador dejornais ou acenando para o vizinho dooutro lado da rua enquanto rega asplantas, conheceríamos muita genteinteressante. Mas não regamos nada.Nem assinamos o jornal. Sabemos quemsão os nossos vizinhos, mas isso não é amesma coisa que conhecê-los.

Para espionar a vizinhança, eu ficoda janela do meu quarto ou de cima dotoco de árvore do nosso jardim. De lá,

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posso ver os vizinhos e todas as suascores diferentes. Nossa rua sem saídatem famílias de quatro países: México,Índia, Irã e Vietnã. E o papai disse que oSr. Stanley se casou com uma russa noNatal passado. Eu adoraria saber comoele consegue esse tipo de informação, jáque não fala com ninguém.

O que percebi, da minha janela, é queas pessoas em nosso bairro são muitotrabalhadoras. Todo dia de manhã, euacordo com o barulho de motores velhosde caminhões e vans saindo para omundo. Não é difícil adivinhar o queeles fazem o dia inteiro. Por exemplo, sevocê precisa de algum tipo de serviço,

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não precisa consultar a lista telefônica.É só olhar pela janela e ver a empresade que precisa e o telefone pintados nalateral de um caminhão ou de uma vanem letras grandes.

ENCANADORES JENNINGSNGUYEN PINTURABOB’S MANUTENÇÃO DE PISCINASUma vez, quando eu estava doente e

não fui à aula, passei o dia observandoos vizinhos pela janela. O que vi foique, depois que eles saíram paratrabalhar, ficou tudo tão silencioso que oquarteirão inteiro por alguns minutospareceu ser só meu, até a hora em que osônibus escolares passaram. Depois os

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garotos a pé e de bicicleta seguiram namesma direção, parecendo robôssonolentos de mochila.

Quando o vento está forte, dá paraouvir os sinos da igreja badalando porentre os carvalhos da Sra. Dupree. Éesse som que me faz decidir se precisousar casaco. Às segundas-feiras, ouvem-se os caminhões de lixo fazendobipebipebipe pelos becos. À tarde, seestiver bem quieto, dá para ouvir oscaracterísticos parar e arrancar da vando correio, que passa na nossa rua porvolta das três horas.

Depois, mais para a tardinha, percebique tudo na vizinhança se inverte. Os

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ônibus escolares vêm da direção oposta,e os estudantes são os mesmos, talvezcom mochilas mais pesadas. Oscaminhões e as vans chegam roncandosabe-se lá de onde e tornam a estacionarna rua diante de suas casas, e os homensparam para checar a correspondência.Em pouco tempo é possível sentir ocheiro da comida sendo preparada nosfornos ou nas churrasqueiras dosquintais, aromas exóticos que me dãoágua na boca só de pensar.

Enquanto os jantares estãocozinhando, as crianças pequenas andamde bicicleta ou pulam amarelinha até asmães as chamarem para dentro com

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sotaques que você nunca ouviu na vida.Quando o sol desaparece, o barulho dosaspersores e das cigarras toma conta detudo.

Então acho que ainda há algo aaprender em Garland, afinal de contas. Éa quarta cidade do Texas em que moro.O Dr. Madrigal ia gostar de saber queessa é uma informação que compartilheicom Lisa.

Aliás, tenho um diário para cadacidade. Quatro, cada um de uma cordiferente. Comecei em Galveston (azul),aí me mudei para Waco (amarelo),depois Tyler (vermelho) e agora estoucom um diário bege aqui na Terra de

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Gar, que é como Lisa chama a cidade.Só pela beleza, a melhor cidade onde

morei foi Galveston, à beira-mar.Sempre tinha areia no chão da cozinha, eas janelas podiam ficar abertas quase oano inteiro. Depois do trabalho, papai eeu saíamos para caminhar perto dooceano verde-acinzentado, e catávamosconchas. Mas muita gente nos conhecialá, por isso tivemos que nos mudar.Papai disse que se sentia desconfortávelsó de ir ao mercado, o que eu entendiaperfeitamente.

Pouco antes de deixarmos nossaúltima casa, em Tyler, uma mulher decamisetinha curta e peitos gigantes

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reconheceu meu pai no mercado. (Meupai depois descreveu os peitos delacomo pendulares, uma palavra que eugostaria de usar com mais frequência.)

pendular adj. relativo a pêndulo; queoscila, que se move de um lado para ooutro

Estávamos procurando pêssegosmaduros, cheirando cada um para acharos melhores, quando a mulher apareceue ficou olhando meu pai como se nuncativesse visto um homem. Os olhos dela oexaminaram por inteiro, de cima abaixo, de um lado a outro. As pessoas

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olham de um jeito feio quando estãojulgando alguém. A cabeça ficalevemente inclinada; e o nariz, um poucofranzido, como se tivesse acabado desentir cheiro de comida podre. A Mulherdos Peitos Gigantes tinha essaexpressão. Se você se olhar no espelhoquando estiver julgando alguém, nuncamais vai fazer essa cara. Não é umaimagem bonita.

“Ainda não tenho certeza se vocêdeveria ou não ter ido para a cadeia”,disse ela.

Isso acabou com nossas compras.Deixamos o carrinho ali, no meio docorredor de hortifrúti, e fomos embora.

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Vou dizer uma coisa: depois disso,passei a desconfiar muito de mulherescom peitos pendulares.

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capítulo 6

O sol está se pondo, e o papai ainda estádormindo no sofá. Diminuo o volume datevê e o cubro com a manta marrom. Éestranho pensar que sou eu quem estáagindo como adulto. Duas semanasatrás, ele disse: “Não, você não pode ircom Lisa ver esse filme para maiores dedezoito anos. Não me importa que a mãedela deixe. Qual o número do celulardela, para eu explicar minhapreocupação?”

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Ao mesmo tempo, aqui estou eu,colocando dois comprimidos de Tylenole um copo de água na mesa de centro,onde deveria haver, não sei, um presenteantecipado de aniversário.

Como uma Pop-Tart fria no jantar,visto meu pijama desbotado e vou para acama. Tento dormir, mas não consigo.Minha mente ainda está a toda. Este diafoi zero especial. Eu devia estarbrincando com meu iPod novo agora.Devíamos ter jantado em um restaurante.Pop-Tarts não substituem um bolo.

Uma das folhas de Planta balançacom a brisa do ar-condicionado central,acenando para mim.

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— Se aquele garoto descobrir derepente que entende inglês e contar aalguém que nunca beijei de língua, possome dar mal — digo a ela, que nãoresponde, nem mesmo com um aceno.

Rolo na cama e olho para o teto. Àsvezes a gente faz coisas estranhas edepois fica se perguntando o motivo,enquanto o ventilador de teto gira lá noalto. E, se faço coisas estranhas, issosignifica que vou acabar louca como aminha mãe? Talvez eu precise telefonarpara um hospital e descobrir o que umapessoa deve fazer se perceber os sinais.Eles podiam estudar meu cérebro. Aí eupodia conseguir um atestado médico que

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me liberasse do projeto da árvoregenealógica.

Sarah está dispensada da tarefa pormotivos de saúde mental.

Por enquanto, vou ficar a noite inteirasem dormir até o momento exato em quefizer doze anos. Feliz aniversário paramim. Por favor, passem os presentes.

Pelo menos eu me dei um livro debolso novo, que quase já acabei de ler.Mas, como me dei conta, libertino éuma palavra que não posso acrescentarao meu vocabulário, pelo menos não nosentido usado em O valente libertino.

libertino s.m. homem dissoluto na

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alta sociedade

E, claro, como costuma acontecercomigo, precisei procurar a definição deuma palavra dentro da definição.

dissoluto adj. indiferente a restriçõesmorais; aquele que se comporta de modoimoral ou impróprio

Vasculhei meu cérebro em busca dealguém que eu conhecesse que seencaixasse na descrição de libertino.Não conheço ninguém na alta sociedade.Mas já vi várias garotas mais velhas queandam por aí pagando calcinha.

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Algumas gostam de tirar fotos e mandarpara os garotos. Tenho que investigar seuma garota pode ser libertina. Pareceque sim.

Como amanhã é meu aniversário deverdade, as pessoas vão esperar que euuse palavras diferentes. Pode ser que euconsiga incluir dissoluto em algumaconversa.

Espero que os doze sejam diferentesdos onze. Mas eu tenho essa esperançatodos os anos, e a maioria das coisasnão muda. Essa manhã percebi que tudono meu quarto parecia pertencer a umamenina mais nova. Talvez essa seja aprimeira diferença. Vou ter que mudar a

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decoração e comprar mais roupaspretas, para combinar com minha lindafaixa de cabelo nova. Espero que meupai me leve ao shopping ou ao cinema.Talvez eu consiga fazê-lo sentir tantaculpa que ele me deixe furar as orelhas.Sabe de uma coisa, era para você terme levado ao shopping, mas aí ficoubêbado... Rá! Como se eu fosse corajosao suficiente para dizer isso em voz alta.

Em algum momento após a meia-noite, quando já tenho oficialmente dozeanos, saio pé ante pé pela casa, como seo chão fosse feito de algodão. O papaiestá dormindo, então não tenho comoesquentar uma Pop-Tart sem acordá-lo.

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Nossa torradeira é tão barulhenta que écapaz de acordar a vizinhança inteira.Então eu pego uma fria mesmo e corrode volta para o quarto. Talvez maistarde ele faça panquecas. Ou saia paracomprar donuts, como nós fazemosquase todo domingo.

Rapidamente, antes que ele acorde,pego meu diário verdadeiro e faço umalista. Penso em meu aniversário comouma forma de começar do zero, domesmo jeito que as pessoas veem oprimeiro de janeiro como um novocomeço. Minha avó faz isso no início doano. Este ano algumas das suaspromessas de Ano-novo são

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experimentar um corte de cabelo maissimples, entrar para um clube do livro eplantar tomates.

Escrevo meus objetivos, comomelhorar minha postura e minhahabilidade em passar sombra azul ouverde nos olhos. Também gostaria desaber mais sobre as Testemunhas deJeová e por que elas fazem meu paiignorar a campainha. O quetestemunharam, e por que ninguém quersaber nada sobre isso?

Hoje, escrevo minha lista de novosobjetivos no diário:

– Dar um beijo de língua em um

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garoto.– Tornar a minha vida mais rica.– Furar as orelhas.– Aprender um pouco de español.– Prestar atenção a sinais de estar

enlouquecendo (rá, rá).

Eu queria ter minhas velhas listas deaniversário neste momento. Podiaprocurá-las na minha caixa e ler sobrequem eu era. Faço essas listas desde omeu aniversário de oito anos. Meuaniversário de oito anos foi uma bosta.Bosta é uma palavra-problema tãogrande quanto o Texas, por isso não falona frente do meu pai, que é o maior

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sabe-tudo quando se trata de gramática,já que é professor. Mas às vezes vocêtem que usar a palavra certa, mesmo queseja apenas na sua cabeça.

Nem vou contar a você como aqueleaniversário foi ruim. Vamos dizerapenas que, se eu quisesse escrever umareportagem intitulada “Dez dicas parauma comemoração péssima”, eu poderiafazer isso com a maior facilidade.

1. Comer pizza fria no ChuckE. Cheese.

2. Voltar para casa.3. Seu pai assistir a Três

Homens Em Conflito pela

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milionésima vez.4. Servir uma bebida para o

seu pai.5. Dar à sua filha uma casa

de bonecas maisapropriada para umamenina de cinco anos.

6. Abrir um cartão da mãelouca.

7. Interrogar seu pai sobre amãe louca.

8. Ajudar o pai a limpar abebida derramada “semquerer”.

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9. Comer bolo em silêncio.10. Ler um livro até cair no

sono.

Como eu disse, às vezes usar apalavra certa é necessário, seja ela umproblema ou não. Há maneira melhor dedescrever esse dia do que com bosta?Eu acho que não.

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capítulo 7

Duas semanas se passaram desde aquelefim de semana terrível do meuaniversário. E finalmente chegou oúltimo dia horrível do sexto ano, masisso impede que nosso professor deinglês, o Sr. Wistler, tente enfiar maisalguma coisa no nosso cérebro? Não. Sóque não vai adiantar. Todo mundo estáignorando a voz dele.

Estou inquieta na carteira, e tudo queeu queria era atravessar o vidro da

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janela e dar início à marquinha de soldeixada pelas tiras dos chinelos. Nãoque minhas férias de verão costumemser muito espetaculares. Um verãoentediante ainda é o Problema 1. Amesma velha Houston com meus avós. Amesma vida chata. O mesmo tudo.

Os ingredientes de um típico verãochato de Sarah Nelson:

– Viajar de carro direto atéHouston, sem fazer paradas emnada interessante, como naMaior Bota do Mundo, nempara um sundae na DairyQueen.

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– Chegar à casa dos meus avós econferir imediatamente aprevisão do tempo na tevê.

– Observar minha avó parada àjanela da cozinha por horas,tentando combinar os pares demeias pretas e azuis.

– Ir ao encontro com o prefeito nocentro da cidade, porque éservido um jantar grátis — enão ia ser divertido ouvir umpolítico falar? (Resposta:Não.)

– Finalmente chegar aos dias

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divertidos, quando minha avópega a caixa de costura e juntasfazemos um bicho de pelúcia,tipo um camelo vermelho comcrina preta, e ela me diz comosou bonita. (Por que nãopodemos adiantar o verão logopara essa parte?)

– Terminar o verão com umavergonhosa ida ao shoppingcom a vovó, que me dávestidos de criança que eununca vou usar, a menos quehaja um concurso do vestido

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mais feio — eu venceria fácil,fácil.

Isso é tudo o que me espera. Isso e oinício da minha investigação doProblema 2: o temido trabalho sobre aárvore genealógica do sétimo ano.

Nesse meio-tempo, o Sr. Wistlercontinua a falar daquele jeito que osadultos falam quando acham que estãofazendo um favor por compartilhar suainteligência. É como se a própria vozfosse a canção favorita deles. O Sr.Wistler fala sem parar sobre a geração“das mensagens de texto”, sobre comosó sabemos pensar com os polegares,

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como a tecnologia está levando a umalinguagem condensada, desprovida devogais, que nossas avós nãoreconheceriam.

— Vocês escrevem desse jeitoquando estão diante de um computador?— quer saber ele. — Ou, ouso dizer,com lápis e papel de verdade nas mãos?

Examino meus dedos dos pés,decidindo de que cor vou pintar as unhasda próxima vez, roxo ou rosa clarinho.Gosto mais de roxo, mas fica muitoóbvio quando você borra o esmalte, oque às vezes acontece comigo.

Então o Sr. Wistler escreve noquadro-negro:

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Nuss n tm como flar dvcs sm dizer: vcs são d+.mds, q sdds d td mnd!kkkkk <3

E, é claro, ver um professor escreverisso no quadro é muito engraçado, entãotodo mudo dá uma risadinha.

— Então estou desafiando vocês aescrever cartas para alguém, qualquerpessoa, durante o verão. Escrevam compalavras de verdade, vogais. Escrevamuma história. Escrevam um livro depoesia. Qualquer coisa. Só é precisoque tenha palavras escritas

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corretamente. Como estão escritas nodicionário!

Rá! Eu já sei fazer isso, Sr. W.— Agora, antes que comecem a

dizer: “Ai, que saco, Sr. Wistler, estáfalando sério?”, escutem. Não posso darnota a esse trabalho, porque não vou serprofessor desta turma no ano que vem,então estou oferecendo uma recompensa.Um prêmio! Quem me mostrar, no iníciodo próximo ano letivo, provasconsistentes de ter realmente escritocom frequência, vai ganhar um iPodNano.

Ele ergue uma embalagem com umiPod verde dentro. É uma oportunidade

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envolta em plástico. Eu quero.Alguém da turma diz que é uma ideia

idiota. Beleza, penso. Um concorrente amenos.

— É idiota — diz o Sr. Wistler. —Eu queria saber como expressaria seuspensamentos em uma mensagem. Vocêconsegue escrever uma frase completa?Ou tem uma gíria para isso?

— Chatão — diz Dale Baker. — Éisso o que a gente diria.

— Interessante — retruca o Sr.Wistler. — Bem, sabe, nós temos umproblema. Eu adoro ler, e estou em umasala cheia de escritores da próximageração. Será que vou precisar de um

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dicionário de inglês/mensagens de textopara conseguir entender suas histórias?Queria que tentassem. Escrevam textospara seus amigos, nem parem muito parapensar nisso. Estou pedindo queescrevam cartas, que incluamacontecimentos, coisas que tenhampercebido, como a mudança dasestações afeta vocês ou o cheiro dasflores. Imaginem morar na Índia com ummacaco. Expressem a alegria de beberuma simples limonada em um dia quente.Finjam ser estranhos em sua própriacasa, onde acabaram de notar umarachadura no teto. Seria uma passagempara um cômodo oculto? Escrevam

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cartas para alguém que vocês viram emum restaurante. Talvez uma pessoafamosa, viva ou morta. Ou talvez paraseus personagens favoritos de um livroou de um filme! Perguntem coisas sobrea vida deles, as escolhas que fizeram. Ese Harry Potter tivesse vindo morar noTexas? Digam por que gostam tantodele. Escrevam sobre por que ele é tãointeressante para vocês. Finjam que vãoencontrá-lo, ou qualquer outropersonagem, no fim do verão. Sejamcuriosos e libertem sua mente deabreviações.

Olho pela sala. Dá para perceber queagora todas as pessoas vão escrever

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para Harry Potter.— E se não conhecerem ninguém,

podem escrever para mim — diz o Sr.Wistler. — Mas, cuidado, eu possoescrever de volta!

— A gente tem que fazer isso? —pergunta Jimmy Leighton.

Se quer saber, Jimmy Leighton é oúnico garoto da escola inteira que euqueria que prestasse atenção em mim.

Por falar nisso, ele não está em umrelacionamento sério com EmmaRodriguez. Ela estava apenas inventandocoisas no Facebook, provavelmenteporque queria que fosse verdade. Eu nãoposso culpá-la. Jimmy tem os cabelos

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mais louros do mundo e provavelmenteé o cara mais bem-vestido da escola.

Quando eu o vejo, minha mente tiratodo mundo do caminho e o observaandar em câmera lenta, de tão bom que éolhar para ele. Jimmy tinha sua própriapágina no Facebook, e eu costumavaentrar e ficar olhando para ele, porquepodia fazer isso sem ninguém ver. Masvários garotos escreviam coisas idiotas,como dizer que ele era gay só porque umdia usou colete, então Jimmy saiu doFacebook. Sem brincadeira, eu queriaque o Lucas McCain viesse à nossaescola e tivesse uma conversa séria comessas pessoas.

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O Sr. Wistler tenta explicar paraJimmy Leighton o que quer enquanto eupenso: Ah, você pode escrever paramim, Jimmy. Escreva para mim, Jimmy!Eu adoro coletes!

— Sr. Leighton, não posso obrigá-loa fazer isso, mas vou torcer para quetente.

O Sr. Wistler começa a andar de umlado para o outro com as mãos nosbolsos. A única vez que me lembro deele ter ficado agitado desse jeito foiquando lemos O doador. Então elelevanta uma caixona e começa a jogarcadernos pautados para todos nós.

— Agora abram estes cadernos e

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comecem. Escrevam a primeira frase deuma carta ou uma história de verdade eme mostrem quando saírem para que eusaiba que não estou aqui falando com asparedes, PFVR.

Tanta gente na turma reclama que éimpossível contar.

“Eu não sei o que escrever”, repetemtodos.

“Não consigo pensar em nada, Sr.Wistler. O senhor quer acabar comigo.”

“Sr. Wistler, isso é muito sem graça.”Ao que o Sr. Wistler retruca:— A maioria das pessoas não sabe o

que realmente pensa até colocar nopapel. Vocês não querem descobrir o

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que realmente pensam?O caderno de redação que ele jogou

na minha carteira é verde, o queconsidero um sinal de que vou ganhar oiPod. Já estou até ouvindo a música. Vaiser fácil. Eu escrevo mais do que falo.Olho para a página em branco. As linhasazul-claras gritam para serempreenchidas. Mordo a borracha do lápis,imaginando como seria viver na Índiacom um macaco que bebe limonadaenquanto um furacão vai passando. Temuma rachadura gigantesca no teto docorredor lá de casa, e ela leva ao nossosótão cheio de aranhas. Há uma boahistória escondida ali.

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Antes que dê para dizer verão,começo a escrever. E o que o Sr.Wistler disse é verdade. Eu não sabiaque estava pensando nisso:

Querida Mary,Eu queria lhe fazer uma pergunta.Alguém lembra você de que é meuaniversário, ou você sabe o dia decor? Porque eu acho que você nãosabe. E também estou curiosa parasaber como você passa o seuaniversário. Vocês têm bolo aí?

E s c r e v e r Querida Mary foi

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inteligente, assim ninguém vai saber doque estou falando. Em filmes policiais,isso se chama camuflagem. O problemaé que meu corpo não queria que meucérebro tivesse pensado nessa história,porque meu pescoço fica quente ecorado. Ergo os olhos do caderno. O Sr.Wistler está sorrindo. Para mim. Seráque ele sabe meu segredo? Acho que épossível. Ou pelo menos parte dele.Hoje, porém, posso ter acabado comtodo o meu disfarce, como tambémdizem nos filmes policiais.

Arranco a página, dobro ao meio eguardo no fim do caderno. Rápido, digopara mim mesma. Escreva outra coisa!

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Minhas mãos se movem o maisdepressa possível.

Caro Atticus Finch,Estou escrevendo para você porcausa de um trabalho escolar parao melhor professor de inglês detodos os tempos, o Sr. G. Wistler.Ele deu a ideia de escrevermosuma carta para um personagem.Não tenho certeza, mas acho quesou a única que escolheu o senhor.Isso é bom para mim. A maioriados meus colegas de turma vaiescrever para Harry Potter ou

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Lucy Moon. Talvez o senhor ostenha conhecido na biblioteca.Quando era pequena, eu achavaque, depois que a bibliotecafechava, todos os personagenssaíam dos livros.

Enfim, preciso confessar quenão tinha lido sobre o senhor aprincípio. Provavelmente vocêsabe que fizeram um filme dolivro que conta sua história. Eu ovi tarde da noite uma vez, quandomeu pai assistia a O sol é paratodos. Ele disse que era uma boa

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história, mas acabou dormindo,então eu continuei sozinha. Isso foimais ou menos um ano atrás. Tinhamuitas coisas legais na história.Depois descobri que tínhamos umexemplar em casa. Eu li o livroem quatro dias.

O Sr. Wistler disse que a gentedevia contar na carta o que achavaser a coisa mais interessante sobreo personagem que tinha escolhido.Disse que nós devíamos pensarem uma ou duas perguntas quefaríamos se tivéssemos a chance

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de tomar um café da manhã juntose conversar. A pergunta maisimportante que me vem à mente é:por que o senhor decidiu defenderTom Robinson? Sei que o senhordisse no livro que era a coisacerta, mas as pessoas nem semprefazem a coisa certa. Quando eupreciso saber se uma coisa é acerta, escrevo todas as minhasopções e circulo a mais difícil. Amais difícil é quase sempre acerta, mas também pode causarproblemas. Eu queria saber se o

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senhor faz a mesma coisa. Eugostaria de perguntar se o senhorse sentou na varanda da sua casa efez uma lista de suas opções comrelação a defender TomRobinson? O senhor já sabia queas pessoas iriam xingá-lo ezombar de você? Para mim, foi adecisão certa. É por isso que achoo senhor tão interessante. Tambémgosto do modo como fala comseus filhos, Scout e Jem. Eugostaria de tomar café da manhãcom todos vocês.

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Atenciosamente,Sarah Nelson

O sinal toca. Só algumas criançasdeixam o Sr. Wistler ver suas primeirasfrases. A lata de lixo no corredor vaificar cheia de cadernos pautados embranco, pode ter certeza.

O Sr. Wistler lê minha carta e medevolve o caderno como se fosse algofrágil.

— Hummm — diz ele. — Essa cartaé bem interessante, especialmente aparte sobre o ótimo professor de inglês.Espero que continue a escrever, Sarah.Gosto do seu estilo.

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— Obrigada.Eu pego o caderno e me dirijo à

porta.— Ei, Sarah — chama o Sr. Wistler.

Eu me viro e o vejo segurando o iPod.Ele o joga na minha direção emilagrosamente eu consigo pegá-lo noar. E olha que nunca consegui pegar nemuma bola nem nada na vida. — Nãoconte a ninguém — diz ele com umapiscadela.

Eu agradeço, mas as palavras saemem um sussurro.

— Agora pode ir, e tenha o melhorverão da sua vida.

Rá! Essa é a tarefa mais difícil que

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ele poderia me passar, mas pelo menosagora meu verão entediante vai ter aprópria trilha sonora.

Saio pelo corredor me sentindoestranha. Na primeira lata de lixo, vejodois cadernos. Espero até que ninguémesteja olhando, pego os dois e abro oprimeiro.

CARO HARRY POTTER,

Eu enfio os cadernos na mochilajunto com o iPod.

Esvazio meu armário e recolhoprincipalmente lixo e pedaços de papel,até o último chiclete velho. Nenhuma

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prova deixada para trás. Penso nocaderno pautado e rezo para não morrerno caminho de casa, para nenhumfuncionário da ambulância encontrar acarta à Querida Mary escondida. Pelomenos me deixe chegar em casa, Deus,para que eu possa rasgá-la em ummilhão de pedacinhos.

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capítulo 8

Tenho que tomar cuidado com Lisa.Pode-se dizer que ela é minha melhoramiga, mas, quando quase não se temamigo nenhum, melhor é algo relativo.Ela é minha amiga e existe, e, se eu nãotivesse nenhuma amiga, chamaria tantaatenção quanto um girassol azul. Lisa dizque consegue saber várias coisas sobreuma garota só pelo jeito como elainclina o pescoço.

Ela chega para mim e pergunta:

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— E aí, o que foi? Você estávermelha. Meu Deus, você recebeu umbilhete de um garoto?

— Não tem nada disso — respondocontrariada, esticando o pescoço.

O sorriso da Lisa hoje tem comoacessório um gloss rosa superbrilhante.O cabelo está puxado para trás e presopor uma faixa bonita xadrez. Eu nunca avi triste. Gosto disso nela. Se ela fosseuma cor, seria o amarelo.

Além disso, ela me deu um par debrincos de aniversário.

Brincos. Para orelhas furadas.Lisa gosta mesmo de botar pilha.— Agora ele vai ter que deixar você

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furar a orelha — disse ela.— Você está viajando.— Não custa tentar.As coisas que ela não sabe sobre meu

pai dariam para encher um livro. Umlivro que Lisa nunca leria.

— Vamos, vamos — diz ela comaquele seu jeito rápido e meio semfôlego.

Outro fato curioso sobre Lisa é quenormalmente ela quer estar em qualquerlugar que não seja onde está nomomento.

Então saímos depressa da escola,conversando sem parar sobre seusplanos divertidos de ir para o

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acampamento, sobre como eu iriaescrever para ela e...

— Não se esqueça do nosso pacto:antes do fim do verão, temos que dar umbeijo de língua em algum menino. Memande uma mensagem assim que rolar.

Lisa está determinada a conseguiresse negócio do beijo por alguma razão,como se isso fosse mudar a vida dela.Acha que todo mundo vai saber quandoacontecer, que o beijo vai fazê-laparecer mais velha, que ela vai passar aandar com a cabeça mais erguida.

Não tenho muita certeza de que sejamesmo assim e, mesmo se fosse, por quealguém ia querer que o mundo soubesse

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da sua vida? Pessoalmente, eu iapreferir que um garoto percebesse quallivro eu estava lendo e me dissesse quetambém tinha gostado. Isso parece umsinal melhor de carinho do que umbeijinho qualquer.

O Sr. Wistler, minha nova pessoafavorita no planeta, diz que dar diversasexperiências a um personagem o tornainteressante. Eu acho que isso tambémdeve ser verdade na vida real, por issovou tentar criar experiências variadaspara mim mesma neste verão, e um beijode língua com certeza seria algo bemdiferente, logo entrou na minha lista.Mas vai ser difícil. Não tenho ideia de

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como vou conseguir encontrar alguémpara beijar enquanto passo o verãointeiro exilada na casa dos meus avós.Eles nem ao menos pagam algum garotopara aparar o gramado.

Lisa encontra o carro da mãeesperando na rua, e eu sigo para a filados ônibus.

Hoje o ônibus está uma verdadeirafesta sobre rodas. Ora, afinal de contas,é o último dia de aula. E a últimaviagem de volta também. Se eu fosse otipo de pessoa que diz “Graças a Deus!”o tempo todo, diria “Graças a Deus estaé a última vez que tenho que entrar nesseônibus!”. Eu preferiria andar a pé o

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caminho todo até em casa, mas não, issonunca vai acontecer por causa do meupai e das suas “preocupações com minhasegurança”. Ele deveria andar no ônibusalgum dia, e aí teria motivos para sepreocupar de verdade com a minhasegurança.

Por exemplo: as pessoas em geralsão fedorentas e nada simpáticas comalunos novos, especialmente se você foruma reles aluna do sexto ano. No sextoano, os garotos maiores não precisam denenhuma razão especial, além da suaidade, para perturbar você. O bom deser eu é que já aprendi a identificar osdardos no ônibus antes que eles me

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peguem. Dardo agora tem outro sentido,que eu inventei para mim.

Dardo s.m. criança que descobre afraqueza de uma pessoa e faz questão deser má com ela

Posso usar essa palavra e insultá-lossem que eles percebam. Além disso, éperfeita. Dá para imaginar as palavrasmaldosas deles viajando pelo ar eacertando quem eles querem. Não édifícil identificar os dardos. Eles gostamde plateia e andam em grupos de dois outrês. Têm qualquer que seja A Novidadeantes de todo mundo. Falam alto. Acham

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que sabem tudo. E não levam merenda, oque me dá vontade de perguntar: cadê asua mãe? Mas eu nunca pergunto. Ficoinvisível como sempre.

Especialmente hoje.Tem dois dardos no meu ônibus:

Mark Medina e Daryl Land. Elesadorariam roubar meu iPod, ou zoarminha carta para Atticus, ou as duascoisas, se soubessem. Ainda bem queestá tudo bem escondido nocompartimento supersecreto da minhamochila. Daryl é o líder de um grupogrande de dardos. Tem uma mochilaverde camuflada e não usa cadarço nostênis, o que, imagino, ele deve achar

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supermaneiro. Eu acho meio babaca,mas nunca vou dizer isso em voz alta.

No início do ano, tinha um garotonovo chamado Russell. Eu podia teravisado a ele que seu estojo de clarinetecom um adesivo dos escoteiros causariaproblemas, mas não falei nada. DarylLand o chamou de otário e de fracote.Russell ficou parado por um instante edepois tentou passar à força, mas Darylo empurrou para um dos bancos e jogouo estojo do clarinete no chão. Russeltentou falar, mas, seja lá o que estivessepensando, levou mais ou menos umahora para sair, porque ele gaguejava.Isso piorou a situação dele, pois Daryl

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ficou mandando um xingamento atrás dooutro.

A coisa estava tão feia que fiqueicom raiva de Russel por não sedefender, por não encontrar outro jeitode ir para casa, outro transporte. Mastalvez a diferença entre nós seja que eutenho uma garagem cheia de caixas depapelão prontas para serem usadas seprecisarmos ir embora. Além disso, eusou covarde. Vejo Russell apanhar e nãofaço nada, porque antes ele do que eu.

Russell não está no ônibus hoje. Seráque ele adora o verão e prefere qualquercoisa a estar dentro de um ônibusescolar?

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Eu moro a duas quadras do ponto doônibus da escola. Quero tirar assandálias e andar pela grama recém-aparada, sentir o começo do verão sobmeus pés, talvez seguir as linhas noasfalto quente no meio da rua. Além domais, esta vai ser a última vez em quevou estar completamente sozinha poralgum tempo. Cansei de brigar com meupai por ser mandada para longe de casao verão inteiro. Não adianta.

O que aconteceu ontem à noite foi oseguinte — no jantar, ele disse:

— Precisamos começar a fazer

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nossos planos para o verão.Ele não olhou para mim enquanto

falava. Ficou só olhando para ocardápio. Tínhamos saído para jantarporque alguém havia se esquecido de irao mercado, e ninguém queria tomarsopa enlatada.

— Acho que sim — falei, meesforçando muito para pensar em umaforma de convencê-lo de que eu já sougrande o bastante para ficar em casa.

Como meu pai é professor, é treinadopara encontrar falhas nos argumentosdos outros. É preciso tomar cuidado eusar frases curtas, que não deeminformação demais.

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— O vovô está ansioso para pescarcom você — comentou ele. — E esteano vão chegar algumas exposiçõesnovas nos museus. Talvez vocês possamir ao parque de diversões de Kemah.

Ele fechou o cardápio e olhoudiretamente para mim, com assobrancelhas erguidas como se tivessefeito uma pergunta. Claro, o vovô àsvezes me leva junto quando vai pescarcom os amigos. O que eu faço? Levo umlivro. E museus? Cada um sabe o queacha divertido.

— Eu já falei. Não quero ir. E vocêfalou que a gente ia discutir o assunto —argumentei.

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— Sarah, você sabe que precisotrabalhar.

— E eu preciso viver!— Pare de fazer drama.— Você tem que me dar mais

liberdade ou eu nunca vou aprendernada. Tenho doze anos.

— Acabou de fazer.— O que você fazia quando tinha

doze anos? — perguntei, já sabendo aresposta: ele ia para váriosacampamentos de escoteiros bem longede casa e andava de bicicleta semcapacete.

— Eu me preocuparia se você ficassesozinha em casa o dia inteiro. Não

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consigo evitar.Se o papai procurasse no meu

dicionário a palavra preocupado,poderia mudar de opinião.

preocupado s.m. que pensa nascoisas ruins que podem acontecer (vertambém: Tom Nelson)

Bem, eu podia lembrá-lo sobre o fatode ele ter enchido a cara, me deixadocompletamente sozinha, não ter melevado ao shopping, e dizer: você nãoficou preocupado naquela hora? Masnão, eu não fiz isso.

Só falei:

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— Eu não quero mesmo ir nesteverão.

Ele pagou a conta e fomos embora.Quando chegamos, entrei em casa na

frente e estava em silêncio quando ouvimeu pai me chamar atrás de mim.

— Sarah. Sarah, por favor! É porqueeu amo você.

— Tanto faz, pai — falei, tentandocontrolar o tremor na minha voz, masnão adiantou. Ela saiu fraca.

— Não estou dizendo que você nãoseja uma garota responsável, Sarah —começou ele.

— Está dizendo isso, sim.Saí pisando firme pelo corredor, bati

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a porta e esperei até que ele estivesseparado do lado de fora. Levou um bomtempo para ele falar.

— Moça, vou tentar pensar emalguma coisa, está bem? Vou tentarpensar em outras opções para o verão,certo?

Eu não disse nada. Ele que esperasse.— E vou compensar você pelo

shopping. Vamos lá quando a vovóchegar.

— É, se você não encher a cara —respondi.

Achei que me sentiria bem ao jogar oerro na cara dele, mas não me senti. Issofez com que me sentisse um dardo

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idiota.

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capítulo 9

Como é o último dia de aula, vouandando calmamente do ônibus paracasa, dou algumas voltas no quarteirão,finjo morar em outra rua. Nada deescola, ônibus escolares ou dardos portrês meses inteiros. Por outro lado,também não estou com a mínima pressade chegar em casa.

Se houvesse algum lugar para seexistir entre a casa e a escola, vocêgostaria de viver lá? Eu gostaria.

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Passo pela casa com a planta no vasoem cima do toco de árvore. Sinto queela está me encarando, pedindo ajuda.Dou mais alguns passos e aí nãoaguento. Volto correndo, resgato-a dotoco e ponho com cuidado o vaso navaranda da casa, onde deveria ficar(todo mundo sabe disso, não é?). Seráque alguém me viu? Os vizinhos vãoachar que estou louca, mas eu não ligo.

Saio apressada da cena do crime eviro na Yale Court. Me dou ao luxo deuma caça ao tesouro e pego uma pedraem forma de coração — são mais fáceisde achar do que você imagina —, depoisuma bola de golfe no jardim do Sr.

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Gustafson. Tenho duas em casa, edesenhei nelas carinhas com canetapreta. Uma é alegre; a outra, triste. Elassão úteis; coloco uma na prateleira dobanheiro do meu pai para que ele saibacomo está meu humor.

Esta manhã eu botei as duas na toalhade rosto dele. Talvez eu tenha que criaruma bola de golfe nova com o desenhode uma cara meio alegre, meio triste,porque ultimamente tenho me sentidodividida o tempo todo. Metade de mimpuxa para um lado, a outra puxa para ooutro. Planta sugeriu que isso é um clarosinal de loucura e que eu devo ficaratenta ao surgimento de novas vozes.

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Dou a volta na rua sem saída,chutando uma pedrinha pelo caminho.Pego a correspondência.

Lá está.De algum modo eu sabia que estaria.

Tem uma coisa que você precisa sabersobre a minha mãe: ela me manda umcartão duas vezes por ano, no meuaniversário e no Natal. Não recebo maisnada no restante do tempo. Sempre foiassim.

O cartão me dá um pouquinho demedo. Tenho que lembrar a mim mesmaque é apenas um cartão. Mas ela tocouaquele pedaço de papel, e isso faz deleum objeto raro. É como se nós duas

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tivéssemos ido ao mesmo lugar, só queem momentos diferentes. Como se euestivesse entrando em um prédio, e ela,saindo.

No início, finjo não ligar para ocartão e leio primeiro a outracorrespondência. Depois voucumprimentar Planta e giro o vaso paraque ela tome um pouco de sol na partede trás. Vejo se alguém deixou recadona secretária eletrônica, e mando umamensagem para Lisa.

Escreva para mim do acampamento!O Sr. Wistler teria ficado feliz por eu

ter usado uma frase completa namensagem de texto.

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Tudo isso leva mais ou menos cincominutos.

O envelope fica me olhando.Na parte de fora, tem a letra floreada

dela e um carimbo do Departamento deJustiça Criminal do Texas.

Deslizo os dedos na tinta que escrevemeu nome.

Sarah NelsonPasso o dedo sob a aba do envelope,

e a sensação é boa quando ela se abre.Puxo o cartão e viro para ver a frente.Cheiro o papel e o levanto contra a luz,para ver se há alguma mensagem oculta,escrita com tinta invisível. Já li quepessoas loucas às vezes fazem coisas

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assim. Mas não tem nada. Só a foto deum labrador preto olhando para mim.Ele está com a cabeça inclinada, comose alguém tivesse acabado de pedir queresolvesse um problema de matemáticae ele estivesse pensando: Sério?

Abro o cartão.Tenha um aniversário feliz pra cachorro.

Depois, na letra dela:

Feliz aniversário, Sarah.Como você está? Dozeanos é uma idademaravilhosa. Por favor,me mande fotos do seu

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novo eu.

Com amor, Jane Mamãe

Tudo bem, isso é muito legal, mas, sópara começar, há dois problemas nocartão:

1. Ela assinou primeiro comoJane.

2. Ela acha que eu tenho umnovo eu.

Fico curiosa para saber se algumapessoa no hospital avisou-a para nãoassinar o cartão de aniversário da

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própria filha com o nome. E o que elapoderia querer saber sobre meu novoeu? Ela não sabe nada sobre mim.

Mesmo assim, vou até o banheiro verse um novo eu me olha de volta noespelho. Passo a mão pelo cabelo e ocoloco atrás das orelhas, para que talvezpareça arrumado. Aperto os lábios egiro os ombros, estilo top model. Nãosei; talvez haja uma pequena mudança,mas só a diferença entre 6h e 6h05. Soua mesma pessoa sem graça, só que cincominutos mais velha.

Talvez ela tenha escrito aquilo semqualquer razão, e eu esteja toda animadapor nada. Analisar é paralisar, como

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sempre diz meu avô quando estamostentando escolher um restaurante paracomer, e ninguém consegue se decidir.Estou pensando demais nisso. Deixo ocartão de lado, digo a mim mesma queela só quer uma foto minha, mais nada.A pior parte de toda essa história de“mãe louca” é que não há ninguém comquem eu possa conversar sobre o cartão.

— O que acha, Simon? — digo parao meu reflexo. — Doze anos. Parecediferente para você? Eu pareço diferentede onde você está?

Na mesma hora, me sinto sozinhapelo Simon, então apago meuspensamentos sobre ele e foco em outra

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pessoa.Minha tia Mariah?Eu poderia telefonar e perguntar o

que ela acha. Ela é outra pessoa sobrequem nossa família não gosta de falar,provavelmente porque é meia-irmã daminha mãe. Eu gostaria que fôssemosmais próximas, mas não somos. Quandopenso nela, eu a vejo citando a Bíblia esegurando minhas mãos quando mecumprimenta. Minha avó não gosta nadadisso. Minha tia Mariah é daquele tipoque adora abraçar os outros e viveenfeitada com joias e cores. Se aspessoas fossem cores, minha avó seriabege, e a tia Mariah, um arco-íris. Rá!

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Fecho os olhos e imagino as mãosdela no meu rosto. Sim, eu poderia falarcom ela sobre esse cartão. Vou ter queanotar isso na minha lista, pedir otelefone dela ao papai. Não me lembrode quando foi a última vez que nosfalamos.

Simon volta à minha mente, e tenhoque pedir a ele para, por favor, irembora agora.

Quando estávamos em Galveston,minha tia e eu fazíamos longos passeiospela praia. Ela aproximava o rosto domeu, e eu sentia o aroma das folhas dehortelã que ela gostava de mascar.Minha tia dizia coisas tão maravilhosas

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que dava vontade de ter lápis e papelpresos à camisa só para poder anotartodas as suas frases.

“Há pessoas esperando apenas paraamar você, pessoas que Deus pôs aolongo do caminho da vida como placasde sinalização em uma autoestrada.Siga nessa direção, Vire aqui, Ame essapessoa. Ajuda: 10 km. A maioria de nósnão lê as placas, Sarinha.”

Uma coisa de que me lembro comcerteza é: ela disse que, se eu amaralguém quando mais estiver precisandome sentir amada, bem, aí vai chovertanto amor em mim que eu vou podermergulhar.

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Nesse momento percebo que estouchorando.

As lágrimas correm, e abraço ocartão junto ao peito. Deslizo para ochão amarelo do banheiro e deito delado, então vejo uma presilha de cabelominha embaixo do armário. Eu me sintodividida ao meio. Sofro de tanta vontadede saber mais sobre minha mãe; aomesmo tempo, queria que ela nuncativesse me mandado cartão nenhum.Sentir duas coisas ao mesmo tempo deveser um dos primeiros sinais de loucura.

Após alguns minutos, escuto obarulho do portão da garagem seabrindo. Ele chacoalha e range como se

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algo o estivesse atacando.Levanto do chão e me ajeito. Minhas

bochechas estão vermelhas emanchadas, então jogo água no rosto,corro para o meu quarto, fecho a porta eme sento ao lado de Planta. Oaniversário dela é em setembro, entãoela vai ter que esperar para ganhar algoespecial. Leio meu cartão para ela.

— Fico pensando se ela não estavaassinando um monte de autógrafos, eeles botaram esse cartão na frente dela— digo. — Aí ela achou que era só maisum, para um fã.

Já li na internet que tem gente quequer se corresponder com a minha mãe.

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Pelo que entendi, alguns homens sãoapaixonados por ela, algumas mulheresquerem bater nela e tem gente quegostaria de estudar o caso dela. Éestranho pensar como algumas pessoassabem mais sobre a minha mãe do queeu. É tão injusto.

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capítulo 10

Olho pela janela e vejo minha ruínasobre rodas.

A banheira bege gigantesca embicana entrada da nossa garagem. O carrosignifica tédio. Significa que meu painão pensou em nenhuma outra opçãopara as férias.

— Olá! — grita o vovô.Ele é o primeiro a me alcançar

quando caminho até a cozinha. Apertameu ombro. Eu esperava conseguir

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buscar algo rápido para comer, meesconder no quarto e abrir a caixa domeu iPod.

Minha avó me dá um abraço.— Quer limonada? — pergunta. —

Eu trouxe na viagem.Meu pai me dá um tapinha nas costas.Aperto. Abraço. Tapinha.É sempre a mesma coisa quando vejo

os três juntos. Pelo menos assim elesnão conseguem ver que eu chorei. Ounão reparam.

— Como foi o último dia de aula? —pergunta o vovô.

— Aprendeu alguma coisa novahoje? — pergunta a vovó.

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Minha pele está elétrica de tantairritação. Será que não posso ter nem umminuto de sossego? Não quero que Lisavá para o acampamento. Queria não terum labrador idiota me desejando felizaniversário, perguntando sobre meu“novo” eu. E não suporto a ideia de irpara Houston, aonde a diversão vai paramorrer. Sou uma mistura de raiva etristeza. Nenhum investigadorconseguiria lidar com todas as perguntasque borbulham dentro de mim, por maisesperto que fosse.

— Eu já volto — digo.Não, não vou voltar. Vou me trancar

até vocês me obrigarem a sair.

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Talvez este seja outro sinal de estarenlouquecendo, mas escrevo melhordentro do armário, que é aonde vou paraescrever outra carta.

Caro Atticus,Aqui estou eu escrevendo paravocê outra vez. Não me perguntepor que, mas senti que precisavafazer isso. Além do mais, tenhoum iPod novo (você não sabe oque é isso, mas, pode confiar emmim, é muito legal) e trêscadernos e estou com vontade deusá-los até o fim. Não tinha

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certeza de como começar estacarta. Pensei em escrever CaroSr. Finch , para ser maisrespeitosa. Sei que seus filhoschamavam você pelo primeironome, em vez de pai ou papai.Isso me surpreendeu na primeiravez em que li o seu livro. Meu pai(Tom Nelson) me disse que eraporque você estava tentandoensinar Scout e Jem a respeitar osmais velhos. Acho que isso deviavaler na sua época, mas tem umamenina na minha turma que chama

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a mãe de Lori quando ela nãoresponde ao ser chamada de mãe.Descobrimos que isso desperta aatenção de um adulto quando eleestá falando ao telefone eignorando você. É assim que elafala: “Com licença, Loriiiii.” Nãoacho que essa seja a intenção dosseus filhos quando o chamam deAtticus. Você parece dar atenção aeles. Além disso, parece queHarper Lee, a autora, gostava dedar nomes e sobrenomes aosbichos de estimação da história.

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Sei disso porque os circulei nomeu exemplar. Tem um cachorromaluco chamado Tim Johnson, agata chamada Rose Aylmer e acadela do xerife, Ann Taylor.Nunca pensei em dar sobrenomesa bichos de estimação. Talvez sejaassim no Alabama.

Como você sabe, meuprofessor de inglês, o Sr. Wistler,pediu à nossa turma que cada umescrevesse para seu personagemfavorito. Você é o meu. Cheguei apensar em outros, como Boo

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Radley, mas, por várias razões, aspessoas que lerem esta cartapoderiam revirar os olhos e dizer:“Sabia que essa menina iaescrever para um personagem bemesquisito, e não para alguémnormal.” Então vou guardarcomigo as perguntas para Boo.Além disso, pensei por um bomtempo em escrever para Scout.Isso é verdade mesmo. A questãoé que eu gostaria de ser Scout,porque ela às vezes é durona, masainda consegue ser feminina. Tem

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horas em que penso nas coisas queela consegue fazer e me perguntose eu faria as mesmas escolhas.Mas percebi que, se escrevessepara Scout, tudo o que eu dissesselevaria a: Atticus, queria que vocêfosse meu pai. Você é o único queeu consegui imaginar lendo minhacarta sem rir de mim. Eu oimagino sentado na sua varandacom este papel nas mãos, lendo acarta inteira antes de responderqualquer coisa. Será que isso éestranho? Talvez seja, mas estaria

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mentindo se dissesse que nuncative uma conversa imagináriaantes. Tenho doze anos, só pravocê saber.

Se você pudesse me responder,eu gostaria de perguntar: é difícilser pai sem ter uma esposa? Comvocê não parece muito difícil,talvez porque, no momento em quesua história é contada, seus filhosjá estão na escola e você tem umaempregada bacana, Calpúrnia.Amo esse nome. Se um dia eutiver uma gata, vou chamá-la de

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Calpúrnia. Talvez use Finch comosobrenome. Calpúrnia Finch.

Também gostaria de sabercomo você ficou tão educado.Como consegue ser tão paciente egentil? Acho que o que mais gostoem você é que, se fosse meu pai,seria o mesmo praticamente todosos dias. Se dissesse que ia trazerespaguete para o jantar, vocêtraria. Se dissesse que ia meensinar um jogo de cartas, meexplicaria as regras com uma vozcalma e firme. E tenho certeza de

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que não teria nenhum problema emme deixar em casa durante o verãoenquanto estivesse no trabalho.Como conseguiu se tornar tãoconfiável? Isso veio dos seuspais? Sabe, se um dia meconhecer, vai ver que penso muitosobre essas coisas. Eu mepergunto, por exemplo, quanto daminha mãe e quanto do meu pai hádentro de mim. Você se acha maisparecido com um do que com ooutro? Se disser que sim, aindatenho alguma esperança. Vou

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guardar essa história para apróxima carta. Como muita gentegosta de dizer, isso já éinformação demais.

Um abraço,Sarah Nelson

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capítulo 11

Minha avó bate na porta do meu quarto.Saio do armário rápido como uma bala.

— Sarah, onde você quer jantar?— Já vou sair.Não. Não vou sair nem agora nem

nunca. Vou pular pela janela e fugir.Vocês vão ter que encontrar um lugarpara jantar sozinhos.

— Estou ansiosa para conversarsobre os planos para o verão com você— diz ela. — Podemos ir ao Chuck E.

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Cheese!— Está bem — respondo.É todo o entusiasmo que consigo

reunir.Chuck E. Cheese e eu não nos damos

bem.A última vez que fui lá, não sei se

você lembra, foi no ano daquela péssimacomemoração de aniversário, da casa debonecas para criancinhas e da bebidaderramada, que era praticamente sóuísque. Isso foi antes de o uísque passara ser disfarçado com refrigerante.

Eu disse que não ia falar sobre isso,mas aqui estou com um cartão da Jane,também conhecida como minha mãe.

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Este aniversário está começando a separecer com aquele.

Ao menos minha mãe lembrou. Nãoganhei nada do meu pai.

Quando fiz oito anos, ele me deu doisbichos de pelúcia, um colar compingente, vários livros, um kit demaquiagem infantil, chinelos comestampa de oncinha cor-de-rosa, umagarrafa de água com minhas iniciais, umdiário amarelo e a casinha de bonecapara criancinhas.

Era rosa, claro.Cada aposento tinha uma luzinha no

teto, e você podia acendê-los e apagá-las separadamente. Havia até retratos de

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rostos felizes nas paredes, que, imagino,deviam representar os membros dafamília das bonecas.

O cartão de aniversário da minhamãe estava no chão ao meu lado.

— Por que eu só ganho um cartão? —perguntei. — Por que não ganho maisnada dela?

— Não sei, Sarah — respondeu omeu pai, o rosto ainda grudado à tevê.

— Talvez porque a gente se mudedemais, e ela não tenha nosso endereçonovo.

— Eu dei a ela. Ela sabe.— Podemos telefonar para ela agora

mesmo e perguntar? Talvez tenha mais

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alguma coisa.— Vou perguntar na próxima vez,

mas acho que não tem mais nada.— Você acha que o cérebro dela

algum dia vai ficar bom?— Não sei.— Eu queria saber como ela era

quando tinha oito anos.— Foi mais ou menos nessa época

que a mãe dela morreu. Ela foi morarcom o pai, no sul do Texas.

— Então somos parecidas?— Bem, sim. Talvez.— Eu queria fazer um desenho para

ela. Do que ela gosta?— Não sei. Ela vai gostar de

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qualquer coisa que você desenhar.— Você não quer me dizer.— Sarah, na verdade eu não...O copo de vidro grosso escorregou

de seus dedos e se estilhaçou no chão deazulejos. Vidro e gelo por todo lado.Não sei se caiu ou se foi jogado.

Sentei em meu ninho de papel depresente e tentei virar uma coisa rosainvisível.

— Sinto muito, querida. Não seicomo o copo escorregou assim...

Ele não conseguiu terminar a frase;tentava não chorar.

Havia um tiroteio na tevê. Eraestranhamente reconfortante. Os

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mocinhos estavam ganhando.— Desculpa se deixei você chateado.— Você não me deixa chateado,

Sarah — disse ele. — Você é minhamenina curiosa.

Eu o ajudei a limpar o vidro e aspedras de gelo. Dei uma cheirada paraver qual era a daquele uísque. Era meioparecido com xarope para tosse.

Naquele dia, tentei parar de ser umamenina curiosa em público. Me torneiuma curiosa solitária. Remexia nascoisas do meu pai quando ele saía ou ànoite.

Foi quando vi a caixa de sapatos.Estava na prateleira de cima,

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escondida no canto mais fundo doarmário. Quando eu a abri, encontrei oque os detetives chamariam de umindício interessante.

Querida Jane,Sei que conversamos um pouco aotelefone e por e-mails, mas nunca ouçovocê rir. Queria saber o que faz você rir.O que a faz rir? Ah, que carta horrívelesta. Veja quantas vezes escrevi a palavra“rir”. Bem, não me importo em admitirAQUI porque ninguém nunca lê as cartasque não envio, mas eu estive bebendo.Sim, é verdade. A minha mãe fez opossível para que eu parasse, e funcionouaté certo ponto. Bem, na verdade fiz issopor Sarah. Mas às vezes a bebida é a únicacoisa que me faz dormir. Sou fraco. Sou

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um homem muito, muito fraco.

A carta terminava sem despedida oufinal, sem “Beijos, Tom”, nem nadaassim. Talvez ele tivesse caído no sono.

Sabe, isso é o que acontece quandosó se recebe dois cartões por ano deuma pessoa que você não entende.Alguém acaba derramando uma bebida,ou chorando, ou as duas coisas, e vocênão chega a lugar nenhum.

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capítulo 12

Eu me pergunto se eles perceberiam seeu sumisse.

— Aonde ela foi?— Não sei.— Vamos tomar outro drinque.Como não posso desaparecer

completamente, empurro a tela dajanela, pulo para fora e coloco a tela devolta no lugar como uma criminosa. Seibem como encobrir meus rastros. Entãosubo no toco de árvore do nosso jardim.

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O toco tem menos de um metro, maspelo menos não estou no chão. Vocêpode até achar que as coisas nãoparecem diferentes dessa altura, mas nãoé verdade. Eu adoraria ser dessetamanho na vida real. Isso me daria avantagem de ver as coisas seaproximando antes de chegarem pertodemais.

Na melhor das hipóteses, vou apenasesperar o tempo passar até que chegue aúltima semana boa em Houston. Vouadmirar os brincos da minha avó e tentarconvencê-la a me deixar furar as orelhasno momento em que ela estivercomeçando a gostar de mim outra vez.

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Olho de volta para nossa casa. Onariz da minha avó está colado ao vidroda janela. Viro o rosto, mas ainda possosentir seu olhar. Eu apostaria dezdólares que eles estão tendo a mesmaconversa que tiveram na última vez emque meus avós vieram a Garland.

— Esse toco de árvore é um horror,Tom. Por que você não se livra dele?

— Isso é responsabilidade dosproprietários. Além do mais, ela gostade subir ali em cima.

— Quer dizer que ela já fez issoantes?

— Qual o problema?— É esquisito.

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Eu odiaria se eles arrancassem o meutoco.

Mesmo assim, tento imaginar comominha avó vê a cena. Ficar de pé emcima de um toco de árvore sem qualquerrazão com certeza entra na sua categoriade “coisas que merecem uma careta dereprovação”. Coisas que merecem umacareta de reprovação são uma grandeparte da vida da minha avó.

Talvez eu devesse pedir que tirassemuma foto um dia, para ver se pareço umaidiota completa. Mesmo que seja o caso,estou fazendo um grande esforço paranão me importar. Só tenho doze anos háuns dez minutos, mas de uma coisa eu

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sei: sou diferente do restante da família,e isso deixa todos nervosos. Talvez elestambém estejam à espera dos sinais deloucura.

Pulo do toco e volto para casa pelaporta. Faço um esforço extra para dizeralguma coisa simpática à minha avó,para reverter as coisas a meu favor. Issodeve aumentar minhas chances deconseguir furar as orelhas. Olho parabaixo e vejo minhas roupas.

— Bem, eu não posso ir a nenhumlugar decente vestida desse jeito. —Percebo a expressão de satisfação norosto dela, que está pensando: “É como

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se Sarah tivesse lido meuspensamentos!” — Vou trocar de roupa.

Sinto o sorriso de felicidade dela àsminhas costas enquanto sigo pelocorredor até meu quarto. Agora quetenho doze anos, me pergunto comodeveria decorá-lo. A verdade é que eletambém não combinava comigo quandoeu tinha onze anos. Ainda é umavergonha absoluta para mim, e é porisso que nunca trago amigos para casa, àexceção de Lisa, e quando isso acontecetudo o que ela faz é dizer: “Vamos pedirpara o seu pai nos levar ao shopping.”

Se quer saber, meu quarto parecevômito de Pepto-Bismol. Nada escapou.

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Paredes rosa. Tapete rosa. Colcha rosa.Abajur rosa. Meu pai acha que é isso oque uma menina quer. Eu quase dissecomo era horrível quando ele abriu aporta há mais ou menos dois anos parame mostrar meu quarto novo, mas entãoele me deu meu primeiro celular.

Também rosa.O que eu podia fazer?O armário é o único lugar no meu

quarto esquisito que parece comigo.Pequeno e reservado. É de uma corclarinha, que muda dependendo da horado dia e da luz que entra pela janela.Quando sento dentro do meu armário,imagino que estou observando a menina

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que morava aqui antes. Na minhacabeça, ela é uma garota loira e feliz,que lê e faz pulseiras de contas com osnomes das amigas. É uma menina quegosta de rosa.

Tenho também uma grande caixapreta no fundo do armário.

Outra garota poderia achar que estácheia de lixo, mas, para mim, está cheiade recordações. Cada vez que nosmudamos, tenho que repensar o que éimportante, o que vai caber na caixa.Algumas coisas precisam ser jogadasfora, e o restante tenho que guardar naminha cabeça. Eu guardo o canhoto doingresso do primeiro filme a que assisti

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com meu pai no cinema, O ExpressoPolar. Um postal da minha tia Mariah,com uma foto gigante da costa do Texasna frente. A foto de um filhote de beagleque cortei de uma revista, o tipo decachorro para o qual você sabe quepode contar todos os seus segredos.Uma tampinha de garrafa que o vovô medeu — na verdade, fingiu tirar da minhaorelha. Às vezes guardo meu diáriofalso nessa caixa, porque é o lugar maisóbvio.

E, é claro, também guardo os cartõesdela. Uma pilha pequena amarrada comuma fita preta.

Se esse fosse o armário do papai,

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todos os cartões estariam enfiados nosburacos nas paredes. Os buracos são dotamanho exato de um punho. Da últimavez que contei, havia três.

Dou uma olhada nas minhas roupas epego uma camisa branca e uma calçacapri. Penteio o cabelo para trás dasorelhas e coloco a minha faixa de strassnova. Minha avó com certeza vaiperceber as minhas orelhas. Elaspraticamente gritam sua nudez.

Meu pai e meus avós estão sentados emum reservado semicircular cor depêssego no La Norte Tex Mex, e euestou apertada no meio. É a minha mesa

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favorita, no meu restaurante preferido.Os funcionários daqui deixam os pisca-piscas de Natal pendurados o ano inteiroe tem silhuetas esquisitas de gatos,porcos e pássaros de madeira nasparedes. Minha avó diz que isso é alémda conta, e eu sempre me pergunto: Deque conta? É difícil se aborrecer em umlugar com tantas cores. E mais: elesservem tortilhas e salsa grátis assim quevocê se senta. Seria possível comer sóisso e sair correndo sem pagar, mas agente nunca faz isso.

A garçonete traz as bebidas e anotaos pedidos. Enchiladas com sour creame o dobro de arroz, sem feijão, muito

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obrigada.— E então, Sarah — começa o papai.

Lá vem. Lá vem a ideia de alguém sobreo que seria um verão divertido paraSarah Nelson. Não posso esquecer quemeu pai não está acostumado a sedivertir e não liga se os outros estãodesesperados por felicidade, que éminha frase favorita de O valentelibertino. Tem sempre alguémdesesperado por alguma coisa naquelelivro. — Você se lembra da CharlotteReynolds? Ela está em casa, de férias dafaculdade, e pediu que você ligasse paraela.

É claro que me lembro da Charlotte.

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E u amo Charlotte. Ela foi a primeiragarota a me dizer que as unhas dos péssempre devem estar pintadas, mesmo noinverno. Além disso, no ano passado,ela me deu uma pilha de quase um metrode altura de revistas e livros. Do tipoque eu nunca pediria que o meu paicomprasse para mim.

E os livros que Charlotte me deueram os melhores. Brochuras com asbeiradas gastas, várias páginas comorelhas e trechos destacados em marca-texto amarelo. Eram suas históriasfavoritas no ensino médio, disse ela, mepedindo para ler primeiro O sol é paratodos, o que, é claro, eu fiz. Era a

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segunda vez que eu lia esse livro.A outra coisa maravilhosa em

relação a Charlotte é que ela tem umirmão que é entregador de pizza. Isso érealmente um bônus quando seu pai seesquece de comprar comida. Os doismoram em frente à nossa casa quandonão estão na faculdade. Quando ela veiono Natal, passamos uma tarde inteiralendo, com uma caixa de pizza fria namesinha de centro para a gente beliscarquando quisesse.

— Claro que me lembro da Charlotte— respondo, me perguntando como euainda não tinha percebido que ela estavaem casa e se ela havia trocado de carro.

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— Nós conversamos, e ela quermuito encontrar você neste verão.

Me encontrar onde, exatamente?Ela vai estar em Houston?

— Que legal!— Charlotte vai ter que estudar

bastante no verão, então vai passarmuito tempo em casa — diz ele. —Bem, então eu perguntei se ela não seimportaria se você ficasse com eladurante o dia. Você sabe, até eu chegardo trabalho.

Isso é inacreditável! Não vou ter queir para a casa dos meus avós. Ganhei umindulto, coisa que só vi acontecer nosfilmes.

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indulto s.m. suspensão ou livramentode pena

Sinto meu corpo relaxar. É como seeu tivesse prendido a respiração poruma semana e alguém dissessefinalmente: Tudo bem, pode soltar.

Em casa, eu me permito sonhar acordadacom as férias. Dentro de alguns poucosdiazinhos, vou poder passar um tempocom Charlotte, planejar como fazer ascoisas que quero. Estou quase prontapara escrever sobre esses novosacontecimentos no meu diário deverdade quando papai bate na minha

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porta.— Então estamos combinados?— Claro — digo.Ele me abraça, e eu deixo. Já estou

grande demais para os abraçosdemorados que o papai gosta de me dar.Mas como posso evitá-lo agora? Eu oabraço também, ainda mais apertado, ejuro que sinto os cantos da boca dele seerguerem. Os meus fazem a mesmacoisa. Quando ele se afasta, me passa abola de golfe com a carinha triste efecha meus dedos em volta dela.

— Posso entrar? — pergunta a vovó.Ela vai entrando antes que a gente

consiga dizer qualquer coisa, senta na

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minha cama e me dá uma bolsinha roxade presente.

— Feliz aniversário — diz. —Parece que você já precisa usar isso e,mesmo que ainda não precise, podecomeçar a treinar.

Eu abro, e é um sutiã. É rosa, claro. Ehorroroso.

— Exatamente como eu pensei —continua ela.

Não só ela está segurando o sutiã nafrente do meu peito, como tambémfazendo isso diante do meu pai. Estouprestes a entrar em desespero e nuncamais mostrar a cara na rua outra vez.Quando olho para o papai, vejo que ele

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está virado para a cômoda.Os dois saem do meu quarto, e olho

para o caderno pautado verde ali, àmostra, com o envelope da minha mãedo lado. Por que deixei aquilo exposto?

Depois que meu pai e minha vó sevão, eu escondo tudo. O caderno. Oenvelope. O sutiã rosa novo. A próximafamília que alugar esta casa vaiencontrar tudo isso em um lugar estranhoe se perguntar que tipo de famíliaesquisita morou aqui.

Eu mesma me pergunto.

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capítulo 13

A perfeição da Charlotte faz nosso sofáfurreca parecer superfurreca.

Ela senta com as pernas cruzadas naaltura dos tornozelos e as mãos no coloem cima da saia branca rodada,parecendo calma e elegante. Há algoimpecável e diferente em Charlotte.Claro, ela tem vinte anos, e é de seesperar que uma pessoa tenha alcançadoa perfeição nessa idade. Em comparaçãocomigo, ela foi comprada em uma loja, e

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eu, feita em casa. Sempre que ficavanervosa na escola no ano passado, euperguntava a mim mesma “ComoCharlotte agiria?” e fazia o que viesse àcabeça, que normalmente era fingir nãome importar.

Pode ter certeza de que foram osmelhores conselhos que eu já dei a mimmesma.

— Oi — cumprimento.— Então, preciso ir ao mercado —

diz ela. — Quer vir?Entendeu o que eu quis dizer? Fazia

meses que eu não a via, mas já estamosindo fazer compras como duas melhoresamigas.

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Dou uma olhada para meu pai, quediz:

— É claro. Divirtam-se, garotas.— Vou trazer aquele biscoito para

você.— O saco grande, por favor. Tenho

muitos trabalhos para corrigir.Então ele pisca para mim. Sempre

que tem uma pilha grande de trabalhospara corrigir, meu pai gosta de ter umsaco de biscoitos ao lado. Ele diz queassim fica mais fácil ler os trabalhosruins, mas eu acho que é só umadesculpa para comer salgadinhos.

Atravesso a rua saltitando e entro nocarro da Charlotte, que é tão baixo e

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perto do chão quanto dá para ser semrealmente encostar na rua. Ela aumenta ovolume do rádio e abre os vidros. É bemdo jeito que eu gosto.

Eu observo o perfil dela enquantodirige com confiança, como farei um diaem breve. Mesmo olhando apenas umlado de seu rosto, dá para ver comoCharlotte é bonita. Ela tem asqualidades que as revistas dizem definirum belo rosto. Pele lisa, olhos verdes eum lindo sorriso valorizado por umbrilho labial rosa que nunca suja seusdentes. Para mim, ela é o tipo de garotaque um fazendeiro bonitão avistaria dooutro lado de uma plantação e, só de vê-

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la, já iria querer se casar. Bem, talvezeu tenha visto filmes de faroeste demais,mas juro que ela é assim. Ela tambémnão me faz um zilhão de perguntas, o queé um ponto realmente positivo.

Quando paramos em um sinalvermelho, ela diz:

— Eu nem sei onde comprarsalgadinhos de cebola.

— Às vezes a gente vai à loja de1,99.

— Eu não vou à loja de 1,99.Charlotte é sofisticada. Eu não devia

ter mencionado isso. Sou uma idiota.Adoro a loja de 1,99 porque não acabacom a minha mesada e você sempre

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encontra alguma coisa que nuncaimaginou, como um porta-moedas feitode meia.

— Tenho que preparar dois guisadosde forno hoje e preciso da sua ajuda.

Isso é outra coisa que adoro emCharlotte. Ela não se pergunta se euposso ajudar. Ela simplesmentepressupõe que eu possa.

— Quem morreu? — pergunto.— O quê? Ninguém morreu.— Achava que esse era o prato

oficial de quando alguém morre oualguma coisa ruim acontece.

— Acontece que também é o pratooficial de rapazes famintos. Ou pelo

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menos do garoto que eu amo.Amo?Isso é novidade com N maiúsculo.

Tenho um milhão de perguntas, porqueeu nunca amei ninguém, ainda. Assimque Jimmy Leighton prestar atenção emmim, vai acontecer imediatamente. Maspreciso saber várias coisas. Será que háum momento entre você conhecer alguéme estar tudo normal e ele apanhar o livroque você deixou cair da mochila e, bum,cinco minutos depois você estáapaixonada? E quando você sabe quedeve começar a se aproximar para umbeijo, como as pessoas fazem nosfilmes? Quem deve virar a cabeça de

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lado para que os narizes não batam umno outro?

Meus pensamentos estão berrando naminha cabeça agora, por isso finjo queestá tudo bem e digo apenas:

— Ah, que legal!— Você já gosta de garotos? —

pergunta Charlotte. — Ou está naquelaidade em que ainda acha os garotosfedorentos e idiotas?

— Depende da idade deles, acho —respondo. — Mas a maioria dosmeninos que eu conheço sãosimplesmente estranhos.

Menos Jimmy Leighton, que éestranho de um jeito bom.

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A verdade é que presto, sim, atençãonos garotos e tenho curiosidade sobre oque eles pensam, como são seus quartose, claro, a parte do beijo. Sei as coisasbásicas sobre eles: são loucos para veraté mesmo o menor pedacinho dacalcinha de uma garota; quando entramno ônibus, falam alto; arrumam confusãopor coisas idiotas, como escrever Vocêpinta como eu pinto no quadro-negro; e,quando andam de skate perto da minhacasa, parecem muito destemidos. Àsvezes eu me pergunto se Simon seriacomo eles. Ele seria skatista, isso comcerteza.

— Bem, um dia você vai aprender

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tudo sobre isso — diz ela. — Porenquanto, pode acreditar em mim. Éextraordinário.

Charlotte é o tipo de pessoa que podeusar a palavra extraordinário com todanaturalidade. A maioria guarda essapalavra para descrever uma tempestademuito forte ou um quadro em um museu,mas não, ela pode falar isso em um diaquente em Garland. Deixo os músculosda minha boca formarem a palavra emsilêncio. Experimento para ver se ela seencaixa. Nossa, esses salgadinhos estãoextraordinários!

Não, parece estranho. Vou ter queesperar o amor para falar como

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Charlotte.— Você não quer saber tudo sobre

ele?— Você sabe tudo sobre ele? —

pergunto.— Sei várias coisas sobre ele —

responde ela. — As coisas importantes.Quero que ela escreva uma lista para

mim agora mesmo. Ponho as mãosembaixo das minhas pernas e enfio asunhas no banco do carro para não falarmais nenhuma besteira.

— Ele trabalha na Wilson’s WesternWear do shopping e gosta de guisado àKing Ranch, que será nossa missãoespecial de hoje. Vamos descobrir como

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fazer essa receita.Bem, é por isso que amo Charlotte.

Nós duas sabemos que a ocupação e ospratos favoritos são dados importantespara se saber sobre uma pessoa. Derepente, eu me vejo pensando sobre ocara do guisado à King Ranch e comoele também deve achar Charlotteextraordinária, e o que isso podesignificar para o meu radiante verão semavós. Enquanto estou entretida com meuspensamentos, chegamos ao mercado.

Charlotte sai do carro e está trêspassos à minha frente antes que euperceba. Corro para alcançá-la, e umdos meus chinelos sai do pé no meio do

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estacionamento. Sinto os olhos dela meobservando e faço o possível para agircom naturalidade. Entro atrás dela nomercado e penso em como Charlottepoderia me ajudar a convencer o papai ame deixar furar as orelhas. Elas jádeveriam estar furadas antes de eu darum beijo de verdade em um garoto.

Durante o ano letivo, Lisa e eu demosuma festa e chamamos garotos. Tivemosque fazer tudo em segredo. Setivéssemos contado à mãe dela: “Ei,vamos fazer uma festa com garotos”,bem, isso teria acabado com nossasfestas para o resto da vida. Éramos três

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garotas e três garotos na casa. A mãedela fez pipoca e pediu pizzas. Todomundo ficava lá dentro por algum tempoou saía para dar umas voltas. O lado defora parecia estar a um quilômetro damãe de Lisa. Eu a imaginava pensando:Ah, as crianças só estão pegando umpouco de ar fresco, vendo as estrelas.Não estão fazendo nada de mais.

Ou talvez a mãe dela nem ligassepara o que a gente estava fazendo láfora. Ou talvez ela já tivesse tido onzeanos antes e se lembrasse da sensaçãode nunca ter sido beijada. Foi aí quesurgiu a história do pacto do beijo. Lisae sua ideia brilhante.

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Por muito tempo, um beijo meparecia ser apenas duas partes do corpose tocando, e qual seria a diferença sefossem os nós dos dedos ou os joelhos?Roubamos alguns livros de romance quea mãe da Lisa guardava debaixo dacama e descobrimos que beijar podiaser muito mais que isso, apesar de euprecisar procurar no dicionário e noGoogle para descobrir a explicação devárias coisas. Se você acredita emromances baratos, é uma sensaçãoestranha que faz uma pessoa quererbeijar a outra.

Nesses romances, a pessoanormalmente tem essa sensação quando

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está chovendo ou quando vê um homemsem camisa se escondendo atrás dascortinas do seu quarto. E, por algumarazão que Lisa e eu nunca entendemos, amulher não fica com medo do estranho.Se fosse eu, ligaria para a polícia namesma hora.

Qual é a emergência? Tem umestranho no meu quarto! Socorro!

Não sei muita coisa sobre muitacoisa, mas sei que a definição dodicionário deixa de fora algoimportante, que é aquilo que você sente,mas não consegue descrever. Um diavou ter coragem de perguntar à mãe daLisa sobre aqueles livros.

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Lisa convidou Renee para nossafesta. Renee é a mais bonita de nós três.Tem cabelos louros dignos de comercialde xampu, que deixam todo mundo cominveja.

Convidou também Jimmy Leighton.Ele ficou tímido e calado, e foi entãoque eu comecei a gostar dele. DavidWaters e Steven Ng também foram, massão dois exibidos. Andam de skate porGarland inteira e fazem questão decontar isso para todo mundo. Edesconfio de que foi David quemcomeçou a chamar Jimmy de gay. Voudescrever o que acho dele: ele é umnada!

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Mas Steven Ng é um dos garotosmais fofos do mundo. O cabelo dele éperfeito e, quando ele sorri, o rostointeiro é pura felicidade.

Então estávamos na festa, os garotosdevorando a pizza, e nós sentadas juntasvendo Alma Perdida. Prestei atençãopara ver se Jimmy se assustava naspartes mais assustadoras, mas não.Depois, todos nós fomos para fora e,você não vai acreditar, Steven e Davidpegaram seus skates e começaram arepetir frases idiotas do filme. Lisa eRenee acharam aquilo hi-lário. Isso medeixou meio que sozinha com Jimmy.Ele ficou chutando uma pedrinha pela

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calçada e eu me sentei no meio-fio.Lisa me fez mil perguntas depois que

os garotos foram embora. Ela achou quetalvez Jimmy Leighton estivesse citandofalas de outros filmes para mim. Lisasempre espera que alguém saia da telado cinema e fale com ela como o HughGrant fala com a Julia Roberts. Issoseria o máximo. Mas não, JimmyLeighton não me disse uma palavrasequer a noite inteira.

Ficamos lamentando nossa situação,porque foi Renee quem beijou StevenNg. Na verdade, não vimos acontecer,mas, quando ela entrou depois de darmais uma voltinha na rua, estava toda

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vermelha. Ela disse que beijou Stevenprimeiro. Aí ele ficou parado por umsegundo e depois saiu andando de skatedizendo: “OK, a gente se vê.”

Foi por isso que Lisa decidiu fazer opacto do beijo de língua. Ela quer ficarcom a mesma expressão que Reneetinha. Tentei argumentar que Reneeparece feliz o tempo todo, mas não, elanão acreditou em mim. Disse que umaluz tinha se acendido nos olhos dela,como se um interruptor se ligassequando você é beijada. Vou ter queperguntar a Charlotte se é isso queacontece.

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capítulo 14

Pelo que estou percebendo, uma receitaé um código secreto feito de medidas. Epelo modo como Charlotte estáanalisando a do guisado à King Ranch,parece até que ela está estudando parauma prova. Como se o Cara do Guisadonão vá achar que ela o ama se o pratonão tiver exatamente uma xícara e meiade queijo ralado e um quarto de colherde chá de chilli em pó, muito obrigada.E talvez isso seja verdade. E, como ela

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estava estudando até agora, resolvoajudar e organizo os ingredientes nabancada em ordem alfabética.

Arroz, caldo, frango, queijo, sopa,temperos, tortilhas.

— Está bem, precisamos de umaassadeira de trinta por quarentacentímetros.

Ela abre e fecha as portas dosarmários à procura do que precisa. Amãe da Charlotte está fazendo umcruzeiro esta semana, por isso temos oluxo da casa inteira só para nós, semcontar o irmão dela. Charlotte diz queele não vai ficar muito por aqui porqueestá na escola e ocupado com a carreira

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no ramo de entrega de pizzas.Gosto de como a cozinha dela é mais

ajeitada do que a nossa. As bancadassão amarelo-claras, assim como osazulejos nas paredes atrás delas. Osarmários não são só de madeira; têmvidros no meio, o que faz parecer quevocê está olhando para pequenascasinhas onde os pratos moram. Apesarde a casa ter uma planta mais ou menoscomo a nossa, parece maior. Os painéisde madeira da sala, por exemplo, forampintados de um tom bonito de azul-celeste.

Na nossa casa, ainda temos ospainéis marrom-escuros originais. É

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como viver em um barril. Se ficarmosem Garland, vou tentar juntar coragem econversar com o meu pai sobrepintarmos a casa. Podíamos pintar osnossos painéis de azul também. Talvezcomeçar pela sala, seguir pelo corredore acabar com aquela desgraça rosa que éo meu quarto.

— Primeiro, vamos escaldar o frango— diz Charlotte.

— Parece devasso.Ela revira os olhos.— O quê?— Escaldar. Parece devasso.— De onde você tira essas ideias?— A maioria vem de vários filmes

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que eu não deveria ver — falo. — Hámuitas palavras assim na alta literatura.Eu li os livros que meu pai passa paraos alunos, e eles têm muitas palavrasincomuns e cenas de amor, o que, sevocê me perguntar, fica mais impactantequando está em um livro. Deixa suaimaginação bem animada.

Charlotte pergunta se meu pai estánamorando alguém. Namorar é umapalavra-problema. Ele raramente passade dois encontros.

— Ninguém fez um guisado para eleainda, se é isso o que você quer saber— digo a ela, me perguntando se um diahaverá uma mulher preparando comida

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para meu pai e, se houver, se eu vou terque comer, porque o tal guisado deforno à King Ranch não está com cara deque vai ficar muito gostoso.

A última mulher durou mais do queas outras que conheci. Demorou algunsmeses até ela descobrir quem nóséramos. Claro, não sei todos osdetalhes, porque o nome dela é umapalavra-problema e “Sarah, isso não éda sua conta”.

Bem, ela era da minha contaenquanto estava toda feliz e contentevendo filmes na nossa casa. Então elamandou um e-mail para o meu paidizendo que não queria mais vê-lo. Eu

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sei. Eu li.

Tom,Não queria ter que escrever isso num e-mail, mas não posso mais ver você.Espero que entenda. É que eu me deiconta de que não deveria estar saindocom ninguém agora.

Deirdre

A história dela podia ter colado se agente não a tivesse visto na semanaseguinte no cinema com outro homem.Claro que tive vontade de levantar ed i ze r : Oi, você não deveria estarsaindo com ninguém, hein?, de tantaraiva que me deu. Eu disse para o meupai que nunca tinha gostado dela, com

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aquele cabelo ruivo absurdo de farmáciaque não enganava ninguém.

Vou untando as assadeiras enquantoCharlotte escalda o frango. Enquantoesperamos ele cozinhar, peço que elaveja a definição de escaldar no celular.É óbvio que a primeira definição tem aver com culinária, mas a segunda tem aver com castigo. Uma palavra assim émuito amor.

escaldar v. Cozinhar alimento emágua fervente com temperos; ação deágua fervente ou vapor para esterilizarinstrumentos ou utensílios; impor castigo

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a (alguém) ou punir a si mesmo

Em seguida, ela me põe para desfiaro frango enquanto vai checar seus e-mails. Como ela demora para voltar àcozinha, decido impressioná-lacumprindo os outros passos da receita.Sou especialista em seguir instruções e,em um piscar de olhos, deixo os doisguisados prontinhos para ir ao fornoainda a tempo de lavar a louça.

Vou da cozinha até a sala de estarpara dar uma espiada na casa. Nadamudou muito desde que eu estive aquiem dezembro. Só há mais fotos da mãede Charlotte em cruzeiros diferentes.

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Como em várias casas desta região,há um frigobar em um canto. A paredelogo acima tem sempre um espelho comquatro prateleiras de vidro para copos ebebidas, mas na casa de Charlotte asprateleiras estão cheias de livros, o quedá um belo toque.

Investigo quais livros eles têm que eupossa querer ler. Toco as lombadasenquanto os examino, cada um com umahistória nas suas páginas. Puxo um paraler o texto da capa. Adoro fazer isso.Ler uma descrição curta do livro, quetem só a informação necessária paravocê saber a história.

Antes de colocá-lo de volta no lugar,

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vejo meu reflexo num pequeno espaçoentre os volumes. Também sou um livronão lido. Estou esperando para saber oque acontecerá comigo.

A mesa da nossa cozinha balançaquando você se apoia nela. Ela não énossa, já veio com a casa, o que deveexplicar muita coisa. Temos que lidarcom isso enquanto comemos nossoguisado à King Ranch. Acabou quefizemos dois, para poder provar umdeles antes e ver se estava bom.Charlotte quer saber o que um adultoacha da receita, então tenho queconseguir a opinião do meu pai e contar

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para ela amanhã. Em troca, ela vai medeixar baixar músicas para o meu iPodnovo. Ainda não contei para o meu paisobre a tarefa que o Sr. Wistler passou eo prêmio que eu ganhei.

Mas então o Cara do Guisado vai terque esperar mais um dia. Até lá, vouaproveitar um jantar novo, que naverdade está até mais gostoso do que euesperava. Meu pai parece gostartambém. Ele não para de balançar acabeça. Espero que não me perguntesobre os biscoitos que eu deveria tercomprado mas não comprei. Casocontrário, vou ter que inventar umamentira.

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— Então — diz meu pai. Posso dizer,pelo jeito como ele estica o “ãããoooo”,que é o primeiro passo para umapergunta que ele queria me fazer desde ocomeço do jantar. Ele é tão óbvio. —Você recebeu algum cartão da sua mãe?

Ele está bebendo Dr Pepper, e seusolhos estão tristes. Tenho que pensar porum minuto sobre o que posso contar,repassar a minha lista mental depalavras-problema. Conversei comPlanta, e concordamos que o últimocartão era diferente dos outros e deviaser jogado fora. Eu não conseguiasuperar o fato de que ela tinha riscado onome e assinado Mamãe, como se só

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tivesse pensado nisso depois. Eu nãoqueria correr o risco de o papaiencontrar o cartão no lixo, então ojoguei na lata de lixo da Sra. Dupree.Mas ele sabe. Ele viu o envelope naminha cômoda.

— Tinha um cachorro nele. Umcachorro sorridente.

Ele tenta investigar mais.— Alguma coisa interessante dentro?

Alguma coisa sobre...Ele não conclui seu pensamento. Eu

espero para ver se vai falar mais algumacoisa. Este pode ser um momentooportuno para soltar uma perguntarelativa à minha investigação. Oportuno

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é minha nova palavra favorita,principalmente pelo som.

oportuno adj. que acontece noinstante certo; apropriado, propício

— Ela quer saber sobre o meu novoeu.

— Legal — diz ele após um tempo.Depois toma um gole grande e fica

olhando fixamente para o copo. Tentopensar se algo que eu disse era umapalavra-problema. Ele não recebe doiscartões por ano dela. Não depois dodivórcio. Antes, trocavam e-mails devez em quando, ou pelo menos era o que

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ele dizia. Nunca consegui encontrarnada. A última notícia que eu vi foi umacarta oficial do governo avisando queela havia sido transferida para umhospital em Wichita Falls.

— Quer jogar Scrable? — sugiro,tentando aliviar o clima.

— Acho que só uma partida. Eu tenhomuitos trabalhos para corrigir.

Seu olhar ainda está distante, a menteviajando para outro lugar.

— Por que eu não faço um café evocê já começa a corrigir? Prefirosentar lá fora e ficar observando asárvores, de qualquer forma.

— É? Acho que você está querendo

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espionar a vizinhança.— Bem, às vezes isso acontece

quando você está observando asárvores.

Como ele sabe que sou uma espiã?Tenho que tentar para ser mais furtiva,que também é minha nova palavrapreferida.

furtivo adj. que se faz ou ocorredisfarçadamente; dissimulado,clandestino; disfarçado, secreto, nãoóbvio

Ele toca meu rosto daquele seu jeitocarinhoso e sorri. É bom que hoje eu

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tenha o tipo bom de pai. Isso compensaum monte de coisas.

— Diga a Charlotte que estavaexcepcional.

Eu limpo a mesa, lavo os pratos epenso em como seria se um dia eutivesse alguém para quem preparar umguisado. Para que se dar todo essetrabalho quando você pode pedir umapizza e não ter que limpar a cozinhadepois? Mas, se eu tiver alguémespecial para quem cozinhar, vouarranjar um jogo de pratos melhor. Osnossos estão todos com as bordaslascadas.

Pego Planta e nos sentamos nos

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degraus da varanda, olhando a noite. Osol só se põe às oito e meia, por isso océu está de um azul-acinzentado.Arranco as ervas daninhas que nascempelas rachaduras da calçada e desejoque já estivesse completamente escuro.

Quero dar uma volta e olhar pelajanela das outras casas para ver o que aspessoas fazem à noite. Claro, Charlotteprovavelmente está dizendo bobagensromânticas para o Cara do Guisado. Eos Dupree, bem, eles às vezes saem parapassear quando fica mais escuro efresco, então talvez eu os encontrepessoalmente. Algumas vezes, vi a Sra.Dupree parada perto da janela da

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cozinha e me perguntei o que eles teriamjantado. Quando joguei meu cartão deaniversário no lixo deles, percebi umalata vazia de molho de tomate, entãotalvez estejam comendo espaguete estanoite.

Aí vem ela, a dor de estar sozinha.Por que faço isso, ficar aqui sentadaimaginando a vida das outras pessoas?

Digo a mim mesma para calar a boca,ficar feliz, afinal você está tendo overão que queria. Estaria ainda maissozinha em Houston com seus avós. Dápara aturar o Cara do Guisado. Bem. Asituação toda parece um pouco bizarra.Como a cama que ainda está

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desarrumada às duas da tarde e faz o diatodo parecer uma bagunça. Quandocomeço a me sentir assim, tenho vontadede ter alguém com quem conversar.Como uma mãe.

Querido Atticus,Queria começar esta carta com umpedido de desculpas. Você semprediz que é mais educado fazer umapessoa falar sobre algo em que elaestá interessada do que sobre algoque interesse a você. Aqui estoueu, escrevendo tudo isso, pedindosua opinião, e não conversamos

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sobre seus interesses. Coisas queeu sei que você gosta:

– Você lê os jornais todo dia.– Você é advogado.– Chamavam você de Finch UmTiro Só por causa da sua boapontaria.– Você lê toda noite.– Você não bebe.– Você prefere ir a pé para otrabalho.

Admiro todas essas coisas emvocê, Atticus. Se de algum modo

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pudesse vir ao meu mundo hoje,eu arranjaria todos os jornais paravocê, mas ia ter que lhe dizer quea maior parte das notícias está nainternet, que é uma janela para omundo na tela de um computador.Com ela você pode ler notíciassobre todo o planeta. Eu imaginoque você ainda ia preferir ter ojornal de verdade nas mãos. Souassim também. Minha melhoramiga, Lisa, acabou de ganhar umnovo tablet, que é um substitutoeletrônico e fino para os livros, do

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tamanho de um prato desobremesa. Você não ia gostar.

Além disso, eu adorariacaminhar com você. Eu mostrarianossa cidade, apesar de ela nãoser nada de mais. As casas navizinhança não têm varanda. Oupelo menos não do tipo que vocêstêm em Maycomb, onde dá paraficar só ouvindo as conversas dosoutros nas varandas nos fundos,como sua irmã faz. (Acho que eufaria a mesma coisa se pudesse.)Aqui, as varandas são uns

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pedacinhos quadrados de concretoque só servem para osentregadores deixarem asencomendas ou para trocar umbeijo de boa-noite. Não foramfeitas para se ter uma conversalonga ou para abrir uma cama dearmar e dormir, embora eu queiraexperimentar isso uma noitedessas só para testar. Vocêprovavelmente gostaria mais docentro da cidade, que tem umapraça, lojinhas, uma fonte e ummonte de bancos nos quais

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ninguém realmente senta. Nãotenho certeza do que mais há deinteressante em Garland que eupoderia lhe mostrar. Precisodescobrir. Deve haver algumacoisa. Meu pai mesmo trabalha emuma faculdade da região que ficalonge demais para ir a pé. Elefalaria mais comigo secaminhássemos juntos para algumlugar, não acha? Ele lê muito, mastambém bebe até desmaiar, entãoisso meio que anula a parte boa.

Abraços,

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Sarah Nelson

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capítulo 15

Aqui estou eu, na porta da casa daCharlotte, esperando que ela atenda acampainha. Vamos ter um dia menininhahoje, pintando as unhas, vendo filmes ecomendo pipoca. Aí eu vou dar a elavinte dólares do dinheiro que ganhei deaniversário, e ela vai me ajudar a botarmais músicas no meu iPod novo. Adoroeste dia. Vou fingir que somos irmãs.Gosto de pensar que ninguém conheceuma pessoa melhor do que a sua irmã. E,

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no fim das contas, há pouca gente nafrente de quem você gostaria de pintarsuas unhas do pé.

A porta de tela range e abre, e umcara de calças de flanela e camisetaverde aparece.

— Hum, a Charlotte está? —pergunto.

— Pode entrar. — Ele sorri e passa amão pelo cabelo castanho-claro. — Elajá vem em um segundo.

Tenho quase certeza de que esse é oirmão entregador de pizza, mas eu mal oreconheço porque no verão passado eleestava sempre usando um boné com umpepperoni gigante na frente.

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Ele é mais ou menos um ano maisnovo que Charlotte, então deve terdezenove agora. Tenho que virar acabeça rápido quando percebo que oestou observando. Será que todo mundonessa família é perfeitamente lindo?Algumas pessoas têm aquele tipo deolhos que não dá para esquecer. Os delesão assim. Se perfeito fosse uma cor,seria aquele tom de azul.

— Eu sou Finn, lembra? — diz ele,estendendo a mão para apertar a minha.— Sarah, não é isso?

Então Charlotte aparece, aindausando o seu roupão de banho roxo.

— Já está na sua hora? — pergunta

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ela.— Nossa, Charlotte, relaxa — diz

Finn.— Cala a boca, Finn.— Posso esperar aqui fora — falo.— Não — diz ela. — É que eu fiquei

estudando até muito, muito tarde mesmo.Quando entro na casa, dou uma

olhada discreta no espelho para conferirmeu pescoço vermelho. Bati o recordede ficar vermelha depois de tanto tempoolhando para o Finn, mas, quandoalguém é tão bonito de se ver, ficadifícil olhar para outra coisa.

Sigo Charlotte até a cozinha. Omaravilhoso cheiro de café enche o ar.

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Por alguma razão o cheiro é melhoraqui. Ela se espreguiça e boceja, e entãoum tipo novo de sorriso surge em seurosto.

— Bem, eu não fiquei estudando anoite toda — diz, como se respondesse àpergunta no meu rosto. — Fiqueiacordada até tarde no telefone comChristopher.

— Quem?— O cara — diz ela. — De quem eu

falei para você.O Cara do Guisado se chama

Christopher.— Ah. Quanto tempo você ficou

conversando com ele?

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— Uma eternidade — interrompeFinn.

Ela dá um tapa na cabeça do irmãoenquanto ele se serve de uma xícara decafé.

— Você não tem que ir trabalhar? —pergunta.

— Estou aqui para entretê-las —responde ele.

— Olhe só, Sarah — diz ela. — Finné um dicionário humano. Contei a elesobre a sua obsessão por palavras. Nãovai precisar que eu pesquise mais nadapara você. Diga uma palavra.

— Uma palavra?Eu me pergunto que história é essa de

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obsessão por palavras e se isso é umbom sinal.

— Qualquer uma.Eu devia dizer alguma coisa sagaz e

bizarra, mas, bem, ele estaria esperandopor isso. Uma palavra comum vaiatrapalhá-lo, com certeza. Entãoescolho.

— O que acha de eternidade, então?E Finn responde:— Tempo muito longo, que não tem

começo nem fim. Como em “Charlotepassou uma eternidade no telefone”.

— Pelo menos eu tenho uma vida enão sou uma perdedora — responde ela.

— Uhum, sei — diz Finn. — Grande

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resposta. Não se preocupe. Vou sair doseu pé em uma hora.

Fico meio sem saber sobre o queduas pessoas podem ficar conversandopor tanto tempo, mas por outro lado jáfiquei horas conversando com Lisa noshopping sobre como algumas roupasdeveriam vir em apenas determinadostamanhos e não ter nada escrito se abunda fosse grande demais. Eu mepergunto se é sobre isso que Charlotte eo Cara do Guisado conversaram.Provavelmente não.

— Vamos pintar as unhas primeiro?— pergunta ela.

— Lembra que no ano passado

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pintamos uma unha de cada cor?— É. Eu não gosto mais disso — diz

ela.Sinto meu rosto queimar.— É. Nem eu — minto.Ainda quero pintar cada dedo do pé

de uma cor diferente. Agora só vou fazerisso no inverno, quando meus pésestiverem protegidos do ridículo.

Eu me sento no chão do quarto eorganizo os vidros de esmalte de unhaem fileiras, a começar pela cor maisclara, Rosa Balé, e terminando com amais escura, Carmim Revelador.Quando acabarmos de fazer os pés,vamos calçar nossos chinelos de dedo e

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deixar o esmalte secar enquantoescolhemos minhas músicas. Aí a gentevai fazer sanduíches de pão de formasem casca com manteiga de amendoim egeleia, ou talvez consiga uma pizzagrátis. Charlotte vai estudar para afaculdade enquanto eu vejo um filme,faço alguma coisa para a gente beliscare penso mais sobre o trabalho do Sr.Wistler. Claro, eu sei que não tenho quecontinuar a escrever para ganhar o iPod,mas sinto que deveria, então trouxe meucaderno pautado comigo. Talvez issoseja parte da minha obsessão porpalavras.

Charlotte trocou o roupão por uma

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camisa larga e uma saia brancas eprendeu o cabelo com uma faixa azul-marinho. Ela está parecendo umamodelo de anúncio de sabonete facial.Tenho que me lembrar de espiar obanheiro mais tarde, enquanto elaestiver estudando, e anotar a marca desabonete que ela usa.

Montamos nosso esquema demanicure em duas banquetas ecomeçamos. Charlotte é muito legal eme deixa pintar as unhas dos pés delaprimeiro. Então despreocupadamentediz:

— Me conte alguma coisa sobre vocêque eu não saiba.

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Penso em falar a primeira que passapela minha mente:

Recebi um cartão da minha mãe.Vejo as palavras pairando no ar,

balançando um pouco.Charlotte acha que minha mãe

morreu. Ela não sabe que tenho umirmão gêmeo, ou que deveria ter. Possodeixar essa mentira quieta, apesar de tervontade de contar a ela, confessar, teruma confidente que me beliscassequando eu começasse a mostrar sinaisde loucura, que dissesse para eu meconcentrar em pensamentos normais,como acessórios e guisados.

Quando enfio o pincel no vidro de

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esmalte, resolvo manter minha mãemorta. Sei que Charlotte seria uma boaamiga em relação a essa história toda,mas não posso arriscar que ela olhe paramim do jeito triste que as pessoassempre fazem antes de dizerem adeus.

— Fumei um monte de cigarros esteano — minto. — E estou quase dandomeu primeiro beijo de língua.

Não conto sobre a aposta com Lisapor enquanto. Ela ficará maisimpressionada se eu tiver decidido issopor conta própria.

— E sendo beijada também, imagino— diz Charlotte, completando minhafrase imaginária.

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Por enquanto, só dou de ombros. Aimagem da boca de outra pessoaencostando na minha surge diante demim, embora eu não consiga ver o rostoque vem com a boca.

— O que mais eu não sei sobre você?— Nada.O nome do meu irmão é Simon. Só eu

estou aqui, viva e contando mentiras.Minha mãe não está morta, só emisolamento. Meu pai bebe. Tenho doisdiários. Converso com uma planta.Tenho medo de fazer um trabalho deárvore genealógica e estou tentandoimaginar um jeito de pular o sétimo ano.

— Estou tão feliz com a chegada do

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verão — diz Charlotte. — É bom voltarpara casa, para a minha própria camaaconchegante. Minha cama na faculdadeé nojenta.

— Imagino.— Eu nunca consigo que a minha

roupa limpa fique com o mesmo cheirode quando a minha mãe lava.

Não lembro se a minha mãe lavavaminhas roupas, mas meu pai faz umtrabalho decente. Eu sempre lavei asroupas brancas enquanto o papai ficavacom as escuras. Não é muito divertido, amenos que o papai resolva que é dia defazer guerra de meias. Uma guerra demeias é quando você pega duas meias,

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faz uma bola com elas e joga no seuadversário.

Passo uma camada brilhante deCarmim Revelador em cada unha dospés de Charlotte. Não é o melhortrabalho que já fiz, porque minha mãoestava tremendo um pouco sob o olharintrigado de Charlotte.

— Por favor, não conte para o meupai o negócio dos cigarros. Ele ia meencher o saco.

Isso não é mentira. É bem verdade. Opapai gosta de imaginar que estou segurasob uma redoma de vidro, longe degarotos e cigarros. Se ele soubesse oque as crianças falam no ônibus, eu teria

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um chofer particular para me levar paraa escola, com certeza.

— Não vou contar para ninguém —diz ela, botando um dedo junto do vidrode esmalte Rosa Balé. — O quedissermos fica guardado na cripta dossegredos.

Como costuma acontecer com meucérebro, imagino uma verdadeira criptados segredos. É ampla e cinzenta, e háum vigia bonito na entrada, que poracaso tem a cara de Jimmy Leighton. Elegira a enorme tranca dourada da porta ejoga um envelope com um segredo ládentro. O vigia fecha rapidamente aporta, antes que algum outro segredo

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possa escapar. Quando ele se recosta naporta, ouve-se o som de mãos batendodo outro lado, segredos implorando parasair.

É isso o que eu sou. Uma cripta desegredos. Eles se agitam dentro do meupeito como pássaros engaiolados quequerem fugir, mas têm medo de voar.

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capítulo 16

O dia que eu tinha planejado bateu asase voou pela janela assim que Charlottedisse que o Cara do Guisado estavachegando. Acho que li numa revista queas mulheres “abandonam” as amigasquando há um homem em sua vida.Agora sei que isso é verdade. Eu mesinto abandonada.

Espio pela janela do quarto deCharlotte e a vejo abraçá-lo na entradada casa. Ele é tão alto que deve bater a

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cabeça no batente da porta. Tem cabelosmuito claros e um bigodão da mesma core está com botas de caubói com umbordado intrincado. Quem ele acha queé para usar botas no verão?

Eles se abraçam e se beijam. Dadistância em que estou, é difícil dizer seela está sendo beijada também. Esperono banheiro até ouvir o rangido da portade tela. Conto até dez antes de entrar nasala, no caso de ainda haver maisbeijos. Mas não, isso parou, porque Finnestá sentado no sofá, e tenho certeza deque deve ser estranho dar uns amassosna frente do próprio irmão.

— Este é o Finn, meu irmão mais

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novo — diz Charlotte.— Eu nem sabia que você tinha um

irmão — diz o Cara do Guisado.— Bem, ele só está em casa porque

minha mãe não está.Finn lança um olhar para ela.— Esta é Sarah, a amiga de quem eu

falei.Agora eu sei que há alguma coisa

diferente nela: está muito formal.Christopher estende a mão, e eu também,e ele dá um aperto firme e seguro.

— Ela quer dar o primeiro beijoneste verão — acrescenta Charlotte.

Meu rosto fica vermelho e começa aformigar; minha boca parece seca. Onde

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está o vigia da cripta dos segredosagora? No horário de almoço? Charlotteestá contando minhas coisas para oirmão e o namorado como se eu nãoestivesse ali.

Não tenho intenção de olhar paraFinn, mas faço isso. Ele dá uma piscadapara mim, o que faz meu rosto ficar maisvermelho ainda. Provavelmente estácombinando com meus dedinhos CarmimRevelador.

— Então, o que vamos fazer hoje? —pergunta o Cara do Guisado.

Charlotte pergunta se nós nãogostaríamos de dar uma volta noquarteirão antes. Bem, isso não vai ser

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nada bom para minhas unhas dos pésrecém-pintadas, que eu tive que pintarsozinha, aliás, valeu mesmo! Já estou mesentindo menos infantil, e meus ombrosmostram isso porque Christopher sacodeum deles e pergunta:

— Ei, por que você fica parada de péem cima daquele toco no seu jardim?

Todos os três olham para mim comose eu fosse uma peça de museu ehouvesse um cartão aos meus pés quedissesse: Garota que fica de pé emcima do toco.

Eu não me importaria se um furacãoatingisse Garland neste exato momento.Ele podia me pegar e levar para um

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lugar novo, onde eu não conhecesseninguém e pudesse começar novamente eser conhecida apenas como a garota dofuracão.

Não gosto do fato de o Cara doGuisado saber alguma coisa sobre mim.E Charlotte e Christopher estão de mãosdadas, o que deixa claro que voucaminhar atrás deles. Eu queria que nãotivéssemos feito um guisado à KingRanch tão gostoso. Ele não merece.

— Sabia que Charlotte estáplanejando fazer doutorado? —pergunto, tentando mudar de assunto.

— Sei, sei disso, sim — respondeele.

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— Para ver como ela é inteligente.Mais inteligente que a maioria. O quevocê está estudando?

Ponho ênfase no você com itálicoduplo.

— Administração.Finn ri.— Cale a boca, Finn, e vá ficar com

a sua namorada, o dicionário! — gritaCharlotte, mas ele não para de rir.

Eu torço para que não pare; suarisada é muito legal.

Então Charlotte me diz que ela e onamorado vão dar uma voltinha e nãovão demorar. Sozinhos. Por mim, tudobem. Vá passear com um caubói

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falsificado comedor de guisado, nãoestou nem aí. Num piscar de olhos elesjá saíram.

— Por que ela disse que o dicionárioé sua namorada? — pergunto a Finn.

— Porque adoro palavras — diz ele.— Tenho certeza de que foi isso que elaquis dizer.

— Ah, legal!Não quero que ele pense que eu

considero isso algo ruim.— Muita gente não acha, mas, ei, eu

consegui uma bolsa para a faculdade porcausa disso, e ela fica com inveja.

— É mesmo?Eu não sabia que ler livros podia

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fazer com que você conseguisse entrarpara a faculdade.

— Alerta nerd! — diz ele. — Vocêestá olhando para um supercampeão deconcursos de soletração. Tenho oscartões usados nos campeonatos paraprovar.

Bem, isso é impressionante. E tudo oque consigo dizer é um mísero:

— Uau!— Pois é. Agora estou na faculdade,

no penúltimo ano do curso de linguísticae etimologia. Você sabe o que é isso?

— Meu pai é professor da faculdade,então pode apostar que eu sei um montede coisas — digo a ele, o que é verdade.

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Estou familiarizada com todas as -logias que existem. Ele olha para mim einclina a cabeça de lado antes de dizer:

— Bom saber, bom saber. Bem, é porisso que ela às vezes implica com o meucurso. Você sabe como as irmãs são.

— Na verdade, não sei, não.— Então você tem sorte.— Nunca conheci mais ninguém que

gostasse de ler dicionário — digo a ele.— Ah, então você é uma de nós,

hein? Não somos muitos, eu garanto —diz ele. — Desista agora antes que sejatarde demais.

— O quê?— Deixe pra lá.

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— Você ainda entrega pizzas?— Sim.— Legal.E nossa conversa acaba aí porque os

pombinhos apaixonados voltam. Quandopassa por mim, Christopher bagunçameu cabelo. Será que ele acha que souum bicho de estimação? Ele me diz queCharlotte esqueceu a bolsa. Não tenhoideia de por que uma pessoa precisa debolsa para dar uma voltinha. Minhaantipatia por ele está aumentando, masmesmo assim vou tentar fazer umaexpressão agradável e trocar algumaspalavras com ele.

— Mas que história é essa de você

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gostar tanto de guisado? Isso é comidade enterro — digo.

A cara de Christopher é a mesma queimagino que ele faça quando estátentando resolver um problema dematemática. Ele não me parece ser apessoa mais inteligente do mundo.

— É, Sarah me ajudou com umascoisas ontem. Na verdade — dizCharlotte, me puxando para a cozinha—, preciso falar com ela sobre umasreceitas.

Ela me arrasta até a sala de jantar.— O fato de o guisado ser para ele

era segredo — diz ela, enquanto tirauma escova da bolsa e me penteia.

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Odeio fazer isso. — Eu devia ter ditoantes. Estou tentando impressioná-lo.

— O fato de eu ficar de pé em cimado toco da árvore e querer dar meuprimeiro beijo também era segredo —digo, o que a faz rir. — Bem... Vocêcom certeza escolheu a cor certa deesmalte. Ele deve ter ficadoimpressionado, mas acho que ele não sedá conta de como você é inteligente.

— Como você pode saber disso? —pergunta ela.

Para mim parece óbvio, mas digo aela aquilo em que deve prestar atenção epergunto:

— Quantas perguntas ele fez a você

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hoje?Ela pensa.— Isso não quer dizer nada.Infelizmente, ela não tem o privilégio

de possuir a sabedoria do meu pai. Elesempre diz que uma pergunta bem-feitamostra mais inteligência e interesse doque dois parágrafos de falatório.

— Vamos sair de novo. Preciso detinta para a impressora. Finn vai tomarconta de você.

— Não preciso que ninguém tomeconta de mim.

— Se você se comportar, eu contotudo quando voltar — sussurra ela nomeu ouvido.

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Imagino que isso seja o melhor queposso esperar para hoje. Preciso coletarinformação sobre a vida real e compararcom o que li em O valente libertino.Agora mesmo estou relendo o capítuloem que Rebecca diz ao libertino que oodeia, e que amá-lo é a pior coisa queela jamais poderia fazer. Então ela obeija, o que não é lá muito inteligente dasua parte.

Quando Charlotte e Christopherchegam à calçada, já estão de mãosdadas, caminhando com os ombrosgrudados. Olham um para o outroenquanto andam e, se não tomaremcuidado, vão bater em uma árvore ou

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tropeçar no meio-fio. Lisa está erradasobre beijos e amor. Podem deixar vocêbonita no início, mas também deixamvocê com cara de idiota.

Sento numa cadeira de plástico navaranda da Charlotte, ou no que faz àsvezes de varanda. Já está quente porcausa do sol. Enquanto meu esmalte secade verdade, dou uma boa olhada navizinhança. Não vi os Dupree saírempara caminhar noite passada, e o carrãoverde do Sr. Dupree ainda estáestacionado em frente à casa deles. Issome faz considerar as possíveis opções:estão doentes, perderam a hora oumorreram. Há outras possibilidades

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menos prováveis também: foramabduzidos por extraterrestres, tiraramférias, estão fazendo uma maratona defilmes. Em séries policiais, o detetive àsvezes faz marcas de giz nos pneus doscarros para monitorar seu movimento.

Hoje vou para casa cedo, vouencontrar algum giz e resolver issosozinha, muito obrigada. Neste exatomomento nossa geladeira está cheia decomida de verdade. Há coisas em todasas prateleiras. Vovó sempre a deixaassim, e não apenas com cenouras.

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Quando a Charlotte volta, seu lábiosuperior está vermelho. Eu sei que é debeijar aquele bigodão peludo. Se quersaber, desconfio de que ela estejasaindo com um libertino da vida real.

Os pombinhos fingem não perceberminha presença quando entram, ainda demãos dadas. Penso: Tanto faz . Folheiouma revista e escolho as garotas comquem quero ficar parecida. Isso é umacoisa que eu e Lisa costumamos fazer,apesar de sabermos que não vai adiantarnada, nunca vamos ficar tão bonitasquanto elas, nem em um milhão de anos.Tem uma garota que eu achoespecialmente bonita, porque o cabelo

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dela é curto e cortado reto que nem omeu. Ela está usando uma gargantilhagrossa e escura e brincos compridos emforma de gota. Eu ficaria ótima comeles, tenho certeza. Na página ao ladocomeça a reportagem:

Cinco maneiras de parecer mais confiante:Ponha os ombros para trás.Conte até três antes de responder a

alguém.Cruze as pernas na altura dos tornozelos

ao se sentar.Pergunte à pessoa sentada à sua frente o

que ela está lendo.Faça contato visual.

Finn deixa a porta de tela bater e sesenta na outra cadeira de plástico. Ele

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coloca os pés descalços em cima dagrade e entrelaça as mãos atrás dacabeça. Percebo que a barra da calçajeans dele está gasta de arrastar por aí.Isso é um sinal de que ele andou pormuitos lugares.

Eu me abano com uma revista, dojeito que já vi algumas mulheres fazeremem filmes.

— Achei que você gostasse de ler —diz Finn, sem sequer se virar para mim,então não posso olhar diretamente nosolhos dele. É difícil, mas consigo contaraté três antes de responder.

— Estou lendo — digo, acenandocom a revista, caso ele enxergue mal e

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não consiga notar que está obviamenteequivocado.

— Eu quis dizer livros.Sei que ele está querendo conduzir a

conversa para livros versus revistas,mas, se me conhecesse, saberia que eujá li mais que a maioria das pessoas daminha idade. Especialmente se contar osresumos de livros que meu pai pedepara os alunos fazerem. E há montes delivros que não li, mas posso esperar.Livros não estragam. Não azedam comoleite, que é preciso beber dentro doprazo de validade.

— Então o que você anda lendo? —pergunto.

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Ele baixa as pernas e senta,prestando atenção.

— Ulisses, de James Joyce —responde. — Já ouviu falar?

— Meu pai tem, mas eu nunca li. Elediz que vou gostar mais depois de lerHomero.

— Ceeeeerto — diz ele, de um jeitoque eu percebo que o deixeiimpressionado.

Isso. Consegui. A revista estavacerta. Meu pai sempre me aporrinha porcausa dessas revistas, mas agora tenho aprova de que funcionam.

— Você não tem que estudar algumacoisa? Ou é preguiçoso?

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Torço para que isso o faça entrar eme deixe com meus pensamentos sobre ocarro do Sr. Dupree e onde seria melhorfazer as marcas de giz, nos pneus dafrente ou de trás.

Finn ri.— Ora, como você sabe, tenho toda a

minha carreira de entregador de pizzapela frente. E escrevi um trabalho bemgrande que está em processo de edição.Enquanto minha mãe está viajando, estoutentando relaxar um pouco. Porconseguinte, eu devo ser um poucopreguiçoso mesmo. Mas, neste momento,estou só esperando uma encomenda.

Ele diz isso com tanta naturalidade e

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tanta doçura que de repente ficoenvergonhada das minhas perguntas.Sem contar que acho que nunca conhecininguém na vida real, além do meu pai,que usasse a expressão por conseguinte.

— Então, por que você sobe naqueletoco?

— Você já me viu? — pergunto.Isso é bem embaraçoso. Ele pensa

por um minuto e diz:— Você não repara quando vê algo

que nunca viu antes?Acho que sim. Esse tempo todo eu

fiquei olhando para todo mundo davizinhança e não tinha ideia de quepudesse haver alguém olhando para

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mim.O olhar dele fica distante, e Finn

sorri para o sol. Sua mente está viajandopara algum lugar legal, eu simplesmentesei disso. Tenho uma bela vista do perfildele. Finn podia facilmente estar numarevista. Talvez em uma propaganda deperfume. Como eu queria ter umamáquina fotográfica agora! Como euqueria!

Querido Atticus,Hoje estou me sentindo estranha enão sei bem o que dizer. Tenteipensar em como lhe pedirconselhos sobre a minha mãe.

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Para fazer isso, percebi que tenhoque contar sobre ela. Essa vai seruma carta com informação demais,com certeza. Eu quase não queroescrevê-la, pois alguém podedescobrir nossa correspondência.E, se isso acontecer, vou termuitos problemas. Já me xingaramna rua por causa da minhasituação. E tivemos que nos mudarmuitas vezes. Mas eu me lembrodo que você disse a Jem sobre aspessoas que xingavam vocês denomes feios, de coisas que não

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posso nem mesmo repetir aqui.Lembra aquela vez? Você disse aJem que não é um insulto quandoalguém chama você de algumacoisa que ele acha ruim. Atticus,não quero magoá-lo, mas não seise acredito nisso. Enfim, vou lhecontar sobre minha a mãe eresolver logo isso.

Vamos lá. A situação é aseguinte: ela enlouqueceu há dezanos. Agora, antes que você mediga que estou imaginando coisase que ela é só como o Arthur

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Radley: não, não é, não. Ela é umapessoa louca de verdade, quemora num hospital psiquiátrico,porque matou meu irmão e tentoume matar. Também houve umgrande julgamento por causadisso. Dois, na verdade. O dela eo do meu pai, que foi acusado dealguma coisa que eu não entendodireito.

Então, sabe, eu não tenhocontato com a minha mãe. Scouttem mais sorte do que eu nessequesito. A mãe dele, sua mulher,

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morreu quando ele tinha dois anos,então ele não se lembra dela. Ecomo você é um pai muito bom,seus filhos não sentem falta dela.(Além disso, eles têm a Calpúrniapara ajudar a criá-los e cozinharpara eles, o que deve ser legal.)Eu, por outro lado, não tenho nadaassim. Não tenho mãe. Não tenhoirmão. Não tenho Calpúrnia. Etenho um pai que está presente,mas é ausente.

E, acabo de me dar conta disso,conheço a minha mãe mais como

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Jane Nelson, uma pessoa mais oumenos famosa que me deixaenvergonhada. Sempre que ouço onome Jane, imediatamente viro orosto e começo a ficar vermelha.Não era para eu ter vergonha donome da minha própria mãe, nãoé? Você provavelmente me diriaque eu sou uma pessoa ruim porsentir isso. Vou tentar melhorar.

Abraço,Sarah Nelson

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capítulo 17

Papai está corrigindo trabalhos na salaesta noite, cantando uma música dosBeatles. Ele sempre fica com as músicasde uma banda antiga de cada vez nacabeça, e você só escuta aquilo e maisnada. Durante um tempo foi Bob Seger,e agora cá estamos com John, Paul,George e Ringo.

Vou para o meu quarto e me perguntocomo um cérebro consegue se lembrardas letras sem escrevê-las. Como ele

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decide quais coisas guardar e quaisesquecer. Deve haver pequenaslembranças grudadas dentro da mente,como chicletes embaixo de uma mesa. Épreciso muito esforço para arrancá-las,então ou você quer mesmo se livrardelas, ou vão ficar lá para sempre, secase duras. Às vezes as lembranças surgemdo nada, e você tem que refazer seuspassos até descobrir o que levou suamente a pensar em determinada coisa. ODr. Madrigal disse que isso pode serchamado de gatilho.

Agora mesmo, por exemplo, eu olhopara o teto texturizado do meu quarto etudo em que consigo pensar são

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sandálias brancas de verão. Por quê?Porque hoje mais cedo vi uma garotinhade sandálias brancas correndo pelacalçada atrás do caminhão dosorveteiro. Ela olhou para trás e gritoupara o pai:

“Corre! Corre! Senão ele vaiembora!”

Foi muito engraçado, porque ocaminhão do sorveteiro anda maisdevagar do que uma pessoa de bicicleta.Mesmo assim, ela ficou toda nervosa,achando que não ia conseguir comprarseu picolé ou sei lá.

Bem, ver aquela garotinha foi umgatilho para uma lembrança da minha

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mãe. Foi assim, num estalar de dedos.Aqui está o que meu cérebro tirou doarquivo:

1. Eu tinha sandálias deverão brancas iguaisàquelas, com uma tira notornozelo.

2. Eu estava com elas quandovisitei a minha mãe nohospital.

3. Papai me escondeuembaixo do casaco delequando fomos andando dohospital até o carro. Ele

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disse: “Estou com você.Só cuidado com os pés.”

4. Eu fiquei observando ospés com as sandáliasbrancas se moverem peloasfalto quente doestacionamento.

Por que eu não tinha o bom senso deescrever no diário naqueles tempos? Euseria capaz de me lembrar de maiscoisas, como, por exemplo, se eu tinhaseis ou sete anos quando isso aconteceu.Eu já havia visitado minha mãe antesdaquele dia? Quantas vezes eu a vi navida real desde então? Duas? Três? Foi

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nessa época que anunciei para meuscolegas da escola “Ei, minha mãe moranum hospital e não pode ficar comigo”?Acho que eu tinha seis. Quando a gentetem seis anos, fala tudo. Eu sei quecontei a uma garota que ia sair maiscedo da aula para visitar a minha mãe nohospital, e ela me disse que tinha visto amãe fazer xixi num potinho noconsultório médico.

Mais tarde, quando a gente faz seteanos, percebe que essa informação vaivoltar de um jeito ruim. Então aprende oque dizer, quando mentir, quando nãofalar nada. Quando se chega aos oitoanos, todos os segredos já estão

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trancados nos diários.Agora, só penso naquele dia quando

estou sozinha. Os detalhes anseiam porescapar. É por isso que amo Planta. Elaé uma boa ouvinte, paciente e gentil.Agora mesmo, conto a ela que minhamente não vai me deixar em paz até queeu consiga pensar em um novo fato, umanova cena. É como se o computadordentro do meu cérebro estivessemontando um quebra-cabeça, masalgumas peças foram perdidas. Plantaquer saber se isso é por causa de todasas perguntas que os terapeutas mefizeram. Talvez eles tenham encaixadopeças que não estavam lá antes. Talvez

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tenham inventado gatilhos. Não sei.Conto a Planta que a época em que eu

tinha as sandálias brancas foi logodepois do julgamento do papai.Estávamos pensando em nos mudar,porque todo mundo nos conhecia porcausa dos jornais. Às vezes os vizinhosusavam a técnica do disfarce, quandofingiam ser amigáveis e depoiscomeçavam a se intrometer.

Por causa dessa gente curiosa, meupai me mantinha ao seu lado sempre queíamos pegar o carro perto de casa ou emum estacionamento. É, foi aí que euobservei as minhas sandáliascaminhando depressa. Sempre que sinto

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o cheiro do desodorante dele me lembrode ser perseguida por repórteres. Então,quando ele me perguntou enquantocomíamos panquecas com bacon se euqueria me mudar para um lugar ondefôssemos apenas nós dois, eu respondi:“Poxa, com certeza!”

Na verdade, eu não disse poxa. Eudisse outra palavra. Meu pai fez umacara feia, disse que obviamente eu vinhapassando tempo demais com o vovô epediu que eu, por favor, não usasse maisaquela palavra. Essa foi uma das minhasprimeiras palavras-problema.

Agora eu me lembrei de mais coisas.

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Conto a Planta que foi naquela vez quemeu pai disse: “Ei, vamos ao hospitalvisitar a sua mãe. Ela pode não falarcom você hoje, mas não esqueça que elate ama, mesmo que não olhe para você,tudo bem?”

E então nós fomos.

No hospital, o médico disse: “Ei, éaquela ali, de cabelo castanho-claro eolhos azuis. Ela é a sua mãe.”

Lembro que eu não queria ir até láporque estava com medo. Lembro que omédico me levou com o papai até umasalinha com uma mesa e várias cadeiras.Havia um tapete gigantesco de

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quadrados multicoloridos no chão.Lembro que ela esfregava as palmas

das mãos na calça azul simples e nãoparava de alisar o tecido, embora nãoestivesse nem um pouco amarrotado.

Lembro que lhe estendi um cartão queeu mesma tinha feito. Na verdade, foi opapai quem disse que eu devia fazer umcartão para ela. Não foi ideia minha.Quando ela não deu sinal de que iriapegá-lo, eu coloquei o cartão em cimada mesa e me afastei.

Lembro que o papai me mandoubrincar lá fora; o único problema é quenão tinha lugar nenhum para brincar nohospital psiquiátrico. Saí da salinha e

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fiquei sentada sozinha no corredor,mexendo no carpete.

Planta ainda está ouvindo, por issocontinuo a falar.

O que mais eu lembro? Não sei.Me pergunto se estou inventando

esses detalhes do mesmo modo que umacriancinha colore um desenho,rabiscando fora das linhas. A imagempassa a ser o que você mesmo desenha,e ninguém pode dizer se está certo ouerrado. Eu queria ter uma foto daqueledia. Seria uma prova concreta de queaquela visita realmente aconteceu dojeito que eu lembro. Uma prova concreta

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é quando você tem algo tão verdadeiroque não dá para questionar.

A única prova concreta que tenho é aseguinte: lembro que usava sandáliasbrancas quando fui visitar a minha mãe.É só o que realmente sei.

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capítulo 18

Planta acha que estou errada, mas eu aestou ignorando. Contei a ela que tenhomedo de ficar igual ao meu pai,alcoólatra. Pego meu dicionário e leioem voz alta:

alcoólatra adj. quem é viciado naingestão de bebidas alcoólicas

Não sou alcoólatra, digo a ela,porque não bebo. Isso é um alívio.

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Posso acabar louca como a minha mãe enão conseguir evitar. Mas uma pessoapode evitar beber um drinque. Enquantoeu conseguir fazer isso, alcoólatracontinua fora da lista de coisas que vãoacontecer comigo. Mas aí meu cérebrome vem com um bom argumento. Seminha mãe é louca e meu pai é, pordefinição, alcoólatra, então eu prefiroser como ele. Qualquer idiota escolheriao uísque em vez da loucura. E Plantadisse que eu era louca por estarconversando com ela.

Aí ela tem razão.Escrevo esses pensamentos no meu

diário verdadeiro para me concentrar

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mais neles depois. Super-rápido, pego odiário falso e escrevo algumas linhassobre estar pensando em entrar em umconcurso de soletração. Então olhofixamente para o ventilador de teto eacompanho seu ritmo tamborilando nocolchão. Estou na cama pensando no diae tentando bolar uma boa mentira paracontar à Lisa, só para me garantir, nocaso de eu não encontrar ninguém parabeijar. Ela não sabe como eu sei mentirbem. Posso dizer que o garoto tinhabigode e que meu lábio ficou todovermelho. Descarto a ideia porque elafaz meu cérebro trabalhar como se euestivesse lendo um problema de

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matemática que não consigo resolver. Eagora estou completamente acordada.

Meu pai também está acordado atétarde, vendo um faroeste na tevê. O somdos tiros atravessa o corredor e entra nomeu quarto. Isso me faz imaginar quetipo de pioneiro ou caubói veio paraGarland e pensou: Ei, esta planícieparece ótima. Vamos montaracampamento aqui e começar atrabalhar. A esposa, uma mulher comum xale carregando uma criançapequena nos braços, deve terperguntado: É seguro aqui? E eleprovavelmente respondeu: Claro!Afinal, quem mais vai disputar este

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lugar com a gente? Não vejo ninguémem um raio de quilômetros. Assimcomeçou uma longa história de pessoasque não se importam com o local ondese fixam. Não consigo pensar emnenhuma outra razão para a existência deGarland. Esta cidade é como ummoletom cinza. Cumpre seu papel, masnão é nada fashion.

Agora sinto um calor subir pelo meupescoço quando penso em como agifeito boba na frente do Finn. Eu mepergunto se ele poderia me contar maissobre o que os garotos fazem, me ajudara preencher algumas lacunas deconhecimento. Talvez eu descubra que

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há coisas para admirar neles, embora euduvide. Garotos normalmente sãofedorentos e mal-educados e nem abrema porta do carro para você, o que é umacaracterística na qual o vovô diz que eudevo prestar atenção.

Preste atenção em garotos que nãoabrem a porta do carro.

Preste atenção em garotos que têm ocabelo comprido demais. Que porcariaeles estão escondendo? (Não precisodizer que ele não falou porcaria.)

Preste atenção em suéteres de boaqualidade que duram mais de umaestação.

Preste atenção em jantares grátis.

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Prestar atenção nas coisas é algoimportante para o vovô.

Eu me sento na cama e tento pensarse me esqueci de fazer alguma coisa.Será que me esqueci de regar Planta? Oudeixei minhas roupas na secadora?Então lembro que não fiz as marcas degiz nos pneus do Sr. Dupree. Talvez sejaisso.

Meus pensamentos são interrompidospelo barulho de um cavalo e, como seique não tem nenhum na nossa cozinha,pulo da cama e vou investigar. É só meupai, agora dormindo um sono profundono sofá, com um trabalho da faculdadecaído no peito e o filme a todo volume

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na tevê.Pego o trabalho das mãos dele e o

cubro com um cobertor. Vou deixá-lodormir ali mesmo, onde ele acabaficando muitas noites. Seus olhos semexem sob as pálpebras, então sei queele está no meio de um sonho agitado.Talvez esteja montado em um cavaloselvagem, tentando acompanhar umcaubói. Bem, ele pode sonhar.

Junto o restante dos trabalhos dosalunos e os organizo em uma pilha namesa de centro. Ponho o que ele leu porúltimo por cima, na transversal. Algo noprimeiro parágrafo salta da página:

Se ela quisesse, teria feito. Teria

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continuado com o trabalho que tinha àsua frente com seriedade e dedicação.Em vez disso, deixou tudo para trássem pensar duas vezes. Seus talentosinutilizados secaram e murcharamcomo uma folha ressequida de outono.

Zero.Eu daria a esse trabalho um zero bem

grande e redondo. O leitor não tem ideiade quais talentos ou trabalho ela tem outeve e deixou de utilizar. Meu paidefende que um bom texto deve sercompreendido por uma criança de dozeanos, e agora eu entendo o que ele querdizer. Não consigo entender nadadaquilo e já estou entediada demais para

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continuar a ler. Deve ter sido isso quefez meu pai dormir. Ele diz que amaioria dos alunos escreve como setivesse acabado de descobrirShakespeare e o dicionário no mesmodia.

Um som de tilintar de copos surge docomputador do meu pai no fim docorredor. Vou até o escritório e dou umaespiadinha na janela amarela no cantoda tela com um ponto de interrogaçãopiscando. Sento na cadeira de rodinhas edou uma olhada. É uma mensagem dePBroom: “Ainda está on-line?”

Quem é PBroom e como meu paiaprendeu a fazer essas coisas? Como o

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Sr. Wistler, meu pai é contra mensagensde texto. Vejo o cursor piscando e nãoresisto. É como se estivesse dizendoresponda agora responda agora . Digito“Estou” e dou enter. O computador fazo tilintar de novo. Logo pipoca outramensagem de PBroom, e não possoevitar responder.

Também não consigo dormir. O que está fazendo?

Corrigindo trabalhos.Ugh. Parece superdivertido.

É. Tem um que é especialmente ruim. Achoque vou dar zero.

Ai! Que maldade.

Bom...Foi divertido tomar café com você no outro dia. Como

sempre.

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Foi.Acho que você está me mimando demais.

KKK. Tenho que ir.Boa noite.

E PBroom vai embora. Dou umaolhada de novo no chat. Tenho tantasperguntas! Meu pai tomou café comPBroom. Ele ou ela sabe que pode falarcom o meu pai por mensagens on-line.Ele/ela está pensando no meu pai a estahora da noite. Pior, meu pai nuncausaria “kkk” em uma mensagem. Comcerteza vou ser descoberta.

Ouço o confronto entre dois caubóisna sala. Esta é a parte favorita do meupai, por isso deixo a tevê ligada, para

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que penetre bem na sua mente enquantoele sonha. Talvez ele acorde amanhã ese sinta heroico. Vai se ver como ummocinho à moda antiga. Aí eu voupreparar para ele um café pretosuperforte de caubói com torradaamanteigada e mandá-lo de volta paraencarar mais um dia no mundo real. Rá,rá! E tenho que descobrir um jeito deperguntar sobre PBroom sem que eledesconfie de que sei alguma coisa. Sementregar que eu fingi ser ele por sessentasegundos.

No caminho de volta para o quarto,faço um desvio e, voilà, estou nagaragem. É como se meus pés tivessem

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me levado até lá sem dizer nada ao meucérebro. As garrafas estão atrás daslatas de tinta. Não sei por que ele asesconde ali. Não é como se nós dois nãosoubéssemos que ele bebe. Pego umagarrafa pela metade, desenrosco a tampae penso em tomar um gole. Só dou umafungada, e é horrível. O cheiro quasequeima meu nariz. Ainda não entendopor que ele bebe isso.

Quando volto para o quarto, ficoenvergonhada. Eu quase bebi uísque! Efingi ser meu pai no chat. Tenho queconsiderar se isso faz parte do meu novoeu. Uma criminosa.

Meu caderno pautado verde está ali

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em cima do travesseiro, e eu sei queAtticus me olharia por cima dos óculos,e eu sentiria sua decepção apenas comum olhar. Atticus seria um grandecaubói. Eu o imagino com um chapéu deabas largas e uma daquelas jaquetas,talvez um reluzente distintivo de xerife.Você sabe a diferença entre o certo e oerrado, diria ele. E isso seria o bastantepara me fazer morder o lábio para nãochorar.

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capítulo 19

Odeio a nossa casa e acho que ela meodeia.

De manhã, quando quero dormir atétarde, o encanamento do chuveiro domeu pai faz um zunido agudo até a águaesquentar. Eu sento na cama e lembroque estou de férias e não tenho quecorrer, pelo menos posso me dar ao luxode ficar mais um pouco de pijama.Mesmo assim, ainda gosto de ser aprimeira a chegar à cozinha de manhã. É

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meio emocionante chegar a um lugarantes de todo mundo, como se eu fosse aprimeira a fazer uma descoberta e todosfossem bater palmas para mim. Ei, vocêfoi a primeira a chegar aqui. Queincrível! Esta é a minha casa e gosto dereafirmar isso quando posso.

Coloco um waffle congelado natorradeira. Meu pai e eu gostamos demanteiga de amendoim e calda noswaffles, então resolvo que é isso o quevou fazer hoje. Fazer o dia começar bemantes que eu faça alguma pergunta. Alémdisso, tenho um grande dia pela frente:vou investigar o que está acontecendocom os Dupree. A manhã já carrega em

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si uma eletricidade palpável. Palpável éminha palavra favorita no momento.

palpável adj. que pode ser tocado oupercebido; tangível

Tudo pode acontecer. Ainda não sãonem sete da manhã. O dia ainda nãocomeçou. Mas de uma coisa eu sei: hoje,pela primeira vez, vou tomar uma xícarade café. Percebi que café é o contráriode álcool, então vou seguir nessadireção.

Meu pai chega à cozinha, e eu pegosua caneca preferida, uma azulzinha comum cachorro voador. Aprendi a fazer

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café muito bem. Sirvo uma xícara cheiapara ele. Depois uma xícara para mim.Ele apenas me olha e balança a cabeça,como se soubesse que é uma boadecisão.

— Obrigado, querida. Eu precisavamesmo de um café.

Com certeza, penso.— Você dormiu vendo tevê.— Obrigado pelo cobertor.— De nada — digo. — Estava

pensando em costeletas de porco para ojantar.

— Parece bom, garotinha — diz ele,bebendo o café. O jeito como fecha osolhos quando a caneca se aproxima de

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seu rosto o faz parecer tranquilo. — Oque vai fazer hoje?

— Não sei — digo. — Só passar otempo, acho.

Tomo um gole grande de café. Tentoparecer tranquila como ele, mas é muitoamargo e quente. Mesmo assim euengulo. É o que tenho que fazer.

— Você vai se lembrar de dizer aCharlotte que eu preciso falar com oirmão dela esta semana?

— Ele não tem nada de mais. Estáestudando palavras na faculdade oualguma coisa assim. Além disso, ficatrancado no quarto porque Charlotte estálouca de amores pelo namorado, e ele

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fica incomodado.Papai me lança aquele seu olhar

cético, que faz suas sobrancelhas quasecobrirem os olhos.

— Louca de amores, é? — perguntaele.

Agora tento corrigir o que disse.— Bem, não louca de amores. Ele

respeita o quanto ela tem que se esforçarpara a faculdade e tudo.

Pronto. Isso deve bastar. O únicoproblema é que acabei usando a palavralouca de novo. Sirvo uma boa dose decalda nos waffles dele, na esperança deque isso ajude a mudarmos de assunto.

— Humm-hummmmm.

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E isso é tudo o que ele diz, o quesignifica que vou ter que permitir queele também conheça Christopher.

— Não acho que o irmão deCharlotte vá passar muito tempo em casa— digo. — Ele também entrega pizzas.

— Onde ele estuda?— Eu não sei — respondo. — Por

que está fazendo tantas perguntas?— Só quero saber com quem você

está, Sarah — explica ele. — Diga aCharlotte que vou ligar para ela hoje.

— Pai!Se eu reclamar, vai ser pior. Já sei

que a conversa deles vai ser um gameshow com mil perguntas que Finn nunca

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vai responder corretamente. Meu paiestá entrando no modo Agente Secretode novo.

— E tenho umas perguntas para onamorado dela também.

— Sério, pai, você não precisa fazerisso.

— Bem, você não vai querer ir paraa casa dos seus avós.

É duro o jeito como ele diz isso, e meacerta bem na boca do estômago. Entãoas palavras jorram de mim sem que eutenha a chance de me imaginar dizendo-as.

— Quem é PBroom?O ar fica imóvel entre nós. Uma

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corda invisível paira ali, e cada umespera que o outro a puxe um pouco. Eudevo parecer tão surpresa quanto elenesse instante. Tomo outro gole grandede café. Para mostrar que estou maisvelha.

— Acho que não deveria mesurpreender por você descobrir essascoisas, Sarah — responde. — A Srta.Broom é uma colega minha. Ela dá aulasde História Americana.

— Ela mandou uma mensagem on-line para você ontem à noite — digo. Eemendo rapidamente: — Quando euestava arrumando a casa e tal.

Eles tinham almoçado e tomado café

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várias vezes. Meu pai diria que eram“bons amigos”. Ele quer saber se issome incomoda. É claro que ele já saiucom outras mulheres antes e nunca deumuito certo, então isso me faz pensar porque ele ainda se dá o trabalho de tentar.Muitas mulheres que ele levou paratomar café ou chá ou até ao Taco Bellforam legais no início. Depois ele falasobre mim, e as coisas parecem ficarcomplicadas. Duvido que com PBroomseja diferente.

— É sério? — pergunto por fim.— Não — diz ele, e percebo um

brilho animado em seus olhos.Ele gosta dela, isso com certeza.

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Deve ser bonita.— Bem, acho que gostaria de

conhecer essa moça se você vai passartanto tempo com ela — digo.

Ele leva o prato até a pia e lava asmãos.

— Vou comprar as costeletas quandoestiver voltando para casa.

Mais tarde, quando conto isso paraPlanta, nós duas concordamos quePBroom talvez seja uma palavra-problema. Eu a anoto no diário,acrescentando-a à minha lista. Atéagora, são vinte e três as palavras-problema.

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capítulo 20

Este seria um dia comum se não fossepor duas coisas: eu fiquei menstruada, emeu pai entrevistou Finn.

Mas eu não sabia disso quando fuipara a casa da Charlotte. Tinha botadona cabeça que ia resolver o mistério docarro dos Dupree. Logo de cara, vejoque o carro deles não saiu do lugar.

Na próxima vez que eu for aomercado, vou comprar um caderninhoque caiba no meu bolso. E uma câmera

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descartável também. Preciso registraresses detalhes caso algo esteja errado.Meus instintos — é o que os policiaissentem em certas situações — me dizemque há algo errado.

Uma coisa que eu já sabia sobre osDupree é que eles tinham uma plantaçãode maçãs verdes na Califórnia, o que éinteressante, porque o carro deles éverde-maçã e a bancada da cozinhatambém. Só entrei na casa uma vez,quando me chamaram, com meu pai,para pegar uma caixa de maçãs.

Eles nunca moraram perto daplantação, na verdade, mas semprerecebiam grandes engradados da fruta,

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cada uma embalada individualmente empapel da cor de açúcar mascavo. A Sra.Dupree disse que eles venderam onegócio para o filho depois que seaposentaram. Contou que o Sr. Dupreeainda trabalhava com hortifrúti, mas nafeira local. Eles sempre distribuemfrutas e verduras bem coloridas, que nãovão conseguir vender no dia seguinte,principalmente por estarem feias — masa Sra. Dupree diz que ainda estão boas;basta descascar a parte de fora e usar omiolo. Foi assim quando ela conheceu oSr. Dupree. Ela disse que ele era bompor dentro e sólido como um melãomaduro.

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Todo dia de manhã, quando o Sr.Dupree sai de casa, sua partida é igual àde todos os outros, que deixam nossa ruasem saída como se estivessem em umdesfile de carros. Além disso, elessempre pegam o jornal. Não que eu osesteja espionando ou nada assim. Hoje,enquanto atravessava a rua para a casada Charlotte, vi dois jornais nogramado. Também tem um folhetocomprido pendurado na porta. E o carroverde-maçã ainda está lá, estacionadodo mesmo jeito que ontem. Eu tenhomuitas coisas para fazer: investigar osDupree, baixar músicas para meu iPod,pedir a Charlotte para ver a lista de

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professores na faculdade do meu pai edescobrir quem é PBroom. Tambémestou torcendo para que mais tarde dêtempo de jogar a bola de basquete nasárvores e fazer as cigarras voarem.Então terei as próximas oito horascompletamente cheias. Um copo quevocê acabou de encher de água.

A caminhonete da Gramados eJardins Sanchez está parada em frente àcasa do Sr. Gustafson outra vez. Osempregados estão trazendo váriasbandejas grandes cheias de mudas deflores amarelas, cravinhos, acho. Pareceque a casa está passando por umatransformação de estilo, ou pelo menos

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ganhando uma maquiagenzinha. Jáconsigo até imaginar como as flores vãoficar bonitas. Eu passo pela caminhonetee faço questão de dar um alô para ogaroto do boné vermelho.

— Hola — digo, porque é a únicapalavra que sei em espanhol. Eleresponde e acena. — Essas flores sãobonitas. Eu gosto de plantas. — Bem,essa foi uma coisa genial mesmo de sedizer. Mas ele balança a cabeça paramim de um jeito simpático. — Eu hojebebi café — conto. — Não é ruim.Entendo por que as pessoas gostam.

— Sí — diz ele.— E você nunca faria isso, mas

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ontem à noite eu fingi ser o meu pai.Quer dizer, no computador. Não sei porque estou contando isso.

O garoto vai até a frente da casa,ajoelha-se e começa a fazer buraquinhosna terra para cada muda. Ele acenaquando eu vou embora, e acho que agorasomos amigos.

Quando chego à casa da Charlotte,conto a ela sobre minha investigação,começando com os Dupree, para depoisme aprofundar na história da PBroom.

— O carro dos Dupree não sai dolugar há dois dias.

— E daí? — diz ela.— E daí que eu preciso saber por

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quê.— E para a segunda coisa?— Vamos precisar da internet —

digo.— Ah, pesquisa do tipo feita a

distância.Ainda estou com um frio no estômago

e me pergunto se é culpa do café.Amanhã vou colocar um monte de leitenele. Vou fazer isso até me acostumar abeber café como os caubóis.

No quarto da Charlotte, acho fácilconfessar como, por um brevíssimominuto, fingi ser meu pai e descobri aexistência de PBroom. O rosto dela seilumina, sem nenhum julgamento, como

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se achasse divertido. Então ela gira nacadeira e começa a digitar tão rápidoque a minha cabeça roda. Em menos deum minuto, surge na tela uma foto empreto e branco de PBroom: PatriciaBroom, professora de HistóriaAmericana, sendo exata.

— E agora? — pergunta.— Não sei. Só queria saber como ela

era.Agora me sinto idiota só por querer

procurá-la. Isso não mudou nada. Ela ébonita e parece magra, se é que dá paradizer só pelo pescoço. Não há nada emseus olhos que indique que ela odeiacrianças. Aprendi a identificar essa

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expressão nas mulheres. Elas mantêm osorriso artificial por tempo demais.Forçam o riso. Então, como se ouniverso se sentisse mal por minhacausa e quisesse inverter meu humor, eleme dá outra coisa em que pensar. Sintoum aperto por dentro da barriga. Saio doquarto da Charlotte. Fecho a porta dobanheiro e seguro o abdome. Sintovontade de chorar e rir ao mesmo tempo.

Claro, tenho uma ideia do que fazer.Não sou totalmente desligada darealidade como Darla Jacobs. A gentefez uma festa do pijama uma vez e,quando começou a falar sobre isso, elanão tinha ideia do que era. A gente teve

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que explicar.Vou precisar tomar uma atitude.

Preciso de absorventes e essas coisas.Talvez de algo especial para comer. Seeu fosse acreditar em comerciais, jádevia estar cavalgando na praia,miraculosamente dotada de habilidadesequestres. Se eu fosse acreditar naBíblia, agora já poderia me casar,milagrosamente qualificada só porqueposso gerar filhos. Não quero cavalgarnem me casar. Esse é o tipo de coisa quegarotas com mães sabem.

Quero me encolher em posição fetal,ficar sozinha e ao mesmo tempo queroficar com Charlotte. Que história é essa

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de cada hora pensar uma coisa? Édemais para mim.

Posso pedir para Charlotte me levarpara comprar uns salgadinhos e,enquanto estivermos lá, eu compro osabsorventes. Vou ao balcão e pago pelosdois como se tivesse feito isso a vidainteira. Talvez ainda leve um pacote dechicletes para mostrar como acho tudonormal.

— Sarah? Você está bem? —pergunta Charlotte do outro lado daporta.

— Estou.— Pensei que a gente podia sair para

dar uma volta e jogar bolas de basquete

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nas árvores do parque antes que fiquequente demais. Eu contei ao Finn quevocê gosta de fazer isso.

Droga! Como vai ser divertidocomprar absorventes estando nós trêsjuntos. O que fazer? Vou ter que serhonesta. Afinal de contas, eu sou umamulher agora.

— Charlotte — digo. — Humm, achoque preciso da sua ajuda.

Ela abre a porta, e eu fecho depoisque ela entra.

— Desceu.— O quê?— Você sabe — digo, apontando

para baixo.

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— Ahhhhhhhhh — diz ela. — Euachava que você já tinha...

Tenho vontade de perguntar se eu jápareço uma mulher, mas não é omomento.

— Acho que vou precisar de algumacoisa para isso.

— Eu tenho alguns por aqui, e maistarde a gente sai e compra para você.Precisamos comprar chocolates paracomemorar também.

Ah, isso é maravilhoso. Quase tenhovontade de chorar um pouco e pedirpara ela escovar meu cabelo. Sinto oimpulso de rir/chorar surgir outra vezdentro de mim.

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— O que foi? Está doendo? Está sesentindo mal? — pergunta Charlotte.

Um pensamento muito esquisito surgeem minha mente. E se isso tivesseacontecido enquanto eu estivesse nacasa dos meus avós? Agora sei que umacoisa que minha tia Mariah me disse éverdade, apesar de eu não terexplicação: o universo está escutando.Pensei que precisaria encontrar todo omeu conhecimento nos livros, masrecebi uma surpresa, alguém para meconfortar parada bem à minha frente.Talvez você tenha que ser mulher parasaber o negócio do chocolate. Maistarde vou fazer uma lista nova de coisas

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que chegaram quando fiz doze anos.— Não, estou bem — digo a

Charlotte.Estendo os braços para abraçá-la e

ficamos paradas por um momento. Oabraço dela é firme, apertado de umjeito bom. Sinto como se pudessedesmontar se ela me soltasse. Éengraçado como eu não sabia que era sóum monte de peças soltas até que alguémme abraçou forte.

Quando estamos pegando nossas bolsase nos despedindo de Finn, olha quemaparece: meu pai, com um envelopepardo nas mãos. Já vi isso antes, quando

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estava para começar em uma escolanova ou em alguma atividadeextracurricular. Ele confere osantecedentes das pessoas e depois fazuma lista de perguntas. Se achar algumacoisa estranha, meu pai liga para oadvogado dele em Houston, e os doislevantam uma quantidade de informaçãosobre a pessoa que nem ela sabia queexistia. Aí meu pai senta, conversa e dizque deve ser mantido atualizado emrelação a qualquer coisa que possa ter aver com meu bem-estar. Blá-blá-blá. Jáouvi isso mil vezes.

— Vou levar Sarah para compraruma coisinha.

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— Vai ser só com seu irmão, então?Eu olho para o Finn. Ele não tem

ideia de que está prestes a serinterrogado. Ele é o suspeito, e meu paié um dos policiais durões da tevê.Espero que não haja nem mesmo umamulta de trânsito naquele envelope.

Quero gritar com meu pai, dizer a elepara não me matar de vergonha, masminha barriga está tão esquisita que nãoconsigo. Olho para ele com raiva,deixando claro que amanhã a bola degolfe com a cara triste vai aparecer.Prepare-se, digo com meus poderesmentais, mas não adianta. Quando meupai está bem acordado, de terno e

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sóbrio, não há ninguém mais bem-preparado nem mais interessado naminha vida. Tenho dois pais. O bêbadoe o detetive. Isso não pode ser normal.

Apesar disso, espero que o que eletenha descoberto confira a Finn o Selode Aprovação de Condição Especial deTom Nelson , porque basta umainfraçãozinha nos registros, e vai ser umvoo direto e sem escalas para férias commeus avós.

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capítulo 21

Estou no chuveiro, desejando que a águapudesse subir até o meu pescoço, e queeu flutuasse, sem peso nenhum. Euqueria inventar uma máquina que tirassea pessoa direto do chuveiro e, puf, elaestaria seca e vestida na cama. Pulartodos os passos chatos no meio. Issoseria o paraíso.

Sou oficialmente mulher há oito horase já estou oficialmente cansada. A únicacoisa de que gostei no fato de ser mulher

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até agora é meu rímel novo. Passo,passo. Pareço ter pelo menos catorzeanos quando o uso.

Agora vou deitar na cama com umatoalha de rosto quente na barriga.Charlotte me disse que isso ajuda amelhorar a cólica. Quando me levou àfarmácia esta tarde, ela me contou tudo oque eu precisava saber. Foi legaltambém porque, se eu ficasse nocorredor olhando todos aquelesprodutos por muito tempo, começaria ame sentir idiota. Só quero saber por queexistem tantos? Ela me explicou quetalvez eu tivesse que experimentaralgumas marcas diferentes para ver à

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qual delas me adaptaria melhor. Durantetoda a minha vida eu pensei que esseseria o tipo de coisa que só tem tamanhoúnico, mas aparentemente não é.

Depois passamos na seção demaquiagem, porque Charlotte queriacomprar sombra metálica para os olhos.Também não sou especialista na arte dosprodutos de beleza, mas gosto de vertodas aquelas cores enfileiradas.Charlotte diz que dá para usarpraticamente qualquer cor nos olhos.Fácil. É só passar e... voilà, você virauma top model.

Pensei em todas as coisas que eugostaria de comprar na loja. As cores de

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batom, por exemplo, me deram vontadede ter um de cada só pelos nomes.Cherry Ice. Pink Sugar. China Red.Crystal Peach. Eu me vi arrumando-osna pia do meu banheiro para poderescolher um diferente a cada dia. Seráque estou num clima Pink Sugar hoje?,eu poderia me perguntar.

Passei por toda a seção decosméticos e parei no rímel. Eu não usonenhuma maquiagem, só um brilho labialde vez em quando. Rímel pareciaalguma coisa que até eu poderia passardireito. Uma ou duas passadinhas, e euficaria com um visual novo. Escolhicastanho-escuro. Um presente para meu

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novo status.— Terminou? Vamos? — perguntou

Charlotte.— Vamos — disse a ela.Então, vergonha completa.Só havia um homem no caixa da loja.

Senti meu pescoço ficar vermelhoquando olhei para a cesta. Era tão óbviopor que eu tinha ido até ali. Aembalagem rosa e branca praticamentegritava para o mundo: Sarah ficoumenstruada!

Charlotte foi na frente e comprou asombra de olhos para ela e oschocolates para mim. Olhei rapidamenteao redor e botei um chiclete, uma

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câmera descartável e uma revista nacesta. O rapaz do caixa sorriu para mim,depois passou a embalagem pelo leitor.Pensei comigo mesma: tenho quedescobrir se é possível encomendar umsuprimento para um ano de absorventes,para não ter que passar por essetormento toda hora. Talvez Lisa saiba.Podemos fazer o pedido juntas.

A toalha de rosto na minha barriga jáestá fria, então eu a ponho de lado ebaixo a blusa do pijama. Pego meucaderno pautado (que agora escondoentre os colchões) e penso em escreveralgo para o trabalho do Sr. Wistler, ver

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se meu novo eu adulto tem algo melhor adizer do que meu eu criança. Afinal decontas, eu li o artigo sobre menstruaçãona Wikipédia. Fiquei aliviada aodescobrir que meus pensamentosestranhos são meio que normais quandose é uma mulher de verdade.

Os sintomas podem incluir cansaço,mudanças de humor, irritação,nervosismo, confusão, depressão, choroe ansiedade.

Na mosca! Tenho muitos dessessintomas, especialmente confusão. Porexemplo, comprei uma revista para mimquando fui à farmácia? Não. Nem olheipara ver o que estava pegando e

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comprei uma revista para donas de casa,em vez da Glamour. Para piorar ascoisas, tem nela uma reportagem grandesobre como parecer mais jovem. Comoisso vai me ajudar?

Depois que folheio a revista, nãoestou muito cansada, mas também nãome sinto muito bem. Estou com raiva,porém de ninguém em especial.

Tem uma página em branco nocaderno olhando para mim. O que foi?,me dá vontade de perguntar. Mas nãovou começar a conversar com ocaderno. Já converso com uma planta.Mando duas mensagens de texto paraLisa, conto sobre o que aconteceu e que

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comprei um rímel, mas ela não para defalar nos garotos do acampamento e emcomo está se divertindo nadando efazendo artesanato com alfinetes defralda. Bem, hoje estou muito bem semela e sei que ela vai ficar irritada porCharlotte estar me ajudando. Não querodeixá-la com raiva, talvez só com umpouquinho de ciúme. Quero que outrapessoa fique frustrada. Estou com raivade tanta coisa que não faz nem sentido.

Normalmente não me importo quandoouço o aparelho de som do papaitocando Beatles. De novo. Mas agoraestou com vontade de jogar uma bola debasquete naquela coisa idiota e quebrá-

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la em pedacinhos. Hoje pensei muito emSimon. Estou tentando entender o quesignifica um sonho que tive na noitepassada, no qual ele colocava umbilhete na minha mochila. Já sonhei commeu irmão antes, mas normalmente eleestá apenas parado me ouvindo. E achoque estou com raiva da minha mãetambém. Por causa dela, minha avó équem compra roupa íntima e meias paramim. Alô!, eu já sou grande demais paraisso e estou desesperada para comprarminhas próprias coisas. Mas com quemeu posso falar sobre isso? Resposta:ninguém.

Um sentimento de tristeza/raiva me

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domina mais uma vez, o que Charlottediz o tempo todo que é normal. Ela falouque eu devia aceitá-lo, porque nem todomundo consegue lidar com doissentimentos ao mesmo tempo. O que elanão sabe é que tenho o gene da loucura,que pode estar fazendo com que eu sintacomo duas pessoas diferentes. É umasensação pesada. Sou como um copod’água prestes a transbordar ao menortoque.

Eu me levanto e vou até a cozinhapegar algo para comer. Papai estasentado à mesa bamba idiota quando eupasso. Ele me olha com um sorriso ecomeça a rir.

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— O que aconteceu com você? —pergunta.

— O quê?— Em volta dos seus olhos — diz

ele. — Acho que não era isso que queriafazer.

Olho meu reflexo distorcido natorradeira. Há círculos de rímel emtorno dos meus olhos, que me deixamparecida com um monstro de um filmede terror.

Ele tenta esconder a boca com a mão,mas eu sei que está rindo.

— Acho que você devia lavar isso,meu amor.

Saio da cozinha o mais rápido

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possível.Bato a porta do meu quarto com

força. Sou tão idiota! Não sei muitosobre muita coisa, mas tenho quasecerteza de que uma mãe não teria rido demim. Então, sinto muito, Lucas McCain,ódio pode ser uma palavra forte demaispara meu pai, mas neste momento nãoestou preocupada em encontrar umsinônimo. Ódio serve.

E a minha mãe? Estou com muitaraiva dela. Era de se esperar que pelomenos ela pudesse me escrever coisasúteis. Contar sobre absorventes emaquiagem. Algo melhor que Doze anosé uma idade maravilhosa. Blá. Blá. Blá.

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Se ela achasse essa idade tão boa assim,não me faria passar por essahumilhação.

Então percebo que há coisa pior queter uma mãe que não pode aparecer naárvore genealógica. É ter uma mãe quenão aparece de jeito nenhum. E dissotambém entendo, sem dúvida alguma.

Querido Atticus,Esta carta vai parecer cheia deraiva, mas não é de você. Este éum daqueles momentos em que umconselho seu ajudaria muito. Nãotenho a menor ideia de o que devo

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fazer em relação ao meu pai. Euestava tendo um dia bom (algumascoisas interessantes aconteceramcomigo hoje), e meu pai teve queser a pessoa mais insensível doplaneta. Sei que você conheceumuita gente insensível emMaycomb e vai me dizer que osproblemas deles eram piores queos meus. E é verdade. Mas aspessoas que estão ofendendo asoutras na sua cidade(especialmente as que tratam malas pessoas negras) são ignorantes,

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como você diz. E nem conhecemquem estão xingando. Por isso lhepergunto: não é pior ser mau comalguém que você supostamenteconhece e ama? Bem, estouficando com muita raiva, mas éisso que eu sinto. Devia haver umalei que obrigasse as pessoas aseguir aquele ditado: Se não temnada de bom a dizer, é melhorficar calado. Se quer saber, achoque seria bem legal se issoacontecesse. Mas aí teria mais ummilhão de pessoas na cadeia.

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Você nunca ficaria sem clientes.(Apesar de eu achar que vocêseria o procurador nesses casos.)Os culpados (como meu pai)teriam que sentar no banco dosréus e seriam atacados por vocêcom perguntas como: “Na suaopinião, Sr. Nelson, o senhor achaque foi inteligente rir da vítimanaquele momento de desespero esofrimento?”

Consigo até ouvi-lo falandobem assim. Bem, pelo menos aversão de você no filme baseado

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no livro. Quase me esqueci decontar que eu o vi na tevê de novoontem à noite, depois que meu paidormiu. A imagem que faço devocê na minha cabeça e a da tevêestão misturadas. Espero que nãose importe. Aliás, você gostariado meu novo amigo, Finn. Ele nãoé insensível como algumaspessoas, mas adora saber apalavra exata para tudo. Ele disseque estudar uma palavra é comoabrir uma mala antiga. Se vocêquiser, pode continuar a tirar

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coisas lá de dentro e olhar paraelas como se fossem novas emfolha. Como Finn sabe que eugosto de moda, ele me explicouque é possível combinar palavrascomo se faz com roupas eacessórios. Sabe, eu acho que amaioria das pessoas usaacessórios demais quando fala.Você, não. Você tem a quantidadecerta de roupas simples.

Eu gostei especialmente dacena do tribunal no filme. Finn,meu amigo inteligente, disse que

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aquela também é a cena favoritade todo mundo. Eu gosto de sercomum assim. Queria poder estarnaquele balcão com Jem e Scoutpara ver você trabalhar. Sintocomo se eu estivesse lá. Por causado seu jeito de falar, tive que fazeruma lista das palavras que eu nãoconhecia. Bem, talvez elas nãosejam todas suas. Tenho quelembrar que você foi escrito porHarper Lee, mas, mesmo assim,para mim você ainda parece umapessoa real, de carne e osso.

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Boudoir foi a primeira. Há algumtempo, eu marco no meu exemplaras palavras que tenho queprocurar no dicionário. São tantasque meu livro não vai servir muitopara alguém que queira lê-lodepois, então será meu parasempre.

Estas são as palavras queprocurei:

UltrajePaliativoCabernetTenho que ver se encontro

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alguma uva cabernet aqui emGarland. Eu acharia legal pelomenos saber que comi algo quevocê também comeu. É estranho,eu sei. (Espero que não se sintaultrajado com isso. Rá, rá.)

Bem, obrigada por me ouvirsempre. Eu já me sinto umpouquinho melhor. (Mas aindaestou com raiva do meu pai.)

Um abraço,Sarah Nelson

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capítulo 22

Quando estou reclamando ou apenasdando minha opinião em voz alta, meupai sempre diz:

— Ah, sem drama!Mas ele não sabe de nada. Do meu

ponto de vista, a vida em si é muitodramática. Eu estou apenas fazendo meupapel.

Por exemplo: hoje o noticiário vaimostrar a reportagem sobre o julgamentode outra mãe que matou o filho. É

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estranho pensar no tanto de coisas quepodem acontecer em um dia quente noTexas, mas, sabe, é verdade. Alguémdeveria investigar se o calor tem algo aver com as pessoas matarem as outras.

Eu só fiquei sabendo dessa outra mãemais tarde, o que foi uma coisa boa.Cedo, eu simplesmente saí correndopela porta e dei uma olhada na casa dosDupree. O carrão verde compridocontinuava parado. Eu estava meia horaatrasada para a casa da Charlotte. Sóqueria um tempo a mais para mim, umbreve período de calma entre meu paisair e eu estar com outra pessoa. É umluxo. Precisava disso para melhorar o

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meu humor, que não está nada bom.Depois de meu pai ter feito umas mil

perguntas para o Finn, o suficiente parater certeza de que ele não era umassassino em série ou um repórterdisfarçado, os dois tiveram umaconversa agradável. Meu pai me contouque falaram principalmente de palavrase de quantos livros os dois tinham lido,e provavelmente do quanto erameruditos. Posso ouvi-los dizendo: Ah,olha só, como somos especiais eeruditos! Blá. Blá. Blá.

Erudição significa “grandeconhecimento obtido em livros”, o queeu sei bem, porque uma vez o Sr.

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Wistler disse que queria nos transformarem “eruditos cidadãos do mundo”. Otruque, segundo ele, era nunca deixarninguém ouvir você chamar a si mesmode erudito, ou iam achá-lo o contrário:ignorante. Então erudito, de certa forma,é uma palavra-problema.

A casa da Charlotte é muitofresquinha e cheira a cookies. Eu bemque poderia tirar um cochilo.

— Tente ler isso por uma hora antesde sucumbir à Tevelândia — dizCharlotte, me entregando um exemplarde O emblema rubro da coragem.

Ela diz que vou impressionar aspessoas se ler esse livro agora. Mas eu

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fico me perguntando se ela o escolheupelas palavras emblema rubro, porque,se for o caso, não foi engraçado.

É uma conspiração entre o papai,Charlotte e Finn. Todos os três, comsuas escolhas de livros metidos à besta.Não posso imaginar o que elespensariam de O valente libertino.

Pego o livro e me jogo no sofá dasala. Abro na primeira página e já estouentediada. Podia só ficar ali o diainteiro, bebendo Coca e comendosalgadinhos. Meio cochilando, esticadaque nem um cachorro. Podia mandaroutra mensagem para Lisa e ver se elaestá mais perto de beijar algum garoto

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do acampamento. Esperar até ouvir oaspersor de algum gramado ligar e saircorrendo pelos jatos de água até ficarencharcada. Seria uma perda de tempo,eu sei. Mesmo assim, parece um bomdia para fazer alguma coisa infantil,alguma coisa do meu antigo eu.

Ouço a porta de um carro bater ecorro até a janela. Não, não é o Sr.Dupree, como eu esperava. É Finn,subindo pela calçada. Ele está usandouma camisa de botão xadrez, bonita, eseus jeans surrados, que são do mesmotom de azul dos seus olhos. Sento denovo e me ajeito para não parecer tãopreguiçosa. Meu cérebro me diz: Por

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que não se lembrou de passar nem umbrilhozinho nos lábios? Qual o seuproblema?

Abro o livro de novo para deixarFinn impressionado.

Então calculo o momento exato defalar para que minha voz soe super-relaxada, e ele entra em casa.

— E aí.— Tudo bem?— Estou lendo.Agora eu sei que minha voz parece

natural.— Achei que você só lesse revistas.— Bem, não é verdade. — Um

grande sorriso aparece no rosto dele.

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Finn tem o tipo de rosto que faz vocêquerer sorrir. — E aí, você temnamorada?

— Você é bem direta, hein? — dizele, bem irritado. — É de família.

Se Finn soubesse o que mais é defamília, sairia da sala que nem umcriminoso, devagar e com as mãos parao alto.

— Você foi interrogado econsiderado digno — falo.

— Bem, fico feliz, acho — diz ele.— Imagino que é melhor ser diretomesmo.

— Vai ser muito fácil para aspessoas interpretarem mal as coisas se

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você não for.Quero dizer a ele que descobri essa

filosofia depois de me mudar muitasvezes. Você tem pouco tempo, então émelhor ir conhecendo logo as pessoas sequiser fazer amizade. Ser a garota semamigos nunca me ajudou em nada. Alémdisso, meninas sem amigas sempre sãovítimas dos dardos.

— E então? Namorada?— No momento, não — responde

Finn, o que deixa meu coração feliz. —O que você está lendo? — Ele vira acapa do livro. — Esse é bom.

— Eu devia ter lido mais, mas estámuito quente — comento. — Por que o

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calor deixa a gente sem vontade de fazernada?

— O verão é mesmo tempo depreguiça — diz ele.

Eu me pergunto se Finn consegue lera minha mente, pois é exatamente issoque estou pensando.

Ele tira um livro da mochila. Nãoconsigo ver qual é, mas é supergrosso everde, então deve ser da faculdade. Essetipo de livro não serve só para ler. Podeajudar a apoiar o macaco embaixo docarro quando você precisar trocar umpneu, coisa que meu pai já fez uma vez.

— Tenho outra pergunta — digo.— Não acredito! — diz ele, todo

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dramático.— Quando você pegou meu iPod e

colocou aquelas duas músicas nele?— Quando você e Charlotte estavam

fazendo alguma coisa supersecreta degarotas. — E depois ele completa: — E,por falar nisso, de nada.

— Como assim?— Achei a sua lista de músicas muito

fraca — explica ele.— É o que eu gosto.— Você não tem que ouvir o que as

pessoas acham que uma garota de dozeanos devia gostar, sabia? — diz ele.

Não posso lhe dar o gostinho desaber que até gostei um pouco das

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músicas que ele escolheu. Só as escuteicinco vezes.

Leio pelo que parece um milhão emeio de anos, mas na verdade é apenasmeia hora. Os regadores no gramado doSr. Gustafson ligam e desligam. Ocachorro que mora no jardim cercado doSr. Stanley late sem parar para o nada.Alguém na rua quica uma bola debasquete. Não consigo me concentrar napágina com todo aquele movimento láfora. Eu queria estar de pé no toco deárvore. Mas por outro lado também nãoquero desperdiçar o tempo que tenhocom Finn. Se eu acabar tendo que mentirsobre meu primeiro beijo, resolvi que

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Finn está entre os dois principaiscandidatos para o papel principal.

— Quer ver tevê? — pergunto. — Agente deixa baixo para não incomodarCharlotte. E prometo que depois eu leiomais.

— Por mim, tudo bem.Ligo a tevê, mas ela demora alguns

minutos para esquentar. Nunca vi umaengenhoca tão velha. É uma caixagigante de madeira que mantém uma tevêcomo refém dentro de si.

— Sugestões? — pergunto, commedo de escolher um programa quegrite: Eu tenho doze anos. O que euqueria ver era The Price Is Right,

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embora seja melhor em Jeopardy!.— O que acha de The Price Is Right?Pronto. Temos mais uma coisa em

comum. O apresentador anda saltitantepelo palco, aplaudindo ecumprimentando os competidoressortudos que querem mais do quequalquer outra coisa ganhar conjuntos demáquinas de lavar e secar roupas, umacama elástica ou um candelabro. Essessão os itens fáceis de adivinhar, masfica mais complicado quando chega ahora dos carrões e das viagens. Essespodem enganar muito. Meu pai sempreadivinha os preços dessas coisas lá emcasa (mas como ele pode saber, se

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nunca vai a lugar nenhum?).Uma mulher pula que nem uma

maluca depois de acertar o preço de umlaptop. Grande coisa! Todo mundo sabeisso. O programa faz um intervalo paraos comerciais. Um rápido boletim denotícias começa a informar as principaismanchetes. Eles sempre fazem isso pelamanhã, para que as pessoas preguiçosasque ficam vendo programas de auditóriopossam pelo menos ter uma ideia do queestá acontecendo no mundo.

Quando começo a me levantar dosofá para ir ao banheiro, aapresentadora, uma mulher bonita deterninho vermelho, me faz parar no ato.

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“Esta é apenas a segunda vez nahistória do Texas em que uma pessoa éacusada por esse crime. A primeira foio caso de Thomas Nelson, após ojulgamento de sua esposa, JaneNelson.”

E lá está ela, entrando na minha vidasem avisar e sem ser convidada. Umafoto da minha mãe usando uma camisabranca com uma parede azul-claro aofundo, do tipo que aparece em fotos decrianças pequenas na escola. Eu nuncatinha visto aquela imagem dela.

— Tenho que voltar para casa.Finn talvez tenha dito alguma coisa,

mas não consigo ver nem ouvir nada

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agora. Acho que é isso que acontecequando as pessoas dizem que estãoanestesiadas.

Eu vejo meu quarto cor-de-rosa e mevejo encaixotando as coisas, ouço oruído agudo da fita adesiva sedesenrolando e abraçando as laterais deuma caixa que vai ser carregada para onosso quinto endereço diferente.Pegando Planta e lhe contando que elavai ganhar uma janela nova. Vamos terque consertar os buracos no guarda-roupa do meu pai e conferir se osarmários da cozinha estão vazios.

Temos tanta coisa em que pensar.Vou virar aquela garota de novo. De

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novo.Finn desliga a tevê. Vejo meu reflexo

na tela. Pareço estar muito mais longedo que estou.

Fecho os olhos para não ter que olharpara mim mesma e ouço a voz daquelamenina má dizendo: “Ah, você é aquelagarota?” Algo no jeito como ela falouaquela me fez congelar no meio docorredor. Quando as pessoas fazem noveanos, acontece alguma coisa queaumenta a curiosidade delas. Umamenina enxerida entrou na minha vida, eela se chamava Gina Graham.

O armário da Gina Graham era bem ao

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lado do meu. O dela tinha tantas letrasG-I-N-A enfeitando que dava parapensar que ela não conseguia se lembrardo próprio nome. Eu já conhecia garotascomo Gina. São aquelas com cabeloloiro natural e compriiiiiido. Elasdominam o pátio. Anunciam para omundo que têm namorado, mesmo quevocê não esteja nem aí. São filhasúnicas. Não sorriem. São intimidantes. Edardos.

— Minha mãe me falou que a suamãe é aquela mulher que ficou louca —disse Gina. Eu só bati a porta do meuarmário e, em vez de falar alguma coisa,saí andando. Mas ela não desistiu. Foi

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correndo e parou bem na minha frente,botou sua cabeça superloira bem pertode mim e disse: — Você é loucatambém?

Eu disse a coisa mais inteligente emque consegui pensar:

— Cala a boca! Você não sabe doque está falando.

Sentia as lágrimas brotarem no fundodos olhos. De alguma forma, meu corposabia que eu não ia ganhar.

— Sei, sim. Você é aquela garota —berrou Gina, agressiva.

Eu fui para o banheiro me esconder.Fiquei um tempão chorando sozinha etentei pensar em maneiras de

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desaparecer, de me dissolver e passarpelas rachaduras nas lajotas do piso. Aílembrei que Gina poderia pisar em mim,então não era uma boa ideia.

Passei a aula seguinte inteira sentadaali, relembrando as palavras da Gina.

A mãe da Sarah é louca.Antes que o diretor viesse me

procurar, escrevi mentiras sobre Gina naparede do banheiro. Fiz com a mãoesquerda, para que parecesse a letra deum maníaco.

Não tenho ideia de como fui acabar nomeio da rua. Adoraria ver o replay. Eufui andando ou correndo? Não sei. O

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que sei é que de repente entendi meusonho com Simon. Ele estava tentandome avisar quando botou aquele bilhetena minha mochila. Com certeza é umsinal de loucura acreditar em sonhoscom meu irmão, mas eu acredito.Alguém ligue para o hospital e diga quevenham me buscar agora, mas eu sei queSimon ainda está ligado a mim de umaforma que não consigo descrever. Nãohá outra palavra para isso que não sejagêmeo.

Finn também me seguiu até aqui fora,e estamos parados no calor sem falarnada. Está quente demais. O cheiro daestação de tratamento de esgoto já está

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forte. Prendo a respiração, e as cólicasna minha barriga vêm em ondas. Tenhoque continuar em movimento ou meucérebro vai criar um filme de terrorchamado Todo mundo sabe da minhavida.

— Daqui a pouco vai aparecer umcaminhão de mudanças na frente danossa casa — digo a Finn.

Vejo papai carregando uma caixacom a palavra frágil escrita comcanetinha preta. Depois vêm o lugarnovo e uma pilha de jornais amassadosaos meus pés, na cozinha, enquantoresolvo se os copos devem ficar pertoda pia ou da lava-louças. Nossa

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correspondência está por aí, cada umatem uma etiqueta amarela com um avisode remeter para o novo endereço.

— Por que você acha que vai semudar?

— A gente sempre se muda.Tem uma pedra no meu chinelo, eu o

tiro com um chute e sinto o calor doasfalto subir pelo meu pé. Observo acasa em que vivo agora, tento vê-lacomo era no dia em que chegamos.

— Você sabe quem morava aquiantes da gente?

— Não.— São fáceis de identificar, sabia?

As casas alugadas...

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— Como?— É como ver alguém usando uma

roupa que foi moda dez anos atrás... E ogramado é sempre feio.

— Acho que o toco de árvoretambém é uma dica.

— É, ninguém teria um toco dessesde propósito, não é?

Subo no toco e sinto a brisa tocarbem de leve o meu rosto.

— Minha mãe não está morta —conto a Finn, agora com lágrimasescorrendo. Ele dá a volta e fica defrente para mim. — Ela só é louca, ou,se você não gostar dessa palavra,irreversivelmente inalcançável.

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— Sinto muito.— Minha família é estranha — digo.— Estranha. Incomum. Peculiar.

Diferente — declara ele. — Desculpe,não consigo evitar. Ei, eu apago asmúsicas, se você quiser.

— Não, pode deixar — retruco econtinuo. — Por favor, não conte paraninguém.

Mas aí percebo como meu pedido éidiota. O mundo sabe. Os alienígenas deoutros planetas sabem.

— Contar o que para quem?Justamente quando olho para ele,

Finn dá uma piscadela para mim. Euguardo isso no coração, de onde vou

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tirar mais tarde para olhar de novo.— Não quero voltar lá para dentro

— falo. — É como se a tevê soubesse.— Aquela tevê é tão velha que está

com problemas de memória. QuandoJeopardy! começar, ela já vai teresquecido.

Não me pergunte como eu sei, masacho que talvez ele possa ser o vigia dacripta dos segredos. Desculpe, Jimmy.Finn agora é o número um na minha listade namorados em potencial. Ele nuncacontaria.

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capítulo 23

Se eu for forçada a fazer o trabalho deárvore genealógica no sétimo ano, omundo vai saber o que eu já sei que éverdade. O gene da loucura está criandoraízes, fundando uma cidade dentro demim. Ruas perto dos meus pulmões. Umparque ao lado do coração. Montanhas-russas em volta do crânio. Mas, comoprovavelmente a gente vai se mudar,acho que o Problema 2 destas férias estáresolvido. Essa é a questão dos

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problemas. Quando um se resolve, temoutro pronto para tomar o lugar dele.

Agora, a única saída para não pensarnisso é não ficar parada. Eu desço dotoco.

— Aonde você vai? — perguntaFinn.

— Preciso de uma resposta — digo.A porta da frente dos Dupree é de um

belo tom de chocolate. Meu punho batena madeira. Então eu me dou conta deque deveria bater com menos força. Tap.Tap. Tap . Toco a campainha e ouço osom de sinos lá dentro, mas ninguémresponde. Ninguém. A casa estásilenciosa, e isso me deixa com raiva.

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Por que ninguém atende?Então há um movimento nas cortinas,

seguido pelo estalido da porta sendodestrancada.

— Sim — diz a Sra. Dupree abrindoa porta, com os olhos entreabertos porcausa da luz. — Em que posso ajudar?

— Olá — digo, insegura e trêmula.— É que seu carro não saiu do lugar.Fiquei preocupada.

O rosto dela desmorona, e ela torce otecido do vestido de ficar em casa.Então percebo que ela não está nem umpouco arrumada. Completamentedesconjuntada. O cabelo, o rosto e ovestido são todos de alguém que está

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dormindo faz tempo.— Sarah... — diz com esforço. —

Ah, querida, sinto muito por ter deixadovocê preocupada, mas...

Sua voz some, e o olhar baixa para ochão. Ela não consegue terminar a frase,mas dá para saber que a última palavraseria luto ou um de seus sinônimos.

— Podemos ajudá-la? — pergunto.Ela ergue os olhos, e eu percebo que é aprimeira vez que nota a presença deFinn. — Este é meu amigo, Finn. Eleestuda linguística e não é nem um poucoperigoso — digo, como se fosse a chefedos detetives e estivesse apresentandoas credenciais do Finn.

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— O Sr. Dupree — começa ela.Então seu corpo estremece e diz o

que sua boca não consegue expressar.Alguma coisa ruim aconteceu. Eu sei.

A Sra. Dupree faz um sinal para agente entrar. Nós três paramos no hall.Finn e eu esperamos que ela continueandando, mas isso não acontece. Naparede há um espelho bem grande e umcabideiro vazio. Vejo o reflexo da Sra.Dupree esperando para saber o quefazer em seguida. Neste instante, essepequeno espaço é o lugar mais solitárioda Terra.

— Vamos sentar, meninos, e eu voulhes contar sobre o Sr. Dupree.

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Já vi talk shows matutinos suficientespara saber que não há muita coisa adizer para uma pessoa de luto. Por maisque você diga É, eu sei pelo que vocêestá passando, mas vai melhorar, otempo cura tudo, não adianta. Mas poralgum motivo as pessoas se apegam aessas frases como salva-vidasemocionais. Alguém devia jogá-las nolixo. Elas já estão gastas. Eu não digonada, só deixo a Sra. Dupree falar.

— Não quero que vocês fiquemtristes por causa da minha perda — dizela. — Eu só queria que o Sr. Dupree

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estivesse aqui, sabem?Então as lágrimas escorrem por seu

rosto, e há um longo silêncio. Eu sei oque é perder alguém, eu podia dizer,apesar de saber que isso não ajudaria.Já fiquei deprimida, então qualquercoisa que ela diga só vai me fazerbalançar a cabeça e pensar: Sim, eu sei.Também já perdi alguém. Nós podíamosmontar um clube.

Por exemplo, eu me pergunto em queSimon e eu seríamos parecidos. Ficotentando imaginar as coisas de que elegostaria, para que eu possa fazê-las, jáque ele não teve a chance, como quandoentrei em um time de futebol.

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Há alguns retratos de nós dois quefico olhando sempre. Não sei como, masum dia vou levar uma dessas fotos paraum laboratório de criminalística, para ostécnicos fazerem uma daquelas deprojeção de idade, como fazem nas fotosde crianças desaparecidas nas caixas deleite, para que as pessoas saibam comoelas seriam hoje. Se eu gostaria de vercomo Simon seria hoje, com doze anos?Eu adoraria.

O rosto da Sra. Dupree agora estámolhado com lágrimas que não param deescorrer, e ela simplesmente deixa quepinguem no jogo americano em cima da

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mesa da cozinha, depois passa o dedo napocinha formada, enquanto explica comoo marido morreu. Em pouco tempo, aSra. Dupree começa a contar históriassobre o homem com quem viveu pormais de quarenta anos. E não se importaem dividir suas lembranças conosco,aqui e agora. Ela é um livro determinadoa ser lido.

— Além de fazer projetosmaravilhosos de marcenaria — continuaela —, ele também fazia canetas. Eu jácontei isso para vocês? Ele fazia canetascom madeira de pau-rosa boa e as davade presente de Natal.

— Eu não sabia que existia madeira

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de pau-rosa — digo.— Tem certeza de que não quer mais

uma maçã, querida? — pergunta ela,tocando o dorso da minha mão.

A diferença entre as nossas mãos écomo fogo e gelo. Ela trabalhou durodurante a vida inteira, e minhas mãosnão fizeram nada. Ela viajou muito, e eusó fiquei em casa. Espero que um diaminhas mãos sejam como as dela. Omais interessante tipo de mapa.

— Não, obrigada — respondo.— E seu amigo? Você quer mais,

rapaz? — pergunta ela.— Não, obrigado.A cozinha se enche de palavras não

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ditas. Elas pairam entre nós. Bolhas depensamentos à espera de uma cabeça.Estou acostumada a ter perguntas quenão posso fazer em voz alta, porquemoro com o meu pai. Só que agora asensação de ficar calada é boa. Minhaavó diria que estamos mergulhados emsilêncio. Gosto dessa ideia, e imaginoque com isso lavamos a tristeza do lutoda Sra. Dupree e nos livramos dosrepórteres que interromperam The PriceIs Right com notícias ruins. Ficamossentados ouvindo o relógio de paredeem formato de maçã fazer tique-taque,tique-taque.

Depois de mil tique-taques, Finn diz:

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— Sra. Dupree, tem alguma coisa quepossa fazer para a senhora aqui na suacasa? Precisa consertar ou mudaralguma coisa de lugar?

O modo como Finn termina a frasedemonstra muita vontade de ajudar.

— Ah, você é um doce mesmo! Meufilho está chegando este fim de semana— diz a Sra. Dupree. — Não tem muitacoisa para fazer. Tudo aconteceu tão derepente... Quando olhei para o lado, eletinha partido. Aí liguei para asautoridades, que levaram o corpoembora. Nós já tínhamos deixado tudoresolvido anos atrás. A única coisa quetenho que fazer é decidir o que vestir.

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Devia ser mais difícil, vocês nãoacham? Cuidar de alguém que morreu?Devia haver mais coisas a serem feitas.

Ela está chorando de novo, entãoseguro sua mão. É a única coisa em queconsigo pensar.

— Perdi meu pai há alguns anos —diz Finn. — E foi difícil.

Eu o chuto por baixo da mesa pordizer justamente a coisa errada:comparar uma morte com outra.

— Sinto muito por sua perda —retruca a Sra. Dupree.

Finn me lança um olhar de cachorroassustado, então sei que ele entendeu oque eu quis dizer.

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Examino a casa escura à procura defotos de família. A melhor maneira defazer amigos é fazer perguntas sobreeles. Uma foto poderia ser um bomponto de partida. A Sra. Dupree puxa amão e começa a alisar o jogo americano,já completamente liso. Percebo um anelde diamantes bonito no seu dedo anelar.Ele parece algo recém-nascido.Reluzente e novo.

— Essa é a sua aliança decasamento? — pergunto.

Ela encara as mãos, olhando paraelas como se tivessem sido grudadasagora mesmo.

— Nossa! Isto? É, sim, querida.

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Ela tira a aliança do dedo com muitafacilidade e a mostra para mim. Explicaque há um padrão de três diamantes, umrubi, três diamantes, um rubi. A Sra.Dupree conta que o marido quis rubis,porque ela ficava muito bonita devermelho. E diamantes, é claro, porqueele achava que ela brilhava como um.Era um anel de prata fino porque,quando eles se casaram, era só isso queele podia comprar. Quando fizeram dezanos de casados, ele lhe deu dez rosasde presente e entregou uma de cada vez.Junto com a décima lhe deu a aliançanova. É uma das histórias mais lindasque eu já ouvi.

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— Vocês dois querem mais umamaçã? — pergunta ela de novo.

Bem, desta vez seria simplesmentefalta de educação recusar. E, no lugar dosilêncio, nós três escutamos o somagudo e rascante de três pessoascomendo maçãs. Ficamos sentadosassim até ouvirmos Charlotte gritando.Vou correndo à janela da Sra. Dupree ea vejo parada no meio da rua, chamandomeu nome. Nossa, mas que vergonha!Finn e eu saímos e acenamos para ela.

— Estamos aqui com a Sra. Dupree— digo.

— Não acredito que vocês doissaíram assim desse jeito — diz ela com

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raiva. — Seu pai não está me pagando osuficiente para me preocupar com oslugares em que você possa estar.

Ela reclama mais, diz que eu devoligar para o meu pai imediatamente, e oque você estava pensando, Finn, saindocom ela sem nem deixar um bilhete?

Tenho que ouvir mais, com certeza,mas só vejo meu pai dando notas de dezdólares a Charlotte para ela tomar contade mim. Eu não sabia disso. Às vezessou burra demais.

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capítulo 24

Quando eu era mais nova, queria serastronauta. Não porque eu tivesse algumconhecimento especial sobre o espaço, oque não era o caso. Era porque eu queriaver a Terra inteira de uma só vez. Vifotos em um livro de como ela é vista doespaço e queria ver aquilo com meuspróprios olhos. Um turbilhãomarmoreado de azul e branco. Depoisouvi um astronauta dizer que podiaencostar na janela do ônibus espacial e

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esconder um grande pedaço do planeta.Dá vontade de saber se Deus faz isso devez em quando, só porque pode. Eletalvez até queira esconder certaspessoas apenas para ver como as coisasna Terra ficariam sem elas.

Esta noite eu esconderia Charlotte emeu pai. O papai acha que eu aindapreciso de babá. E não acredito que elaesteja sendo paga para ficar comigo. Éuma dor muito grande que me pegou desurpresa. E ela é cúmplice do crime.

cúmplice s2g. quem contribui deforma secundária para a realização docrime de outrem

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Papai chegou em casa cedo. Acheique falaríamos sobre a reportagem datevê, faríamos algum tipo de plano, e eudeixaria escapar que sabia que ele tinhaescondido de mim a história de babá,mas, quando ele entrou em casa e botoua pasta em cima da bancada da cozinha,só me deu um beijo na cabeça e disse:

— Não vamos falar sobre isso agora,tá?

— PBroom descobriu? Ela viu ojornal na tevê? — perguntei.

— Não tenho ideia — respondeu ele.— Vamos esperar para ver.

Esperar para ver significa: pare defalar nisso, Sarah, e mude de assunto.

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— Fomos visitar a Sra. Dupree esoubemos que o marido dela morreu —disse. — É muito triste.

— Ele era simpático — comentoupapai.

Meu pai tentava fingir que a vidaestava normal, como se não houvessemil e uma coisas a serem discutidas. Elefinalmente tinha se lembrado de trazercosteletas de porco para casa, o queacabou sendo horrível, porque temos opior fogão da história das cozinhas. Éinclinado para o lado esquerdo, entãovocê tem que prestar atenção sempre emexer a comida o tempo todo. O óleoescorre para um canto e, se eu não

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estiver atenta, a carne fica dourada numaparte e preta na outra, que foi o queaconteceu. Tivemos que comercosteletas metade boas, metadequeimadas.

Depois do jantar, tentei puxarconversa mais uma vez.

— Pai, você acha que algum repórtervai ligar para a gente?

— Você não precisa se preocuparcom isso.

— Eu preciso saber algumas coisas,como, por exemplo, se nós vamos nosmudar e tal.

— Não sei.Ele foi para o escritório como

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sempre e se trancou lá dentro.Sentei do lado de fora e fiquei

ouvindo enquanto ele conversava comos meus avós. Não havia muita coisaque eu pudesse anotar no caderno, só ummonte de uhum. Talvez ele esteja tãomelhor que isso não o incomode mais.Não, provavelmente não. Quanto menosele fala, mais aborrecido está.

Então, na minha opinião, eu tinha odireito de fazer o que fiz. Sempre hámaneiras de fazer uma pessoa falar.

Eu tenho as minhas.Primeiro, fui à garagem, peguei a

garrafa de uísque e comecei a derramá-la em Planta. Aí percebi que aquilo não

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faria nada bem para ela, o que mostraclaramente como sou idiota. Pedidesculpas, joguei o resto de uísque novaso e dei descarga. Flush! Foi embora.

Aí enchi de novo a garrafa com sucode maçã. Rá! Quero só ver quando eleperceber que não tem mais nada. Vamosver como meu pai se sente com as coisassendo trocadas sem que ele saiba. Masainda estou preocupada por embebedarPlanta. Vou ficar a noite inteiraacordada com ela para garantir quefique bem. Se as folhas estiveremmurchas de manhã, vou dar um Googlepara ver o que fazer.

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Está quente demais em meu quarto paradormir agora. Minha mente ainda estágirando em direções diferentes. Abraçomeu cobertor, querendo que ele meabrace de volta, mas aí fico com calordemais e chuto as cobertas para longe.Viro o travesseiro para o lado frio eaperto meu rosto no tecido, tentandoparar de pensar que todas as pessoas emGarland sabem o nosso segredo. JimmyLeighton e até o Sr. Wistler. Enfio acabeça no travesseiro, mas não adianta.

Por isso penso na única coisa queposso fazer agora. Tiro a tela da janela epulo para o quintal, levando Plantacomigo. Um raio de luar ilumina o

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gramado, e eu vou atrás dele. Estáquente do lado de fora, mas o ar tem umcheiro gostoso, como de grama recém-cortada, e eu penso: Por que nuncadurmo no quintal?

Boto Planta no gramado e me deitono jardim, me esticando como se fossefazer um anjo de neve em pleno verão. Océu está limpo e aberto. Hora dedesligar a mente como uma luz. A minhaé a única ainda ligada, ainda girandosem parar. Um cachorro late a algumasquadras de distância. Gosto desse som.Regular e seguro. É constante e nãomuda, quase como uma gravação.

Eu me pergunto se o papai me

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deixaria ter um cachorro. Um detamanho médio seria legal. Não tãogrande que me derrubasse quandochegasse em casa. Uma coisinha peludaa quem eu pudesse contar todos os meussegredos. Mas, por outro lado, não hásegredos de verdade. Não quando omaior deles pode interromper umprograma de tevê e me expor na frentede um estudante de linguística. Não háartigo de revista no planeta comconselhos sobre esse tipo de catástrofeem particular.

Um estalido baixo interrompe meuspensamentos. Acho que é um pássaro,mas não: é um homem na frente da casa

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de Charlotte. Sei que é você-sabe-quempelo jeito como seus ombros sãocurvados e pelo clomp, clomp, clompdas botas idiotas. Eu me pergunto comonão ouvi o carro chegando. Ele estájogando alguma coisa na janela, pegandoalgo no bolso e jogando várias vezes. Aluz dela finalmente acende. Eu ficodeitada bem abaixada e esticada nagrama para que ele não me veja.Charlotte abre a janela. Está tãosilencioso que consigo ouvir seussussurros. É como se eu estivesse emuma investigação policial, colhendoprovas.

— O que está fazendo?

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— Você me disse para vir e não fazerbarulho.

— Por que não usou a porta?— Achei que podia acordar alguém.— Minha mãe está viajando, lembra?Ela o manda ir até a porta como uma

pessoa normal, e ele vai.A luz da entrada acende, e ela

aparece nos degraus. Os dois se sentam,e ele a envolve com o braço.

— Eu queria conversar sobre... —diz ela, mas para no meio da frase edeixa o mistério pairando no ar.

Ainda estou imóvel e paralisada,desesperada para saber sobre o queestão falando. Mas eles não estão

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falando. Os sons que vêm da entrada dacasa são de gente chupando chiclete,mas será que eles estariam mascandochicletes agora? Como eu queria verisso bem de perto, ver como se faz. Sóouvir os barulhos sem ver a ação énojento.

— Não, para. Para — ouço Charlottedizer.

— Ah, vamos lá — diz ele. —Vamos lá.

Não ouço Christopher dizer nada.Levanto a cabeça só um pouquinho, bema tempo de vê-lo em cima dela.

— Christopher! — diz ela. — Não,agora não.

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Pelo tom da voz de Charlotte,percebo que ela está com problemas.Me pergunto se eu deveria fazer algumacoisa, tipo gritar. O que um detetivefaria agora? Com certeza não ficariapregado na grama, mas é o que eu faço.Eu me sentia do mesmo jeito quando erapequena e achava que tinha um monstroembaixo da cama esperando para mepegar pelo pé e me puxar para baixo docolchão. Minha estratégia na época,como agora, era ficar o mais imóvel emuda possível. Decido contar até vinte eme levantar. Vou me obrigar a fazeralguma coisa.

Então ouço mais gritos dela e um

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barulho surdo, como se alguém tivessecaído na varanda.

Ouço a porta bater. Depois, a vozfirme de Finn.

— Vai para casa.Se eu fosse Christopher, ficaria com

medo de Finn. Mas Christopher o xinga,depois diz que Charlotte só ficavaprovocando e fazendo doce e maisalgumas coisas. Viro um pouco acabeça. Ouço os passos pesados dasbotas de Christopher seguirem pelacalçada. A porta de um carro bate. Elefaz uma volta de cento e oitenta graus nomeio da rua sem saída, e o farol varrenosso quintal. Eu rezo para que ele siga

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em frente e não me veja.Charlotte está chorando e gritando

palavras completamenteincompreensíveis para o carro deChristopher. O que quer que ela tenhadito o faz frear, mudar de marcha evoltar de ré.

— Você vai se arrepender disso! —grita ele, com a voz clara como água.

— Vá embora! — grita Finn.Há o barulho de algo duro batendo

em metal, e o carro de Christopher saizunindo. Eu me apoio nos cotovelos evejo Finn jogando pedras no para-lama.

Eu queria poder ver a expressão daCharlotte. Os olhos dela dizem muito

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mais do que qualquer palavra podeexpressar. Ela entra na casa, e Finn ficaparado sozinho na calçada. A lua projetasua sombra no chão. Eu reúno toda aminha coragem e tento de alguma formasussurrar e gritar ao mesmo tempo.

— Finn!— Sarah?— Aqui.Acabei com o meu esconderijo, mas

tudo bem. Ele se vira e vem na minhadireção.

— O que aconteceu? — pergunto aele.

— O que você está fazendo aquifora?

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— Olhando para a lua e querendoestar lá.

Ele senta na grama ao meu lado. Eudeito, e ele faz o mesmo.

— Você pode tampar a lua inteira sócom o polegar. — Eu mostro a ele, e elefaz também. — E, a certa distância, vocêpode cobrir uma pessoa inteira.

— Você queria fazer isso também?Dou um sorriso como resposta,

apesar de ele não poder vê-lo no escuro.O ar fresco da noite nos cobre, e derepente Garland não parece uma cidadesem graça e entediante onde nadainteressante acontece.

“Sarah!”

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A voz de papai está cheia de raiva.Seu hálito provavelmente cheira a sucode maçã. Rá, rá! Quase consigo ver seurosto intrigado ao perceber que foienganado.

Escondo a lua atrás do polegar. Se eupudesse estar na Lua e bloquear a visãodo mundo inteiro, faria isso.

“Sarah, cadê você?”, grita meu pai.— Você vai responder? — pergunta

Finn.— Eu odeio meu pai, que bebe

demais por causa dela. Ele é muitoimaturo.

“Sarah!”— Além disso, não consigo ouvi-lo,

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porque estou fingindo estar no espaço.Então ficamos deitados ali, olhando

para as estrelas. O telefone de Finn toca,aquele bipe avisando que você recebeuuma mensagem. Ele olha para o celular eo guarda no bolso. Espero que meu painão tenha ouvido.

— Quem é?— Uma garota.— E aí?— E aí o quê?— Você gosta dela?— Acho que gosto. Ela é bem

esperta.Rá! Eu também posso ser esperta. O

telefone dele toca de novo, mas desta

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vez ele o desliga.“Sarah! É melhor você me

responder!”— Você não tem que entrar? —

pergunta Finn.— Ainda não estou ouvindo nada —

digo. — No espaço, não se ouvem ossons como na Terra. O som precisa dealgo em que viajar, como um gás ou umsólido.

— Bem, obrigado pela informação.Estou impressionada comigo mesma.— Feira de ciências. Terceiro lugar.A prova de que sou inteligente é uma

fita branca e brilhante.— Então como consegue me ouvir?

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— Você também está no espaço.Mas não com a outra garota e as

mensagens de texto. Ela devepermanecer na Terra e ficar burra,enquanto nós dois descobrimos umanova galáxia. Vou deixar Finn escolhero nome para a nossa descoberta, emboraobviamente eu saiba mais sobre oespaço que ele.

“Está bem, então fique no seuquarto”, grita meu pai.

Está bem. Vou ficar.O céu azul-escuro cintila com as

possibilidades. Diamantes no veludo.Finn descansa confortavelmente do meulado, como se quisesse estar ali. Minha

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mente se lembra de toda a cena e aguarda em segurança, para que eu possarever esta noite várias vezes.

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capítulo 25

De manhã, o ventilador no teto giraacima de mim com um ritmo irregularque parece dizer a-sua-hora-vai-chegar, a-sua-hora-vai-chegar. Eu odesligo e abro a janela, e tudo o queentra é um ar bem quente. Não querofechá-la. Preciso de mais espaço pararespirar, ou talvez de uma rota rápida defuga. Até onde sei, vou ficar nesta celacor-de-rosa pelo resto da minha vida.Ele vai ficar com raiva de mim. Vai

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ficar com aquele tipo de raivasilenciosa, que é a pior de todas. Não hámaneira de entrar na mente de umapessoa quando ela está calada. E, éclaro, vai ser culpa minha. Eu sabia quebêbado era uma palavra-problema.

Ontem à noite, quando entrei, ficamosparados no corredor estreito, eu em umaponta e ele na outra, segurando a garrafavazia, como se estivéssemos em umduelo, prontos para sacar nossosrevólveres.

— O que você estava fazendo láfora? — perguntou ele. — Por que nãoentrou quando eu chamei?

Usei meu direito de permanecer

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calada e fiquei esperando ouvir o vidroquebrar, ver o estilhaçar de milpedacinhos na parede. Já havia um lugarna tinta que alguém tinha remendado epintado por cima.

— Você quer me contar algumacoisa? — disse ele.

— Não.— Tem certeza?— Acho que meus atos já disseram

tudo.— Não banque a espertinha comigo,

Sarah!— Então não banque o bêbado

comigo, pai!Foi como se outra garota de Garland

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tivesse dito aquelas palavras, não eu.Não sou tão corajosa assim. Mas a outragarota que parece comigo, bem, ela eracorajosa. Ela podia falar palavras-problema sem pensar duas vezes.

Depois do que pareceu um século,meu pai veio até mim e me deu umabraço apertado. O oposto do que vocêesperaria em um duelo. Senti o cheiro dacolônia que dei para ele no último diados pais, uma marca que descobri emuma dessas propagandas de revista quevêm com uma amostra do perfume.Quando o abraço terminou, ele mesegurou com os braços esticados e acabeça baixa. Então me deu boa-noite,

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voltou para o quarto e fechou a porta. Euo ouvi levantar de manhã, tomar umbanho, abrir a porta da garagem, querange, e sair de carro sem dizer nada.Sei por experiência própria que oscastigos atrasados do papai são ospiores, o que significa que vou ter umdia inteiro para sofrer.

Só o que posso fazer esta manhã étentar descobrir o que aconteceu entreCharlotte e Christopher. Quando mandeiuma mensagem de texto mais cedo, elarespondeu que não estava se sentindobem. Perguntei se Christopher passarialá, o que eu tinha certeza que não iaacontecer. Ela só respondeu que o amor

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é difícil. Nada do que ouvi noitepassada parecia ter a ver com amor.Mas, afinal, o que sei eu sobre amor erelacionamentos? Resposta: nada.

Eu tinha sete anos quando meu pai sedivorciou da minha mãe.

Ele me disse com a sua voz maiscalma que tentaria tornar a vida dela omais suave possível. A palavra grudouno meu céu da boca. Uma vida suave.Imagino que fosse o termo certo. Suave.

suave adj. liso e agradável ao toque;

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brando; que apresenta equilíbrio; queapresenta traços singelos, sutis

“Eu devia ter feito isso há muitotempo”, disse ele.

Quando o meu pai levou os papéispara ela no hospital, eu observei os doisa distância. Estou me lembrando de maiscoisas agora, encaixando as peças doquebra-cabeça que é a minha mãe nasfolhas deste caderno. Aquela foi minhasegunda visita ao hospital. Nós nossentamos do lado de fora. Eu li um livroenquanto ele ia até lá, e os dois sefalavam.

Quando tirei os olhos do livro,

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p e ns e i : Lá está um belo casalconversando. Daria uma bela pintura.Mas aí consegui vê-la desmoronar umpouco, as mãos pousadas no colo,brincando com um pedaço de papel,dobrando e redobrando-o várias vezes.O médico nos disse que minha mãe tinhaparticipado de algumas aulas deorigami, o que me pareceu estranho: porque você assistiria a uma aula paraaprender a dobrar um pedaço de papel?Mais tarde, o médico nos mostrou seuspassarinhos e suas borboletas, cada umcriado por ela mesma. Havia dezenas edezenas de dobraduras na cabeceira, nobatente da janela e arrumadas

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artisticamente em cima da cômoda.Roubei duas e as escondi entre aspáginas do meu livro.

Enquanto meu pai falava, os dedos damamãe se mexiam como se tivessemdecorado os giros e as dobras, como sesoubessem exatamente como comandar opapel para que ele tomasse certa forma.Em determinado ponto, o rosto dela sevoltou para o céu, e ficou claro que foi omomento em que ele tinha dito a palavradivórcio, uma das principais palavras-problema.

O papai usou sua aliança decasamento até o dia em que o divórciofoi concluído. Eu sei porque perguntei

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naquele dia se podia ficar com ela paramim. Ele a tirou imediatamente, pôs napalma da minha mão e foi para o quartoencher a cara de uísque. Ele não deviafazer isso, é claro. Ouvi a minha avó lhedizer que não fizesse, falando tão alto aotelefone que dava para ouvir cadasílaba. Mas ele a ignorou, e para mimnão parecia ser uma coisa tão ruim fazerisso no dia em que o casamento deleacabou. Eu só esperava que aquela fossea última separação que eu fosse ver.

Eu guardei os passarinhos de origamie a aliança de ouro dele na minha caixade coisas importantes, incluindo ascartas e os recortes de jornal sobre o

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julgamento da minha mãe e depois sobreo dele, também. Não tenho certeza depor que era importante para mim teraquilo, mas parecia errado jogar fora, oque ele tinha dito que ia fazer. Euachava que devia guardar aquilo quealgum dia o tinha feito feliz. Ossentimentos tristes não durariam parasempre, pensei.

Mas, como eu disse, o que sei eusobre relacionamentos?

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capítulo 26

Esta é outra coisa que a gente tem queaprender por conta própria: você podefazer todo tipo de planos, mas, se temdoze anos e nenhum carro, é melhoresquecê-los. Está à mercê de alguémcom carteira de motorista. Mesmoassim, é o que eu estou fazendo nesteexato momento, planejando, apesar dePlanta concordar que isso é infrutífero— a minha nova palavra favorita.

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infrutífero adj. que não dá frutos;incapaz de produzir resultado, ineficaz,sem sucesso, estéril

Às vezes a gente descobre umapalavra nova e pensa: onde você esteveminha vida inteira? Infrutífero é umapalavra dessas. Muitas coisas que fizforam infrutíferas. Como hoje, escreverminha lista de opções para quando nosmudarmos. Treinar escrever meu nomedo meio com um R todo enfeitado comoinicial para esconder das pessoas quesou filha de Jane Nelson. Aliás, estoupensando em passar a usar o nome Rose.Mas Rose Nelson parece nome de velha

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que usa chapéu para ir à igreja. Já vialgumas delas na igreja dos meus avós.Talvez existam outras opções. Maneirasde me disfarçar.

Agora que Garland conhece meusegredo, também estou arrumando minhamala para partir. Depois de conversarcom Planta, concordamos que é uma boaestratégia nos mudarmos para evitarrepórteres enxeridos e dardos do mal.Meu plano é ir para a casa da tiaMariah, o que não seria exatamente fugirdo papai, mas fugir para a casa de outrofamiliar. Até Scout e Jem tinham sua tiaAlexandra para ajudá-los enquantoAtticus trabalhava. Esse vai ser meu

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argumento lógico quando descobriremque desapareci.

Ah, eu só fui visitar a família, o quenão é nada perigoso e, na verdade,facilita a sua vida, pai. Você podemandar minha correspondência paracá, por favor?

Esse plano ainda tem o bônus desolucionar o Problema 2, que ressurgiucom mais força. Imagino que vou fazer osétimo ano na cidade da tia Mariah,onde não existe nenhum projeto deárvore genealógica para acabar com aminha vida.

Se não fosse pelo computador, euestaria perdida, mas não, não estou.

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Tenho os horários dos ônibus daGreyhound e o endereço dela, que anoteino meu diário verdadeiro. Com certezaela vai me ajudar quando eu chegar. Seique vou arrumar problema com o meupai, mas acho que é melhor se informarprimeiro e enfrentar o problema depois.Ouvi papai dizer mais de uma vez para avovó: “É melhor pedir desculpas depoisdo que permissão antes.” Quando falaisso, minha avó revira os olhos como seele tivesse dito as palavras maisirritantes do mundo.

— Por que você tem que ser tãoteimoso, Tom? — perguntou ela da

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última vez. — Era um emprego bom, evocê simplesmente se demitiu. Bonsempregos de professor como esse nãoaparecem assim, todo dia.

— Foi decisão minha.— Você vive fechado no seu

mundinho. Vive fechado em uma caixa.— Estou protegendo o que ainda me

resta.— Não ache que eu não sei que você

ainda está bebendo além da conta.Corta. Corta. Corta. Mais cenouras

em uma pilha para ela.— Bem, desculpe por decepcioná-la.Clique. Clique. Clique. Mais cubos

de gelo em um copo para ele.

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Você não precisa ser a Rainha do Óbviopara entender que ele não é louco pelamãe nem pelas opiniões dela. Isso devefazer você se perguntar por que elesempre achou uma boa ideia me mandarpara a casa dos meus avós todo verão.Além disso, ela também bebe umvinhozinho de vez em quando, entãocomo você pode dizer a alguém para nãobeber quando também toma umas eoutras?

Essas são perguntas que tenho no meudiário falso, só para o caso de eleespionar meu quarto. Será que os paisdo meu pai não respondiam às perguntasdele? Se sim, o que ele fazia? Quero

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muito resolver o mistério dorelacionamento deles. Mas agora voufazer isso sem me aproximar. O que sechama conseguir provas circunstanciais,coisa que terei bastante tempo para fazerquando tiver ido embora.

Enquanto estou ocupada planejando efazendo o café da manhã, ouço umabatida na porta. É Finn, me informandoque Charlotte vai tirar o dia de folga,então vou ter que aturá-lo. Sinto um friono estômago, porque não considero quepassar um tempo com ele seja ter queaturá-lo.

— Tudo bem com ela? — pergunto.Quero saber se ele vai me contar as

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partes que não vi enquanto os espionavano jardim.

— Ela teve uma briga feia comaquele cara. Não acho que voltaremos avê-lo — explica Finn. — Já vai tarde.

É claro, eu só acredito vendo. Lisame contou que a primeira briga nuncavale. Por alguma razão, você tem quepassar por isso duas vezes para valer.

— Bem, a minha avó sempre diz quevocê deve ter duas caixas, uma marcadacom “Bem-vindo” e a outra com “Já vaitarde”.

Eu me pergunto como posso ter ditouma coisa tão careta. É por causa dasmás notícias. Mas ele sorri mesmo

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assim. Eu fiz o Finn sorrir.— Enfim, temos uma tarefa para hoje

— diz ele. — Não quero parecerpreguiçoso. A Sra. Dupree precisa deajuda para encaixotar seus livros. Disseque podemos ficar com os quequisermos e depois vamos doar o resto.

Ele me dá um livrinho de capa dura.— Já peguei esse para você.Você não vai acreditar, mas é O sol é

para todos, de Harper Lee. Uma cópiade capa dura de verdade.

Abro com cuidado, passo a mão pelafolha de rosto e sinto o cheiro de livrovelho, que é praticamente indescritível.A página seguinte tem algumas palavras

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escritas à mão. Não sei por quê, mas vera assinatura me deixa sem fôlego etambém faz parecer real, o que, é claro,ela é. Quero tocá-la como toco aspalavras escritas pela minha mãe, paraver se consigo visualizá-la com a canetaem punho enquanto as escrevia ali.

Com amor,Nelle Harper Lee

— A Sra. Dupree realmenteencontrou a autora uma vez — diz Finn.

Trato o livro com cuidado e deixo aspáginas se abrirem onde quiserem. Elas

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param em um trecho delicado. Isto foi oque li:

“Nossa mãe morreu quando eu tinhadois anos”, diz Scout. “Por isso nuncasenti sua falta.”

— Achei muito pungente — fala ele.— Pensei que talvez pudesse ajudar.

— Com o quê? — pergunto.— The Price Is Right.— Ah.— Foi uma ideia boba — diz ele.— Não, não foi boba — falo. —

Obrigada.Tento me lembrar de procurar

pungente no dicionário. Minha mentegira, e eu fico com vergonha. Não sou

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forte como Scout. Sinto falta da minhamãe o tempo todo. Cada vez mais, àmedida que vou ficando mais velha.Talvez se eu tivesse um irmão como Jeme um pai como Atticus... Talvez aí eufosse como Scout.

É estranho como eu compartilho essesegredo com Finn. É estranho que ele medê um presente de palavras. Tento melembrar do que sei sobre garotos. Noverão passado, li um artigo em umarevista intitulado Seis segredos que elenão vai contar a você. Eu recortei apágina e a usei como marcador de livrosaté decorar a lista.

1. Ele já gostava de você

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muito antes de falar isso.2. Ele gosta de fazer longas

caminhadas na praia.3. Ele gosta de carinho, sim.4. Ele prefere não jantar na

casa da sua mãe.5. Ele acredita que é o único

homem com quem você jáficou (ou prefere pensarassim).

6. Os gestos dele sempre vãorevelar mais do que aspalavras.

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Mostrei o artigo para Lisa também.Nós analisamos cada item em busca depistas. Ela disse: Ora, para começar,por que ele ia querer jantar com aminha mãe? Faz sentido.

Agora levanto os olhos do livro parao rosto do Finn. Sou esperta o suficientepara saber que não devia dizer nadaalém de muito obrigada. Ele me olha deum jeito diferente quando digo isso, e eume pergunto se ele vê meus sentimentos.

— Enfim, todos nós temos grandessegredos — diz ele.

— É mesmo? Qual é o seu? —pergunto. — Tem uma tatuagemescondida em algum lugar?

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Ele se apoia no batente da porta eolha para os próprios sapatos.

— Meu pai se matou quando eu tinhaonze anos.

Então o tempo espera que ele faleoutra vez. Esse é o tamanho do segredo.Ele precisa sair devagar.

— Parece que sou a cara dele, o queé um problema e tanto para minha mãe— diz. — Ela ainda tem que viver comalgo que a faz se lembrar muito dele,sabe, queira ou não. Por isso, quandoele morreu, eu meio que perdi os doispais, entende? Fiquei com raiva dosdois, mas isso não ajuda. Talvez sejaassim com seu pai também.

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Eu engulo em seco. Esse é o tipo deinformação que deixa você com vontadede correr para longe e ficar a sós comela, dissecá-la e decifrá-la para tercerteza de que entendeu direito.

— Que bosta — é tudo o que consigodizer.

— Concordo com a sua escolha depalavras — diz ele.

— Pelo menos seu segredo não correo risco de ser anunciado para o mundono meio de um programa de tevê.

— Touché.Percebo que estou com uma sensação

pesada no peito e uma leveza noestômago, tudo ao mesmo tempo. Não

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posso garantir, mas acho que o amor éalguém que entende você. E acho queesse alguém está parado bem na minhafrente.

— Sorvete. A gente devia tomarsorvete — digo.

— Sem dúvida.Apesar de mal ter acabado de tomar

café da manhã, preparo duas taças bemgrandes de sorvete de flocos e nossentamos nos degraus da varanda,comendo e falando sobre livros. Depoisencaixotamos cem livros da Sra.Dupree, o que leva uma eternidade,porque temos que examinar um a um. É omelhor dia da minha vida.

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Querido Atticus,Há problemas em Garland. Euqueria que fosse o tipo deproblema que um advogado comovocê pudesse resolver. Você temideia de quantos advogados agorafazem comerciais na tevê, gritandosobre merecer justiça e conseguirbotar a maior quantidade dedinheiro possível no seu bolso?Bem, essas coisas existem deverdade. Não gosto nem um poucodesses anúncios, e de uma coisaeu tenho certeza: você nunca seria

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um advogado assim. Eu adorariajogar cem exemplares do seu livrona cara deles. Você nuncaprecisaria fazer um comercial. Sehouvesse um crime de injustiça oualgo assim, você saberia o quedizer para ajudar a resolver o meuproblema. Diria que meus atos têmmenos a ver com o modo como mesinto e mais com o que é certo. Ocerto não é óbvio nessa situação.Seria bom ter Scout ou Jemcomigo agora. Eles saberiamcomo é a vida em uma situação

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como a minha, e isso é o que maispreciso. Alguém que realmenteveja tudo do meu ponto de vista.Por que você não pode ser meupai? Bem, chega disso, você diria.

Então aqui está o que posso lhecontar. Passou uma reportagem natevê sobre a minha mãe. Não tenhoideia de por que as pessoasprecisam reviver essa históriavelha e empoeirada. Não acho queacrescente nada às outrasreportagens sobre outras mães,mas alguém nos prédios onde se

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escrevem as notícias discorda.Como não sei o que meu paiplaneja fazer, estou pensandonisso por conta própria.Sinceramente, meu plano ésimples. Vou morar com a minhatia por algum tempo. Se tudocorrer bem, talvez fique lá parasempre. Seria bom morar com umamulher. Sei que você entende,porque deixou sua irmã,Alexandra, ajudar a criar Scout eJem. Na verdade, tirei a ideia deficar com a minha tia do seu livro.

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Sem querer ofender, mas às vezesacho que Scout não sabe a sorteque tem por ter uma mulher paraajudá-la a se tornar uma moçadireita. Eu queria poder conversarcom o meu pai sobre isso, Atticus,fazê-lo ver as coisas como euvejo, o que obviamente nunca vaiacontecer.

Um abraço,Sarah Nelson

PS: Uma pessoa disse outro diaque uma varanda não é realmente

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sulista se não tiver samambaias.Você concorda? Será que eu devoir ao Alabama para ver com meuspróprios olhos? Espero que sejaverdade. Eu me dou muito bemcom plantas.

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capítulo 27

O papai está passando o tempo todo noescritório com a porta trancada. Ouçobarulho de digitação e conversas em vozbaixa, mas não tenho coragem de pegar aextensão para ouvir a outra voz, entãonão sei o que está acontecendo. Ele estáfazendo planos, assim como eu. Nãofalamos sobre isso, mas sinto algochegando. Algo grande. Estou com medode contar para Planta que, de um jeito oude outro, vamos acabar nos mudando.

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Ela está se acostumando com a janela domeu quarto. Tirando a noite do uísque,Garland tem sido boa para ela. Bem,Planta sabe quanto fiquei desesperadapor causa do trabalho da árvoregenealógica do sétimo ano, por isso seique vai entender.

Outro fato estranho foi ter encontradoo nome de PBroom no nossoidentificador de chamadas. Isso nuncaaconteceu antes, por isso não sei se ébom ou ruim.

Resolvi que só posso me mudar paraa casa da tia Mariah depois do enterro.Se tem uma coisa que quero que elesdigam sobre mim é: como ela foi boa em

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ter ficado para o enterro do Sr. Dupree.Além disso, a Sra. Dupree me convidoupara ajudá-la a fazer tortas de maçãhoje, e pareceria suspeito se eurecusasse. Deixei um bilhete para o meupai e atravessei a rua sem saída. Oconcreto quente já estava fervendo, e medeu vontade de quebrar um ovo e vê-lofritar.

Há mil cheiros doces na casa da Sra.Dupree: baunilha, café, canela, maçã ecravo. O filho dela tem muita sorte.Aposto que ele tinha comida deliciosano almoço todo dia e um prato debiscoitos quentinhos sempre na mesa. Eusei que ela o ama tanto assim. Há fotos

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da família por todos os lados, asparedes são cobertas por tantosquadrinhos que não sei qual é a corverdadeira da casa. E os porta-retratosem cima da lareira estão arrumadosexatamente do jeito que eu faria. Bem defrente, para que você tenha que parar eolhar.

Eu observo a Sra. Dupree esticar amassa de torta com seus dedosressequidos e surpreendentementefortes. Ela é mais forte do que sepensaria de uma senhora de idade.Quero ser honesta com ela, perguntar sepode me ensinar, me presentear com oútil conhecimento da cozinha antes que

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seja tarde demais e a única receita queeu possa passar a alguém sejahambúrguer de micro-ondas, que não éreceita coisa nenhuma. Se meu paigostasse de ver o canal de culinária, emvez de filmes de caubóis, talvez eusoubesse mais sobre cozinhar do quesobre jogar pôquer.

Agora preciso aprender a prepararuma torta de maçã. É uma coisa urgente.É algo que toda garota deveria saber,além de pregar um botão e passar rímeldireito. Antes que eu me dê conta, jáestou perguntando:

— Se a senhora tivesse uma filha, oque diria a ela?

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A Sra. Dupree sorri.— Ah, deixe-me pensar — responde.

— Bem, eu diria: sempre que compraruma blusa nova ou algum creme paraficar bonita, vá e compre um livro namesma hora. Também é importanteembelezar a mente, não acha?

Não há ninguém no mundo como aSra. Dupree. Ninguém. Uma garota podeaprender muito com ela.

— Por falar nisso, seu amigo Finn medisse que você está lendo o livro daSrta. Lee — comenta ela, com os olhosconcentrados na massa.

— Estou.— E o que está achando? —

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pergunta.— Gosto da Scout. E gosto da cidade

onde eles moram, Maycomb. Elespasseiam pela cidade inteira, sabe? Eugostaria que a gente caminhasse maispor aqui.

Não conto a ela quanto Atticussignifica para mim. O que conto é quantoeu gostaria que tivéssemos uma casamisteriosa no quarteirão, como a de BooRadley. A casa dos Stanley, com o matocrescido demais, é o mais próximo quetemos de algo perigoso, mas éprincipalmente por causa de todasaquelas abelhas e aqueles insetos. Se euusasse a imaginação, poderia pensar em

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algo assustador acontecendo atrás dosarbustos. E também há aquela casaestúpida com a planta em cima do toco.Para a minha total irritação, ela voltoupara o lugar, carregada de floresamarelas.

Enquanto falo, a Sra. Dupreeconcorda com reconfortantesuhhhummmmmm, que me deixam comvontade de continuar.

— Scout é um pouco como eu, criadaapenas pelo pai.

Mas ela era mais corajosa, comcerteza.

— Verdade. É verdade. Ela é umamocinha determinada.

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— Eu quero escrever para ela —digo. — Para a Srta. Lee, quer dizer.

O rolo de massa para de girar, e aSra. Dupree olha para mim, através demim.

— Você deveria fazer isso, Sarah. Aspessoas nunca deviam ter parado deescrever cartas, mesmo aquelas que nãotêm a intenção de enviar. Deviamescrever principalmente essas.

O Sr. Wistler gostaria da Sra.Dupree. Por que eu não passei maistempo com ela antes? Ela é maravilhosae simpática, e agora eu vou embora.Talvez não seja para sempre. Eu poderiapassar um ano fora, me tornar uma aluna

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anônima do sétimo ano, e depois voltarcomo uma pessoa inteiramente nova.

— Você gostaria de me ajudar com atorta, Sarah?

O que eu gostaria é de me enroscaraqui e me esconder, ler todos os livrossob este teto, aprender todas as receitasque ela sabe.

— Sim.Ela põe um pano de prato em volta da

minha cintura como um avental e oprende nos bolsos de trás do meu short,depois fica atrás de mim e colocaminhas mãos na posição certa para usaro rolo de massa. Sinto mais felicidadedo que uma pessoa pode suportar.

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— Você é muito gentil em me ajudar— elogia. — Esta vai ser para o seu pai,está bem?

— Não é problema nenhum — falo.— Que mocinha doce você é — diz a

Sra. Dupree. — Tão bem-educada. —Dizer isso a faz chorar, o que me dávontade de chorar também. — Ah, medesculpe. Estou chorando por qualquercoisa nos últimos dias.

— Tudo bem — digo a ela.Sei exatamente como ela se sente.

Outra pessoa em casa com você às vezespode fazer uma grande diferença.

Colocamos duas tortas no forno, e eulavo a louça enquanto ela fica sentada e

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seca os olhos com um lenço.— Aquele rapaz simpático, Finn,

lembra meu filho — comenta ela. — Eleé muito bonzinho.

— Muito obrigada por me deixarficar com aquele livro especial.

— O Sr. Dupree gostaria que vocêficasse com ele. Por que você sabe queé especial. Olha, acho que temos umabiografia da Nelle em algum lugar, oque, acho, seria um belo complementopara sua biblioteca.

A Sra. Dupree dobra o lenço em umquadrado perfeito.

— Se o Sr. Dupree estivesse aqui,saberia exatamente onde o livro está.

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Ela se perde em pensamentos,sentindo a morte do marido como setivesse acabado de acontecer. Queroabraçá-la apertado, de um jeito quenunca tive vontade de abraçar ninguém.Procuro em meu cérebro a coisa certa adizer, mas tudo o que sai é:

— Como a senhora descreveria o queacha mais interessante na história dela?

Eu pareço idiota, eu sei, com aspalavras do Sr. Wistler saindo da minhaboca idiota neste momento idiota.

A Sra. Dupree leva um dedo aoqueixo e pensa na minha pergunta porum instante.

— Uma coisa é o relacionamento

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com sua mãe. Até onde sei, a mãepraticamente a ignorava — conta a Sra.Dupree. — E as irmãs a salvaram duasvezes de se afogar. Pelo menos é o quedizem os rumores. O Sr. Capote, amigodela, disse isso, mas, sobre essascoisas, nunca se sabe. As pessoasadoram uma boa fofoca, porque isso asfaz se sentirem especiais por um tempo.

Cara, eu entendo exatamente o que aSra. Dupree está dizendo. E agora, éclaro, quero saber mais sobre TrumanCapote também.

— O que você precisa lembrar,Sarah, é que a Srta. Lee escreveu umótimo livro, e isso é o que realmente

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sabemos. Isso é um fato.Normalmente, eu abaixaria os olhos e

ficaria olhando para o chão, mas encaroseu olhar acolhedor. Eu me sinto nua. Aparte da minha vida que envolve ter umamãe louca não vai sumir, não importa oque eu faça. E a mesma coisa vale parao meu pai. Os noticiários sempre vãonos seguir. Estou começando a achar quetalvez seja uma boa ideia que o papai eeu moremos em lugares diferentes. Paraque eu possa seguir com a minha vida.Às vezes, nos filmes de faroeste, doiscaubóis resolvem se separar e tomarcada um seu caminho. Isso confunde aspessoas que estão perseguindo os dois.

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Isso torna mais difícil segui-los e osdeixa, de algum modo, mais seguros. Pormais que eu não queira ir embora deGarland, me preparar para partir é acoisa mais inteligente a fazer. Vou terque pesquisar o que Harper Lee fez emrelação à própria família.

— Sarah, você está bem? — perguntaa Sra. Dupree.

Eu percebo que estava viajandocompletamente de novo.

— Ah, estou — digo. — Ela ficoulouca?

— Quem?— A Srta. Lee? Por causa da mãe

dela?

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— Por Deus, não, querida! Por quevocê diria algo assim?

— Essas coisas são de família.— Bem, isso pode acontecer, mas as

pessoas em geral são o que decidem ser,não importa de onde vieram.

Tenho mais um milhão de perguntas.Minha mente escreve uma lista de fatos:

Tem outra pessoa no mundo quesobreviveu como eu.

Ela escreveu um livro.Ela não é louca.— Aviso quando encontrar a

biografia — diz a Sra. Dupree, mas jáestou me vendo com a biografia nabiblioteca no minuto em que conseguir

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uma carona com Finn ou Charlotte.Nós duas nos sentamos à mesinha

quadrada, enquanto as tortas assam e orelógio em forma de maçã faz tique-taque. Sou pelo menos esperta o bastantepara fazer a ela mais perguntas sobrepara onde já viajou e deixo que ela falesem interrompê-la, para que minhamente possa vaguear livre durante algumtempo. Não tenho ideia de como jáposso sentir falta de uma pessoa quandoainda estou bem do lado dela, mas eusinto. Estou com saudade dela agora eainda nem fiz as malas. Ela toca aqueleponto dolorido onde deveria estar minhamãe.

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capítulo 28

É sábado de manhã, e estou fazendocompras com Charlotte. Ela diz que quersapatos novos para usar no enterro doSr. Dupree no domingo, mas sei que nãoé isso. Ela quer ir ao shopping parapassar pela Wilson’s Western Wear edeixar que o libertino nada valente dêuma boa olhada no que está perdendo.Charlotte diz que eles terminaram, masnão tenho certeza. Ela passou brilho noslábios e perfume, e não se arrumaria

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toda só para ir ao shopping com umamenina de doze anos. Até eu sei disso.

Primeiro vamos ao Starbucks tomarum latte duplo com chantilly, apesar deestar muito quente lá fora. Acho queessa pode ter sido uma ideiaridícula/duplamente insana. Rá, rá!Charlotte diz que precisa de um scarpinpreto com o calcanhar aberto, embora eunão veja por quê. Ela já tem um milhãode sapatos, mas ainda quer mais. Nãofinjo entender isso nela. Bocejo. Fazercompras só é divertido quando se temdinheiro, o que eu não tenho. Elaexperimenta o décimo par de sapatosquase idênticos, e eu balanço a cabeça

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em aprovação.— E aí, o que aconteceu de verdade

com o Cara do Guisado?Estou esperando para descobrir o que

houve nos bastidores e ver se a teoria daprimeira briga está correta.

— Não sei. Ele tem suas qualidades.Mas nem tenho mais certeza de queestou apaixonada — responde ela. — Anossa química mudou totalmente.

— Por quê? — pergunto, umapergunta simples que esconde cemperguntas por trás dela.

Charlotte experimenta um par desandálias prateadas. As luzes da loja asfazem brilhar e as deixam parecendo

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joias preciosas.— Bem, eu só vou me fazer de

difícil, só isso — explica. — Ele gostade mim, mas eu quero que demonstremais. — Pelo que eu vi na outra noite,Christopher não passa de um idiota. —Mas também ele pega muito no meu pé,sabe? Quer ficar comigo. Quer ficar porperto o tempo todo. Quer ler o que euescrevo. Quer discutir a relaçãobebendo um espresso — continua. — Émuito sufocante, como um suéter quepinica.

A situação toda me soa ótima, paraser sincera. Além disso, sempre dá parabotar uma camiseta por baixo de um

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suéter que pinica para que pare deincomodar. Mas, como sei que ela nãoquer ouvir a verdade, eu a deixo comsua ilusão, que é minha nova palavrafavorita.

ilusão s.f. opinião ou crença falsa

Obviamente Charlotte não é aespecialista em relacionamentos que euachei que fosse.

Finn encontra a gente em uma mesaquadrada no meio da praça dealimentação. A mãe deles vai voltar docruzeiro amanhã, então ele estátreinando para se manter longe dela. Euqueria que no fundo ele estivesse ali

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para andar comigo, mas não, não é ocaso. Eu finjo que é, de qualquer forma.

Como uma fatia de pizza depepperoni e bebo minha Coca pelocanudo até fazer barulho, o que eu seique não é muito educado, mas gosto dobarulho mesmo assim. Acho que é umlado meu que ainda não é adulto deverdade. Antes que eu perceba,Christopher está sentado ao nosso lado,todo sorridente. Ele acha queesquecemos o seu lado negro.

— Charlotte, vamos embora em dezminutos — diz Finn.

— Estou pronta agora — respondeela, então se levanta para jogar o lixo

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fora.O estúpido do Christopher não se

toca de que é hora de ir embora.Finn se encosta na cadeira e abre um

sorriso largo para mim, que me atingedireto no coração. Tenho que baixar osolhos para não dar bandeira. Vejo umaembalagem de ketchup amassada e finjoque é o objeto mais interessante domundo.

— Alô! Planeta Terra para Sarah!Você ainda está no espaço?

— O quê? Não.— Bom — diz ele. — Preciso da sua

ajuda. Temos uma missão.

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Antes de mais nada, eu nunca teria idoao mercado de pulgas Vikon El Bazaarsozinha, embora seja o shopping maislegal e esquisito da existência. Porexemplo, se você quer uma identidadefalsa, um cachorrinho e um sofá-cama,este é o lugar certo. Finn encaixotou oslivros da Sra. Dupree para vender, eaqui também é o lugar certo para eles.

O prédio inteiro é um labirintogigante, e é melhor decorar o caminhopara conseguir sair. Há diversosestandes diferentes com pilhas altas deprodutos, separados por divisórias demadeira fina e branca. A única coisa queliga os estandes são fileiras de pisca-

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piscas pendurados no teto.Conforme eu passo pelas barracas,

minha impressão é de que sou eu queestou em exposição. Os vendedoresficam sentados em cadeiras, mastigandopalitos, à espera de que eu admire umElvis de veludo ou um par de óculosescuros gigantes com armação branca,para então dizerem:

“Quanto você quer pagar por isso?”Estar com Charlotte e Finn me deixa

suficientemente confiante, mas eu memantenho perto deles, porque fico comum pouco de medo da quantidade deolhos em cima de mim. Cada um de nóscarrega uma caixa de papelão até a

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barraquinha de livros usados. Observoas prateleiras enquanto Finn negocia. Euficaria para sempre na pequenabiblioteca, mas Charlotte vê uma seçãocom roupas vintage e vai direto para lá.Nós a seguimos, e imediatamente pareceque entramos no armário de umavelhinha. Há pelo menos cinco guarda-roupas lustrosos, as portas abertas comobraços de madeira. As prateleiras estãorepletas de echarpes, colares de contas ebroches com diamantes falsos. Emprateleiras douradas com fundoespelhado, há vários pares de sapatoenfileirados. Todo o lugar cheira a póde arroz de velhinha.

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Passo os dedos por uma fileira deroupas. E se aqueles vestidos falassem?Será que alguma garota bonita de batomvermelho ficou noiva usando algumdeles?

E as bolsas? São de todas as cores eformas e parecem quase novas. Quemquer que fossem as donas, cuidavammuito bem delas, ou não iam a lugarnenhum. Minha bolsa sempre parecevelha e acabada, mas não de um jeitobom.

De repente me dou conta de que maiscoisas do Sr. Dupree podem acabarpenduradas em lojas assim. Não seiquem iria querê-las. O que você faz com

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as coisas de uma pessoa quando ela nãomora mais com você?

Agora Charlotte encontrou chapéusdentro de um armário gigante cor demarfim. Nós nos revezamosexperimentando vários deles em frente aum espelho de corpo inteiro.

Charlotte está usando um chapéurosa-escuro com um arranjo de plumas.Estou com um chapéu pillbox clássico esó sei o nome porque Charlotte me diz.Ele não combina muito com meu short eos chinelos, mas, se eu estivesse com umvestido preto simples, talvez parecesseuma moça de antigamente, parada naplataforma de uma estação de trem,

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esperando ser levada para longe. Aí ele— quem quer que ele fosse — chegariae sorriria para mim. Como eu não seicomo seria a cara dele, uso Finn nacena, vestido com um terno azul, quecombina tanto com seus olhos que ele sedestaca na multidão.

Digo para o meu cérebro que émelhor parar de fingir que sou umaestrela de cinema. Não sei por queminha mente viaja tanto.

Finn surge às nossas costas refletidono espelho e passa o braço em torno domeu ombro. Algo relaxa dentro de mim,e meu pescoço fica vermelho. Lá estáele, com um chapéu-coco de cavalheiro,

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ou é o que diz.— Vocês dois com toda certeza vão

ser presos pela polícia fashion —comenta Charlotte.

— Ou lançar uma nova tendência —digo.

Finn resolve que devemos todoscomprar os chapéus assim mesmo. Porconta dele. Diz que um chapéu faz umamulher ficar tão bonita de costas quantode frente. Vamos usá-los no enterro doSr. Dupree. Vamos na beca para fazer aSra. Dupree sorrir. Ele fala exatamenteassim.

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capítulo 29

É domingo, e eu estou sentada na cama,arrancando bolinhas de pelo da minhaestúpida colcha de lã rosa e tentandodescobrir por que sou mais esperta queCharlotte. Ela teve outra briga comChristopher. Eu queria saber por que elabrigaria com uma pessoa com quem játerminou. Mesmo assim, tento dar umaforça. Não quero que ela pense que fuimá amiga depois que eu for embora, masaté um cego pode ver que Christopher

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não presta. Ela ainda está sofrendo coma ilusão.

Tentei ajudar. Contei a ela o sextosegredo dos garotos.

Os gestos dele sempre vão revelarmais do que as palavras.

Ao telefone, digo que ela deveriafazer uma lista apenas com fatosimparciais sobre ele.

— Quando você escreve as coisas nopapel — digo —, é como se a sua mãosoubesse mais que a sua mente. Não seipor que, mas é verdade.

Eu sei do que estou falando. Tenhodois diários. Além disso, o Sr. Wistlerdiz a mesma coisa.

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Mas agora tenho meus própriosproblemas com que me preocupar. Seráque dava para ver na minha cara minhapaixão secreta pelo Finn? Tenho quefazer a minha lista. Ele vai voltar para afaculdade e daqui a dez anos vamos nosreencontrar em uma livraria, tomar umaxícara de café, conversar sobrepalavras, e ele vai lembrar de como eusou ótima e se dar conta de que sou oamor da vida dele. Eu já sei que ele é omeu.

Os fatos estão bem aí:

– Ele sabe o meu segredo e nãofoi mau comigo.

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– Ele ama dicionários.– Nunca vou me cansar de olhar

para seus olhos azuis.– Ele comprou um chapéu para

mim.

Fico olhando para minha listaenquanto Charlotte reclama ao telefone.

— Ele é simplesmente grudentodemais e está passando por umasquestões pessoais que, bem, o deixamcarente, o que eu entendo. Além disso,tenho muitas outras coisas com que mepreocupar, então acho que vou terminarcom ele.

O que tenho vontade de dizer é que

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ela também está um pouco carente, masfico quieta. Charlotte pode não mecontar mais nada sobre garotos se euficar apontando as falhas óbvias em sualógica.

Depois que passamos algum tempojuntos, toda hora me distraio compensamentos sobre Finn, pensando emseu braço em cima do meu ombro. Malposso esperar para vê-lo de novo. Tentoler o livro de Harper Lee até a hora dovelório. É a terceira vez que o leio.Estou na parte em que levam TomRobinson preso, e um bando de pessoasfuriosas exige que Atticus saia da portada cadeia. A tensão é tão real que posso

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senti-la nos meus ossos. Estou bem alino Alabama, querendo saber o que vaiacontecer em seguida, desejando gritarde volta para aqueles homens e mandá-los cuidar da própria vida e irem paracasa, que é mais ou menos o queacontece quando Scout fala com eles.Não sei por que eu gosto tanto dessaparte.

Papai fica satisfeito por eu estarlendo o livro de novo e diz que quer“marcar uma hora comigo para tomar umsorvete e discuti-lo”. Mas, quando elevê o livro pela casa, reclama comigopor deixá-lo aberto e virado para baixo,em vez de botar um marcador entre as

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páginas. Eu me esqueço de quanto valeuma coisa antiga.

Ouço o rangido da porta da garagemse abrindo e sei que é hora de dizeradeus ao Sr. Dupree.

— Até mais tarde, Planta —murmuro. — Na volta, vou contar umaótima história para você. Só vou daruma dica: estarei diferente quandochegar.

O velório me fez chorar mais de umavez, mas principalmente quando euestava ao lado da Sra. Dupree, e elaolhou para dentro do caixão.

— Este é o meu melhor amigo, bem

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aí — disse ela. — Todo dia quando saíade casa, ele gritava para mim:“Obrigado por ter dito sim, amor.”

Ela passou o braço ao redor da minhacintura e me apertou. Então secou osolhos com um lenço, um quadrado dealgodão de verdade com um D bordado.Até o jeito de chorar da Sra. Dupree ésublime, que é a minha nova palavrafavorita.

sublime adj. que inspira grandeza ouenlevo; esplêndido, magnífico, elevado

Quando juntar dinheiro suficiente,vou comprar lenços para mim também.

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Vão acompanhar meu novo status demulher. Além disso, estou usando umbelo vestido preto sem mangas; meuchapéu novo/velho, o pillbox preto; erímel aplicado com perfeição, muitoobrigada. Quando olhei no espelho dobanheiro, vi uma pessoa que podia terquase dezesseis anos. Talvez dezessete,se estivesse usando pérolas e brincos.Acrescento mentalmente à minha lista decoisas a fazer na viagem: furar asorelhas. Posso muito bem arrumarproblemas por um monte de coisas,todas ao mesmo tempo.

No velório, ouço a Sra. Dupreecontar a um convidado que o enterro do

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Sr. Dupree, no dia seguinte, vai ser sópara a família. Eu queria poder irtambém, só para vê-lo ser enterrado emsegurança. Nunca vi essa parte de umfuneral e, para falar a verdade, nemqualquer outra. Imagino que tenha ido aofuneral de Simon, mas quem pode selembrar de algo de quando tinha dois outrês anos? Espero que as pessoas tenhamdito coisas boas sobre ele naquele dia.

Esta noite os amigos do Sr. Dupreeque vão à recepção no amplo salão daigreja se servem de, você acertou,guisado. Há de todo tipo. Frango. Carne.Macarrão. Mistério.

Capto fragmentos de conversas sobre

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o Sr. Dupree. Se eu juntar tudo, oresultado será o seguinte: quando vocêouve os outros falarem sobre alguém quemorreu, tem vontade de viver uma vidainteressante, dar a eles uma razão paradizer “Sinto falta dessa pessoa”.

A Sra. Dupree enxuga os olhossempre que alguém conta uma históriasobre seu marido. A essa altura o lençodeve estar encharcado, por isso euqueria que parassem de falar. Ela estátentando ser forte. O filho deles, peloque percebi, está calado demais, o queme faz gostar ainda menos dele. Elelevou todo o tempo do mundo parachegar ao Texas. E o que precisou fazer

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quando chegou? Finn e eu tínhamosarrumado e encaixotado todos os livros,varrido a garagem e lavado o carro doSr. Dupree — dando a ele váriosmotivos para que nos dissesse algumacoisa simpática.

Eu fico espionando o papai do outrolado do salão, se servindo de guisado debatata-doce. Ele está conversando comum homem mais velho e apontando parauma gelatina verde ainda intocada. Meupai anda tão misterioso com suasatividades por trás de portas fechadasque se esqueceu de me colocar decastigo por causa do uísque. Continuoalerta.

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O salão começa a cheirar a sopa decogumelos e pó de arroz, por isso saiopara respirar ar fresco. O sol está nomomento em que pinta uma larga faixade laranja e rosa no céu quase noturno.Encosto na parede quente da igreja esinto o calor penetrar na minha pele.Fecho os olhos por apenas um segundo edeixo meus pensamentos sobre Finnvoarem livres.

— Oi — diz ele.Abro os olhos, e é como se, em um

passe de mágica, ele tivesse saído dosmeus sonhos acordados. Exatamenteassim, com o sol atrás dele e seuchapéu-coco novo, ele podia ser um ator

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de cinema em um pôster. Eu compraria opôster, penduraria na parede do quarto edaria boa-noite para ele.

— Oi.— Charlotte ainda está aí?— Ela saiu faz um tempinho.— Pensei que talvez devesse pedir

desculpas a ela.— Por quê?— Eu meio que disse para

Christopher nunca mais aparecer nanossa casa.

Ele tira o chapéu, e a brisa joga seuscabelos para trás. Sim, com certeza Finntem tudo que um astro do cinemaprecisa. Eu me pergunto se ele

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consideraria a possibilidade de largar oestudo de linguística e se mudar para aCalifórnia. Então poderíamos viver naplantação de maçãs da Sra. Dupree,supondo que seu primeiro filmerendesse dinheiro suficiente paracomprá-la.

— Ela escolhe os caras errados —continua ele. — Espero que você nãofaça isso. Escolha um cara legal, Sarah.

Os gestos dele sempre vão revelarmais do que as palavras.

Seriam poucos anos de espera.Talvez menos de dez. Já sou bemmadura, e não é como se ele já fosse umprofissional adulto, com um emprego de

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verdade. Ele só entrega pizzas com umToyota velho, por isso nossas idades defato são mais próximas do que parecem.

— Está bem — digo. É o que parececerto.

— Minha mãe voltou, então, vocêsabe...

— Você prefere estar até em umfuneral. Eu entendo totalmente.

Ele sorri e olha para o pôr do solazul e rosa.

— E então, quando você volta para afaculdade de dicionário? — pergunto.

— Por quê? Já quer que eu váembora?

— Não, só quero saber — respondo;

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meus planos de partir são flexíveis.— Bem, é claro. Seria estranho não

me despedir. E eu vou querer que meprometa que vai ler todos os livros queeu dei para você.

— Claro.Eles já estão na minha cômoda,

alinhados na ordem em que vou lê-los. Enão se esqueça de me levar com vocêquando for embora.

— Sarah Nelson, você é formidávelde maneiras que ainda não compreende.

O que eu não daria para ter papel ecaneta neste momento? Eu poderia atépedir que ele escrevesse essa frase, paraque eu nunca me esquecesse dela. De

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maneiras que ainda não compreende.— Será que vou ver você outra vez?

— pergunto a ele.— Ah, não precisa ser tão dramática.Parece que todos os homens me

acham dramática.— Eu também vou embora.— Vai?— Vou.— É por causa da sua mãe?— É sempre por causa da minha mãe.— Vamos manter contato.Manter contato não é suficiente. São

dois cartões por ano e um desejo de quevocê tenha um aniversário feliz pracachorro.

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— Acho que eu amo você.Bem, não acredito que essas palavras

saíram da minha boca. Lá está ela, umagarota totalmente diferente usando minhaboca, meus lábios, sem permissão.Talvez enlouquecer seja isso. Talvez eutenha dupla personalidade também.Tudo em que consigo pensar é que ouviras pessoas falarem sobre a vida do Sr.Dupree encorajou esse meu outro lado.Pensei muito sobre o que desejo que asoutras pessoas saibam a meu respeito.

Ele baixa o olhar para o chão deconcreto, o que me diz tudo o quepreciso saber. Para ele, amor é umapalavra-problema.

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— Um dia você vai entender, Sarah,mas você não me ama de verdade.

— Sabe, você disse a frase que eumais odeio no mundo — digo a ele. — Éum truque linguístico para escaparquando as pessoas não têm resposta ounão querem responder. Eu entendo muitomelhor do que você imagina.

Ele passa a mão pelo cabelo, algoque me imaginei fazendo, pensando emqual seria a sensação nos meus dedos.Adoro quando ele faz isso. É como eusei que ele está prestes a dizer algumacoisa boa.

— Você é... única — diz ele. —Única. E, como está claro que você é

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mais sábia do que outras pessoas dedoze anos, não vou apelar para umtruque linguístico. Desculpa. Por isso sóvou dizer que estou lisonjeado e quealgum garoto um dia vai ter muita sorte.

Ele fica em silêncio.— Vampiros e mortais têm o mesmo

problema — falo. — Não podem fazernada em relação a seus sentimentos,além de senti-los e olhar um para ooutro.

— Está me comparando a umvampiro? — pergunta ele.

Eu não pensei muito no que falei. Naverdade, acabei de tirá-lo do meucérebro neste instante. Claro que ele é o

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vampiro, mas não vou dizer isso se ser apessoa perigosa do relacionamento vaiofendê-lo.

— Essa não é a questão — digo.Quero fazê-lo entender que tudo o

que ele precisa é segurar meussentimentos. Não contar para ninguém.Apenas deixá-los descansar nas suasmãos até que eu possa pegá-los de volta,mas, não, ele não está seguindo minhalógica. Tenho vontade de dizer que meimaginei beijando-o e sendo beijada porele. Eu me vejo contando para Lisa:“Ah, quem você conheceu noacampamento? É mesmo? Bem, euconheci um universitário que estuda

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linguística. Dezenove anos. Ele mebeijou, e depois eu fui viajar. Foi overão dos meus sonhos.”

Estou prestes a fazer o comentáriomais inteligente da minha vida quandovocê-sabe-quem acaba com a minhaoportunidade. Meu pai tem um talentoespecial para destruir minha vida.Alguém dê um prêmio a ele.

— Aí está você. Olá, Finn.O papai está com um pedaço de

gelatina verde no canto da boca, masvocê acha que vou contar a ele? Não.

— Finn me ofereceu uma carona atéem casa — minto. — Posso ir com ele?

Eu me sinto ousada com O

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maiúsculo. Se eu morrer amanhã, aspessoas vão murmurar no meu velório:Era uma menina que sabia o quequeria, e que sorte ela ter sido beijadauma vez!

Beijada de verdade.— Se não for incômodo para você,

Finn.— Ele já estava indo para casa.Sinto a vastidão das minhas mentiras.

Elas estão me cobrindo dos pés àcabeça.

— Então tudo bem.Meu pai me dá um beijo no topo da

cabeça, me matando de vergonha bem nafrente do meu possível futuro namorado

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imaginário.Vou até Finn e digo que estou pronta.

Não consigo interpretar sua expressãocom clareza, mas sei que ele não estádizendo não. Ele vai me levar.

O interior do Toyota de Finn ébagunçado de um jeito organizado.Pilhas de papel no chão. Duas sacolasde livros no banco de trás. Garrafas deágua pela metade nos porta-copos. Dápara sentir o cheiro do perfume dele.Ele apoia o chapéu no painel e enfia achave na ignição. O rádio estásintonizado em uma estação de country,e a cantora canta alguma coisa sobre

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jeans velhos e um coração partido.Espero que o apresentador diga o nomeda música. Eu preciso dela.

Observo o perfil do Finn. É comomais gosto de olhar para ele. A luz dosol desapareceu completamente. A luaestá nascendo e parece grande como umprato. Mesmo que eu tivesse sonhadocom esta cena — esta música, estevestido, este chapéu, este garoto —durante toda a minha vida, nunca teriaconseguido criar um roteiro melhor.

Cruzo as mãos no colo. Acho quetenho todos os ingredientes necessáriospara fazer com que isso aconteça, fazercom que esse sonho se realize. Quero

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dizer a ele que isso é muito importantepara mim. Algo de que uma garota vai selembrar para sempre. Pode dizer, Sarah.Diga. Você é uma mulher agora. Deviaser capaz de dizer essas coisas.

Respiro fundo. Ele reduz avelocidade em um sinal vermelho.Estamos a uma quadra da minha casa.Penso em quais deveriam ser as minhaspalavras: Eu quero que meu primeirobeijo de verdade seja com você, não sópelo beijo, mas porque é você, FinnReynolds. Li que é importante escolhercom cuidado com quem vai ser seuprimeiro beijo. Esse vai ser o padrãode comparação para todos os beijos

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futuros.— Escuta, você acha que a minha

roupa está boa para um encontro?— O quê?Ele não pode estar dizendo o que

acho que ele está dizendo.— Aquela garota de quem eu falei —

explica ele. — Hoje vai ser o nossoprimeiro encontro. Você acha quepreciso trocar de roupa?

— Não — digo, baixinho como umcamundongo. — Está bem assim.

Nada está bem.Quero agarrar as minhas palavras no

ar, reescrever tudo o que já disse paraFinn, rearrumar os pensamentos para

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parecer inteligente e ele gostar de mim.Por que eu não apresentei meusargumentos antes e depois pedi a ele?Apelar para a parte dele que gosta deganhar, dizer que preciso vencer aaposta que fiz com Lisa, que é a minhavez de ser beijada, que não pode sercom qualquer um, porque uma garota vaise lembrar disso até ser uma velha dequarenta anos.

— Acho que quero ir para casaandando agora — digo. — Você podeparar o carro?

Ele encosta o carro, mas deixa omotor ligado. O luar nos faz parecerbonitos e saudáveis. Você pode achar

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que isso deveria me deixar menos triste,mas não, não deixa. Eu sou a definiçãode tristeza.

— Sarah, me desculpe.Por que meu nome soa tão mais

bonito quando dito por ele? Não sei.Sarah. Em seus lábios, meu nomeparece um elogio.

— Obrigada pela carona —agradeço.

Agora ele está com uma cara que nãoconsta do catálogo das suas expressões.

— Espero que a gente ainda sejaamigo — diz ele.

— Se eu fosse você, trocava decamisa — falo. — Você não quer ficar

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com esse cheiro de guisado. E eu nãoiria de chapéu.

É o melhor que consigo fazer.Tento fazer com que minha mão

funcione, empurro a maçaneta da portado carro velho estúpido até ela ceder.Slam! A porta se fecha, o ruído de metalbatendo traz ecos do tipo de grito que eugostaria de dar neste segundo, mas nãoposso. Não posso deixar Finn verminhas lágrimas, minha dor por deixá-losaber meus segredos. Todos eles. Apalavra infrutífero me cerca por todosos lados.

Lágrimas escorrem pelo meu rosto.Eu digo para se segurarem até que eu

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entre em casa, mas elas caem mesmoassim. Gostaria de nos ver a distância.Ele no carro; eu com meu chapéupillbox.

Caminho pela calçada, ouço meussapatos batendo, encaro a lua cheia parame guiar.

Em casa, vejo no espelho dobanheiro uma garota destruída, comrímel todo borrado e escorrido, o rostovermelho e desesperado. Ela murmura:Olá, coração partido. Meu nome éSarah.

Eu me deito totalmente vestida naminha cama cor-de-rosa, as lágrimasescorrendo dos olhos e enchendo meus

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ouvidos. Eu me vejo guardando meuamor por Finn na gaveta da cômodacomo se fosse minha camisa favorita.Empurro-o para o fundo. Esqueço queele existe até não caber mais. Então, milanos depois, eu o tiraria dali e diria:“Ah, sim, me lembro de você.Antigamente gostava de você, mas agoravocê não combina mais comigo.”

Caro Atticus,Quero começar dizendo que nuncavou sair com um garoto que nãotenha lido seu livro. Vou perguntare, se eles responderem que não, afila vai andar. Eles não servem

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para mim, por mais bonitos quesejam. Isso pode ser um meio deeliminar os sem-cérebro, nãoconcorda? Mas, ei, lá está umgaroto que eu amo e que leu seulivro e simplesmente não possofalar sobre ele. Estou tentando serforte e não chorar. Vou tentarmudar de assunto agora, porqueme dá vontade de chorar e nãoquero fazer isso na sua frente.

Então, outro assunto.Neste momento estou pensando

em como você deixou seu filho,

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Jem, resolver os problemas delesozinho depois de destruir asflores da Sra. Dubose. Você o fezenfrentar as consequências porconta própria. Por isso sei que mediria para fazer a mesma coisa.Tenho que seguir em frente eenfrentar as coisas assustadoras naminha vida, o que, para resumir,são a minha mãe. Minha mãe. Ugh.Preciso vê-la eu mesma se algumdia quiser deixá-lo orgulhoso.Quero muito seguir seu conselhosobre enxergar o ponto de vista de

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outra pessoa, ver as coisas comoela vê e tentar entender. Mas o quequero dizer é: por que os outrosnunca tentam ver as coisas do meujeito? Acho que sei o que vocêdiria: não dá para mudar osoutros. Você tem que viver comsuas próprias decisões.

Se estivéssemos conversandona sua varanda, vocêprovavelmente não me diria nada.Só ajeitaria seus óculos no nariz eme olharia. Sim, eu sei o quepreciso fazer, Atticus. Por que a

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coisa certa é tão difícil?Por enquanto, arranquei a

página do livro em que está a suadefinição de coragem. Sei que jáestou ferrada mesmo, por isso vouseguir em frente. E vou levar essapágina comigo, depois prendo devolta no lugar com fita adesivaquando voltar.

Por isso esta pode ser a minhaúltima carta por um tempo. Porfavor, não me esqueça. Afinal, jásou louca por escrever tanto paravocê. Até o Sr. Wistler

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concordaria. Se ainda háesperança para mim, devocomeçar a escrever cartas parapessoas de carne e osso. Mas nãoposso abrir mão de você.

Obrigada por ouvir.Sua amiga para sempre,

Sarah

Cara Nelle Harper Lee,Meu nome é Sarah Nelson. Tenhodoze anos e li seu livro três vezes.Queria que soubesse o quantogostei dele, especialmente de

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Atticus Finch. Você pode meachar estranha, mas eu senti comose ele tivesse saído das páginas ese tornado real. É muitoverdadeiro. Nenhuma outra pessoaluta pelo certo como ele. Minhasensação é de que o conheço. Nãoé todo escritor que consegue fazerisso, posso garantir a você. Eu, naverdade, escrevi cartas paraAtticus, mas percebi na noitepassada que as cartas eram, defato, para você. Afinal de contas,você deu vida a ele ao escrevê-lo.

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Tenho muitas perguntas. Li algunsartigos sobre você no computador,por isso sei que não deixaninguém aparecer na sua varanda esentar para conversar. Vou ter queme contentar em escrever estacarta e esperar para ver o que vaiacontecer.

Você deve saber logo de inícioque eu sou como qualquer outrapessoa enxerida do mundo, quetem curiosidade sobre a sua vida.Não sei se algumas histórias sãoverdadeiras, mas a principal coisa

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sobre a qual eu gostaria deconversar é sua família. Pareceque talvez nossas mães tenhamtido alguma coisa nelas que astornou diferentes da maioria, quetem um milhão de fôrmas debiscoitos, prepara sanduíches emformato de coração e mandabilhetinhos dentro da lancheirados filhos. Não quero chateá-la,principalmente se todos essesboatos não forem verdadeiros.

Se quer saber, minha vizinha, aSra. Dupree, me deu seu próprio

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exemplar de capa duraautografado. Prometi a ela quecuidaria bem dele. Se a minhacasa pegasse fogo, eu salvaria seulivro e a minha planta. Ah, isso melembra de outra pergunta quequero fazer: por que todos osanimais no seu livro têm nome esobrenome? Acho que talvez euconsiga investigar isso noAlabama sem precisar incomodá-la. Eu poderia fazer uma pesquisanas ruas e perguntar às pessoas onome dos seus animais de

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estimação. Acho que é uma boaideia, e, se algum dia eu tiver umbichinho, vou dar a ele dois nomestambém.

A última coisa que eu gostariade saber é bastante pessoal, entãoespero que não se importe, mas,como você provavelmente nuncavai ler esta carta mesmo, bem, vouescrever tudo o que quero. Eu mepergunto por que você nunca secasou. Se for como eu, pode serporque só houve um amor na suavida e mais ninguém chegou aos

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pés dessa pessoa. É o meu caso.Nunca vou me casar, a menos queseja com alguém em especial, eisso nunca vai acontecer porqueele acha que eu sou só umagarotinha, embora eu não vá seruma garotinha para sempre. Porque ele não consegue enxergar?Além disso, li na sua biografiaque seu pai era como Atticus.Acho que, se você teve um paiassim, nenhuma outra pessoa seriaum substituto à altura, e é por issoque não precisou se casar. Eu

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entendo totalmente.Acho que isso é tudo o que

tenho a dizer agora, além deagradecer mais uma vez por vocêter escrito esse livro. É o meulivro favorito de todos os tempose sempre vai ser. Obrigadaprincipalmente por Atticus. Nuncavou esquecê-lo, enquanto eu viver.

Abraços,Sarah Nelson

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capítulo 30

Fiz um buraco de trinta centímetros deprofundidade. Foi difícil arrancar agrama seca e dura com um garfo, mas euconsegui. Depois usei uma colher grandepara escavar a terra. A probabilidade deque este ponto receba água do regadorde nosso vizinho é grande, mas nunca dápara ter certeza. Já é bem difícil ter quedeixar Planta para trás, mas elamurchando e morrendo é algo que eunem quero imaginar. Não posso levá-la

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comigo porque, pelo que vi na internet,talvez os funcionários não permitam queeu a carregue no ônibus. E não possodeixar um bilhete dizendo: Por favor,molhe Planta. Nas férias passadas,quando viajei, ela ficou na mesa dacozinha e foi totalmente negligenciada.Todo dia meu pai passava direto por ali,sem perceber que ela obviamente estavamorrendo de sede.

Eu a coloquei no buraco e apertei aterra velha em volta de sua cintura.Depois, joguei água. Deve ser suficientepor algum tempo. Eu me ajoelho pertodo seu novo lugar no mundo e meesforço para não chorar. Conto para ela

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as coisas legais que vai conseguir verdali. O carteiro. O pessoal da Gramadose Jardins Sanchez. Criancinhas andandode bicicleta. A menininha das sandáliasbrancas.

Jogo o garfo e a colher nos arbustospara esconder a prova do crime e lavoas mãos com a mangueira do jardim. Aterra embaixo das minhas unhas não sai,mas deixo para me preocupar com issomais tarde. Tenho que seguir com o meuplano. Primeiro, vou pegar o ônibusmunicipal para treinar e depois compraruma passagem para o ônibus de verdadequando tiver oportunidade. Nos seriadospoliciais, como na vida, você nunca

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sabe quando vai precisar viajar, porisso tem que estar pronto. Implorei aCharlotte que me levasse ao Vikon ElBazaar, dizendo que queria outrochapéu. É moleza convencê-la a fazerisso porque ela quer comprar, adivinhe:mais sapatos. Além disso, estouplanejando pedir a ajuda dela paraconseguir uma identidade falsa. Precisode uma que diga que tenho pelo menoscatorze anos, que é a idade mínima parapegar um ônibus da Greyhound sem acompanhia de um adulto. Depois que euconseguir a identidade, vai ser fácil mepassar por dois anos mais velha, atétrês, se eu aplicar o rímel direito.

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O passo seguinte é dizer para o meupai que vou passar duas noites comCharlotte fazendo várias coisas degarotas e sugerir que ele use o tempolivre para sair com PBroom.

Meu plano está funcionando.Atravesso a rua com a bolsa cheia de

dinheiro, uma bolsa de mão com asminhas roupas, meu diário verdadeiro eo livro de Harper Lee. Digo a mimmesma que não foi uma mentiracompleta. Só uma mentira suave, comoaquelas que o meu pai contou à minhamãe sobre o amor. O tipo gentil e bem-intencionado de amor. Porque euplanejei tudo e sabia que Charlotte

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jamais entraria no ônibus se tivesseescolha, tive que fazer uma pequenamaldade, na verdade, um crime.Esvaziei os pneus do carro do Finn, paraque ele precisasse usar o da irmã paratrabalhar. Você devia ter visto o carrotodo derrotado na frente da casa.

E, já que me tornaria mesmo umacriminosa, resolvi raptar a planta que aspessoas insistiam em colocar em cimado toco no jardim. Deixei o vaso navaranda da Sra. Dupree com um bilhete.Ela vai cuidar daquela pobre planta.

Quando chegamos ao ponto de ônibus,há um velhinho carregando uma sacola

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de papel pardo. Parece estar com tantocalor que tenho vontade de fazer algumacoisa por ele, mas como poderia ajudá-lo? Ele tem que ir a algum lugar, assimcomo eu. Não é como se eu pudesseligar o vento. Quando o ônibus para ànossa frente, ele deixa que eu eCharlotte entremos primeiro. Sinto umaleve emoção ao subir os degraus eexaminar os bancos. A maior parte dospassageiros está sozinha. Estão viradospara a janela, para ninguém ver o que sepassa em seus rostos, a menos que olhecom atenção para o reflexo sujo, o quedefinitivamente não vou fazer hoje. Nãoestou no clima para conversar com

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ninguém além de Charlotte. Precisamosficar incógnitas. Incógnito é uma dasminhas palavras favoritas de todos ostempos, porque pode ser um substantivo,um advérbio ou um adjetivo. O Sr.Espertinho Um-dia-você-vai-entenderprovavelmente nem sabe isso.

Assim que o ônibus começa a andar,comento com Charlotte, como quem nãoquer nada, o negócio de arranjar umaidentidade falsa.

— Acho que é uma coisa que Lisanão vai ter — digo a ela.

— Isso é legal. Ela não vai ter isso— diz Charlotte, olhando pela janela.

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Na viagem de volta do mercado, não tiroos olhos da minha identidade falsanovinha. É bom eu estar precisandocortar o cabelo. A franja compridadisfarça bem a minha idade. Estouusando meu rímel novo. E eu não sorri,então acho que poderia me passar atépor alguém de quinze anos.

Meu pai liga para o meu celular, efaço o possível para parecer tranquila einocente de todos os meus crimes.

— Não, não, estamos nos divertindomuito. Só fazendo coisas de garotas,você sabe. Conversando sobre sapatos esutiãs.

Basta acrescentar o detalhe certo

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para dispensá-lo.Mas, quando eu menos espero, os

acontecimentos mudam, e meu planodesmorona. Como dizem, ninguém sai deDodge City. Vovô caiu e quebrou abacia. Vamos para Houston amanhãajudar a minha avó.

Ele só pede que eu vá direto paracasa esta tarde, por favor.

— Bom dia, garotinha — diz meu pai.Estou no computador, tentando achar

um novo horário dos ônibus, e posso serflagrada. Eu me viro e vejo que ele estáme observando, com a caneca de caféPai Nº1 nas mãos. Rá, rá! Que piada.

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Não consigo imaginar por que ela nãoquebrou em nenhuma das nossasmudanças.

Sou pega. Não há um sistema mágicode roldanas para me erguer através doteto. A prova está no computador. Eu mesinto tonta e fico sentada com cuidadona cadeira do computador.

— Só mandei um e-mail para Lisa.Ela ainda está no acampamento —minto.

Funciona, porque ele balança acabeça e toma um gole de café enquantoeu fecho a janela da internet.

— É melhor arrumar sua mala.Minha mala já está pronta, mas por

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outra razão.— O vovô está bem?— Vai ficar.— Por quanto tempo a gente vai ter

que ficar lá?— Pelo tempo que ele precisar, acho.

Aqui estou eu, viajando por umaautoestrada, a mesma que eu achava quepegaria para a casa da minha tia. Eu jáestaria na metade do caminho agora. Aprimeira coisa que faríamos seriainvestigar a verdade sobre a vida deHarper Lee. A pesquisa estava no topoda minha lista. Tia Mariah saberia comofazer isso. Mas não, não vou conseguir

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uma aventura. No carro do meu pai, asjanelas estão fechadas, o ar-condicionado está no máximo, e o rádio,sintonizado em uma estação de notíciascom um apresentador que se esforçamuito para deixar os ouvintes tãoirritados quanto ele. Deixo os fios domeu iPod pendurados do meu lado, botoos pés em cima do painel e afundo nobanco. É uma marcha rumo à tristeza.Não há nenhuma emoção à espera nofinal.

Fico entediada com minhas músicas,até com as duas do Finn, e pego O sol épara todos. Imploro a Atticus que mediga algo novo e sábio. Se aquele não

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fosse um livro especial, eu marcaria asfrases com meu marca-texto amarelo.Estou esperando pelo dia em que eusinta que o exemplar é meu mesmo,como se tivesse sido dado diretamentepara mim. Então vou poder chamar aautora de Nelle, como fazem seusamigos. Sua biografia diz que Nelle éEllen, o nome da avó dela, escrito aocontrário. Você se pergunta se a mãeesperava que a filha fosse o oposto daavó.

Em algum ponto do caminho, eu caíno sono, e agora desperto com o som docarro esmagando cascalho. Esfrego osolhos e olho pela janela. Paramos em

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uma Dairy Queen, que o papai sabe queé uma das minhas lanchonetes favoritas.Falta muita coisa em Garland, mas pelomenos a cidade tem uma Dairy Queen.Calço meus chinelos e desço do carro.

— Isso. Isso deixou você feliz, hein?— pergunta meu pai.

— Por quê? O quê?— Esse é o maior sorriso que eu vejo

você dar faz tempo.Bem, eles têm o sanduíche de que eu

mais gosto e, agora que cheguei,percebo como preciso mesmo de umcheeseburger.

Sentamos em um lugar reservadojunto à janela. A única decoração na

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mesa é um vasinho branco com uma florsolitária, e a toalha de vinil équadriculada de vermelho e branco, dotipo que normalmente se leva para umpiquenique. Enquanto o papai vai aobanheiro, eu dou uma olhada em volta,espionando só algumas pessoas. Há umafamília em outra mesa: um casal e doisfilhos pequenos que não param quietos.Ambos estão com sorvete escorrendopelo queixo, e a mãe se estica, segura obraço de um dos meninos e limpa asujeira.

É meio-dia. Mais pessoas começam achegar depois da missa, pedindo seuscheeseburgers e sorvetes de chocolate.

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Diferentemente de mim, depois daquielas vão para casa tomar sol ou verfilmes. Vão passar um domingo simplese descomplicado, e sinto tanta invejaque me dá vontade de cuspir. Vou terque comer comida de hospital e ouvir avovó falando o tempo todo sobre meucabelo, desejando que suas mãospudessem estar dobrando roupa limpa,costurando ou cozinhando. Agora quepenso nisso, a Sra. Dupree ficava maisfeliz quando estava ocupada cortandomaçãs. E a minha mãe ocupava as mãosfazendo passarinhos de papel. Talvezesse seja o tipo de conselho dado parasenhoras de idade naquela revista para

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donas de casa. Eu poderia escrever umareportagem: Três maneiras de mantersuas mãos em movimento. Quando euficar velha, com setenta anos, garantouma coisa: minhas mãos estarãoocupadas escrevendo.

O papai traz nossa comida e aespalha na toalha de mesa quadriculada.

— Você tem se divertido bastantecom Charlotte. E ajudado muito a Sra.Dupree. E lido muito, também. A gentedevia comprar alguma coisa especialpara você, por ser tão legal — fala ele.

Eu não sou legal. Estava tentando daruns amassos com um cara e fugir dacidade. E, claro, minhas digitais estão

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naquela planta roubada na varanda daSra. Dupree, de cima a baixo.

— Você não me contou sobre seuencontro com a Srta. Broom — digo,mudando de assunto.

— Quer mesmo saber?— Quero. Pode abrir o bico.— Abrir o bico... Achei que Finn

estava melhorando seu vocabulário.Quem liga para qual seria a escolha

de palavras do Finn? Mas minha mentefaz uma busca instantânea. Contar.Revelar. Compartilhar. Informar.Divulgar. Comunicar.

— Conte tudo o que aconteceu.— Lá vem você. Foi bom. Ela é

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divertida. Simpática.— Vocês se beijaram? — pergunto.Ele sorri. E então, após um momento,

responde:— Não, não nos beijamos.— Por que não?— Nós só saímos para almoçar entre

uma aula e outra.— Você abriu a porta para ela no

restaurante?— Então isso é um interrogatório —

diz ele.— Desculpe.— Está bem, inspetora Nelson. Eu

abri a porta do restaurante para ela. Nósnos sentamos em um reservado com

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estofado vermelho. Quando saímos,acho que tinha um passarinho cantandoem uma árvore. Talvez um gaio-azul.Talvez um pássaro natural de Garland.Sim, devia ser isso. O perfume dela erafloral. Eu estava usando a camisa cinzalistrada que você me deu, que é muitobonita. Não botei perfume demais, comovocê tanto me aconselhou. Ela estava dejeans e camisa vermelha com unsbotõezinhos dourados em volta dopescoço. Combinando com os brincos,acho. Acho que combinavam. E elagosta de filmes antigos em preto ebranco e do mesmo tipo de música queeu.

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— Deve ser a única — digo.Acho que gosta dela. Ele só me

contou tanto assim uma vez, e foi sobreaquela horrorosa da Deirdre.

— Ah, e nós marcamos outroencontro — continua ele. — Umencontro de verdade.

— Não a leve ao cinema.— Por que não?— Se o filme for sentimental demais,

ela vai ficar sem graça, e se for de açãoou de aventura, quem vai ficar é você.Jantar é o melhor programa.

— Você é muito entendida doassunto, não?

— Sou observadora. E não use

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aquela camisa que você comprou por umdólar.

Se camisas participassem deconcursos de popularidade, aquela seriaexpulsa do palco debaixo de vaias. Éfeia demais. Mesmo assim, sempre quemeu pai a veste se acha um gênio porquesó pagou um dólar por ela. Bem, o preçodiz muito sobre o produto.

— Obrigado pela dica — retruca ele.Se ele a convidasse para jantar, eu

bem que podia preparar o guisado àKing Ranch. Ou talvez não. Nãofuncionou para Charlotte e Christopher.Às vezes os ingredientes não semisturam como você planejou, e você

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acaba andando sozinha com umvestidinho preto por uma rua deGarland.

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capítulo 31

Quando as pessoas cobrem a boca com amão, é porque alguma coisa ruimaconteceu. Isso sempre aparece nosseriados policiais e nos filmes decaubói. Os policiais uniformizadostocam a campainha e Bam!, a mulher queabre a porta de tela leva a mão à boca.O xerife vai de carro até uma fazendaonde uma moça está pendurando roupasno varal e Bam!, ela se silencia com apalma da mão. Alguém morreu, e

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ninguém precisa dizer nada. Esse é osinal universal do luto.

O papai está com a mão na bocaagora. Ele andou por todo o cemitério epassou por umas trinta ou quarentalápides antes de ser encontrado peloluto.

Eu daria qualquer coisa para saberem que ele pensa quando olha para alápide do Simon. Se ele se perguntacomo seria criar Simon, em vez de umafilha. Tipo, por que eu sobrevivi e nãomeu irmão. Será que ele se sente como amãe do Finn? Quando olha para mim,será que ele pensa na minha mãe? Levominha mão à boca também, em sinal de

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respeito, então ponho cravos azuis ebrancos aos pés da lápide do Simon.

Seguro e aperto bem a mão do papai.A expressão tempestuosa está lá nofundo dos seus olhos. Com certeza elevai esconder o uísque na garrafa derefrigerante mais tarde. Eu sei que temum na mala do carro. Ele já substituiu oque Planta bebeu lá em casa. Estavaatrás da sapateira, onde ele achava queeu não ia ver, mas seus sapatos estavamespalhados pelo quarto, e sou eu quemos guarda de volta no armário. Dequalquer jeito, não fazia diferençanenhuma. O suco de maçã tinha acabado.

Ficamos ali parados em silêncio,

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cada um com os próprios pensamentossobre Simon e como a vida deveria tersido. Tive a sensação de quepoderíamos ter uma conversa legal, eque talvez surgisse uma brecha na qualeu conseguiria fazer mais algumasperguntas sobre a minha mãe. Meucérebro criou uma lista escrita em papelmental. Um. Dois. Três.

Se não tivéssemos sido flagrados poruma repórter enxerida, talvez eu tivessetido uma chance.

Foi isso o que aconteceu.Ele tinha dito:— O vovô vai ficar bem. Vamos

visitar Simon antes de ir para a casa

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deles.Devíamos ter ido direto para a casa

dos meus avós e ter visto o noticiárioprimeiro, pois passou uma matéria sobreo que aconteceu dez anos atrás, que foi ocrime da minha mãe. Não sei por que aspessoas querem transformar isso emnotícia. Não é uma data histórica quevocê tem que decorar para a aula.

Uma mulher bonita com um terninhopreto e uma faixa de oncinha na cabeçaveio correndo na direção do papai jáfazendo perguntas.

— Sr. Nelson, olá! Sinto muito porinterromper, mas será que eu podia fazeralgumas perguntas?

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As palavras só pioraram as coisas.Até eu conseguia ver que ela não sentianada por interromper.

— O senhor visita sua ex-esposa?Como está sua filha? Ela é próxima damãe? Por favor, esta exclusiva seriafeita de maneira respeitosa. Por que osenhor nunca contou a ninguém o seulado da história?

Não sei como ela foi parar nocemitério. Será que estava ali vigiando,à espera de que a gente aparecesse?Será que ela sabia que o túmulo deSimon era uma das razões pelas quais opapai não consegue deixar o Texas?

Havia vários palavrões entremeados

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na frase Você me confundiu com outrapessoa. Mas foi meio inútil, porqueestávamos parados em frente ao túmulodo Simon — quem mais seríamos?

Meu rosto foi atingido pelo brilhoforte do flash de uma câmera. Agora vaiaparecer uma foto minha com cara deretardada em algum lugar. Papai agarroumeu braço e me puxou para junto dele.Eu me soltei. Corri de volta para Simone enfiei uma página do romance deHarper Lee embaixo das flores. Eu tinhaa intenção de ler para ele, mas agoraaquela mulher estragou tudo.

A raiva do papai também o fezcometer um crime, porque ele dirigiu

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acima do limite de velocidade, como osbandidos perseguidos pela polícia, portodo o caminho até a casa dos meusavós. Eu segurei firme na maçaneta daporta, desejando que ainda estivéssemosem casa, pensando que aquela tinha sidouma semana ruim para a família Nelsone a lei.

Minha avó não deveria ver o filhodesse jeito. Ela já está suficientementepreocupada com o vovô no hospital.Felizmente, conseguimos chegar lá semsermos seguidos por ninguém.

Claro que eu não posso fazer nadaalém de escrever meus pensamentos nodiário de verdade, enquanto escuto,

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escondida, a conversa deles sobre ovovô e o que aconteceu. Escrevi que erade se imaginar que as pessoasinventariam alguma coisa mais originalpara perguntar, mas não é isso queacontece. Elas fazem as mesmasperguntas que um professor do sextoano, só que tem um cara grandão comuma câmera de vídeo enfiando ummicrofone na cara dos outros eperguntando: “Por que não me conta comsuas próprias palavras como foi suavida nos últimos dez anos?” Tinha sidouma emboscada.

É o que ouço a minha avó dizer naoutra sala.

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— Isso foi uma emboscada — dizela. — Mas que cara de pau!

Meu pai anda de um lado para ooutro. Quando diz alguma coisa, é opalavrão que rima com roda.

— Acha que devemos ligar para oadvogado? — pergunta minha avó.

— Para quê?— É invasão de privacidade, sem

falar que foi muito insensível.— Advogados não podem fazer nada

contra pessoas insensíveis! — grita ele.A vovó leva a mão ao pescoço e toca

seu colar de pérolas.— Não sei por que não estávamos

preparados para isso. Mas você sabe o

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que fazer?— Eu sabia que era um risco ir até lá

— diz papai. — Sabia que era o dia doaniversário de morte dele, ou sei lácomo se diz.

— Isso não dá a eles o direito de seintrometer.

Pelo que posso ver do meuesconderijo no alto da escada, o rostodo papai está vermelho que nem umtomate. Eles desplugaram o telefonefixo, e meu pai desligou o celular.

Tudo isso por causa da emboscada.Eu procuro no dicionário e vejo que éuma palavra interessante.

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emboscada s.m. espera àsescondidas para um ataque surpresa;traição, mentira, cilada

A ideia de uma emboscada pareceinteressante, a menos que seja você apessoa pega de surpresa.

O degrau da escada de madeira rangequando eu me levanto e vou para oquarto. Ponho no papel todas as minhasanotações. O que concluo sobre o dia dehoje é o seguinte: às vezes penso queessas pessoas dos jornais precisamarrumar o que fazer, ou pelo menosideias melhores para suas reportagens.Eu faria perguntas sobre o que vai

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acontecer daqui a dez anos.Mas acho que é importante para a

repórter do noticiário com uma faixa decabelo de oncinha. Ela quer saber o queaconteceu com a gente. Claro, euadoraria que o papai respondesse aalgumas perguntas, para que eu tambémsoubesse as respostas. Mas osjornalistas não sabem nada sobre TomNelson. Fazer perguntas só faz com queele fique ainda mais fechado por fora eexploda por dentro. E, além disso, seeles querem uma história interessante,por que não entrevistam a minha mãe?Foi ela que causou todo esse drama.Acho que eles deveriam ir à cena do

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crime. Estou bastante tentada a ouvirmeu próprio conselho e ir vê-la eumesma.

Todo o drama se desenrola no térreo, eo segundo andar é o país do tédio. Porisso só há uma opção: sair fuxicando.

Gosto de mexer no armário da minhaavó e nas gavetas do banheiro. Apostoque ela sabe o exato momento em queum tufo de poeira se forma, o instanteem que um lenço de papel é usado, entãotenho que ser extremamente cuidadosa.

Abro a primeira gaveta, que é forradade papel branco e lilás. É o mesmo forrode sempre, mas ainda tem um cheirinho

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bom. Dentro da gaveta tem umadivisória para separar cada tipo demaquiagem. Os batons ficam de pé comos círculos de cor virados para cima,organizados do rosa-claro ao vermelho-forte. Tem inclusive uma seção paracílios postiços, empilhadoscuidadosamente em caixas individuaistransparentes. Dá até para pensar quevários rostos dormem ali. Adoro aorganização da gaveta, que me dávontade de arrumar meu quarto e deixarminhas coisas bonitas e especiais.

Vou para o armário dela. A primeiracoisa que percebo é o cheiro de perfumede velhinha. Talco de bebê e limão. A

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segunda coisa são aproximadamentecinquenta e três tons de bege. As roupasda vovó ficam arrumadas com o mesmocuidado dedicado à gaveta, todas ascamisas de manga curta juntas, depois asde manga comprida, depois os casacos.É um desfile de bege.

Passo a mão pelas sapateiras, ospares também organizados dos maisclaros aos mais escuros. Aí vejo um pard e peep-toes de salto e alguma coisaatrás. É bege, mas de um tom maisescuro. Eu os pego, tomando o cuidadode decorar exatamente a posição em queestavam guardados. Então eu vejo. Umafileira inteira de livros de banca bege.

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Pego um deles, desta vez sem tantocuidado, de tão animada que estou. Porque se isso for o que acho que é, ai meuDeus, é o que acho que é! Minha avótem um monte de romances de bancaatrás dos sapatos bege.

Ponho os peep-toes de volta no lugar,mas fico com um dos livros. Algumaspáginas estão dobradas. No meu quarto,tomo o cuidado de esconder o livrodentro de O sol é para todos. Abro abrochura em uma página qualquer, sópara ter um gostinho da história, ver se éalgo que consigo imaginar logo de cara.

“Lana correu com raiva para seuquarto e sentou-se à penteadeira. Ela

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começou a pentear os longos cabeloslouros. Então percebeu a janela abertano instante em que um homem saiu dassombras. Ela não sabia por que, mas sesentiu estranhamente atraída por ele.Será que era a luz? Ou talvez fosse agaroa que caía nas ruas de Londres láfora? De qualquer modo, ela sabia queaquela seria uma noite da qual jamaisiria se esquecer.

Então ele se aproximou e a chamoupelo nome. Isso a fez dar um suspiro dealívio. Talvez ele não fosse umestranho, afinal.”

Isso é sério? Ela já está atraída porele? Ele pode ser um psicopata! Um

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tarado! Essas pessoas nunca viramJogos Mortais? Como minha avóconsegue ler isso? Começo na página 1.Preciso ver se faz algum sentido.Duvido, mas estou determinada a saber.

Acordo com a minha avó parada de péao meu lado.

— Por que está dormindo no chão?— Hum, eu caí da cama.Sempre durmo no chão na casa da

vovó. Ela arruma a cama tão bem quenão gosto de desarrumá-la.

— Sarah, você quer me contar o queestá acontecendo? — diz ela.

Sua voz está grave e clara, um tom

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que eu não ouvia fazia um bom tempo.Há muitas razões pelas quais posso terme metido em problemas.

— Ora... hum... bem...Ela senta na beira da cama.— Você sabe que pode me perguntar

o que quiser. Pode ver minhas coisas nahora que quiser.

Fico em silêncio, refazendo meuspassos. Como ela me pegou? Será quedeixei alguma coisa fora do lugar?

— Por favor, apenas peça permissãoantes.

Aí ela coloca o romance na colcha,em cima da cama.

— Foi um bom trabalho escondê-lo

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atrás de um clássico. Seu pai costumavafazer a mesma coisa com os quadrinhos.

Quero fazer mil perguntas a ela sobreo que o meu pai costumava fazer, masminha vergonha me mantém em silêncio.

— Esses livros podem não serapropriados para sua idade — diz ela.— Mas, se você está lendo, deve quererme fazer algumas perguntas sobre, vocêsabe, as coisas...

— Você já leu O valente libertino?— O quê?— Esquece.— Vá se arrumar e desça para tomar

café.Ela coloca uma mecha de cabelo

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atrás da minha orelha e diz meu nome.Sarah. As perguntas se enfileiram nomeu cérebro de novo, mas não há paraonde irem. Penso se há um limite dequantas perguntas cabem no cérebro dealguém. Parece que sim.

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capítulo 32

No café da manhã temos panquecas demirtilo, bacon e más notícias. Dá paranotar pelo modo como minha avó dizbom-dia e por não haver um lugar postopara o papai.

— Cadê o meu pai? — pergunto.Ela enche meu prato de panquecas de

mirtilo, depois pega o guardanapo e oalisa no colo. Sem nem mesmo erguer osolhos, responde:

— Seu pai dormiu no sofá vendo

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tevê.Bem, eu já sei por quê. É a mesma

coisa em casa. Nada nunca vai mudar.Será que ela vai falar as verdadeiraspalavras? Bêbado ou bebedeira ou deporre são todas palavras-problema paraa vovó. Ela prefere exagerar.

— Infelizmente, ele exagerou umpouco — diz. — Você me passa amanteiga?

Nossa, isso é a cereja no topo dobolo da minha vida. Estou com tantaraiva dele que poderia socar algumacoisa. Era de se esperar que ele sesegurasse na frente da própria mãe ecom o pai doente. Mas não, ele trouxe

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todos os seus maus hábitos de Garland,os tirou da mala e está fazendo a maiorlambança.

— Eu queria um pouco de café —peço.

— Você não é um pouco nova paraisso? — pergunta ela.

Não, não sou. Estou tentando levar aminha vida de um jeito positivo, desviaro DNA dentro de mim para longe doálcool e na direção da cafeína. Vou àcozinha, pego uma caneca, encho até aboca e volto para a mesa.

— Sarah, você pode ser jovemdemais para entender isso, mas seu paitem um problema com a bebida.

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Se eu contasse a ela tudo o que sabia,seu rosto nunca mais seria o mesmo.Seria um parágrafo inteiro de palavras-problema, como de porre, soca paredes,esquece aniversários e usa roupas quenão combinam para trabalhar. Mas nãoquero mudar a expressão em seu rosto.Ele já está enrugado com a decepção.

— O que quero dizer é que pensei emconversar com o seu pai sobre procurarajuda — diz ela. — O que você acha?Seria preciso que vocês passassem umtempo aqui.

— Quanto tempo?— Bem, vamos ver à medida que as

coisas forem se desenrolando — explica

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ela.O verão ainda nem acabou, e o

Problema 3 já apareceu para euresolver. Posso tentar esconder que umdos meus pais tem um problemapsiquiátrico, mas não os dois.

Minha avó empilha outra panquecaem cima das minhas, intocadas, e seserve de mais uma. Ficamos sentadas emsilêncio, vendo a calda escorrerlentamente até as flores azuis nas bordasdos pratos.

— Vamos nos divertir.Não, não vamos. Não vai ser

divertido segundo nenhuma definição nomundo. Estou com muita raiva do meu

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pai.— Ah, isto é para você — diz ela,

empurrando um envelope por cima datoalha de mesa amarela. — Seu paidisse que se esqueceu de dar.

Tomo um grande gole de café e abroa carta. A vovó não gosta que eu leia àmesa do café da manhã, mas eu não meimporto.

Querida Sarah,Tudo bem? O acampamento está MUITOCHATO agora, mas eu tenho uma GRANDEnotícia: arranjei um namorado. Ele se chamaMarcus e é superlegal. Aliás, ele não é aquelede quem eu tinha falado antes, que só sabia usaro emoticon de sorriso nas mensagens de texto.Caramba, cara, vai aprender um emoticon novo!

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Esse menino está no acampamento para garotos,e os dois grupos fizeram uma festa juntos nasemana passada. Ele foi um dos que sabiaacender uma fogueira, rápido assim. E também éo garoto mais lindo que você já viu, muito maisque o Jimmy Leighton, garanto. Pode conferir naminha página do Facebook. Acabei de mudarmeu status para “em um relacionamento sério”,e ele fez a mesma coisa! O problema é que elemora em Tyler, por isso vamos ter que namorara distância. Também preciso contar quefinalmente dei um BEIJO DE LÍNGUA. Nuncaconte isso para a minha mãe! Não mandei umamensagem de texto porque ela começou amexer no meu telefone. Ela ia surtar. Parecearriscado até escrever isso aqui para você.DESTRUA esta carta depois de ler, OK?Promete? Então, foi meio estranho no começo,mas ele parecia saber o que estava fazendo, e

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eu só fiquei ali e tentei imitar. Isso foi naprimeira noite, mas, na segunda, eu já estava tãoboa quanto ele, acho. Eu nunca soube que tinhaesse talento, mas agora tenho certeza.

Então acho que, se eu arrumei um namoradoe dei meu primeiro beijo enfurnada aqui no meiodo mato, você também deve ter conseguido, jáque não teve que ir para a casa dos seus avós!

Ah, e a Renee me contou que o pai delafinalmente chamou minha mãe para sair. Não seiainda se acho isso nojento. Ela já contou algumacoisa para você? Ela ficou com Steven Ng denovo?

Por enquanto é isso. Não se esqueça deDESTRUIR esta carta. E dá uma olhada noFacebook!!

1000 bjs,Lisa

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Bem, aí está. Ela ganhou a aposta earranjou dois namorados. Eu fiqueimenstruada, fui a um enterro, e meu paiestá bêbado, desmaiado no sofá. Comoserá que um verão que começou tãopromissor terminou, deu a volta, fez asmalas e foi embora? Tenho uma teoria, eseu nome é “Jane Nelson destrói tudo”.Se não fosse pela minha mãe, meu painão seria um bêbado, e eu não seria agarota com a mãe louca.

Passo pela sala de estar e o vejo lá,roncando e suado. Normalmente essaseria a hora em que eu lhe levaria umcopo d’água com uma aspirina, mas elevai ter que resolver esse problema

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sozinho. Se eu tivesse um copo d’água,pode apostar que jogaria bem na caradele. Eu deveria tirar uma foto, deixá-lover aquele seu eu horrível e enviar paraPBroom. Rá! Isso ia lhe ensinar umalição. Ele, todo desleixado, com ocabelo despenteado, a barba por fazer ea camisa horrorosa de um dólar.

Paro de pé ao seu lado e me perguntose ele vai acordar e pedir desculpaspara a minha vó. Percebo de repentecomo eu sinto falta de Atticus, o que éoutro claro sinal de loucura. Como vocêpode sentir falta de alguém que nuncaconheceu? Alguém que você apenasimagina conhecer, porque saiu das

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páginas de um livro para seu quarto?Fecho os olhos, vejo a versão de Atticusdo filme e deixo que meu cérebro sigaadiante.

Olá, Atticus,Sou eu, Sarah. Estou em um lugarnovo que é igual ao velho.Fizemos as malas em Garland,mas tudo veio com a gente.Nossos problemas. Nossaspreocupações. Bem, não é sobreisso que quero falar. Só estava melembrando de que o trabalho doSr. Wistler dizia que era

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necessário explicar por quetínhamos escolhido o personagemque escolhemos. Escrever acaracterística dele de que maisgostamos. Sei que já expliqueiantes, mas agora que estou aqui,parada em frente ao meu paibêbado, desmaiado e péssimo,percebo que o que mais gosto emvocê é que você não é TomNelson. Acredite em mim, nãoestou sendo dura demais. Sabe oque Scout disse sobre você, quevocê pode fazer uma pessoa se

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sentir certa mesmo quando tudo dáerrado. Isso é verdade. Pensar emvocê me faz sentir um pouquinhomelhor. Você sabe dizer as coisascertas, fazer as coisas certasmesmo quando há uma grandeinjustiça à sua frente. Agoramesmo vejo uma injustiça naminha frente, e ela está dormindono sofá, encolhida nas almofadasfloridas. Que tristeza. Ele é um paisó porque tem filhos, não porqueage como um. Isso é injustiça paramim. E minha mãe, bem, você

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sabe por que ela não é uma mãe.Então o que me resta, Atticus? Sóposso contar comigo mesma emais ninguém, além de você, que éa única pessoa verdadeira queconheço. Sei que sempre possocontar com você, apesar de vocênem mesmo ser real. Que coisadeprimente! Pelo menos eu sei quevocê vai ser sempre o mesmo todavez que eu abrir o livro. Então souapenas eu. E meu livro. E Planta,se ela sobreviver lá na selva.

Obrigada por ouvir.

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Sarah

— Sarah — diz ele. — Bom dia,garotinha.

Acho que estou parecendo um zumbi,sentada ali com a carta de Lisa na mão,olhando para o nada. Ele precisa dizermeu nome mais três vezes até que eusaia dos meus pensamentos e volte paraa vida real.

Por dentro, digo Odeio você. O quesai em voz alta é:

— Você faz minha vida cada vezmais vergonhosa, e olha que eu nãosabia que dava para ficar pior. Nãoquero morar com você. Nada nunca

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muda. Você diz que vai ser diferente,mas nunca é!

— Sarah, calma — pede minha avó,chegando por trás de mim.

— Está bem — concorda ele. —Desculpe. Vou tentar compensar vocêpor isso, garotinha.

— Não faça promessas que não vaicumprir. Já estou farta de você dizendo“te devo essa”. E não me chame degarotinha. Eu odeio quando você fazisso.

Bem, estou fazendo uma cena, sendodramática demais, mas não ligo. AtéAtticus tinha uma voz de tribunal quefazia você melhorar a postura e prestar

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atenção. Estou usando minha voz nova.As palavras jorram, rápidas e precisas.Nunca vi o rosto dele tão coberto delágrimas, mas essa jogada de parecerpatético não vai funcionar comigo.Recarrego meu rifle mental e uso cadareclamação que tenho.

— ... e você sempre, sempre seesquece de tirar a roupa da secadora eme manda para a escola parecendo umaporcaria de uva-passa.

Ele levanta e segura minhas mãos,mas eu me afasto.

— Sarah — começa ele. — Eu estouno limite.

— Limite do quê?

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— De mim mesmo, acho.— Talvez tudo tenha sido sua culpa.

Talvez você tenha deixado a minha mãelouca, e foi isso o que aconteceu comela, e é por isso que você não fala sobreo assunto!

— Sarah! — Minha avó puxa meubraço com mais força do que euimaginava que ela tivesse. — Já chega.

Por mim, tudo bem. Terminei de falarcom ele para sempre. Se uma pessoapode se dobrar como papel, foi o queacabou de acontecer com ele, quedesliza de volta para o sofá. Eu já vibandidos nos faroestes. Eles sempre sedobram.

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— Eu entendo que você pense isso,mas não é verdade. Dormir e acordareram as partes mais difíceis do dia. Porisso eu bebia. Não há desculpa, mas erao motivo. Eu me sentia culpado pelo quetinha acontecido, sabe. Agora, euprovoco esse dano...

Dano, penso, é uma palavraapropriada. Ele é um dano de carne eosso.

Nós três ficamos ali parados por umlongo minuto, até que a vovó rompe osilêncio e pergunta se eu gostaria de irao hospital com ela. Onde meu pai vaificar? Quero saber. Quero estar onde elenão estiver. Está resolvido. Nós duas

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visitamos o vovô, depois vamos a umademonstração gratuita na loja detecidos: Como transformar retalhos emdiversão. Papai vai beber muito café epesquisar clínicas de reabilitação queensinam as pessoas a não irem à loja debebidas. É difícil acreditar que somostodos parentes. Somos tão diferentes...Na verdade, se eu fosse fazer o trabalhoda árvore genealógica da minha família,as pessoas diriam: “Você só pode estarbrincando, onde está sua verdadeirafamília?”

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capítulo 33

Antes o meu pai me deixava com medode dizer coisas. Agora, tenho uma garotapara falar por mim. Ela é corajosa. Eladiz tudo em voz alta. Ela segue osplanos que faz.

Eu vou seguir o plano que fiz.Tomo o cuidado de apagar meu

histórico da internet quando termino.Quando o vovô chegar em casa, nãoquero que ele veja os horários daGreyhound de Houston para Wichita

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Falls nem que eu usei o cartão decrédito dele para comprar a passagem.Mas o que vou fazer? Não estou comtodo o meu dinheiro em Houston e queroresolver isso. O ônibus sai às 23h11 echega às 8h15 da manhã. Vou chegar láantes que eles percebam que eu parti.Um táxi vem me buscar na entrada docondomínio dos meus avós. Meu avôcostumava ir de táxi para o shopping sópor diversão. Ele diz que gosta de termotorista. Não posso dizer que nãoestou com um pouquinho de medo, massei o que esperar. Já andei de táxi eestive na rodoviária. Só queria estarcom o meu chapéu. Ele me faz parecer

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mais velha.Bato na porta do quarto do meu pai.— Pode entrar.Ele está sentado na cama, vestido e

arrumado. A manhã o purificou. Estáusando uma das camisas xadrez dovovô, que fica folgada nele. Diz queencontrou uma clínica na qual vai seinternar para fazer a reabilitação, só porduas semanas, que vou ter que passar emHouston. Depois há várias reuniões queele pode frequentar em Garland, e elepergunta se isso não é uma coisa boa. Oque respondo é:

— É uma coisa boa o que estáfazendo por você, mas tem uma coisa

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que quero que faça por mim.Pelo modo como digo isso, você

pode imaginar que usei letra maiúsculana palavra mim.

— Está bem.— Eu vou visitá-la e conversar. Só

nós duas. Tem coisas que eu precisodizer.

— Será que não podíamosconversar...

— Não — interrompo.— Talvez um terapeuta...— Não — repito. Quero chorar, mas

a garota corajosa não deixa. — Vocêestá fugindo. Atticus diz que uma criançapercebe isso mais rápido do que os

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adultos. Você deveria responder àsminhas perguntas.

— Quem? Atticus?— Atticus Finch — digo. Jogo para

ele o exemplar de capa dura da Sra.Dupree de O sol é para todos. Meu paiquase não consegue pegá-lo.

— Leia, você pode aprender algumacoisa. Nós fizemos tudo do seu jeito, eagora é minha vez. Eu não acho possívelvocê estragar tudo ainda mais. Nãopreciso conversar com você nem comterapeutas nem com mais ninguém. Temalgumas coisas que preciso dizer a ela.

— Sarah, ela pode não ser capaz deentender.

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Respondo que sei disso, mas tenhoque tentar mesmo assim.

— Você disse que ia tentar mecompensar pelo que já fez comigo, e éisso que eu quero. Você estavamentindo?

Ele passa no teste, porque concordacom o meu plano. Diz que vai junto, maspergunta por que precisamos ir deônibus, se ele pode dirigir? Respondoque não. Ele precisa comprar apassagem de ônibus dele, porque eu játenho a minha. Além disso, não confioque seja um motorista atento nascondições em que está. Esta última fraseacaba com a discussão. Usei a lógica

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para apoiar meu argumento.Digo para ele não sentar ao meu lado

e fingir que não me conhece.— Deve ser fácil — completo. —

Com toda a experiência que você temem me ignorar.

A faca entra fundo. Sinto a dor dogolpe quando saio do quarto, mas nãosinto pena. É preciso dizer a verdade àspessoas.

A rodoviária da Greyhound fede a óleodiesel e suor. Na área de embarque,sento em uma cadeira de plástico emforma de colher. É o assento maisdesconfortável que já vi, e mesmo assim

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uma mulher e uma criança à minha frenteconseguem dormir sentadas ali. Planejoagir como se fosse o mais velhapossível e não falar com ninguém.Passei o perfume da minha avó e roubeium de seus conjuntos de suéter bege, queme faz ganhar pelo menos mais trêsanos. Teria roubado um par de seusóculos de leitura para valorizar meuvisual, mas eles deixam tudo embaçadopara mim, por isso não deu. Tambémescrevi um bilhete para o vovô.Desculpe por partirmos agora. Vocêsabe por quê. Vou devolver o dinheiro.Amo você.

Papai vai comprar a passagem. Pela

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cara dele, dá para ver que não quer medeixar sozinha. Começo a olhar aoredor, procurando pelo tipo de pessoaque vai sentar ao meu lado no ônibus.Seria bom alguém da idade de Charlotte.Ainda melhor se fosse alguém como aSra. Dupree. Pelo que vejo, minhasopções são uma garota com um bebêchorão ou uma senhora que usa um rolode fita adesiva como pulseira. O que euesperava? As pessoas que viajam noônibus noturno para Wichita Falls nãovão parecer celebridades.

O número da minha passagem échamado, e eu embarco no ônibus,procurando logo um lugar. Não consigo

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encontrar ninguém que pareça limpo nemque faça contato visual, por isso sentojunto da janela atrás do banco domotorista. Quando ele conferiu meubilhete, percebi que seus sapatosestavam limpos, por isso sei que é umapessoa detalhista. Outra noite vi umseriado policial, em que o chefe dosinvestigadores disse que era possíveljulgar um homem pela limpeza de seussapatos e de seu carro. Esses são sinaisde que uma pessoa tem orgulho de seutrabalho.

Um homem com jeans e uma camisetaamarela senta ao meu lado. Está usandobotas pesadas de fazer trilha. Espero

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que ele não fale comigo nem me olhemuito. Ele cheira a gasolina, mas não emexcesso. Tem uma tatuagem de umbuldogue rosnando no braço, com asletras USMC embaixo. Bom. É fuzileironaval. O vovô tem uma tatuagemparecida, só que é uma pantera negra,em vez de um buldogue. Considero umbom sinal para minha viagem.

Dou uma olhada discreta para oreflexo do meu pai na janela quando elepassa, mas não me viro. Ele pode sepreocupar comigo lá do fundo,imaginando se o fuzileiro está azarandoa filha dele. Pelo menos trouxe o livroda Harper Lee para ler. Preferiria que

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ele tivesse trazido a brochura com meusdestaques e sublinhados, para aprendera ser confiável como Atticus.

Quando já estamos na estrada,seguros, abro meu caderno de redação eescrevo até o fuzileiro começar aroncar. O buldogue feroz sobe e desce acada respiração. Tento copiar atatuagem para ter uma lembrança daviagem, mas o desenho não fica bom.Não sou artista. Sou uma menina comcadernos cheios de perguntas.

Então escrevo para ela, uma cartalonga e franca, como nunca fiz antes. Elaquer saber sobre meu novo eu... bem, aívai. Dê uma olhada. Leia e depois dobre

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e faça um passarinho de papel, sequiser.

Cara Jane,O Sr. Wistler, meu professor deinglês, nos mandou escrever umacarta durante as férias de verão.Tenho escrito muitas. Ele sugeriuque escrevêssemos para nossopersonagem favorito ou paraalguém que tivéssemos vontade deconhecer. Bem, eu gostaria deconhecer você. E gostaria quevocê me conhecesse. É estranhoque, para mim, você seja mais

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uma personagem de ficção do queuma mãe de verdade. Só consigome lembrar de tê-la visto duasvezes desde que foi embora.

Você mencionou que gostariade saber sobre meu novo eu. Estouescrevendo para contar tudo o queestá perdendo, e mais. Esta cartacontém tudo o que eu diria paravocê se estivesse sentada naminha frente, à mesa da nossacozinha. Você perdeu muitascoisas.

Por exemplo, se estivesse aqui,

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você teria me esperado na fila doscarros no último dia de aula, comotodas as outras mães. Nósteríamos saído e tomado sorveteno Sonic, sentadas do lado de foranaquelas cadeiras vermelhas deplástico que deixam a parte de trásdas pernas toda marcada. Vocêpediria um sorvete de chocolate eaté me deixaria provar. Eu lhecontaria sobre o trabalho do Sr.Wistler, e você ficaria empolgada.

Se estivesse aqui, saberia queeu queria que meu aniversário

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fosse o contrário do que é, talveza gente compraria uma torta desorvete de três camadas, echamaria duas amigas minhas paracomer pizza e dormir lá em casa, evocê apareceria com tigelas depipoca, Coca-Cola em garrafas devidro e uma pilha de revistasSeventeen e não ligaria se nós sófôssemos para a cama depois dasquatro da manhã. Você entenderiacomo é difícil para mim receberesses cartões de aniversário quevocê manda, segurar uma coisa

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que apenas alguns dias antesestava sendo tocada pelas suasmãos.

Sabia que eu costumavaprocurar o nome do Simon noverso dos cartões só porque meparecia algo que você faria? Vocêescreveria o nome dele no últimominuto e me contaria algumalembrança linda sobre ele. Outalvez apenas dissesse que sentemuito, coisa que nunca a ouvidizer, mas acho que sei que éverdade.

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Além disso, saberia que tiveque virar uma mentirosa. Mintosobre qualquer coisa só paratreinar, para que minhas mentirassobre você soem autênticas.Alguns dias digo a mim mesmaque meus pais são divorciados,você se mudou para Paris paraaprender a cozinhar e cria receitasem minha homenagem. Minhafavorita é Sarah à la mode. Algunsdias minto e digo que vocêmorreu, mas que, antes, fazia umvestido de páscoa para mim todos

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os anos e me deixava escolher otecido na loja. Você comprava osuficiente para fazer uma faixa decabelo para você, então em todolugar que íamos estávamos semprecom um pouquinho da mesmaestampa, e as pessoas sabiam queéramos mãe e filha.

Se você estivesse aqui, meuquarto a deixaria envergonhada.Você gritaria comigo por largar aroupa suja no chão, compraria umcesto de roupa azul e branco comperfume de lavanda e pediria para

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eu, por favor, jogar as roupas ládentro, será que é pedir demais?Discutiríamos, e eu bateria aporta, querendo ser deixada empaz. Aí eu talvez me sentiria umpouco mal por ter discutido comvocê, mas teria certeza de queestava certa. O quarto é meu.Posso deixá-lo bagunçado sequiser.

Se você estivesse aqui, estariasempre escovando meu cabelo,enrolando-o em uma toalha mornae me dizendo que tipo de

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condicionador usar para deixá-lobonito. Você saberia penteá-lo emuma trança bonita ou secá-lo paraele ficar bem lisinho e escorrido.Você saberia muito bem comocuidar dele quando eu pegueipiolho no segundo ano, em vez dedeixar o papai fazer todo otrabalho, o que foi horrível.Homens não sabem pentear oscabelos das meninas.

Se você estivesse aqui, melevaria para jantar em um lugarchique com guardanapos de pano.

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Nós conversaríamos sobremenstruação e brincos e garotos.Você me levaria ao supermercado,e eu compraria o suprimento deum ano de absorventes e outrosprodutos íntimos, e não precisariapedir ajuda a ninguém.

Se estivesse aqui, a imprensanão acharia que você é umapessoa doente em um hospital.Você seria apenas mais uma mãetentando escolher o tipo certo demanteiga de amendoim, ajeitandoa alça do seu sutiã na fila do

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mercado e pensando se seriamelhor fazer dois bolos deaniversário para seus filhosgêmeos ou só um, para elesdividirem. Eu sempre quis quefossem dois.

Se você estivesse aqui, eu teriaproblemas normais, comoespinhas, ou ter que escondershorts curtos demais para a escolana mochila com os livros, ou tervontade de deixar as laterais datanga fio dental aparecendo acimada calça jeans, o que quero fazer

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só porque as outras garotas fazem,não pelo conforto. Então teríamosuma briga enorme, porque eu iaquerer ficar até tarde no JumpTown, afinal todo mundo daescola faz isso, por que eu nãoposso? E, no dia seguinte, vocêpediria minha opinião sobre umquadro roubado do qual ouvirafalar no noticiário, e minha raivapor causa das roupas evaporariacompletamente, porque vocêpresta atenção em mim. Pensa emmim como uma pessoa com

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cérebro, no fim das contas. Entãofaríamos planos para ir ao museue ver outras pinturas, e você mecontaria que não acha certo que aspessoas possuam obras de arte,que de algum modo a arte pertenceao mundo, como as nuvens e achuva.

Se você estivesse aqui, euconheceria o papai por meio dassuas palavras. O que o papai mediz de vez em quando, sempre queeu o deixo frustrado e consigoarrancar alguma coisa dele, é que

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ele amava você profundamente.Que você nem sempre foi doente,que não precisou viver internada.Que ainda é difícil para ele, queainda ama aquela pessoa queconhecia. Não é como se vocêtivesse morrido, mas como setivesse se mudado sem dizer paraonde.

Se você estivesse aqui, eu nãoprecisaria me preocupar em ficarcomo você. Teria provasconcretas de quem você é parapoder dizer: ah, esta é a diferença

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entre Sarah e Jane. Somosparecidas nisso, nem tantonaquilo. Do jeito que as coisassão, tenho que descobrir tudo issosozinha, não é?

Gostaria de ouvir sua voz. Eume sinto como Atticus a caminhodo tribunal para defender o pobreTom Robinson. (Conhece esselivro?) Atticus Finch sabia quenão ganharia, mas foi em frentemesmo assim. É por isso que estouem um ônibus indo encontrar você.

Bem, acho que disse tudo,

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apesar de não fazer muito sentido.Daqui a pouco vou encontrá-lapessoalmente. Talvez eu consigadizer algumas dessas coisas semantiver minha coragem.Descobri que é preciso escolherter coragem todos os dias, comose escolhe a camisa que vai vestir.Não é automático.

Sua filha,Sarah

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capítulo 34

A estação rodoviária de Wichita Fallsestá cheia de gente pronta para partirpara algum outro lugar. Um fuzileironaval tatuado atravessa correndo osaguão, abraça uma garota loura,levanta-a do chão e gira com ela. É acoisa mais fofa. Um dia quero que istoaconteça comigo: uma pessoa tão felizem me ver que tire meus pés do chão.

Ligamos para uma empresa de táxi eesperamos pelo carro em frente à

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rodoviária. Eu lavo o rosto, escovo ocabelo e como uma pastilha Tic Tac.Papai senta em um banco. Nós não nosfalamos. Esse é nosso acordo. Meu paitelefonou antes e avisou a eles queestávamos a caminho. Isso é tudo o queeu preciso dele.

O motorista de táxi chega e nos lançaum olhar de dúvida quando mostro oendereço. Sim, temos certeza.

Depois que passamos pela segurançado hospital, um guarda nos diz parasentarmos na sala de espera, e mais umavez aguardo por bastante tempo. Folheiorevistas, e papai observa o carpete. Háuma mulher trabalhando atrás do balcão

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da recepção, que agora chama a gente.— Família de Jane Nelson — diz ela.Chego ao balcão antes mesmo que

papai consiga responder.— Sou a filha dela. Sou a Sarah da

Jane Nelson. Sarah Nelson.É a primeira vez em toda a minha

vida que digo em voz alta que sou a filhade Jane Nelson. Saiu com a maiornaturalidade. A mulher nem pisca; estáacostumada a lidar com loucos.

Ela nos entrega crachás para prenderna roupa.

— O Dr. Block já vai falar comvocês — avisa.

Aqui não há revistas de moda, só

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coisas sérias. Então fico olhando parauma tevê presa à parede. O noticiáriodiz que três furacões seguem em fila nadireção da Costa do Golfo: Igor, Julia eKarl. Grande parte do Texas deve seratingida por chuvas fortes. Isso vai serbom para Planta. Sinto saudades dela.

— Sr. Nelson?Eu me viro na direção da voz. É um

homem bonito, de óculos de armaçãometálica e jaleco branco, mas eu nãodevia julgá-lo só com base na aparência.Pode muito bem ser um cientista loucoque veio estudar meu cérebro.

— Obrigado por nos receber — dizmeu pai. — Seria importante para Sarah

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apenas vê-la, se possível.— Não — interrompo. — Não “se

possível”. Eu tenho que ver a minhamãe.

O Dr. Block nos conduz ao seuconsultório. Sentamos em duas poltronasalaranjadas de frente para a mesa dele.

— É bom saber que você quer vê-la,Sarah — diz o Dr. Block. — Ela tomaremédios, sabia?

— Sabia — respondo. — Como elaestá?

O modo como ele sorri e junta asmãos me diz que está feliz por alguémfinalmente ter perguntado.

— Bem, sabem, este foi um mês

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difícil, por causa do aniversário.— Eu escrevi uma carta para ela —

falo para ele, dando um tapinha na minhamochila. — Queria que ela recebesse.

— Teria sido melhor se nóssoubéssemos que vocês viriam comalgumas semanas de antecedência. Aíela poderia ter se preparado para isso— conta ele. — Ela tem consciência deque se passaram dez anos, e esse é umdos motivos de estar mais frágil nestemomento.

— Ela não precisa dizer muito. Eu sópreciso vê-la e entregar minha carta.Talvez se ela só acenasse para mim...

Digo a mim mesma para não deixar

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minha coragem secar e acabar. Será quepercorri todo esse caminho para meconformar com um aceno? Só um olhar?Não, não mesmo.

O Dr. Block troca olhares com meupai, que está cumprindo a palavra edeixando que eu fale por mim mesma.

— Espere aqui um minutinho, Sarah.Sinto um frio no estômago e um nó na

garganta. Aquela sensação dividida metoma novamente. Uma pequena parte demim quer sair correndo dali o maisrápido possível. A parte maior sabe que,se eu for embora, vou me arrependerpara sempre. A vontade de fugir e anecessidade de ficar brigam dentro de

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mim. Com certeza era assim que Atticusse sentia.

Tivemos que esperar vinte minutos até avolta do Dr. Block, o que pareceu umaverdadeira eternidade. Agora sinto umpunho dentro do meu peito, batendo,batendo, batendo. Digo a mim mesmapara me acalmar. Estou em um hospital.Se algo acontecer, eles podem cuidar demim. Quero ser enterrada com o vestidopreto e com o chapéu vintage. Mas aSra. Dupree ficaria ainda maisdeprimida por ter que ir a outro funeralem um mês, por isso não posso morreragora.

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O Dr. Block nos conduz até umgrande pátio interno envidraçado que dápara um amplo gramado como o quelembro de anos atrás.

— Ela está sentada ali, tomando caféda manhã naquelas mesas brancas. Estãovendo?

Acompanho a linha para onde apontaseu braço. Vejo uma mulher de calçaazul e camisa branca do outro lado dogramado. Está perto, mas não muito.Está sentada a uma mesa de ferrobranca. Há uma cortina de cabelogrisalho pendendo em volta do seurosto. Uma brisa sopra os fios para trás,e eu vejo o formato do rosto. Eu gostaria

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de pentear o cabelo e prendê-lo comuma presilha brilhosa. Isso poderia lhedar um ar mais esperançoso. Ela fica ali,sentada, imóvel como uma estátua.Coloco a mão no vidro. Consigo cobri-la completamente com a palma da mão,como faço com a lua atrás do polegar.Mas ainda assim é como ver algoatravés do vidro. Estou pensando quenão vim de tão longe para ver através deum vidro. Isso eu podia fazer em casa.

Pergunto se posso ir lá fora, e o Dr.Block diz que sim, podemos, mas sópara olhar. Ele acha que a conversadeve ser deixada para outro dia, dando aela tempo para se adaptar.

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Nós vamos lá para fora, todos ostrês. Meu coração bate tão alto que eurezo para que ela o escute, receba ospensamentos que estou lhe enviando.Estou bem aqui. Escrevi uma cartapara você. Olhe para mim. Olhe paramim.

Ela não faz nada, só bebe café.Vire! Vire! Vire! Me veja! Estou bem

aqui. Só quero que você saiba queestive aqui, sem eu dizer nada.

De repente, ela faz isso. Vira acabeça. Olha na minha direção. Opescoço e a cabeça com certeza estãovirados para mim. Eu me pergunto se elavai acenar, mas não. Está imóvel.

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Calma. Uma brisa mais forte sopra meucabelo para trás. Vejo o vento fazer omesmo com o dela. Eu tinha razão.Ficaria legal se estivesse preso para tráscom uma presilha. Saco a câmera quepeguei emprestada da vovó e tiro umafoto. Nem peço permissão, comoimaginei que teria que fazer. Desço dopátio cimentado para a grama. Eu nãodeveria fazer isso, mas sigo em frente.Deixo para me preocupar com osproblemas depois. Vou fazer as coisasdo meu jeito. Eu acelero o passo nadireção dela.

— Sarah — chama o Dr. Block. —Volte.

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Mas eu sigo adiante. Eu sigo como seestivesse sendo puxada por algumacoisa. É aquela parte maior, que écorajosa. Ela está mandando a partemenor e fraca sentar e calar a boca.Agora estou caminhando na direçãodela. A grama alta roça meus pés. Nãotenho um plano. Tiro a carta da mochilae estendo as páginas, oferecendo-as aela.

Meus pensamentos secretos estão nasminhas mãos. Mais que tudo quero queela leia a carta para que me conheça, oupelo menos uma parte de mim. A parteboa, que não mente. Quero que ela mediga que leu o mesmo livro que eu, que

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queria me dar o nome de Scout, mas queo papai foi contra.

Paro de andar. E agora? Não sei.Meu plano termina aí. O Dr. Block mesegue. Tem um trecho de gramado damesma extensão à minha frente. Comoserá que parecemos para os estranhos?Normais? Não duas pessoas envolvidasem um crime. Pessoas que aparecem nonoticiário.

De repente percebo que estou comvontade de mergulhar a cabeça notravesseiro e chorar muito, até encharcá-lo, e depois dormir na casa dos meusavós, na cama desta vez, embaixo dascobertas. De me esconder do mundo num

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lugar seguro. Mas as minhas pernas nãose movem, nem para a frente nem paratrás.

Não estamos juntas, mas não estamosseparadas. Eu poderia fazer um milhãode perguntas a ela ou não dizer nada. Aescolha é minha. Estou paralisada bemno meio do caminho. Se ficar aqui porbastante tempo, vão ter que me trazercomida. E me cobrir com um cobertor.Trazer um guarda-chuva se eu precisar.Por quanto tempo uma pessoa consegueviver em um único quadrado de grama?

O Dr. Block está poucos metros atrásde mim, me chamando para entrar econversar. A voz dele é calma e

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amistosa. Está tudo bem, digo.Esse não era o tipo de riqueza que eu

estava pensando em adicionar à minhavida neste verão. Bem, o que euesperava? E não há como dizer dequantas maneiras diferentes é possíveldescrever como estou confusa. Não vounem deixar meu cérebro entrar no modosinônimo. Se Finn estivesse aqui, eudiria para ele calar a boca. E então euteria vontade de abraçá-lo, mesmocontra a vontade dele.

Olho para trás uma vez, vejo-a de pé,conversando com alguém. Outra pessoarecebe suas palavras, e eu, não. É tãoinjusto! Ela alisa o tecido de sua camisa

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do mesmo jeito que eu faço, mas algoem seu movimento a faz parecer bela eterna. Quero outra foto dela andando.Mais tarde, quando eu imprimir afotografia, a imagem vai mostrar duasamigas saindo para dar uma volta,conversando sobre quais flores plantarneste verão. Como se esse ambientefosse um quintal enorme no qualtrabalharam duro para depois apreciaros botões. Apenas duas pessoas saindopara caminhar. Normais. Ergo a câmerapara tirar outra foto. Quando faço issome esqueço da carta, e as páginas voamdas minhas mãos. O vento as sopra parao céu. Meus pensamentos. Meus

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segredos. Estão sendo levados pelo arcomo pássaros brancos libertados.

Meus pés se movem e correm atrásdas folhas, pisando com força em umadelas ao tocar a grama. Outra meprovoca e sai voando assim que aalcanço. A última página voa pelo ar ese prende a uma árvore. A partedividida de mim grita dentro da minhacabeça. Eu não me importo. Eu meimporto. Não quero mais me importarcom o que as pessoas sentem. Morro demedo do que as pessoas pensam.

— Vamos agora — diz o Dr. Block.— Vou pedir que alguém recolha issopara você.

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Ele é tão simpático... Tenho vontadede abraçá-lo.

Estou no consultório do Dr. Block,mordendo o lábio para segurar aslágrimas. Ele organizou minhas páginasamarrotadas numa pilha. Não tenho ideiade como conseguiu pegá-las.

— Você quer saber alguma coisa? —pergunta o Dr. Block.

Seria mais fácil se ele pudesseexaminar meu cérebro e ver lá dentrotodas as perguntas que tenho. Novasreportagens seriam feitas sobre mim.Cérebro de menina do Texas temrecorde mundial de perguntas.

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Eu falo para o Dr. Block:— Diga a ela que eu vim visitá-la.— Vou dizer.— Ela virou a cabeça para mim, não

virou? — pergunto.O Dr. Block dá novamente seu

sorriso simpático.— Você não é o que aconteceu com

sua mãe.Deixo o pensamento rolar pela minha

cabeça até que se fixe em um canto,como a alça de uma mala. Sei que voupegá-lo várias vezes. Senti-lo sólido nasminhas mãos.

— Somos só eu e você agora — diz oDr. Block. — Você pode me perguntar

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qualquer coisa. Me contar qualquercoisa, está bem?

— Obrigada, o senhor foi muitogentil — digo. A frase soa madura,como eu sabia que seria. — O senhoracha que eu a assustei?

— De verdade? Acho queprovavelmente ela não viu você.

Bem, não é como se eu pudesse terum encontro normal com ela. Nãomesmo. Não pude fazer as perguntaspara o trabalho da árvore genealógica.Descobrir as coisas que temos emcomum. Não posso obrigá-la a ser minhamãe se ela é doente. Tenho que contar sócomigo. Isso não deveria me

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surpreender agora, mas surpreende.Passei esse tempo todo pensando queminha situação era ruim, mas agora vejoque a dela provavelmente é pior.

— Só tenho mais uma pergunta —digo para o Dr. Block. — Por que eu sórecebo dois cartões por ano dela?

— Sabe, é complicado. Ela é umapessoa inteligente, mas sente que nãodeve ver a família nunca mais. Vocêprecisa entender que ter uma doençamental não significa não ser inteligente.Para ela, às vezes é muito doloroso,muito destrutivo lembrar, porque elaentende que o que fez foi muito errado.Eu sei que ela queria que as coisas

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tivessem sido diferentes. De certamaneira, acho que ela acredita estarprotegendo você.

Ficamos sentados em silêncio poralguns minutos, e a sensação é boa,como se eu pudesse recuperar o fôlegodepois de correr por uma hora.

— Tem mais uma coisa.— Sim?— Acho que alguém podia pentear o

cabelo dela para trás e botar umapresilha. Ficaria bonito assim.

— Sim, claro, obrigado pelasugestão.

Ele abre um arquivo em cima damesa, pega a caneta no bolso e anota:

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Presilha de cabelo para Jane. Pelomenos é o que eu imagino.

Vou mandar uma presilha para ela noNatal. Talvez duas. Eu e a Lisa podemosir na Claire’s para escolher. Nada derosa. Azul. Azul é a cor dela.

— Garotinha, você está bem?A adrenalina jorra por todo o meu

corpo quando eu me viro para vê-lo, debraços já abertos, os olhos cheios dotipo de lágrima que não cai. Eu e eletemos isso em comum. Ele me envolvecom os braços, me levanta do chão e megira no ar. Aí sou eu que choro, não ele,quando o abraço o mais forte que meusbraços conseguem.

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— Sinto muito pelo que eu falei —digo.

— Eu não sinto — devolve ele.Ele se ajoelha com uma perna só.

Seus olhos encontram os meus e dizemque tudo está perdoado. O Dr. Blockaperta a mão do meu pai, que agradece.Quando estamos de saída, o médicopega a pilha de páginas.

— Quer deixar isso aqui?Eu queria dar a carta para ela,

explicar o que quero dizer, ver suaexpressão enquanto lê aquilo.

— Quero, eu queria que elarecebesse.

— Vou ser sincero: tenho que ler

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antes de entregar para ela. Tudo bem?Era de se imaginar que essa seria a

pior coisa que poderia acontecer naminha vida, mas não, não é.

— Tudo bem — concordo.Há outro táxi amarelo à nossa espera

na entrada. A chuva está caindo comforça agora. Eu me sinto leve. Éestranho pensar que eu não sabia queestava carregando um peso tãogigantesco até me livrar dele.

O papai está com a mão na boca. É osinal da tristeza. Eu me encosto nele, eele ajeita meu cabelo para trás daorelha.

— Posso perguntar uma coisa?

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— Pode.— O que você botou no túmulo do

Simon?— Uma página.— Do livro?— A parte em que Atticus descreve

coragem. O que significa tê-la.Meu pai diz que eu sou a pessoa mais

corajosa que ele já conheceu. Isso vaidireto para aquele lugar secreto dentrode mim, onde guardo minhas palavrasfavoritas.

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capítulo 35

Aqui está mais uma coisa que euprecisei aprender sozinha. Depois quealgo muda na sua vida, é melhor esperarpor mais mudanças. É como derrubar oprimeiro dominó. As outras peças nãopodem fazer nada, só cair onde estão. Sevocê tiver sorte, não vai se importarcom o jeito como elas caem.

Eu tenho sorte.Vou ter que reler meus diários para

ver exatamente quando a primeira peça

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caiu. Será que foi o cartão da minhamãe? Ou foi vê-la no gramado, quando ovento soprou seu cabelo para trás? Achoque só o que realmente sei é que minhavida mudou, e eu não me importo.

Fiquei em Houston, e o papai entrouna reabilitação. Depois voltei paraGarland com meus avós e meu pai, quedirigiu sem fazer nenhuma parada, maseu não liguei.

Assim que cheguei a Garland, exumeiPlanta (exumar é minha nova palavrafavorita) e a coloquei em um vaso novoe maior.

exumar v. tirar do túmulo,

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desenterrar; retirar do esquecimento

A Sra. Dupree se aproximouenquanto eu molhava Planta e perguntouse eu queria uma fatia de torta de maçã.Também me ofereceu algumas dasplantas dela.

— Ganhei tantas no funeral do Sr.Dupree que não tenho a menor condiçãode cuidar de todas — foi o que eladisse. — Nós duas somos boas complantas, você não acha?

No dia seguinte, fiquei com Charlotte,que não conseguia tirar Christopher dacabeça e precisou terminar com ele maisuma vez para perceber que o fato de ele

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ser um idiota era mais um defeitopermanente que uma fase passageira.

Na primeira semana depois quevoltamos para Garland, não vi Finnmuitas vezes. Ele não passava muitotempo em casa por causa da mãe e disseque estava se escondendo na bibliotecapara estudar.

Só voltei a falar com Finn hoje,quando subi de novo no toco paraobservar o pessoal da Gramados eJardins Sanchez cortar a grama. Achoque estava tão distraída que não percebiquando o carro dele parou junto donosso meio-fio, e ele baixou o vidro.

— Por que você fica parada nesse

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toco?— Porque mais ninguém faz isso —

digo, descendo num pulo e afundando ospés na terra. Vou andando até o carrodele e me apoio na janela. — Vai voltarpara a faculdade com sua namorada, odicionário?

— Vou.— Vai gostar de saber que eu superei

completamente a minha paixonite porvocê — minto. — Então, sabe, vocêainda pode me mandar e-mails emensagens.

— Fico feliz.— Nós sempre vamos ter The Price

Is Right.

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— E chapéus.— E Harper Lee.— Por falar em chapéus, tenho uma

coisa para você.Ele me passa uma sacola com o

chapéu-coco dentro.— Guarde para mim, está bem? —

diz.Na mesma hora, eu sei que vou ficar

com ele para sempre. Que Lisa fiquecom seu primeiro beijo. Isto é melhor.

Quando ele vai embora, falo ems i l ênc i o : Ainda amo você, FinnReynolds.

Aí botei meu novo chapéu favorito,chutei uma pedrinha pela calçada e

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pensei em telefonar para Lisa e marcaruma ida ao shopping. Ainda falta quaseum mês para eu ter que enfrentar osétimo ano, e preciso dar um jeito nomeu guarda-roupa. Talvez eu use ochapéu quando for apresentar o temidotrabalho da árvore genealógica. Nãotenho certeza absoluta do que escreverno meu projeto, mas agora isso parecemais um aborrecimento do que umproblema gigante. Qualquer um quetenha visto as notícias durante o verão jásabe sobre minha mãe mesmo, então eusó preciso ter coragem. Posso dizer quenão sei muito sobre ela e que não somospróximas. O resto não é da conta de

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mais ninguém. Essa é a verdade.Agora, entro na garagem e pego um

prego para pendurar o chapéu de Finn nomeu quarto. Para minha surpresa, a portarange e me dá o maior susto. Odeio essacasa. Então o papai aparece com umgrande sorriso no rosto.

— Onde estão os pregos? —pergunto.

— Para que você precisa de umprego?

— Para pendurar uma coisa na minhaparede.

— O que acha de uma parede nova?— Do que você está falando?

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Surge, então, uma peça nova, que não vique estava prestes a se encaixar. Nojantar desta noite, o papai anuncia paramim e meus avós:

— Comprei uma casa para nós naHarvard. A duas quadras daqui. Todasas paredes são brancas. Nós podemospintá-las da cor que quisermos.

Bem, por essa eu não esperava.Ele me abraçou com força e passou o

jantar inteiro sorrindo. Eu nunca tinhavisto meu pai sorrir tanto. Depois,ajudei vovó a limpar a cozinha, onde elahavia preparado café da manhã para o

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jantar (não é uma ótima ideia?):rabanadas, salsichas com calda debordo e frutas frescas. A comida deu umperfume açucarado à nossa cozinha feiade aluguel. Vou fazer com que nossacasa nova também cheire bem. Vai terplantas por toda parte, com Planta, arainha de todas elas, na janela da frenteda nossa pia nova.

Quando vou para o meu quarto,encontro uma pilha arrumada de roupalimpa na beira da cama. Isso é coisa daminha avó. Lavou meus shorts e camisase dobrou tudo em quadradosorganizados. Digo a mim mesma que voufazer isso na casa nova. Tirar minha

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roupa limpa da secadora assim queterminar de secar, dobrá-la com cuidadoe arrumar tudo nas gavetas, do maisclaro para o mais escuro, da mesmaforma que ela organiza seu armário.Arrumar minhas gavetas de maquiagempara deixá-las como um balcão decosméticos chique e forrar todas elascom papel perfumado, especialmenteaquelas com meu suprimento anual deprodutos femininos. A vovó gostou daminha ideia de ir ao supermercado e mepoupar da situação embaraçosa de terque pedir para o papai comprarabsorventes.

Vou à cozinha agradecer e a encontro

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embalando sanduíches em papel-manteiga. Não conheço mais ninguémque faça isso. É ao mesmo tempoesquisito e maravilhoso e parece que arefeição foi embrulhada especialmentepara você. Acho que é algo que eugostaria de fazer para meus filhos. Elatambém montou a tábua de passar, e hásinais de que passou as cuecas do meupai. Isso com certeza é uma coisa quenão vou fazer para meus filhos.

— Eu sempre aguardo ansiosa asnossas visitas — diz ela com um toquede tristeza na voz. Tenho vontade dedizer “Sério?”, mas não é hora dequestioná-la. — Falei com seu pai, e

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concordamos em uma coisa. Ou melhor,eu expliquei o que eu achava, e agoraele concorda. É hora de furar as orelhas.Ele disse que vai levar você no sábadoque vem.

Ela toca meu ombro, sua mão correaté o meu cabelo e o coloca para trás daorelha.

— Pequenos diamantes solitáriosficariam bem, e eles combinam comtudo.

Uma onda de carinho e amor tomameu peito. Eu a abraço e descarregotodo o peso da minha felicidade recém-descoberta. Acho que ela não esperavapor isso, porque seu corpo se dobra

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para trás. Eu e ela nunca fomos muitocarinhosas. Mas lá estamos nós, duaspessoas se abraçando em uma cozinha,como se acontecesse todos os dias.

— Temos que contar algumas coisassobre garotas ao seu pai, você e eu. Elenem sempre lembra — diz ela.

No meu quarto, visto o pijama e sentona cama. Agora, não é meu diário falsoque apanho. É trabalho demais paraatualizar, e está muito atrasado. Pego ocaderno verde e o abro em uma páginabranca e limpa. Tenho mil e umpensamentos que quero escrever, algunssó para mim: uma carta para Atticus. Euma carta para o Sr. Wistler, que talvez

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diga apenas: Obrigada por ser o melhorprofessor do mundo. Mas as palavrasnão viajam do meu cérebro para a mão,ainda não.

Continuo a pensar em como o verãopassou tão depressa que agora querodesacelerá-lo. Dar um pause e reveralguns trechos. O momento em queminhas páginas ficaram presas nasárvores. O jeito como o cabelo dela caíaem volta do rosto. As rachaduras detristeza no coração do meu pai. O garotodas mil palavras que parece demais como pai dele. Eu com um chapéu antigo,indo de um lado para o outro. As mãosde uma senhora abrindo massa para uma

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torta de maçã. Um livro velho que émais como um amigo e de alguma formase torna novo a cada vez que abro suaspáginas.

Me sinto exausta, por isso fecho ocaderno. Sei que não vou me esquecerde contar a Atticus mais tarde que a Sra.Dupree encontrou o exemplar antigodela de The gray ghost, uma históriaque ele leu para Scout. Vamos ler juntas.É bobagem pensar assim, mas elegostaria disso.

O papai empurra de leve a porta domeu quarto, abre um pouco e entra.

— Então, espero que esteja feliz coma mudança — diz ele.

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— Estou.Ele se aproxima e senta na beira da

cama.— Sabia que a vovó realmente

passou as suas cuecas? — pergunto.Ele balança a cabeça e sorri.— É muito esquisito — digo. —

Você precisa fazer alguma coisa emrelação a isso.

Ele puxa as cobertas e as ajeitaembaixo do meu queixo.

— Bem, o que posso dizer,garotinha? Todos nós temos quesobreviver às imperfeições dos nossospais, com cuecas passadas e tudo mais.

— Mas e se PBroom visse? Como

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você poderia sobreviver a essavergonha?

Ele estende as mãos.— Existe o pai que você deseja e o

pai que você tem. Com sorte, às vezeseles são a mesma pessoa.

Bem, eu achava que não tínhamosnada em comum, mas é fácil esquecerque seu pai também é filho de alguém.

— Então me conte outras vezes emque ela o deixou envergonhado.

— Isso levaria a noite inteira — dizele. — Amanhã.

Ele beija a minha cabeça e apaga aluz. Quando acordarmos de manhã, seique ele vai conversar comigo.

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Agradecimentos

Toda escritora deveria contar com umelenco de apoio de pessoasinspiradoras, inteligentes e motivadoras.Tenho bastante sorte de ter um elencoassim. Sou profundamente agradecida àsseguintes pessoas: minha agente, JuliaKenny, por sua sabedoria, seusconselhos, seu auxílio jurídico... e porfazer sonhos virarem realidade. Minhabrilhante editora, Bethany Strout, porseu talento, sua graça e sua alegria. Um

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agradecimento especial a Alvina Ling ea todos na Little, Brown. Acho que é amelhor equipe no ramo da produçãoeditorial.

A meus amigos maravilhosos emotivadores, Kathryn Casey; MyleneClark; Dave Diotalevi; Robin Gage;Charyl Haase; Cathy Heape; AnneHunter; Julie, Mark e Katie Neinast;Jenny Wingfield; Sandra e EldonYoungblood, e mais especialmente aAmy Hazell. Sou verdadeiramenteabençoada por ter cada um de vocês.

A Katy Patrick e a todas as belasPulpwood Queens. Obrigada por seremas melhores amigas de um livro.

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À memória do meu professor deinglês do sexto ano, o escritor G. CliftonWistler. Às vezes, a simples presençade um professor apaixonado podeinspirar você para o resto da vida.

Por fim, obrigada à minha família,por me dar o amor e a liberdadenecessários para ser criativa.Principalmente a Matt, que sempreacreditou e me estimulou. Amo você. Apapai e Kathy, por me amarem e metrazerem brownies. E a Chloe e Molly,que fazem meu coração sorrir.

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Sobre a autoraFoto: cortesia da autora

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KAREN HARRINGTON nasceu no

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Texas, onde mora com o marido e osfilhos. Claros sinais de loucura é seuprimeiro livro para jovens. Visite seusite em www.karenharringtonbooks.com