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Curso de Direito Constitucional (2014) - 8a ed.: Rev., amp. e atualizada

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Compre agora! http://www.editorajuspodivm.com.br/produtos/dirley-da-cunha-jr/curso-de-direito-constitucional--2014---8a-ed--rev-amp-e-atualizada/1144 Conforme Emenda Constitucional nº 76/2013 É com enorme alegria que apresento a 8ª edição do Livro Curso de Direito Constitucional, que foi revisto, atualizado e ampliado. Agradeço a todos que confiaram em nosso trabalho, deixando aqui o registro de que foi exatamente esse sentimento de fé e crédito que nos motivou a melhorar ainda mais o Livro, acrescentando matérias não tratadas anteriormente e aprofundando em tantas outras já abordadas. A 8ª edição acompanha os passos das anteriores, sendo fiel ao propósito de auxiliar o leitor, com seriedade, no estudo científico, compromissado, didático e compreensivo dos principais temas do Direito Constitucional. O Livro foi revisto, atualizado e ampliado, sobretudo em razão das novas Emendas Constitucionais nºs 72/2013, 73/2013, 74/2013, 75/2013 e 76/2013. A Emenda Constitucional nº 72, de 02 de abril de 2013, alterou a redação do parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais; a Emenda Constitucional nº 73, de 06 de abril de 2013, criou os Tribunais Regionais Federais da 6ª, 7ª, 8ª e 9ª Regiões; a Emenda Constitucional nº 74, de 06 de abril de 2013, acrescentou o § 3º ao art. 134 da Constituição Federal, para estender a autonomia das Defensorias Públicas Estaduais às Defensorias Públicas da União e do Distrito Federal; a Emenda Constitucional nº 75, de 15 de outubro de 2013, acrescentou a alínea “e” ao inciso VI do art. 150 da Constituição Federal, para instituir imunidade tributária sobre os fonogramas e videofonogramas musicais produzidos no Brasil contendo obras musicais ou literomusicais de autores brasileiros e/ou obras em geral interpretadas por artistas brasileiros bem como os suportes materiais ou arquivos digitais que os contenham; e, finalmente, a Emenda Constitucional nº 76, de 28 de novembro de 2013, alterou o § 2º do art. 55 e o § 4º do art. 66 da Constituição Federal, para abolir a votação secreta nos casos de perda de mandato de Deputado ou Senador e de apreciação de veto. Fizemos a atualização da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, notadamente em razão de algumas importantes mudanças de entendimento da Corte em certos temas. Demais disso, ampliamos a abordagem acerca da Teoria da Constituição (capítulo III); dos Direitos Sociais (capítulo XIII); da Organização do Estado (capítulo XVII); da Organização dos Poderes (capítulo XVIII); e da Tributação e do Orçamento (capítulo XX). Enfim, agradeço as sugestões gentilmente apresentadas por amigos professores, alunos e ex-alunos, que foram prontamente acatadas, esperando que esta edição tenha a mesma acolhida e êxito que obtiveram as edições anteriores.

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CONSTITUCIONALISMO 29

CAPÍTULO I

CONSTITUCIONALISMOSumário • 1. Origem e conceito – 2. Desenvolvimento: 2.1. Consti tucionalismo anti go; 2.2. Consti tucio-nalismo medieval; 2.3. Consti tucionalismo moderno – 3. Neoconsti tucionalismo: 3.1. Patrioti smo Consti tu-cional; 3.2. Transconsti tucionalismo.

1. ORIGEM E CONCEITO

A origem do constitucionalismo remonta à antiguidade clássica, mais especifi-camente, segundo Karl Loewenstein1, ao povo hebreu, de onde partiram as primeiras manifestações deste movimento constitucional em busca de uma organização política da comunidade fundada na limitação do poder absoluto. De fato, explica Loewenstein que o regime teocrático dos hebreus se caracterizou fundamentalmente a partir da ideia de que o detentor do poder, longe de ostentar um poder absoluto e arbitrário, estava limitado pela lei do Senhor, que submetia igualmente os governantes e governados, radicando aí o modelo de Constituição material daquele povo.

O conceito de constitucionalismo, portanto, está vinculado à noção e importância da Constituição, na medida em que é através da Constituição que aquele movimento pretende realizar o ideal de liberdade humana com a criação de meios e instituições necessárias para limitar e controlar o poder político, opondo-se, desde sua origem, a governos arbitrários, independente de época e de lugar.

Não pregava o constitucionalismo, advirta-se, a elaboração de Constituições, até porque, onde havia uma sociedade politicamente organizada já existia uma Constituição fixando-lhe os fundamentos de sua organização. Isso porque, em qualquer época e em qualquer lugar do mundo, havendo Estado, sempre houve e sempre haverá um complexo de normas fundamentais que dizem respeito com a sua estrutura, organização e ati-vidade. O constitucionalismo se despontou no mundo como um movimento político e filosófico inspirado por ideias libertárias que reivindicou, desde seus primeiros passos, um modelo de organização política lastreada no respeito dos direitos dos governados e na limitação do poder dos governantes.

É claro que, para o sucesso do constitucionalismo, agigantou-se a necessidade de que aquelas ideias libertárias fossem absorvidas pelas Constituições, que passaram a se dis-tanciar da feição de cartas políticas a serviço do detentor absoluto do poder, para se trans-formarem em verdadeiras manifestações jurídicas que regulassem o fenômeno político e o exercício do poder, em benefício de um regime constitucional de liberdades públicas.

Num primeiro momento, as propostas do constitucionalismo não estavam con-dicionadas à existência de Constituições escritas, mesmo porque, como alertou Lo-ewenstein2, o surgimento de Constituições escritas não se identifica com a origem do constitucionalismo. As Constituições escritas são produto do século XVIII, enquanto o

1. KARL LOEWENSTEIN, Teoria de la Constitución, p. 154.2. Ibidem, mesma página.

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constitucionalismo tem a sua fase embrionária associada aos povos da antiguidade, com se noticiou acima.

É preciso insistir, contudo, que mesmo antes do advento do chamado Estado de Direito, já existia um Estado, chamado Absoluto, fundado numa Constituição que prescrevia obe-diência irrestrita ao soberano. Sendo assim, o constitucionalis mo, como movimento, não se destinou a conferir ‘Constituições’ aos Estados, que já as possuíam, pelo menos no sentido material, mas, sim, a fazer com que as Constituições (os Estados) abrigassem preceitos asseguradores da separação das funções estatais e dos direitos fundamentais3. Nesse contexto, podemos afirmar, com o mestre baiano Edvaldo Brito, que o constitucionalismo “é expressão da soberania popular que representa, em certo momento histórico, o deslo-camento do eixo do poder, cuja titularidade ou exercício era exclusivamente do ‘soberano’”.4

2. DESENVOLVIMENTO

Como visto acima, o constitucionalismo representou um importante movimento po-lítico e filosófico que se manifestou em diversas épocas e lugares. Por isso mesmo, há quem prefira chamá-lo de movimentos constitucionais5 e identificá-lo, a partir de sua fase histórica e de suas características, como constitucionalismo antigo, medieval, moderno e contemporâneo.

2.1. Constitucionalismo antigo

O constitucionalismo desenvolveu-se por toda a antiguidade clássica, tendo presença marcante nas cidades-Estado gregas onde se consagrou, por quase dois séculos (V a III a.C.), um regime político-constitucional de democracia direta com absoluta igualdade entre go-vernantes e governados, cujo poder político foi isonomicamente distribuído entre todos os cidadãos ativos.

Em Atenas, por mais de dois séculos (de 501 a 338 a.C.), o poder político dos gover-nantes foi rigorosamente limitado, não apenas pela soberania das leis, mas também pela instituição de um conjunto de mecanismos de cidadania ativa, em virtude dos quais o povo, pela primeira vez na História, governou-se a si mesmo. Como se sabe, a democracia ate-niense consistiu, basicamente, na atribuição popular do poder de eleger os governantes e de tomar diretamente em Assembleia (a Ekklésia) as principais decisões políticas, como, v. g., a adoção de novas leis, a declaração de guerra e a conclusão de tratados de paz ou de aliança. Ademais disso, a soberania popular ativa abrangia um sistema de responsabi-lidades, pelo qual era permitido a qualquer cidadão mover uma ação criminal (apagoguê) contra os dirigentes políticos, devendo estes, ainda, ao deixarem os seus cargos, prestar contas de sua gestão perante o povo. Os cidadãos também tinham o direito de se opor, na reunião da Assembleia, a uma proposta de lei violadora da constituição (politéia) da cidade; ou, na hipótese de tal proposta já se encontrar aprovada e convertida em lei, de responsabilizar criminalmente o seu autor6.

3. MICHEL TEMER, Elementos de Direito Constitucional, p. 21.4. Limites da Revisão Constitucional, p. 26.5. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 48.6. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, 2001, p. 41.

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A República romana (V a II a.C.) também foi palco importante para o amadurecimento das ideias constitucionalistas, sobretudo em razão de haver instituído um sistema de freios e contrapesos para dividir e limitar o poder político. Isto é, em Roma, com a instauração do governo republicano, o poder político passou a sofrer limitações, não propriamente pela soberania popular ativa nos moldes da democracia ateniense, mas em razão da ela-boração de um complexo sistema de freios e contrapesos entre os diferentes órgãos po-líticos. “Assim é que o processo legislativo ordinário (...) era de iniciativa dos cônsules, que redigiam o projeto. O projeto passava em seguida ao exame do Senado, que o aprovava com ou sem emendas, para ser finalmente submetido à votação do povo, reunido nos comícios”.7

2.2. Constitucionalismo medieval

Mas foi na idade média, em especial com a Magna Carta inglesa de 1215, que o consti-tucionalismo logrou obter importantes vitórias com a limitação do poder absoluto do Rei, através do reconhecimento naquele texto escrito, que representou um pacto constitucional entre o Rei e a Nobreza e Igreja, da garantia da liberdade e da propriedade.

Essa Declaração, consistente num pacto firmado em 1215 entre o Rei João Sem Terra e os Bispos e Barões ingleses, apesar de ter garantido tão somente privilégios feudais aos nobres ingleses, é considerada como marco de referência para algumas liberdades clássicas, como o devido processo legal, a liberdade de locomoção e a garantia da propriedade.

O importante é destacar que a Magna Carta inaugurou a pedra fundamental para a construção da democracia moderna, pois, a partir dela, o poder do governante passou a ser limitado, não apenas por normas superiores, fundadas no costume ou na religião, mas também por direitos subjetivos dos governados. A Magna Carta deixa implícito pela primeira vez na história política medieval, que o rei acha-se naturalmente vinculado pelas próprias leis que edita8.

2.3. Constitucionalismo moderno

Após a Magna Carta inglesa, o constitucionalismo deslancha em direção à moder-nidade, ganhando novos contornos. A partir daí são elaborados importantes documentos constitucionais escritos (Petition of Rights, de 1628; Habeas Corpus Act, de 1679; Bill of Rights, de 1689, etc.), todos com vistas a realizar o discurso do movimento constitucio-nalista da época. No século XVIII, o constitucionalismo ganha significativo reforço com as ideias iluministas, a exemplo da doutrina do contrato social e dos direitos naturais, de fi-lósofos como John Locke (1632-1704), Monstesquieu (1689-1755), Rousseau (1712-1778) e Kant (1724-1804), que se opunham aos governos absolutistas (luzes contra trevas), e que serviram de combustível para as revoluções liberais.

Essas diversas fases de desenvolvimento do constitucionalismo têm gerado a dis-tinção, frequentemente lembrada, entre o constitucionalismo antigo e o constitucionalismo moderno. Segundo Canotilho, numa acepção histórico-descritiva,

“fala-se em constitucionalismo moderno para designar o movimento político, so-cial e cultural que, sobretudo a partir de meados do século XVIII, questiona nos planos político, filosófico e jurídico os esquemas tradicionais de domínio político,

7. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, 2001, p. 42.8. COMPARATO, Fábio Konder. op. cit., p. 75.

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sugerindo, ao mesmo tempo, a invenção de uma forma de ordenação e funda-mentação do poder político. Este constitucionalismo, como o próprio nome indi-ca, preten de opor-se ao chamado constitucionalismo antigo, isto é, o conjunto de princípios escritos ou consuetudinários alicerçadores da existência de direitos es-tamentais peran te o monarca e simultaneamente limitadores do seu poder. Estes princípios ter-se-iam sedimentado num tempo longo, desde os fins da Idade Média até o século XVIII”.9

Designa, assim, de constitucionalismo antigo todo o esquema de organização político--jurídica que precedeu o constitucionalismo moderno, como o constitucionalismo hebreu, o constitucionalismo grego, o constitucionalismo romano e o constitucionalismo inglês.

No constitucionalismo antigo, a noção de Constituição é extremamente restrita, uma vez que era concebida como um texto não escrito, que visava tão só à organização política de velhos Estados e a limitar alguns órgãos do poder estatal (Executivo e Judiciário) com o reconhecimento de certos direitos fundamentais, cuja garantia se cingia no esperado respeito espontâneo do governante, uma vez que inexistia sanção contra o príncipe que desrespeitasse os direitos de seus súditos. Ademais, o Parlamento, considerado absoluto, não se vinculava às disposições constitucionais, não havendo possibilidade de controle de constitucionalidade dos atos parlamentares. O Parlamento podia, até, alterar a Consti-tuição pelas vias ordinárias.

O constitucionalismo moderno, contudo, surge vinculado à ideia de Constituição escrita, chegando a seu ápice político com as Constituições escritas e rígidas dos Estados Unidos da América, de 1787, e da França, de 1791, revestindo-se de duas características marcantes: organização do Estado e limitação do poder estatal, por meio de uma declaração de direitos e garantias fundamentais. Já no constitucionalismo moderno, a noção de Constituição envolve uma força capaz de limitar e vincular todos os órgãos do poder político. Por isso mesmo, a Constituição é concebida como um documento escrito e rígido, manifestando-se como uma norma suprema e fundamental, porque hierarquicamente superior a todas as outras, das quais constitui o fundamento de validade que só pode ser alterado por pro-cedimentos especiais e solenes previstos em seu próprio texto. Como decorrência disso, institui um sistema de responsabilização jurídico-política do poder que a desrespeitar, in-clusive por meio do controle de constitucionalidade dos atos do Parlamento.

Enfim, o constitucionalismo moderno legitimou o aparecimento da chamada consti-tuição moderna, entendida como “a ordenação sistemática e racional da comunidade po-lítica através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político”.10 Desdobrando esse conceito de Constituição, consi-derado por Canotilho como um conceito ideal, tem-se que ela deve ser entendida como: (1) uma norma jurídica fundamental plasmada num documento escrito; (2) uma declaração, nessa carta escrita, de um conjunto de direitos fundamentais e do respectivo modo de ga-rantia e, finalmente, (3) um instrumento de organização e disciplina do poder político, segundo esquemas tendentes a torná-lo um poder limitado e moderado.

O constitucionalismo moderno, portanto, deve ser visto como uma aspiração a uma Constituição escrita, que assegurasse a separação de Poderes e os direitos fundamentais, como modo de se opor ao poder absoluto, próprio das primeiras formas de Estado. Não é por acaso que as primeiras Constituições do mundo (exceto a norte-americana) trataram

9. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 48.10. CANOTILHO, J. J. Gomes. op. cit., p. 48.

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de oferecer resposta ao esquema do poder absoluto do monarca, submetendo-o ao controle do parlamento.

Nessa linha de raciocínio, de afirmar-se que o constitucionalismo, como esclarece Ca-notilho, apresenta-se como uma teoria formada por um conjunto de ideias, que exalta o princípio do governo limitado como indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitu-cionalismo moderno representa uma técnica específica de limitação do poder com fins ga-rantísticos11. Quer dizer, qualifica-se como uma teoria normativa do governo limitado e das garantias individuais, sendo temas centrais do constitucionalismo, portanto, a fundação e legitimação do poder político e a constitucionalização das liberdades12. Cuida-se de um movimento político e jurídico que visa a estabelecer em toda parte regimes constitucionais, quer dizer, governos moderados, limitados em seus poderes, submetidos a Constituições escritas13.

No plano político, confunde-se com o liberalismo e, com este, sua marcha no século XIX e nos primeiros três lustros do século XX, foi triunfal. Assim, ou pela derrubada dos tronos, ou pela outorga dos monarcas, todos os Estados europeus, um a um, exceto a Rússia, adotaram Constituição14. A ideia e necessidade de Constituição ganhou força no liberalismo político e econômico, que triunfa com as revoluções dos séculos XVIII e XIX. No plano econômico, o liberalismo afirma a virtude da livre concorrência, da não-inter-venção do Estado, enfim, o laissez-faire, que enseja a expansão do capitalismo. No plano político, o liberalismo encarece os direitos naturais do homem, tolera o Estado como um mal necessário e exige, para prevenir eventuais abusos, a separação de poderes que Mon-tesquieu teorizou no seu Espírito das leis.15 A dizer, a concepção liberal do Estado nasceu de uma dupla influência: de um lado, o individualismo filosófico e político do século XVIII e da Revolução Francesa, que considera como um dos objetivos essenciais do regime estatal a proteção de certos direitos individuais contra os abusos da autoridade; de outro lado, o liberalismo econômico dos fisiocratas e de Adam Smith, segundo o qual o Estado é impróprio para exercer funções de ordem econômica16.

Nas Américas, a independência em face às imposições coloniais impôs a adoção de constituições escritas, nas quais, rompendo a organização histórica, a vontade dos liber-tadores pudesse fixar as regras básicas da existência independente. Quer dizer, o consti-tucionalismo na América se identifica com o europeu, exceto pela peculiaridade de que, na América, a Constituição escrita era exigência da própria independência, pois esta im-plicava, sobremodo, no rompimento dos costumes, como anota Manoel Gonçalves Ferreira Filho17. Ainda segundo o ilustre autor,

“a ideia de Constituição escrita, instrumento de institucionalização política, não foi inventada por algum doutrinador imaginoso; é uma criação coletiva apoiada em precedentes históricos e doutrinários. Elementos que se vão combinar na ideia de Constituição escrita podem ser identificados, de um lado, nos pactos e nos fo-rais ou cartas de franquias e contratos de colonização; de outro, nas doutrinas

11. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 47.12. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 51.13. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. op. cit., p. 07.14. Ibidem, mesma página.15. Ibidem, mesma página.16. PARODI, Alexandre. La vie publique et le vie économique, em Encyclopédie, t. 10.17. Op. cit., p. 08.

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contratualistas medievais e na das leis fundamentais do Reino, formulada pelos legistas. Combinação esta realizada sob os auspícios da filosofia iluminista”.18

Assim, no constitucionalismo moderno, a Constituição deixa de ser concebida como simples aspiração política da liberdade para ser compreendida como um texto escrito e fundamental, elaborado para exercer dupla função: organização do Estado e limitação do poder estatal, por meio de uma declaração de direitos e garantias fundamentais.

A primeira Guerra Mundial, contudo, embora não marque o fim do constitucionalismo, assinala uma profunda mudança em seu caráter. Assim, ao mesmo tempo em que gerava novos Estados, que adotaram, todos, Constituições escritas, o após Primeira Grande Guerra desassocia esse movimento do liberalismo. Os partidos socialistas e cristãos impõem às novas Constituições uma preocupação com o econômico e com o social, fazendo com que essas Cartas Políticas inserissem em seus textos direitos de cunho econômico e social.19

Passaram, pois, as Constituições a configurar um novo modelo de Estado, então liberal e passivo, agora social e intervencionista, conferindo-lhe tarefas, diretivas, programas e fins a serem executados através de prestações positivas oferecidas à sociedade. A história, portanto, testemunha a passagem do Estado liberal ao Estado social e, consequentemente, a metamorfose da Constituição, de Constituição Garantia, Defensiva ou Liberal para Cons-tituição Social, Dirigente, Programática ou Constitutiva.

O Estado do Bem-Estar Social, adquiriu dimensão jurídica a partir do momento em que as Constituições passaram a estabelecer os seus fundamentos básicos, delimitando os seus contornos, o que teve início com a revolucionária Constituição mexicana de 1917. No Brasil, a Constituição de 1934, sob a influência da Constituição alemã de Weimar de 1919, foi a primeira a delinear os contornos da atuação desse Estado intervencionista, do tipo social, dualista, na consecução do seu objetivo de promover o desenvolvimento econômico e o bem-estar social. E desde a Carta de 1934 até a atual, o regime constitucional bra-sileiro tem se pautado por uma conjugação de democracia liberal e de democracia social. Na Constituição atual, de 1988, esta assertiva está descortinada nos arts. 170 e 193, res-pectivamente.

Pois bem, a Constituição de 1988 ordena e sistematiza a atuação estatal interventiva para conformar a ordem socioeconômica. É o arbítrio conformador, a que se refere Forsthoff20, pelo qual o Estado, dentro de certos limites estabe lecidos pela ordem jurídica, exerce uma ação modificadora de direitos e relações jurídicas dirigidas à totalidade, ou a uma parte considerável da ordem social.

3. NEOCONSTITUCIONALISMO

O constitucionalismo moderno, forjado no final do século XVIII a partir dos ideais iluministas da limitação do poder, permaneceu inquestionável entre nós até meados do século XX, ocasião em que se originou, na Europa, um novo pensamento constitucional voltado a reconhecer a supremacia material e axiológica da Constituição, cujo conteúdo, dotado de força normativa e expansiva, passou a condicionar a validade e a compreensão de todo o Direito e a estabelecer deveres de atuação para os órgãos de direção política.

18. Op. cit., p. 04.19. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. op. cit., p. 08.20. ERNST FORSTHOFF, Tratado de derecho administrativo, Madrid, Instituto de Estudios Políticos, 1958.

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Esse pensamento, que recebeu a sugestiva denominação de neoconstitucionalismo, proporcionou o florescimento de um novo paradigma jurídico: o Estado Constitucional de Direito.

Isso se deveu notadamente em razão do fracasso do Estado Legislativo de Direito, no âmbito do qual o mundo, pasmado, testemunhou uma das maiores barbáries de todos os tempos, com o genocídio cometido pelo governo nacional socialista alemão provocando o holocausto que exterminou milhões de judeus, pelos nazistas, entre 1939 e 1945, nos países ocupados pelas tropas do Reich hitlerista.

Com efeito, até a Segunda Grande Guerra Mundial, a teoria jurídica vivia sob a influência do Estado Legislativo de Direito, onde a Lei e o Princípio da Legalidade eram as únicas fontes de legitimação do Direito, na medida em que uma norma jurídica era válida não por ser justa, mas sim, exclusivamente, por haver sido posta por uma autoridade dotada de compe-tência normativa.21

O neoconstitucionalismo representa o constitucionalismo atual, contemporâneo, que emergiu como uma reação às atrocidades cometidas na segunda guerra mundial, e tem ensejado um conjunto de transformações responsável pela definição de um novo direito constitucional, fundado na dignidade da pessoa humana. O neoconstitucionalismo destaca--se, nesse contexto, como uma nova teoria jurídica22 a justificar a mudança de paradigma, de Estado Legislativo de Direito, para Estado Constitucional de Direito, consolidando a passagem da Lei e do Princípio da Legalidade para a periferia do sistema jurídico e o trânsito da Constituição e do Princípio da Constitucionalidade para o centro de todo o sistema, em face do reconhecimento da força normativa da Constituição, com eficácia ju-rídica vinculante e obrigatória, dotada de supremacia material e intensa carga valorativa.

Assim, com a implantação do Estado Constitucional de Direito opera-se a subor-dinação da própria legalidade à Constituição, de modo que as condições de validade das leis e demais normas jurídicas dependem não só da forma de sua produção como também da compatibilidade de seus conteúdos com os princípios e regras constitu-cionais. Para Ferrajoli, a validade das leis, que no paradigma do Estado Legislativo de Direito estava dissociada da justiça, se dissocia agora da validez, sendo possível que uma lei formalmente válida seja substancialmente inválida pelo contraste de seu significado com os valores prestigiados pela Constituição. Isso porque, conclui o autor italiano, no paradigma do Estado Constitucional de Direito, a Constituição não apenas disciplina a forma de produção legislativa como também impõe proibições e obrigações de conteúdo, correlativas umas aos direitos de liberdade e outras aos direitos sociais, cuja violação gera antinomias ou lacunas que a ciência jurídica tem o dever de constatar para que sejam eliminadas ou corrigidas23.

Mas não é só. O neoconstitucionalismo também provocou uma mudança de postura dos textos constitucionais contemporâneos. Com efeito, se no passado as Constituições se limitavam a estabelecer os fundamentos da organização do Estado e do Poder, as

21. LUIGI FERRAJOLI. “Pasado y Futuro Del Estado de Derecho”. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo (s), Editorial Trotta, Madrid, p. 16, 2003.

22. Sem embargo, é forçoso reconhecer que, como anota Miguel Carbonell, o neoconstitucionalismo, seja em sua aplicação prática, como em sua dimensão teórica, é algo que está por vir. Não se trata, como afirma o autor, de uma teoria consolidada. “Nuevos Tiempos para el Constitucionalismo”. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucio-nalismo (s), Editorial Trotta, Madrid, p. 11, 2003.

23. Op. cit., p. 18.

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Constituições do pós-guerra inovaram com a incorporação explícita em seus textos de valores (especialmente associados à promoção da dignidade da pessoa humana e dos di-reitos fundamentais) e opções políticas gerais (como a redução das desigualdades sociais) e específicas (como a obrigação de o Estado prestar serviços na área da educação e saúde).24

O neoconstitucionalismo, portanto, – a partir (1) da compreensão da Constituição como norma jurídica fundamental, dotada de supremacia, (2) da incorpora ção nos textos constitucionais contemporâneos de valores e opções políticas fundamentais, no-tadamente associados à promoção da dignidade da pessoa huma na, dos direitos funda-mentais e do bem-estar social, assim como de diversos temas do direito infraconstitu-cional e (3) da eficácia expansiva dos valores consti tucionais que se irradiam por todo o sistema jurídico, condicionando a inter pre tação e aplicação do direito infraconstitucional à realização e concretização dos programas constitucionais necessários a garantir as con-dições de existência míni ma e digna das pessoas – deu início, na Europa com a Consti-tuição da Alemanha de 1949, e no Brasil a partir da Constituição de 1988, ao fenômeno da constitucionalização do Direito a exigir uma leitura constitucional de todos os ramos da ciência jurídica.

Com a constitucionalização do Direito evidencia-se a posição de proemi nência dos textos constitucionais, que passam a transitar por todos os setores da vida política e social em Estado. Na formulação conceitual de Guastini, a constituciona lização do Direito é um processo de transformação de um ordenamento jurídico ao fim do qual a ordem jurídica em questão resulta totalmente impregnada pelas normas constitucionais, que passam a condicionar tanto a legislação como a jurisprudência, a doutrina, as ações dos atores po-líticos e as relações sociais.25

O referido autor chega a apresentar uma lista de sete condições para a caracterização do fenômeno da constitucionalização do Direito, a saber: 1) a existência de uma Consti-tuição rígida; 2) a garantia judicial da Constituição; 3) a força normativa da Constituição; 4) a sobreinterpretação da Constituição; 5) a aplicação direta das normas constitucionais; 6) a interpretação das leis conforme a Constituição, e 7) a influência da Constituição sobre as relações políticas.

Ademais, foi especialmente decisivo para o delineamento desse novo Direito Constitu-cional, o reconhecimento da força normativa dos princípios, situação que tem propiciado a reaproximação entre o Direito e a Ética, o Direito e a Moral, o Direito e a Justiça e demais valores substantivos, a revelar a importância do homem e a sua ascendência a filtro axio-lógico de todo o sistema político e jurídico, com a consequente proteção dos direitos fun-damentais e da dignidade da pessoa humana.

A emergência do neoconstitucionalismo logrou propiciar o reconhecimento da dupla dimensão normativo-axiológico das Constituições contemporâneas, ensejando a conso-lidação de uma teoria jurídica material ou substancial assentada na dignidade da pessoa humana e nos direitos fundamentais. Nesse contexto, o discurso jurídico, antes associado a uma concepção formal e procedimentalista, evolui para alcançar uma vertente substan-cialista preocupada com a realização dos valores constitucionais.

24. Nesse sentido, conferir BARCELLOS, Ana Paula de. “Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Po-líticas Públicas”. In: http://www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto853.pdf, acesso em 25 de setembro de 2006.

25. GUASTINI, Riccardo. “La ‘Constitucionalización’ del Ordenamiento Jurídico: el caso Italiano”. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo (s), Editorial Trotta, Madrid, p. 49, 2003.

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Em síntese perfeita, Luís Roberto Barroso apresenta a contribuição do neoconstitucio-nalismo para o Direito Constitucional contemporâneo:

“o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desen-volvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco his-tórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e éti-ca; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normati-va da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito.”26

Essa evolução de paradigma, com o reconhecimento da centralidade das Constituições nos sistemas jurídicos e da posição central dos direitos fundamentais nos sistemas consti-tucionais, tem propiciado o fortalecimento da posição, de há muito sustentada por nós, em defesa da efetividade dos direitos fundamentais sociais e do controle judicial das políticas públicas27.

3.1. Patriotismo Constitucional

Essa paradigmática mudança de entender e aplicar o Direito, causada pelo neoconsti-tucionalismo, favoreceu o surgimento de um sentimento constitucional universal, baseado na lealdade e no respeito às Constituições. Tal quadro se destaca essencialmente naqueles Estados, cujos governos arbitrários foram responsáveis pelas maiores violações aos di-reitos humanos da história do século XX, como é o caso da Alemanha.

Efetivamente, na Alemanha, em razão de seu passado histórico comprometido pela existência de um nacionalismo exacerbado e xenófobo, que conduziu ao nazismo, buscou-se um novo modelo de identificação política capaz de superar aquele nacionalismo totalitário.

Assim, no final da década de 70, por ocasião da comemoração dos 30 anos da Consti-tuição da Alemanha de 1949 (Lei Fundamental de Bonn), o historiador Dolf Sternberger foi o primeiro a usar o termo patriotismo constitucional (Verfassungspatriotismus), como forma de oposição à noção tradicional de nacionalismo, visando a apresentar uma identi-ficação do Estado Alemão com a ordem política e os princípios constitucionais. Todavia, foi com o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, nos anos 80, que o patriotismo consti-tucional foi amplamente difundido no meio acadêmico e político. Segundo Habermas, o pa-triotismo constitucional produziu de forma reflexiva uma identidade política coletiva con-ciliada com uma perspectiva universalista comprometida com os princípios do Estado De-mocrático de Direito. Isto é, o patriotismo constitucional foi defendido como uma maneira de conformação de uma identidade coletiva baseada em compromissos com princípios

26. BARROSO, Luís Roberto. ‘Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do Direito Cons-titucional no Brasil’. In: Revista da Associação dos Juízes Federais do Brasil. Ano 23, n. 82, 4º trimestre, 2005, pp. 109-157, p. 123.

27. Conferir, a propósito, o que escrevemos em: ‘Neoconstitucionalismo e o novo paradigma do Estado Constitucional de Direito: Um suporte axiológico para a efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais’. In: CUNHA JÚNIOR, Dirley; PAMPLONA FILHO, Rodolfo (Orgs). Temas de Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. Salvador: Editora Jus-podivm, pp. 71-112, 2007; ‘A efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais e a reserva do possível’. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org). Leituras complementares de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais. 2ª ed., Salvador: Editora Juspodivm, pp. 395-441, 2007.

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constitucionais democráticos e liberais capazes de garantir a integração e assegurar a so-lidariedade, com o fim de superar o conhecido problema do nacionalismo étnico, que por muito tempo opôs culturas e povos28.

Nesse contexto, a Constituição passa a desempenhar relevante papel na vida do cidadão e da sociedade, na medida em que os defensores do patriotismo constitucional apontam a Constituição, em face de seu poder aglutinante, como um elo que aproxima os cidadãos com base nos pressupostos de um Estado Democrático de Direito fundado nos Direitos humanos e na solidariedade social, por mais que pertencentes a grupos étnicos e culturais diversos. Abandona-se, pois, a ideia de nacionalismo, que tradicionalmente esteve vinculado a questões étnicas e culturais, para se adotar um patriotismo constitucional, as-sociado aos fundamentos do republicanismo29, que se reveste de um potencial inclusivo, cujo conceito propugna uma união entre os cidadãos, por mais que diferentes étnica e culturalmente, através do respeito aos valores plurais do Estado Democrático de Direito.

É claro que os aspectos étnicos e culturais continuam importantes para identificar uma comunidade; porém, não podem mais ser levados em consideração para identificar uma forma de união e conciliação entre os cidadãos, notadamente nas sociedades plurais, nas quais a divergência e a diferença são marcas predominantes. Assim, a identidade coletiva não pode mais se dá com fundamento na homogeneidade cultural, mas na convivência sob os mesmos valores do Estado Democrático de Direito, situação que permite uma coexis-tência das múltiplas formas de cultura, o que caracteriza o multiculturalismo.

O patriotismo constitucional, portanto, busca o reconhecimento de um constitucio-nalismo intercultural, que deve reconhecer a diversidade de culturas e promover a conci-liação entre todas as práticas culturais.

3.2. Transconstitucionalismo

Empolgado pelo neoconstitucionalismo, o novo Direito Constitucional, cujas bases te-óricas ainda estão em construção, tem revelado situações-problemas que não podem ser solucionadas pelo Direito Constitucional clássico ou moderno.

Com efeito, como se sabe, os problemas centrais do constitucionalismo moderno sempre foram o reconhecimento e a proteção dos direitos humanos, de um lado; e o controle e a limitação do poder, de outro. Sucede, porém, que na contemporaneidade, em razão da maior integração da sociedade mundial, estes problemas deixam de ser tratados apenas no âmbito dos respectivos Estados e passam a ser discutidos e objeto da preocupação entre diversas ordens jurídicas, inclusive não estatais, que muitas vezes são chamadas a oferecer

28. HABERMAS, Jürgen. Identidades nacionales y postnacionales. Madrid: Tecnos, 1998. Para uma análise mais apro-fundada do tema, conferir: CENCI, Elve Miguel, Contribuições do conceito de patriotismo constitucional para a esfera político-jurídica brasileira. SCIENTIA IURIS, Londrina, v. 10, p. 121-133, 2006; CITTADINO, Gisele, Patriotismo constitucional, cultura e história. Direito, Estado e Sociedade, n.31 p. 58 a 68 jul/dez 2007. ARROYO, Juan Carlos Velasco. Patriotismo constitucional y republicanismo. Claves de razón practica, nº 125, 2002, ), pp. 33-40; CA-VALCANTI, Antonio Maia. A ideia de patriotismo constitucional e sua integração à cultura político-jurídica bra-sileira. In: Habermas em discussão. Anais do Colóquio Habermas. PINZANI; Alessandro; DUTRA, Delamar J. V. (Org.). Florianópolis: NEFIPO, 2005.

29. A noção de patriotismo constitucional está intimamente ligada à tradição política do republicanismo, na medida em que defende uma concepção de cidadania participativa, definida pela adesão aos valores comuns de caráter demo-crático, que busca a realização do bem comum. Nesse sentido, conferir ARROYO, Juan Carlos Velasco. Patriotismo constitucional y republicanismo. Claves de razón practica, nº 125, 2002, ), pp. 33-40.

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CONSTITUCIONALISMO 39

respostas para a sua solução. Isso implica, como propõe, com muita propriedade, Marcelo Neves30, uma relação transversal permanente entre as distintas ordens jurídicas em torno de problemas constitucionais comuns.

O Direito Constitucional, portanto, afasta-se de sua base originária, que sempre foi o Estado, para se dedicar às questões transconstitucionais, que são aquelas, segundo Neves, que perpassam os diversos tipos de ordens jurídicas e que podem envolver tribunais es-tatais, internacionais, supranacionais e transnacionais (arbitrais) na busca de sua solução. Nesse sentido, o Direito Constitucional ultrapassa as fronteiras dos Estados respectivos e torna-se diretamente relevante para outras ordens jurídicas estatais e até não estatais. Desse modo, é inevitável o fenômeno da globalização do Direito Constitucional, que não propugna uma Constituição global ou internacional, mas propõe uma globalização do Direito Constitucional doméstico.

Marcelo Neves explica que o conceito de transconstitucionalismo não tem nada a ver com o conceito de constitucionalismo internacional, transnacional, supranacional, estatal ou local. O conceito está relacionado à existência de problemas jurídico-constitucionais que perpassam às distintas ordens jurídicas, sendo comuns a todas elas, como, por exemplo, os problemas associados aos direitos humanos. Neste caso, impõe-se um diálogo entre estas distintas ordens jurídicas a fim de que os problemas que lhes são comuns tenham um tra-tamento harmonioso e reciprocamente adequado.

Essa interlocução pode ocorrer das mais variadas formas. É possível que ela decorra da vinculação das ordens jurídicas estatais às decisões das ordens jurídicas internacionais, como, por exemplo, a sujeição do Brasil às decisões emanadas da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em razão da adesão do Estado brasileiro às disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH); é possível, outrossim, que essa con-versação se desenvolva a partir do respeito e consideração espontânea e mútua entre as diversas ordens jurídicas (estatais, internacionais, supranacionais e transnacionais), como pode se verificar, por exemplo, quando um Tribunal estatal considera, sem estar obrigado a tanto, a decisão de outro Tribunal estatal ou internacional ou supranacional ou transna-cional, e vice versa.

Não há dúvida a respeito da importância do transconstitucionalismo para a sociedade e para o cidadão. É significativamente proveitoso para todos que as questões transconsti-tucionais, como os direitos humanos, por exemplo, sejam tratadas de forma convergente e harmoniosa pelas diferentes ordens jurídicas. Por isso mesmo, Marcelo Neves propõe um permanente diálogo sobre questões constitucionais comuns que afetam ao mesmo tempo distintas ordens jurídicas31.

30. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.31. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. O autor cita, entre quase

uma centena de exemplos, o caso de Caroline de Mônaco julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão. A Corte concluiu que figuras proeminentes, diante da imprensa, não têm a mesma garantia de intimidade que o cidadão comum. A corte constitucional alemã decidiu que as fotos tiradas de Caroline de Mônaco por paparazzi, mesmo na esfera privada, não poderiam ser proibidas. Vetou apenas aquelas que atingiam os filhos dela, porque eram menores. O caso chegou ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, e o tribunal decidiu o contrário: não há liberdade de im-prensa que atinja a intimidade da princesa, mesmo sendo ela uma figura pública. “Neste caso, não há uma hierarquia entre os dois tribunais, mas o mesmo caso é tratado de maneira diversa. Como, então, resolver essa questão se não houver uma pretensão de diálogo, de aprendizado recíproco? Ou seja, é preciso haver uma constante adequação recíproca e não a imposição de uma ordem sobre a outra”.