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Primeiro capítulo da série Escuridão Absoluta distribuído gratuitamente para divulgação.

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E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA

No limiar do Universo algo extraordinário faz estrelas desaparecerem. O misterioso poder vai abalar os alicerces da Criação.

ROBERTO MIRANDA

Parte 1 – NOITE NEGRA

1ª edição digital Roberto Miranda

São Paulo 2011

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NOTA DO AUTOR

Esta é uma obra de ficção. Os comentários fazem parte da essência da aventura não havendo desejo de depreciar ou instigar qualquer forma de preconceito ou ofensa a costumes alheios. Todos os personagens são imaginários e, portanto, qualquer semelhança é mera coincidência. As referências astronômicas e aeroespaciais são as habitualmente utilizadas na redação do gênero e os fenômenos espaço - temporais baseados na teoria quântica. Possui também referências à cultura mesoamericana.

FICHA CATALOGRÁFICA:

Paginação: Roberto Miranda Capa: Roberto Miranda e Willian Nunes Miranda

Revisão: Roberto Miranda e Willian Nunes Miranda

Certificado de Registro FBN nº 520.657 - Livro: 988 - Folha: 99 Todos os direitos reservados.

Título Original da Obra: Escuridão Absoluta: O Matador de Estrelas

Registro FBN nº 139.779 em 27/10/1997

Título original da série do Brasil: Escuridão Absoluta ISBN - 978-85-900642-3-7 (e-book - divulgação)

ROBERTO MIRANDA (ISBN 900642), 1997, 2011.

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SUMÁRIO Parte I Prólogo

Capítulo 1 – Noite negra Interlúdio – Fase Um Epílogo – O perdão do mendigo

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O primeiro capítulo desta estonteante aventura oferece a emoção de uma trama bem elaborada, que diverte e prende a atenção do leitor até

o ultimo parágrafo.

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Dedico em memória a meu pai, Mario Miranda e Matheus Urch Filho.

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ESCURIDÃO ABSOLUTA MENSAGEIROS

Um fenômeno jamais previsto por cientistas emergiu do espaço

profundo, aniquilou constelações e acabou com a nossa crença no Pai Universal.

Conhecer algo tão inacreditável, escondido nas mais improváveis teorias, instiga alarmantes profecias sobre o Reino do Caos no mundo das trevas, mostrando o quão pouco sabemos sobre o Universo.

O Matador de Estrelas não é visível aos instrumentos e vagueia camuflado pela escuridão. Só o percebemos quando sua sombra desaparece com a estrela de maneira voraz, consumindo parte da galáxia sem hesitar em quantas vidas teria destruído ao alcançar seu intento. E quanto a nós, incapazes de detectar a origem dessa força avassaladora, só nos restou a fuga.

Talvez, assim como nós, outra civilização esteja imaginando do que se trata. Na opinião de nossos cientistas, é uma forma de canibalismo estelar cujo modelo cientifico não obedece ao comportamento padrão dos buracos negros massivos.

Eu só posso descrevê-lo da forma que o vejo do interior do observatório de espaço profundo na cidade-astro, nosso refugio e lar. Daqui eu admiro mais um sol se apagar totalmente, deixando a perversa escuridão livre para devorar a próxima estrela.

Nossa única alternativa de sobrevivência será encontrar um planeta em zona habitável numa outra galáxia, fora do caminho do Matador de Estrelas. Contudo, as cidades-astros não chegarão a tal

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lugar antes de a fome nos abater. E mesmo ignorando a existência de vida inteligente no universo

capaz de compreender o conteúdo desta mensagem, foi nosso desejo enviar este alerta de esperança a quem consiga nos ouvir.

Seja quem for, esperamos ter recebido esta mensagem antes do perigoso intruso, e talvez... Talvez concluam o êxodo antes de a sua estrela desaparecer!

-- PALAVRAS DO VIAJANTE 1982/1997

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PRÓLOGO

Na cidade-estado situada às margens de uma ilha peninsular, seus habitantes erigiram a grande muralha para isolá-la do resto do mundo e viver sob o regime de um sinistro reino onde seu soberano prega a existência de uma força celestial onisciente.

Através do culto à nova ordem da Criação, o governo impôs seu controle sobre a liberdade civil sem reconhecer a legitimidade dos muitos protestos, onde a morte sobreveio a todos os opositores.

A nova ordem da Criação foi impetrada após a capitulação do Roshua, último regente eleito em foro popular antes da conspiração que levou a doutrina da Irmandade dos Unos ao poder absoluto. O sacerdócio delegou ao Conselho Supremo, convocado para administrar o estado, justificar seus desígnios contra a ordem popular conjurando o poder oculto no Domo, símbolo teológico da unidade celestial, de onde afirmam emanar os atos.

O protetorado exerce suas funções com a participação mínima de uma assembleia popular constituída de parlamentares escolhidos pelo clero, contando com a presença do Frei Calstin e do próprio Silas, para fazer-se de executores das ações do conselho.

No entanto, as leis decretadas impõem severas penalidades e com o passar dos anos gente destemida vem ignorando a ideologia do Conselho, se entregando à leitura de teoremas proscritos e artigos científicos formulados por filósofos expatriados, que os publicam na tentativa de ensinar o conhecimento excomungado dos preceitos da educação monopolizada.

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Notoriamente, os mais jovens são os primeiros a perceber quando há necessidade de reformas e almejam promover a extinção do sistema totalitário, porém, se ressentem de não saber muita coisa a respeito do aspecto das tribos além-mar.

Estas ideias subvertem os conceitos de dominação e cidadania delegados ao Conselho Supremo com respaldo do Silas, cuja tendência à arbitrariedade impede a instauração de ideias contrárias ao regimento imposto pelas leis celestiais dos soberanos de todos: os Senhores de Orgiyê.

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NOITE NEGRA

Ao entardecer os últimos raios de sol deixam nuvens cobrindo

parcialmente a grande lua dando a ela um tom castanho claro, enquanto outras duas formas circulares esmaecidas igualmente dominavam o céu noturno no mesmo hemisfério, conforme o céu ia enegrecendo e perdendo contorno, até ficarem arcos brilhantes e visíveis onde o breu ao fundo perdura.

A lua maior, também chamada de Orgiyê, mundo inóspito e cravejado de abismos estreitos, tornara-se o objeto mais belo naquele céu noturno sem mistério, também durante o dia. A claridade lunar refletida sobre a superfície do planeta oferecia uma tonalidade opaca às massas de terra e ao oceano, que tomava a cor da prata.

Na cidade-estado, erigida sobre o berço da mata nativa, reinava a tranquilidade e, em céu límpido nos revela a faceta cinzenta dos principais edifícios públicos em meio à pequena ilha peninsular de 50 mil metros quadrados de topografia irregular. Por conta de um artifício natural há milhares de anos, restos da boca de um vulcão submarino, está intimamente ligada ao continente por estreita faixa de terra formada do magma vulcânico, que um dia desembocou no meio da praia paradisíaca.

Para além da linha de praia, e ao longo da costa, os contornos do cume das árvores, em contraste com o fundo de altos picos, estendiam-se parecendo traços grotescos rabiscados sobre uma tela de pintura.

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Orgiyê sempre foi considerada o olho vigilante dos deuses pelos simplórios habitantes da cidade fortificada e seu brilho prateado reluzia como um espelho cristalino na superfície do mar. Além disso, acentuava a residência do Silas ao refletir sua face resplandecente sobre o Domo, o edifício em forma de meia esfera, construído ao lado do imponente Palácio do Templo, casa da Irmandade dos Unos.

Essa misteriosa construção glorificada dentro de seus 45 metros de altura, e 90 metros de diâmetro, guarda o segredo da vida pungente do planeta. Sua forma arredondada integrava o conjunto arquitetônico em torno do pátio, no centro da cidade, onde residem os clérigos.

Mas o brilho da lua não encontra significado apenas nas crendices populares. Também ajudava a diminuir o uso de candeeiros de óleo na iluminação pública, pois, mesmo quando a noite vinha a nublar sempre um esplendor de luz escapava da lua com intensidade.

Entretanto, na calada da noite ocorriam algumas surpresas. Uma leve ventania balançava a fronde das árvores nos canteiros

da avenida principal e instigava quatro indivíduos passeando por lá em roupas de estudante. No entanto, eles caminhavam furtivamente nas sombras da quadra onde havia um prédio em construção, até o mais baixo deles se infiltrar no canteiro de obra. Os outros o seguiram rapidamente, alçando as escadas até atingirem o andaime mais alto. Feito isso, o quarteto reuniu-se no terraço e um deles acendeu uma vela para iluminar o livro de teoremas na mão do estudante mais jovem.

- Estamos seguros aqui. — disse Hani ao abrir o livro. Mas por precaução passou uma orientação ao amigo do lado, em voz baixa. – Loma, seria bom ficar de vigia enquanto leio o livro.

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- Está bem! — concordou e foi até o muro da varanda, de onde falou: - Pode ficar tranquilo que eu vou ficar de olhos bem abertos.

Nisso, Rashiv, o amigo mais velho e forte, apontou o céu. - Veja só aquilo! — exclamou entusiasmado. A pequena lua Yod, a menor e a mais ligeira no hemisfério, exibia

uma pluma vermelha e fulgurante, tanto acima, quanto abaixo dos polos. Hani leu sobre o fenômeno no livro, onde constava na observação que a lua possuía vulcões em atividade nos polos e cuja erupção a intervalos regulares envolvia o satélite numa bruma radiante.

- Queria saber como fazem os exilados do mosteiro para ter tanto conhecimento. — assinalou Saied, o último e mais esperto de todos eles.

- Meu pai disse que são estudos baseados em observações diárias feitas no alto do monte Tegapa, do outro lado do continente.

Enquanto acompanhavam a lua em seu curso celeste, aconteceu a queda de um meteorito. O bólido riscou o céu, iniciando na frente de Orgyiê, e veio a desaparecer além do horizonte.

- O que foi aquilo? — Loma perguntou extasiado. Hani ficou de corpo encurvado e leu no livro o esclarecimento aos

ávidos observadores, aproveitando da melhor maneira a claridade da vela.

- Um tipo de estrela cadente. — respondeu Hani. - Segundo o livro, a maioria delas se desintegra no ar ou caem no mar. Mas uma entre milhares chega com perigo e cai em terra firme.

Graças à narração pedagógica dos eremitas que redigiram a tese do experimento, eles compreendem como o fenômeno ocorreu.

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- Os sacerdotes dizem que são lágrimas dos deuses. — acrescentou Rashiv. - O que quer que seja vem de um lugar do céu. Mas de onde?

- O livro não mente. — asseverou Hani. - Não existe nada lá em cima além dos mundos que pairam sobre nós.

- Orgyiê é a morada dos deuses. Por que não vemos o Castelo Lunar? — quis saber Saied, embevecido com a experiência.

- Meu pai, certa vez, disse para mim que os exilados acham a lenda do Patrono Celestial um mito. Que o Castelo dos Senhores de Orgiyê não existe! — mencionou Hani, descrente quanto à posição dos exilados.

- São heresias. — falou Loma, de volta à tocaia. Estava apoiado no muro quando avistou o soldado de roupa

cintilante parado na rua, olhando de frente para o prédio do outro lado da calçada. De alguma maneira Loma chamou sua atenção, pois logo olhou para o alto, ou talvez outro o tivesse avistado na varanda.

- Tem uma sentinela aqui em frente. — alertou os companheiros. - Ela viu você? — perguntou Saied. - Só uma? Tem certeza? — quis saber Rashiv. - Acho que me viu sim. — respondeu acanhado. Loma deu mais uma espiada. Desta vez avistou mais sombras

vagando sob a luz dos candeeiros nas vielas próximas, então retornou rápido para junto dos seus amigos.

- Vi mais uns quatro! E em breve virão reforços. — constatou. A sentinela em frente ao prédio mandou um tiro de advertência. A

bala detonou o beiral do muro da varanda, jorrando reboco sobre os

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quatro amigos. E Hani, o rapaz miúdo de cabelo emaranhado, aproveitou a deixa para se queixar da displicência de Loma, pois este lhe havia prometido ficar atento ao menor sinal da patrulha.

- Você não podia ter tirado os olhos da rua, nem por um segundo. Por sua causa nos apanharam desprevenidos. — acusou o rapaz.

- Eu me distraí com o que acontecia no céu. — defendeu-se Loma.

- Sem desculpa! Agora tenho de destruir o livro. — afirmou Hani, já se preparando para atear fogo nas páginas abertas. - Meu pai não vai gostar de saber disto.

- Seja como for, vamos ser eliminados. — pensou Rashiv. - Concordo com você. — discorreu Saied. - Mas para nos acusar

de heresia, primeiro eles precisarão nos fazer calar. — insinuou o rapaz esgalgado enquanto o livro principiava a queimar.

Hani afastou-se para pensar melhor quando o fogo ficou mais alto, indo de encontro à parte inacabada da varanda.

- E quanto ao Silas? — quis saber Rashiv, o mais encorpado. -Tenho certeza de que ninguém será contrário à sua palavra, nem se nos der a oportunidade de blasfemar diante da multidão.

- Se pudéssemos fugir e nos esconder, os donks não poderão nos acusar de coisa alguma. — ponderou Loma.

- É exatamente o que eu ia sugerir. — disse Hani exibindo um largo sorriso na boca ao voltar para junto do grupo.

- Do que está falando? — retrucou Rashiv. - Os donks logo estarão aqui. Por isso sugiro fugirmos por este

lado. — explicou, voltando para onde estava.

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Chamou a atenção dos amigos e pediu para se debruçarem sobre o muro, como ele fazia, vislumbrando o canteiro de obra lá embaixo.

U O Palácio do Templo, por ser a casa de adoração do culto aos

Senhores de Orgiyê, recebeu traços curvos e irregulares na composição de sua arquitetura gótica, repleta de pináculos responsáveis pela mágica distribuição de luz natural no interior da catedral. Com duas torres em estilo campanário, separadas pelo arcobotante sustentando à abóbada no centro, a imponente fachada intercalava grandes janelas retangulares entre grossas colunas verticais, em franca simetria com o portal de entrada emoldurado de arcos concêntricos, voltados progressivamente para o interior do vão.

De noite, a iluminação a óleo dentro do salão paroquial destacava os traços cheios de simbolismo teológico nos glamorosos vitrais das janelas, enobrecendo a fachada da catedral ao lado do grande portal.

Nos espaços litúrgicos, no interior da catedral, qualquer pessoa que adentrasse neles podia circular de maneira fácil e apreciar os elementos decorativos, tais como: tapeçaria, artigos em cerâmica mais as magníficas esculturas, tudo distribuído em locais adequados. Dispunha também de ventilação constante, mantendo a temperatura amena durante todas as estações do ano graças às técnicas inovadoras utilizadas pelos arquitetos no trato do isolamento térmico, a começar pelo suntuoso salão paroquial. A parede entre cada andar guardava um espaço vazio, servindo como sistema de calefação, e também como proteção acústica, tendo entradas no teto controladas por claraboias, usadas na regulação da temperatura interna do edifico,

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conforme abriam ou se fechavam. Os enormes vitrais pintavam sombras coloridas no piso cerâmico

branco durante o dia, horário em que representantes do povo e clérigos passam diariamente. Para segurar as paredes do salão, a estrutura de três andares e a cúpula, existia seis pilastras reforçadas de concreto armado. No vão do meio era encontrada a escadaria que dava acesso aos andares superiores, sendo também o melhor local para admirar os afrescos no teto abobadado, semelhante a um mosaico celestino. A obra de arte renascentista ilustrava o instante da Criação, segundo os pergaminhos sagrados armazenados em doze furos localizados na base da pilastra de centro na Capela das Almas. Esses rolos de papiro são os documentos históricos dos fundadores da irmandade e são proibidos de serem lidos por servos apóstatas, pois neles acha-se escrito os ritos secretos. Apenas os conselheiros, e o próprio Silas, possuem permissão de desvendar os seus mistérios.

Detalhes da mobília eram feitos de peças de bronze, como também as fechaduras das portas e as braçadeiras das cadeiras de assentos acolchoados.

A ala da Capela das Almas ficava situada no térreo, ao fundo do salão paroquial, com a porta sempre fechada ao publico, pois atrás desta residia o pavilhão de reuniões. Ali existia um suntuoso altar e, na frente deste, fileiras de bancos de madeira destinados aos membros do Parlamento e do Conselho, quando da realização de cerimônias e preces presididas pelo Silas, onde aproveitavam para discutir assuntos eruditos de interesse restrito da comunidade.

O palco do cerimonial possuía uma mesa de orações sobre a qual

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ficava resguardado o livro canônico da irmandade, exposto em cima do forro vermelho e entre dois castiçais, um em cada extremidade lateral, sendo a mesa localizada entre dois púlpitos. No assoalho atrás dela havia o desenho de uma estrela de cinco pontas dentro de um decágono delimitado por um círculo. Consequentemente, servia de marcação para o Silas durante as reuniões paroquiais nas vezes em que ele precisava estar por baixo da Oscarenta.

A raríssima pedra esmeralda pendente no teto sempre foi motivo de assunto no clero, pois guarda uma historia sombria acerca de sua origem.

Contada em forma de fábula, a lenda dizia assim: a pedra lançada do dorso de um cometa veio a cair numa fazenda onde nada prosperava. A família que vivia ali passava anos a fio com pouca colheita e animais padecendo de fome. E em visita as paragens inóspitas de sua fazenda, o menino Asdréz, filho de Masiel, encontrou a pedra esmeralda dentro de uma cratera calcinada por um raio e ao primeiro contato o espírito verde lhe revelou o segredo de seu propósito. Asdréz concordou em servir ao espírito da pedra e esta conferiu a ele conhecimento para que a fazenda prosperasse.

E nos anos vindouros a tristeza abandonou o lar daquela família, transformando Asdréz e seu pai em elegantes comerciantes.

Certa ocasião, o sumo-sacerdote de Oregas, a mando de Roshua II, foi investigar os acontecimentos miraculosos naquela fazenda e descobriu ter Asdréz dominado técnicas de irrigação, utilização de biodigestor e fabricação de máquinas agrícolas rudimentares.

Ao saber do conhecimento contido na pedra mítica, o sumo-

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sacerdote condenou Asdréz e seus familiares à morte e declarou-a uma relíquia divina, que, como tal, nenhuma pessoa deveria usufruir do seu poder em proveito próprio; levando-a para ser adorada no templo.

Com o passar dos anos, os sacerdotes fizeram um pacto com o espírito da pedra e isto permitiu o surgimento da linhagem do guardião, um membro do sacerdócio escolhido por ela para explorar a fronteira do conhecimento. Nesta situação, qualquer estranho que se aproxime da Oscarenta experimentará um tormento enlouquecedor.

Essa história vem de muitas gerações e os descendentes dos proclamados guardiões da Oscarenta são conhecidos pelo cognome Silas. O sucessor do guardião tem de ser aprovado na seleção do monastério e escolhido pela pedra. Os candidatos seminaristas passam por um treinamento paroquial e durante a avaliação final, apenas um é eleito. A partir de então, o eleito passa a receber os ensinamentos do fidalgo. Todo o conhecimento acumulado durante a gestão do Silas é anotado nos livros da ordem e confiado ao sucessor. O escolhido também tem de arcar com a responsabilidade de preservar o segredo do Domo e juramentar o livro oculto da irmandade. Além disso, herda o aposento onde vai dedicar a maior parte do seu tempo ao estudo da mente, com o objetivo de manter desenvolvidas suas habilidades psíquicas.

Durante o dia, o Silas participa de reuniões e pratica rigorosos exercícios físicos, visando aperfeiçoar o corpo para quando receber os dotes sobre-humanos, mais precisamente se conseguir atingir o estado mentalista cósmico na idade adulta.

E naquela noite, em um momento fugidio, Silas estava envolvido

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nas tormentas do seu inconsciente em busca da razão pela qual antigos guardiões compartilhavam um pesadelo inquietante, gravado por eles nas escrituras cunhadas em pasta de cera sobre os blocos da parede daquele recinto. O enigma, uma charada dos anciãos, descrevia um evento que apagou as estrelas do reino do céu e guardara o coração do deus verdadeiro no tempo esquecido. Ao solucionar este mistério o guardião realizaria os três passos seguintes para restaurar o reino, concedendo para si o poder cósmico.

De repente, o ruído de um apito soando freneticamente na rua tirou Silas do transe, levando-o a se dirigir à tribuna no alto da torre da catedral. Mal chegou à sacada do terraço, escuta o estampido repetitivo do disparo de armas de fogo. Dali podia ver cada rua de uma vista privilegiada da cidade sob o luar incansável de Orgiyê, conseguindo distinguir os vultos prateados no alto do prédio em construção enquanto nas ruas, um punhado de fardas reluzentes estava atrás de infratores aventureiros desvencilhando-se delas por vielas mal iluminadas, numa inebriante tentativa de escapar do flagrante.

Silas ficou deveras satisfeito, pois era praticamente certo ver os infratores feito prisioneiros. E isso significava ter de pôr os clérigos para trabalhar bem cedo, na organização da procissão da verdade.

Então preferiu retornar ao seu aposento para ir dormir. U

Para surpresa do chefe de milícia, quando chegou ao pavimento, onde deveria encontrar infratores escondidos, achou apenas as paginas de um livro queimado por quem estaria ali minutos atrás. Todavia, ao vislumbrar as cinzas se espalhando ao vento deu um sorriso apático e

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concluiu que mal tiveram tempo de deixar o prédio. E na busca de evidencias da identidade dos fugitivos, a pericia foi inconclusiva.

Desolado, bastou um pensamento para simular a atividade no andar usando sombras que surgiam apenas no seu visor. Este recurso lhe possibilitaria supor o fenótipo dos infratores acantonados diante da presença de resíduos hormonais, suor, por exemplo, traçando o que fizeram para assegurar suas vidas. No entanto, a simulação apontou um feito inusitado, propondo haverem saltado para a rua.

O chefe de milícia meneou a cabeça negativamente, pois ficara bastante contrariado. Com isto relaxou a postura e se aproximou do muro inacabado, apoiando-se nele com os dois braços e colocando o corpo para frente bem devagar, de modo a enxergar a parede externa do prédio. Sem querer encontrou a rota de fuga mais improvável.

A geometria simétrica dos salientes blocos de cimento, incrustados na parede externa do prédio, colocava-os próximos o suficiente para que fossem agarrados e usados como apoio por quem tivesse mãos firmes para fazer uma escalada. Quando o simulador projetou isso, bastou aguçar a visão e notar os indivíduos se movendo rente à parede.

Os fugitivos deslocavam-se para o canteiro lá embaixo, agarrando firme cada bloco protuberante, escapando de serem pegos em flagrante e deixando para trás um chefe de milícia irritado, ao ponto de esmagar o tijolo da borda do muro antes de partir para a captura deles, sentindo o desejo de esfola-los vivos.

U Rashiv foi o primeiro a chegar ao chão e enquanto espera faz

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massagem nos ombros até os outros descerem. - E agora? — quis saber Rashiv ao vê-los todos no chão. - Temos de correr! — disse Loma, puxando a fila ao sair correndo. Ele os levou por uma viela desolada, e à saída desta, cruzaram a

calçada, encobertos na sombra e de olho em qualquer movimento suspeito, avançando varias quadras na imediação de um parque, onde fizeram uma parada.

- Parece que a sorte está do nosso lado. — mencionou Hani ao notar estar em frente à entrada do condomínio aonde residia.

- Por que diz isso? — perguntou-lhe Rashiv. - Eu moro no condomínio. Por regra, um morador tem permissão

de caminhar à noite dentro do perímetro residencial sem comprometer o toque de recolher. — explicou Hani.

- Será que é tão simples assim? — duvidou Loma. - Só temos de chegar ao portão e entrar no quintal para nos salvar.

- É! É isso, sim. — confirmou Hani. - Então vamos até lá! — disse Saied, dando o primeiro passo. E

em fila seguiram em direção à fonte de água cristalina, localizada entre duas formosas esculturas, que mais parecia estarem a observá-los.

Ali permaneceram agachados enquanto divergiam de opinião. - Parem! — exclamou Loma. - Por que não continuamos? — Saied indagou a Loma. - Vamos aguardar um pouco. — respondeu-lhe perspicaz. - Acha que tramam outra emboscada? — retrucou Rashiv. Loma respondeu só depois de perscrutar os arredores. - Estou com um mau pressentimento.

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- Bobagem! Eu vou até lá. — afirmou Saied, saindo às pressas. - Fica aqui! — sussurrou Rashiv ao tentar ir atrás dele. Porém, Loma o segurou pela cintura, dizendo: - É tarde demais. Saied já havia contornado a fonte, e se deslocava através do pátio

descortinado, quando ouviu o silvo de advertência. - Os donks chegaram. — pensou ele. Sentiu medo ao avistar vultos reluzentes saindo de cada viela de

esquina com o parque, fazendo-o pensar em recuar, porém, não poderia voltar atrás sem revelar o local onde seus amigos estavam escondidos. Então, Saied tomou a única atitude sensata e correu em direção ao condomínio.

Tão logo a tropa o viu sozinho, puseram-se a correr no seu encalço levando os rifles dependurados no ombro.

- O que os donks estão fazendo? — perguntou-se Loma ao notar a postura dos soldados, pois da forma como se comportavam era mais provável verem Saied cruzar aquele portão.

Hani continuou torcendo por Saied. - Ele vai conseguir. O chefe de milícia não tinha pressa. Ficou em pé numa esquina,

de braços cruzados, assistindo apertarem o cerco ao infrator, e só por precaução, manteve um franco-atirador de prontidão ao seu lado.

Saied corria rápido como o vento e mantinha boa distancia dos soldados quando finalmente chegou ao portão. O franco-atirador na esquina colocou-o na alça de mira e, antes que puxasse o gatilho, o chefe de milícia pousou a mão sobre o fuzil e forçou-o a baixar a arma.

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Loma e Rashiv viram isso e estranharam o ato do chefe da milícia de ter feito o franco-atirador resignar-se, apontando a arma ao chão.

- Não fazem um só disparo? Saied é um alvo fácil, mas ninguém atira nele. — duvidou Loma.

- Tem alguma coisa errada. — retrucou Rashiv. - As sentinelas não pensariam em açoitá-lo após passar pelo portão. O que estão tramando?

Passaram-se inacreditáveis segundos até Saied ultrapassar o portão, sem trinco ou fechadura, abrindo-o apenas com um empurrão e cair ajoelhado sobre o primeiro degrau, esbaforido, enquanto ouvia o ruído crescente de botinas atrás de si. Embora esperasse não sofrer mal algum dentro do condomínio, ficou ansioso. Ainda de joelhos, e de respiração curta, mas recuperado fisicamente, Saied se voltou para a entrada. Viu os donks chegarem próximo ao portão e não se mexer dali. Ficam apenas observando-o de perto, sem esboçar ressentimento.

Saied se levantou e começou a subir os degraus. Mas outro silvo breve o fez rodar nos calcanhares e olhar para os donks novamente. Desta vez havia acontecido de o chefe de milícia ter se juntado a tropa do lado de fora do portão, só para ficar encarando-o com um sorriso.

Saied achou caudilho o um tanto sádico e ficou desconfiado, pois o podia ter lhe preparado alguma surpresa.

Não muito longe dali seus amigos estavam preocupados. - O que está acontecendo? — quis saber Hani: - Saied conseguiu

ou não conseguiu? - Ele conseguiu. — procurou esclarecê-lo Loma, enquanto assistia

o chefe de milícia caminhar até o portão. - Mas tem algo errado.

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De onde estavam Saied parecia ter escapado. Entretanto, foi estranho ver o chefe da milícia locomovendo-se até o condomínio quando a perseguição parecia ter chegado ao fim.

- Saied parece estar assustado. — disse Rashiv, mais preocupado com o desenrolar da situação.

- Ele fica parado ali. É um alvo fácil! — comentou Hani. - Saied pensa que tudo acabou bem. — presumiu Loma. No fim parecia isso. Saied não se importava em ter a milícia o

resto da noite ali, aguardando ele se entregar. Mas antes de se retirar, olhou discretamente na direção da fonte publica ressentido por haver largado seus amigos sem segurança.

Um tanto melancólico, se distraiu e um donk aproveitou, saiu de dentro do prédio portando uma baioneta e o espetou pelas costas. Os olhos de Saied rolaram na órbita e com a vida combalida dobrou de joelhos e rolou as escadas até o degrau mais baixo.

O chefe de milícia deu um chute no portão e o largou escancarado para ir pisar no moribundo, terminantemente morto a seus pés, só para ter certeza de que jamais o veria de novo.

U Rashiv reagiu ao ver Saied ser traiçoeiramente apunhalado. - Maldita armadilha! Eu devia tê-lo segurado aqui! — grunhiu. Também foi o momento de pensar em retirar-se sorrateiramente. - Vamos dar o fora, acho que eles não nos viram. — disse Loma. - De jeito algum eles podiam tocar nele. O que está acontecendo?

Por que os donks podem infringir a lei e nós não? — Hani comentou estupefato ao sair de fininho.

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- Bom, eles têm o controle. — respondeu Loma. – Por isso penso em ficar longe das vielas, e conheço o lugar certo. — mencionou, deixando Hani ansioso em chegar lá.

- Então, leve-nos até lá! Surpreendidos pela tática miliciana, os três não imaginam ver

sentinelas de tocaia no telhado passando-lhes despercebidas, só esperando pelo momento em que agissem e revelassem para qual lado se moveriam. Do alto, o donk os avista esgueirando-se do local e soa o apito. Dois silvos longos.

Apesar de o aviso provocar uma reação no destacamento, a tropa reunida em frente ao condomínio não se mexeu enquanto o chefe de milícia deu a ordem a eles, fazendo um gesto simples ao apontar a direção para onde deviam marchar, e só então partiram apressadamente.

Ao ouvirem o apito soar mais uma vez, o desespero tomou conta dos jovens foragidos, pois sabiam das poucas chances de continuarem vivos, conquanto que a um passo adiante da tropa. Então tomaram cuidado para não serem vistos atravessando de uma rua à outra, até chegarem à entrada do cemitério.

- É aqui? — indagou um assustado Hani. - Eu sei. Parece macabro, mas ali dentro tem porões e alçapões

que podem nos servir de esconderijo. É só acharmos um mausoléu aberto! — afirmou Loma já firmando as pernas para escalar o muro.

- Não me importo de atormentar algumas almas antes de nos juntarmos a elas. Quem quiser ficar, pode ficar! — ironizou Rashiv.

- É! Não tenho uma boa desculpa para dar aos meus pais. —

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retorquiu Hani, de rosto pálido, dando impulso para subir no muro. A necrópole ocupava uma área fora do perímetro urbano, cercada

por um muro de concreto ligeiramente inclinado para dentro, facilitando ser escalado pelo trio.

Entraram rapidamente no cemitério, e apesar de serem corajosos, sentiam aquele friozinho na espinha ao pensarem, ironicamente, terem aberto a própria sepultura.

Hani caiu sobre o tampo de uma lápide em um tropeço e nela havia uma frase entalhada no mármore, dizendo: “Nunca revelei minha admiração por aqueles que insistem em ver além da escuridão".

Ergueu-se duvidando se valia a pena prosseguir com a fuga. - Vamos logo, Hani! Terá bastante tempo para admirar um túmulo

quando estiver dentro do seu. — praguejou Rashiv. Diante da insistência do amigo, meneou a cabeça e caminhou

para junto dos colegas, indagando o que fariam ao amanhecer: - Esperem! Vamos ficar aqui só até o sol nascer, não é? - Não tenho certeza ainda. — disse Loma. - Está bem! Eu digo o que devemos fazer. De manhã cedo tem

um comboio marcado para levar trabalhadores à Terra Alta. — pensou positivamente, e continuou: - Vamos nos misturar a eles nas caçambas, assim escapamos do flagrante e tiramos as suspeitas sobre nós.

- Parece ser um bom plano, caso encontremos um esconderijo. — Loma pensou assertivamente.

- E tem mais. Nunca digam às pessoas o que viram. — Hani pediu como parte de uma promessa.

- Concordo. — afirmou Rashiv: - Mas levará muito tempo até eu

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esquecer essa maldita armadilha! Pois ninguém se importará com o que aconteceu esta noite, caso nenhum de nós sobreviva.

- Também estou de acordo. — confirmou Loma. Ao assumir o compromisso de não revelar a experiência daquela

noite, os três reconheceram a precariedade da convivência no âmbito da cidadela, onde suas vidas estão sempre ameaçadas caso teimem em não seguir os preceitos da Irmandade dos Unos.

O cidadão temeroso sabe não ser correto contradizer a legislação. Mas se cada um pudesse vislumbrar o mundo sob a luz da razão, veriam o fanatismo impetrado pelas gerações de profetas como regras comportamentais feitas à imagem de suas almas perturbadas, e não os desígnios do verdadeiro Deus.

Essa idiossincrasia fazia o povo ter dificuldade em aceitar a si próprio, individualmente.

O conhecimento dos profetas diverge bastante da teoria proferida no mosteiro de Albúrdia, onde se fala de um Universo constituído por uma amálgama sem fronteira. Todavia, os habitantes da cidadela são protegidos da selvageria do mundo pelo Silas e, portanto, não irão obter permissão para tirar proveito da ciência ou questionar suas crenças usando ela.

Mais adiante, Hani se recordou de algo que poderia ajudá-los. - Esperem! — completou: - Agora me lembrei de um lugar que

pode nos servir de abrigo, e fica bem perto daqui. - Então, vamos indo depressa. — disse Loma ao pegar Hani pelo

braço para apressá-lo, pois teria avistado um de seus perseguidores. O silêncio dos túmulos foi quebrado pelo rufar de granadas de gás

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batendo contra o chão a uma distancia segura, disparando a cortina de fumaça que obrigou os foragidos a debandar rápido.

- Os donks! Como nos encontraram? — disse exasperado, Rashiv.

- Não faço ideia, mas logo irão nos alcançar. — concluiu Loma. - Vamos para lá, o abrigo fica daquele lado. — encorajou-os Hani. - É melhor estar certo, ou ficaremos encurralados. — disse Loma

ao avistar o contorno do muro muito além dos túmulos. Como se a esperança suspirasse mais uma vez, o trio locomoveu-

se bem depressa entre as tumbas do cemitério, ganhando uma distância razoável de seus incansáveis perseguidores.

À medida que corriam toda escultura de pedra criava uma sombra de animação horripilante sob a luz do luar, como simples ilusão de ótica, cuja sensação percebida por cada um deles foi a de ver arranjos místicos rogarem por suas almas.

- Ali! É bem ali. Na capela. — apontou Hani. Na intenção de orientar os companheiros em fuga, Hani se

distraiu e tropeçou mais uma vez, de perna esquerda na tumba, caindo ao chão gemendo de dor.

- Ai! Como dói. — dizia segurando a perna ferida com ambas as mãos na altura do joelho, enquanto Loma aproximava-se para ajudá-lo.

- Vou carregar você até a cripta. — afirmou enquanto levantava Hani do chão, apoiando-o sobre seu ombro.

Hani rangeu de dor quando Loma o retirou do chão, e continuou gemendo ao ser carregado até a capela, aonde Rashiv os aguardava.

- Ali...! — resfolegou.

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Hani parecia delirar ao sacudir o braço sobre o ombro de Loma, enquanto dizia:

- No pedestal do vaso... — resfolegou novamente: - Para entrar no abrigo..., basta tocar... Ai!Ai!Ai!

Loma abafou a boca de Hani receando que pudessem escutá-lo. Em seguida, pediu a atenção de Rashiv para ficar atento ao menor sinal da guarda palaciana.

- Fique de olhos bem abertos! — falou baixinho, depois ajudou Hani a sentar na beirada de uma cripta, usando a lápide como encosto, e lhe perguntou: - Do que está falando? Como sabe se há abrigo aqui?

- Eu sei. — respondeu, e explicou em seguida: - Meu pai me trouxe aqui há alguns dias e eu o vi consertar o alçapão da cripta de um membro do parlamento. Meu pai instalou um dispositivo especial, acionado de fora, como uma tranca, e fica bem ali, naquele jarro grande.

- Rashiv, quando alguma sentinela aparecer...! - Não se preocupe! Não vejo nenhum sinal deles. — Rashiv

respondeu a Loma, mantendo vigília nos arredores da cripta. Loma se dirigiu até o local indicado, um pequeno altar ao ar livre

com pedestal e um cântaro em cima. Contando com algum tempo para abrir o esconderijo, Loma tateou todas as bordas e extremidades do objeto, mas nada aconteceu. Reparou no par de rubis vermelhos cravados na fronte do pedestal e pensou se serviam para acionar o mecanismo da trava, mas essa intenção também foi frustrada. Notou o piso de mármore a partir da base do pedestal, liso e aparentemente hialino, formando o tampo da cripta, e logo se indagou: por qual razão

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membros do parlamento mereceriam ter um belo funeral? Em seu desespero não percebeu os rubis começarem a esmaecer.

- Loma! Loma! Eu os vejo. Estão bem ali. Os gritos de alerta de Rashiv o avisa da aparição repentina de um

bando de soldados saltitando sobre as sepulturas, e faz Loma volver o rosto naquela direção.

- Abra isso logo ou farão nosso enterro esta noite. — Rashiv cobrou dele desesperadamente.

Loma tirou o vaso de cima do pedestal e vasculhou cada borda a fim de acionar o mecanismo oculto, quando, por acaso, viu os rubis descolorindo.

- Ora, como isso aconteceu? — se perguntou, achando ter feito alguma coisa com eles.

Pensando se tratar do mecanismo de abertura do alçapão, Loma resolveu buscar Hani antes de algo acontecer. Quando correu na direção do amigo foi surpreendido por dois soldados que surgiram de repente no seu caminho. Ele se atracou no chão com um deles enquanto o outro partiu para cima de Rashiv.

Hani se endireitou sobre a tumba e ficou encolhido de medo, caso mais soldados aparecessem e o molestassem.

Aquele primeiro soldado levou certa vantagem no início, quando derruba Loma ao chão, mas este escapuliu rolando para longe e ambos levantaram para um novo embate. Rashiv também investiu contra seu opositor, que usava as botas pesadas para tentar atingir as pernas dele.

Apesar de todos os soldados possuírem altura e força bruta, não tinham golpes rápidos, porém, contavam com uma série de acessórios

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presentes no uniforme para proteger o corpo em um confronto direto. Entretanto, isso os deixava vulneráveis na linha da cintura, devido à necessidade de movimento dos braços. Além desse, outro bom ponto de ataque estava marcado pela tira de fixação do capacete, que deixava parte do queixo exposto para ser golpeado.

Dessa maneira, os soldados resistiram aos golpes e contragolpes dos rapazes, quando estes resolveram combinar socos e chutes com movimentos acrobáticos feitos com o corpo, ora apoiados no chão, ora girando livre no ar. E após infligirem uma sequência magnífica de golpes atingiram ambos os donks no queixo, que tombam desacordados.

- Este é pelo meu amigo Saied. — resmungou Rashiv ao chutar o rosto do donk sob seus pés.

- Fica aqui! Eu tenho de pegar Hani. — falou Loma, preocupado em fugir antes da chegada do resto da milícia. Deu dois passos à frente e parou para ouvir de Rashiv uma interessante constatação.

- Estes dois não trouxeram rifles. Acho que nos querem vivos. Nem bem terminou de falar, ouviram um estampido, e em

seguida, o corpo imóvel de Rashiv caiu ao chão com a cabeça ensanguentada.

Outro tiro passou zunindo sobre a cabeça de Loma, que se jogava por cima da lápide à sua esquerda, rolando rapidamente para dentro do espaço entre a fila de sepulturas, fora da mira do franco-atirador. Depois disso, ergueu um pouco a cabeça e flagrou vários donks armados abordando Hani sem violência, porém forçavam-no a se agachar com as mãos sobre a cabeça, mesmo sabendo estar com a

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perna ferida. Mais um tiro. E desta vez riscou a superfície da tumba servindo-

lhe de proteção, apressando-o a se retirar dali usando os cotovelos para ir arrastando pelo vão de volta a cripta com pedestal.

O franco-atirador passou ao lado do corpo de Rashiv e partiu para cima das sepulturas, empunhando o rifle na direção do espaço vago entre elas, determinado a vasculhar cada reentrância onde o foragido pudesse estar escondido, até finalmente avistá-lo. Loma se elevava do chão, próximo à cripta e a alguns metros de distancia. Sem vacilar, o atirador fez múltiplos disparos contra o sujeito de esquiva sobre o muro baixo na cercania da sepultura.

Naquela altura Loma não esperava ter a sorte de escapar com vida. No entanto, quando deu o salto por cima da mureta, esperava bem mais do que cair sobre a sepultura, sentindo o mármore frio tocar em seu rosto do outro lado. Tentou bater com os punhos no mármore para a tal passagem abrir, mas nada aconteceu.

Depois dessa medida desesperada, só lhe restou cobrir a nuca para protegê-la dos fragmentos vindos do magnífico pedestal e do jarro, após estes serem despedaçados no tiroteio.

- Por Jauy! Por Jauy! — murmurava para si quando, de repente, seu corpo ganhou peso e começou a cair para dentro do piso hialino.

Esta sensação confusa durou uns poucos segundos, e enquanto sofria a queda, o alçapão se fechou acima dele, vindo a bater com a cabeça contra o chão duro e desfalecendo em seguida, devido à concussão.

Quanto aos rubis, voltam a colorir tão logo o alçapão se fecha.

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Um minuto depois o franco-atirador caminhou até a sepultura, certo de o corpo do foragido estar estatelado sobre ela, mas só veio a constatar o sumiço de sua presa. Ele faz uma busca nos arredores e percebe tê-lo perdido misteriosamente. Bastante contrariado, olhou para a capelinha interessado em Hani, resolvendo se juntar aos soldados que o vigiavam. No caminho pensava na maneira de submeter o prisioneiro a um interrogatório e saber sobre o foragido que escapuliu.

U Hani sentia dores no corpo por ter permanecido naquela posição

desconfortável durante muito tempo. Ele acompanhou de longe a morte de Rashiv e a fuga audaciosa de Loma, mas não tinha certeza se este havia conseguido usar o abrigo para escapar ileso. De longe, só pôde ver o vulto dele agachando-se sobre a sepultura quando estava debaixo de fogo cerrado. Mas assim que viu o donk examinando o tumulo de cima da mureta teve a sensação de ver seu plano ter funcionado, ao menos para um deles. A certeza de o alçapão secreto ter poupado o amigo veio quando o atirador se juntou a eles, bastante frustrado. E tão logo este chegou, mostrou ter ido interrogá-lo.

- Fale! Para onde ele foi? — inquiriu rispidamente, pegando-o pelos cabelos enquanto as sentinelas mantinham os rifles em riste.

- Eu não sei do que está falando. — respondeu Hani, mantendo as mãos perto da cabeça dolorida para não provocar quem o mantinha na mira.

- Vocês tinham um plano para fugir. Fale! - Pra quê se já sabe que não deu certo? — retorquiu.

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O donk desistiu do interrogatório, pois não arrancaria nada dele. - Vamos levá-lo daqui, agora! — ordenou e completou com certa

preocupação: - Este lugar deve estar possuído pelas trevas. Hani deu um sorriso maroto ao ouvir as palavras supersticiosas

da sentinela imaginando o cemitério possuído por forças sobrenaturais. Em seguida, os dois soldados baixaram as armas e o levantaram, apoiando os braços dele sobre seus ombros e o segurando pela cintura para mancar enquanto o carregavam.

E antes de a noite chegar ao fim o levam às catacumbas do palácio, onde aguardaria ser julgado pela população no Alays-viv.

U De manhã cedo, a cidade estava coberta por neblina e o

enegrecido céu cedia lugar aos raios de sol despontando no horizonte, tornando o grande círculo lunar opaco a luz do dia.

Com a claridade do dia, os encantos da natureza são revelados sob as formas exóticas detrás das sombras, enquanto nuvens de tom amarelo tostado pairam sobre o céu azul, a meio-tom esverdeado.

A lua de Orgiyê tornou-se pálida, mas ainda assim o objeto mais viçoso visto de qualquer lugar da superfície.

Nestas primeiras horas da manhã há sempre um nevoeiro denso a cobrir grande parte da floresta no continente e as matas na ilha, sendo mais disperso na região litorânea, onde porções gasosas são vistas se desmanchando lentamente em longos rastros acima das árvores, antes de evaporarem por completo.

Uivos e sons alarmantes de bichos andarilhos percorrem as trilhas da floresta de mata intocada. Enquanto isso, animais agindo na calada

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da noite retornam às suas tocas para o merecido descanso, depois de caçar o seu sustento, fechando o ciclo natural dos predadores noturnos neste bravo mundo, onde animais terrestres, de pequeno e grande porte, ou tipos estranhos de roedores, lagartos, serpentes e pássaros silvestres, representam a biodiversidade presente em toda parte.

Também existem insetos de espécimes variados em meio à vegetação abundante, com diversas árvores de tamanho descomunal e frutos de sabores exóticos. Vários tipos de plantas ornamentais, de cores exuberantes e formatos impensáveis, cobrem o terreno inexplorado. Pássaros sobrevoam os arredores de seus ninhos, piando alegremente frente ao rugido de feras medonhas.

Para os moradores da cidadela, as terras do continente são um paraíso impenetrável e nenhum deles trocaria à vida pacata do povoado na ilha pela emoção de viver perigosamente cercado de terríveis feras.

Dificilmente alguém vindo do continente esbarraria na ilha, pois esta dista um quilômetro e meio da costa, no topo de uma montanha submarina que há milhões de anos alojava a cratera de um supervulcão. Contudo, existe uma ponte natural ligando-a a praia e é feita dos sedimentos de lava vulcânica, mas esta estrada natural fica submersa durante a maré alta e os habitantes da ilha não têm permissão para cruzá-la porque são mantidos exilados em seu próprio território.

No entanto, a vida no povoado de 8.200 habitantes sempre foi bastante agitada, pois existe comércio constante e obrigatoriedade de serviços para os quais os habitantes são constantemente treinados. A

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cidade foi projetada dentro de uma área urbana, distribuída por 1.308 Km2. Possui nichos adjacentes onde instalaram pequenas indústrias de base e sítios de agricultura familiar. A produção agropecuária ocupa a zona rural fora da área urbana e uma extensa região no topo da chapada, a Terra Alta, que é a porção mais elevada da ilha, onde há 350 hectares de terra cultivável e campo de pastagem.

Diariamente a rotina da cidade gira em torno de ávidos feirantes, mas apesar disto, não existe o lucro. Eles passam horas arrumando as especiarias à venda nos empórios ou em barracas de rua, montadas na frente das suas casas.

Cada pessoa tem obrigação de realizar os afazeres dentro da sua competência, atribuída durante o ciclo de aprendizagem. Depois de ter sua profissão homologada todo cidadão a exerce obedecendo a regras de conduta ditadas pelo Conselho Supremo.

Para alguns, o trabalho árduo exige vigoroso esforço físico. É o caso dos obreiros e camponeses, obrigados há passar vários dias longe da família para desempenhar o trabalho em Terra Alta.

Geralmente os camponeses mais jovens buscam reunir-se em bando antes de prosseguir para o local onde irão embarcar no carroção de transporte, e todos seguem um líder.

Hayri era o trabalhador tenaz, alto, magro, de cabelos negros e divertia-se muito contando anedotas a seus seguidores maltrapilhos. Muito popular entre os colhedores, grupo encarregado de fazer a colheita no campo. Por outro lado, sempre procurou evitar algazarra na frente da casa dos camponeses mais velhos.

Na porta das moradias desses homens truculentos e de mãos

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calejadas uma cena vista em toda nova colheita repetia-se: os homens despediam-se de suas mulheres, que ficariam sozinhas cuidando do lar enquanto eles partiam para exercer suas atividades na fazenda.

Porém, naquela manhã a rotina seria interrompida pelo súbito aparecimento do mensageiro do palácio, cavalgando em cela de couro sobre um cavalo de pelo lustroso e branco.

- Todos para a praça! Todos para a praça! — anunciava em voz alta e clara em cada viela pela qual passava. - Vai haver procissão!

O povo atendeu imediatamente a convocação, provocando o atolamento das ruas ao se dirigirem à praça pública. No caminho, o mesmo mensageiro fazia menção aos ritos da procissão da verdade; geralmente por causa de uma violação do toque de recolher. E cavalgando no meio do povo, o núncio tomou o sentido do Palácio do Templo, indiferente a superstição entre os habitantes.

Alguns confessavam temer uma praga por causa do sacrilégio, outros só recordavam não ver um evento desse tipo há muito tempo.

O propósito da procissão da verdade, por ser um ato de contexto religioso, sempre foi livrar a alma do postulante de seu corpo material, com o intuito de ele experimentar a benção da purificação ao renascer em outra essência, numa nova vida.

Tão logo o intrépido mensageiro atravessou o pátio do palácio, galgou a grande escadaria a galope, e foi indo com seu cavalo até a passagem situada no lado direito, rumo ao subsolo.

Enquanto o núncio desaparecia pela obscura entrada, o clero dava início à procissão da verdade. O primeiro passo foi fazer soar longas badaladas a partir de uma série de tubos de aço, de

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comprimento e diâmetro diferentes, aninhados como instrumento de percussão dentro da torre principal do templo. Alternando o tom e compasso dos sinais a população sabia quando deveria realizar alguns dos atos ritualísticos da maneira esperada, durante a passeata.

Costumeiramente, o cântico entoado durante a cerimônia servia para alertar os arcanjos de Orgiyê para ficarem de prontidão e receber a alma do postulante em seus domínios.

Além da marcação sonora era preciso seguir alguns passos durante a cerimônia, cujo propósito visava elevar a percepção das pessoas perante o Silas. Desse modo ele podia captar o pensamento de alguém a distancia, como se estivesse ouvindo suas lamentações.

Na verdade, o Silas literalmente as vigiava do terraço. Ele despertou naquela manhã disposto a subir ao alto da torre

para observar a quantidade de pessoas acomodadas no pátio, aguardando entoar o canto ritual. Concomitantemente, nestas ocasiões o conselho episcopal também se reunia no terraço, e logo apareceram outros clérigos para participar do evento, quando Silas saúda o povo:

- Aos devotos, dou as graças do Senhor! — o povo exaltou. - Que o Senhor ouça essa prece e salve a alma insolente do corpo imaculado. — Silas rogou a prece dirigindo-se aos obedientes cidadãos aglutinados na grande praça celestina, vindos de todos os cantos da cidade.

Frei Calstin também deu a bênção. - Dou minhas graças ao misericordioso Deus. E um conselheiro mais exaltado pronunciou: - Que o hipócrita queime nas trevas! — e aponta veemente o

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lugar para onde todos os olhares da praça iriam convergir minutos depois: o altar do perdão.

Dali do alto era possível notar a quantidade de pessoas mal distribuídas pelo imenso pátio de concreto. Tudo por causa da maior concentração de gente em torno do vão central, próximo ao piso elevado sob o qual viria a transcorrer o evento principal, calhando de quem ficasse de longe não ver direito a execução do profanador.

- Somos todos nós semente da carne e através da purificação o espírito profano irá se converter em um novo ser, de alma límpida. Abençoados sejam os Senhores de Orgiyê! — com esta frase Silas encerrou o momento contemplativo, ordenando os conselheiros a seguir pelas escadas até o palanque montado na fachada do templo; tocando no ombro de cada um, e lhes dizendo:

- Livra-te com prece a alma do pecador! Depois de dispensá-los, Silas volta ao parapeito e fica admirando

o patíbulo aonde o profanador irá ser executado. Aquele magnífico altar ao ar livre, criado para celebrar a vida, foi

moldado por hábeis artesãos em um único bloco granítico, lapidado na rocha mais dura e de cor escura, retirada das profundezas do poço mais fundo sob o chão. E para chegarem àquele formato, os artesões tiveram de seguir cálculos trigonométricos fornecidos pelo Silas, e esculpiram a partir da base quadrada, deixando três hastes reclinadas em cima, se fazendo dos lados de um triângulo isósceles, exceto pela ausência da ponta de cada vértice, supondo que a energia cósmica fosse completar o ápice imaginário.

Apesar de o ícone ter sido construído para outros fins, os

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guardiões da Oscarenta aprenderam como manipular a radioatividade contida na rocha e tornaram seu propósito sinistro.

U Após passar um período inanimado, Loma recuperou a

consciência e se mexeu no refúgio subterrâneo, sentindo ainda os efeitos da forte contusão na cabeça. Na ausência de luz nem deu para desconfiar da aparência da guarida, fria e de cheiro muito estranho. Loma sentou com uma perna esticada e a outra recolhida, passando a mão por baixo do colarinho para pegar o saquinho amarrado ao cordão no pescoço, onde trazia grãos benzidos para lhe dar sorte. Então, cerrou o punho em torno do caborje e recitou a prece dos injustiçados, agradecendo por continuar vivo.

Algum tempo depois, notou o foco de luz na parede à sua frente ganhar mais brilho conforme o dia lá fora clareava. Ele se levantou e ficou em pé para gritar e sovar o teto, enquanto tenta enxergar a superfície de maneira restrita. Um raio de sol converteu pela abertura, quase o cegando, e clareou o cubículo hermético, revelando a ele de onde advinha o seu desconforto, até então, do odor fétido e do suspense claustrofóbico, sendo surpreendido por uma figura hedionda ao se virar de frente para o cadáver putrefato.

Refeito do susto, perguntou para si mesmo se a carcaça teria sido de alguém que escapulira anteriormente, então esbravejou:

- Por Jauy! Caí em outra armadilha. Frustrado, esmurrou o alçapão mais de uma vez.

U Enquanto Loma perdia o juízo no subsolo.

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Duas mulheres, trajando manto encapuzado na cor lilás, visitavam a capelinha quando uma delas começou a caminhar na direção da cripta que tinha o pedestal danificado, e naquele momento ouviram ao longe os sinos da torre do templo.

A Dona Helena, senhora idosa, chamou por Cássia, a formosa jovem de cabelos longos e avermelhados que, ignorando o chamado da procissão, pretendia orar por entes falecidos.

- Vá depressa, minha filha! — disse em alta voz ao afastar o capuchinho do rosto e expô-lo à geada matinal. - Ou vão nos maltratar por causa disto.

A jovem apressou-se em escolher o lugar onde faria as preces naquela manhã e, rapidamente, elegeu o túmulo de pedra opaca, estranhando haver pedaços cerâmicos esparramados sobre a sepultura e o pedestal quebrado, ignorando os sinais claros de vandalismo para então se ajoelhar e começar a rezar baixinho e repetir a mesma prece por várias vezes, olhando fixamente e se vendo solitária na imagem refletida sobre a superfície lisa do tampo funesto.

- Oh, Senhor! Pai de todas as famílias neste terreno sagrado. Aceitai esta prece e livrai da dor os que vêm ao seu auxílio. Abençoai o amor de teus filhos celestinos. Abençoado seja!

Embora estivesse sendo observada do subsolo por uma pessoa irada, ela jamais imaginaria em aplacar a fúria do prisioneiro a seus pés. Loma foi se sentindo mais confortável ao vislumbrar através da janelinha do alçapão o rosto meigo e de olhos amendoados. Suas palpitações foram abrandando conforme adivinhava algumas das palavras ditas na prece, pronunciadas com amor no coração.

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Ele experimenta tocá-la, mesmo sabendo que o componente translúcido no teto os separa. Sem conseguir, teve de se contentar em admirar de longe as maçãs do rosto dela, as mechas ruivas do cabelo e ler despretensiosamente aqueles lábios lhe dirigindo palavras de consolo.

Loma desejou pegá-la em seus braços, porém, pensar nisso só lhe causou mais decepção. Tomado por um desejo alucinado de escapar do calabouço, restou a ele socar o alçapão na esperança de ela tirá-lo de lá. Deu socos cada vez mais fortes até a ver ir embora, cedendo sua índole intransigente ao desânimo.

Enquanto isso, no lado de fora, os sinos da torre continuavam a alertar sobre o início da procissão.

- Vamos logo, minha filha! O sinal da torre nos chama. — clamava a mãe querendo evitar qualquer implicação.

- Já estou indo, mãe! — Cássia respondeu, tranquilizando-a. Depois de se erguer, a jovem ruiva deu a volta na cripta,

passando junto ao pedestal antes de se juntar a mãe. Mais uma vez os rubis dão uma esmaecida e em pouco tempo as

gemas tornam-se brancas. Sem saber o motivo da correria do lado de fora do calabouço,

Loma sentiu falta da presença da moça e encostou o rosto junto à janela do alçapão para procurá-la. Por conta do pouco ângulo, ficou sem saber para onde ela pudesse ter ido, aumentando a sua frustração. Então passou a golpear a parede, suplicando para ela voltar com ajuda.

- Volta para mim! Volta! Para superar a raiva, deu um chute no esqueleto apodrecido, o

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desmanchando em cacos. Por fim, caiu em desespero, encobrindo o rosto com as mãos e contendo o choro só por um momento. De rosto transtornado, Loma abriu os braços e soltou um grito fenomenal, inclinando a face para o teto de olhos fechados.

- Maldito seja! Vou amaldiçoá-lo até apodrecer neste lugar! Um segundo depois, seus olhos lacrimejados arregalaram assim

que ouviu o barulho da porta do alçapão ao se escancarar acima de sua cabeça, e, agindo instintivamente, ele se encolheu todo no chão.

- O que foi isso? — disse com a mão fazendo sombra nos olhos. A claridade do dia atrapalhava sua visão enquanto tenta enxergar

a qual altura estava o topo, pois teria de sair dali sozinho e não dispunha de muito tempo. Sabendo disto, se posicionou para ganhar impulso e deu um pulo, conseguindo se firmar com um braço na beira da sepultura. Loma faz um tremendo esforço para ficar agarrado e não escorregar, apoiando os pés contra a parede para dar outro impulso e desalojar-se da armadilha antes de o alçapão se fechar.

- Que alívio. — disse ao ver o túmulo se fechando, exatamente como aconteceu da primeira vez. E só então deu atenção às badaladas.

Ainda deitado escutou o som do sino antes de este extinguir-se, vindo a saber qual o motivo da moça desaparecer de repente.

- Por Jauy! O som veio do templo. — pronunciou admirando o contorno do Domo e a torre do Palácio ao longe.

O sinal fazia parte de um grande evento em andamento naquele exato momento. Pela tradição, ninguém podia desprezar o chamado, e àquela altura, boa parte do povoado já teria se reunido em local aberto.

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Provavelmente os donks teriam poupado Hani para a realização do ritual e Loma achava satisfatória a ideia de tentar saber se o amigo seria levado ao altar das almas, ou ainda, reencontrar a jovem ruiva, mesmo conhecendo o risco de ser apanhado pela guarda palaciana ao deixar o cemitério. Para tanto, passou a agir com extrema cautela, desviando das tumbas sorrateiramente até chegar à saída.

Uma vez do lado de fora, procurou seguir por vielas desprovidas de sentinelas, se apoderando de um manto com capuz no varal de uma casa vazia para disfarçar sua identidade. Se sentindo mais protegido, Loma peregrinou pelas ruas até a praça do templo, onde o povo estava reunido para assistir o evento, sem se importar se aquilo significasse para ele a perda de mais um amigo.

Loma não notou o Silas espreitando do terraço, mas sentiu um forte desejo de volver o olhar naquela direção. E quando o fez, Silas já havia se dirigido ao outro extremo do terraço, então, voltou a andar tranquilamente entre as pessoas na praça.

Silas gostava de admirar o Domo ao resplendor do sol. A gigantesca cúpula encravada no manto de feldspato fora erigida à espera do messias cósmico, o talentoso guardião há quem um dia o Domo revelaria todos os seus segredos. E cravara seus pensamentos nisto quando um leve tremor nas mãos o lembra de voltar ligeiro para a multidão. Disposto a achar um rosto, passou a enxergar a todos como quem procura por um lobo escondido no rebanho. E nesse instante, um mensageiro adentrou despercebido enquanto Silas estava com a mente envolvida na percepção de pensamentos alheios. Nem mesmo o viu ajoelhar-se atrás de si.

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- Vossa Excelência! — a interjeição fez Silas rejubilar e volver-se ao escutar o núncio falar: - Os habitantes esperam para celebrar junto a...

- Eu vejo! — objurgou, dando-lhe as costas, pois só queria conhecer quem ele procurava lá fora.

- Mas meu senhor! O povo quer saber o nome do profanador que escapou na noite de ontem. — advertiu o núncio, sem esconder o temor da superstição.

- Eu compreendo. — Silas respondeu com firmeza. - O soldado não extraiu o paradeiro dele na confissão do

bastardo, Hani de Citra, e alega ter perdido o rastro do violador de maneira inexplicável. — resumiu o fato e aguardou orientação do Silas.

- A ocorrência é no mínimo desanimadora e parece ter causado superstição entre membros da guarnição. — recriminou Silas.

- Estão receosos quanto ao súbito desaparecimento do violador. — disse o núncio, abrandando a voz assim que Silas se virou para ele: - Alguns dizem tê-lo visto escapulir diante da mira do franco-atirador, até que evaporou no ar, segundo comentários. — o núncio não quis parecer ter acreditado no rumor, e então retificou: - Não existe um modo de saber se aconteceu de verdade.

- Mas há uma maneira. — contornou o núncio a passos lentos: - Envie a eles esta mensagem! — o servo reclinou o corpo para escutar: - O violador escapuliu das mãos das sentinelas, mas não aos olhos do Silas. O que tudo sabe e nada lhe escapa! — afirmou, e parou diante de um vaso bojudo decorado com flores vermelhas.

- Vossa Excelência não se importa com a escapada do profano?

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— o mensageiro deu de ombros. Silas repreendendo-o com o olhar, e falou: - Não ouse duvidar de mim! A essência do profano está ao

alcance do Silas, assim como tudo que o poder da Oscarenta controla. — passou a mão sobre o vaso e retirou uma flor, sentiu o seu perfume. As pétalas começaram a murchar, levando o temerário mensageiro a deixar o recinto.

O profeta largou a flor e retomou a busca. Queria achar quem o perturbara, e passados alguns segundos, um enigmático sorriso brotou em seus lábios.

U O povo reunido no paço murmurava o cântico ritual como de

costume e atentos ao que sucedia à porta do templo, onde foi armado um palanque improvisado. Viam sacerdotes colocando doze cadeiras no alto da escadaria voltadas para a multidão. Minutos mais tarde, cerca de mil sentinelas subindo em marcha a rampa de saída do subsolo, da cava aberta no lado direito do edifício, surgiam de escudo na mão em duas fileiras pretendendo estabelecer um corredor entre aquela saída e o pilão das almas, atravessando a multidão.

Eles foram se enfiando e abrindo caminho entre as pessoas até atingir o marco público. Somente com o avanço a multidão recua certa distancia, afastando-se mais um pouco, abrindo terreno para a travessia do prisioneiro. Depois disso, as sentinelas se deram o braço esquerdo, levando ao ombro do companheiro ao lado, e estabeleceram distancia entre si para alongar o cordão de isolamento do corredor.

Logo mais, Mentor surgiu no terraço, exibindo uma flâmula com o

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símbolo da irmandade, e então pronunciou o orago em alta voz. - Ó Senhor! Despertai-nos das sombras! Conjuramos o santíssimo

fogo cósmico a banir o infiel da natureza criadora. Arrebata todos os males que o afasta de vós. Ó Senhor! Perdoai a alma, pois sucumbiu ao mal. Na Sagrada Procissão! Santa Purificação da Fé! — esperou um momento e depois pediu: - Silenciem!

O povo aquietou-se. E Mentor concluiu deu discurso, dizendo: - Tragam o abnegado para receber o castigo. Apreensivo, o publico passou a espreitar a saída inferior do

templo, de onde começaram a ouvir sons melancólicos provenientes de flautas e rufos de tambores, seguidos de chocalhos. Instrumentos variados tocados por um conjunto de músicos deixando a cava em companhia da carroça-prisão puxada por dois cavalos, onde se achava o apóstata.

Mentor sorriu ao anunciar a presença do violador. - Olhem bem para o profano. — apontou a pequena cela de

barras em cima da carroça, onde dois carrascos encapuzados de vestes sinistras seguiam dependurados em ambos os lados. - E digam se ele merece compaixão!

- Somente o Senhor pode mostrar-lhe a verdade! — o publico disse em coro, e continuou cantarolando o cântico ritual.

- Que assim seja! — com a frase, Mentor terminou o primeiro ato. O desfile alegórico prosseguia sem parar, misturando-se com a

multidão ao usar a trilha formada pela guarda palaciana para chegar ao marco público.

U

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Minutos antes, no interior da cava inferior do templo. Hani se sentia desorientado naquele ambiente de luminosidade

fraca, escuro por todo canto, exceto próximo à abertura que levava ao exterior. O haviam colocado numa cela de chão frio, um cubículo de paredes lisas com única entrada feita de barras de ferro, através da qual distinguia a silhueta de quem, de vez em quando, atravessasse diante da tênue luz.

Um pouco mais tarde, ouviu o solado de passos vindo em direção à cela, seguido do ruído súbito do destravar de portas.

- Esperem um pouco! Para onde estão me levando? — perguntou ao ser agarrado e tirado do cubículo.

E no meio de figuras sombrias, Hani tentou distinguir a face dos carcereiros assim que estes o retiram da cela e o conduz até um lugar qualquer naquela escuridão. Mas, por um instante, notou uma espécie de máscara cobrindo o rosto dos seus captores.

- Eu não tenho culpa de nada. Para onde estão me levando? — continuava a prosear sem se importar se haveria resposta.

Depois de ter sido arrastado por alguns metros, os carcereiros o ergueram do chão para depositá-lo sobre uma plataforma de madeira, lisa e malcheirosa.

- O que é isso? Está toda imunda. — reclamou de mãos sujas. E enquanto reclina o corpo para se colocar em pé a plataforma

deu uma mexida e, ao mesmo tempo, escutou o relincho dos animais atrelados a ela. De relance, o par de cavalos mais parecia duas corcovas. Ademais, as listras grossas e perpendiculares em seu redor o levaram a suspeitar de que fora colocado numa cela de barras sobre

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uma carroça. - Ah! Outra cela! — Hani começou a surtar: - Ainda mais nesta

carroça fedorenta! E se ainda não sabem, eu nem gosto de animais. Escutem aqui! Isto fede mais do que um cão molhado.

A falta de escrúpulos ficou evidente quando os indivíduos que o carregaram tornam a pegá-lo pelos braços, fazendo-o reclinar o torso para amarrá-los às costas, e depois disto, um deles sussurrou ao pé do seu ouvido.

- É melhor parar de falar e começar a se arrepender do que fez. Naquela altura não adiantava perguntar ao brutamonte qual era o

propósito de tudo aquilo, mas tentou mesmo assim. - Bom conselho! Mas poderia dizer para mim... A frase foi interrompida quando os carcereiros seguraram sua

cabeça e o amordaçaram, trazendo uma coleira com uma corda presa à fivela e a colocando em torno do seu pescoço, amarrando ao anel de ferro junto ao chão da cela. Tudo para mantê-lo calado e imóvel enquanto a cela estivesse sendo rebocada perante a multidão.

Também não demorou muito para perceber o aumento no numero de pessoas em redor da carroça. Devido à iluminação fraca, Hani só podia enxergar vultos carregando certos apetrechos tribais, dando a ele a sensação de estar rodeado por um bando de desajeitados.

A coleira apertou um pouco quando os cavalos deram a primeira guinada para o lado e movimentaram a carroça, seguindo atrás dos vultos em marcha, todos aparentemente de andar esquisito, ao toque de vários tipos de instrumentos musicais. A carroça deu outra guinada e mais vagarosa foi dirigida à rampa de saída, onde o conjunto de

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músicos era posto ordenado na alça exterior debaixo da claridade do dia, momento em que Hani matou a curiosidade de vê-los como são.

A maioria deles tinha o corpo pintado, traziam adereços pendurados e trajavam peças ritualísticas. O som da música vinha de instrumentos diferentes e o ritmo acompanhava o cântico entoado pelo público que assistia o cortejo do lado de fora.

Durante a subida da rampa, a carroça sofreu um solavanco e fez a coleira repuxar forte, sufocando a garganta de Hani. Entretanto, seu gemido de dor foi abafado pela mordaça.

Enquanto isso, nos arredores do pátio do templo. Loma despistou as sentinelas em vigília nas redondezas e

avançou no meio do público esparramado por toda a área livre do canteiro central, no qual se achava o altar do perdão. Ele se locomovia devagar para não chamar tanta atenção sobre si, pois desta vez descobrira sentinelas posicionadas no telhado das edificações próximas. No intimo, pensava na sua sorte de estar no meio daquelas pessoas enquanto um amigo estaria prestes a encontrar seu triste fim.

De repente, as pessoas no pátio ficaram agitadas, e ninguém mais se mexia do lugar. Isso o obrigou a permanecer parado, até saber se era confiável prosseguir. Instantes depois, as pessoas ficam apreensivas ao ouvirem sons distintos vindos da fachada do templo. Aos poucos ele também notou algo parecido com uma carroça de circo, surgindo excepcionalmente do subsolo do templo acompanhada de uma banda desconjuntada.

U A claridade do sol passou a incomodar a visão de Hani tão logo a

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cela foi deixando a sombra da cava atrás de si, onde grandes portões de ferro foram baixados para selar a entrada. Sem muita esperança, Hani experimentou descrever para si as peculiaridades do grupo de músicos na sua frente, percebendo o quão diferente são.

Alguns deles vestiam túnicas vermelhas e uma bizarra máscara lhes cobria toda a cabeça; outros tinham o corpo pintado de preto com largas faixas amarelas na cintura e o rosto todo branco; outros mais estranhos, não tinham um fio de cabelo e vestiam saias de corda e colares de ossos. A grande maioria tinha a pele tingida e símbolos religiosos tatuados de branco, cujo significado apenas o clero conhecia.

Quando a carroça atingiu o nível da rua, o público se ajoelhou em respeito à presença de alguém de suma importância. Hani experimentou girar o corpo e olhar para trás, vendo à sua direita, pelo canto do olho, o carrasco encapuzado do lado de fora da cela e, em segundo plano, o grupo de sacerdotes levantando dos assentos acima das escadas do templo. O movimento era em respeito ao vulto em traje de tom escuro passando por eles e os cumprimentando um a um.

Enquanto isso acontecia, o carroção prosseguiu seu caminho em meio ao público, costeado por soldados da guarda palaciana.

Subitamente, um dos homens encapuzados atingiu o rosto Hani com o bastão, sugerindo que teria cometido um ato desrespeitoso.

- Não dirija o olhar profanador para o Silas. Entendeu? Hani nada disse depois de receber o golpe, mas amaldiçoou-o em

pensamento. Os doze bispos receberam os cumprimentos do Silas enquanto

dois acompanhantes do profeta, trajando vestes exuberantes, de cores

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abstratas, vão ao encontro de Mentor carregando duas almofadas acetinadas, onde estavam acomodadas duas peças ritualísticas feitas de ouro e gemas preciosas que, quando unidas, formariam o cetro episcopal.

O cetro é um exótico brasão da Irmandade dos Unos. Através dele o Silas distingue a fonte da razão e faz uso da onisciência cósmica para tornar-se soberano dos elementos.

Mentor pegou uma das peças e a entregou ao Silas. Este a tomou em suas mãos, apreciando o mosaico cravejado de brilhantes por alguns segundos antes de volver e ficar de frente para o público.

Sua aparição faz o povo se postar de joelhos. Silas exibiu o cetro ao povo e deu início a cerimônia, em seguida,

marcou o sentenciado ao apontar o cetro em direção à cela a caminho do altar do perdão. Fez um gesto teatral e ordenou ao outro serviçal que lhe entregasse o segundo objeto de adoração. O ajudante andou até ele e deu em suas mãos uma espécie de cilindro de encaixe. De posse das peças em cada mão Silas juntou as duas, acoplando o cetro ao cilindro, formando o bastão episcopal, sendo este artefato um dos segredos mais bem guardados da Irmandade dos Unos.

A seita surgiu no quinto centenário de Oregas, ainda quando o Roshua se achava em conflito com o Congresso Popular pela questão dos direitos legislativos. Seus fundadores terminaram endossando a mudança de poder e o novo conselho permanente a ser instalado na cúpula do governo em uma nova metrópole.

As manifestações populares e os vários atritos entre congressistas conservadores e membros da nova irmandade,

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provocaram reações incriminadoras, tais como: a aprovação de atos institucionais e a incorporação de uma guarda especial. Com o tempo, o legislativo passou a constituir regras severas sob as quais o povo foi obrigado a se submeter. No período de restabelecimento da ordem, o sumo-sacerdote providenciou o bastão episcopal para ser utilizado na ativação do Alays-Viv quando dissidentes fossem condenados em ato público.

O cetro é abastecido por vibrações sonoras no momento em que Silas e Mentor recebem as saudações do povo. E durante este ato o povo comemora a apoteose enquanto os dois pedem para que gritem mais, e mais alto, até Silas sentir a ponta escarlate rutilar e o bastão episcopal abastecer-se de energia vital.

Porém, aquele foi um dia diferente para o Silas, e ele vacilou no momento mais importante da cerimônia.

U Precedendo a cerimônia. Loma foi pego de surpresa ao ficar em pé, perdido ali no pátio,

enquanto as pessoas ajoelhavam-se depressa, mantendo ainda o corpo curvado em direção ao templo, onde era possível ver a movimentação entre membros do sacerdócio junto ao palanque.

Ele se abaixou procurando imitar as pessoas, e ao mesmo tempo manteve a discreta atenção ao que ocorria no palanque.

Um clérigo, de aparência episcopal, apareceu acompanhado por dois serviçais e se juntou aos sacerdotes ali presentes, concluindo de imediato não se tratar de um sacerdote comum, pois não havia outro que causasse tanto rebuliço senão o próprio taumaturgo, Silas.

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Tomado por um temor instintivo, Loma escondeu o rosto rapidamente ao se lembrar de algo. Ele já tinha ouvido falar do poder sobrenatural do Silas e temeu ser descoberto.

Entremeio ao pensamento tenaz devorando-o por dentro viu algo incomum acontecer ao Silas. Os sacerdotes viram-no vacilar quando o bastão episcopal estava prestes a ser ativado.

Diante da simetria sensorial usada para captar todas as emanações de energia espiritual nas almas presentes no cerimonial, Silas ficou vulnerável a um evento ignoto, nada natural, que lhe causou uma ligeira dor de cabeça.

U Continuando a cerimônia. Loma ouviu o ruído de cascos de cavalo e resolveu erguer a

cabeça para ver quem estava em cima da carroça-prisão. Embora não estivesse próximo o suficiente, avistou o vulto de cabelos emaranhados na cela e esperou para assistir a retirada do prisioneiro quando estacionassem junto ao patíbulo de pedra, e assim poder identifica-lo.

Os carcereiros saltaram das bordas da cela assim que a carroça encostou a traseira no patíbulo a certa distancia do bando de músicos, cujos integrantes dispersavam para fazer o contorno e retornar ao templo tirando som dos trompetes enquanto preparavam a remoção do prisioneiro.

Naquele momento fugidio, uma sensação de angústia invadiu seu âmago e explodiu em seu interior, fazendo Loma recolher o rosto mais uma vez para não ser descoberto.

E mais uma vez, Silas aparentou ter sido tomado por um mal-

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estar repentino ao levar a mão à testa. Mentor quis ampará-lo, porém, Silas achou desnecessário e acenou reprovadamente, causando comoção entre os doze sacerdotes ao protagonizar sua rápida recuperação.

Mesmo desconhecendo o motivo de outra mente encontrar um meio para abatê-lo, Silas deu continuidade à cerimônia incitando as pessoas ajoelhadas a ficarem de pé.

- Revez vus. — tradução: <Levantem-se!> E o povo obediente ficou de pé, tomando a atenção das

sentinelas e dando oportunidade ao esquivo Loma de embrenhar-se na multidão, andando meio encurvado, até ficar a pouca distância do lugar onde se achava a carroça-prisão.

U A carroça estava estacionada tranquilamente ao lado do patíbulo

e lá ficou imóvel até o Silas ordenar ao público para erguerem-se do chão.

Hani permaneceu esse tempo todo na cela, cabisbaixo, sem ousar olhar para os rostos na multidão encarando-o com desprezo. E a uma ordem do Silas, o piso da carroça estremeceu. Os dois carcereiros abordaram a cela e o removeram das amarras.

- Venha cá, infiel! Saboreie o ódio dos deuses. — disse um dos encapuzados ao pegar na coleira e puxá-lo para fora, ainda amordaçado e de mãos amarradas às costas.

Dessa maneira o levam para cima do altar do perdão, onde o colocaram de pé, no centro do pilão de pontas reclinadas.

O encapuzado à sua esquerda parecia sorrir detrás da máscara

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enquanto o outro lhe soltava as amarras dos braços e, em seguida, o forçava a esticá-los até tocar com a palma da mão a superfície escura e lisa dos dois vértices laterais.

- Eu acho que você não está gostando do que acabou de sentir. — afirmou o encapuzado antes de soltar o seu braço.

Hani passou a sentir comichão nos dedos e antebraços após ter tocado nos vértices. Em um segundo, o prurido se manifestou no resto do corpo, causando enrijecimento muscular e paralisia total. Como seus membros não respondiam à sua vontade, não se mexeu enquanto o efeito daquilo foi se propagando pelo corpo. Mesmo assustado, tentou gritar quando o encapuzado sorridente retirou-lhe a mordaça. Porém, o que aconteceu o deixou mentalmente em pânico.

Hani ficou de boca aberta, mas completamente mudo após seus músculos labiais endurecerem repentinamente. Sem poder mover uma sobrancelha, restou-lhe ao menos observar o rosto dos que o assistiam e rezar para um deles perceber sua agonia. Foi decepcionante chegar ali decidido a berrar até o último sopro de vida e não encontrar forças para fazê-lo. O efeito do pilão lhe trouxe a sensação de impotência, e se tornou pior quando avistou Loma acotovelando-se para chegar o mais perto possível do patíbulo. Mesmo assim não conseguira substituir a angústia por um sopro de esperança, mas Loma continuaria vivo.

Loma presenciou os carcereiros deixarem o amigo completamente livre, com as palmas das mãos tocando as colunas simétricas ao seu lado, demonstrando estar em aparente liberdade de movimento. Contudo, estranhou o fato de Hani continuar calado quando tinha a chance de gritar palavras de ordem e alertar as pessoas beatas

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da vila sobre o abuso de seus dirigentes, expondo-os contra a vontade do Silas.

Porém, Loma nem imagina como o pilão conseguira cuidar da quietude do prisioneiro, impondo a ele um tipo de paralisia muscular. Um artifício empregado para calar o sentenciado de modo a este só ver o que iria acontecer a ele. Ademais, o publico nunca pediu interferência em execuções publicas.

Loma devia apenas agradecer aos deuses por ter se aproximado do patíbulo sem despertar o interesse da falange de soldados.

Inesperadamente ele ouviu um sinal sustenido proveniente do alto do palanque, e a multidão empalideceu.

U Silas deu início às palavras sacras que antecedia a execução: - Irmãos! Reunimo-nos nesta ocasião para celebrar a punição

desta criatura, nascida entre nós como um ser perfeito, e que por motivos torpes violou a lei do toque de recolher para praticar heresias da noite contra a comunidade. Por esse ato impuro, vosso senhor o condenou ao ritual da purificação da alma.

Silas indicou o jovem no patíbulo. - O profano cometeu heresia da qual homem algum há de redimir.

— ele eleva o gládio reluzente em direção ao patíbulo: - Partirá para o mundo etéreo, Hani de Citra, filho de Vazcoz. Retornará às trevas de sua existência e sua alma tornar-se-á parte do cosmo. Seu corpo, a carcaça que aprisiona sua alma neste mundo, será destruído para nunca mais caminhar nesta terra.

Uma centelha de energia saltou da extremidade do cetro e partiu

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velozmente para se chocar contra a base piramidal, produzindo um som agudo e reverberante, fazendo os vértices do pilão vibrar à medida que liberavam radiação em cima do prisioneiro. Hani sentiu a energia invisível arder em suas entranhas ao envolvê-lo acima do tórax, espalhando-se pelos membros inferiores com rapidez.

- Jauy! Livrai o infiel da perdição! Apoia-te no caminho da luz. Repara-te os erros e alimenta-o do novo cerne. Louvado seja! — Silas pronunciou cada frase pausadamente enquanto o prisioneiro sofria os efeitos da radiação mística.

U Hani contraiu o cenho ao sentir algo vibrante trilhando por baixo

de sua pele, aquecendo seu sangue e retorcendo os nervos para torturá-lo por dentro, até fazer sua mente desvanecer em pânico. Não obstante, estaria correto pensar se tratar de um tipo de tortura muito sofisticada, cujo objetivo seria causar hemorragia interna; fazendo-o morrer pelo falecimento de órgãos vitais.

Por causa das feições estarrecidas do público, Hani pensou estar acontecendo algo horroroso com ele, de maneira bem visível aos olhos da multidão. Para aquelas pessoas, seu corpo transformara-se em um ser fantasmagórico, até não passar de um borrão descolorido sumindo aos bocados, e finalmente desaparecer por completo.

Foi como se Hani tivesse se desmanchado no ar, pensou Loma. Nisso, sobreveio o silêncio. Silas saboreia o momento e entrega o

cetro a Mentor. O silencio foi quebrado com a debandada de mil soldados marchando de volta para o interior da cava, e os poucos sussurros entre a multidão pesarosa a dispersar pelas vielas.

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U Loma retirou o capuz e permaneceu onde estava matutando

sobre a razão de ele ter sido poupado daquele trágico destino. Com isso tentou compreender se havia algum significado emblemático no vazio de sua alma, tomada pelo medo ao saber que erigiram tal monumento com o propósito de invadir as pessoas e as aterrorizar, levando-o a pensar em se opor ao absolutismo do Silas.

Naquele momento preferiu recuar cabisbaixo, dando uns passos de costas ao virar-se para trás, depois, caminhou lentamente e parou mais adiante, olhando para os seus pés e vendo a poeira do chão passar por cima deles quando arrastada pelo vento, mas não havia vento algum. Ficou ali contemplando seus pés, acalentando um conflito crescente no âmago. Loma sentia alguma coisa querendo arrancar seu coração em fúria de dentro do peito, tomando-o de ódio e deixando o rosto dele irreconhecível. Mas teve de abrandar seu ímpeto de modo a não revelar-se aos donks em vigília no telhado, permitindo à sua mente vibrar com o desejo súbito de vingança. Loma se virou para mirar o majestoso conjunto arquitetônico deixado para trás a procura de algum sacerdote no alto das escadas; contudo, todos já haviam partido e soçobravam apenas doze cadeiras vazias.

Definitivamente só e precisando achar um lugar para se esconder, Loma se convenceu a não permanecer ali nem mais um minuto, pois poderia ser pego de surpresa pelo dom sobrenatural do Silas; então, evadiu do local a passos largos.

U No salão de entrada do templo, os sacerdotes que passaram o

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portal dirigem-se ao plenário para rezar pelo restabelecimento da ordem face à indignação espiritual ocasionada pelo sacrilégio do excomungado.

Enquanto isso, Silas, Mentor e frei Calstin cruzam o interior da abadia a caminho da escada interna em busca dos aposentos.

Durante o trajeto, Mentor analisou o resultado da procissão da verdade ao citar os jovens envolvidos como meras vítimas de uma lei promulgada há anos e que lhes causava grande embaraço.

Frei Calstin foi mais abrangente no assunto e recordou das propostas sugeridas para abrandar a lei, ainda na pauta de votação da bancada parlamentar e discutida há vários anos pelos líderes da câmara baixa, que se negavam a concordar.

Silas se comprometeu a tratar o assunto na próxima assembleia, mas, até lá, a intervenção da milícia continuaria sendo vista de forma legítima.

Entretanto, ao clero não restava dúvidas sobre a maneira como os hereges se opuseram ao cativeiro, surpreendendo o chefe de milícia e a todo mundo. Principalmente pelo fato de, naquela ocasião, os apóstatas terem feito uso de técnicas de combate obtidas no próprio ciclo educacional e ferido mortalmente alguns membros da patrulha. Portanto, o episodio levaria o parlamento a rever as atitudes tomadas pela milícia com o propósito de tornar o esquema de segurança urbano mais eficiente.

Silas subia o último lance de escada ao lado dos dois sacerdotes quando, ao traspassar a janela, algo vibrou em sua mente e o reteve ali, e desta vez quase o derrubou. Algo parecido, ele nunca sentira

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antes, mas conhecia certos aspectos das revelações ditadas por seus antecessores.

- Quem estará provocando isso em mim? — o Silas indagou-se em tom delirante.

- O que foi meu Senhor! Não está se sentindo bem? — observou Frei Calstin.

- Não! Está lá fora! Eu o sinto agora. — afirmou em completo delírio ao espiar o pátio através da janela, onde via apenas uns poucos camponeses indo em direção aos postos de trabalho.

- Eu não vejo nada ameaçador lá fora. — convenceu-se o frei. Para Silas a ameaça era evidente e se mantinha oculta perante

seu poder psíquico, talvez até de forma ignorada, mas tinha de ter certeza. Podia ser alguém muito próximo, de qualquer forma deveria destruí-lo o quanto antes.

Silas fechou os olhos e concentrou a busca do violador através dos sentidos, detectando o desejo guardado no interior de cada pessoa tocada por sua mente extraordinária, mas não obteve sucesso. Algo maior e desconhecido envolvia o egresso, permitindo a ele fugir como se fosse fantasma.

E, talvez, pensou Silas, seus antecessores desconhecessem de fato a origem do estímulo protetor que andava lhe causando tantas náuseas.

- Eu já me sinto bem melhor. — disse ao frei, depois de uma pausa contemplativa.

Mentor ficara preparado para alertar a abadia caso o Silas não se recuperasse, interrogando-se em pensamento: Por qual motivo Silas

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teria sido acometido de um mal-estar súbito? E a resposta estava impressa no semblante atônito do fidalgo, revelando a impotência do profeta em desvendar o mistério do herege.

- Está se sentindo bem, Excelência? — disse ao Silas, procurando ficar a par de sua situação.

Silas estava abatido, e num súbito esforço explicou ao abade após tentar subir as escadas e se curvar, sendo preciso Mentor ampará-lo pelo braço.

- Nada, não foi nada. Deve ser o calor. Vamos indo! Mentor não acreditou. - Vossa Excelência precisa descansar. - Tenho muito trabalho. — ostentou Silas. - De jeito nenhum! — Mentor o censurou. - Vossa Excelência vai

ficar no seu quarto o resto da tarde, e o resto da semana se for necessário.

Frei Calstim se lembrou do compromisso inadiável do Silas, e propôs o seguinte:

- Mentor tem razão! Se quiser, nesta semana eu mesmo faço o translado dos seminaristas. Já administrei a sagrada seiva da obediência outras vezes. — ele oferecia seus préstimos enquanto o Silas ficou suspirando perto da janela, com o olhar perdido.

Pensou no assunto e terminou concordando com eles. - Estão certos. Uma semana de cama irá me ajudar. Vocês têm a

minha bênção! — Silas deu autorização. - Agradecemos a confiança. Eu cuidarei para não ser incomodado

até estar refeito do mal que o aflige. — Mentor prometeu enquanto o

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frei ajudava o abatido Silas a subir os degraus, depois foi embora. Frei Calstin se encarregou de levar o Silas para o aposento e, ao

passar em frente à biblioteca, dois abades vieram socorrê-los. O frei ficou grato pela ajuda e deixou a tarefa de levar o Silas até o quarto a cargo de um deles, pedindo ao outro para levar instruções ao núncio palaciano. Ele pretendia tomar algumas providencias antes de o núncio ir buscar os jovens selecionados em suas casas, pois, desta vez, mais famílias deveriam atender a convocação.

U Loma não demorou a se afastar da praça, seguindo atrás de

outras pessoas de passagem pela viela, com destino ao posto de triagem aonde pretendia se juntar aos trabalhadores de partida para Terra Alta.

O sol estava a pico e a brisa da manhã ainda fresca, sendo o inicio de um dia muito agitado.

No caminho até o posto, Loma percebeu carroções cruzando as ruas e fazendo parada na porta de alguns lares, onde os moradores abriam suas casas para a visita do núncio do palácio. Este oferecia uma escolha bem simples à família: doar um dos filhos gozando de plena saúde para servir ao clero.

A cena fez lembrar-se de sua família, pensando em caso fosse selecionado e não estivesse em casa, o que ia acontecer a eles? No entanto, achou difícil, pois não tinha mais idade, e parou de pensar nisto quando chegou ao posto de triagem.

Havia donks por todo lado, uns tentando colocar disciplina nos trabalhadores enquanto estes aguardavam a chegada dos carroções

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para levá-los até a Terra Alta, a fazenda localizada no alto da chapada que formava a geografia do resto da ilha.

Vários carroções de tração animal surgiam no fim da avenida, ladeados por uns poucos cavalarianos tropicando lentamente no asfalto. Os carroceiros manuseavam os arreios e pronunciavam palavras somente entendidas pelos animais, levando os reboques para perto dos grupos à espera. A um puxão das rédeas os animais param de vez e permanecem assim, mansamente, até o embarque dos trabalhadores.

Já os cavalarianos, desmontam e colocam-se a frente dos grupos com seus uniformes rutilantes ao sol.

Loma espreita a tudo de onde estava e aproveita o tumultuado vaivém de pessoas para misturar-se a elas, determinado a escapar, e se fosse possível, não terminar como seus amigos. Ele entrou numa fila de espera e sua presença ali provocou olhares estranhos por parte de alguns trabalhadores. O medo impregnou sua alma ao notar que sua roupa o denunciava, pois todos ali estavam mal vestidos. Um deslize como esse poderia lhe custar uma fuga bem-sucedida. Ainda mais se continuasse a tremer, assim estaria subestimando os donks a descobrir seu audacioso plano.

Precisava de um disfarce convincente, então experimentou agir como se fosse um camponês disposto a embarcar em sua primeira viagem. Sem saber quais procedimentos devia fazer, repetiu exatamente cada movimento feito pelos outros. Pegou um saco alvejado com alça de ombro e seguiu atrás da fila, passando por uma espécie de feirinha onde eram entregues pacotes de mantimentos e

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peças de ferramentas. Botou os mantimentos dentro da sacola e escolheu uma enxada como ferramenta de trabalho, em seguida entrou numa das outras filas, na qual uma sentinela fazia a identificação de quem viesse a entrar no carroção.

Loma ficou observando o procedimento de longe enquanto o miliciano verificava todos, liberando os aptos a subirem na caçamba. O donk parecia lançar um olhar sobre o indivíduo e, se conhecesse o rosto do trabalhador, ele o liberava. A fila andava muito rápida e num minuto sobravam três pessoas na sua frente, mesmo assim continuava a ter aquela sensação nada agradável, provocada pelo seu medo infundado.

Mal sabia ele que o capacete da milícia continha instrumentos com recursos digitais acionados por sensor extrassensorial ou comando de voz. Ao focar o rosto de certa pessoa, o nome desta aparecia num canto do visor de cristal. Uma microcâmara com sensor captava a impressão térmica dos seios da face, que é diferente de um indivíduo para o outro, realizando a leitura usada para encontrar a identidade correspondente no banco de dados. O sistema também dispunha de filtros de luz, reproduzindo a imagem com maior nitidez mesmo em ambiente escuro. Outro recurso, comumente usado em campanha, ajuda a esquadrinhar objetos e digitaliza-los de perfil, sempre em três dimensões.

Além destes recursos, o sistema coordena varias das operações em situação de batalha, providenciando o alvo na seleção de tiro, ativando o modo visão noturna e detecção com sensor de movimento.

No momento em que Loma ficou de frente para o miliciano sua

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identidade foi verificada assim que cruza seu campo de visão, e no visor aparece na legenda sublinhada: artesão de metais. O soldado tomou medidas imediatas, como fazer um gesto de advertência estendendo o braço direito ligeiramente até tocar no peito de Loma, que o encarou surpreso e sem entrar em pânico.

Loma, por sua vez, sentiu a pressão dos dedos contra o seu peito e recuou um passo atrás. Olhando em volta teve a certeza de precisar tomar cuidado com suas atitudes, pois ao demonstrar receio pareceu ter atraído toda a atenção para si. Então, empalideceu.

- O que você faz aqui? — perguntou-lhe o soldado: - Este setor requer trabalhador braçal com especialização agrícola, você contraria a ordem!

Ao dar o aviso, Loma não respondeu de imediato. Os trabalhadores das filas próximas ficam apreensivos e isto

aumenta a tensão entre ele e o miliciano. Durante o segundo seguinte, um braço apanhou o ombro de Loma e o faz girar desprevenido para o lado. Assustado e não querendo saber quem fizera isto, Loma enruga a face esperando receber um soco na cara.

Apesar da sua quase cômica cara de espanto, Hayri conteve o sorriso ao simular uma discussão:

- Aí está você! Estou a procurá-lo nesta multidão desde a procissão. Pensei até que não viria!

Loma suspirou aliviado, até porque o amigo não parava de falar. - E parece não ter perdido o jeito para se meter em encrenca. Eu

o avisei para não ocupar a vaga do outro sem se cadastrar com o chefe de milícia, certo? — acenou com um sim. - Devia ter feito como

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combinei! Agora vamos, meu grupo embarca em outro carroção. Hayri sempre foi um grande amigo de Loma. Estudaram juntos no

centro educacional até ambos serem transferidos para as escolas de formação de mão de obra. Com certeza, Hayri suspeitou de algo quando o viu sendo constrangido pelo guarda e agiu com surpreendente tranquilidade.

No instante que o viu, Loma se sentiu em segurança, embora não quisesse envolvê-lo no assunto.

Mesmo assim o soldado não permitiu a Loma evadir do local sem antes lhe perguntar novamente:

- O que você faz aqui? Hayri passou a falar suavemente com o soldado: - Eu explico! O nome dele não consta da relação dos servidores

do campo porque ele é inscrito como artesão de metais, e hoje, ele veio substituir um rapaz que adoeceu. Como ele não conhece as regras, não forneceu a identidade ao chefe de equipe.

Voltando a olhar para Loma, o soldado repetiu: - O que você faz aqui? - Eu... Sinto muito! — respondeu gaguejando: - Não pretendia

causar confusão, estou aqui apenas para ocupar o lugar de um trabalhador que se acidentou. Como era mesmo o nome dele? — parecia sincero até pelo fato de não se lembrar do nome.

- Melkor! Aquele sujeito com sardas no pescoço... — Hayri improvisou ao recordar o nome de um colhedor que, por coincidência, faltara à reunião pelo motivo de estar doente de verdade.

O soldado ficou imóvel por alguns segundos, como se pudesse

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confirmar a informação à distância. - Pode ir em frente! — ordenou, após a pausa de espera. Uma expressão de alívio iluminou a face de Loma, tão reveladora

quanto o nervosismo de Hayri ao sacudir a cabeça e soltar um sorriso. - Estou curioso para vê-lo trabalhar com esta enxada. — disse

Hayri em tom zombeteiro. - No primeiro dia suas mãos estarão cobertas de bolhas, sua pele estorricada e suja feito um porcalhão.

Loma murmurou: - Você acabou de me ajudar a sair de uma grande encrenca e

mais tarde eu preciso contar a você toda a verdade. Ele olhou o rosto franzido do amigo e pareceu acreditar. - Tudo bem! Eu vou ouvi-lo, pois é habito entre os camponeses

contar estórias durante o caminho até a Terra Alta. Loma montara na caçamba, satisfeito por estar entre amigos, e

quando olhou para trás viu o miliciano em prosa com um homem alto, forte e de enorme torso, que abruptamente volveu o olhar em sua direção, mostrando a ele um sorriso fraternal. Imaginar qual o motivo disto causou uma sensação ruim em Loma, não achando graça em ter aquele grandalhão a espreitá-lo por cima da multidão.

U Os homens do campo, obreiros e colhedores alojados sobre os

veículos, aguardavam a ordem de saída. O líder da guarda se colocou à frente da coluna de cavalarianos, orientando-os a cobrir o flanco esquerdo do comboio. Depois disso, mandou um sinal aos carroceiros para pôr os veículos em movimento na avenida e pegarem uma rua estreita, de pavimento irregular, onde se arrastam por ela até atravessar

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a cidade. Em algum momento, as carroças são acompanhadas de perto por crianças do povoado, que se juntaram num trecho para desejar boa colheita aos camponeses.

Mais adiante, o comboio chega à estrada de chão bruto por onde fará a travessia da zona limítrofe urbana.

Apesar do balanceio das rodas incomodarem Loma, ainda assim se sentia confortável sentado sobre um punhado de sacos de estopa. De vez em quando reparava a sua volta e encarava o semblante cheio de paciência daqueles homens talhados para o trabalho, achando fácil aprender a ser como um deles, mas duvidou que quisesse ter a mesma aparência sofrida.

O comboio passou sobre uma ponte de madeira ao cruzar o rio, em cujas margens havia várias mulheres levando trouxas equilibradas na cabeça rio adentro. Elas seguiam até a água lhes cobrir as pernas e despejavam as mudas de roupa para lavar, esfregando na mão e banhando-as várias vezes.

Hayri levantou o braço direito e o apoiou no ombro de Loma, perguntando a ele:

- O que aconteceu? Loma não queria conversar sobre o assunto, dominado pela

emoção de ter passado por um momento de quase morte. Mas ao seu lado também se achava um sujeito bem velho, de longa barba grisalha, dentes quebrados e descoloridos, os que sobraram. Reparou no rosto de todos os que o acompanhavam e viu neles a mesma expressão de pessoa faminta, um retrato da grande impaciência dos governantes.

- Eles vão nos escutar. — disse recluso.

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- Só se você os insultar. — disse Hayri, e observou Loma sorrir melancólico, para então falar: - Estou contente por trabalharmos juntos!

Loma não tencionava contar-lhe a respeito de suas dúvidas sobre o governo local e não queria deixá-lo pensar que estivesse lidando com um doido. Hayri o havia acolhido como um velho amigo faria para resolver uma situação embaraçosa.

- Os colhedores sempre descobrem coisas. — comentou. - Qualquer coisa! — confirmou Hayri acenando com a cabeça. - Está certo. — disse Loma: - Foi ontem à noite, reuniram-se:

Rashiv, Hani, Saied e eu. Você já pode imaginar o que aconteceu. - Está assumindo ser o foragido que participou de tudo aquilo? Só

estranho o fato de você não ter morrido como eles. - Tive sorte de cair em um abrigo. — murmurou Loma. - O que esperavam agindo assim? Um comitê de boas-vindas! - Tínhamos esse direito, você não sente necessidade de fazer

algo para aprender coisas novas? Conhecer a fauna no continente, por exemplo? — perguntou a Hayri, e completou: - Essa nossa intenção de satisfazer a curiosidade estava nos deixando deprimidos.

- E vocês fizeram tudo isso para provarem algo. Desafiando todas as medidas tomadas pela milícia e seus agentes para reprimir ações semelhantes.

Hayri falava devagar, recordando o relato vago dos soldados. Em seguida, Loma começou a falar com pesar:

- Há poucos meses, o pai de Hani revelou a ele que fazia parte do protetorado de Albúrbia, um mosteiro situado do outro lado do continente. Apesar de ele nunca ter saído daqui conhecia de tudo

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apenas lendo os atos remissivos que lhe chegavam secretamente. O pobre coitado confiou no filho quando este prometeu manter sigilo. Em vez disto, Hani cometeu o erro de partilhar do conhecimento com seus melhores amigos. Nossa curiosidade foi culpada pelas coisas correrem muito depressa. Qualquer assunto nos fascinava. Líamos e pensávamos em nos servir do livro de teoremas como guia enquanto observássemos algum evento de noite, a olho nu. Mas tinha de ser um local ermo para o chamarmos de observatorio. Nós nos reuníamos no andar mais alto de um prédio em construção e da última vez fiquei de vigiar. Um meteorito riscou o céu, relaxei a guarda... Queria nunca tê-lo visto! E assim que voltei a espiar a rua encontrei um donk olhando diretamente para mim. O miliciano atirou quando me viu. Então, as coisas fugiram do controle.

- No final das contas, você é o sujeito misterioso que desapareceu no cemitério, certo?

- Sou eu mesmo. - Neste caso, você já está morto! — afirmou sem surpresa. - O quê! Como assim, estou morto? — balbuciou estranhamente. Hayri chegou perto de um sorriso com a afobação do amigo e

tratou logo de se explicar: - Foi o que escutei por ai. Falam nisso o tempo todo. Tinham o

sujeito emboscado e num estalo seu corpo foi tragado pelas trevas. - Essa é a historia da milícia? — retorquiu Loma, ainda incrédulo. - Contam assim mesmo. Eles não desconfiam sequer quem seja. - Então já foi anunciada a morte do violador. — e Loma frisou

bem: - Minha morte!

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- É isso Senhor Ninguém! Mas não vai ficar por aí sem ter com o que se preocupar. Vai passar três semanas trabalhando duro! Está disposto a ficar sentado e escutar as queixas até de madrugada? — esboçou Hayri.

- Claro que sim! Com vocês não há de me preocupar com nada. - Ah, Ah, não se sinta acomodado ainda. — advertiu Hayri. – Olhe

bem para meus companheiros e depois imagine a droga de vida que levam. Você tem de ser igual a eles!

Hayri abriu o baú em que dois camponeses estavam sentados, tirou uma muda de roupa de dentro de um saco alvejado e entregou a Loma pedindo a ele que a usasse para ficar igual aos outros.

- Primeiro, tire essa roupa bonitinha. Vai ter de aprender rápido como nos comportamos para os donks não suspeitarem de nada.

Loma troca de roupa meio agachado no assoalho do carroção e meneia a cabeça enquanto vai dizendo para o amigo:

- Pelos céus, Hayri! Tenho mesmo de usar isto? — já em pé, verificou o número de rasgões e manchas no pano da calça e na camisa.

- Você precisa se vestir assim. — disse Hayri, dando um sorriso. - Alem disso, deve aprender a apreciar a paisagem daqui. Cada um de nós já sabe o que existe por estas paragens.

Olhando esperançoso para o grupo, Loma percebeu o quanto teria de trabalhar com a enxada para obter aquela aparência temerária.

- Muito bem! — Loma retrucou, e disse francamente, visando seus novos companheiros: - Então doravante eu serei como eles. — concluiu esfregando as mãos nos joelhos, procurando disfarçar a atenção dada

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aos traços enrugados no rosto e das mãos calosas deles. Hayri sussurrou no ouvido de Loma: - Não fique impressionado com a feiura deles. Apesar de serem

desse jeito, a mãe é muito bonita. Loma deu um sorrisinho diante do tom sarcástico de Hayri. Depois ficou prestando atenção nos casebres às margens da

estrada, marcando o inicio e o fim da gleba de terra aonde sitiantes dedicados à agricultura familiar colhiam hortaliças frescas para serem consumidas por todo mundo na cidade. De vez em quando olhava para os carros mais a frente do comboio, e em certa ocasião viu alguns principiando a subir o barranco, que demarcava o fim da zona limítrofe urbana, repleto de frondes de arvores do outro lado. Mas não deu tanta importância a isso até seu carroção ultrapassar o barranco com a floresta descortinando-se a sua frente. Um horizonte de mata intocável esperando para revelar seus segredos a ele.

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FASE UM

Naquele exato momento, em outro canto da galáxia, um cruzador

de batalha apontou reluzente na travessia por uma dobra espacial. E na sua ponte de comando, vários operativos experimentavam

trabalhar incessantemente, entre eles o oficial Molay. Acompanhando os dados na tela suspensa sobre o console de operações, via algo passando sob a imagem do registro em forma de onda. As protuberâncias, assim como o chuvisco colorido, delatavam veículos imersos sob o manto da composição química de emissões de partículas do propulsor instalado no objeto em questão.

- Preparar defesas a ré! — deu a ordem. Quase imediatamente um silvo soou às suas costas ao soltar o

alerta de intruso e a comporta no centro do assoalho se recolheu para fazer surgir um poço escuro no meio da sala. Dali emergiu a poltrona de comando de modo magistral, trazendo em seu assento bloodeswartoo Brack, que a rodou para o lado e inclinou o corpo à frente antes de começar a falar com o oficial na ponte.

- Tem muito barulho aqui. São mesmo naves? - Sim. Eu vejo três sinais deslocando-se continuamente a vinte

oito quádruns de nossa posição. Acho que estão a nos perseguir desde nossa passagem por Nimba III. — informou Molay.

Brack anuiu silenciosamente. Um momento depois a porta do elevador faz ruído ao abrir, e

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desta vez surgiu uma mulher exuberante, acompanhada de um homem de baixa estatura, vestido igual um bufão e despertando a curiosidade de alguns operativos, e de Molay, que se virou abruptamente para os dois.

O homem baixo ficou a direita da mulher enquanto esta se dirigia ao analisador, constatando a exatidão dos dados coletados.

- Ora essa. Temos visitas inesperadas. — disse ela. - E não desejam se afastar de nós. — disse-lhe Brack. Ela pressionou o teclado e criou diagramas comparativos para

apresentá-los na tela maior, próxima à cadeira de comando. - Usando a difusão de neutrinos como se fosse uma capa de

chuva e um pouco da radiação emanada do seu reator principal, eu poderei moldar a silhueta da astronave dentro do fluxo de dobra.

A grade de retículos foi mudando na tela e gerou uma confusão bizarra de traços torcidos, ora ondulados, sendo agrupados para moldar algo mais definido, fornecendo a silhueta do veículo espacial.

Quando a imagem estabilizou, o sistema passou imediatamente a compará-la com as configurações conhecidas no arquivo central.

- Fortalezas Buzaisc! — disse ela, sem acreditar. - Só me importo em saber se pode ser perfurado por um torpedo

cinético. — argumentou Molay - Pensei que a frota Buzaisc tivesse sido destruída. — disse ela,

sempre acompanhada do homem baixo, que permanecia calado. - Seja como for, eles vão nos interceptar. — estimou Brack: - O

que quero saber de você, Jenny, é se na nossa atual situação poderemos abatê-los?

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- As fortalezas possuem armamento padrão e canhões de plasma. — ela o informou assim que consultou os arquivos, e continuou: - E utilizam monitores radioelétricos para ler instrumentos à distância.

- Neste caso, não podemos surpreendê-los. — receava Brack. - Não! A menos que leve a Laviggia o mais próximo de um

gerador de campo magnético, como um pulsar. — argumentou Jenny. - Isso me parece perigoso. — retorquiu Molay. - Explique! — quis saber Brack. - Os sensores de campos magnéticos captam os ruídos estáticos

e anomalias termodinâmicas de sinais eletrônicos capazes de agitar elétrons à sua volta. Como toda operação de uma astronave passa por processadores de alta velocidade esses impulsos elétricos parecem iguais a um efeito sonoro na atmosfera. — terminou, acrescentando ainda: - Precisamos ficar próximos a um objeto mais barulhento do que nós.

- Não temos tempo suficiente para procurar um objeto próximo. — avaliou Molay.

- Eu também acho. — concordou Brack. O homem baixo ouvia a tudo calado e quando surgiu o impasse

murmurou algo no ouvido da mulher, e esta comunicou aos outros: - Hillwon pode nos ajudar. Brack repudiava o velho engenheiro por exercer certa influência

sobre as decisões de sua oficial mais graduada, mas, devido às circunstâncias, concordou em deixá-lo expor soluções:

- Então me diga. — concedeu. Hillwon deu um passo adiante para falar:

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- Bem, existe a Grande Nuvem. É o lugar para onde podemos ir, mas não está nos mapas cartográficos do império e para levá-los até lá preciso reiniciar o programa de navegação.

- Como assim? Nada foge ao conhecimento dos cartógrafos do império! — relutou Molay.

- Deixe ele falar! — Jenny interferiu. - Não sei explicar. O meu povo explorou o lugar por algumas

gerações, até sucumbir ao império. Lá existe campo magnético suficiente para dissimular os instrumentos de detecção dos nossos perseguidores.

- Então, será para onde iremos... — Brack concordou rápido. - Bloodeswartoo,... ! — Molay ameaçou discordar. - Não temos alternativa, Molay! Ou ficamos aqui para sermos

derrotados ou escapamos dessa para lutar com alguma vantagem. — disse Brack, obrigando-o a acatar suas ordens.

Molay calou-se enquanto Brack dava ordens ao piloto: - Esmacher! Parada total! Estabeleça curso para a Grande

Nuvem. O piloto acionou prontamente os dispositivos de frenagem. Pequenos jatos azuis disparados de diversos motores de

manobra instalados no casco são apontados no sentido inverso e vão fazendo a imensa estrutura desacelerar gradualmente. E conforme foi perdendo velocidade, o espaço circundante passou de um borrão com centelhas luminosas para um céu escuro, repleto de estrelas longínquas.

- Vamos logo, Hillwon! O tempo é curto. — arrefeceu Molay. –

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Forneça as coordenadas. - Estou indo, estou indo! — retorquiu o engenheiro sentado no

console de navegação para refazer o calculo da trajetória. Com extrema agilidade veio a concluir o procedimento enquanto

Molay advertia em voz alta: - Captando concentração de quarks... São eles! A astronave retornou ao curso a toda velocidade, rumo à inóspita

e desconhecida região da Grande Nuvem enquanto três astronaves apareciam há algumas centenas de quilômetros de onde se encontrava.

- Ufa! Conseguimos! — desabafou Hillwon. - Molay, as fortalezas chegaram a ativar os sensores sobre nós?

—Brack quis saber, apesar de improvável. - Não por muito tempo. Eles vão demorar um pouco mais para

decifrar qual a nossa direção. Brack suspirou aliviado e deu uma piscadela para Jennings, e

esta lhe devolveu um sorriso. Hillwon cruzou os braços e sorria de satisfação enquanto

esperava de Molay uma demonstração de agradecimento, mas o oficial se recusou a lhe dar o crédito, se valendo da patente militar para justificar a ordem dada pelo comandante e tirar vantagem do subalterno. Mas não deixou de demonstrar alivio por tê-los ajudado a escapar das fortalezas.

- Bloodeswartoo, a órbita padrão será restabelecida no período de seis rotações. Devo passar a nova rota para o comando espacial? — comunicou o piloto.

- Tudo bem! — concordou Brack depois de se certificar de que as

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três silhuetas havia mesmo desaparecido da tela - Envie o nosso curso codificado pelo rádio subespacial.

Então bateu com o dedo no botão incluso no apoio de braço da poltrona, e falou com desdém:

- Voltarei mais tarde! — e desapareceu junto com a poltrona para dentro do poço elevatório, que logo após se trancou.

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Arup Kep Ket (do Caiapó : A história não terminou)

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O PERDÃO DO MENDIGO

É noite em Virago Sete, mundo habitado da Constelação de Órion. Um mendigo ficou sentado no banco da praça observando o céu

estrelado pairando acima de arranha-céus laminados, erigidos no chão de concreto da cidade automatizada, lugar onde as relações sociais se faziam por meio de uma rede planetária de comunicação criada a partir da grande crise que desnorteou o sistema político.

Da mentira de executivos demagogos surgiu a epidemia virótica que proliferou através dos alimentos sintetizados em laboratório e modificaram os genes do organismo consumidor, levando-os a uma violenta febre-hemorrágica. O Conselho de Inquérito Social, formado para apurar as causas do distúrbio epidêmico, chegou à conclusão que seria incapaz de erradicar aquela doença. Tiveram de reformar o estatuto social e ordenar os poderes públicos de maneira a manter o controle permanente da sociedade, e isto os levou a optar pela automação geral.

Para tanto, criaram um sistema cibernético em rede mundial com serviços propícios a manter as pessoas debaixo de vigilância constante.

Mas com o passar dos anos, o programa veio a utilizar um sistema virtual que lhe possibilitou aprender com as situações resolvidas, vindo a adquirir consciência própria. Com o tempo, foi tecendo a oportunidade de constituir uma sociedade estatal onde as almas desatentas cuidadas por ele seriam desnecessárias. Aos poucos sua influencia na sociedade

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foi se expandindo e os líderes foram removidos dos cargos executivos, ficando desprovidos de qualquer posição social relevante.

O mendigo não enxergava bem e relembrava estes fatos quando o canto do pássaro pousado sobre a árvore ao lado revelou a ele o raiar do sol despontando no céu. Ele se ergueu, levou os braços ao alto e depois de espreguiçar recolheu o livro bíblico sobre o qual estava sentado, carregando-o na mão ao começar a caminhar pelo parque.

Foi até a fonte com um grande espelho da água, onde se curvou para ver o reflexo de seu rosto de meia idade, admirando as costeletas grisalhas e os óculos sem lente sobrecaído no nariz largo. Ao ver-se na imagem embaçada pensou se era ele mesmo. Virou de lado ao perceber dois meninos chegando perto dele, conversando alegremente.

- Lindo dia! — falou sorridente. Ambos pararam de conversar e abriram um sorriso, no instante

seguinte olham assustados por cima do seu ombro e saem correndo como se algo de ruim os perseguisse.

O mendigo virou para o outro lado e viu algo que o fez entender o motivo pelo qual fugiram. Havia um tumulto mais adiante, com algumas pessoas alardeando ser o fim do mundo. Ele procurou no céu, bastante claro por sinal, algum míssil dirigindo-se contra a cidade. Apesar do armistício, rumores sugeriam um ataque repentino preparado pela nação inimiga. Mesmo sem ter nada ameaçador caindo sobre a metrópole, algo de anormal provocara a manifestação.

Apesar da pouca visão percebeu o céu escurecendo aos bocados e tornando os edifícios cinzentos. Descartou qualquer eclipse solar, pois a lua despontava no outro extremo.

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Outra coisa havia causado a perda de luz, e passou a provocar fortes tremores de terra que fizeram os edifícios desmoronar.

Mas aquilo não chegou a intimidar o velho vagabundo, até o fez sentir certo contentamento, despertando-lhe um sorriso de felicidade. Mesmo tendo tudo a sua volta desaparecendo no meio do caos escuta um lamento artificial, que foi abafado pelos gritos estarrecedores da civilização em apuros. E momentos antes de o ultimo resquício de luz se extinguir completamente, o vagabundo mendicante implorou perdão enquanto prédios vizinhos desmoronavam:

- Se nos tornamos inúteis foi porque nos esquecemos de quem permitiu nossa existência. E por razões egoístas quisemos tomar o lugar do Criador. Perdoai-nos! Pois pecamos sob a vossa luz divina!

Ao compor a frase, o vagabundo ficou flutuando no escuro, num lugar frio e silencioso, sem mais ninguém por perto. Até ser tocado por algo parecido com uma mão estendida a ele, e sem reconhecer o admirável acompanhante, perguntou a ele:

- O que é você?

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E S C U R I D Ã O A B S O L U T A - Vol. I ROBERTO MIRANDA

O UNIVERSO NUNCA ESTEVE TÃO PERTO DO FIM

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ESCURIDÃO ABSOLUTA

ONDE O FIM É O COMEÇO DE TUDO

Acompanhe esta aventura

www.escuridaoabsoluta.com

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Roberto Miranda é formado em Administração e técnico em desenho mecânico. Dedica-se a escrever esta obra de ficção científica desde 1982, sendo um

projeto que envolve muitos personagens e uma gama de historias com outros títulos muito interessantes.

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Distribuído por AgBook/Clube de Autores