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Equipe de Realização Supervisão editorial Revisão Tradução lndice Capa e Projeto Gráfico Produção J. Guinsburg Ingrid Basílio e Olga Cafalcchio Maria Paula V. Zurawski, J. Guinsburg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia Sandra Martha Dolinsky Adriana Garcia Ricardo W. Neves e Raquel Femandes Abranches ~\l/l - Z ~ ~ PERSPECTIVA ~I\\~ História \ \ Mundial do Teatro MARGOT BERTHOLD

História m. do teatro m.berthold 102 137

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Texto da Matéria "Histórias dos Teatros". Proff. Cleber

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Equipe de Realização

Supervisão editorialRevisão

Tradução

lndiceCapa e Projeto Gráfico

Produção

J. GuinsburgIngrid Basílio e Olga CafalcchioMaria Paula V. Zurawski, J. Guinsburg,Sérgio Coelho e Clóvis GarciaSandra Martha DolinskyAdriana GarciaRicardo W. Neves eRaquel Femandes Abranches

~\l/l- Z~ ~ PERSPECTIVA~I\\~

História\\

Mundialdo Teatro

MARGOT BERTHOLD

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, teatral japonesa. Às mesmas propostas servet o Instituto de Teatro da Universidade Sophia

de Tóquio, cujas publicações, conferências emostras fizeram muito para promover o co-nhecimento da arte teatral do Japão no Oci-dente.

A Teigeki; ou Sociedade Teatral Imperial,formada em 1911, teve vida efêmera. Foi ab-sorvida poucos anos mais tarde pela corpora-ção Shochiku, que possui o monopólio de todaa indústria teatral japonesa, incluindo a ópera,o cinema e o teatro de variedades de estilo inter-nacional. Hoje, o Teatro Imperial é um cine-ma que exibe filmes estrangeiros.

O último fruto do shingeld foi o "Peque-no Teatro", fundado em 1924 e chamado

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Tsukiji-Shogekijo, por causa do bairro Tsukiji,de Tóquio.

De outra parte, o shingeld ("novo teatro")que se separou do Tsuldji-Shogeldjo é inteira-mente internacional em sua concepção. Tornou--se um conceito de convergência das aspiraçõessociais dos jovens intelectuais japoneses. De-pois de décadas de adesão exclusiva ao méto-do Stanislávski, passou agora a utilizar outrosmétodos individuais de direção teatral para aprodução de montagens.

Hoje, o shingeki dos grupos teatrais mo-dernos é um lugar de experimentação, de críticasocial engajada, de apresentação de sucessos in-ternacionais e de discussão com as grandes cor-rentes do teatro mundial.

Grécia

INTRODUÇÃO

A história do teatro europeu começa aospés da Acrópole, em Atenas, sob o luminosocéu azul-violeta da Grécia. A Ática é o berçode uma forma de arte dramática c.ujos valoresestéticos e criativos não perderam nada da suaeficácia depois de um período de 2.500 anos.Suas origens encontram-se nas ações recípro-cas de dar e receber que, em todos os tempose lugares, prendem os homens aos deuses e osdeuses ao homem: elas estão nos rituais desacrifício, dança e culto. Para a Grécia ho-mérica isso significava os sagrados festivaisbáquicos, menádicos, em homenagem a Dioni-so, o deus do vinho, da vegetação e do cresci-mento, da procriação e da vida exuberante.Seu séquito é composto por Sileno, sátiros ebacantes. Os festivais rurais da prensagem dovinho, em dezembro, e as festas das flores deAtenas, em fevereiro e março, eram dedica-dos a ele. As orgias desenfreadas dos vinha-teiros áticos honravam-no, assim como as vo-zes alternadas dos ditirambos e das cançõesbáquicas atenienses. Quando os ritos dioni-síacos se desenvolveram e resultaram na tra-gédia e na comédia, ele se tomou o deus doteatro.

1. Jovens dançarinas da época arcaica. De um vasoático primitivo.

\Muitas torrentes de forças da Mesopo-

tâmia, Creta e Micenas confluíram para a pe-nínsula da Ática, banhada pelo mar, e lá en-contraram seu auge histórico na polis, a cida-de-Estado de Atenas. A política de poder e umadeliberada e sagazmente conduzida intensifi-cação da vida religiosa levaram ao pomposoprograma festivo da Panateneia, a glorificaçãoda deusa da cidade, Palas Atena. Do século VIa.C. em diante, Atena passou também a home-nagear Dioniso na grande Dionisa citadina, quedurava vários dias e incluía representações dra-máticas.

O teatro é uma obra de arte social e comu-nal; nunca isso. foi mais verdadeiro do que naGrécia antiga. Em nenhum outro lugar, por-tanto, pôde alcançar tanta importância comona Grécia. A multidão reunida no theatron não

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., era meramente espectadora, mas participante,no sentido mais literal. O público participavaativamente do ritual teatral, religioso, inseria--se na esfera dos deuses e compartilhava o co-nhecimento das grandes conexões mitológicas.Do mundo conceptual religioso comum e dacélebre herança dos heróis homéricos surgi-ram os Jogos Olímpicos, Ístrnicos e Nemeanos,assim como as celebrações cultuais do santuá-rio de Apolo de Delfos - todos eventos quepreservavam uma solidariedade que sobrepu-java as facções políticas.

A despeito dessa solidariedade inerente,existiam conflitos perenes - entre Esparta eAtenas, e entre todos os ambiciosos pequenoscentros de poder do continente, o Peloponesoe as ilhas do arquipélago Egeu - conflitos quepodem ser considerados, nas palavras de JacobBurckhardt, como "uma febre interna desteorganismo altamente privilegiado". As muicitadas palavras de Heráclito, "o conflito é opai de todas as coisas", são válidas não apenaspara a inquietação política do final do séculoVI a.C., quando ele as escreveu em Éfeso, mastambém para as sombrias emoções do drama,as paixões do ódio nascidas da "fúria radicaldo coração". Quando Thassilo von Schefferdiz que humanitas é uma palavra dificilmenteaplicável aos gregos antigos, não destrói comisso a nossa concepção ideal destes, mas acres-centa o tão importante reverso, sem o qual seuteatro - como outros aspectos da Antiguidadegrega - escaparia à nossa compreensão.

TRAGÉDIA

Do Cu l to ao Teatro

Para honrar os deuses, "em cujas mãosimpiedosas estão o céu e o inferno", o povoreunia-se no grande semicírculo do teatro. Comcantos ritmados, o coro rodeava a orchestra:"Vem, ó Musa, unir-se ao coro sagrado! Deixanosso cântico agradar-te e vê a multidão aquisentada!" Estes hinos em forma de verso sãode As Rãs, de Aristófanes. Precisamente ele, o"zombador incorrigível", invocou novamente,em sua última comédia, o poder da tragédiagrega clássica, cuja idade de ouro durou apro-ximadamente um século. Seu precursor foi o

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História Mundial do Teatro •.

bardo cego de Homero, Demódoco, que entoa-va seus cânticos sobre os favores e a ira dos

. deuses para com os heróis em banquete, pois"quando seu apetite e sede estavam satisfei-tos, a Musa inspirava o bardo a cantar os fei-tos de homens famosos" iOdisseia, Vill).

Duas correntes foram combinadas, dan-do à luz a tragédia; uma delas provém do le-gendário menestrel da Antiguidade remota, aoutra dos ritos de fertilidade dos sátiros dan-çantes. De acordo com Heródoto, os coros decantores com máscaras de bode existiam des-de o século VI a.c. Esses coros originalmentecantavam em homenagem ao herói Adrasto, omui celebrado rei de Argos, e Sícion, que ins-tigou a expedição dos Sete contra Tebas. Porrazões políticas, Clístenes, tirano de Síciondesde 596 a.c., transferiu tais coros de bodespara o culto a Dioniso, o deus favorito do povoda Ática.

Dioniso, a encarnação da embriaguez e doarrebatamento, é o espírito selvagem do con-traste, a contradição extática da bem-aventu-rança e do horror. Ele é a fonte da sensualida-de e da crueldade, da vida procriadora e dadestruição letal. Essa dupla natureza do deus,um atributo mitológico, encontrou expressãofundamental na tragédia grega.

O caminho que vai do bardo homéricoDemódoco à tragédia nos conduz a um de seussucessores, Arion de Lesbos, que viveu porvolta de 600 a.c. na corte do tirano Periandrode Corinto. Com o apoio e a amizade dessegovernante amante das artes, Arion encarre-gou-se de orientar para a via poética os cultosà vegetação da população rural. Organizou osbodes dançarinos dos coros de sátiros para umacompanhamento mimético de seus diti-rambos. Assim, ele encontrou uma. forma dearte que, originada na poesia, incorporou ocanto e a dança, e que duas gerações mais tar-de levou, em Atenas, à tragédia e ao teatro.

Psístrato, o sagaz tirano de Atenas que pro-moveu o comércio e as artes e foi o fundadordas Panateneias e das Grandes Dionisíacas, es-forçou-se para emprestar esplendor a essas fes-tividades públicas. Em março do ano de 534a.c., trouxe de leária para Atenas o ator Téspis,e ordenou que ele participasse da GrandeDionisíaca. Téspis teve uma nova e criativaideia que faria história. Ele se colocou à parte

• Grécia

2. Dançarinos coríntios da época de Árion. Pintura de um frasco coríntio, século VI a.C.

do coro como solista, e assim criou o papel dohypokrites ("respondedor" e, mais tarde, ator),que apresentava o espetáculo e se envolvianum diálogo com o condutor do coro. Essa ino-vação, primeiramente não mais do que um em-brião dentro do rito do sacrifício, se desenvol-veria mais tarde na tragédia, etimologicamente,tragos ("bode") e ode ("canto").

Nenhum dos presentes na Dionisíaca de534 a.C. poderia sonhar com o alcance dasimplicações que este acréscimo inovador dediálogo ao rito traria para a história da civili-zação e, menos ainda, o próprio Téspis. Atéentão, ele perambulara pela zona rural comuma pequena troupe de dançarinos e cantorese, nos festivais rurais dionisíacos, havia ofere-cido aos camponeses da Ática apresentaçõesde ditirambos e danças de sátiros no estilo deArion. Supõe-se que viajasse numa carroça dequatro rodas, o "carro de Téspis", mas esta éapenas uma das inerradicáveis e graciosas ilu-sões que o uso linguístico perpetuou. O culpa-do nesse caso foi Horácio, que nos conta queTéspis "levava seus poemas num carro". Masessa informação diz respeito somente à suaparticipação na Dionisíaca, e não a algo comouma carroça-palco ambulante. O ritual da dan-ça coral e do teatro era precedido por uma pro-cissão solene, que vinha da cidade, e termina-va na orquestra, dentro do recinto sagrado deDioniso. O clímax dessa procissão era o carrofestivo do deus puxado por dois sátiros, umaespécie de barca sobre rodas (carrus navalis),que carregava a imagem do deus ou, em seulugar, um ator coroado de folhas de videira. Ocarro-barca recorda as aventuras marítimas dodeus, pois, de acordo com o mito, Dioniso,quando criança, fora depositado na praia pe-

Ias ondas do mar, dentro de uma arca. Enquan-to elemento procriador que abriga o mistérioprimordial da vida, a água sempre foi um in-grediente importante dos cultos de qualquerpovo; são testemunhos disso o culto de Osírisdo antigo Egito, o Moisés bíblico e o pescadordivino da dança kagura japonesa.

O deus - ou o ator - no carro-barca senta--se entre dois sátiros flautistas e segura folhasde videira nas mãos, conforme os pintores devasos do início do século VI a.C. mostraramem inúmeras variantes. Assim, sem dúvida,Téspis se apresentou na Dionisíaca de Atenas,usando uma máscara de linho com os traçosde um rosto humano, visível a distância pordestacar-se do coro de sátiros, com suas tan-gas felpudas e cauda de cavalo.

O local da Dionisíaca de Atenas era a en-costa da colina do santuário de Dioniso, ao sulda Acrópole. Ali erguia-se o templo com a ve-lha imagem de madeira do deus, trazida de lEleutera; um pouco mais abaixo ficava o cír-culo da dança, e então, num terraço plano, aorchestra. Em seu centro, sobre um pedestalbaixo, erguia-se o altar sacrificial (timelê). Apresença do deus tornava-se real para os es-pectadores; Dioniso estava ali com todos eles,centro e animador de uma cerimônia solene,religiosa, teatral. Como todas as grandes pe-ças cultuais do mundo, esta começou com umsacrifício de purificação.

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Trágicos Precursores deÉsquilo

Entre a primeira apresentação deTéspis eo primeiro êxito teatral de Ésquilo passaram--se sessenta anos. Foram anos de violentas dis-

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3. Dioniso em seu carro naval. Pintura sobre skypos em vaso ático, c. 500 a.c. (Bolonha).

4. Cortejo bacântico: Hefestos com o martelo de ferreiro. Dioniso e a Musa da Comédia com fuso e cântaro' Mársiascom flauta dupla. Desenho de A. L. Millin (1808), segundo um vaso figurado, em vermelho, do Louvre, em Paris.

• Grécia

putas políticas que puseram um fim ao domí-nio dos Tiranos, levaram à intervenção dosguerreiros da Maratona na formulação dos as-suntos públicos e, com Clístenes, à fundaçãoda República de Atenas. Porém, independen-temente das revoltas políticas, a nova formade arte da tragodia ganhou terreno, aperfei-çoou-se e tomou-se a matéria de uma compe-tição teatral (agon) nas Dionisíacas.

Paralelamente, porém talvez mais remo-tas em suas origens, as peças satíricas desen-volveram-se como uma espécie independen-te. Vieram do Peloponeso, e seu pioneiro lite-rário foi Pratinas de Fleio. A sátira, tida como"a mais difícil tarefa do decoro", uniu-se à tra-gédia, atreveu-se a zombar dos sentimentossublimes, dando-lhes um estilo grotesco. Comoparte integrante das Dionisíacas, representavao anticlímax, o retomo relaxante às planíciesdo demasiado humano. Quão abrupta essa des-cida deveria ser, ficava a critério da discriçãoe da auto ironia do poeta trágico, pois ele pró-prio escrevia a sátira como um epílogo para atrilogia trágica que inscrevia no concurso.

Frínico de Atenas, que foi discípulo deTéspis, ampliou a função do "respondedor"(hypokrites), investindo-o de um duplo papele fazendo-o aparecer com uma máscara mas-culina e feminina, alternadamente. Isto signi-ficava que o ator devia fazer várias entradas esaídas, e a troca de figurino e de máscara su-blinhava uma organização cênica introduzidano decorrer dos cânticos. Um outro passo àfrente foi dado, da declamação para a "ação".

Ésquilo

'É a Ésquilo que a tragédia grega antigadeve a perfeição artística e formal, que per-maneceria um padrão para todo o futuro. Comoseu pai pertencesse à nobreza proprietária deterras de Elêusis, Ésquilo tinha acesso direto àvida cultural de Atenas. Em 490 a.C. partici-pou da batalha de Maratona, e foi um dos queabraçaram apaixonadamente o conceito demo-crático da polis. Sua lápide louva a bravura delena batalha, mas nada diz a respeito de seus mé-ritos como dramaturgo.

Ésquilo ganhou os louros da vitória naagon teatral somente após diversas tentativas.Sabe-se que ele começou a competir na Gran-

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de Dionisíaca em 500 a.c. com tetralogias, aunidade obrigatória de três tragédias e umapeça satírica concludente. Os registros não noscontam que trabalhos ele inscreveu no concur-so quando foi derrotado por Pratinas e Coérilo;toda a sua obra anterior a 472 a.c., quando OsPersas foi encenada pela primeira vez, estáperdida. De acordo com cronistas antigos,Ésquilo escreveu ao todo noventa tragédias;destas, setenta e nove títulos chegaram até nós,mas dentre eles conservaram-se apenas setepeças.

Em Os Persas, Ésquilo dedicou-se a umtema local que havia sido tratado, quatro anosantes, por Frínico em sua famosa As Fenicias.Deliberadamente convidava à comparaçãocom a obra anterior ao começar Os Persas como primeiro-verso de As Fenicias. Com essatrilogia, seguida pela peça satírica Prometeu,o Portador do Fogo, Ésquilo ganhou o pri-meiro prêmio. A Péricles, então com vinte ecinco anos, coube a honrosa tarefa de premiaro coro.

Os componentes dramáticos da tragédiaarcaica eram um prólogo que explicava a histó-ria prévia, o cântico de entrada do coro, o relatodos inensageiros na trágica virada do destino eo lamento das vítimas. Ésquilo seguia essa es-trutura. A princípio, ele antepunha ao coro doisatores e, mais tarde, como Sófocles, três.

O plano de fundo intelectual de Os Persasé a glorificação da jovem cidade-Estado deAtenas, tal como é vista da corte real da Pérsia,que fora derrotada em Salamina. QuandoAtossa pergunta ao corifeu: "Quem rege os gre-gos, quem os governa?", a resposta expressa oorgulho do autor pela polis ateniense: "Elesnão são escravos, não têm senhor".

O que Atossa, Antígona, Orestes ou Pro-meteu sofrem não é um destino individual.Sua sorte representa uma situação excepcio-nal, o conflito entre o poder dos deuses e avontade humana, a impotência do homemcontra os deuses, amplificada num aconteci-mento monstruoso. Isto irrompe em sua for-ça mais elementar em Prometeu Acorrentado.O filho dos Titãs, que roubou o fogo dos céuse o trouxe para os mortais, eleva o seu lamen-to na "abóbada resplandecente" sobre a arenado teatro: "Eu te invoco, ó venerável Mãe Ter-ra, e invoco a ti, círculo de chamas onividente:

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5. Mênade e sátiro. Taça do pintor Brigo, c. 480 a.c. (Munique, Staatliche Antikensammlung).

6. Figura de tanagra (estatueta em terracota) da épocahelenística: ator em peça satírica (Paris, Louvre),

(

7. Dança coral em época arcaica. De um vaso átíco primitivo.

vê O que eu sofro, eu próprio um deus, nas mãosdos deuses!"

O grito de tormento proferido pelo Pro-meteu de Ésquilo ergue-se acima das forçasprimordiais da antiga religião da natureza: "Amim, que me apiedei dos mortais, não me foimostrada nenhuma piedade". Dois mil e qui-nhentos anos mais tarde, Carl Orff o conver-teu no herói principal de um drama musicalexótico, quase arcaico, que confronta a pai-xão divina com a paixão humana: Historiado-res da religião estabeleceram uma conexãoentre o sofrimento primordial do Titã e a revol-ta de Lúcifer até a Redenção do Cristo - umexemplo que mais uma vez demonstra aquiloque tão frequentemente tem sido expresso noteatro: "os pressentimentos pagãos muitas ve-zes penetram com estonteante profundidade ecerteza na realidade histórica ulterior" (JosephBernhart).

SófocZes

Quatro anos depois de ter ganho o prê-mio com Os Persas, Ésquilo enfrentou' pelaprimeira vez, no concurso anual de tragédias,um rival cuja fama estava crescendo meteo-ricamente: Sófoeles, então com vinte e noveanos de idade, filho de uma rica família ate-niense, que ainda menino liderara o coro dejovens nas celebrações da vitória após a ba-talha de Salamina.

Os dois rivais inscreveram suas tetralogiaspara a Dionisíaca de 468 a.C. Ambas foramaceitas e apresentadas. Ésquilo obteve umsuccês d'estime, mas o prêmio coube a Sófo-eles, trinta anos mais novo. Os dois poetas eram

amigos, e até o momento em que Ésquilo dei-xou Atenas, dividiram igualmente os lourosda tragédia. Sófoeles ganhou dezoito prêmiosdramáticos. Dos cento e vinte três dramas queescreveu, e\que até o século II a.c., ainda seconservavam na Biblioteca de Alexandria, co-nhecemos cento e onze títulos, mas apenas setetragédias e os restos de uma sátira chegaramaté nós.

Sófoeles era um admirador de Fídias que,na mesma época, criava em mármore, bronzee marfim a imagem do homem semelhante aosdeuses. Da mesma forma que Fídias deu umaalma à estatuária arcaica, assim Sófoeles deualma às personagens em suas tragédias. Ele osdespiu da arcaica vestimenta tipificante e tres-passou a concha de sua capacidade individualpara o sofrimento. Pôs em cena personalidadesque se atrevem - como a pequena Antígona,cuja figura cresce por força das obrigações as-sumidas por vontade própria - a desafiar o di-tame dos mais fortes: "Não vim para encon-trar-vos no ódio, mas no amor".

Os deuses submetem o rebelde ao "sofri-mento sem saída". Amontoam sobre ele ta-manha carga que apenas no tormento conse-gue ele preservar a sua dignidade. O homemtem consciência dessa ameaça, mas por suasações força os deuses a ir até os extremos. Parao homem de Sófoeles, o sofrimento é a duramas enobrecedora escola do "Conhece-te a timesmo". Enganado por oráculos cruéis, àmercê &~destinos enigmáticos, mergulhado naloucura fatal, levado a más ações sem o que-rer, entrega-se por suas próprias mãos àsErínias, as vingadoras dos ínferos, e à "Justi-ça" que corrige, o braço da lei. Ajax morre pela

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própria espada; o rei Édipo cega a si mesmo;Electra, Djanira, Jocasta, Eurídice e Antígonabuscam a morte.

Sófocles, o cético devoto, dá aos deuses avitória, o triunfo integral, por sobre o destinoterrestre, Sobre todos os abismos do ódio, ar-rebatamento, vingança, violência e sacrifício.O significado do sofrimentoreside em sua apa-rente falta de significado. Pois "em tudo issonão existe nada que não venha de Zeus", dizele ao final de As Traquínias.

Foi da natureza inalterável do conceito dedestino sofoclianoque Aristótelesderivou a suafamosa definição de tragédia, cuja interpreta-ção tem sido debatida ao longo dos séculos. Ocrítico e dramaturgo alemão Lessing a enten-de como a purificação das paixões pelo medoe pela compaixão, ao passo que atualmente éinterpretado por Wolfgang Schadewaldt, umestudioso contemporâneo, como "o alívioprazeroso do horror e da aflição". Na qualida-de de peça cultual, como toda tragédia genuí-na o é; ela também não é feita para melhorar,purificar ou educar.

Schadewaldt escreve:

A tragédia comove profundamente o coração, já queo faz transcender (pelo deleite prirnevo com o horrível -semblante de toda verdade - e com a lamentação) até oprazer catártico da libertação aliviadora. Tendo a sua es-sência inteiramente orientada para outro objetivo. a tra-gédia logra, por isso mesmo, atingir eventualmente porcomoção o âmago de uma pessoa, que poderá sair trans-formada deste contato com a verdade do real.

Eu r ip e de s

Com Eurípedes teve início o teatro psico-lógico do Ocidente. "Eu represento os homenscomo devem ser,Eurípedesos representa comoeles são", Sófocles disse uma vez. O terceirodos grandes poetas trágicos da Antiguidadepartiu de um nível inteiramente novo de con-flito. Ele exemplificou o dito de Protágoras arespeito do "homem como a medida de todasas coisas".

Enquanto Ésquilo via a tentação do he-rói trágico para a hybris como um engano quecondenava a si mesmo pelos próprios exces-sos, e enquanto Sófocles havia superposto odestino da malevolência divina à disposiçãohumana para o sofrimento, Eurípedes rebai-

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História Mundial do Teatro.

xou a providência divina ao poder cego doacaso. "Pois sob o manto da noite o nossodestino impende" ,lemos em lfigênia em Táu-ride.

Eurípedes, filho de um proprietário de ter-ras, nasceu em Salarnina e foi instruído pelossofistas de Atenas. Ele era um cético que du-vidava da existência da verdade absoluta, ecomo tal se opunha a qualquer idealismo palia-tivo. Estava interessado nas contradições eambiguidades, no princípio da decepção, narelativização dos valores éticos. O pronuncia-mento divino não era a verdade absoluta paraele e não lhe oferecia nenhuma solução conci-liatória final. "A necessidade natural e a men-te humana não são formas representativas deum único modo de existência, mas de possibi-lidades alternativas: a partir daí, nada mais estáalém da comparação, o ponto de referênciaúnico para todas as coisas tornou-se invisívelhá muito tempo, a mudança rege o momento"(Walter Jens).

Em contradição com a doutrinasocráticade que o conhecimento é expresso diretamen-te na ação, Eurípedes concede a suas persona-gens o direito de hesitar, de duvidar. Descorti-na toda a extensão dos instintos e paixões, dasintrigas e conspirações. Sua minuciosa explo-ração dos pontos fracos na tradição mitológi-ca lhe valeu agudas críticas de seus contem-porâneos. Acusaram-no de ateísmo e da per-versão sofista dos conceitos morais e éticos."Foi a língua que jurou em falso, não o cora-ção", diz Hipólito. De suas setenta e oito tra-gédias (das quais restam dezessete, e uma sá-tira) apenas quatro lhe valeram um prêmio en-quanto estava vivo, sendo a primeira delas AsPeliades, em 455 a.C.

Quando, em 408 a.C., o rei macedônioArquelau o convidou para a sua corte em Pela,Eurípedes deu as costas a Atenas sem arrepen-dimento. Em Pela, escreveu um drama corte-são chamado Arquelau, em homenagem a seureal patrono, do qual nada sabemos além dotítulo, bem como duas obras cuja vitória pós-tuma foi obtida por seu filho: As Bacantes, umretorno à sensualidade arcaica e mística sob obastão sagrado de Dioniso, o tirso; e lfigêniaem Áulis, o elogio do humanismo. (Racine eGerhart Hauptmann, em suas peças homôni-mas, glorificam de maneira similar o huma-

8. Cena de Os Persas de Ésquilo: O fantasma de Dario aparece a Atossa enquanto ela lhe oferece sacrifício. Pinturaem vaso (jarro) ático (Roma, Museu do Vaticano).

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9. O assassinato de Egisto por Orestes. Vaso da Campânia, c. 420 a.C. (Berlim).

10. A purificação de Orestes. Taça do sul da Itália no estilo da tragédia euripidiana (Paris, Louvre).

• Grécia

nismo sereno.) Eurípedes morreu em Pela, emmarço do ano de 406 a.C.

Quando a notícia chegou a Sófocles, emAtenas, ele vestiu luto e fez com que o coro seapresentasse sem as costumeiras coroas de flo-res na Grande Dionisíaca, então em plena ati-vidade. Poucos meses mais tarde, Sófoclestambém morreu. Agora, o trono dos grandespoetas trágicos estava vazio.

A comédia As Rãs, de Aristófanes, escri-ta nesse período, pode ter funcionado como asexéquias da tragédia ática. No festival dasLeneias de 405 a.C., os juízes deram o prêmioa esta peça mordaz, embora eles próprios fos-sem alvo de algumas das estocadas sarcásti-cas. Em As Rãs, Aristófanes presta testemu-nho das tensões artísticas e políticas do finaldo século V, dos conflitos internos da polisfragmentada e do reconhecimento de que o pe-ríodo clássico da arte da tragédia havia se con-vertido em história.

Nesta peça, Dioniso, o deus do teatro, ava-liará os méritos concernentes a Ésquilo eEurípedes, mas ele se revela tão indeciso, va-cilante e suscetível quanto o público e os juízesna competição. Visto no espelho grosseiro edistorcido da comédia, o deus, de má vontade,força-se a tomar uma decisão: "E foi assim queeu acabei pesando feito queijo a arte dos gran-des poetas ...".

A era de ouro da tragédia antiga estavairrevogavelmente acabada. A arte da tragédiadesintegrou-se como o modo de vida das ci-dades-Estado e o poder unificador da cultura.O nobre ateniense Crítias, um inimigo inflexí-vel da democracia e, em 404 a.C., um dos maiscruéis dos Trinta Tiranos, escreveu uma sátirana qual Sísifo descreve a religião como a "in-venção de um pedagogo convencido". O espí-rito da tragédia e a democracia ateniense ha-viam perecido juntos.

As Grandes Dionisíacas

Com origem na época de Péricles, asGrandes Dionisíacas ou Dionisíacas Urbanasconstituíam um ponto culminante e festivo na-vida religiosa, intelectual e artística da cida-de-Estado de Atenas. Enquanto as mais mo-destas Dionisíacas rurais, que aconteciam emdezembro, possuíam um caráter puramente

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local e eram patrocinadas de per si pelos dife-rentes demos da Ática, Atenas ostentava todoo brilho representativo de capital nas GrandesDionisíacas, de seis dias de duração. Especial-mente depois da fundação da confederaçãonaval ática, embaixadores, comerciantes e tri-butários afluíam a Atenas nesta época de todaa Ásia menor e das ilhas do Egeu.

Os preparativos dos concursos dramáti-cos eram responsabilidade do arconte, que,na condição de mais alto oficial do Estado,decidia tanto as questões artísticas quanto asorganizacionais. As tragédias inscritas noconcurso eram submetídas a ele, que selecio-nava três tetralogias que competiriam noagon, concurso do qual apenas uma sairiacomo vencedora. Finalmente, o arconte in-dicava a cada poeta um corega, algum cida-dão atenien~e rico que pudesse financiar umespetáculo, cobrindo não apenas os custos deensaiar e vestir o coro, mas também os hono-rários do diretor do coro (corus didascalus) eos custos com a manutenção de todos os en-volvidos.

Ter ajudado alguma tetralogia trágica avencer como seu corega era um dos mais al-tos méritos que um homem poderia conseguirna competição das artes. O prêmio concedidoera uma coroa de louros e uma quantia emdinheiro nada desprezível (como compensa-ção pelos gastos anteriores), e a imortalidadenos arquivos do Estado. Esses registros (di-dascalia), que o arconte mandava prepararapós cada agon dramático, listam o nome doscoregas dos dramaturgos vencedores de prê-mios,juntamente com os nomes das tetralogiasvencedoras do concurso final. Tais registrosrepresentam a documentação mais valiosa deuma glória da qual apenas poucos raios recaí-ram sobre nós - poucos, de qualquer manei-ra, comparados com a criativa abundância doteatro da Antiguidade.

Inicialmente, o poeta era o seu própriocorega, diretor do coro e ator principal. Tan-to Ésquilo quanto Eurípedes apareceram fre-quentemente no palco. Sófocles atuou emsuas próprias peças apenas duas vezes quan-do jovem, uma como Nausicaa e outra comoTamira.

Embora mais tarde, no período helenís-tico, fosse perfeitamente possível que se re-

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montasse uma peça apresentada anteriormen-te, os concursos dramáticos do século V exi-giam novas obras a cada festival. As GrandesDionisíacas, em março, eram a princípio re-servadas exclusivamentepara a tragédia, en-quanto os escritores de comédias competiamnas Leneias, em janeiro. Porém, na época deAristófanes, os dois tipos de peças eramqualificáveis para ambos os festivais.

Ao entrarno auditório,cada espectador re-cebia um pequenoingressodemetal (symbolon),com o número do assento gravado. Não pre-cisava pagar nada. Péricles havia asseguradocom isso o favor do povo, ao fazer com que oerário não só remunerasse a participação nostribunais e nas assembleias populares, comotambém a frequêncianos espetáculos teatrais.Nas fileiras mais baixas, logo na frente, lu-gares de honra (proedria) esperavam o sa-cerdote de Dioniso, as autoridades e convi-dados especiais. Aqui também ficavam osjuízes, os coregas e os autores. Uma seçãoseparada era reservada aos homens jovens(efebos), e as mulheres sentavam-se nas fi-leiras mais acima.í Vestido com o branco ritual, o públicoI chegava em grande número às primeiras ho-I ras da manhã e começava a ocupar as fileiras

semicirculares, terraceadas,do teatro. "Um en-

Ixame branco", é como o chama Ésquilo. Aolado dos cidadãos livres, também era permiti-da a presença de escravos, na medida em queseus amos lhes dessem licença. A aprovaçãoera indicada por estrepitosas salvas de palmas,

I

e o desagrado, por batidas com os pés ou asso-bios.. A liberdade de expressar sua opinião foialgo de que o antigo frequentador de teatrofez uso amplo e irrestrito, considerando a sipróprio, desde o mais remoto início, um dosI elementos criativos do teatro. Ortega y Gasset

x., lembra:

Não podemos nos esquecer de que a tragédia antigaem Atenas era uma ação ritual e, por essa razão, aconte-cia não tanto no palco quanto na mente das pessoas. Oteatro e o público eram circundados por uma atmosferaextrapoética, a religião.

A condição necessária para essa expe-riência comunitária era a magnífica acústicado teatro ao ar livre da Antiguidade. O menorsussurro era levado aos assentos mais distan-

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História Mundial do Teatro.

tesoPor sua vez, a máscara - geralmente feitade linho revestido de estuque, prensada em mol-des de terracota - amplificava o poder da voz,conferindo tanto ao rosto como às palavras umefeito distanciador. Graças ao poder das pala-vras, não importava se o cenário parecesse pe-queno - por exemplo, as rochas às quais Pro-meteu era acorrentado. O plano visual era me-nos importante do que a moldura humana paraos sofrimentos do herói: o coro, que participa-va dos acontecimentos como comentador, in-formante, conselheiro e observador.

As exigências cenográficas de Ésquilo ain-da eram bastante modestas. Estruturas simplese rústicas de madeira, decoradas com panos co-loridos, serviam de montanhas, casas, palácios,acampamentos ou muros de cidade. Essas cons-truções de madeira, que também abrigavam umcamarim para os atores, são a origem do termoskene (cabana ou barraca), que se manteve, des-de esses expedientes primitivos, através da sun-tuosa arquitetura da skene do teatro helenísticoe romano, até o conceito atual de cena.

Porém, não obstante a modéstia dessesprimeiros tempos, o pintor dos cenários era umhomem digno de menção, mesmo na época deÉsquilo, com quem, segundo se relata, um "ce-nógrafo" chamado Agatarco teria colaborado.Ele foi, sem dúvida, o responsável pelo proje-to e pintura dos galpões de madeira e pela pin-tura de suas decorações de pano. Vitrúvio, aautoridade romana em arquitetura, atribuiuigualmente a Agatarco um tratado a respeitoda skene, que se supõe ter surgido em 430 a.C.,mas ter se perdido mais tarde. Outros pintoresde cenário do teatro grego antigo, cujos no-mes sobreviveram até hoje, são o atenienseApolodoro e seu contemporâneo Temócrito.

Aristóteles credita a Sófocles a invençãodo cenário pintado. A amizade entre Ésquilo eSófocles durante os anos de 468 a 456 a.C.explica a coincidência de inovações cênicas ehistriônicas. Ao lado das possibilidades de"mascarar" a skene e de introduzir acessóriosmóveis como os carros (para exposição e ba-talha), os cenógrafos tinham à sua disposiçãoos chamados "degraus de Caronte", uma esca-daria subterrânea que levava à skene, facilitan-do as aparições vindas do mundo inferior deCaronte. Em Os Persas, por exemplo, Dario éconjurado pela fumaça do sacrifício e aparece

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11. Relevo de Eurípedes: à esquerda, o poeta entrega uma máscara trágica à personificação da skene; à direita, umaestátua de Dioniso (Istambul).

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12. Intérprete de tragédia no papel de Clitemnestra.Estatueta de mármore romana do período tardio. proveni-ente de Rieti (Paris, Louvre).

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13. Pintura em taça espiralada: Dioniso e Ariadne '(ao alto, no centro), rodeados por atores de peça satírica, c. 420 a.c.(Nápoles, Museo Naziona1e).

14. Mosaico de Pompeia: ensaio de um coro de sátiros (Nápoles, Museo Nazionale).

• Grécia

parasuaesposa Atossa e para o coro dos anciãospersas.Os mechanopoioi, ou técnicos, eramres-ponsáveispor efeitoscomo o barulho de trovões,tumultos ou terremotos, produzidos pelo rolarde pedras em tambores de metal ou madeira.

Uma troca de máscara e figurino dava aostrês locutores individuais a possibilidade de in-terpretar vários papéis na mesma peça. Podiamser um general, um mensageiro, uma deusa,rainha ou uma ninfa do oceano - e o eram,graças à magia da máscara.

Foi Ésquilo quem introduziu as máscarasde planos largos e solenes. A impressão heroi-ca era intensificada pelo toucado alto, de for-ma triangular (onlws), sobre a testa. O traje dóator trágico consistia geralmente no quíton -túnica jônica ou dórica, usada na Grécia anti-ga - e um manto, e do característico cothumus,uma bota alta com cadarço e sola grossa.

Com Sófocles, a qualidade arcaica, linear,da máscara começou a suavizar-se. Os olhos ea boca, bem como a cor e a estrutura da peru-ca eram usados para indicar a idade e o tipoda personagem representada. Com a maior in-dividualização das máscaras, Eurípedes exi-gia, também, contrastes impactantes entrevestimentas e ambientes. "Seus reis andam emfarrapos", apenas para tocar a corda sensíveldo povo, zombava Aristófanes, seu implacá-vel adversário.

O que parecia particularmente ridículopara Aristófanes, e entrava como risonha pa-ródia em suas comédias, era a predileção deEurípedes por um expediente do teatro antigoque se tomou parte do vocabulário em todo o

mundo ocidental: deus ex machina, o deusdescido da máquina.

Esta "máquina voadora" era um elemen-to cênico de surpresa, um dispositivo mecâni-co que vinha em auxílio do poeta quando esteprecisava resolver um conflito humano apa-rentemente insolúvel por intermédio do pro-nunciamento divino "vindo de cima". Consis-tia em um guindaste que fazia descer uma ces-ta do teto do teatro. Nesta cesta, sentava-se odeus ou o herói cuja ordem fazia com que aação dramática voltasse a correr pelas trilhasmitológicas obrigatórias quando ficava em-perrada. O fato de o 'deus ex machina ter-setomado imprescindível a Eurípedes explica--se pelo espírito de suas tragédias. Suas perso-nagens agem com determinação individual e,dessa forma, transgridem os limites traçadospor uma mitologia que não mais podia ser acei-ta sem questionamento; Electra, Antígona eMedeia seguem o comando de seu próprio ódioe amor, e toda essa voluntariosa paixão é, aofinal, domada pelo deus ex machina.

'Porém, antes desse ponto ser atingido,outro dispositivo cênico da antiga mechano-poioi, essencial para a tragédia, entrou emação: o eciclema, uma pequena plataformarolante e quase sempre elevada, sobre a qualum cenário era movido desde as portas de umacasa ou palácio. O eciclema traz à vista todasas atrocidades que foram perpetradas por trásda cena: o assassinato de uma mãe, irmão oucriança. Exibe o sangue, o terror e o desesperode um mundo despedaçado, como na Orestía-da, em Agamenon, Hipôlito e em Medeia.

15. A estrutura inicial do teatro de Erétria, Ilha de Eubeia, século V a.C. Reconstrução de E. Fiechter.

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16. Teatro de Dioniso em Atenas. Skene, segundo o projeto de Péric1es. Construção iniciada c. 400 a.C. Reconstruçãode E. Fiechter.

Eventualmente, o teto daprópria skene erausado, como em Pesagem das Almas, deÉsquilo, ou em A Paz, de Aristófanes. Como,naturalmente, eram os deuses que em geralapareciam em alturas etéreas, essa plataformano teto tornou-se conhecida na Grécia comotheologeion, o lugar de onde os deuses falam.

A "máquina voadora", o eciclema e otheologeion pressupunham um edifício teatralfirmemente construído, como o que se desen-volveu em Atenas no final do século V a.C.,baseado em projetos que remontavam aPéricles. Quando as obras para o embeleza-mento de toda a Acrópole se iniciaram, porvolta de 405 a.C., o teatro de Dioniso não foiesquecido. Conta-se que os bancos de madeirado auditório foram substituídos por assentosterraceados em pedra já em 500 a.C., quandoas arquibancadas de madeira lotadas se que-braram sob o peso das pessoas. Esta data, en-tretanto, é contraditada por biógrafos de Ésqui-10, que sustentam que um segundo colapso dasarquibancadas o levou a deixar Atenas, desgos-toso, e a instalar-se na corte de Hieron emSiracusa, onde morreu em 456 a.C.

O projeto da skene de Péricles proveu umpalco monumental com duas grandes portaslaterais, ou paraskenia. Deve ter sido execu-tado entre 420 e 400 a.c., na época em que oauditório cresceu e a orquestra diminuiu detamanho. A razão para esta mudança foi o des-locamento intencional da ação da orchestrapara a skene. Essa inovação mostrou ser aindamaisjustificada posteriormente, quando o corosituado na orchestra, que ainda contava comdoze a quinze pessoas na tragédia clássica, foigradativamentereduzido no curso das medidas

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econômicas atenienses e, por fim, desapareceucompletamentepor cerca do [mal do século IV.

Nenhum dos três grandes trágicos, nemAristófanes, viveram para ver o novo edifícioteatral acabado. Na segunda metade do sécu-lo IV, quando Licurgo era o encarregado dasfinanças de Atenas (338-326 a.Ci), a nova emagnífica estrutura finalmente ficou pronta;mas, nessa época, a grande e criativa era datragédia antiga já havia se tornado história.

COMÉDIA

As Origens da Comédia

A comédia grega, ao contrário da tragé-dia, não tem um ponto culminante, mas dois.O primeiro se deve a Aristófanes, e acompa-nha o =v da tragédia nas últimas décadasdos grandes trágicos Sófocles e Eurípedes; osegundo pico da comédia grega ocorreu noperíodo helenístico com Menandro, que no-vamente deu a ela importância histórica. Acomédia sempre foi uma forma. de arte inte-lectual e formal independente. Deixando delado as peças satíricas, nenhum dos poetastrágicos da Grécia aventurou-se na comédia,como nenhum dos poetas cômicos escreveuuma tragédia.

Platão, em seuBanquete (Symposium), emvão defendeu uma união dos dois grandes ra-mos da arte dramática. Ele concluiu com a in-formação de que Sócrates, certa vez, tentouaté tarde da noite persuadir Ágaton e Aristó-fanes de que "o mesmo homem podia ser ca-paz de escrever comédia e tragédia", e de que

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17. Máscara de mármore de heroína da tragédia anti-ga (Nápoles, Museo Nazionale).

19. Máscara de um escravo, século III a.c. (Milão,Museo Teatrale alIa Scala).

18. Máscara de um jovem, encontrada em Samsun(Amiso), Turquia, século Iíl a.C. (Munique, StaatlicheAntikensammlung).

20. Máscara na mão de uma estátua de mármore. aqual se julga representar Ceres (Paris, Louvre).

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um "verdadeiro poeta trágico é também umpoeta cômico". Os dois outros admitiram isso,mas "não seguiram com muita atenção, porestarem com sono. Aristófanes foi dormirprimeiro e, em seguida, quando o dia estavanascendo, também Ágaton".

É evidente que nem mesmo os famosospoderes persuasivos de Sócrates poderiam terconseguido tornar palatável para Aristófanes,o irascível avocaius diaboli da tragédia, umaunião pessoal das duas artes. Houvesse con-cordado com Sócrates à noite, com certeza te-ria mudado de ideia à luz do dia; tal união seria,para ele, como uma ducha fria. Aristófanesgostava de dirigir sua habilidade artística paraa política corrente; adorava terçar armas comos grandes homens de sua época, crivando deflechas venenosas, como que num show degracejos maliciosos num cabaré, seus calca-nhares de Aquiles. As obscenidades com asquais o "impudente favorito das Graças" em-preendia seu trabalho de "castigar o povo e oshomens poderosos", as rudes piadas fálicas,os coros de pássaros, rãs e nuvens - tudo vale--se da herança cultual das desenfreadas orgiassatíricas, das danças animais e das festas decolheita.

A origem da comédia, de acordo com aPoética de Aristóteles, reside nas cerimôniasfálicas e canções que, em sua época, eram ain-da comuns em muitas cidades. A palavra "co-média" é derivada dos komos, orgias noturnasnas quais os cavalheiros da sociedade ática sedespojavam de toda a sua dignidade por al-guns dias, em nome de Dioniso, e saciavamtoda a sua sede de bebida, dança e amor. Ogrande festival dos komasts era celebrado emjaneiro (mais tarde a época do concurso decomédias) nas Leneias, um tipo ruidoso decarnaval que não dispensava a palhaçada gros-seira e o humor licencioso.

Ao komos ático juntaram-se, no século V,os truões e os comediantes dóricos, com falose enormes barrigas falsas, que eram mestresda farsa improvisada. Eles haviam recebido umimpulso literário, por volta de 500 a.C., deEpicarmo de Mégara, na Sicília. Suas cenasbonachonas e de comicidade grosseira e ascaricaturas dos mitos foram a fonte da comé-dia dórica e siciliana. Epicarmo estabeleceuuma variada escala de personagens - os fan-

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História Mundial do Teatro.

farrões e aduladores, parasitas e alcoviteiras,bêbados e maridos enganados - que sobrevi-veram até a época da Commedia dell'arte emesmo até Moliêre. Epicarmo gostava particu-larmente de ridicularizar os deuses e heróis:Hércules como um glutão,não mais atraído porfeitos heroicos, mas apenas pelo aroma da car-ne assada; Ares e Hefestos, disputando comdespeito e malícia a liberação de Hera, presa aseupróprio trono; ou as seteMusas, que surgemcomo as filhas "rechonchudas e bem alimen-tadas" do Pai Pançudo e da Mãe Barriguda.

É uma questão controvertida se a comé-dia proveio realmente de Mégara Hyblaia, naSicília, ou de Mégara, a antiga cidade dóricaentre Atenas e Corinto, famosa por seusfarsistas. Aristófanes diz em As Vespas: "Nãopodeis esperar muito de nós, apenas zomba-rias roubadas de Mégara". Aristóteles resolvea questão citando ambas com salomônica sa-bedoria: "A comédia é reivindicada pelosmegarianos, tanto pelos do continente, sob aalegação de que ela surgiu em sua democra-cia, como pelos da Sicília, porque é dali queveio Epicarmo, muito antes de Quiônides eMagnes".

A Comédia Antiga

O escritor Quiônides, citado por Aristó-teles, venceu um concurso de comédias emAtenas em 486 a.c. Magnes, igualmente men-cionado, é conhecido por ter ganho o primeiroprêmio onze vezes, a primeira delas em 472a.C., provavelmente nas Leneias atenienses, noano em que Os Persas, de Ésquilo, foi apre-sentada em Siracusa. Nenhuma das peças deMagnes conseguiu sobreviver, nem sequer atéa época alexandrina.

O concurso de comédias, que aconteciaem parte no festival das Leneias e em parte naGrande Dionisíaca de Atenas, não era, comoo concurso trágico, uma prova de força pacífi-ca. Era um tilintante cruzar de espadas, em quecada autor afiava a sua lâmina no sucesso dooutro. Atores tomavam-se autores, autores es-condiam-se por trás de atores. Quando Aristó-fanes inscreveu Os Banqueteadores, em 427a.c., ele o fez sob o pseudônimo de Filonides,nome de um ator seu amigo (possivelmenteporque era muito jovem para competir no

• Grécia

agon) e o mesmo Filonides emprestou-lhe onome outra vez, vinte e cinco anos mais tarde,para As Rãs.

A comédia ática "antiga" é um precursorbrilhante daquilo que viria a ser, muitos anosdepois, caricatura política, charivari e cabaré.Nenhum político, funcionário ou colega autorestava a salvo de seus ataques. Até mesmo osesplêndidos novos edifícios de Péricles forammotivo de escárnio. Num fragmento conser-vado de Cratino, um ator entra no palco usan-do um molde do Odeon na cabeça, como umamáscara grotesca. Os outros atores o saúdam:"EisPéricles, o Zeus de Atenas! Onde terá con-seguido esse toucado? Um novo penteado emestilo Odeon, terrivelmente descabelado pelatempestade das críticas!".

Os quatro grandes rivais em polêmica eveneno, da comédia antiga, eram todosatenienses: Crates, Cratino, Eupólide e, sobre-luzindo a todos os outros em fama, gênio, pers-picácia e malícia, Aristófanes.

Crates, no início protagonista das peçasde Cratino, começou a escrever suas própriaspeças em 449 a.c. Suas obras são comédiasagradáveis, adequadas ao desfrute familiar, quetratam de maneira relativamente inofensiva deassuntos como o desmascaramento de fanfar-rõesingênuos,amantesbrigados e bêbados pro-féticos. Quando seu mestre Cratino, então comnoventa e seis anos, e o jovem Aristófanes, devintee um, envolveram-sepela primeira vez embatalha teatral aberta, Crates já estava morto.

Aristófanes, em Os Cavaleiros (cujo títu-lo grego é Hipes, que significa mais precisa-mente "tratadores de cavalos"), apresentadaem424 a.C., houve por bem implicar com o ve-lho Cratino, acusando-o publicamente de se-nilidade e elogiando os méritos do alegreCrates. Cratino havia provocado este insulto,descrevendo Aristófanes, em cena, como umimitador de Eupólide.

Eupólide, que ganhou o primeiro prêmiosete vezes, tinha a mesma idade de Aristófanese foi, no início, seu amigo íntimo. Na épocade sua amizade, os dois sempre trabalhavamem conjunto, porém mais tarde ambos acusa-ram-se mutuamente de plágio. Brigas, no do-mínio da comédia, eram um constanteponto departida; falando sobre Os Cavaleiros, Eupólidedeclaroumais tarde, em uma de suas comédias,

que tinha "ajudado o careca Aristófanes aescrevê-Iae a havia presenteado a ele".

Por sua vez, Cratino, um homem famosopor sua sede e suas copiosas libações em ho-menagem a Dioniso, também teve a sua vin-gança. Aos noventa e nove anos, mantinha osridentes ao seu lado. Em sua comédia A Gar-rafa, descreve como duas damas competem en-tre si por seus favores - sua esposa legítima,Madame Garrafa, e sua amante, MademoiselleFrasco. Com uma piscadela, ele se livra do apu-ro com o motto dos artistas dionisíacos: "Aque-le que bebe água não chega a lugar algum".

Aristófanes teve de engolir a pílula amar-ga; o "velho beberrão", na verdade, ainda des-frutava dos favores do público e dos juízes.Em 423 a.C., Cratino ganhou o primeiro prê-mio com 1: Garrafa, contra As Nuvens, deAristófanesxque ficou em terceiro lugar. A res-peito desta mesma obra, As Nuvens - famosa,ou farnigerada, por seus ferozes ataques aSócrates (que foram subsequentemente suavi-zados) - Platão relata que, na opinião deSócrates, ela havia influenciado o júri na oca-sião de seu julgamento.

O teatro era o fórum onde eram travadasas mais veementes controvérsias. Aristófanesvia a si mesmo como o defensor dos deuses -"pois foram os deuses de nossos pais que lhesderam a fama" - e como o acusador das ten-dências subversivas e demagógicas na políti-ca e na filosofia de Atenas. Ele acusava osfilósofos de "arrogante desprezo pelo povo"e os _';enunciavacomo ateus obscurantistas -todos eles, e especialmente Sócrates.

Pouco se sabe sobre a formação e a vidade Aristófanes. Parece ter nascido por voltade 445 a.C. e ter vindo 'dodemos ático de Cida-tena. Viveu em Atenas durante toda a sua vidacriativa, ou seja, da época em que escreveusua primeira peça, Os Banqueteadores (427),até o ano em que escreveu a última, A Riqueza(Plutus, 388). Das quarenta comédias que sa-bemos terem sido compostas por ele, conser-varam-se apenas onze. Cada uma de suas pe-ças é porta-voz de uma ideia apaixonada, pelaqual o autorbatalha com impetuosa militância.Na obra de Aristófanes,passagens de agressivi-dade crua alternam-se com estrofes corais damais alta beleza lírica. Subjacente à sua ironiamordaz e às suas alfinetadas de escárnio havia

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21. Flautista e coro fantasiado, representando cavaleiros e seus cavalos, motivo que reaparece mais tarde em OsCavaleiros, de Arist6fanes. Vaso figurado, em negro (Berlirn, Staatliche Museen).

22. Atores caracterizados como pássaros. sobre um vaso figurado. em negro. de aproximadamente setenta anos antesda estreia, em 414 a.c., de Os Pássaros, de Aristófanes (Londres, British Museum). .

• Grécia

uma preocupação premente com a democra-cia. Ele sustentava que o seu destino somentepoderia ser confiado a pessoas de inteligênciasuperior e de integridade moral. De maneirasimilar, fez pressão para que a guerra fratricidaentre Atenas e Esparta chegasse ao fim. Em APaz, o lavrador Trigeu voa até os céus no dor-so de um enorme 'besouro-de-esterco a fim depedir aos deuses que libertem a deusa da paz,prisioneira em uma caverna. Na "terra-cuco--nuvem" de Os Pássaros, ele parodia as fra-quezas da democracia e de uma religião popu-lar utilitária. Em Lisístrata, apresenta as mu-lheres de Atenas e Esparta resolvidas a não seentregar aos belicosos maridos até que estesfrnalmente estejam prontos a fazer a paz.

Não apenas um ator individual, mas tam-bém o coro, podiam dirigir-se diretamente àplateia. Com essa finalidade, a comédia anti-ga desenvolvera a parabasis, um expedienteformal específico de que Aristófanes fez usomagistral. No final do primeiro ato, o coro de-veria tirar suas máscaras e caminhar até a fren-te, na extremidade da orchestra, para dirigir--se à plateia. "Mas vós, fastidiosos juízes detodos os dons das Musas, emprestai vossos gra-ciosos ouvidos à nossa festiva e anapéstica can-ção!" Seguia-se, então, uma polêmica versãodas opiniões do autor a respeito de aconteci-mentos locais, controvérsias políticas e pessoaise, não menos importante, uma tentativa de cap-tar a simpatia do público por sua obra. Aparabasis podia ser igualmente usada para jus-tificar, desmentir ou retratar algum aconteci-mento recentemente ocorrido. Depois de Cléonconseguir vingar-se por ter sido satirizado emOs Cavaleiros, fazendo Aristófanes aparecercomo personagem numa peça teatral em que ésurrado, o poeta referiu-se ao incidente naparabasis de As Vespas: "Quando os golpescaíram sobre mim, bem que os espectadores ri-ram"; ele, então, admitiu haver tentado um pou-co captar a simpatia de Cléon, por razões diplo-máticas, mas afirmou tê-lo feito apenas paraatacá-Ia tanto mais mordazmente no futuro.

Os espetáculos da Comédia Antiga aconte-ciam no edifício teatral, com suas paredes demadeira pintadas e painéis de tecido, enquantoo coro, como na tragédia clássica, ficava naorchestra. Para cenas de "transporte aéreo", usa-va-se o teto da skene, como, por exemplo, em

Os Acamianos, As Nuvens e emA Paz. QuandoTrigeu voa até o céu em seu besouro com a aju-da do guindaste, ele pede ansiosamente ao ma-quinista: "por favor, tenha cuidado comigo". Acena seguinte, com Hermes diante do paláciode Zeus, acontece no theologeion, enquanto asubsequente libertação da deusa da paz da ca-verna onde está encerrada é deslocada novamen-te para o palco usual do proskenion.

As máscaras da Comédia Antiga vão des-de as grotescas cabeças de animais até os re-tratos caricaturais. Quando houve necessidadede uma máscara de Cléon para Os Cavaleiros,conta-se que nenhum "artesãoquis fazer uma.Pela primeira vez, ao que parecia, o medo dacólera da vítima projetava a sua sombra sobrea liberdade democrática do teatro. O ator queinterpretava Cléon surgiu sem máscara, como rosto simplesmente pintado de vermelho.Pensa-se que o próprio Aristófanes tenha feitoo papel- possivelmente uma razão a mais paraa surra que recebeu :logo depois.

Figuras grotescas de animais já haviamsido usadas no palco pelos contemporâneosmais antigos de Aristófanes. Ele próprio men-ciona, em Os Cavaleiros, uma comédia sobrepássaros, de Magnes. Bicos, cristas, tufos decabelos e tranças, garras e penachos de pássa-ros, juntamente com coletes cobertos de plu-mas produziam um efeito grotesco, conformepode ser visto nas pinturas em vasos do séculoVem diante, e que ainda divertem as plateiasdo século XX em montagens modernas de OsPássaros. Era difícil, evidentemente, obter plu-magens suficientes para os figurinos dos ato-res em Os Pássaros, como bem o sabia Aristó-fanes; "os pássaros estão na muda", explica-va ele na peça.

Como as máscaras de animais, tambémas danças da Comédia Antiga tinham origemcultuais. "Destranquem os portões, pois agoraa dança vai começar", exclama Filocléon emAs Vespas, seguindo-se então o kordax, umabarulhenta dança fálica cujas origens possivel-mente remontam ao Oriente antigo. Mesmofontes antigas descrevem-na como tão licen-ciosamente obscena que dançá-Ia sem másca-ras era tido como vergonhoso. Esta pode tersido uma das razões pelas quais as mulheresforam excluídas durante muito tempo das re-presentações de comédias.

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EmA Assembleia das Mulheres, Aristófa-nes faz seus atores, que interpretam as mulhe-res de Atenas marchando para a Assembleia,"disfarçarem-se" de homens, com barbas fal-sas e pesadas botas espartanas, para reivindi-car a entrega do poder do Estado às mulheres.Isso é visto como o clímax da ambiguidadedescaradamente grotesca. Efeitos de travesti-mento, completa falta de reservas no tocante agestos, figurinos' e imitação e, por fim, a ex-posição do falo, são traços característicos doestilo de atuação da Comédia Antiga.

Na época de Cléon havia uma razão.muitoconcreta e"política para que as comédias fossemlevadas principalmente no festival das Leneias.Poucos navios desafiavam o tempestuoso inver-no, e somente em março traziam um influxo devisitantesestrangeiros a Atenas para as GrandesDionisíacas.Como é facilmente compreensível,Cléonestavaansioso por manter o desmascaranteduelo de comédias reservado "aos ateniensesentre si". Aristófanes, por sua vez, consideravaque era um esplêndido bastão para espancar "ofilho de um curtidor de couro, desencaminhadordo povo", conforme testemunha a seguinte pas-sagem de Os Acarnianos:

Nem mesmo Cléon pode repreender-me agoraPor ter difamado o Estado diante de estrangeiros.Estarnos entre nós nessa ocasião.Os estrangeiros não vieram até agora. os tributáriosNão chegaram, nossos confederados não estão aqui.Somos aqui o mais puro grão ático,Não há palha entre nós, nem colonos escravos.

Nestaslinhas, Aristófanes escondia tambémum triunfo pessoal. Um ano antes, Cléon haviamovido uma ação contra ele, acusando-o de in-sultoàs autoridades e de denegrir o Estado diantede estrangeiros, por causa de Os Babilônios.Porém, a democracia ateniense fez justiça aodemos, a decisão do povo: a queixa de Cléon foirejeitada, e a arte da comédia triunfou.

A Comédia Média

Com a morte de Aristófanes, a era de ouroda comédia política antiga chegou ao fim. Os

23. A Loucura de Hércules. Cena no estilo da hilaro-tragédia. Vaso de Asteas, século IV a.C. (Madri) .

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História Mundial do Teatro.

próprios historiadores da literatura na Antigui-dade já haviam percebido quão grande era odeclive entre as comédias de Aristófanes e asde seus sucessores, e traçaram uma nítida li-nha divisória, atribuindo tudo o que veio de-pois de Aristófanes, "atéo reinado de Alexan-dre, o Grande, a uma nova categoria - a "Co-média Média" (mese).

Comprovam-na cerca de quarenta nomesde autores, bem como um grande número detítulos e fragmentos. Conta-se que Antífanes,o mais prolífico desses "deligentes confec-cionadores de peças teatrais", escreveu duzen-tos e oitenta comédias, e seu contemporâneoAnaxandrides de Rodes compôs sessenta e cin-co; outros escritores, cujos nomes chegaramaté nossos dias são Áubulo, Aléxis e Tirnocles.

Anaxandrides, que ganhou o primeiro prê-mio na Dionisíaca de 367 a.C; foi convidadopelo rei Filipe para a corte da Macedônia, ondecontribuiu com uma de suas comédias para ascelebrações da vitória de Olinto. Sua partidade Atenas é uma indicação do lado para o qualos ventos políticos sopravam então: a Macedô-nia aspirava à hegemonia na Grécia e a glóriade Atenas se extinguia.

A comédia agora retirava-se d~s alturasda sátira política para o menos arriscado cam-po da vida cotidiana. Em vez de deuses, ge-nerais, filósofos e de chefes de governo, elasatirizava pequenos funcionários gabolas, ci-dadãos bem de vida, peixeiros, cortesãs famo-sas e alcoviteiros. Recorria ao repertório deEpicarmo, cujas inofensivas sátiras dos mitosserviam agora de modelo para mais uma espé-cie de epígonos. Por volta de 350 a.C., emTarento, na colônia grega de Taras, ao sul daItália, Rintão desenvolveu uma forma de .co-média que parodiava a tragédia (hilaros, que

24. Menandro: relevo do poeta segurando uma máscara; à direita, Glicera ou talvez uma personificação da skene,como no relevo de Eurípedes, século III a.C. (Roma, Museo Laterano).

25. Vaso do gênero phlyakes (espécie de bufonaria, ou de paródia de peça trágica) com cena de comédia: servosajudando Quíron a subir ao palco. À direita: Aquiles, duas ninfas velhas ao alto, século IV a.C.; encontrado em Apúlia,Itália (Londres, British Museum).

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26. Figura de bufarinheiro que lembra Xântias, per-sonagem de As Rãs, de Aristófanes (Munique, StaatlicheAntikensammlung).

28. Alcoviteira, personagem típica da Comédia Nova(Munique, Staatliche Antikensanunlung).

27. Dois velhos embriagados (Berlim, StaatlicheMuseen).

Estatuetas em terracota representando personagens de comédia grega, século IV a.C. "

29. Homem e mulher conversando, como, talvez.Praxágora e Blépiro em A Assembleía das Mulheres deAristófanes (Würzburg, Martin-von- Wagner Museum).

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30. Vaso do gênero phlyakes com Anfitrião travestido, possivelmente inspirado peloAmfitruo, de Rínton: Hennes ergue o lume para Zeus sob ajanela de Alemena, c. 350 a.C.(Roma, Museu do Vatieano).

31. Pintura em vaso de Asteas: o velho avarento Carino, deitado sobre sua arca de dinheiro, é ameaçado por doisladrões, século IV a.c. (Berlim, Staatliehe Museen).

jemifica alegre, engraçado), mas tudo o queela sabemos, baseia-se meramente em frag-

nentos e em pinturas em vasos. Nem a Co-média Média, nem a hilarotragodia apresenta-ram quaisquer inovações no que diz respeito atéClúcascênicas e cenografia. Ambas parecemter utilizado o pavimento superior do edifíciocênico (episkenion); com concessões à conve-'niênciaque, em suas máscaras, amortece o gro-tesco, elas trazem a primeira pincelada do sen-timental.

Comédia Nova

Das planícies artísticas da Comédia Mé-dia, no final do século IV a.c., ergueu-se denovo um mestre: Menandro. Ele assinala umsegundo ápice, da comédia da Antiguidade: anea ("nova" comédia), cuja força reside na ca-racterização, na motivação das mudanças inter-nas, na avaliação cuidadosa do bem e do mal,do certo e do errado. Menandro, filho de umarica família ateniense, que nasceu por volta de343 a.C., moldava caráteres, e partia dos ca-ráteres como portádores da ação. A persona-gem, conforme ele diz em sua comédia A Arbi-tragem, é o fator essencial no desenvolvimentohumano e portanto também no curso da ação.

De suas cento e cinco peças, apenas oitolhe valeram prêmios - três nas Leneias e cincona Grande Dionisíaca de Atenas. Esse pequenonúmero de vitórias, porém, não diminuiu emnada seu renome em vida, nem sua fama poste-rior. Menandro viria a exercer grande influên-cia sobre os comediógrafos romanos Plauto eTerêncio,que viveram da substância de sua obra.Ao lado do acervo de citações transmitidas, es-ses dois poetas romanos foram, até os pri-mórdios do século XX, as únicas testemunhasdos escritos de Menandro. Só em 1907, sua co-média A Arbitragem foi reconstituída a partirde papiros e, em 1959, que foram descobertosDyscolus (O Mal-humorado). Com o Dyscolus(cujosubtítulo,misanthropos, anuncia para alémda obra terenciana, o antropófago molieresco),Menandro, então com 24 anos, conquista em317 a.C. seu primeiro triunfo teatral.

Mesmo neste primeiro trabalho, Menan-dro demonstrava sua índole humana e artísti-ca. Todas as personagens são cuidadosamentedelineadas; a tensão vai crescendo gradual-

mente, e a ação se desenrola com consistênciaplausível.

O gramático Aristófanes de Bizâncio, doséculo II a.c., que foi bibliotecário-chefe emAlexandria e que nos legou numerosas cita-ções das peças de Menandro, expressou suaprofunda e incisiva admiração pelo poeta: -ó

Menandro, e tu, Vida, qual dos dois imitou ooutro?"

Apesar das muitas ofertas tentadoras,Menandro nunca deixou Atenas e sua villa noPireu, onde vivia com sua amante Glicera.Declinou de um convite para ir ao Egito, feitopelo rei Ptolomeu, embora não sem sorrir pre-viamente ante a ideia da aprovação recebida,em nome de "Dioniso e suas folhas de báquicahera, com as quais prefiro ser coroado, em vezde dos diademas de Ptolomeu, na presença deminha Glicera, sentada no teatro". Um famo-so relevo de Menandro mostra o poeta senta-do num tamborete baixo, com a máscara deum adolescente nas mãos, e, numa mesa dian-te de si, as máscaras de uma cortesã e de umancião. Um tanto desrespeitosamente, o roma-no Mam1io uma vez descreveu o repertório depersonagens de Menandro como constituídode "adolescentes fervorosamente apaixonados,donzelas raptadas por amor, anciãos ridicula-rizados e escravos que enfrentam quaisquersituações". Menandro era bastante confianteem si mesmo para não se importar quando osvolúveis juízes do concurso de comédias da-vam preferência a seu rival Filemon de Siracu-sa. ~.e acordo com uma anedota, Menandrocerta vez o cumprimenta, encontrando-o narua, com as palavras: "Desculpe-me, Filemon,mas, diga-me, quando você me vence, não ficaruborizado ?"

O coro, que já na Comédia Média haviasido posto de lado, desapareceu completamentenas obras de Menandro. Como os atores nãomais entravam vindos da orquestra, a formado palco foi alterada. As cenas mais importan-tes eram agoraapresentadasno logeion, uma pla-taforma diante da skene de dois andares. A co-média de caracteres, com suas intrigas e nuançasindividuais de diálogo, exigia a atuação conjun-ta mais concentrada dos atores, bem como umcontato mais estreito entre o palco e a plateia.

Menandro foi o único dos grandes dra-maturgos da Antiguidade que viveu para ver o

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teatro de Dioniso terminado. Pois, em Atenas,corno novamente em Roma trezentos anosmais tarde, a história pregou uma estranha peçano teatro: a estrutura externa atingiu seu es-plendor mais suntuoso apenas numa época emque o grande e criativo florescimento da artedramática chegava ao fim. A glória da arqui-tetura teatral antiga foi concluída na época dosepígonos; os magníficos teatros somente pu-deram refletir um' pálido vislumbre do antigoesplendor.

o TEATRO HELENÍSTICO

Quando Licurgo finalizou as obras daconstrução do teatro de pedra de Dioniso, en-quanto exercia o cargo de administrador dasfinanças de Atenas (338-327 a.C), estava cons-ciente de que sua tarefa era a de um epígono.Ele não apenas mandou reunir as obras dospoetas trágicos clássicos, mas também man-dou esculpir esplêndidas estátuas de mármorecom suas imagens e as dispôs no foyer do novoteatro, numa colunata aberta junto à parede defundo da skene. O teatro em si consistia emum palco espaçoso com três entradas e basti-dores (paraskenia) que se projetavam à esquer-da e à direita, oferecendo duas entradas adicio-nais dos camarins para o palco. Aberturas aolongo da parede de fundo sugerem que talveztenham sido usadas para fixar postes destina-dos a sustentar um andar superior temporário(episkenion) no alto do proskenion, tal cornoexigia sobretudo a encenação das comédias.

O auditório se erguia em terraços, e suastrês fileiras podiam receber quinze mil ou mes-mo vinte mil espectadores, um número quecorrespondia aproximadamente à população deAtenas na época helenística. Alguns dos luga-res para os convidados de honra (proedria),feitos de mármore do Pentélico, resistem atéhoje. Entre eles fica a cadeira especial do sa-cerdote, decorada com relevos, que ostenta ainscrição: "Propriedade do sacerdote de Dio-niso Eleutério". Os outros assentos oficiais sãomais simples, mas também possuem um res-paldo curvo; dois ou três deles são talhadosnum único bloco de mármore.

Mais ou menos na mesma época em queLicurgo completava o novo teatro de Dioniso

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História Mundial do Teatro •

em Atenas, outro teatro era erigido em Epi-dauro. Construído pelo arquiteto Policleto, oJovem, por volta de 350 a.C.; no recinto sa-grado de Ascléplio, ficou em breve famosopor sua beleza e harmonia. Hoje, é o mais bempreservado teatro da Antiguidade grega. Seuauditório assemelha-se a uma concha giganteincrustada na encosta da colina. Do alto da se-xagésima fila, tem-se uma vista aberta das ruí-nas da skene e da planície arborizada que seestende além. Um dia em Epidauro leva à ex-periência do teatro antigo, sem que seja preci-so haver um espetáculo; Ésquilo, Sófocles eEurípedes voltam à vida. É difícil imaginar quenenhum deles jamais viu urna de suas tragé-dias representadas num desses magníficos lo-cais; nenhum deles chegou a utilizar os gran-des teatros de Epidauro, Atenas, Delas, Prieno,Pérgamo ou Éfeso. Na época em que os es-pectadores se reuniam diante da skene, ador-nada de colunatas, do teatro helenístico, o con-curso de dramaturgos havia há muito se torna-do urna competição de atores. Até mesmoAristóteles já se queixava na Poética de que ovirtuosismo regia o palco, "pois os atores têmatualmente mais poder do que os poetas".

Enquanto no século V, na grande era dodrama clássico, os poetas haviam sido os fa-voritos declarados e confidentes de reis, prín-cipes e chefes de Estado, no século IV foramsubstituídos pelos atores. É verdade que Fili-pe da Macedônia convidou o poeta Anaxan-drides para a sua corte; ele concedeu, porém,honras maiores ao ator Aristoderno. Seu filhoAlexandre, o Grande, discípulo de Aristóteles,incumbiu o ator Tessalo de urna missão di-plomática; corno os atores, eram não apenasdispensados do serviço militar, mas, na quali-dade de servidores de Dioniso, possuíam sal-vo-conduto em território inimigo mesmo emépoca de guerra, sendo pois agentes políticosespecialmente convenientes.

Durante o século IV, os atores se junta-ram em grêmios de "artistas dionisíacos", en-cabeçados por um protagonista (ator princi-pal) ou músico, que era ao mesmo tempo umsacerdote de Dioniso. Essas uniões de artistastambém organizavam espetáculos, que em ge-ral eram remontagens de tragédias e comédiasclássicas, nos pequenos teatros da Ática e doPeloponeso .

32. Apresentação de As Rãs, de Aristófanes, no Teatro de Dioniso, 405\a.C. Na orchestra, Dioniso é transportadoatravés do pântano num barco a remo, com rãs coaxando à sua volta. Reconstrbção de H. Bulle e H. Wirsing, c. 1950.

33. Teatro de Epidauro, Construído por Policleto, o Jovem, c. 350 a.C, Vista das fileiras de assentos mais altos sobrea orchestra circular. Ao fundo, as montanhas Arachnaeon; na extremidade da orchestra, ruínas da skene; à esquerda, O

portão parodos reconstruído.

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34. Planta do teatro de Epidauro, que podia abrigar em tomo de 14.000 espectadores.

36. Fragmento de vaso de Tarento. À esquerda, ala da cena, paraskenion, com entablamento ricamente decorado,sustentado por colunas esguias. século IV a.C. (Würzburg, Martín-von-Wagner Museum).

35. Teatro de Delfos, construído no século 11a.C. Na base, as ruínas do templo de ApoIo.

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37. Teatro de Oropo, Ãtica, século II a.C. Skene. Reconstrução de E. Fiechter.

As obrasmais populares nessa época eramas de Eurípedes. Plutarco relata que os ate-nienses aprisionados e escravizados durante adesastrosa expedição à Sicília em 413 a.C.eram libertados pelos siracusanos, se pudes-semrecitar passagens dos dramas euripidianosde cor. Pois Eurípedes havia profetizado, nasua advertência em As Troianas, que osatenienses seriam derrotados e que a fortunada guerra sorriria para Siracusa. Isto talvezpossaexplicar também a predileção que os dra-maturgos romanos sentiriam, mais tarde, porEurípedes.No prólogo de As Troianas, que foiapresentada com a sátira Sísifo na Dionisíacade Atenas em 415 a.c., Possêidon sai de cenacom estas palavras sinistras:

Oh, tolo é o homem que arruina a cidade e o templo.Devasta a sagrada habitação dos mortos eseus túmulos, pois está condenado a perecer no final.

Roma sempre olhou o teatro grego comoo seu grande modelo, mesmo depois que omundo romano irrompeu na Grécia após o seudec1ínio.A marcante tendência teatral dos con-quistadores romanos para a sensação verista,

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para o "espetáculo", levou-os a remodelar ereestruturar os teatros gregos. Os proscenia,decorados com relevos e estátuas, salientavam--se agora em frente à estrutura do palco, aorchestra foi cercada de parapeitos e transfor-mada em conistra, uma arena para o combatedos gladiadores e as carnificinas das feras. Noteatro de Dioniso em Atenas, além dessss in-dignidades, o imperador Nero profanou o san-tuário, dedicando-o "conjuntamente ao deus eao imperador" - conforme testemunha até hojeuma inscrição na arquitrave.

As ruínas do teatro de Dioniso em Atenasrefletem "o desenvolvimento não apenas dapoesia dramática, mas de toda a cultura daAntiguidade: primeiro, as danças do coro; aolado destas, na área da grande orchestra, ascenas dos grandes dramas e, numa orchestramenor, cenas de uma variedade de peças. Noproskenion, representações com cenários típi-cos e permanentes; e fmalmente, na conistra,cercada por parapeitos, os brutais jogos docircus" (Margarete Bieber).

As palavras dos grandes poetas, pais doteatro europeu, podem ser ouvidas todos os

38. Teatro de Dioniso em Atenas, como era por volta de 1900, mostrando o canal romano escavado e o parapeito demármore construído pelos romanos para os jogos com animais. O pedestal à esquerda data também de época romana. Asfileiras de assentos de pedra que compõem o auditório são de origem grega, século IV a.C.

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•• anos em grego clássico, no Teatro HerodesÁtico, em Atenas, quando no festival de verãocom seu programa de tragédias e comédiasclássicas - um eco do que outrora, há dois mile quinhentos anos, soava aos pés da Acrópoleem louvor ao deus Dioniso.

o MIMO

Desde tempos imemoriais, bandos de sal-timbancos vagavam pelas terras da Grécia edo Oriente. Dançarinos, acrobatas e malaba-ristas, flautistas e contadores de histórias apre-sentavam-se em mercados e cortes, diante decamponeses e príncipes, entre acampamentosde guerra e mesas de banquete. À arte puraunia-se o grotesco, a imitação de tipos e a ca-ricatura de homens e animais, de seus movi-mentos e gestos.

O chiste verbal, somado a essas proezassem palavras, físicas, levou às primeiras e bre-ves cenas improvisadas. Era o início do mimoprimitivo. Seu alvo era a imitação "fiel à natu-reza" de tipos autenticamente vivos, ou, numsentido mais amplo, a arte da autotransfor-mação, da mimesis.

Enquanto o épico homérico e o dramaclássico haviam glorificado os deuses e os he-róis, o mimo (mimus) prestava atenção no povoanônimo, comum, que vivia à sombra dos gran-des, e nos trapaceiros, velhacos e ladrões,cstalajadeiros, alcoviteiras e cortesãs. Cadaregião supria o mimo de suas próprias figurascaracterísticas e conceitos locais. Em Esparta,o mimo, viajando e apresentando-se sozinho,era visto corno um representante da embria-;uez dionisíaca e era chamado deikelos (bê-bado), e assim a farsa rústica primitiva deEsparta se chamou deikelon. Em Tebas, oscomediantes de mimos e farsas, cujo tema fa-vorito era a paródia do culto beócio a Cabiro,eram chamados de "voluntários".

O mimo desenvolveu-se originalmente naSicília. Era uma farsa burlesca rústica, à qualSófron deu forma literária pela primeira vez porvolta de: 430 a.C, Suas personagens são pessoasxununx e, no sentido mais amplo da mimese,IllIilll:li~antropornórficos. Sófron criou o ances-11111 ti" Bottorn de Shakespeare, no Sonho de1//11/1 Noitede Verão.Numa das peças deSófron

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História Mundial do Teatro.

(da qual existem apenas fragmentos), um ator,que está interpretando o papel de um burro, falasobre o seu modo de "mastigar cardos".

Tanto no reino animal quanto na vida hu-mana a parte que a sorte reserva a cada umnão é distribuída segundo o mérito, e assim oquinhão principal da zombaria bern-humoradafoi zelosamente dirigido, já na Antiguidade,ao mais modesto e fiel companheiro do cam-pônio da montanha. Danças e farsas grotescasasinais, passando pelo burlesco romano, che-gam até os gracejos de mimo na Festa do Asno(festum asinorum), com a qual o clero francêsdo século XlI comemorava a Fuga para o Egi-to de uma forma um tanto pagã e antiga, naverdade quase indecente.

A arte do mimo não foi impedida por bar-reiras geográficas. Do sul da Itália, caminhouem direção ao norte com os atores ambulan-tes, e onde quer que fosse assimilava todo otipo de atos histriônicos populares, farsescos emais ou menos improvisados.

O palco clássico da Antiguidade excluíraas mulheres, mas o mimo deu ampla oportuni-dade à exibição do charme e do talento femi-ninos. Xenofonte, o escritor, agricultor e es-portista ateniense do século IV a.C. fala, emseu Symposium, de um ator de Siracusa que seapresentou num banquete na casa do ricoCálias, em Atenas, com sua troupe da qual fa-ziam parte um menino e duas garotas (umaflautista e uma dançarina).

A pedido de Sócrates, que estava entre osconvidados, os mimos apresentaram a históriade Dioniso e Ariadne, na qual o jovem deussalva a filha de Minos, que é abandonada emNaxos, e se casa com ela. O pedido de Sócra-tes pôde ser facilmente atendido, sem nenhu-ma preparação especial, o que demonstra queos mimos gregos estavam tão familiarizadoscom a herança dos temas míticos quanto ha-viam estado seus antecessores, nas margens doEufrates e do Nilo e estariam também seussucessores, nas margens do Tigre e no Bós-foro.

Numerosas pinturas em vasos áticos mos-tram uma variedade de acrobatas, comediantese equilibristas; garotas fazendo malabarismoscom pratos e taças, dançarinas com instrumen-tos musicais. A arte dessas jovens era obvia-mente muitíssimo popular entre os gregos,

• Grécia

39. Desempenhantes de representações em cultos,portanto cabeças de asno. Fragmento de afresco deIVIicenas.

sobretudo em círculos privados. Numa hydriado século IV, originária de Nola (hoje noMuseo Nazionale de Nápoles), pode-se verquatro grupos treinando várias façanhasacrobáticas.Urnajovem nua tem o corpo arquea-do em ponte, sustentando-se nos cotovelos, aomesmo tempo que empurra um kylix, com ospés, na direção de sua boca; amarrada em tor-no das panturrilhas, ela traz uma fita, a apo-tropeion, própria das artistas de mimos. Urnaoutra garota é mostrada dançando entre espa-das fincadas verticalmente no chão, enquantouma terceira pratica o pyrrhic, dança de guer-ra mitológica, usando um capacete e seguran-do um escudo e uma lança.

De acordo com uma lenda ática, a deusaAtena inventou o pyrrhic e o dançou para ce-lebrar sua vitória sobre os gigantes, emboraem Esparta se credite essa invenção aosDióscuros. A dança aparece novamente no sé-culo li, quando Apuleio, em O Asno de Ourodescreve um balé mitológico que os romanosmontaram em Corinto, Após o balé, contaApuleio, o povo tentou fazer com que Lúcio,vestido de asno, participasse de um "mimo obs-ceno"; Lúcios, porém, fugiu.

A maioria dos textos dos mimos era emprosa, mas alguns, os chamados mimeidoi,eram cantados - os precursores dos copias demusic-hall. Seu repertório de tipos é o mesmoque Filogelo usou certa vez para suas pilhérias

e, ao lado de doutores, charlatães, adivinhos emendigos, seu alvo predileto de zombaria erao bobo de Abdera, ou Sidon ou alguma outra"cidade dos tolos".

Os mimiambos do poeta Herondas de Cós(aproximad'l;ffiente 250 a.c.) constituem va-riantes poéticas especiais do mimo grego. Sãobreves textos mímicos, compostos em iambos,cujos enredos tratam das revelações secretasde garotas perdidas de amor, dos castigos aosestudantes malcriados, das artes persuasivasde casamenteiras astutas e de toda sorte de in-confidências nem sempre edificantes.

.É bem provável que esses mimiambos deHerondas, da mesma forma que a bem maisdecente poesia lírica dos mimos bucólicos deTeócrito, tenham sido concebidos para seremlidos ou recitados por um único mimo comuma grande extensão vocal.

Somente na época helenística o mimo gre-go teve acesso ao palco dos grandes teatrospúblicos. A Grécia nunca concedeu a ele aimportância que ganharia sob os imperadoresem Roma e Bizâncio,

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