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SÃO JERÔNIMO (347-420) O mais erudito dentre os Padres latinos é são Jerônimo, chamado “vir trilinguis”, por seu amplo conhecimento do latim, grego e hebraico, e também “Doutor bíblico”, por suas pesquisas no campo da Sagrada Escritura. Nascido na Dalmácia, educou-se em Rama, onde se familiarizou com os autores clássicos. Atraído pelo ideal monástico e ascético, peregrinou à Palestina e lá viveu alguns anos como eremita. Em 379 recebeu o presbiterado das mãos de Paulino, bispo de Antioquia. Esteve pouco depois em Constantinopla, onde foi ouvinte de são Gregório Nazianzeno e amigo de são Gregório Nisseno. De 382 a 385 morou em Roma, como secretário do papa Damasco, por cuja ordem encetou a revisão da versão itálica da Sagrada Escritura, trabalho do qual resultou finalmente a chamada Vulgata. Ao mesmo tempo, propagava o ideal ascético, principalmente num círculo fervoroso de mulheres da nobreza romana, entre as quais Marcela, Paula e Eustochium, e com- batia os maus costumes do clero. Em 385 regressou à Palestina, passando antes por Alexandria, onde ouviu as conferências de Dídimo, o Cego. Na Palestina fixou-se em Belém, na direção de um mosteiro, lá passando 34 anos de intensa produção literária e participando das controvérsias origenista e pelagina. Morreu a 30 de setembro de 420. Na figura de são Jerônimo sobressaem a austeridade e o temperamento veemente, a dedicação ímpar aos estudos bíblicos, o amor à Igreja e à Sé de Pedro. Obras: a revisão da Vetus latina e a tradução do Antigo Testamento a partir dos textos hebraico e aramaico; outras traduções (de Orígenes, cuja doutrina combateu; de Eusébio, Dídimo etc.); obras exegéticas; obras polêmicas (Contra Helvídio, Contra Joviniano, Contra Vigilâncio etc.); Homílias e Cartas sobre temas doutrinários e ascéticos. Ed. moderna: CCL, T. CLXX-CLXXII A. Em tradução francesa: St. Jérôme. Lettres, 8 vols., Coll. des Univ. de France, 1949-1963. CARTA A DÂMASO, PAPA (carta XV: P.L. 22, 355-358) As três Hipóteses O Oriente está debilitado pela antiga fúria dos povos, e desfaz fibra por fibra a túnica do Senhor, inconsútil e tecida de cima abaixo. As raposas assolam a vinha de Cristo, de maneira que entre as cisternas rotas e sem água [Jr 2,13] é difícil atinar onde está a “fonte selada e o horto fechado” [Ct 4,12]. Pareceu-me, portanto, que devia 1

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SÃO JERÔNIMO(347-420)

O mais erudito dentre os Padres latinos é são Jerônimo, chamado “vir trilinguis”, por seu amplo conhecimento do latim, grego e hebraico, e também “Doutor bíblico”, por suas pesquisas no campo da Sagrada Escritura.

Nascido na Dalmácia, educou-se em Rama, onde se familiarizou com os autores clássicos. Atraído pelo ideal monástico e ascético, peregrinou à Palestina e lá viveu alguns anos como eremita. Em 379 recebeu o presbiterado das mãos de Paulino, bispo de Antioquia. Esteve pouco depois em Constantinopla, onde foi ouvinte de são Gregório Nazianzeno e amigo de são Gregório Nisseno. De 382 a 385 morou em Roma, como secretário do papa Damasco, por cuja ordem encetou a revisão da versão itálica da Sagrada Escritura, trabalho do qual resultou finalmente a chamada Vulgata. Ao mesmo tempo, propagava o ideal ascético, principalmente num círculo fervoroso de mulheres da nobreza romana, entre as quais Marcela, Paula e Eustochium, e com- batia os maus costumes do clero. Em 385 regressou à Palestina, passando antes por Alexandria, onde ouviu as conferências de Dídimo, o Cego. Na Palestina fixou-se em Belém, na direção de um mosteiro, lá passando 34 anos de intensa produção literária e participando das controvérsias origenista e pelagina. Morreu a 30 de setembro de 420.

Na figura de são Jerônimo sobressaem a austeridade e o temperamento veemente, a dedicação ímpar aos estudos bíblicos, o amor à Igreja e à Sé de Pedro.

Obras: a revisão da Vetus latina e a tradução do Antigo Testamento a partir dos textos hebraico e aramaico; outras traduções (de Orígenes, cuja doutrina combateu; de Eusébio, Dídimo etc.); obras exegéticas; obras polêmicas (Contra Helvídio, Contra Joviniano, Contra Vigilâncio etc.); Homílias e Cartas sobre temas doutrinários e ascéticos.

Ed. moderna: CCL, T. CLXX-CLXXII A. Em tradução francesa: St. Jérôme. Lettres, 8 vols., Coll. des Univ. de France, 1949-1963.

CARTA A DÂMASO, PAPA(carta XV: P.L. 22, 355-358)

As três HipótesesO Oriente está debilitado pela antiga fúria dos povos, e desfaz fibra por fibra a túnica do Senhor, inconsútil e tecida de cima abaixo. As raposas assolam a vinha de Cristo, de maneira que entre as cisternas rotas e sem água [Jr 2,13] é difícil atinar onde está a “fonte selada e o horto fechado” [Ct 4,12]. Pareceu-me, portanto, que devia correr, a consultar a Cátedra de Pedro e a fé proclamada pela boca apostólica, pedindo alimento para minha alma, dali mesmo onde em outra ocasião recebi a veste de Cristo.

As imensas distâncias por mares e terras não seriam obstáculos que me impedissem de ir em busca da pérola preciosa. Porque “onde quer que esteja o corpo, aí também se juntarão as águias” [Mt 24,28].

Havendo o filho pródigo desperdiçado seu patrimônio, somente junto a vós se guarda sem corrupção a herança dos pais. É aí que o campo de terra fértil reproduz a semente do Senhor a cem por um; enquanto aqui os bons grãos, envoltos nos sulcos, se convertem em joio. Levanta-se agora o sol da justiça no Ocidente; mas no Oriente colocou seu trono sobre as estrelas o Lúcifer que caiu. Vós sois a luz do mundo e o sal da terra. Vós sois os vasos de ouro e prata, enquanto aqui vasos de barro e de madeira estão aguardando o cetro de ferro e o fogo eterno.

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Assim, embora me atemorize vossa grandeza, de outro lado convida-me vossa humanidade. Peço ao Sacerdote o sacrifício da salvação, ao Pastor a defesa da ovelha. Para longe, pois, toda inveja! Desapareça toda ambição da alteza romana: falo aqui com o sucessor de Pescador e com o discípulo da Cruz, e, a ninguém mais seguindo senão a Cristo, permaneço em comunhão com vossa Beatitude, isto é, com a cátedra de Pedro. Sobre essa rocha está edificada a Igreja e quem comer o Cordeiro fora dessa casa é profano. Sei que se alguém não estiver dentro da Arca de Noé, enquanto durar o dilúvio, perecerá. E porque, desejando fazer penitência de meus grandes pecados, vim a esta solidão que divide a Síria do território da barbárie, pelas longas distâncias que nos separam, não posso sempre pedir a vossa Santidade o Santo do Senhor [O “Santo do Senhor” era expressão que designava a sagrada eucaristia, a qual os Pastores das diferentes igrejas se enviavam reciprocamente, em sinal da, comunhão na fé]. Portanto, sigo aqui aos santos confessores egípcios, vossos companheiros, e como uma nave pequena amparo entre os grandes navios. Não conheço Vital, rejeito Melécio e ignoro Paulino [São três nomes em relação com o cisma antioqueno do século IV]. Pois quem não recolher convosco, dispersa, isto é, quem não é de Cristo está contra Cristo.

Porém agora - o dor! - após a declaração de fé do Concílio Niceno e depois do decreto conjunto do Oriente e do Ocidente, dado em Alexandria, os chefes dos arianos e campenses pedem-me a mim, homem da Igreja de Roma, a adesão à nova doutrinadas três hipóteses [Antes de ser consagrada pelo I Concílio de Constantinopla (381), a expressão “três hipóteses” parecia significar, em algumas áreas, o mesmo que “três substâncias”. Daí a repugnância de são Jerônimo quanto a seu uso (no ano 376)]. Rogo-lhes muito que me digam, qual dos apóstolos saiu com esta novidade? Que novo mestre dos povos ensinou tais teses, à maneira de outro Paulo? Perguntamo-lhes: - Que é que querem entender por “três hipóteses?” Dizem que três pessoas subsistentes. Respondo-lhes que eu também creio assim. Então respondem que não basta aceitar o sentido, mas é necessário expressar-se também naqueles termos, pois há nas sílabas não sei que peçonha. Replico exclamando: Quem não confessar três hipóstases ou três “enhipóstata”, isto é, três pessoas subsistentes, seja excomunga- do! Mas em seguida, porque não retenho de memória estes vocábulos, julgam-me herege.

Ora, se alguém, entendendo por hipóstasis a usia (= essência), nega que nas três Pessoas há uma só “hipóstasis”, é alheio a Cristo. Com esta confissão estou assinalado como cativo da verdade junto a vossa Santidade.

Tomai uma decisão, rogo-vos. Não temo confessar três hípóstases, se assim o mandantes. Mas componha-se então um Símbolo novo em lugar do de Nicéia, e confessemos, nós católicos ortodoxos, a fé com as mesmas palavras que os arianos!

Toda a escola secular dos filósofos não entende por “hipóstasis” outra coisa que “usia”. Digam-me, pois, por favor, quem ousará falar sacrilegamente em três substâncias? Uma só é a natureza de Deus, a qual tem verdadeiro ser; porque o que subsiste e tem ser por si, não o tem de outro mas o ser é seu e próprio. As demais coisas criadas não são, ainda que pareçam ser. Porque em algum tempo não existiram; e o que em algum tempo não foi, outra vez pode não ser. Somente Deus, que é eterno, isto é, sem princípio, tem verdadeiro nome de essência. Portanto, falando a Moisés na sarça, disse: “Eu sou Aquele que sou”. E Moisés disse: “Aquele que é me enviou”. Havia então anjos, céu, terra e mares; ora, por que se apropria Deus a si mesmo enfaticamente o nome comum de essência? É porque somente sua natureza é perfeita e nas três Pessoas subsiste uma

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só divindade, a qual tem verdadeiro ser, e uma só natureza, de modo que quem disser que há três seres, isto é, três hipóstases ou usias, com o pretexto de piedade está afirmando três naturezas. Por que, então, nos separamos de Ário com a parede (das palavras), se estarmos unidos a ele pelo erro? junte-se, pois, Ursino a Vossa Beatitude e Auxêncio a Ambrósio! [Ursino e Auxêncio eram arianos: o primeiro quis competir, no pontificado, com Dâmaso e o segundo foi adversário de santo Ambrósio] Os corações religiosos dos povos não devem beber tal sacrilégio! Baste-nos dizer que há uma substância e três pessoas subsistentes, perfeitas, iguais e coeternas! Não se fale de três “hipóstases”, e mantenha-se uma só. É de suspeitar-se quando em um mesmo sentido diferem as palavras. Baste-nos a vontade de fé, como expusemos. Se a Vossa Beatitude parece acertado que digamos “três hipóstases”, juntamente com as devidas interpretações, não o recusarei. Mas creia-me que há peçonha escondida sob o mel e que o anjo de Satanás se transfigurou em anjo de luz. Eles explicam o significado do termo “hipóstasis”; quando eu digo, porém, que creio o que eles me declaram, julgam-me herege. Para que se aferram tão ansiosamente a uma palavra? Que é que escondem sob a palavra ambígua? Se crêem verdadeiramente naquilo que explicam, não condeno o que sustentam. Mas se também creio no que eles aparentam crer, deixem-me expressar por minhas palavras o que dizei afirmar!

Portanto, suplico a Vossa Beatitude que, pela salvação do mundo, cravada na Cruz, e pela homousia (= consubstancialidade) da Trindade, dê-me por cartas Suas autoridade de calar ou de afirmar a respeito da doutrina das “hípóstases”. E para que o lugar escuro onde vivo não vos faça perder o endereço, dignai-vos encaminhar as cartas pelo correio ao presbítero Evágrio, a quem conheceis bem, indicando-me ao mesmo tempo com qual dos três prelados de Antioquia devo comunicar-me. Porque os campenses, unidos aos hereges tartensesn [Os hereges tartenses eram uma das muitas seitas semi-arianas], não pretendem outra coisa senão, apoiados na autoridade de Vossa Santidade, pregar três hipóstases no sentido antigo.

A PAULINO, PRESBÍTERO(Trecho da carta LIII: sobre o estudo das Escrituras)

(P.L. 22, 542-543; 548-549)

O apóstolo Paulo vangloria-se de haver aprendido a Lei de Moisés e dos profetas aos pés de Gamaliel, para que, munido com as armas espirituais, pudesse dizer mais tarde com grande confiança: “As armas com que combatemos, não são carnais, mas poderosas em virtude de Deus, capazes de derrubar fortalezas. Com elas destruímos os projetos e toda altivez que se ufanem contra a ciência de Deus, cativamos todo entendimento à obediência de Cristo, e estamos prontos a vingar toda desobediência” [2Cor 10,14].

Escrevendo a seu discípulo Timóteo, que desde a infância ha- via sido instruído nas Letras Sagradas, exorta-o a que se dê ao estudo das Santas Escrituras, a que não menospreze a graça recebi- da por imposição das mãos dos presbíteros [2Tm 4,13]. E a Tito manda que entre as demais virtudes do bispo, cuja vida pinta em poucas palavras, trabalhe para ter também a ciência das Escrituras: “Atém-te firmemente à palavra de fé que é conforme a doutrina, a fim de seres capaz de instruir na sã doutrina e refutar os que contradizem” [Tt 1,7].

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A santa rusticidade, certamente, aproveita unicamente ao indivíduo e assim como edifica a Igreja de Cristo pelos méritos de sua vida, também danifica, se não sabe resistir aos que vêm para destruir.

O profeta Ageu, ou melhor, o Senhor pela boca de Ageu diz: “Perguntai a Lei aos sacerdotes!” [Ag 2,12]. Tal é a dignidade do ofício dos sacerdotes - responder aos que perguntam sobre a Lei!

No livro do Deuteronômio lemos: “Pergunta a teu pai, e ele te responderá; e aos anciãos e eles te dirão!” [Dt 32,17]. O Salmo 118 diz: “Teus justos mandamentos são o tema de meus cantos no lugar de meu desterro”. E quando Davi, descrevendo o varão justo, compara-o à árvore da vida, acrescenta também isto: “Sua vontade estará posta na Lei do Senhor, e sobre ela meditará dia e noite” [Sl 1,3]. O santo profeta Daniel afirma no fim de sua visão que os justos resplandecerão como os astros, e os inteligentes, isto é, os eruditos, como o firmamento [Dn 12,3].

Olhai que distância há entre a justiça dos rudes e a justiça dos sábios! Pois uns são comparados ao céu, ao passo que os outros às estrelas. E ainda mais, segundo a verdade hebraica, uns e outros podem entender-se os eruditos. Porque no hebraico lemos desta maneira: “Os eruditos resplandecerão como o brilho do firmamento, e os que ensinarem a muitos a virtude estarão como as estrelas numa eternidade sem fim”.

Por que se chama são Paulo “Vaso de eleição” [At 9,15]? Não por outra razão, senão por ser vaso da Lei e guardião das santas Escrituras.

Pasmam os fariseus vendo a doutrina do Senhor, e estranham ao notar que são Pedro e são João sabiam a Lei, sem haver aprendido letras. Porque tudo o que os demais soem adquirir pelo exercício e a meditação cotidiana da Lei, a eles inspirava o Espírito Santo, e eram, segundo está escrito, “ensinados por Deus”.

Nosso Senhor havia completado doze anos, quando no Templo, perguntando aos anciãos as questões da Lei, muito lhes ensinou com suas sábias perguntas.

Poderiam parecer-nos rústicos são Pedro e são João, mas na verdade cada um dos dois poderia dizer: “Embora seja falho de palavras, não me falta ciência nem sabedoria” [Is 54]. Porventura são João era rústico, pescador indouto?

Digam-me então, por favor, de onde veio aquela palavra: “No princípio era o Logos e o Logos estava junto a Deus, e o Logos era Deus” [Jo 1,1]? Porque na língua grega “Logos” tem muitos significados, tais como: palavra, razão, explicação e causa de todas as coisas (pela qual elas têm seu ser). Tudo isso entendemos perfeitamente de Cristo.

Isso não soube Platão e ignorou-o o eloqüente Demóstenes. “Vou destruir, diz o Senhor, a sabedoria dos sábios e reprovar a prudência dos prudentes” [2Cor 11,6; 1Cor 1,19]. A verdadeira sabedoria destruirá a falsa. A pregação da Cruz parece loucura: porém, com tudo isto, ensina são Paulo a “sabedoria entre os perfeitos” [1Cor 2,21], digo “sabedoria não deste século nem de seus príncipes, que são destruídos”, mas “sabedoria de Deus”, escondida em mistério, predestinada antes de todos os séculos [Eclo 24,14]. A sabedoria de Deus é Cristo, porque Cristo é virtude de Deus e sabedoria de Deus [1Cor 1,24]. Esta

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sabedoria está escondida em mistério e ele, que estava escondido em mistério, foi predestinado e prefigurado na Lei e nos Profetas [1Cor 2,7]. Por isso os profetas se chamam “os videntes”, pois viam aquele a quem os demais não viam [1Rs 9,9]. Abraão viu seu dia e encheu-se de gozo ao vê-lo [Jo 8,56]. Ao profeta Ezequiel estavam abertos os céus, que permaneciam fechados ao povo pecador. O rei Davi diz: “Tirai, Senhor, o véu de meus olhos, e considerar as maravilhas de vossa Lei!” [Ez 1,1] Porque a Lei é espiritual e assim tem necessidade de revelação, para ser entendida, e para que, com rosto descoberto, contemplemos a glória de Deus [2Cor 3,18].

No livro do Apocalipse mostra-se um livro selado com sete selos. Se o dais a um homem letrado, para que o leia, responder-vos-á: “Não posso lê-lo, pois está selado” [Ap 3,7]. Quantos há, hoje em dia, que crêem saber as letras; mas têm selado o livro e não o podem abrir, se não o abre aquele que tem a chave de Davi, “e abre e ninguém fecha, fecha e ninguém abre!”

Nos Atos dos Apóstolos [At 8,27] o santo eunuco, ou melhor, varão (porque com este nome o distingue a Escritura), foi interrogado por Filipe, enquanto lia o profeta Isaías: “Porventura entendes o que lês?” E ele respondeu: “Como hei de entendê-lo se ninguém me ensina?”

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Mas hoje em dia a arte de entender as Escrituras a cada passo qualquer um pensa sabê-la. E como disse o poeta: “Os doutos e os tontos escrevemos a cada instante coisas de poesia” [Horáeio, Epist. II, 1,115: “Scribimus indocti, doctique poemata, passim”]. A velha tagarela e o velho caduco, o sofista charlatão e quaisquer pessoas presumem entender a Escritura, esmiuçam-na e até a ensinam antes de aprendê-la.

Há os que organizam círculos de mulherzinhas, alteiam a sobrancelha, soltam grandes palavras e tratam das Escrituras Sagra- das como filósofos. Outros - que vergonha! - aprendem de mulheres o que hão de ensinar a homens e, como se não bastasse, explicam adiante o que eles não entendem.

Não quero falar de meus colegas que, se acaso vêm das letras profanas ao estudo das santas Escrituras, compõem grandes discursos para gosto do povo, e qualquer coisinha que falam tem por Lei de Deus. Não se dignam saber o que em verdade pensaram os profetas ou os apóstolos, mas ainda a seu próprio sentido adaptam à força testemunhos incongruentes. Como se fosse grande coisa, e não maneira viciosíssima de ensinar, depravar as sentenças e caprichosamente torcer a Escritura. Não temos, talvez, o espetáculo das centenas de imitadores de Homero e Virgílio? Não poderíamos dessa maneira chamar cristão a Virgílio (sem Cristo), porque escreveu aqueles versos que dizem: “já volve a Virgem, já volvem os reinos de Saturno: E uma nova Prole é enviada do alto céu?” [Virg.: IV, 6: “Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna, iam nova Progenies coelo demittitur alto”] E o outro, onde diz o pai ao filho: “Tu, filho, és minha força, somente tu és grande potência”, ainda com palavras que recordam a nosso

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Salvador na Cruz: “Tais coisas dizia, relembrando, e estava fixo e pregado?” [Virg., I, 664: “Talia praestabat memorans, fixusque manebat”] Mas estas são coisas de criança e semelhantes ao jogo dos charlatães de feira: ensinar o que não sabem ou, para dizer mais claramente, nem sequer sabem que não sabem.

Entre os Livros Sagrados, pois, está bem clara a narração do Gênesis sobre a criação do mundo, sobre a origem da linhagem humana, a divisão da terra, a confusão das línguas, e sobre a ida dos hebreus até o Egito. O Êxodo está manifesto com suas dez pragas, com o Decálogo, e com os preceitos místicos e divinos. Também está claro o Levítico, no qual todos os sacrifícios, ou melhor, quase todas as sílabas, as vestimentas de Aarão e a ordem levítica representam os sacramentos celestiais. Não contém, porventura, o livro dos Números todos os mistérios da aritmética e da profecia de Balaão, e das quarenta e duas estações (do povo hebreu em sua marcha através) do deserto? O Deuteronômio, que é a segunda Lei e a prefiguração da Lei evangélica, não abarca de tal maneira aquelas coisas que foram, de modo que as novas sejam tiradas das antigas?

Até aqui chega o Pentateuco, este conjunto de cinco palavras, com as quais são Paulo queria falar nas Igrejas [1Cor 14,19].

Que mistérios há que não abarque em seus discursos já, exemplo de paciência e de sofrimento?

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Entretanto vou tocar, embora brevemente, o Novo Testamento: Mateus, Marcos, Lucas e João, a Quadriga do Senhor. Como verdadeiros querubins, isto é, “abundância de ciência”, têm olhos por todo o corpo, resplandecem em centelhas, desprendem relâmpagos, e com seus pés caminham para cima, com asas nas espáduas, voando por toda parte. Estão unidos um ao outro, e vão aonde os leve o sopro do Espírito Santo.

O apóstolo Paulo, escreve a sete Igrejas (porque a oitava Epístola, que escreveu aos hebreus, geralmente é posta fora de número). Instrui a seus discípulos Timóteo e Tito e roga a Filêmon por seu escravo fugitivo. Como é impossível dissertar em poucas palavras sobre estas epístolas, prefiro antes calar de todo.

O livro dos Atos dos Apóstolos parece contar uma simples história e tecer a infância da Igreja nascente. Mas, sabendo que seu autor é Lucas, o médico, cujo elogio está no Evangelho [2Cor 8,18], faremos ver que todas as suas palavras são ao mesmo tempo remédio para a alma enferma.

Os apóstolos Tiago, Pedro, João e Judas escreveram sete Epístolas, tão ricas em mistérios como sucintas, tão breves como longas: breves em palavras e longas em sentenças. De modo que haverá poucos que não tropecem às vezes com lugares escuros, lendo-as. O Apocalipse de são João contém tantos mistérios quantas palavras. E digo com isto que nenhum elogio pode alcançar o valor deste livro, cujas palavras, cada uma por si, abarcam muitos sentidos.

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Dizei-me, caríssimo irmão, rogo-vos: viver entre estas revelações, meditá-las, não saber nem querer outra coisa, não vos parece que isso é ter já aqui na terra uma moradia no reino celestial? Quisera advertir-vos que nas Sagradas Escrituras não vos ofenda talvez a simplicidade e ainda a modéstia quase vulgar de palavras, por negligência dos intérpretes ou propositadamente formuladas assim, para melhor instrução da gente rústica, a fim de que uma mesma sentença aproveite ao douto e ao indouto.

Pelo que me toca, não sou tão arrogante nem falto de juízo para testar estas coisas e recolher na terra o fruto da árvore cujas raízes estão no Céu. Mas confesso meu querer e minha vontade nessa direção. “Ponho-me diante do que está sentado, e recusando ser mestre, prometo-me por companheiro” [Cf. Cic., De invent. I, 8]. Ao que pede ser-lhe-á dado, ao que bate à porta, abrir-se-lhe-á, e aquele que busca achará. Aprendamos na terra as coisas cuja ciência persevera conosco no céu.

C. Folch Gomes. Antologia dos Santos Padres. 2 Edição. São Paulo, Edições Paulinas, 1979. pp. 324-331.

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