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Justiça e Educação como Instrumento de Inclusão Social* Paulo Afonso Garrido de Paula ** 1. Introdução. Gostaria inicialmente de agradecer à Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB - , a distinção do convite. Distinção porquanto ter a palavra em congresso dessa importância representa evidente honraria, de sorte que me sinto lisonjeado com o convite. Em segundo, gostaria também de cumprimentar a AMB pela feliz e oportuna escolha do tema central: Uma nova justiça para um novo tempo, de vez que indica compromisso com as novas demandas, sintonia temporal com a solução das lides sociais que, num passado remoto, dificilmente chegavam ao Judiciário. E também aplaudo a AMB por ter destacado Justiça e Educação como Instrumento de Inclusão Social, evidenciando preocupação com o futuro sócio-político do Brasil. Pretendo colaborar com a reflexão e debate acerca do tema qualificando educação e jurisdição: a primeira como essência da própria cidadania e a segunda como inclusiva. Em outras palavras: educação como expressão da cidadania e jurisdição como atividade estatal inclusiva. 2. Educação: essência da cidadania.

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Justiça e educação como sistema de inclusão social

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Justiça e Educação como Instrumento de Inclusão

Social*

Paulo Afonso Garrido de Paula **

1. Introdução.

Gostaria inicialmente de agradecer à Associação dos Magistrados Brasileiros –

AMB - , a distinção do convite. Distinção porquanto ter a palavra em congresso dessa

importância representa evidente honraria, de sorte que me sinto lisonjeado com o convite.

Em segundo, gostaria também de cumprimentar a AMB pela feliz e oportuna escolha do

tema central: Uma nova justiça para um novo tempo, de vez que indica compromisso com

as novas demandas, sintonia temporal com a solução das lides sociais que, num passado

remoto, dificilmente chegavam ao Judiciário. E também aplaudo a AMB por ter destacado

Justiça e Educação como Instrumento de Inclusão Social, evidenciando preocupação com o

futuro sócio-político do Brasil.

Pretendo colaborar com a reflexão e debate acerca do tema qualificando educação e

jurisdição: a primeira como essência da própria cidadania e a segunda como inclusiva. Em

outras palavras: educação como expressão da cidadania e jurisdição como atividade estatal

inclusiva.

2. Educação: essência da cidadania.

Quanto ao primeiro aspecto, destaco, desde logo, que educação, como direito e

bem fundamental da vida, é um dos atributos da própria cidadania, fazendo parte de

sua própria essência.

Em sentido amplo educação compreende o domínio do instrumental necessário para

o enfrentamento dos desafios do cotidiano em condições dignas, de licitude e de paz.

Representa para todos a capacitação para a felicidade, estado de êxito da pessoa humana.

Para grande parte da população brasileira mais do que isso: representa instrumento

de transposição da marginalidade para a cidadania, significa a porta da inclusão social.

Educação expressa domínio no sentido exato do assenhoreamento, de poder sobre

mecanismos que permitem, no mundo civilizado, a atualização das potencialidades e a

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capacitação como domínio de conhecimentos e habilidades capazes uma existência digna e

feliz.

Em sentido estrito, abrange o atendimento em creches e pré-escola às crianças de

zero a seis anos de idade, o ensino fundamental, inclusive aqueles que a ele não tiveram

acesso na idade própria, o ensino médio e o ensino em seus níveis mais elevados, inclusive

aqueles relacionados à pesquisa e a educação artística. Contempla, ainda, o atendimento

educacional especializado aos portadores de deficiência, prestado, preferencialmente, na

rede regular de ensino.

Ao se referir à educação de forma específica o legislador constituinte, no artigo 205

da Lei Maior, prescreveu regra consoante a qual A educação, direito de todos e dever do

Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,

visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e

sua qualificação para o trabalho.

Juridicamente podemos conceber EDUCAÇÃO como um direito social público

subjetivo. Deve ser materializado através de política social básica, porquanto

indiscutivelmente relacionado à fundamentos constitucionais da República Federativa do

Brasil (CF, art. 1º), bem como se relaciona aos objetivos primordiais e permanentes do

Estado brasileiro (CF, art. 3º), notadamente o referente à erradicação da marginalidade.

Direito de todos e dever do Estado constitui-se em expressão designativa de direito

social a que correspondem obrigações do Poder Público, materializadas em ações

governamentais previamente definidas e priorizadas, reunidas em um conjunto integrado

pela busca da mesma finalidade.

Se o dever do Estado conduz à definição de políticas sociais básicas o direito de

todos leva à existência de direito público subjetivo, exercitável, portanto, contra o Poder

Público. Assim, reconhece-se que o interesse tutelado pelo direito social tem força

subordinante, isto é, subordina o Estado ao atendimento das necessidades humanas

protegidas pela lei.

Atender ao direito social protegido pela lei significa cumprir, qualitativa e

quantitativamente, as obrigações que dele decorrem, produzindo ações e serviços que

satisfaçam os titulares daquele direito. Existindo oferta irregular dessas ações e serviços

por parte do Estado, a força subordinante do direito social violado conduz à necessidade de

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prestação jurisdicional, de modo que a ordem social violada pelo Poder Público,

notadamente através de seu Poder Executivo, possa ser restaurada pelo Poder Judiciário.

Assim, deflui do direito público subjetivo força subordinante em relação ao Estado,

não só no que diz respeito ao cumprimento voluntário das obrigações, mas também na

garantia de acesso ao Judiciário para o suprimento coercitivo das omissões governamentais.

A educação, como dever do Estado, importa desenvolvimento de ações

governamentais que conduzam ao atendimento das pessoas na creche e pré-escola, no

ensino fundamental, no ensino médio e superior, além do atendimento educacional

especializado às pessoas portadoras de deficiência. Além disso, consoante consignado no

artigo 208 da Constituição Federal, o Estado, aqui e na Lei Maior utilizado como

designativo de Poder Público, deve promover a progressiva extensão da obrigatoriedade e

gratuidade ao ensino médio, ofertar ensino noturno regular e atender ao educando, no

ensino fundamental, através de programas suplementares e de material didático-escolar,

transporte, alimentação e assistência à saúde.

O acesso gratuito, contudo, somente encontra-se assegurado ao ensino fundamental

(CF, art. 208, § 1º). Nos demais níveis contentou-se o legislador constituinte em garantir a

gratuidade em estabelecimentos oficiais (art. 206, inciso IV), ou seja, não ficou obrigado a

garantir o acesso de todos ao ensino médio e superior.

Isto não significa que o Estado só tenha obrigações relacionadas ao ensino

fundamental. Quis o legislador apenas excluir, dos demais níveis de ensino, a

obrigatoriedade e garantia de acesso, ficando, contudo, responsável pelo implemento de

tudo àquilo que se encontra elencado no art. 208 da Constituição Federal.

Prevê a Constituição Federal um sistema integrado de ensino público (art. 211),

ficando a União responsável pela organização e financiamento do sistema federal de

ensino, bem como pela prestação de assistência técnica e financeira aos Estados, Distrito

Federal e Municípios, sendo que estes devem atuar prioritariamente no ensino fundamental

e na educação infantil.

Quanto aos recursos relacionados à manutenção deste sistema estabeleceu a

Constituição Federal a obrigatoriedade de aplicação de parte da receita resultante de

impostos, estabelecendo para a União limite mínimo de dezoito e para os Estados, Distrito

Federal e Municípios, percentual nunca inferior a vinte e cinco por cento (art. 212).

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Além desses deveres do Estado, relacionados ao ensino público, tem a obrigação,

pois o ensino é livre à iniciativa privada, de estabelecer e fiscalizar o cumprimento de

normas gerais da educação nacional, bem como autorizar o funcionamento de instituições

privadas e avaliar sua qualidade (CF, art. 209).

Em outras palavras, considerando a relação entre EDUCAÇÃO e os fundamentos e

objetivos do Estado, seu conteúdo formal e as ações consideradas essenciais, podemos

concebê-la como da própria essência da cidadania. Povo cidadão é povo educado.

2. Jurisdição inclusiva.

Diz-se que a jurisdição opera através do processo, que este tem

caráter instrumental e que busca a efetividade do direito. Esta visão,

representativa de um avanço de concepção, merece, sob a minha ótica,

um ligeiro acréscimo: além de instrumento de efetivação do direito a

jurisdição também deve ser inclusiva.

Inclusiva no sentido de ter como razão primeira a consolidação do Estado social, do

Estado da Justiça distributiva, interpretando as leis de modo a colocar o homem como único

destinatário dos avanços da ciência, alargando a proteção ao ser humano e, ao mesmo

tempo, impondo limites àqueles que fazem do progresso científico instrumento de opressão,

de lucro fácil, de monopolização do saber ou de reserva de sua utilização.

Mas também inclusiva, e este é o aspecto que julgo mais importante, na medida em

que a validação dos direitos sociais é o único caminho para a superação da indigência. E

isto exige basicamente coragem e uma boa dose de reflexão, de modo que lições

incorporadas como dogmas, aplicadas irrefletidamente, não sirvam de obstáculos ao

reconhecimento e à efetivação de direitos sociais.

Jurisdição inclusiva como atividade de validação dos direitos

sociais insertos na Constituição e nas leis, de sorte que tem por fulcro o

direito positivo.

O reconhecimento do papel preponderante do direito positivo na

construção do justo representa, de certa forma, garantia contra a

subjetividade do julgador. A experiência do Direito do Menor, onde a

discricionariedade da autoridade judiciária era uma das suas

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características principais, foi desastrosa na medida em que o bem-estar

do menor justificava toda sorte de aniquilamento de garantias

fundamentais. Mas a observação (obediência à Constituição e às leis)

não vai a ponto de rechaçar a importância do papel do juiz na criação do

direito; apenas realça o valor da lei como garantia em um Estado

Democrático de Direito.

Como bem elucida Norberto Bobbio dependendo do aspecto do

positivismo jurídico que é submetido a crítica, está será, de fato, de

natureza diferente. 1 Sua configuração revela um método para o estudo

do direito, uma teoria do direito e uma ideologia do direito. 2

Quanto ao primeiro seria impossível traçar os contornos da

jurisdição inclusiva sem o exame da Constituição da República e do

Estatuto da Criança e do Adolescente, entre outros diplomas legais, uma

vez que a não adoção do método científico importaria filosofia ou

ideologia do direito, mas não ciência jurídica ou teoria do direito. 3

Por outro lado a teoria do positivismo jurídico revela o direito como

um conjunto de normas que regulam o uso da força coativa, 4 dá

prevalência à legislação como fonte do direito, podendo o homem

transformar a sociedade através da renovação das leis que a regem, 5

de modo que não pode ser descartada como embasamento da

estratégia de inclusão. A adoção do positivismo jurídico como teoria não

vai a ponto de considerar o ordenamento jurídico como um todo

coerente, necessariamente completo e que o ato de julgar consiste na

simples aplicação da lei com base num procedimento lógico, 6 mas

obviamente impende reconhecer sua magna importância como fator de

progresso das relações sociais.

1 O positivismo jurídico. Lições de Filosofia do Direito. Compiladas por Nello Moura, Tradução e notas Márcio Pugliese, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 235.2 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Ob. cit., p. 234.3 Idem, p. 238.4 Idem, p. 155.5 Idem, p. 120.6 Idem, p. 237.

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É de se ressaltar que o positivismo como ideologia merece crítica

quando baseado no formalismo ético, segundo o qual a ação justa

consiste pura e simplesmente no cumprimento do dever imposto pela

lei, qualquer que seja esta, qualquer que seja seu conteúdo7, porquanto

levam a estatolatria 8 e ao totalitarismo político. 9 Contudo, quando o

juspositivismo é baseado no positivismo ético moderado, que concebe a

lei como forma mais perfeita de direito 10 em razão das características

da generalidade e abstração, meio que serve para realizar um

determinado bem, a ordem da sociedade, 11 não pode ser descartado

como valor na edificação do Estado Democrático de Direito.

O juiz, neste contexto, não tem papel subalterno, mesmo porque a

jurisdição inclusiva importa tutela a pessoas e não a direitos. Como

ensina Cândido Rangel Dinamarco A afirmação da tutela ao homem

como resultado do processo é decorrência da visão do processo pelo

ângulo externo e da metodologia descrita como processo civil de

resultados. Nessa ótica, em que prepondera a preocupação pelo

resultado útil de cada experiência processual na vida comum das

pessoas em relação com outras ou com os bens, levam-se em conta, de

um lado, as pretensões insatisfeitas que impulsionam as pessoas a

demandar e, de outro, o modo como fica essa pretensão depois do

processo findo. São essas as duas pontas do iter de inserção no

processo na vida em sociedade – ou seja, a realidade precedente ao

processo, que legitima sua celebração, e a realidade sucessiva ao

processo, criada por ele.12

Neste sentido não importa a criação do direito como fenômeno

jurídico, mas o fenômeno social através da criação de uma situação de

7 Idem, p. 146.8 Verdadeira adoração do Estado. Cf. Bobbio, idem, p. 224.9 Bobbio, idem, p. 236.10 Idem, p. 231.11 Idem, p. 232.12 Fundamentos do Processo Civil Moderno. São Paulo, Malheiros Editores, 3ª ed., 2000, Tomo II, p. 825.

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cidadania mediante a inclusão, porquanto neste último está a pessoa e

no primeiro apenas a ficção.

Prefiro, assim, dizer que o juiz é um dos construtores da cidadania

na medida em que valida direitos sociais, garantindo a concretude dos

direitos fundamentais.

Persegue a realização do Estado Social Democrático, do primado

dos direitos fundamentais e do bem comum, resultante da simbiose

entre os valores individuais e coletivos, expresso na reflexão de Georg

Jellineck, citado como prólogo em obra de Paulo Bonavides: Ao redor de

dois pontos candentes, gira toda a vida do gênero humano: o indivíduo e

a coletividade. Compreender a relação entre ambos, unir

harmoniosamente essas duas grandes potências que determinam o

curso da história, pertence aos mais árduos problemas com que a

ciência e a vida se defrontam. Na ação, como no pensamento,

prepondera ora um, ora outro dentre esses fatores. 13

A inclusão social a que aludo concerne à realização das normas estabelecidas na

Constituição da República, de maneira especial as representativas do modelo social

pretendido pela Lei Maior. Por que? Porque esse molde representa o pacto estabelecido

para o progresso pessoal e social do povo brasileiro e, na essência, deve ser

considerado como o contraponto ao estado neoliberal, como o antígeno aos efeitos

perversos da globalização da economia.

Sem a efetivação do direito constitucional não existirá remédio lícito para

construção de uma sociedade livre, justa e solidária, não haverá recurso que garanta o

desenvolvimento nacional, não se encontrará a maneira de erradicar a pobreza e a

marginalização, não haverá como superar as desigualdades sociais e regionais e tão-pouco

se promoverá o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação, que, como sabemos, constituem-se em objetivos

fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme expressamente consignado no

artigo 3º da Magna Carta.

13 Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo: Malheiros, 1996, 6ª edição.

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Transformar a realidade brasileira significa vivificar ou aviventar as regras

constitucionais que estabelecem os direitos fundamentais em razão do compromisso

nacional de atingir os alvos prioritários previamente definidos pelo legislador constituinte.

Não foram em outro sentido as palavras do Ministro José Paulo Sepúlveda Pertence,

em 19 de setembro de 1988, no plenário do Supremo Tribunal Federal: Hoje, nenhuma

ordem constitucional se pode reduzir à estrutura de poderes, que reciprocamente se

controlem, e ao plexo de normas voltadas unicamente à contenção do Estado, em maior ou

menor grau; toda Constituição Contemporânea – de modo especial, mas não

exclusivamente, as do mundo subdesenvolvido -, veicula um projeto de transformação da

sociedade, centrado, quase necessariamente, no objetivo de redução da iniqüidade da

distribuição dos bens da vida. 14

Jurisdição inclusiva é aquela cuja fonte de dicção originária é a Constituição da

República. Na sua letra e no seu espírito.

E esta ligação umbilical da jurisdição inclusiva com a Constituição Federal não

importa restrição de seu alcance. Como bem advertem Celso Antonio Pacheco Fiorillo e

Marcelo Abelha Rodrigues Por uma questão de supremacia a Constituição da República

de um Estado democrático está colocada como epicentro das normas jurídicas. Nela estão

contidas as normas fundamentais que deverão ser operacionalizadas, aplicadas e

respeitadas pelas demais normais jurídicas. 15

E a nossa Constituição é uma Constituição Cidadã, 16 fonte instituidora de um

Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a

liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como

valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na

harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica

das controvérsias. 17

14 COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania. São Paulo: Ieje, 2001, p. 192.15 Direito Ambiental e Patrimônio Genético. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 30.16 Expressão utilizada por Ulisses Guimarães, Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, ao promulgar nossa Magna Carta. Consoante José Afonso da Silva esta denominação é porque a Magna Carta teve ampla participação popular na sua elaboração e especialmente porque se volta decididamente para a plena realização da cidadania. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, 6ª ed., p. 80. 17 Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil.

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Nenhuma norma legal, por mais banal que possa considerada, pode ser validada sem

que se verifique sua conformação constitucional.

Essa obviedade conceitual longe está da concretude18, e, via de conseqüência, da

transformação preconizada pela Magna Carta.

Evidentemente que os pretendidos modelos de sociedade variam de acordo com

cada um dos Estados soberanos, sendo que os feitios diversos encontram-se ameaçados pela

globalização. No caso brasileiro pelas tentativas constantes de reformar a Constituição,

retirando do texto da Lei Maior os direitos sociais e os instrumentos de defesa do Estado

Social. Isto reclama uma luta política na preservação das conquistas da Constituição de

1988, que pode ou não ser reforçada pela forma como a jurisdição atua.

Neste sentido vale transcrever as lições de Paulo Bonavides:

Em todo sistema jurídico-constitucional do Estado de Direito contemporâneo, nascido à sombra dos postulados do contrato social, há, em rigor, três legisladores perfazendo as tarefas normativas do regime.

Um legislador de primeiro grau que faz a norma fundamental – a Constituição. Sua autoridade depois remanesce no corpo representativo, legitimado pela vontade constituinte. Mas remanesce como um poder jurídico limitado, apto a introduzir tão-somente as alterações que se fizerem mister ao estatuto fundamental com o propósito de aperfeiçoar a Constituição e manter a estabilidade dos mecanismos funcionais de governo. E também para tolher, por via de emenda, reforma ou revisão, o advento das crises constitucionais, dando-lhes solução adequada e legítima.A seguir, depara-se-nos, em escala de verticalidade, o legislador de segundo grau, que faz a norma geral e abstrata, na qualidade de legislador ordinário. Para desempenhar esse múnus constitucional recebe a colaboração do Poder Executivo, cujo Chefe sanciona ou não atos das assembléias parlamentares.

Têm estas, porém, o poder de rejeitar o veto do presidente e restabelecer a vontade do órgão legiferante.

Enfim, depara-se-nos o legislador de terceiro grau, no estreitamento do funil normativo, a saber, o juiz, que dirime conflitos e faz a norma jurídica do caso concreto. Legisla entre as partes.

18 Muito embora o volume excessivo de feitos em tramitação do Excelso Supremo Tribunal Federal possa ser atribuído ao espírito demandista e às facilidades de acesso à instância constitucional, razoável intuir a existência de dificuldades no reconhecimento da eficácia de normas insertas na Constituição da República.

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Intérprete normativo no ocaso da velha dogmática jurídica, esse juiz tende, desde o advento da Nova Hermenêutica, a ser, com razão, o legislador por excelência; aquele que tanto na esfera tópica como sistemática dissolve as antinomias do positivismo ou combina, na concretude social e jurisprudencial, a doutrina com a realidade, o dever-ser com o ser e integrado aos quadros teóricos da democracia participativa terá legitimidade bastante com que coibir de uma parte as usurpações do Executivo, de outra as tibiezas e capitulações do Legislativo. Sobretudo quando este, por omissão, se faz desertor de suas atribuições constitucionais.

Assim, sob a égide de um Judiciário, guardião efetivo da supremacia constitucional e da ordem democrática, recompor-se-á a esfera de harmonia e equilíbrio entre dos Três Poderes. 19

Ainda que não se chegue a ponto de considerar o juiz como legislador de terceiro

grau, circunscrevendo-o apenas ao papel de agente da soberania incumbindo da validação

de direitos anteriormente definidos pelo parlamento, espera-se, ainda no dizer de Paulo

Bonavides, um juiz da Constituição e não da lei, um juiz da legitimidade e não da

legalidade, haurindo sua maior força e dimensão hermenêutica na esfera dos princípios,

movendo-se tecnicamente no círculo de um pluralismo normativo tópico onde a norma-

texto é apenas o ponto de partida da normatividade investigada e achada ao termo do

processo decisório. 20

Penso que a importância da jurisdição inclusiva transcende os limites de um

trabalho acadêmico. A vislumbro como a única forma civilizada para a pacificação social,

uma das suas finalidades básicas, apresentando-se também como um dos elementos de sua

gênese. A pacificação é o escopo magno da jurisdição e, por conseqüência, de todo sistema

processual (uma vez que todo ele pode ser definido como a disciplina jurídica da jurisdição

e seu exercício). É um escopo social, uma vez que se relaciona com o resultado do

exercício da jurisdição perante a sociedade e sobre a vida gregária dos seus membros e

felicidade de cada um. 21

Estado pacificado é o Estado Cidadão.

No Estado Cidadão os direitos fundamentais são reconhecidos e efetivados.

A ausência ou sensível diminuição de perturbações é apenas um de seus reflexos.

19 Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 21.20 Ob. cit. p. 2321 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 1998, 14ª edição, p. 24.

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Pensar que o Estado Brasileiro pode ter uma jurisdição descomprometida com a

necessidade de inclusão social significa aprofundar a exclusão, aumentando a probabilidade

de um futuro convulsionado. A intervenção na ordem econômica e social, programada

constitucionalmente, é hoje um dever estatal inalienável, aplicável em sede jurisdicional.22

Anote-se que a jurisdição inclusiva está de acordo com o caráter público do

processo. Como ensina Cândido Rangel Dinamarco sua natureza instrumental impõe que

todo sistema processual seja permeado dessa conotação, para que realmente apareça e

funcione como instrumento do Estado para a realização de certos objetivos por ele

traçados. 23

4. Conclusões:

A tutela jurisdicional consiste na proteção estatal aos direitos não reconhecidos

espontaneamente, esvaziados na sua eficácia ou dependentes de um aval24. Sua finalidade

pública, reitere-se, é assegurar a paz social, impedindo a supremacia da força ou a

constituição de situações jurídicas em desacordo com a lei, validando as regras do Estado

Social definido na Constituição da República.

A proteção deve ser efetiva, manifestando-se tempestiva e concretamente através da

perfeita correspondência entre o determinado pelo direito e o realizado no plano material.

Assim, a tutela jurisdicional deve ser adequada às especificidades do direito

material, 25 de vez que é o mesmo quem proclama os exatos termos da prevalência de um

interesse sobre outro. Deve ser entendida, no dizer de José Roberto dos Santos Bedaque,

como tutela efetiva de direitos ou de situações pelo processo. Constitui visão do direito

processual que põe em relevo o resultado do processo como fator de garantia do direito

material. 26

22 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2001, 9ª ed., p. 88.23 A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2001. 9ª edição.24 Parto do pressuposto de que, no sistema processual civil brasileiro, a jurisdição voluntária também é uma espécie de jurisdição (CPC, art. 1º), de modo que um conceito concorde com a realidade do direito positivo não pode prescindir da consideração de que o Estado Juiz participa da constituição de situações jurídicas não conflituosas através de uma implícita declaração, ou aval, de satisfação dos requisitos exigidos pela lei para a sua inauguração.25 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela Cautelar e Tutela Antecipada: Tutelas Sumárias e de Urgência. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 11.26 Direito e Processo. Influência do Direito Material sobre o Processo. São Paulo: Malheiros, 1997, 2ª ed., p. 25.

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E deve ser também concorde com os novos direitos, mesmo porque o Código de

Processo Civil, não obstante ser um diploma legislativo dotado de rigor científico, foi

elaborado com base no individualismo, olvidando-se das discussões que se tratavam na

Europa e nos Estados Unidos acerca da tutela jurisdicional dos direitos difusos e coletivos, 27 situação amenizada com a reforma introduzida a partir de 1994 mas que ainda não se

presta à tutela de direitos sócio-individuais.

Kazuo Watanabe, partindo da preocupação dos processualistas contemporâneos a

respeito da efetividade do processo como instrumento de tutela dos direitos, distingue as

perspectivas daqueles que procuram desenvolver o estudo do direito subjetivo, da

pretensão de direito material e da ação de direito material como forma de justificar a

existência de ação ainda no plano do direito material, cuja processualização se dá através

da demanda, que constitui exigência da promessa estatal de tutela jurídica, nascendo a

pretensão processual com o pedido, de outros que, sob a perspectiva do direito processual,

aprofundam os estudos dos vários institutos e técnicas processuais, buscando, assim, a

melhor tutela dos direitos através do processo. Conclui que ambas as perspectivas são

relevantes, pugnando pelo encontrar das águas, de modo a atingir o objetivo comum, que é

de tutela efetiva de todos os direitos. 28

Prossegue o insigne jurista aduzindo que o ponto de confluência das duas correntes

é alcançado pela pesquisa dos aspectos constitucionais do processo civil, em especial do

problema do acesso à justiça, partindo-se, entre nós, do princípio da inafastabilidade da

jurisdição, inserto no artigo 5º inciso XXXV da Constituição Federal, e das garantias e

corolários dele extraídos, arrematando que se tem entendido que o texto constitucional, em

sua essência, assegura “uma tutela qualificada contra qualquer forma de denegação da

justiça”, abrangente tanto de situações processuais como substanciais. 29

Recupere-se o óbvio: a tutela jurisdicional serve para a validação dos direitos

irrealizados. O desvio representa, qualquer que seja a justificativa técnica ou científica,

escopo estranho à natureza da garantia da inafastabilidade da proteção judiciária, servindo

apenas aos interesses dos detentores do domínio da forma que, não raras vezes, utilizam-se

27 NERY JUNIOR, Nelson. Atualidades sobre o Processo Civil. A reforma do Código de Processo Civil Brasileiro de dezembro de 1994. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 10. 28 Da Cognição no Processo Civil. Campinas: Bookseller, 2000, 2ª ed., p. 23-25.29 Ob. cit., p. 25-27.

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desse conhecimento para obter prestações indevidas, para impedir ou postergar a realização

do direito material.

E, sem qualquer dúvida, os direitos relacionados à educação, que transcendem o

individuo e atingem o próprio corpo social, precisam de validação judicial quando

irrealizados. Planteiam, quando efetivados, a sociedade vislumbrada pelo legislador

constituinte, de modo que as imposições coercitivas das obrigações que lhe são correlatas,

representam a singeleza do Estado Democrático de Direito, onde o Poder Judiciário apenas

vivifica normas da Lei Maior ou dela decorrentes. Cumpre com exação seu papel de Poder,

sem resvalar na ingerência indevida em assuntos da Administração, limitando-se à

exigência de cumprimento de preceitos definidos pelo legislador, notadamente o

constituinte. Isto porque são normas jurídicas, não meras exortações ou conselhos, tendo a

força subordinante própria do Direito. O Poder Judiciário, desta maneira, não escolhe nada,

porquanto o caminho já foi definido na Constituição da República, não tendo, assim como o

Administrador, qualquer prerrogativa discricionária. Oportunidade e conveniência foram

sopesadas pelo legislador constituinte que ao estabelecer o pacto social optou pela

cidadania, pela universalização de direitos básicos.

Penso, finalizando, que A NOVA JUSTIÇA PARA O NOVO TEMPO, é a Justiça

da validação dos direitos sociais, é a Justiça da Constituição Cidadã, é a Justiça Inclusiva, é

a Justiça como instrumento de transposição da marginalidade para a cidadania.

Salvador, 24 de outubro de 2003.

* Palestra proferida durante o XVIII Congresso Brasileiro de Magistrados, realizado pela AMB, Associação de Magistrados Brasileiros, no período de 22 a 25 de outubro de 2003, em Salvador, Bahia. Prelação baseada em obras em publicações anteriores do autor.

* * Paulo Afonso Garrido de Paula é Procurador de Justiça no Estado de São Paulo, Professor de Direito da Criança e do Adolescente na PUC de São Paulo e de Processo Civil em organizações de ensino. Mestre e Doutorando pela PUC/SP. Ex-presidente da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude. Co-autor do anteprojeto que deu origem ao Estatuto da Criança e do Adolescente.