O homem que incendiou a casa de camilo

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  • 1. O homem que incendiou a Casa de Camilo1 Jos Carlos Vilhena Mesquita Muito se afanaram certos camilianistas em atribuir o incndio da Casa de Camilo, ocorrido a 17 de Maro de 1915, s intenes malficas de alguns dos seus antigos adversrios, que cobardemente se vingaram da memria do clebre escritor atravs da destruio daquele magnfico baluarte da nossa arquitectura literria. Houve at quem, nessa altura, culpasse a famlia Faria, constituda por caciques locais, gente endinheirada com largas propriedades rurais e indefectvel fora poltica, que o Camilo chegou a caricaturar nos seus romances com aquela crueldade que s um gnio impiedoso como o seu seria capaz de engendrar. No obstante, e falta de provas, foi a justia silenciando os rumores populares que, no adro da igreja, nos bancos das tabernas ou nos bailes das romarias, confessavam ter visto, com os seus prprios olhos, o sacrlego incendirio. Tudo boatos, congeminaes de humildes campesinos para quem o incndio da Casa-Amarela constitua melhor notcia que os trgicos informes da Grande Guerra. No fundo era tudo fantasia de gente ignara. Porm, muito recentemente, e s por um feliz acaso, tive a oportunidade de conhecer o autor do suposto crime. Contou-me tudo com aquela franqueza e simplicidade de quem nada tem que lhe pese na conscincia. E, de facto, aps ouvir o seu relato, tambm comungo da mesma plcida e inocente opinio de que o nus da culpa no lhe ensombra a alma. O que se passou foi pura e simplesmente um acidente, de nefastos resultados, certo. Mas de qualquer modo, um acto involuntrio de uma criana inocente e descuidada, como alis costumam ser todas as crianas. O caso simples de contar. Ainda em vida tinha Camilo a seu cargo um humilde mestre carpinteiro, de seu nome Teotnio Lus Ferreira, a quem alugara os baixos da sua manso, ento designada por Casa Amarela. O jovem marceneiro era muito folgazo e dado a aventuras amorosas, o que se por um lado agradava ao velho romancista tambm por vezes o obrigou a proteg-lo da ira alheia. Camilo era nessa altura um homem amargurado pela doena, que o lanava progressivamente na escurido da cegueira e o empurrava apressadamente 1 Artigo publicado no Dirio de Notcias de 24-4-1984.

2. para o libertador suicdio. Por isso se sentia s, decrpito, intil e esquecido. Alis o estado depressivo em que vivia retratou-o no clebre soneto Os Meus Amigos. Em boa verdade, Camilo Castelo Branco, o maior romancista portugus, estava no fim da sua atribulada existncia. O desencanto dos mdicos e a compungente cegueira em que se via compelido, culminaria com um tiro nos miolos, naquele fatdico dia 1 de Junho de 1890. Camilo saa da vida duma forma violenta, trgica e dramtica, semelhana de muitos dos personagens dos seus livros. Aps o fatdico desfecho, D. Ana Plcido e seu filho Nuno continuaram a manter na casa o fiel carpinteiro que entrementes desenvolvia vrias funes, desde capataz a simples rural, conforme as possibilidades da famlia e necessidades da vida. At que, com o decorrer do tempo, os herdeiros de Camilo foram desaparecendo, deixando-o s e igualmente amargurado na velha e arruinada manso daquele que foi conhecido depois da morte como o torturado de Seide. Uma personagem camiliana A vida deste homem foi, curiosamente, algo semelhante a muitas outras que Camilo imortalizou nos seus romances. Para se fazer uma ideia dessa similitude talvez valha a pena cont-la. Teotnio Ferreira em breve deixava a arte da marcenaria e o ofcio de carpinteiro para se estabelecer com uma venda de mercearia e vinhos, incio de vida to ao gosto da humilde mentalidade comercial dos minhotos. Porm, a crise dos tempos e o crdito mal distribudo, depressa o arrastaram para a falncia. Montou ento uma agncia funerria que, por dificuldades algo semelhantes, o levariam para o mesmo caminho. Arruinado e desiludido mergulha em sucessivos desgostos. Entretanto casara, e com algumas dificuldades conseguia manter trs filhos, o mais velho dos quais afilhado do Nuno, filho do emrito romancista, que, como toda a gente sabe, herdara de Camilo o esprito mulherengo e aventureiro que o tornou clebre. Roda pelos insucessos financeiros do marido, a mulher de Teotnio, foge de casa pela mo de um ricao de S. Paio de Seide, para nunca mais ser vista. Mesmo falido o antigo carpinteiro consegue ferir de amores Emlia Rosa Veiga, com quem se juntou e veio a ter mais quatro filhos. Mas a sua triste sina no se ficaria por aqui. Por razes vrias, que no importam ao caso, a Emlia abandona-o e leva consigo as crianas. Mais uma vez sente-se deprimido e irremediavelmente s. Porm, ilumina-se- lhe a mente de uma fasca camiliana, e resolve cicatrizar as feridas do corao no vapor que o leva para o Brasil. Sonhara tornar-se rico, encher o ba de libras de ouro e regressar terra-me feito Baro ou Visconde. Mas a realidade era outra. Nas terras do cacau e do caf, a vida era dura e os perigos imensos. Tempos depois retorna do Brasil com o mesmo estado de esprito que para l o levara: triste, desiludido e arruinado. De volta terra procura trabalho em vrias localidades minhotas e foi em S. Vtor, no concelho de Braga, que veio a conhecer a sua terceira mulher, Laura Baptista da Costa. Curiosamente os desgostos de Laura eram, de certo modo, semelhantes aos seus. Tinha 3. trs filhos do marido, Jos Joaquim Correia de Arajo, natural da freguesia de Avidos, do concelho de Famalico, que emigrara tambm para o Brasil nunca mais dando notcias da sua existncia. Seus antigos companheiros juravam que ele tinha morrido no serto, que ningum mais lhe pusera a vista em cima e que at se lhe haviam rezado missas pela alma. Supostamente viva, mas sem provas da sua condio, juntou-se com o Teotnio, de quem veio a ter um filho, Gabriel Baptista da Costa, do qual irei falar mais adiante por ser, ao fim e ao cabo, o protagonista da histria que nos levou a escrever este artigo. Quando juntaram os comuns haveres, o antigo carpinteiro de Camilo regressou aldeia de S. Miguel de Seide e, como havia sido compadre do Nuno Castelo Branco, pediu a sua filha, D. Raquel, que vivia no antigo chal do pai, praticamente em frente da arruinada Casa-Amarela, que lhe alugasse a Casa de Camilo, proposta que ela aceitou por simblicos 7 mil reis ao ano. No fundo, eram j velhos amigos, pois que o Teotnio conheceu perfeitamente a me desta senhora, D. Ana Correia, inclusivamente esteve presente no baptizado da filha cujo nome, Raquel, foi escolhido por Camilo, que sobre esta designao bblica encobrira a verdadeira identidade de Ana Plcido, nos versos que lhe dedicara pouco antes do escndalo que os atirara para a cadeia da Relao do Porto. Mas, por ironia do destino, passados alguns anos, eis que regressa do Brasil, paraltico e alienado, o Joaquim Jos Correia Arajo, supostamente falecido, cuja apario derramou sobre o recomposto lar da sua esposa a mais completa consternao. A infeliz Laura, que entretanto havia montado um negcio de mercearia, que na graa de Deus corria de vento em popa, v-se numa situao insustentvel, da qual veio a resultar a doena que a vitimou. Como bom personagem camiliano, a vida de Teotnio Ferreira no ficaria por aqui. Depois de tantos insucessos, desgostos e desiluses, acaba amancebado para o resto dos seus dias com a enteada mais velha, que foi quem herdou o negcio da me. A situao, apesar de pecaminosa no era invulgar, tanto na poca como na regio, muito embora nos tempos de hoje seja bastante reprovvel. De qualquer modo, a sua vida estava no fim e aps o infortnio do incndio na casa de Camilo, foi residir com a amante para uma casa de barro que pertencia filha da sua primeira mulher, situada no lugar do Monte, em S. Miguel de Seide, onde viveu apenas um ano, pois em 1916, com 60 anos de idade, faleceu em condies pouco esclarecidas... O incndio na casa de Camilo Como atrs ficou dito, o incndio da casa de Camilo no foi obra de qualquer incendirio supostamente adversrio do imortal torturado de Seide. O que se passou foi mero acidente. O relato dos acontecimentos foi-nos minuciosamente descrito pelo seu verdadeiro e involuntrio autor, sr. Gabriel Baptista da Costa, nascido em S. Miguel de Seide a 9-11-1903, que, quando deflagrou o sinistro, tinha apenas 12 anos de idade. No dia 17 de Maro de 1915, uma quarta-feira, realizou-se; como de costume, a feira semanal em Vila Nova de Famalico, onde naturalmente acorria muito povo das aldeias 4. do concelho para venderem os seus produtos agrcolas, para transaccionarem gado de toda a espcie ou, simplesmente, para confraternizarem com os amigos e conhecidos, nas tabernas ao ar livre, que ento muito castiamente se erguiam no Campo Mouzinho de Albuquerque, hoje ocupado pelo jardim D. Maria II, pela Fundao Cupertino de Miranda e por um largussimo parque de estacionamento. Diz- se, no sei com que veracidade, que os herdeiros de Camilo tinham ido vila (de Famalico) tratar da venda da antiga Casa Amarela. Ora, nesse caso, o incndio da casa do romancista tornou-se alvo do falatrio popular, a tal ponto que rapidamente evoluiria para um misterioso e hipottico caso de vingana dos odientos detractores do romancista, figura tutelar do seu tempo, cuja vida, tambm ela romanesca, suscitou antipatias e acicatou rancores. Mas as verdadeiras causas do sinistro foram outras. Com efeito, nesse dia o Teotnio Lus Ferreira mandou seu filho Gabriel aprontar-se para o acompanhar feira de Famalico, pedindo-lhe que em seguida reunisse as brasas do borralho, que acendera para fazer o almoo, numa cesta de vindima, que por ali estava especialmente para esse fim, no intuito de se aproveitarem as suas cinzas para a adubagem dos trabalhos agrcolas. Por negligncia e alguma inocncia, guardou o petiz a cesta com as brasas j mortias numa arrecadao logo a seguir cozinha, onde est hoje o escritrio do conservador da Casa-Museu. No mais ligou importncia ao caso dirigindo-se apressadamente com seu pai, por entre os campos e atalhos, vila de Famalico que dista dali 7 quilmetros. Quando j estavam na feira ouviram tocar a incndio e por detrs dos outeiros, na direco de Seide, viam-se enormes nuvens de fumo, enquanto os populares gritavam fogo, fogo, fogo todos correndo na direco do sinistro. Os netos de Camilo encontravam-se tambm na feira e receando que o incndio tivesse deflagrado no chal do Nuno ou na velha residncia do romancista dirigiram-se na sua charrete em direco aldeia. Tambm o Teotnio e o filho Gabriel, intrigados e 5. receosos do que pudesse estar a acontecer, se incorporaram na correria dos populares que voluntariamente queriam ajudar no combate s chamas. Quando ali chegaram, apesar dos esforos dos bombeiros, a casa estava praticamente em escombros. Caram algumas paredes e o telhado, mas salvaram-se os mveis devido pronta interveno dos vizinhos. Curiosamente, ficou quase inclume a clebre Accia do Jorge, pois que o fogo apenas lhe devorou a copa deixando-lhe intacta a vida e, ainda, o retrato em azulejo do romancista que o calor das chamas to-pouco conseguiu gretar. Por outro lado, a maior parte do recheio da casa estava no chal do Nuno, que dali os removeu aps a morte de D. Ana Plcido, ocorrida em 1895. Segundo nos afianou o Sr. Gabriel da Costa, as causas do sinistro foram, com certeza, as brasas guardadas na cesta que, rompendo pelo carcomido soalho da casa, caram no sobrado, que lhe ficava nos baixos, onde o pai guardava a palha para os animais da lavoura. E o certo que o fogo deflagrou precisamente nas cocheiras dos animais, que felizmente se encontravam a pastar nos campos vizinhos. Portanto, o incndio no foi malvadeza de quem quer que fosse, mas antes um puro acidente derivado da imprevidncia de uma criana. Contudo, como j em tempos a famlia alcunhada de os Periquitos, instigada e patrocinada pelos Farias, tinha derrubado e fragmentado a memria de pedra em honra do poeta Castilho, que se dizia conter um pote de libras de ouro, a qual se encontrava, tal como hoje, junto ao porto de entrada, houve logo quem dissesse que os autores do incndio seriam os mesmos, o que felizmente no se veio a provar. Pouco depois, a 11 de Abril de 1915, uma comisso representativa da Cmara Municipal de Vila Nova de Famalico, presidida por Francisco Correia Mesquita Guimares, aprovou a compra do imvel, livros, mobilirio e objectos de uso pessoal de Camilo Castelo Branco por 2 mil escudos. A escritura de aquisio do imvel foi lavrada a 17 de Abril de 1916, junto ao monumento a Castilho, na presena do tabelio Rodrigo Terroso, de D. Raquel, neta da escritor, de Jos de Azevedo Menezes e de vrias outras individualidades que igualmente firmaram a documentao Ficou determinado que o imvel seria restaurado e nos seus baixos instalada a escola primria da freguesia e nas dependncias superiores um Museu Camiliano. Infelizmente o processo arrastou-se to lentamente que s em 1958, por especial esforo e dedicao do Dr. Antnio Pinheiro Torres, da Cmara Municipal de V. N. de Famalico e do SNI, que se concluram as obras, restituindo ao imvel a sua traa primitiva e nele instalando o belssimo Museu que ainda hoje pode ser apreciado por milhares de visitantes. 6. receosos do que pudesse estar a acontecer, se incorporaram na correria dos populares que voluntariamente queriam ajudar no combate s chamas. Quando ali chegaram, apesar dos esforos dos bombeiros, a casa estava praticamente em escombros. Caram algumas paredes e o telhado, mas salvaram-se os mveis devido pronta interveno dos vizinhos. Curiosamente, ficou quase inclume a clebre Accia do Jorge, pois que o fogo apenas lhe devorou a copa deixando-lhe intacta a vida e, ainda, o retrato em azulejo do romancista que o calor das chamas to-pouco conseguiu gretar. Por outro lado, a maior parte do recheio da casa estava no chal do Nuno, que dali os removeu aps a morte de D. Ana Plcido, ocorrida em 1895. Segundo nos afianou o Sr. Gabriel da Costa, as causas do sinistro foram, com certeza, as brasas guardadas na cesta que, rompendo pelo carcomido soalho da casa, caram no sobrado, que lhe ficava nos baixos, onde o pai guardava a palha para os animais da lavoura. E o certo que o fogo deflagrou precisamente nas cocheiras dos animais, que felizmente se encontravam a pastar nos campos vizinhos. Portanto, o incndio no foi malvadeza de quem quer que fosse, mas antes um puro acidente derivado da imprevidncia de uma criana. Contudo, como j em tempos a famlia alcunhada de os Periquitos, instigada e patrocinada pelos Farias, tinha derrubado e fragmentado a memria de pedra em honra do poeta Castilho, que se dizia conter um pote de libras de ouro, a qual se encontrava, tal como hoje, junto ao porto de entrada, houve logo quem dissesse que os autores do incndio seriam os mesmos, o que felizmente no se veio a provar. Pouco depois, a 11 de Abril de 1915, uma comisso representativa da Cmara Municipal de Vila Nova de Famalico, presidida por Francisco Correia Mesquita Guimares, aprovou a compra do imvel, livros, mobilirio e objectos de uso pessoal de Camilo Castelo Branco por 2 mil escudos. A escritura de aquisio do imvel foi lavrada a 17 de Abril de 1916, junto ao monumento a Castilho, na presena do tabelio Rodrigo Terroso, de D. Raquel, neta da escritor, de Jos de Azevedo Menezes e de vrias outras individualidades que igualmente firmaram a documentao Ficou determinado que o imvel seria restaurado e nos seus baixos instalada a escola primria da freguesia e nas dependncias superiores um Museu Camiliano. Infelizmente o processo arrastou-se to lentamente que s em 1958, por especial esforo e dedicao do Dr. Antnio Pinheiro Torres, da Cmara Municipal de V. N. de Famalico e do SNI, que se concluram as obras, restituindo ao imvel a sua traa primitiva e nele instalando o belssimo Museu que ainda hoje pode ser apreciado por milhares de visitantes.