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O Incra e os desafios para a regularização dos territórios quilombolas algumas experiências

O incra e os desafios para a regularização dos territórios quilombolas

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  • O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilom

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    A u t o r e sAniceto Cantanhede Filho, Andrea Flvia Tenrio Carneiro, Caroline Ayala, Celeste Ciccarone, Dalvia Bento Bulhes,

    Flvio Luis Assiz dos Santos, Francieli Marinato, Gilca Garcia de Oliveira, Guiomar Inez Germani,

    Ieda Cristina Alves Ramos, Jos Rui Cancian Tagliapietra, Julie Cavignac, Leandro Mitidieri, Luciana Job, Mariza Rios,

    Osvaldo Martins de Oliveira, Renata Bortoletto Silva, Sandro Jos da Silva, Sebastio Henrique Santos Lima,

    Simone Raquel Batista Ferreira, Sue Nichols, Trcio Fehlauer

    O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilombolas

    algumas experincias

  • O I n c r a e O s d e s a f I O s pa r a

    a r e g u l a r I z a O d O s

    t e r r I t r I O s q u I l O m b O l a s

    a l g u m a s e x p e r I n c I a s

  • m da / i n c r a , b r as l ia - d f, 2 0 0 6

    Aniceto Cantanhede Filho, Andrea Flvia Tenrio Carneiro, Caroline Ayala, Celeste Ciccarone, Dalvia Bento Bulhes, Flvio Lus Assiz dos Santos,

    Francieli Marinato, Gilca Garcia de Oliveira, Guiomar Inez Germani, Ieda Cristina Alves Ramos, Jos Rui Cancian Tagliapietra, Julie Cavignac,

    Leandro Mitidieri, Luciana Job, Mariza Rios, Osvaldo Martins de Oliveira, Renata Bortoletto Silva, Sandro Jos da Silva, Sebastio Henrique Santos Lima,

    Simone Raquel Batista Ferreira, Sue Nichols, Trcio Fehlauer

    O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilombolas

    algumas experincias

  • N e a d D e b at e 1 3

    Luiz Incio Lul a da SilvaPresidente da Repblica

    Guilherme CasselMinistro de Estado do Desenvolvimento Agrrio

    Marcelo Card ona Ro chaSecretrio-Executivo do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio

    Rolf HackbartPresidente do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    Marcos Alexandre KowarickDiretor de Ordenamento da Estrutura Fundiria (Incra)

    Valter BianchiniSecretrio de Agricultura Familiar

    Eugnio PeixotoSecretrio de Reordenamento Agrrio

    Jos Humberto OliveiraSecretrio de Desenvolvimento Territorial

    Rui L eandro da Silva SantosCoordenao Geral dos Territrios Quilombolas

    Caio Galvo de FranaCoordenador-Geral do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural

    Adriana Lucinda LopesCoordenadora-Executiva do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural

    Andrea Bu t toCoordenadora-Geral do Programa de Promoo da Igualdade de Gnero, Raa e Etnia

    Nead Debate 13Copyright 2006 by MDA

    Projeto grfico, capa e diagramaoMrcio Duarte m 1 0 Design Grfico

    Ilustrao da pgina 2: Mrcio Duarte, sobre foto de David Carlos Ramalleira Giner

    R evisoRejane de Meneses e Yana Palankof

    Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (mda)www.mda.gov.br

    Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural (nead)s c n , Quadra 1, Bloco C, Ed. Trade Center, 5o andar, sala 501 cep 70711-902 Braslia/DFTelefone: (61) 3328 8661 www.nead.org.br

    pct mda/iica Apoio s Polticas e Participao Social no Desenvolvimento Rural Sustentvel

    I37i

    Incra e os desafios para regularizao dos territrios quilombolas : algumas experincias./ Aniceto Cantanhede Filho. Andra Flvia Tenrio Carneiro. Caroline Ayala ... [ et al.]. --Braslia : MDA : Incra, 2006. 184 p. ; 15,5 x 22,5 cm. (NEAD Debate, 13).

    Vrios autores

    I. Cantanhede Filho.Aniceto. II. Carneiro, Andra Flvia Tenrio. III. Ayala, Caroline. IV MDA. V. Srie. 1. Territrios quilombolas regularizao - Brasil. 2. Direito agrrio Brasil 3. Quilombos aspectos culturais Brasil. 4. Etnografia CDD 305.88196

  • O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilombolas

    Sumrio

    Introduo 10Rui Leandro da Silva Santos e Renata Leite

    Antropologia

    A pesquisa antropolgica nos quilombos: uma experincia 14Aniceto Cantanhede Filho

    A atualidade dos quilombos 15Trabalho de campo e relatrios 19

    Os vrios planos de organizao social em duas situaes especficas: Mates dos Moreira e Santa Joana (no municpio de Cod-MA) 23Identidade tnica 23Grupos de parentesco 25Unidade residencial 27Unidade estabelecida a partir dos integrantes de uma Associao formalmente estabelecida 30Identidade religiosa 31

    Concluso 33Referncias 35

  • N e a d D e b at e 1 3

    Os desafios quilombolas da sustentabilidade e do etnodesenvolvimento: algumas consideraes 36Caroline Ayala e Trcio Fehlauer

    Introduo 37A condio quilombola e seus deslocamentos 37Sustentabilidade e autonomia quilombola: a So Miguel 41Consideraes finais 46Referncias 47

    Reconhecimento de territrios quilombolas em Mato Grosso: comentrios preliminares 48Renata Bortoletto Silva

    Apresentao 49A presena dos negros em Mato Grosso 50As comunidades de Mata Cavalo e Lagoinha de Baixo 52Referncias 56

    Jurdico

    Remanescentes de quilombos, ndios, meio ambiente e segurana nacional: ponderao de interesses constitucionais 57Leandro Mitidieri Figueiredo

    Direito constitucional dos remanescentes de quilombos propriedade de suas terras 58Ponderao: etapas e parmetros 60Terras de quilombo versus propriedade privada, terras pblicas e reforma agrria 63Terras de quilombo versus terras indgenas 64Terras de quilombo versus meio ambiente 65Terras de quilombo versus segurana nacional 67Referncias 68

  • O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilombolas

    De quem este quilombo? [] Era s o que me faltava! 70Luciana Job

    Da legislao aplicvel espcie 78Da Conveno no 169 da OIT 78Do Decreto no 4.887/03 79Da Lei no 4.132/62 80Do Decreto-Lei no 3.365 83

    Convnios

    Reconhecimento de territrios quilombolas: a experincia do Convnio de Cooperao Tcnica na Bahia 85Guiomar Inez Germani e Gilca Garcia de Oliveira

    Introduo 86Procedimentos metodolgicos 90

    O planejar 90O fazer 95O desenvolver 98

    As comunidades 99Consideraes finais 114

    Territrios quilombolas no Esprito Santo: a experincia do Sap do Norte 116Apresentao 117Celeste Ciccarone

    Quilombo: autodefinio, memria e histria 123Osvaldo Martins de Oliveira, Dalvia Bento Bulhes e Francieli Marinato

    Territrio de saberes 130

  • N e a d D e b at e 1 3

    Simone Raquel Batista Ferreira

    O jurdico e sua ressemantizao 135Mariza Rios e Sandro Jos da Silva

    Consideraes finais 140Referncias 142

    Demarcao de territrios quilombolas: a questo tcnica e seus impactos sociais 143Andrea Flvia Tenrio Carneiro e Sue Nichols

    Por que escolher um territrio quilombola? 145O processo de demarcao e medio de territrios quilombolas 146O significado da mudana do referencial geodsico 149O territrio quilombola de Castainho 150As aes do Projeto PIGN em Castainho 151

    a) Estrutura geodsica para o georreferenciamento 153b) Organizao dos dados do levantamento cadastral realizado 155

    I Workshop sobre Territrios Quilombolas questes sociais, legais e tcnicas 157Resultados esperados do Projeto PIGN 157Referncias 158

    Tcnica

    O processo de regularizao fundiria dos territrios quilombolas no Rio Grande do Norte: uma experincia compartilhada 159Flvio Lus Assiz dos Santos e Julie Cavignac

    Territrios quilombolas e a regularizao fundiria 160

    Quilombolas no Rio Grande do Norte 163O processo de regularizao: a experincia do Rio Grande do Norte 165

  • O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilombolas

    Algumas perspectivas 169Referncias 170

    Cad o quilombo que estava aqui? Identificar para regularizar 172Ieda Cristina Alves Ramos e Jos Rui Cancian Tagliapietra e Sebastio Henrique Santos Lima

    Formao dos quilombos no Rio Grande do Sul 173O papel institucional na regularizao dos territrios quilombolas 174As parcerias estratgicas no processo de regularizao fundiria dos quilombos do Rio Grande do Sul 176

    Reestruturao interna da Superintendncia Regional do Incra 176Aproximao com as comunidades quilombolas e o Movimento Negro 177Ministrio Pblico um acompanhamento que pode sociabilizar experincias 178Os rgos pblicos uma integrao que transversaliza a poltica 178A academia na produo do conhecimento 179

    Consideraes finais 180Referncias 182

  • Introduo

    Rui L eandro da Silva SantosCoordenao-Geral de Regularizao dos Territrios Quilombolas

    R enata L eitePrograma de Promoo da Igualdade de Gnero, Raa e Etnia

  • E ste livro o resultado de uma iniciativa do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria de reflexo sobre os pro-cedimentos da regularizao dos territrios quilombolas a partir dos novos marcos legais constitudos pela gesto do presidente Lula no que se refere ao Decreto no 4.887 de 20 de novembro 2003, o qual regulamenta o proce-dimento para identificao, reconhecimento, delimitao, demarcao e ti-tulao das terras ocupadas por comunidades remanescentes de quilombos. O Ministrio do Desenvolvimento Agrrio, por intermdio do Incra, tem a incumbncia de executar o que estabelece o artigo 68 do Ato das Dis-posies Constitucionais Transitrias da Constituio Brasileira de 1988, que diz: Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos e de implementar os princpios regedores da Conveno no 169 da Organizao Internacional do Trabalho

    Conveno sobre Povos Indgenas e Tribais em Pases Independentes mes-mo antes de promulg-la por meio do Decreto no 5.051, de 19 abril de 2004.

    O Decreto no 4.887 de 20 de novembro de 2003 tem como avanos a possibilidade de desapropriao de reas particulares para fins de reco-nhecimento desses territrios, bem como a criao de instrumentos e polticas de etnodesenvolvimento para garantir a preservao das suas ca-ractersticas culturais. Ainda se destaca nessa gesto a criao do Programa Brasil Quilombola, como uma poltica de Estado para essas comunidades, abrangendo um conjunto de aes integradas entre diversos rgos go-vernamentais e com suas respectivas previses de investimentos do PPA

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    (Plano Plurianual) 2004-2007, que ficou sob a coordenao da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (Seppir).

    Outro instrumento fundamental que traduz o compromisso do go-verno Lula com as comunidades quilombolas o II Plano Nacional de Reforma Agrria. Nele foi reconhecida

    [] a diversidade social e cultural da populao rural e as especificidades vinculadas s relaes de gnero, gerao, raa e etnia que exigem abordagens prprias para a superao de toda forma de desigualdade. Reconhece os direitos territoriais das comunidades rurais tradicionais, suas caractersticas econmicas e culturais, valorizando seu conhecimento e os saberes tradicionais na promoo do etnodesenvolvimento.

    Tambm no II PNRA, o governo federal reafirmou seu compromisso com os quilombolas por meio de outras polticas para alm da regula-rizao fundiria:

    Alm das aes voltadas para a regularizao fundiria, o II PNRA prev aes de promoo do etnodesenvolvimento e de garantia da segurana alimentar e nutricional das comunidades quilombolas. Trata-se de aproveitar suas experin-cias histricas e os recursos reais e potenciais da sua cultura, de acordo com projetos definidos segundo seus prprios valores e aspiraes, portanto a partir da capacidade autnoma de uma sociedade culturalmente diferente para guiar seu desenvolvimento.

    Para concretizar essas conquistas, novos desafios foram colocados para o Incra, como a reviso das normas e dos procedimentos, a capacitao dos servidores, o fortalecimento institucional e a criao da Coordenao-Geral de Regularizao de Territrios Quilombolas. Para dar andamento s aes de reconhecimento, regularizao e titulao das comunidades quilombolas, foi incorporado ao quadro funcional do Incra o profissional de antropologia, reforando a efetivao desta poltica.

    A publicao O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilombolas: algumas experincias uma oportunidade de acompanhar os percalos e os avanos no processo de regularizao das terras qui-

  • 13O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilombolas

    lombolas, apresentados por tcnicos, antroploga(o)s e juristas, com suas experincias em diferentes regies do pas. Os artigos aqui reunidos abordam os temas primordiais para o procedimento de regularizao dos territrios quilombolas, o que permite um debate dentro das instituies MDA/Incra e o acompanhamento por parte da sociedade.

    O livro inicia discutindo o processo de institucionalizao da condio quilombola e a forma como aspectos culturais tm papel fundamental nas prticas de sustentabilidade. Mostra tambm como a pesquisa de campo, a etnografia, um importante instrumento para o processo de regularizao.

    Os textos sobre a reflexo jurdica, apresentados por procuradores do Incra, discutem os aspectos da aplicabilidade do artigo 68 do ADCT da Constituio Federal e se propem a relatar as diversas situaes de sobre-posio de direitos constitucionais relativos a territrios quilombolas.

    Com o objetivo de demonstrar as prticas desenvolvidas por meio dos convnios com entidades parceiras para a construo dos Relatrios Tcnicos de Identificao e Delimitao, esta publicao apresenta relatos sobre cinco comunidades quilombolas na Bahia, o territrio quilombola Sap do Norte, no Esprito Santo, e uma experincia pontual do georre-ferenciamento do territrio quilombola de Castainho.

    Finalmente, a publicao encerra-se com uma reflexo da equipe tcnica que retrata o importante processo de construo dos itinerrios dessa temtica nas Superintendncias Regionais do Incra e as estratgias de mediaes com as instituies pblicas e a sociedade.

    O Ministrio do Desenvolvimento Agrrio, por meio do Programa de Promoo da Igualdade de Gnero, Raa e Etnia, o Incra, por intermdio da Coordenao-Geral de Regularizao de Territrios Quilombolas, e o Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural agradecem aos autores, que prontamente aceitaram o convite para participar desta publicao, pela sua colaborao.

    Entendemos que a iniciativa de relatar o trabalho cotidiano da regularizao dos territrios quilombolas, explicitar angstias, dificul-dades, preocupaes e propostas contribui para essa prtica ainda em construo. Acreditamos tambm que a est o mrito desta publicao. Boa leitura!

  • A pesquisa antropolgica nos quilombos: uma experincia*

    Aniceto Cantanhede FilhoAntroplogo com mestrado em Antropologia Social pela Universidade de Braslia (UnB).

    Membro da coordenao-geral do Centro de Cultura Negra do Maranho entre 1998 e

    2001. Gerente de Projetos na Subsecretaria de Polticas para Comunidades Tradicionais

    da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (Seppir).

    A n t r o p o l o g i a

  • *PartedesteartigofoipublicadacomottuloRelatriosdeidentificaoumaexperincia,nolivroVida de negro no Maranho: uma experincia de luta, organizao e resistncia nos territrios quilombolas,publicadoem2005peloCentrodeCulturaNegradoMaranho(CCN).

    A atualidade dos quilombos

    O conceito de quilombo tem sid o discu tid o com o intuito de buscar uma nova configurao em vista da emergncia de situaes sociais que tm procurado o reconhecimento como tal com vistas ao amparo constitucional previsto pelo artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias da Constituio Federal de 1988. Pode-se assegurar que a noo de quilombo antes de 1988 tinha sido remetida apenas ao perodo em que vigorou a escravido legal no Brasil. No entan-to, com o advento de novas situaes no cenrio nacional, cujos agentes sociais buscavam a titulao dos territrios que ocupam centenariamente, podemos perceber a emergncia de uma diversidade e riqueza de formas em que se desdobraram historicamente as formaes sociais que vieram dar nas chamadas comunidades negras rurais no Brasil.

    Apesar de a palavra quilombo ser de origem africana, a definio utilizada na historiografia brasileira at recentemente estava baseada em uma resposta do Conselho Ultramarino ao rei de Portugal em 1740. Essa definio calcada na idia de fuga, no estabelecimento de uma quantidade mnima de fugidos e no suposto isolamento no recesso das matas, como apontou Alfredo Wagner B. de Almeida na introduo ao livro Frechal Terra

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    de Preto, editado em 1996 em conjunto pelo Centro de Cultura Negra do Maranho e pela Sociedade Maranhense de Direitos Humanos. Esse autor argumenta que essa noo ficou como que congelada na historiografia sobre o perodo escravista. Aponta ainda pelo menos dois historiadores do perodo que j registravam elementos que contradizem essa definio. A questo, portanto, a emergncia de situaes no exatamente postas como isoladas. Nas situaes reconhecidas como grandes marcos da luta quilombola, sempre se encontram referncias negociao da produo. Mesmo para os quilombos sistematicamente situados no incio do processo de escravizao, como o de Palmares, h a ntida indicao disso. Outras re-ferncias de importncia so os quilombos do Ambrsio (em Minas Gerais), Turiau e Lagoa Amarela (no Maranho), Quariter (Mato Grosso), etc.

    A abordagem sobre quilombos, antes reduto de historiadores, a qual figurava como coisa do passado, passa a ser encampada tambm por antroplogos ocupados com situaes sociais concretas, do ponto de vista que estabelecem contatos com pessoas de carne e osso, sendo esses agentes sociais produtores de um conhecimento sobre sua histria que designamos de memria social, que nos obriga todos, tanto historiadores como antroplogos, a repensar nossos conceitos.

    necessrio, portanto, relativizar, fazer uma leitura crtica daquela definio. A representao frigorificada estava inclinada a interpretar os quilombos como algo que estava fora, isolado, para alm da civilizao, conforme apontou o mesmo Alfredo Wagner B. de Almeida.

    A partir de situaes concretas encontradas hoje na rea rural que remetem ao passado desses vrios grupos, podemos perceber um fio histrico de continuidade entre a luta pela liberdade no perodo em que vigorou a escravido legal e a luta por manter a autonomia, a qual constitui a mesma histria, continuamente reproduzida at hoje pelas chamadas comunidades negras rurais.

    Se pensarmos a escravido como uma forma de imobilizar a fora de trabalho, conforme apontou Alfredo Wagner Berno de Almeida, e principalmente a luta por liberdade, no perodo de escravido legal no

    Almeida,AlfredoWagnerB.de.Otrabalhocomoinstrumentodeescravido.Humani-dades,anoV,n.7,p.58-67,Braslia,EditoraUniversidadedeBraslia,988.

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    Brasil, como uma luta por autonomia no processo produtivo, conforme aponta o mesmo Alfredo Wagner em outro texto, podemos perceber o fio de continuidade das lutas desses grupos que perduraram assinatura da lei que aboliu a escravido legal.

    A autonomia no processo produtivo constituiu-se no principal fator de luta desses grupos. Ela se configurava tanto na reduo do poder de coero dos grandes proprietrios, quando estes ltimos eram obrigados a fazer concesses aos trabalhadores escravizados, quanto na constituio de ambientes prprios, mais ou menos separados dos locais onde antes se processava a escravizao.

    Flvio Santos Gomes demonstra que trabalhadores escravizados em fazendas pertencentes Ordem Beneditina em Iguau, no Rio de Janeiro, em meados do sculo XIX, lograram estabelecer uma grande autonomia, produzindo diretamente para o mercado e negociando com os prprios beneditinos, sem necessariamente ter de fugir. Com isso queremos demonstrar, seguindo Alfredo Wagner B. de Almeida, que a fuga, o principal operante na definio anterior de quilombo, uma caracterstica que no nos diz muito, tendo em vista a diversidade de formas novas que vamos encontrando no contato agora efetuado com agentes sociais que historicamente tm reproduzido as lutas por manu-teno de sua autonomia, esta sim o operante mais importante para se pensar um conceito moderno de quilombo. Por que determinar uma diferena entre aqueles que fugiram e os que internamente conseguiram estabelecer uma correlao de foras que propiciaram, com menores riscos, a autonomia que outros buscavam conseguir pelo afastamento do lugar de escravido? Mesmo esse distanciamento faz parte mais da

    2Almeida,AlfredoWagnerB.de.Quilombos:sematologiafaceanovasidentidades.Fre-chal Terra de Preto: quilombo reconhecido como reserva extrativista.SoLus:SMDDH/CCN,996.p.8.

    Gomes,FlvioSantos.QuilombosdoRiodeJaneironosculoXIX.In:Reis ,JooJ.;Gomes,FlvioS.(Orgs.).Liberdade por um fio: histria dos quilombos no Brasil.SoPaulo:CompanhiadasLetras,996.p.280.

    Almeida,AlfredoWagnerB.de.Quilombos:sematologiafaceanovasidentidades.Fre-chal Terra de Preto: quilombo reconhecido como reserva extrativista.SoLus:SMDDH/CCN,996.p..

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    definio antiga de quilombo do que das situaes que de fato aconte-ciam. Conforme j reconhecia Perdigo Malheiro, em 1866, o quilombo como um isolado era absolutamente uma construo, j que os dados histricos tm demonstrado que necessitavam de bens, tais como armas e munies, e comerciavam produtos que produziam, tais como ouro, castanha e produtos agrcolas.

    Se nos apoiamos na luta por autonomia no processo produtivo, po-demos concluir que a luta dos quilombolas no acabou com a abolio oficial da escravido. Ela continua at os dias de hoje, buscando assegurar a posse das terras que conquistaram.

    a autonomia baseada na agricultura familiar aquilombando as sedes das fazendas. Alfredo Wagner B. de Almeida, ao considerar a transio econmica do escravizado ao campons livre relacionada aos quilombos, assim se refere a essas situaes:

    Os grandes proprietrios, nesse contexto, deixam de ser os organizadores e controladores da produo. Ocorre um desmembramento informal dos extensos domnios da grande plantao, que no mais uma unidade de produo, seno uma constelao de pequenas unidades produtivas, autnomas, baseadas no trabalho familiar, na cooperao simples entre diferentes grupos domsticos, e no uso comum dos recursos naturais.

    A continuidade da luta por autonomia e contra a imobilizao da fora de trabalho pode ser verificada na histria recente dessas unidades sociais, hoje chamadas de comunidades negras rurais. No Maranho, a histria oral coletada marcada pelas lutas recentes contra tentativas de desapossamento. A histria oral da unidade social formada pelos po-voados de Morro, Santa Joana e Santa Maria, localizados no municpio de Itapecuru Mirim, pontilhada desses momentos em que resistiram a tentativas de desapossamento, que tm se dado continuamente desde

    5ConformeapontouAlfredoWagnerB.deAlmeida(996,p.). 6Almeida,AlfredoWagnerB.de.Quilombos:sematologiafaceanovasidentidades.Fre-

    chal Terra de Preto: quilombo reconhecido como reserva extrativista.SoLus:SMDDH/CCN,996.p.-9.

  • 1O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilombolas

    a dcada de 1930. Em Jamary, no municpio de Turiau, resistem desde 1977 a manobras cartoriais e a ameaas de pistoleiros perpetradas por famlias detentoras de poder local naquele municpio. Em Santo Antnio dos Pretos, municpio de Cod, a histria uma histria de resistncia tambm reiniciada na dcada de 1930, buscando inclusive os meios legais e enfrentando tambm o poder local.

    O desenvolvimento das pesquisas e a ao concreta de assessoria, portanto, permitiram elaborar uma perspectiva crtica mais consistente noo frigorificada de quilombo.

    Trabalho de campo e relatrios

    Em 1997, desenvolvi para o Projeto Vida de Negro, da Sociedade Mara-nhense de Direitos Humanos e do Centro de Cultura Negra do Maranho, seis relatrios que serviram para subsidiar as reivindicaes de titulao de territrios quilombolas no Maranho.

    A perspectiva, a partir da presso e das negociaes que se sucederam, era de fazer com que o Estado assumisse o encaminhamento de aes de titulao, de acordo com o artigo 68 do Ato das Disposies Constitu-cionais Transitrias (ADCT) da Constituio Federal e do artigo 217 da Constituio Estadual do Maranho.

    O objetivo era fazer uma descrio da situao social e das refern-cias territoriais correspondentes, apresentando-se tambm o problema recorrente do tempo reduzido e dos parcos recursos. No entanto, se o reduzido tempo passado em cada situao no me permitiu aprofundar como devido o conhecimento de cada situao particular, a variedade de situaes possibilitou a construo de uma imagem mais ampla das situaes que no Maranho podem vir a ser compreendidas com base na noo de quilombo resultante da discusso que se coloca com o advento do artigo 68 do ADCT.

    Em 1998, tambm fiz parte de uma equipe de pesquisadores encarre-gada de um conjunto de pesquisas realizadas para a Fundao Cultural Palmares, do Ministrio da Cultura, cuja coordenao no Maranho esteve a cargo da profa. dra Maristela de Paula Andrade. Essas pesquisas visavam identificao de unidades sociais designadas pela Constituio

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    Federal como remanescentes de quilombos, com fins de reconhecer seus direitos relativos aos territrios que ocupam.

    Estive, nesse contexto, em campo de 18 a 24 de maro e de 23 de abril a 2 de maio de 1998 em comunidades quilombolas do municpio de Al-cntara. O trabalho de campo foi antecedido de pesquisa bibliogrfica relativa aos municpios abrangidos pela pesquisa.

    A seguir passo a relatar como foi desenvolvido o trabalho, tomando algumas situaes como paradigmticas.

    Inicialmente, para a pesquisa de campo, necessrio que o antroplogo esteja munido do seu instrumental terico. Para o caso dos quilombos, mais ou menos consensual no meio profissional a utilizao da teoria dos grupos tnicos, invariavelmente retomando um autor j clssico na disciplina no que diz respeito a esse tema, que Fredrik Barth. Tambm outros elementos da formao terica do antroplogo foram acionados, como o conhecimento terico sobre campesinato, relaes de parentesco, redes de relaes sociais. No meu caso especfico, contava tambm com o background do conhecimento das etnografias sobre grupos negros rurais no Brasil, tendo elaborado anteriormente um trabalho de crtica terica sobre essas etnografias que remontam dcada de 1940.

    Agora passemos ao trabalho de campo propriamente dito. O primeiro perodo de campo constituiu pesquisa exploratria que permitiu levantar dados bsicos. Cada situao social um recorte da realidade feito pelo pesquisador em consonncia com o que observou em campo, o que pode resultar que uma situao social abarque uma ou mais unidades sociais formadas pelos grupos familiares correspondentes a cada localidade. Essas unidades sociais tm identidades especficas e histrias particulares e, dependendo do recorte sociolgico feito, so percebidas como estabe-lecendo identidades que formam o conjunto, que se distingue, por sua vez, de outros conjuntos ou unidades sociais. A cada conjunto desses que chamo de situao social.

    Posteriormente, em uma segunda etapa de pesquisa de campo, essas informaes so complementadas, constituindo uma massa de informa-es que, diga-se de passagem, nunca totalmente utilizada na elaborao do relatrio de pesquisa. Para uma dessas situaes sociais, Mates dos Moreira, o reduzido tempo de trabalho de campo (de 19 a 25 de fevereiro

  • 21O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilombolas

    e de 22 a 26 de maro de 2002) impe a necessria reserva relativamente a vrios aspectos, mas, sem dvida, a experincia anterior com outro grupo vizinho (Santo Antnio dos Pretos) ajuda a perceber as variaes e as recorrncias entre situaes to prximas geograficamente mas que comportam suas especificidades. Considero o relatrio produzido com esse tempo de trabalho de campo um relatrio preliminar, necessitando de um retorno para complementao de informaes e uma estada mais prolongada. Na minha experincia de pesquisa, considero que foram de suma importncia os intervalos entre as estadas em campo, pois estes permitem elaborar o pensamento e voltar a campo com novas questes que precisam de elucidao. A pesquisa antropolgica necessariamente uma pesquisa de longa durao. Essa continuao at hoje no foi feita por falta de disponibilidade de tempo e de recursos.

    Geralmente comecei os relatrios com a localizao dos lugares a que me referia. No caso de Santo Antnio dos Pretos, a primeira situao trabalhada, percebi em campo quatro principais aglomerados de casas mais ou menos distanciados uns dos outros a que chamei de povoados. Na construo do texto do relatrio, comecei por explicitar as refern-cias a esse termo e a uma unidade maior que engloba esses povoados, a que chamei de territrio, definindo o que entendia por povoado e por territrio no contexto daquela situao. Diante da impossibilidade de tomar as prprias categorias nativas por falta de tempo suficiente de trabalho de campo, elegi categorias descritivas, categorias estas que no necessariamente correspondem s categorias nativas. Considerei mais importante dar a conhecer o uso que estava fazendo daquelas categorias naquele contexto, explicitando para quem l que a categoria utilizada no era um dado natural, mas sim tratava-se de usar categorias para permitir construir imagens do observado.

    No territrio referido a Santo Antnio dos Pretos, que engloba os povoados de Santo Antnio, Barro Vermelho, Ilha e o Centro do Expedito, pude perceber a complexidade de uma abordagem colocada pela perspectiva de ver integrados agentes sociais e territrio. Para essa situao social existia pesquisa antropolgica datada da dca-da de 1940. Contudo, a perspectiva que se colocava agora era a de perceb-la relacionada a um territrio, o que inclui outros pequenos

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    aglomerados de casas mais ou menos distanciados que recebem no-mes particulares. Isso tambm implica lideranas e diferenciao in-terna, e, ainda, por meio de quem feita a introduo do pesquisador. nessa relao que se vai percebendo a vinculao de cada um na luta contra o desapossamento e as divergncias internas quanto ao estabeleci-mento dos roados, o sentido moral da luta e a expectativa de direito sobre a terra, assim como tambm a diversidade das abrangncias territoriais.

    De todo modo, como nos casos de Santo Antnio dos Pretos e Ita-matatiua, que contavam com material etnogrfico, e Morro/Santa Maria, que contava com documentos antigos, o cotejamento da memria oral com esse material foi extremamente enriquecedor.

    No caso de Morro/Santa Maria, a prpria denominao territorial problemtica, pois utilizar a denominao territorial que remete ao registro cartorial pode enfatizar a preponderncia poltica de determi-nada liderana aceita com reservas por outros povoados. No entanto, foi l que pude perceber realmente que quilombo no coisa do passado, porque a luta por autonomia, por liberdade, no cessou com o advento da lei que declarou extinta a escravido. A histria desses grupos uma constante luta pela manuteno da autonomia conseguida. A terra sem dono a nica possibilidade. Dessa forma, os quilombos continuam se reproduzindo at os dias de hoje. Ali aprendi tambm que macumba no um termo exgeno, vindo do Rio de Janeiro. como designam mesmo a funo religiosa ali desenvolvida.

    Em Itamatatiua, outra das situaes j referidas, Pedro de Oliveira foi taxativo: aqui nunca fomos escravos, os pretos da santa sempre foram pretos livres. Aprendi a que a histria deles foi construda na liberdade. Antes de se constiturem como pretos livres no existiam na verdadeira acepo da palavra os pretos de Itamatatiua. Isso significa que eles no tm uma histria anterior que incorpore a escravido.

    Mesmo outras questes que at agora no parecem responder a in-dagaes intelectuais so saborosas experincias de vida, incorporadas a um contexto maior de experincias relativizadoras, para as quais tambm voc deve estar treinado para saber aproveit-las.

    Aprendendo com eles, alargamos nosso conhecimento do mundo. Devemos levar verdadeiramente a srio quando Clifford Geertz diz que

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    no estudamos aldeias, mas em aldeias. a diversidade que nos faz pensar sobre nossas prprias categorias e question-las. O problema maior no so as categorias deles, mas as nossas.

    Os vrios planos de organizao social em duas situaes especficas: Mates dos Moreira e Santa Joana (no municpio de Cod-MA)

    C. Geertz (1967) chama de planos de organizao social o modelo que utilizou para descrever as variaes de um grupo comum de temas organizacionais que observou em vilarejos balineses. Esse modelo consiste no fato de que cada uma das estruturas sociais baseada num princpio distinto de filiao social e ajustada uma outra somente at onde parece essencial. Aqui utilizo um modelo bem mais reduzido, mas partimos da idia proposta por Geertz. Desse modo, alm da identidade tnica conformando um tipo organizacional, segundo F. Barth (1998) havia, desde 1969, considerado em relao aos grupos tnicos, percebermos na situao social em apreo a interao com outros tipos organizativos, ou planos de organizao social, tais como a unidade estabelecida a partir das relaes de vizinhana e a partir da organizao de uma associao formal. Alm disso, a prpria unidade tnica internamente recortada por grupos de parentesco, o que representa uma quebra dentro de um dos planos de organizao social.

    Por fim, no demais reafirmar que tomo explicitamente os planos de organizao social como um modelo interpretativo que evidentemente no esgota a situao social, mas permite integrar outras dimenses, alm da identidade tnica, em um mesmo esquema interpretativo.

    Identidade tnica

    Manuela Carneiro da Cunha (1987, p. 107), ao fazer a distino entre etnicidade e outros tipos de organizao social, tais como os grupos de parentesco, afirma que essa distino se prende mais retrica utilizada para demarcar o grupo. Grupos de parentesco reivindicariam genealo-gias compartilhadas, enquanto grupos tnicos invocariam uma origem e cultura comuns.

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    No caso observado, o parentesco presumido, aqueles laos para os quais no se consegue estabelecer linhas de descendncia que possam comprovar a ligao, conforma uma suposta origem comum, um estado inicial e anterior chegada de outros sujeitos sociais adiante explicitados. Como sabemos, a suposta origem comum um dos principais elementos na caracterizao de grupo tnico em F. Barth (1998, p. 193-194). Mas bem antes de Barth, Weber j tomava a suposta origem comum como o elemento conformador dos grupos tnicos.

    Para alm do parentesco presumido, h tambm um certo espraiamento do compartilhamento dessa identidade que toma como base uma origem comum. Trata-se de uma certa tendncia a casar dentro desse grupo, o que no significa endogamia de localidade, j que a unidade tnica se estende a localidades fora do territrio, tais como Santo Antnio dos Pretos, Iga-rana, Maraj, Saudade e a vrias outras localidades tidas como de pretos.

    Existe uma limitao mesmo no parentesco presumido, o que per-mite se conceber uma identidade tnica que recobre os pretos de grupos circunvizinhos, aqueles com os quais o casamento efetuado.

    Para Barth,

    a fronteira tnica canaliza a vida social ela acarreta de um modo freqente uma organizao muito complexa das relaes sociais e comportamentais. A identificao de outra pessoa como pertencente a um grupo tnico implica com-partilhamento de critrios de avaliao e julgamento. Logo, isso leva aceitao de que os dois esto fundamentalmente jogando o mesmo jogo, e isto significa que existe entre eles um determinado potencial de diversificao e de expanso de seus relacionamentos sociais que pode recobrir de forma eventual todos os setores e campos diferentes de atividade. De outro modo, uma dicotomizao dos outros [] como membros de outro grupo tnico, implica que se reconheam limitaes na compreenso comum, diferenas de critrios de julgamento, de valor e de ao, e uma restrio da interao (Barth, 1998, p. 196).

    Na situao social em causa, pretos e cabocos so dois termos utiliza-dos localmente para categorizar pessoas. So utilizados para referenciar indivduos, mas na verdade conformam grupos de indivduos que casam entre si. Neste caso, pretos e cabocos so categorias nativas. A princpio,

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    para indivduos pertencentes ao grupo dos outros moradores os chega-dos h poucas dcadas preto, ou mais especificamente os pretos, uma categorizao grupal que remete especificamente cor da pele. Entre os chamados pretos, caboco , excetuando-se seus prprios parentes, todo aquele que tenha a pele clara (para os padres locais).

    O territrio mencionado na situao social observada geralmente referido como Mates dos Moreira pelos pretos moradores de Mates, e como Fazenda Orcaisa pelos cabocos. Porm, disso no se deve concluir que a distino categorial que relaciona unidades tnicas discretas seja o nico vis organizativo que podemos encontrar entre os agentes sociais pesquisados. A identidade tnica apenas um dos planos de organizao social em que podemos recortar a realidade social em causa. Mesmo este plano pode ser subdividido, gerando um recorte interno, conforme nosso modelo, que permite visualizar a mesma totalidade com base em vrios planos sobrepostos que no necessariamente cobrem, cada um deles, todo o recorte social que estabelecemos como uma totalidade. Antes de passarmos a outros planos de organizao social, vejamos como os grupos de parentesco conformam um recorte interno ao plano que chamamos identidade tnica e como isso nos pode ajudar a compreender a teia de relaes sociais com base na qual construmos este modelo interpretativo.

    Grupos de parentesco

    A cada casa, em geral, corresponde um grupo domstico. O grupo doms-tico ideal compe-se de mulher, esposo e filhos. No entanto, na Matinha, existem casos de grupos domsticos formados por mulheres de meia-idade com filhos e casas de mulheres que vivem sozinhas. principalmente na Matinha tambm que esto na situao de terem sado da localidade e s h mais ou menos trs anos (aps a interveno do Incra) terem voltado a construir suas casas na localidade.

    Entre os pretos podemos distinguir dois grupos de parentesco. To-mando como base a centralidade poltica exercida por Emlia Moreira, iniciamos a descrio das relaes de parentesco a partir da rede propi-ciada por sua me, Antnia Moreira Guilhon. Tomando Antnia Moreira Guilhon como ego, podemos distinguir uma parentela formada por suas

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    irms e respectivos grupos domsticos. Essa parentela estende-se para os descendentes da irm de sua me. Laos de parentesco estabelecidos na gerao ascendente fornecem tambm base para a atualizao de relaes de vizinhana, concorrendo para o fortalecimento da unidade poltica que atua ante as injunes derivadas dos arranjos relativos ao controle da associao de moradores.

    A parentela de Antnia Guilhon, que se estende ao Mato, e mais a cadeia de parentes a ela ligada estabelecida na Matinha forma o que estou chamando de um grupo de parentesco. Neste grupo, a princpio, configura-se uma tendncia descendncia matrilinear, apesar de aqui e ali aparecerem homens servindo de elo s linhas de descendncia, o que configura um sistema indiferenciado de descendncia. Aqui o grupo domstico matrifocal. A residncia neolocal, com forte influncia da matrifocalidade, o que significa que novas unidades domsticas so estabe-lecidas ao lado da casa da me. No caracterizam uma famlia extensa por terem as novas famlias nucleares sua prpria residncia e implantarem roas prprias, configurando uma unidade econmica distinta, apesar das obrigaes que os filhos tm para com sua me.

    Nesse grupo de parentesco, nota-se um indcio de um padro de casamento em que os homens saem, as mulheres ficam e seus maridos vm de fora. Isso implica uma no notada presena do irmo da me. Mas de onde vm os maridos? Eles so provenientes tambm de outras localidades caracterizadas como de pretos, externas ao territrio. Mesmo entre os chamados cabocos h uma reproduo do padro de casamento com homens de fora: os homens relatam que vieram de fora e casaram com mulheres cujas famlias j residiam no territrio em causa. Pode-mos perceber que h uma exogamia de localidade conjugada com uma endogamia na unidade que chamamos de unidade tnica.

    Entre os pretos, um outro grupo de parentesco formado pelos descendentes de Toms. Esto principalmente concentrados no Mato, mas originam-se do Piranga, onde remanescem integrantes desse grupo. Tambm na Boa Esperana possvel encontr-los. No entanto, as relaes neste grupo de parentesco no so reforadas por relaes de vizinhana, j que entre o Mato e o Piranga fica a Matinha e o So Raimundo e os da Boa Esperana tm no cruzamento da identidade tnica com as re-

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    laes polticas um maior intercmbio com a Matinha. O subgrupo do Mato, formado pelos filhos de Dionsia Moreira, internamente coeso e integrado. Formam a maior parte do grupo dos pretos do Mato. a um integrante deste subgrupo que pertence a casa-de-forno utilizada pelos pretos do Mato para fazer farinha de mandioca.

    Nesse grupo de parentesco, apesar de indcios de matrifocalidade, os homens no saram. Aqui vrios grupos domsticos so chefiados por homens, no entanto o importante subgrupo do Mato no atua na direo da Associao de Moradores. Do Mato so scios mais atuantes outros pretos no vinculados ao grupo de parentesco e cabocos.

    Unidade residencial

    Um outro plano de organizao social representado pelas relaes de vizinhana, conformando tambm uma certa unidade formada a partir dos que residem em uma determinada localidade. Este plano transver-sal ao plano do parentesco, haja vista que nem todos os residentes em determinada localidade so parentes.

    Como a maioria dos camponeses do Maranho, em Mates eles vivem em agrupamentos residenciais mais ou menos distanciados uns dos outros. Essa conformao permite que as roas formem, nesse sen-tido, um conjunto com os agrupamentos residenciais. A relao entre a casa, esfera domstica e de reproduo, e a produo o principal elemento formador de unidades sociais no plano aqui chamado de unidade de vizinhana.

    As relaes de vizinhana fortalecem a atuao conjunta, permitindo que os grupos resultantes dessa unidade social possam atuar de forma coordenada em outros planos, tais como o da micropoltica das Asso-ciaes de Moradores. Contradies entre as lealdades advindas das relaes de vizinhana e as lealdades advindas do pertencimento tnico podem ser percebidas, gerando conflitos com a tendncia preponde-rncia das ltimas.

    No Mato so vinte residncias. Apesar de se notar uma distribuio espacial que remeteria a uma diviso baseada na linha tnica, essa diviso no demarca territrios diferenciados e, certamente, decorrente mais

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    da proximidade advinda da tendncia de os parentes morarem prximos uns dos outros, pois na verdade os caminhos de acesso facilitam a con-vivncia entre os dois grupos.

    Em outro aspecto, no entanto, a linha tnica parece funcionar: no que diz respeito ao uso da casa-de-forno. A casa-de-forno ou aviamento uma unidade de transformao da mandioca em farinha de mandioca. No Mato existem duas casas-de-forno, e apesar de a casa-de-forno de um dos integrantes do grupo dos pretos ser considerada com mais re-cursos, contando com motor a diesel para girar o equipamento que rala a mandioca, os cabocos no a utilizam.

    Na Matinha apenas duas unidades familiares no so ligadas por relao de parentesco s outras unidades que formam um grupo de pa-rentesco. Aqui as relaes de vizinhana so reforadas pelas relaes de parentesco. Observa-se uma maior interao e disponibilidade a ajuda mtua nos afazeres realizados no espao pblico ao longo do qual se dispem as residncias.

    As relaes de vizinhana permitem a troca de pequenos bens e ser-vios. Entre as mulheres, que se ocupam do trabalho de coleta e quebra do coco babau, as relaes de vizinhana concorrem para o trabalho conjunto, pois a coleta do coco feita idealmente em grupo ou pelo menos por duas mulheres.

    O So Raimundo conta com apenas trs residncias. Foi no passado um lugar de muitas moradias. Encontra-se em lugar mais alto e menos dado ao alagamento dos caminhos de acesso s roas. Pelo fato de estar situado em lugar mais alto, pode-se vislumbrar os extensos palmeirais que cercam a localidade.

    O So Raimundo indicado como o lugar onde foi fixada a casa-sede da propriedade de um certo Luca Costa, referida por alguns como a casona grande do So Raimundo do Luca. Na memria local subsistem referncias a tentativas de instalao de moradores (isto , unidades fa-miliares vindas de fora que se comprometem a explorar a terra e a pagar renda) por parte de Luca Costa.

    O Piranga conta com aproximadamente 25 residncias. Aqui os pretos so tidos como os descendentes dos antigos moradores, mas foram os

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    cabocos que organizaram a Associao de Moradores e estabeleceram os primeiros contatos com os padres de Capinzal do Norte, que recentemente se tornou sede do municpio do mesmo nome.

    Caladinho uma localidade composta por apenas sete residncias. No entanto, tem forte presena nos eventos relativos Associao de Moradores de Mates e Boa Esperana.

    A Boa Esperana conta com trinta residncias. Aqui est situado o grupo de vizinhana que mais aposta no modelo referido como de reforma agrria, por intermdio do Incra. A grande maioria das lideranas est ocupando a terra j h vrias dcadas, mas no descendente dos antigos moradores e portanto no categorizada como pretos.

    Apenas uma das lideranas tem ligaes de parentesco com o segundo grupo de parentesco dos dois em que se dividem os pretos, mas principal-mente est preso a vnculos de lealdade a lideranas do primeiro grupo que atualizam vnculos tnicos como forma de estabelecer pontes de amarrao da frgil teia da poltica local.

    nessa localidade que a tenso entre a unidade residencial e a identi-dade tnica sofre maior presso. Como a unidade residencial transversal aos outros planos de organizao social, h uma sobreposio de planos conflitantes, fazendo com que indivduos especficos se vejam divididos, tendo de administrar lealdades concorrentes.

    Por ltimo, a Ilha uma localidade que conta hoje com apenas quatro residncias. Est localizada no caminho que liga as outras localidades ao povoado de Santo Antnio dos Pretos. Lideranas de Santo Antnio dos Pretos reivindicam uma faixa de terras em que Ilha est localizada, no entanto os atuais indivduos referidos Ilha esto vinculados Asso-ciao de Moradores de Mates e Boa Esperana, participando de suas atividades e verbalizando um pertencimento no observado quando da pesquisa realizada em 1997 relativamente identificao de Santo Antnio dos Pretos.

    Apesar disso, alianas feitas pelo casamento entre famlias da Boa Espe-rana e da Ilha e entre famlias da Matinha e de Santo Antnio dos Pretos e a mudana em anos recentes de uma unidade familiar da Matinha para a Ilha permitem pensar em uma mais ampla rea em que so estabelecidas

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    alianas matrimoniais (dentro da referida endogamia tnica) e em que h participao recproca em festas e em rituais festivos do terec.

    Unidade estabelecida a partir dos integrantes de uma Associao formalmente estabelecida

    As Associaes renem moradores de vrias localidades. um plano dis-tinto do parentesco, da identidade tnica e mesmo da unidade estabelecida com base no local de moradia. No perodo da pesquisa de campo, eram duas as Associaes de Moradores existentes no territrio em causa.

    A organizao de associaes de origem recente. Uma das Associaes congrega moradores das localidades de Piranga e Igaraninha e a outra Associao congrega moradores das outras localidades.

    O modo como aqui se tenta apreender a realidade ao escolhermos ver essa mesma realidade como que articulada em diversos planos de organizao social no implica dizer que no haja interpenetrao des-ses vrios planos. Na verdade, ao avaliarmos como so preenchidos os cargos de direo de uma das Associaes, podemos perceber que apesar da preeminncia de uma das localidades no fornecimento de indivduos para o preenchimento do principal cargo da Associao, outros cargos so distribudos de acordo com o pertencimento a esta ou quela localidade.

    Pode-se notar tambm um certo choque entre a esfera pblica, tida como o espao dos homens, e a matrifocalidade, observada em uma das localidades e que se estende unidade de parentesco formada a partir dessa localidade. Sendo a assemblia da Associao o momento emble-mtico de representatividade da esfera pblica e a localidade em causa de importncia capital no que diz respeito antigidade de ocupao do territrio e centralidade poltica, de se esperar encontrar dificuldades no equacionamento das contradies relativamente a esses dois aspectos.

    A centralidade poltica referida, por sua vez, reforada pelas relaes de parentesco que tm como centro a localidade de Matinha,

    7MulheresdaMatinhasoporvezesconvidadasaparticipardoterec,variedadedecultoreligiosoafro-brasileiropraticadanomunicpiodeCod,quetemcomorefernciahistricaaprprialocalidadedeSantoAntniodosPretos.

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    mas que se estendem ao Mato. Tambm a unidade representada pelas relaes de vizinhana d a sustentao que permite, em um ambiente social em que a esfera pblica dominada pelos homens, uma mulher ser presidente de uma das Associaes tendo como vice-presidente sua filha, coordenando uma assemblia de scios quase inteiramente formada por homens.

    A unidade estabelecida a partir de uma associaes de moradores uma dimenso importante para cimentar alianas com indivduos no relacionados ao sistema de parentesco e ainda mais, fora da unidade tnica na qual so realizados os casamentos. A busca por estabelecer uma associao prpria restringe o leque de alianas polticas entre as unidades sociais relativas a cada localidade. Ademais, isso um indica-dor da representatividade destas, assim como tambm da disputa pela representao poltica, o que dinamiza a micropoltica local.

    interessante observar que o acionamento de redes de relaes externas (com implicaes na poltica interna) determina a entrada em campo do antroplogo, que tambm parte integrante do processo e necessariamente deve ser includo como parte da situao social observada e descrita.

    Identidade religiosa

    Em Santa Joana, tambm no municpio de Cod, para alm dos planos de organizao social descritos para Mates dos Moreira, excluindo-se o fato de no conformarem vrias associaes formais, concorre para a complexidade da situao a existncia de diversas afiliaes religiosas.

    Aqui os chamados cabocos se vinculam mais igreja evanglica, enquanto os que esto vinculados pelo nascimento terra (os herdeiros) atualizam festas do catolicismo popular e, se no mantm mais um barraco para o tambor,

    8Tambmchamadoterec.ParaM.Ferretti(200,p.22),emboravriosestudiosostenhamfaladoemCod,ningumtratoumaisdetidamentedesuatradioreligiosaafro-brasileiramaisconhecidapormataouterec,desuainfluncianoTambordeMina(consubstanciadanalinhadamatadeCod)edasrelaesentreosterreirosdeCodeosdeSoLus.

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    est bem viva na memria a poca em que Legua era cultuado. Seus parentes que moram na cidade continuam participando de terreiros, e alguns, se so convidados, vo tocar em terreiros de localidades vizinhas. A figura principal na hierarquia dos herdeiros afirma ser tocador h trinta anos em um terreiro no Dezessete, localidade situada no cruzamento entre a rodovia federal e a rodovia estadual que d acesso cidade de Cod, exatamente altura do quilmetro 17 desta ltima rodovia. Juntados aos herdeiros, no sentido de que no so vinculados igreja evanglica, esto outros cobertos pelas categorias morador (e, portanto, no herdeiro) e preto.

    Nonato Sena assim se expressa sobre suas ligaes com o tambor de Verequete:

    Alcancei tambm o Verequete.0 Moleque batendo tambor e todo mundo brin-cando, homens e mulher. Isso eu conheci. E s vezes tambm inda at ajudava tambm. Os meus tronco velho tambm era de dentro da tribuna. E ento eles morreram e alcancei aquilo e sou tambozeiro tambm, da mesma profisso. Da mesma profisso assim porque eu encontrei e achava bonito, como achei mesmo, num ? Num temo salo, mas sobre o assunto da brincadeira eu gostei demais e acho bonito. E acho que tambm eu posso dar valor porque do tempo daquela do tempo antigo, do tempo dos escravido, ento eu acho que tambm pego um pedao de l, n? Intn sou da mesma gema. S que no fao uso, mas sou da mesma gema da brincadeira de terec.

    9SegundoM.Aug(999,p.,8,0),Legbaumadivindadenasregieseweefondooestedafrica.SegundoM.Ferretti(200,p.5-55),oTambordaMatadeCodtemcomochefeaentidadeespiritualLguaBogiBu[]que[]possuinomeecaractersticasquelembramoLegbadaomeano.ODaomfoiumantigoreinonooesteafricano.

    0NolivroO sentido dos outros, M.Auge(999,p.96,98)refere-seexistnciadesacerdotisasdadeusaAvleketeemcertasregiesdolestetogols.S.Ferretti(985,p.68-69)refere-seaAvereketeouVereketecomodivindadedecultosreligiososafro-brasileirosnoMaranhoecitaaindaOtviodaCostaEduardo,paraquemVereketeatuacomochefedascerimniasdoculto.Aguessy(985,p.29)tambmlistaAvleketecomodivindadefon.Ofon,segundoPessoadeCastro(985,p.77-78)fazpartedogrupodelnguasfaladasnaRepblicadoBenin,noTogoeempartedeGana.

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    Concluso

    O dado etnogrfico est a, esperando para ser interpretado. E no me estou referindo s ao dado etnogrfico de primeira mo. As publicaes esto cheias de material etnogrfico que pode ser reinterpretado, dependendo da perspectiva de quem l, dos diferenciados insights tericos.

    Essa perspectiva tem a ver com o lugar da fala. Muitas afirmaes preconceituosas sobre as populaes negras s foram verdadeiramente questionadas quando indivduos oriundos dessa populao tiveram acesso ao que era produzido sobre eles. E aqui estou me referindo ao que foi produzido pelos antroplogos.

    Alguns antroplogos se colocam a questo: o dado etnogrfico sempre uma construo sobre o outro? Alguns tm radicalizado: . Desconstri-se a aura de objetividade do texto etnogrfico equiparando-o a um texto literrio. Dessa perspectiva o texto etnogrfico seria pura retrica. Uma sada para esse beco quase sem sada proceder busca da mediao na construo do texto etnogrfico. Ento aparece a possibilidade de construir um texto que no mais relegue o outro construdo a um plano puramente instrumental em nome da objetividade. E esse problema co-mea a surgir quando esse outro construdo comea a ler a etnografia, o que foi escrito sobre ele e a questionar a autoridade do antroplogo. a revolta do objeto. E esse outro se revolta exatamente quando objetivado. No deixa de entrar a o lugar da fala, de que lugar social o antroplogo enuncia seu discurso.

    necessrio refletir sobre nossas prprias categorias, principalmente porque especificamente quando estamos lidando com a questo dos qui-lombos no estamos separados da questo racial em que estamos inseridos como sujeitos. Mas isso assunto que j discuti em outra oportunidade e que pode ser tema de outra comunicao.

    A antropologia articulou-se em torno da crtica s categorias de pensamento ocidentais. Se a distncia cultural facilita esse trabalho de crtica, ao trabalhar com situaes mais prximas em que, aparentemente, se compartilha os mesmos conceitos pode-se ser levado a tratar o outro pelo mesmo. Por isso, estou utilizando sempre os termos nativos em itlico porque em geral tm sentido diverso do que est dicionarizado,

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    apesar de parecer a mesma lngua. Da mesma forma, uso o itlico para expresses em outras lnguas.

    So as aludidas representaes que, diante dos pressupostos tericos que assumimos, configuram a categoria de anlise quilombo como de pertinente uso relativamente ao grupo em causa. Ressalte-se aqui que os critrios de pertencimento que caracterizam os grupos tnicos e que afirmam etnia como um tipo organizacional esto presentes nas situaes referidas assim como tambm as representaes sobre uma histria do grupo que con-tinuamente reconstitudo e que invoca uma origem comum coetnea ao momento em que se afirma a autonomia produtiva. Essas representaes remetem a uma histria que se inicia com o momento em que deixam o trabalho subordinado a um senhor e passam a constituir unidades produtivas autnomas, baseadas no trabalho familiar combinado com o uso comum dos recursos ambientais por um conjunto definido de grupos domsticos.

    A luta por autonomia e contra a imobilizao da fora de trabalho, representada pela escravido e depois pelas tentativas de subordinar o trabalho pela privao ao uso da terra, permite intuir um fio de continui-dade na luta encetada pelas unidades sociais a quem hoje reconhecemos como comunidades quilombolas. A resistncia reduo condio de escravizado e, posteriormente, de trabalhador subordinado marca a histria desses grupos, que lutam pela afirmao de seus direitos civis e pelo reconhecimento de sua cidadania.

    Percebe-se que esses grupos no so homogneos, que comportam diferenciaes internas, que apresentam diferentes perspectivas de soluo dos problemas comuns, mas de qualquer forma evocam e reafirmam uma expectativa de direito que s possvel hoje porque lanaram mo de estratgias vrias que foram seguidamente utilizadas para a constituio e a reconstituio do grupo ante as adversidades pelas quais passaram. A histria que elaboram hoje sobre si mesmos fruto das relaes que estabelecem com a sociedade envolvente, mas tambm s tem sentido como parte de um processo contnuo de resistncia. Outros grupos no tiveram a mesma possibilidade e no perduraram para reconstruir con-tinuamente sua histria.

    Utilizeitambmparaottulodelivrosouartigoscitados.

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    Referncias

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  • Os desafios quilombolas da sustentabilidade e do etnodesenvolvimento: algumas consideraes

    Caroline Ayal aAntroploga MSc, analista em Reforma e Desenvolvimento Agrrio do Instituto

    Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra), Superintendncia de

    Mato Grosso do Sul. Endereo eletrnico: [email protected].

    Trcio Fehl auerEngenheiro agrnomo MSc Agroecossistemas, pesquisador do

    Instituto de Desenvolvimento Agrrio, Pesquisa e Extenso

    Rural de Mato Grosso do Sul (Idaterra-MS).

    A n t r o p o l o g i a

  • Introduo

    No obstante a positividade do processo de constituio e reconhecimento de comunidades remanescentes de quilombos, especialmente no desdobramento do artigo 68 das Disposies Transi-trias da Constituio Federal de 1988, no sentido do significado desse processo na conformao de um referencial de luta e de uma unidade poltica estratgica, muitas querelas emergem, sobretudo no horizonte de intensificao da ao de mediadores de agncias estatais na perspectiva de consolidao das polticas de incluso social dos territrios quilombolas.

    Nesse sentido, de maneira introdutria, propomos neste texto, por um lado, alguns questionamentos e consideraes acerca dos impasses e das implicaes decorrentes dos processos locais de institucionalizao das comunidades remanescentes de quilombo, sobretudo articulando as relaes entre cultura e sustentabilidade. Por outro lado, ao enfocar e enfatizar as prticas produtivas locais como modo de expresso e de uni-dade social e poltica, colocamos, em tese, a sustentabilidade e a autonomia comunitria como perspectiva de contrapartida conceitual interpre-tao e formalizao destas nos limites neoliberais de uma etnicidade.

    A condio quilombola e seus deslocamentos

    Em termos gerais, os desdobramentos dos processos de territorializao tnica quilombola tm, como vem sendo dito, proporcionado efeitos de

  • 3 N e a d D e b at e 1 3

    mudana social e incremento dos sentimentos de pertena e solidariedade poltica nas comunidades (Almeida, 2002). No entanto, a generalizao do termo quilombo vem produzindo, de certa maneira, um sentido de etnicidade em que, sob seu aspecto negativo, tem conduzido a uma espcie de aliana forada estratgica com imagens e esteretipos ancorados no referencial institucional, sobretudo jurdico. Havemos de considerar essas vicissitudes e contradies do prprio processo. De partida, sob o pano de fundo dos ganhos simblicos do reconhecimento das diferen-as no se consideram devidamente as questes: em nome de que se declara diferente outra cultura? De onde e de que outro lugar se realiza sua anlise e apreenso? Quais as relaes de poder e as hierarquias a envolvidas e reproduzidas?

    Sob essa perspectiva crtica estabelecemos a anlise a partir da pro-posio de duas matrizes interpretativas do marco institucional sobre a condio quilombola, que, antes de se sustentar numa lgica especfica qui-lombola, remetem imposio universalista de grades interpretativas mais bem situadas no contexto das narrativas clssicas da modernidade:a condio quilombola tomada por referncia ao iderio liberal, pro-veniente dos princpios da igualdade e liberdade da Revoluo Francesa em que romanticamente idealizado (L eite, 2006). Nesta apreenso liberal e romntica, a cultura de um povo quilombola tende a ser percebida, por extenso lgica, como um mero aparato pelo qual as sociedades se distinguem umas das outras (Sahlins, 1997); a condio quilombola como natureza de resistncia poltica da escravi-do, ou, segundo L eite (2006) sob um vis marxista-leninista, como embries revolucionrios em busca de mudana social. Nesta linha assenta-se uma tendncia reificao da histria e do poltico (projetado no poder de Estado como referencial de disputa).

    O importante perceber que ambas as interpretaes se justapem numa lgica que s possvel no pano de fundo comum da cientificidade ocidental (seu privilgio epistemolgico). Pela compreenso da extenso desses preconceitos na prtica institucional, em tese, podemos entender alguns dos impasses atuais com relao (in)definio e aos paradoxos das polticas afirmativas para grupos quilombolas.

    a.

    b.

  • 3O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilombolas

    Sob a insgnia da matriz liberal de cultura, prosperam abordagens e interpretaes bastante comuns no debate atual sobre a condio qui-lombola, especialmente aquelas ligadas lgica do resgate cultural como mecanismo privilegiado de etnicidade. Nessa lgica, a configurao formal de um grupo remanescente de quilombos depende da produo cultural e de sua reproduo externa, assim como de levantamentos de cultura material e patrimnios culturais (colees de objetos, smbolos, tcnicas, valores, crenas, conhecimentos e instituies que os indivduos de uma cultura compartilham).

    Segundo Chagas (2001), a perspectiva patrimonialista de cultura (atemporal e a histrica) projeta uma nfase na viso dessas comunidades como representantes de uma africanidade intocada ou de um povo que se considera em dispora. Para Certeau (2003) esse deslocamento concei-tual um fenmeno perigoso, pois para se tornar quilombola no restaria outro meio seno voltar para trs, regressar ao passado. No limite, uma pessoa nesta condio tornar-se-ia uma espcie de pea de museu para si mesmo, num retorno forado, por assim dizer, s suas prprias tradies, tradies estas percebidas como algo ainda seu (um meio de se identificar e de se valorizar etnicamente), mas que j outro, alterado (idem), pois, muitas vezes, no se reconhece plenamente nelas.

    Nesse campo ideolgico do resgate cultural, um dos enfoques (e papel) mais recorrentes dos agentes institucionais, cabe ressaltar, o da prospeco de conhecimentos tradicionais das comunidades quilombolas como processo de etnicidade e de valorizao da condio quilombola. No entanto, esses agentes da ideologia do resgate, para alm da boa moral, ao universalizarem a prpria lgica contemplativa (e exotista), tendem a pressupor que todos os conhecimentos sejam conforme um tipo de

    capital cultural quilombola, passvel de descontextualizao analtica. Desse modo, mesmo que no intencionalmente, ficam estabelecidos a os fundamentos de uma relao crnica de poder, donde prosperam novos modelos de colonialismo, especialmente o colonialismo intelectual, cuja natureza e implicaes precisam ser problematizados na relao entre quilombola e agentes institucionais.

    Bourdieu, 2005.

  • 40 N e a d D e b at e 1 3

    Segundo Richards (1995) trata-se, sobretudo, da peremptria aplicao daquilo que denomina malcolocada abstrao, na qual grande medida do que categorizado como conhecimento tradicional estaria deslo-cada do senso (dos modos de percepo) por meio do qual as pessoas fazem o que fazem, sob os auspcios e as contingncias (prticas sociais, polticas, expressivas e afetivas) do seu prprio tempo e circunstncia. Contudo, essa operao, para alm de um mero erro metodolgico, expressa uma realizao cultural positivista e a imposio de um certo estilo cognitivo, em que os conhecimentos objetivados (na condio cognitiva de uma propriedade) podem ser colocados lado a lado (em

    igualdade de condies) para serem disponibilizados no mercado dos bens culturais para o consumo moderno das instituies cientficas e polticas (neo)liberais.

    No obstante o significado para a resistncia opresso racista e ao fato de a identificao quilombola possibilitar um processo de simbolizao de autonomia e luta (o qual tem representado uma fora poltica prpria e generalizvel), a perspectiva poltica do materialismo histrico aplicado ao processo de aquilombamento traz, por sua vez, como corolrio um retorno funcionalista em cujo efeito prosperam as bases de uma ideologia economicista da vida comunitria.

    2Segundo Richards (2001), esse processo histrico de colonizao intelectual operado racionalmente por meio de uma confuso bsica entre inteno e resultado no seio da prtica tcnico-cientfica da modernidade.Em um exemplo clssico, Bourdieu (1977), estudando os agricultores da etnia Berber da frica meridional, mostra que o calendrio agrcola destes povos no , como se poderia pensar, um tipo de molde sazonal que guiaria a deciso do que fazer na agricultura, mas, sobretudo, um produto do processo de fazer decises. Naprtica, se agentes tcnicos abordassem esses agricultores para uma participao em um tipo de dia de campo e apresentassem em uma lousa o que entendem ser o calendrio agrcola Berber, estariam fazendo uma grande confuso, uma vez que, segundo o autor, essas pessoas vem o calendrio como resultado do que fazem (e no como seu guia). Oquesugereque, para aprender adequadamente conhecimento nativo, no podemospartir (como na abordagem convencional)deuma separao radical entre estrutura e ao (teoria e prtica)imputando precedncia da primeira sobre a segunda, mas compreender que esse conhecimento emerge por engajamento prtico no mundo e como resultado deste, traduzido no aprimoramento da habilidade prtica e criativa do viver. Portanto, implausvel nos termos de uma independncia epistmica intelectual, uma mera inteno.

  • 41O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilombolas

    Assim, o referencial externo que num momento permite a identifica-o estratgica da opresso no momento seguinte transforma as prprias atividades de produo em uma espcie de economia da misria, em que facilmente imposta uma moral da necessidade como meio de generalizar um discurso (no contexto de uma sociedade repressora).

    Do ponto de vista das polticas pblicas e da ao do agente institu-cional, o imediatismo da ao econmica e a convico desses agentes que atuam sob uma verdade, como conseqncia no deixam espao para as diferenas e para outros interesses adjacentes a elas.

    Nesse sentido, o pressuposto de um apriorismo econmico tem tradu-zido como efeito, alm de uma alteridade reduzida, a pouca compreenso das motivaes psicolgicas pessoais e sociais e da necessidade pelos indivduos de reconhecimento, respeito ou propsito prtico (o qual pode ter relativa independncia de outros benefcios materiais). Nos termos de Certeau (2003), o homem falado pela linguagem de determinismos socioeconmicos muito antes que fale.

    Sustentabilidade e autonomia quilombola: a So Miguel

    As novas iniciativas no campo da poltica institucional (organizaes governamentais e ONGs) destinado ao afirmativa em comunidades quilombolas tm normalmente como bandeiras a sustentabilidade e a autonomia cultural. No entanto, tais generalidades conceituais merecem ser refletidas, sob o risco de que permanncias colonialistas voltem baila.

    De partida, consideramos necessrio marcar algumas posies em relao ao conceito de sustentabilidade, especialmente na acepo cultural do termo, o qual deve implicar ruptura a toda atitude intervencionista e de controle, ou seja, a sustentabilidade deve ter na autonomia sua es-sncia. Nesse sentido a idia de sustentabilidade , sobretudo, avessa a determinismos diversos (terico, disciplinar, poltico, histrico, geogrfico, ambiental, dentre outros) na anlise social.

    Nesse sentido, falar em polticas pblicas de sustentabilidade quilombo-la leva-nos, portanto, a srias contradies. Pode-se dizer que para existir alguma poltica de sustentabilidade ela s pode ser uma poltica quilombola.

  • 42 N e a d D e b at e 1 3

    Por conseguinte, parafraseando Gallois (2004), sustentabilidade s pode ser uma meta difusa, um objetivo, nunca uma poltica pblica.

    Na prtica, a reificao das grades interpretativas discutidas no item anterior tem gerado, por inrcia, conformaes de especificidades crticas nas polticas de afirmao tnica de apoio economia quilombola. No primeiro caso, o agente tcnico, baseado em um discurso fundado no reconhecimento dos conhecimentos tradicionais, ao assumir o privilgio epistemolgico, acaba por remover a agncia nativa, recodificando esses saberes e, normalmente, anexando-os ao seu prprio discurso.

    Desse modo, ocorre (com a naturalidade de praxe) a sistematizao dos saberes prticos quilombolas nem sempre redutveis ao pensamen-to e escrita pelo discurso cientfico unitrio, transfigurando-os nos termos de quadros conceituais de sistemas agroecolgicos ou de tecno-logias populares. O problema manifesta-se no retorno desses agentes e tcnicos, os quais, ao se apropriarem desses saberes e prticas sua maneira, desempoderam potencialmente essas pessoas na medida em que representam esses saberes e prticas das comunidades quilombolas em vias inacessveis e incontrolveis para elas. Fontes de mal-entendidos e desencontros comunicativos que, muito freqentemente, alimentam preconceitos, engendrados pelas prprias conotaes individualistas e abstratas de conhecimento.

    No caso da anlise focada exclusivamente na histria das conquistas quilombolas de espao e condies materiais de sua reproduo social, o sentido da anlise da prtica quilombola no passaria tanto pela apreciao equivocada, mas por problemas de julgamento. O tipo de abordagem produzido por essa matriz lgica tende ento a um julga-mento da ao pela negativa (do tipo: fazem assim porque no tm as condies para fazer diferente, porque falta algo, por no saberem, assim por diante), bastante limitada (e arrogante) para compreender a motivao prtica dos outros.

    Muitasvezes,essesconhecimentossocategorizadoscomoidentificadoscondioquilombola,aosquais,naverdade,noremetem.Issoacontecequandoadiversidadedesconsideradanageneralizaodotermo,ou,comoovisto,quandoastransformaesnativastambmsodesconsideradas,projetandoumpassadojcaduco.

  • 43O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilombolas

    Assim, esses agentes, para justificar uma moral da escassez e da neces-sidade, tendem normalmente a subvalorizar a capacidade dos agricultores quilombolas de resistirem s dificuldades, bem como de tratarem o modo pelo qual eles tentam super-las como meras estratgias de conseguir de qualquer jeito (muddling through) e no como habilidades e realizaes pessoais ou coletivas (R ichards, 1995). Do ponto de vista da intercul-turalidade, isso vem a significar um ato de reduo da alteridade, ao no apreender as prticas e as maneiras de fazer, trabalhar e viver, assim como as formas locais de apropriao e soluo de problemas como expresses culturais por excelncia.

    Para uma referncia etnogrfica do tema, nos apoiaremos na Co-munidade Quilombola Colnia So Miguel, localizada nas bordas da serra de Maracaju (MS), em municpio de mesmo nome, onde residem e vivem 14 famlias de filhos e descendentes da matriarca dona Joaquina Gonalves desde 1940, ano da aquisio pela famlia de uma rea de 100 ha. Considerando nossas primeiras aproximaes da comunida-de, ainda muito preliminares, mas que traduzem e podem elucidar os argumentos citados.

    Na So Miguel, permitindo ver para alm do senso de uma comu-nidade pobre, de economia baseada na agricultura de subsistncia e relativamente isolada, observamos uma mirade de formas e referncias (situadas) de ao, as quais citamos (dado o contexto) de forma muito geral, apesar da profuso de maneiras de fazer que cada qual define:

    AcomunidadenegraColniaSoMiguelorganiza-seatualmenteemtornodamemriadamatriarcad.JoaquinaGonalvesdeSouza(896-2006),filhadeJooPedroGonalvesdeSouzaededonaFranciscadeSouza,osquaischegaramnaregiocomumgrupodeex-escravosvindosdeMinasGeraisem89.D.JoaquinanasceunalocalidadeprximadeCabeceiraPreta,domesmomunicpiodeMaracaju(MS).Aaquisiodaterra(em90),naqualhojevivepartedeseusdescendentes(atualmenteestimadosem580pessoas),ocorreuefoipossvelpormeiodaremuneraodotrabalhodopatriarcadafamlia,quandorecebiacomoremuneraopelosservioscomalidadogadoemfazendadaregio,almdaalimentao,algumasreses,queeramacumuladasataquantidadesuficienteparaseremtrocadaspelaterra(negcioensejadopelodeclnioeconmicodocafepeladesvalorizaodasterrasdaregio).

  • 44 N e a d D e b at e 1 3

    o uso mltiplo extrativista das espcies de plantas nativas da regio (ma-deira para construo de casas e benfeitorias, uso medicinal, produo de mel, xaxim de raiz de caraguat, fibras para cestaria e alimentao);presena sempre renovada de hortos domsticos prximos s casas, com muitas fruteiras: laranja, manga, banana, tangerina, abacaxi e guariroba. Algumas em menor quantidade, mas sempre presentes: limo, abacate, guavira, jaca, amora e mamo. Outras eventuais: acerola, pitanga, ara-ticum do cerrado, jambo, jenipapo, caju, goiaba, pequi, noz, pssego e uva (dentre outras);roas de feijo, cana, milho, arroz e mandioca;criao de gado de corte e leite, alm de galinhas.

    Esses produtos da comunidade destinam-se tanto sustentao da famlia quanto distribuio e ao estabelecimento das redes de troca e circulao interna de produtos (constituda nas relaes sociais e polticas de alianas e parentesco, na comunidade ou entre comunidades), dentre outros modos de reforar os vnculos ou os valores culturais. Nessas trocas, como caracterstica, menos importante o valor da coisa trocada do que a relao refeita, as experincias atualizadas e os conhecimentos adquiridos nesses laos.

    Alguns produtos, alm dos seus significados nas redes de trocas e circulao, so descobertos tambm como geradores de renda, como o caso das rapaduras (vrios sabores: mamo, cana pura, abbora, etc.), vendidas internamente e tambm para moradores das fazendas vizinhas, da laranja (vendida para ser consumida no lanche de trabalhadores de usina de lcool localizada a 20 km da comunidade), e, mais raramente (por causa da pouca gua disponvel em determinadas pocas do ano), o polvilho da mandioca.

    A carne de gado vem-se constituindo tambm numa sofisticada e intrincada relao na economia local, como fator de fortalecimento de laos de solidariedade ou recurso eventual de mercado.

    De maneira geral, essas caractersticas da economia quilombola da So Miguel apresentam especificidades sociais que nos permitem descobrir e elucidar o fato de que os so-miguelenses, em suas prticas

  • 45O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilombolas

    cotidianas, alm das atividades produtivas, integram a vida social e o trabalho. A realizao de trabalhos na forma de mutiro um exemplo significativo da imbricao social do trabalho local quilombola, pois numa apreciao superficial pode-se imaginar que essa arregimentao de ajudantes somente responderia a um maior volume de trabalho pela soma da capacidade de trabalho de cada indivduo. No entanto, o que se observa que talvez mais importante que essa utilidade seja a me-lhoria das condies de trabalho (com reflexo na eficincia), na medida em que so fortalecidos os laos afetivos e de companheirismo. Nesses mutires, as pessoas conversam, contam piadas, caoam umas das outras, fofocam, riem, cantam e, assim, relaxam enquanto trabalham, revertendo, de certa maneira, uma experincia de trabalho duro em um evento de nuanas de satisfao e prazer. Tambm as mulheres da So Miguel, ao buscar gua na cacimba para a lida domstica, inventam formas de, a partir de um trabalho duro, gerar bons motivos de alegria e convivncia.

    A diversidade das atividades produtivas da Colnia So Miguel e sua natureza social denotam, sobretudo, iniciativas. Dito de modo geral, o que se observa que essas iniciativas, na prtica, geram referncias sociais e projetam credibilidades aceitas, ao mesmo tempo que as exprimem. Nos termos de Certeau (2003), mais do que a reproduo de um modelo posto, essas credibilidades nascentes exprimem maneiras de fazer. Desse modo, conforme assevera o autor, essas maneiras de fazer pessoais e coletivas precisam ento ser vistas, para serem compreendidas, no mais tanto a partir das classificaes e das divises do trabalho da cincia econmica, mas como sadas possveis (e inteligentes) que, nesses contextos, encon-tram os sujeitos que neles trabalham e vivem. Essas maneiras, portanto, mais do que propriedades de uma cultura, passariam a ser percebidas como expresses culturais de prticas significativas, aproximando-se do senso vivido pelos sujeitos que as realizam.

    Nessa perspectiva, a experincia com os so-miguelenses nos impele a afirmar que a sustentabilidade local num sentido mais amplo est sobretudo relacionada sustentao das suas bases culturais, do reconhe-cimento do potencial criativo dessas pessoas (nas suas maneiras de fazer), tomado assim como fundamento da diversidade das atividades econmicas

  • 4 N e a d D e b at e 1 3

    e da capacidade local de gerao de alternativas. Dessa forma, arriscamo-nos a dizer que, de modo geral, na contingncia da vida cotidiana (no ato presente) da ao produtiva e social que se estrutura a sustentabilidade do modo de vida da Colnia So Miguel. Portanto, somente por meio dela, do seu conhecimento e observao, que agentes externos e tcnicos poderiam de alguma forma contribuir, enriquecendo experincias, deli-neadas e controladas pelas prprias comunidades. Desse modo, postula-se constituir (na prtica) as vias possveis do etnodesenvolvimento desta comunidade, ou ao menos proporcionar suas condies de possibilidade.

    Consideraes finais

    O processo de institucionalizao da condio quilombola e o retorno de pressupostos e grades interpretativas impostas ou consagradas no processo histrico de resistncia poltica anti-racista vem revelando, como j visto, algumas armadilhas cuja avaliao das implicaes sustentabilidade das comunidades ainda incipiente, pois surge como uma sombra menos visvel ante a luz dos avanos dos instrumentos jurdicos e da genera-lizao da luta quilombola. No entanto, a sustentabilidade cultural das prticas sociais e produtivas leva a reconhecer nas prticas produtivas e sociais quilombolas formas de assegurar vnculos solidrios mais fortes e duradouros do que a aluso a uma determinada ancestralidade patri-monialista a ser resgatada (Almeida, 2002).

    Nessa perspectiva, podemos afirmar que, para que a atuao do agen-te tcnico institucional possa permitir a efetiva sustentabilidade local quilombola sua base lgica e social deve romper com toda atitude intervencionista, seja esta por deslizes assistencialistas ou por supostos de liderana poltica insurrecional, seja por ignorncia da importncia poltica e cultural das redes de prticas e de conhecimentos profunda-mente embebidos no ritmo e no fluxo das relaes pessoais e sociais do local (B ourdieu, 1989).

    5Dopontodevistaecolgico,podemosconstatarqueessadiversidadepermiteumincrementoeumcontrastesensveldebiodiversidadeemrelaomonoculturadogadodosfazendeirosdoentorno.

  • 4O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilombolas

    Referncias

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    Sahlins, M. O pessimismo sentimental e a experincia etnogrfica: por que a cultura no um objeto em via de extino (parte 1). Mana, v. 3, n. 1, Rio de Janeiro, 1997.

  • Reconhecimento de territrios quilombolas em Mato Grosso: comentrios preliminares

    R enata B ortolet to SilvaAnalista em Reforma e Desenvolvimento Agrrio/Antropologia do Incra, na

    Superintendncia Regional de Cuiab (MT). Mestre em Antropologia Social, pela

    Unicamp, e aluna de doutorado do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

    da FFLCH/USP, onde desenvolve pesquisa sobre os Chiquitanos de Mato Grosso.

    A n t r o p o l o g i a

  • Apresentao

    E st e a rt i g o um re l ato s ob re o e sta d o at ua l d o processo de regularizao dos territrios quilombolas em Mato Grosso a partir da experincia de antroploga lotada na Seo de Regularizao de Territrios Quilombolas, da Superintendncia Regional do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria de Mato Grosso. Cabe re-gistrar, logo de incio, que tal experincia, na autarquia, bastante recente, mais precisamente a partir de abril de 2006, e, portanto, o relato a seguir no tem a pretenso de encerrar, em si, uma reflexo, o que no poderia ser feito em to pouco tempo.

    A Constituio de 1988, que completa 18 anos, estabelece, em seu artigo 68 do Ato das Disposies Transitrias, que: Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras

    Aequipequetrabalha,atualmente,naregularizaodeterritriosquilombolascompostaporAnaCarmemVianaVidal(engenheiraagrnoma),SimoneGianotti(analistaemRe-formaeDesenvolvimentoAgrrio),NelsonJuvenaldaSilvaFilho(tcnicoemReformaeDesenvolvimentoAgrrio),SauloRenePereira(tcnicoemReformaeDesenvolvimentoAgrrio)eJosGeraldoMesquita(motorista).SimoneGianotti(analistaemReformaeDesenvolvimentoAgrrio),formadaemHistriapelaUniversidadedeBraslia,integra,tambm,aequipequeestelaborandooRelatrioTcnicodeIdentificaoeDelimitao(RTID),referenteaLagoinhadeBaixo.

  • 50 N e a d D e b at e 1 3

    reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos.

    Apesar disso, e de o Incra j ter a incumbncia de proceder regula-rizao dos territrios desde 2003 quando foi publicado o Decreto no 4.887, por meio do qual so firmados os procedimentos para identificao, demarcao e titulao das terras ocupadas por remanescentes de quilom-bos , h necessidade, ainda, de que o corpo tcnico da autarquia, em geral, assimile, de forma integral, essa responsabilidade e, sobretudo, esse desafio.

    Em Mato Grosso, apesar de mais de cinqenta comunidades quilom-bolas terem obtido a certificao pela Fundao Cultural Palmares, em funo das inmeras dificuldades, ainda no foram expedidos os respectivos ttulos. Quer dizer, nenhuma delas tem garantido seu direito ao territrio.

    Diante desse quadro, levar ao conhecimento das pessoas, em geral, e dos servidores do Incra, em particular, as vrias experincias nos processos de titulao, bem como os problemas enfrentados, buscando sensibilizar as pessoas para essa causa, faz com que a iniciativa desta coletnea de ensaios, que agora publicada, seja ainda mais importante.

    A presena dos negros em Mato Grosso

    Desde a primeira dcada de existncia da vila, aparecem negros nas crnicas de Cuiab, o que diz Virgilio Correa Filho (1969, p. 105), um importante historiador de Mato Grosso. As notcias da descoberta de ouro, no rio Coxip, em Cuiab, por Pascoal Moreira Cabral, um dos primeiros bandeirantes que chegaram regio por volta de 1720, influenciaram a vinda de outros exploradores para o local (Ro quette Pinto, 1975, p. 7).

    Com eles vieram muitos escravos que eram trazidos pelas mones, as expedies que comunicavam as capitanias poca. Vindas do Sul da Colnia, as mones traziam os negros para trabalhar, no incio do sculo XVIII, nas minas de ouro recm-descobertas (Siqueira, 1990, p. 131).

    Posteriormente, j no sculo XIX, quando o ouro das minas se tornara escasso, esses escravos passaram a compor a mo-de-obra utilizada nas plantaes, principalmente da cana-de-acar. Trabalhavam, tambm,

    2ConstituioFederaldaRepblicade988.

  • 51O Incra e os desafios para a regularizao dos territrios quilombolas

    no beneficiamento da produo, nos engenhos de aguardente e acar (Correa Filho, 1969, p. 105).

    Segundo esse mesmo autor, foram as peculiaridades regionais que propiciaram o abandono das senzalas e permitiram a constituio do

    arraial nas matas do rio Galera, ou seja, os primeiros quilombos em Mato Grosso. Na historiografia regional, encontramos diversas referncias s violentas represses que esses agrupamentos sofreram. O quilombo do Piolho ou Quariter, s margens do rio Piolho, foi atacado duas vezes. Houve uma diligncia, em 1770, ocorrida no governo de Lus Pinto de Souza Coutinho, e uma outra, tambm muitas vezes citada na literatu-ra, empreendida por volta de 1790, a mando do ento capito-geral da Capitania de Mato Grosso, Lus de Albuquerque Mello e Cceres, com o objetivo de capturar os negro