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Leandro Konder

"O que é dialética", de Leandro Konder (Col. Primeiros Passos)

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  • Leandro Konder

  • Leandro Konder

    O QUE DIALTICA

    editora brasiliense

  • Copyright by Leandro Konder, 1981 Nenhuma parte desta publicao pode ser gravada, armazenada em sistemas eletrnicos, fotocopiada,

    reproduzida por meios mecnicos ou outros quaisquer sem autorizao prvia do editor.

    Prim eira edio, 1981 28- edio, 1998

    12a reimpresso, 2011

    Diretora editorial: Danda Prado Cleide Almeida

    Coordenao editorial: A lice Kobavashi Coordenao de produo: Roseli Said

    Projeto grfico e editorao: Digitexto Servios Grficos Capa: 123 (antigo 27) Artystas Grficos

    Reviso: Diego Rodrigues e Nydia Lcia Ghilardi

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Konder, LeandroO que dialtica / Leandro Konder.

    So Paulo : Brasiliense, 2008. (Coleo Primeiros Passos : 23)

    6a reimpr. da 28. ed. de 1981. ISBN 978-85-11 -01023-7

    1. Dialtica 2. M aterialismo dialtico I. Ttulo. 11. Srie.

    08-08779 CDD-146.32

    ndices para catlogo sistemtico:1. Dialtica materialista : Filosofia 146.32

    editora e livraria brasiliense Rua M ourato Coelho, 111 - Pinheiros

    CEP 05417-010 - So Paulo - SP www.editorabrasiliense.com.br

    S u m r io

    I - O r i g e n s d a D i a l t i c a .............................................................7I I - O T R A B A L H O .................................................................................... 19III - A A L I E N A O .....................................................................................29IV - A T O T A L ID A D E .....................................................................................35V - A C O N T R A D I O E A M E D I A O .....................................41VI - A f l u i d i f i c a o d o s c o n c e i t o s ........................... 49VII - As l e i s d a d i a l t i c a ......................................................... 55V I I I - O S U JE IT O E A H IS T R IA ...................................................61I X .- O i n d i v d u o e a s o c i e d a d e ............................................ 7 2X - S e m e n t e d e d r a g e s .............................................................81S o b r e o a u t o r .................................................................................... 8 7

  • Para Cris, Marcela e Caito

    A dialtica, como lgica viva da ao, no pode aparecer a uma razo contemplativa. (...) No curso da ao, o indivduo descobre a dialtica como transparncia racional enquanto ele a faz, e como necessidade absoluta enquanto ela lhe escapa, quer dizer, simplesmente, enquanto os outros a fazem."

    Sartre, Crtica da razo da dialtica

    O r ig e n s d a d ia l t ic a

    Dialtica era, na Grcia antiga, a arte do dilogo. Aos poucos, passou a ser a arte de, no dilogo, demonstrar uma tese por meio de uma argumentao capaz de definir e distinguir claramente os conceitos envolvidos na discusso.

    Aristteles consideravaZnon de Eleia (aprox. 490- -430 a.C.) o fundador da dialtica. Outros consideram ser Scrates o primeiro (469-399 a.C.). Numa discusso sobre a funo da filosofia (que estava sendo caracterizada como uma atividade intil), Scrates desafiou os generais Lachs e Ncias a definirem o que era a bravura e o poltico Calicls a definir o que era a poltica e a justia, para demonstrar a eles que s a filosofia - por meio da dialtica - podia lhes proporcionar os instrumentos indispensveis para entenderem a essncia daquilo que faziam e das atividades profissionais a que se dedicavam.

    Na acepo moderna, entretanto, dialtica significa outra coisa: o modo de pensarmos as contradies

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    da realidade, o modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditria e em permanente transformao.

    No sentido moderno da palavra, o pensador dialtico mais radical da Grcia antiga foi, sem dvida, He- rclito de Efeso (aprox. 540-480 a.C.). Nos fragmentos deixados por Herclito, pode-se ler que tudo existe em constante mudana, que o conflito o pai e o rei de to das as coisas. L-se tambm que vida ou morte, sono ou viglia, juventude ou velhice so realidades que se transformam umas nas outras. O fragmento ne 91, em especial, tornou-se famoso: nele se l que um homem no toma banho duas vezes no mesmo rio. Por qu? Porque da segunda vez no ser o mesmo homem e nem estar se banhando no mesmo rio (ambos tero mudado).

    Os gregos acharam essa concepo de Herclito muito abstrata, muito unilateral. Chamaram o filsofo de Herclito, o Obscuro. Havia certa perplexidade em relao ao problema do movimento, da mudana. O que que explicava que os seres se transformassem, que eles deixassem de ser aquilo que eram e passassem a ser algo que antes no eram? Herclito respondia a essa pergunta de maneira muito perturbadora, negando a existncia de qualquer estabilidade no ser. Os gregos preferiram a resposta que era dada por um outro pensador da mesma poca: Parmnides.

    Parmnides ensinava que a essncia profunda do ser era imutvel e dizia que o movimento (a mudana) era um fenmeno de superfcie. Essa linha de pensa-

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    mento - que podemos chamar de metafsica - acabou prevalecendo sobre a dialtica de Herclito.

    A metafsica no impediu que se desenvolvesse o conhecimento cientfico dos aspectos mais estveis da realidade (embora dificultasse bastante o aprofundamento do conhecimento cientfico dos aspectos mais dinmicos e mais instveis da realidade).

    De maneira geral, independentemente das intenes dos filsofos, a concepo metafsica prevaleceu, ao longo da histria, porque correspondia, nas sociedades divididas em classes, aos interesses das classes dominantes, sempre preocupadas em organizar duradouramente o que j est funcionando, sempre interessadas em amarrar bem tanto os valores e conceitos como as instituies existentes, para impedir que os homens cedam tentao de querer mudar o regime social vigente.

    A concepo dialtica foi reprimida historicamente: foi empurrada para posies secundrias, condenada a exercer uma influncia limitada. A metafsica se tornou hegemnica. Mas a dialtica no desapareceu. Para sobreviver, precisou renunciar s suas expresses mais drsticas, precisou conciliar com a metafsica, porm conseguiu manter espaos significativos nas ideias de diversos filsofos de enorme importncia.

    Aristteles, por exemplo, um pensador nascido mais de um sculo depois da morte de Herclito, rein- troduziu princpios dialticos em explicaes dominadas pelo modo de pensar metafsico. Embora menos

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    radical do que Herclito, Aristteles (384-322 a.C.) foi um pensador de horizontes mais amplos que o seu antecessor; e a ele que se deve, em boa parte, a sobrevivncia da dialtica.

    Aristteles observou que ns damos o mesmo nome de movimento a processos muito diferentes, que vo desde o mero deslocamento mecnico de um corpo no espao, desde o mero aumento quantitativo de alguma coisa, at a modificao qualitativa de um ser ou o nascimento de um ser novo. Para explicar cada movimento, precisamos verificar qual a natureza dele.

    Segundo Aristteles, todas as coisas possuem determinadas potencialidades; os movimentos das coisas so potencialidades que esto se atualizando, isto , so possibilidades que esto se transformando em realidades efetivas. Com seus conceitos de ato e potncia, Aristteles conseguiu impedir que o movimento fosse considerado apenas uma iluso desprezvel, um aspecto superficial da realidade; graas a ele, os filsofos no abandonaram completamente o estudo do lado dinmico e mutvel do real.

    Nas sociedades feudais, entretanto, durante os sculos da Idade Mdia, a dialtica sofreu novas derrotas e ficou bastante enfraquecida. No regime feudal, a vida social era estratificada, as pessoas cresciam, viviam e morriam fazendo as mesmas coisas, pertencendo classe social em que tinham nascido; quase no aconteciam alteraes significativas. A ideologia dominante - a ideologia das classes dominantes - era monoplio da Igreja,

    elaborada dentro dos mosteiros por padres que levavam uma vida muito parada. Por isso, a dialtica foi sendo cada vez mais expulsa da filosofia. A prpria palavra dialtica se tornou uma espcie de sinnimo de lgica (ou ento passou a ser empregada, em alguns casos, com o significado pejorativo de lgica das aparncias).

    No regime de cidade-Estado, da Grcia antiga, embora houvesse estratificao social, havia uma ampla circulao tanto de mercadorias como de ideias: o comrcio e a discusso sobre os problemas de interesse coletivo faziam parte da vida dos cidados. No regime feudal, a vida nas cidades sofreu um esvaziamento; e no campo havia pouco comrcio e poucas oportunidades para discutir organizadamente. O nmero dos cidados que debatiam era reduzido e as ideias discutidas ficaram um tanto desligadas da vida prtica.

    A dialtica ficou sufocada. Para sobreviver, ela precisou lutar para assegurar filosofia um espao prprio, que no ficasse diretamente dominado pelo imperialismo da teologia (ideologia dominante, na poca). Um dos idelogos mais famosos do sculo XI, Petrus Damianus (1007-1072), dizia que, para o ser humano, a nica coisa importante era a salvao da sua alma; que a maneira mais segura de salvar a alma era se tornar monge; e que um monge no precisava de filosofia. O rabe Averris e o francs Abelardo procuraram, por caminhos muito diferentes, defender o espao da filosofia, sem desafiar a teologia. Averris (1126-1198), apoiando-se em Aristteles, afirmou que a verso filo

    O que dialtica

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    sfica da Verdade no precisava coincidir, de maneira imediata e total, com sua verso teolgica. Abelardo (1079-1142) conseguiu discutir longamente sobre as relaes entre as categorias universais e as coisas singulares em termos de pura lgica, mostrando assim, na prtica, que existiam problemas importantes cuja abordagem no precisava da teologia.

    No sculo XIV, a vida comeou a se modificar, o comrcio se desenvolveu e sacudiu os hbitos da sociedade feudal. Os filsofos refletem isso. Guilherme de Occam (aprox. 1285-1349) tpico da nova situao que estava surgindo; sua vida bem mais movimentada que a da maioria dos filsofos medievais: ele estudou na Inglaterra (em Oxford), viveu na Frana (em Avignon), andou s turras com o papa, fugiu para Pisa (na Itlia) e acabou morrendo em Munique (na Alemanha). Occam sustentava que, exatamente porque Deus todo-pode- roso e porque a vontade de Deus no pode ter limites, tudo no mundo contingente, tudo poderia ser diferente do que (se Deus quisesse); por isso, a teologia (que tratava de Deus) no devia interferir segundo Occam no estudo das coisas contingentes do mundo emprico.

    A chamada revoluo comercial, esboada no sculo XIV deflagrou-se no sculo XV e suas consequncias marcaram profundamente o sculo XVI. Foi a poca do Renascimento e da descoberta da Amrica. As artes e as cincias se insurgiram contra os hbitos mentais da Idade Mdia: mostraram que o universo era muito maior

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    e mais complicado do que os idelogos medievais pensavam; e mostraram que o ser humano era potencialmente muito mais livre do que eles imaginavam.

    O movimento voltou a se impor reflexo e ao debate, tornou-se outra vez um tem a fundamental. O astrnomo polons Nicolau Coprnico (1473-1543) descobriu que Ptolomeu tinha se enganado, que a Terra nem era imvel nem era o centro do universo, que ela girava em torno do Sol. Galileu (1564-1642) e Descartes (1596-1650) descobriram que acondio natural dos corpos era o movimento e no o estado de repouso.

    A maneira de conceber o ser humano tambm sofreu importantes alteraes. Pico delia Mirando- la (1463-1494) sustentou que o fato de o homem ser inacabado e portanto poder evoluir, lhe conferia uma dignidade especial e lhe dava at certa vantagem em comparao com os deuses e anjos (que so eternos, perfeitos e por isso no mudam). Giordano Bruno (1548-1600) exaltou o homo faber, quer dizer, o homem capaz de dominar as foras naturais e de modificar criadoramente o mundo.

    Com o Renascimento, a dialtica pde sair dos subterrneos em que tinha sido obrigada a viver durante vrios sculos: deixou o seu refgio e veio luz do dia. Conquistou posies que conseguiu manter nos sculos seguintes. O carter instvel, dinmico e contraditrio da condio humana foi corajosamente reconhecido por um pensador mstico e conservador, como Pascal (1623-1654). Outro filsofo conservador, o ita

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    liano Giambattista Vico (1680-1744), tambm ajudou a dialtica a se fortalecer. Vico achava que o homem no podia conhecer a natureza, que tinha sido feita por Deus e s por Deus podia ser efetivamente conhecida; mas sustentava que o homem podia conhecer sua prpria histria, j que a realidade histrica obra humana, criada por ns. Essa formulao constituiu um poderoso estmulo busca de um mtodo adequado correta compreenso da realidade histrica (quer dizer, elaborao do mtodo dialtico).

    Elementos de dialtica se encontram no pensamento de diversos filsofos do sculo XVII, como Lei- bniz (1646-1716), Spinoza (1632-1677), Hobbes (1588- -1679) e Pierre Bayle (1647-1706). Elementos de dialtica se achavam j, tambm, nas reflexes do inquieto Montaigne (1533-1592), no sculo XVI. Montaig- ne dizia, por exemplo: Todas as coisas esto sujeitas a passar de uma mudana a outra; a razo, buscando nelas uma subsistncia real, s pode frustrar-se, pois nada pode apreender de permanente, j que tudo ou est comeando a ser e absolutamente ainda no - ou ento j est comeando a morrer antes de ter sido (,Essais, II, 12). Mas tanto Montaigne como os pensadores do sculo XVII viviam e pensavam, de certo modo, numa situao de isolamento em relao dinmica social, em relao aos movimentos polticos da poca. Os contatos que eles mantinham eram com personalidades e no com organizaes ou tendncias que pudessem refletir alguma coisa do que se passava nas bases da so

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    ciedade. Por isso, a viso que tinham da histria - isto , do processo transformador da condio humana e das estruturas sociais - ou era gratuitamente otimista, superficial, ou ento assumia um tom melanclico, um contedo conservador negativista.

    S na segunda metade do sculo XVIII que a situao dos filsofos comeou a mudar. O amadurecimento do processo histrico que desembocou na Revoluo Francesa criou condies que permitiram aos filsofos uma compreenso mais concreta da dinmica das transformaes sociais. O movimento que refletiu esse processo de preparao da Revoluo Francesa no plano das ideias se chamou iluminismo. Os filsofos iluministas acompanharam de perto as reivindicaes plebeias, as articulaes da burocracia, as manifestaes polticas nas ruas, a rpida mudana nos costumes; perceberam que o que restava do mundo feudal devia desaparecer e pretenderam contribuir para que o mundo novo, que estava surgindo, fosse um mundo racional.

    Em sua maioria, os iluministas se contentaram com uma viso mais ou menos simplificada do processo de transformao social que viam realizar-se e apoiavam: no procuraram refletir aprofundadamente sobre suas contradies internas. Por isso, no trouxeram grandes contribuies para o avano da dialtica. H, porm, uma exceo; o maior dos filsofos iluministas tambm o autor de uma obra rica em observaes de grande interesse para a concepo dialtica do mundo: Denis Diderot (1713-1784).

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    Diderot compreendeu que o indivduo era condicionado por um movimento mais amplo, pelas mudanas da sociedade em que vivia. Sou como sou - escreveu ele - porque foi preciso que eu me tornasse assim. Se mudarem o todo, necessariamente eu tam bm serei modificado. E acrescentou: O todo est sempre mudando. No Sonho de D Alembert, imaginou que DAlembert, seu amigo, sonhando dizia coisas, tais como: Todos os seres circulam uns nos outros. Tudo um fluxo perptuo. O que um ser? A soma de um certo nmero de tendncias. E a vida? A vida uma sucesso de aes e reaes. Nascer, viver e passar mudar de formas . DAlembert ficou chocado com a loucura que Diderot tinha escrito e o texto, redigido em 1769, acabou s sendo publicado em 1830.

    No Suplemento a viagem de Bougainville, publicado em 1796, Diderot aconselhava seus leitores: Examinem todas as instituies polticas, civis e religiosas; ou muito me engano ou vocs vero nelas o gnero humano subjugado, a cada sculo mais submetido ao jugo de um punhado de meliantes . E recomendava: Desconfiem de quem quer impor a ordem.

    Uma das obras mais famosas de Diderot O sobrinho de Rameau, que relata uma conversa entre o filsofo e um jovem vigarista, sobrinho de um msico clebre. Diderot se coloca, habilmente, numa posio moderada, mas coloca na boca do seu interlocutor uma argumentao brilhante, uma defesa altamente perturbadora da vigarice, de modo que a moral vigente

    fica bastante abalada em seus fundamentos, no fim do dilogo. Diderot assume os elementos conservadores que sabe existirem no seu pensamento, mas permite ao jovem vigarista que desenvolva seus pontos de vista com extraordinria desenvoltura; o resultado um confronto fascinante, que Hegel e Marx consideraram um primor de dialtica.

    Ao lado de Diderot, quem deu a maior contribuio dialtica na segunda metade do sculo XVIII foi Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Ao contrrio dos iluministas, Rousseau no tinha confiana na razo humana: preferia confiar mais na natureza. Segundo ele, os homens nasciam livres, a natureza lhes dava a vida com liberdade, mas a organizao da sociedade lhes to lhia o exerccio da liberdade natural. O problema com que Rousseau se defrontava, ento, era o de assegurar bases para um contrato social que permitisse aos indivduos terem na vida social uma liberdade capaz de compensar o sacrifcio da liberdade com que nasceram.

    Observando a estrutura da sociedade do seu tempo e suas contradies, Rousseau concluiu que os conflitos de interesses entre os indivduos tinham se tornado exagerados, que a propriedade estava muito mal distribuda, o poder estava concentrado em poucas mos, as pessoas estavam escravizadas ao egosmo delas. Rousseau considerava necessria uma democratizao da vida social; para ele, as comunidades efetivamente democrticas no poderiam basear-se em critrios formais, puramente quantitativos (a vontade de

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    todos): precisariam apoiar-se numa vontade geral criada por um movimento de convergncia que levaria os indivduos a superarem a estreiteza do egosmo deles, que os levaria a se reconhecerem concretam ente uns nos outros e a adotarem uma perspectiva universal (verdadeiramente livre) no encaminhamento de solues para seus problemas.

    Os caminhos que deveriam ser seguidos para que os homens chegassem a essa convergncia, a essa universalidade, exigiriam a remoo de muitos obstculos. Rousseau sabia que as mudanas sociais profundas, realizadas por sujeitos coletivos, no costumam ser tranquilas; sabia que as transformaes necessrias por ele apontadas deveriam ser um tanto tumultuadas. Mas achava que um pouco de agitao retem pera as almas; e o que faz avanar a humanidade menos a paz do que a liberdade. Embora divergisse de Diderot em vrias coisas, ele concordava num ponto crucial: nenhum dos dois se deixava intimidar pela ideologia da ordem, de contedo nitidamente conservador.

    Por isso, se entende que no sculo XX um conservador radical - Maurice Barres - tenha escrito que Diderot e Rousseau (duas foras de desordem) so responsveis por muitos dos males que nos afligem.

    O TRABALHO

    No final do sculo XVIII e no comeo do sculo XIX, os conflitos polticos j no eram mais abafados nos corredores dos palcios e estouravam nas ruas. As lutas que precederam e desencadearam a Revoluo Francesa envolveram muita gente, entraram na vida de milhes de pessoas; as guerras napolenicas tambm mobilizaram as massas populares e os homens do povo foram obrigados a pensar sobre questes polticas que antes eram discutidas apenas por uma elite reduzida, mas que naquele perodo estavam invadindo a esfera da vida cotidiana de quase todo mundo.

    Essa situao se refletiu na filosofia. Se refletiu at na filosofia que se elaborava na longnqua cidade de Knigsberg, na Prssia oriental (hoje a cidade se chama Kaliningrado e fica na atual Rssia), onde nasceu, viveu, escreveu e morreu aquele que provavelmente o maior dos pensadores metafsicos modernos:

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    Immanuel Kant (1724-1804). Pessoalmente, Kant viveu na mais rigorosa rotina; at seus passeios tinham hora marcada (o poeta Heine conta que os vizinhos do filsofo acertavam seus relgios quando ele saa de casa, s 15h30, para dar uma volta). Ao seu redor, porm, as rotinas estavam sendo quebradas, a histria da Europa estava pondo a nu muitas contradies e Kant no pde deixar de pensar sobre a contradio, em geral.

    Kant percebeu que a conscincia humana no se limita a registrar passivamente impresses provenientes do mundo exterior, que ela sempre a conscincia de um ser que interfere ativamente na realidade; e observou que isso complicava extraordinariamente o processo do conhecimento humano. Sustentou que todas as filosofias at ento vinham sendo ingnuas ou dogmticas, pois tentavam interpretar o que era a realidade antes de ter resolvido uma questo prvia: o que o conhecimento?

    O centro da filosofia, para Kant, no podia deixar de ser a reflexo sobre a questo do conhecimento, a questo da exata natureza e dos limites do conhecimento humano. Fixando sua ateno naquilo que ele chamou de razo pura, o filsofo se convenceu, ento, de que na prpria razo pura (anterior experincia) existiam certas contradies - as antinomias - que nunca poderiam ser expulsas do pensamento humano por nenhuma lgica.

    O que dialtica

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    Outro filsofo alemo, de uma gerao posterior, demonstrou que a contradio no era apenas uma dimenso essencial na conscincia do sujeito do conhecimento, conforme Kant tinha concludo; era um princpio bsico que no podia ser suprimido nem da conscincia do sujeito nem da realidade objetiva. Esse novo pensador, que se chamava Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), sustentava que a questo central da filosofia era a questo do ser, mesmo, e no a do conhecimento. Contra Kant, ele argumentou: Se eu pergunto o que o conhecimento, j na palavra est em jogo uma certa concepo de ser; a questo do conhecimento, daquilo que o conhecimento , s pode ser concretam ente discutida a partir da questo do ser.

    Hegel concordava com Kant num ponto essencial: no reconhecimento de que o sujeito humano essencialmente ativo e est sempre interferindo na realidade. Na poca da Revoluo Francesa, entusiasmado com a tomada da Bastilha pelo povo e com a derrubada de instituies antiqussimas (que pareciam eternas), Hegel - ento com 19 anos - plantou uma rvore da liberdade emTbingen, onde morava, em homenagem Frana. Naquele momento, o poder humano de intervir na realidade lhe pareceu quase ilimitado; o sujeito humano lhe pareceu quase onipotente.

    Logo, porm, a vida se encarregou de jogar gua fria no entusiasmo do filsofo. A Revoluo Francesa atravessou uma fase de terror, com a guilhotina cor

    tando inmeras cabeas, e depois veio a ser controla- da por Napoleo Bonaparte (mas o prprio Napoleo foi derrotado e a Europa se viu dominada pela poltica ultraconservadora da Santa Aliana). Alm disso, a Alemanha, pas onde o pensador vivia, era to atrasada que nem sequer tinha conseguido alcanar a sua unidade como nao: estava dividida em governos regionais, cada um mais reacionrio que o outro. Hegel descobriu, ento, com amargura, que o homem transforma ativamente a realidade, mas quem impe o ritmo e as condies dessa transformao ao sujeito , em ltima anlise, a realidade objetiva.

    Para avaliar de maneira realista as possibilidades do sujeito humano, Hegel procurou estudar seus movimentos no plano objetivo das atividades polticas e econmicas. Dedicou-se leitura e ao exame dos escritos de Adam Smith e dos tericos da economia poltica inglesa clssica. Lukcs mostrou, em seu livro sobre O jovem Hegel, que na base do pensamento de Hegel est no s uma reflexo aprofundada sobre a Revoluo Francesa, como tambm uma reflexo radical sobre a chamada revoluo industrial, que vinha se realizando na Inglaterra. Hegel percebe que o trabalho a mola que impulsiona o desenvolvimento humano; no trabalho que o homem se produz a si mesmo; o trabalho o ncleo a partir do qual podem ser compreendidas as formas complicadas da atividade criadora do sujeito humano. No trabalho se encontra tanto a resistncia do objeto (que nunca pode

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    ser ignorada) como o poder do sujeito, a capacidade que o sujeito tem de encaminhar, com habilidade e persistncia, uma superao dessa resistncia.

    Foi com o trabalho que o ser humano desgrudou um pouco da natureza e pde, pela primeira vez, contrapor-se como sujeito ao mundo dos objetos naturais. Se no fosse o trabalho, no existiria a relao sujeito-objeto.

    O trabalho criou para o homem a possibilidade de ir alm da pura natureza. A natureza, como tal, no cria nada de propriamente humano, observa o filsofo sovitico Evald Ilinkov. O homem no deixa de ser um animal, de pertencer natureza; porm, j no pertence inteiramente a ela. Os animais agem apenas em funo das necessidades imediatas e se guiam pelos instintos (que so foras naturais); o ser humano, contudo, capaz de antecipar na sua cabea os resultados das suas aes, capaz de escolher os caminhos que vai seguir para tentar alcanar suas finalidades. A natureza dita o comportamento aos animais; o homem, no entanto, conquistou certa autonomia diante dela. O trabalho permitiu ao homem dominar algumas das energias da natureza; permitiu-lhe, como escreveu o brasileiro Jos Arthur Giannotti, ter parte da natureza sua disposio.

    O trabalho o conceito-chave para ns compreendermos o que a superao dialtica. Para expressar a sua concepo da superao dialtica, H e

    gel usou a palavra alem aufheben, um verbo que significa suspender. Mas esse suspender tem trs sentidos diferentes. O primeiro sentido o de negar, anular, cancelar (como ocorre, por exemplo, quando suspendemos um passeio por causa do mau tempo, ou quando um estudante suspenso das aulas e no pode comparecer escola durante algum tempo). O segundo sentido o de erguer alguma coisa e mant-la erguida para proteg-la (como a gente v, por exemplo, num poema de Manuel Bandeira, quando o poeta fala do quarto onde morou h muitos anos e diz que ele foi preservado porque ficou intacto, suspenso no ar). E o terceiro sentido o de elevar a qualidade, promover a passagem de alguma coisa para um plano superior, suspender o nvel. Pois bem: Hegel emprega a palavra com os trs sentidos diferentes ao mesmo tempo. Para ele, a superao dialtica simultaneamente a negao de uma determinada realidade, a conservao de algo de essencial que existe nessa realidade negada e a elevao dela a um nvel superior.

    Isso parece obscuro, mas fica menos confuso se observamos o que acontece no trabalho: a matria- -prima negada (quer dizer, destruda em sua forma natural), mas ao mesmo tempo conservada (quer dizer, aproveitada) e assume uma forma nova, modificada, correspondente aos objetivos humanos (quer dizer, elevada em seu valor). E o que se v, por exemplo, no uso do trigo para o fabrico do po: o trigo triturado,

    O que dialtica

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    transformado em pasta, porm no desaparece de todo, passa a fazer parte do po, que vai ao forno e - depois de assado - se torna humanamente comestvel.

    Boa parte da obscuridade de Hegel resultava do fato de ele ser idealista. Hegel subordinava os movimentos da realidade material lgica de um princpio que ele chamava de Ideia Absoluta; como essa Ideia Absoluta era um princpio inevitavelmente nebuloso, os movimentos da realidade material eram, frequentemente, descritos pelo filsofo de maneira bastante vaga.

    No caminho aberto por Hegel, entretanto, surgiu outro pensador alemo, Karl Marx (1818-1883), materialista, que superou - dialeticamente - as posies de seu mestre. Marx escreveu que em Hegel a dialtica estava, por assim dizer, de cabea para baixo; decidiu, ento, coloc-la sobre seus prprios ps.

    Marx teve uma vida muito atribulada: ligou-se bem cedo ao movimento operrio e socialista, lutou na poltica ao lado dos trabalhadores, viveu na pobreza e passou a maior parte de sua vida no exlio (na Inglaterra) . A solidariedade ativa que o ligou aos trabalhadores contribuiu, certamente, para que ele tivesse do trabalho uma compreenso diferente daquela que tinha sido exposta pelo velho Hegel, cuja existncia transcorrera quase toda entre as quatro paredes da biblioteca e da sala de aula.

    Marx concordou plenamente com a observao de Hegel de que o trabalho era a mola que impulsionava

    o desenvolvimento humano, porm criticou a unilate- ralidade da concepo hegeliana do trabalho, sustentando que Hegel dava importncia demais ao trabalho intelectual e no enxergava a significao do trabalho fsico, material. O nico trabalho que Hegel conhece e reconhece - observou Marx em 1844 - o trabalho abstrato do esprito. Essa concepo abstrata do trabalho levava Hegel a fixar sua ateno exclusivamente na criatividade do trabalho, ignorando o lado negativo dele, as deformaes a que ele era submetido em sua realizao material, social. Por isso Hegel no foi capaz de analisar seriamente os problemas ligados alienao do trabalho nas sociedades divididas em classes sociais (especialmente na sociedade capitalista).

    O que dialtica

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    A ALIENAO

    O trabalho - admite Marx - a atividade pela qual o homem domina as foras naturais, humaniza a natureza; a atividade pela qual o homem se cria a si mesmo. Como, ento, o trabalho - de condio natural para a realizao do homem - chegou a tornar-se o seu algoz? Como ele chegou a se transformar em uma atividade que sofrimento, uma fora que impotncia, uma procriao que castrao?

    Uma primeira causa dessa deformao monstruosa se encontra na diviso social do trabalho, na apropriao privada das fontes de produo, no aparecimento das classes sociais. Alguns homens passaram a dispor de meios para explorar o trabalho dos outros; passaram a impor aos trabalhadores condies de trabalho que no eram livremente assumidas por estes. Introduziu-se, assim, um novo tipo de contradio no interior da comunidade humana, no interior do gnero humano.

    A partir da diviso social do trabalho, a humanidade passava a ter uma dificuldade bem maior para pensar

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    os seus prprios problemas e para encar-los de um ngulo mais amplamente universal: mesmo quando eram sinceros, os indivduos se deixavam influenciar pelo ponto de vista dos exploradores do trabalho alheio, pela perspectiva parcial inevitvel das classes sociais (conforme a caracterizao da ideologia por Lucien Goldmann).

    Diviso do trabalho e propriedade privada - escreveu Marx - so termos idnticos: um diz em relao explorao do trabalho escravo a mesma coisa que o outro diz em relao ao produto da explorao do trabalho escravo. As condies criadas pela diviso do trabalho e pela propriedade privada introduziram um estranham ento entre o trabalhador e o trabalho, uma vez que o produto do trabalho, antes mesmo de o trabalho se realizar, pertence a outra pessoa que no o trabalhador. Por isso, em lugar de realizar-se no seu trabalho, o ser humano se aliena nele; em lugar de reconhecer-se em suas prprias criaes, o ser humano se sente ameaado por elas; em lugar de libertar-se, acaba enrolado em novas opresses.

    O vigor e a coerncia da argumentao de Marx foram reconhecidos mesmo por escritores que no concordam com o ponto de vista dele. O padre Henri Chambre, por exemplo, admitiu que, partindo da concepo do homem como um ser que se cria atravs do trabalho, no se pode negar validade crtica de Marx propriedade privada: Se o homem fosse apenas atividade criadora e produtora de si mesmo e do mundo que o cerca, certo que toda apropriao privada se

    O que dialtica 31

    ria fonte de violncia e dominao do homem sobre o homem. Para um cristo, como Chambre, a ideia de que o homem se faz a si mesmo e humaniza o mundo pelo trabalho, sacrifica a espiritualidade do ser humano e o rebaixa condio animal, alm de ser uma manifestao de autossuficincia, um pecado de orgulho. Mas os marxistas tm boas razes para replicar que, na medida em que rejeitam a dialtica, os cristos se privam de um instrumento eficientssimo na anlise dos problemas humanos, perdem boas possibilidades de agir com eficcia no plano poltico e acabam desperdiando energias na retrica dos bons conselhos, na pregao moralista e em projetos ingnuos (idealistas) de reforma dos costumes e das mentalidades.

    Os marxistas acham que a nica maneira de superar a diviso da sociedade em classes e dar incio a um processo de desalienao do trabalho levar em conta a realidade da luta de classes para promover a revoluo socialista. Marx no inventou a luta de classes: limitou-se a reconhecer que ela existia e procurou extrair as consequncias da sua existncia. Antes de Marx, diversos autores j tinham enxergado a questo. James Madison, ex-presidente dos Estados Unidos, por exemplo, escreveu, em 1787: Proprietrios e no proprietrios sempre formaram interesses diversos dentro da sociedade. Marx, porm, foi mais longe do que Madison; com a ajuda de Friedrich Engels (1820-1895), Marx reexaminou a histria social da humanidade e concluiu, em 1848, no Manifesto comunista, que toda

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    a histria transcorrida at ento tinha sido uma histria de lutas de classes.

    As lutas de classes assumem formas extraordinariamente variadas: s vezes so fceis de ser reconhecidas, so mais ou menos diretas; s vezes, contudo, elas se tornam extremamente complexas e no cabem em interpretaes simplistas. Nas sociedades capitalistas, as lutas de classes tendem a assumir formas polticas cada vez mais complicadas.

    Examinando o modo de produo capitalista, em seu livro O capital, Marx notou que com ele se criou uma situao poltica nova, sem precedentes, na histria das lutas de classes. O capitalismo como aquele aprendiz de feiticeiro que colocou em movimento foras que em seguida escaparam ao seu controle: com o capitalismo, desenvolveu-se notavelmente a tecnologia, as foras produtivas tiveram um crescimento excepcional e o capitalismo vem tendo dificuldades cada vez maiores para aproveit-las. A competio desenfreada dos capitalistas uns com os outros, em torno da busca do maior lucro, acarreta um grave desperdcio de recursos. Na competio, os empresrios mais poderosos vo impondo a lei deles, os mais fracos vo sendo sacrificados e acabam prevalecendo os monoplios. Por outro lado, para poder explor-los, o capital rene os operrios em suas indstrias, mas essa massa trabalhadora aglomerada se organiza, tom a conscincia de sua fora, passa a reivindicar com maior firmeza as coisas que lhe convm, at poder liderar uma revoluo social

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    e criar uma organizao socialista para a sociedade. A socializao do trabalho e a centralizao de seus recursos materiais - escreve Marx - "chegam a um ponto no qual no cabem mais no envoltrio capitalista.

    Nunca tinha sido criada na histria da humanidade, antes do capitalismo, uma situao como essa: pela primeira vez existe uma classe social o proletariado moderno - que no lidera um movimento destinado a substituir um modo de produo baseado numa forma de propriedade privada por outro modo de produo baseado em outra forma de propriedade privada. Pela primeira vez os anseios e ideais igualitrios, coletivistas, socialistas, comunistas, dispem de um portador material capaz de coloc-los em prtica, atravs de uma prolongada luta poltica. A superao da diviso social do trabalho deixou de ser um sonho: passou a ser um programa que - em princpio - pode ser executado.

    E essa , na anlise de Marx, a segunda causa da deformao que ele viu na situao do trabalho (que, em vez de servir para o ser humano realizar-se, servia para alien-lo). Se a primeira causa da anomalia era antiga a propriedade privada, a existncia das classes sociais - , a segunda, mais recente, estava no agravamento da explorao do trabalho sob o capitalismo. O mercado capitalista vive em permanente expanso, o capital tende a ocupar todos os espaos que possam lhe proporcionar lucros. E as leis do mercado vo dominando a sociedade inteira: todos os valores humanos autnticos vo sendo destrudos pelo dinheiro, tudo vira mer

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    cadoria, tudo pode ser comercializado, todas as coisas podem ser vendidas ou compradas por um determinado preo. A fora de trabalho do ser humano - claro - no podia deixar de ser arrastada nessa onda; ela tambm se transforma em mercadoria e seu preo passa a sofrer as presses e flutuaes do mercado. Os trabalhadores, alm de viverem sob a ameaa da perda do emprego, so obrigados a se organizar e a lutar para defender seus salrios; e o fato de tomarem conscincia de que j existe uma alternativa socialista e de que a organizao da produo poderia ser diferente um fato que s pode agravar o mal-estar que sentem no trabalho.

    O agravamento da alienao do trabalho sob o capitalismo, contudo, no afeta apenas os operrios; os capitalistas tambm so atingidos. A mesma busca desenfreada do lucro, que leva o capitalista a explorar o trabalho do operrio, leva-o tambm a procurar tirar vantagem de suas relaes competitivas com os outros capitalistas. Por isso, o mercado, que funciona em proveito da burguesia como classe, sempre uma realidade incerta, inquietante, e s vezes ameaadora, para os burgueses individualmente considerados.

    Mesmo quando desenvolve tcnicas cada vez mais aperfeioadas para controlar o funcionamento de suas empresas e as operaes de seus negcios, a burguesia carece da capacidade de continuar a controlar a sociedade como um todo. Como classe, na atual etapa histrica, ela no consegue elevar seu ponto de vista a uma perspectiva totalizante.

    A TOTALIDADE

    Para a dialtica marxista, o conhecimento tota- lizartte e a atividade humana, em geral, um processo de totalizao, que nunca alcana uma etapa definitiva e acabada. Mas o que quer dizer exatamente isso? O que significa totalizantel E o que significa totalizao? Vamos trocar a coisa em midos.

    Qualquer objeto que o homem possa perceber ou criar parte de um todo. Em cada ao empreendida, o ser humano se defronta, inevitavelmente, com problemas interligados. Por isso, para encaminhar uma soluo para os problemas, o ser humano precisa ter uma certa viso de conjunto deles: a partir da viso do conjunto que podemos avaliar a dimenso de cada elemento do quadro. Foi o que Hegel sublinhou quando escreveu: A verdade o todo. Se no enxergarmos o todo, podemos atribuir um valor exagerado a uma verdade limitada (transformando-a em mentira), prejudicando a nossa compreenso de uma verdade mais geral.

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    Exemplo disso: algum observa que o capitalista X um homem generoso, progressista, sinceramente preocupado com seus operrios. Essa observao pode ser correta. No entanto, necessrio entend-la dentro de seus limites, para no perdermos de vista o fato de que ela nunca pode ser usada para pretender invalidar outra observao mais abrangente: a de que o sistema capitalista, por sua prpria essncia, impele os capitalistas em geral, quaisquer que sejam as qualidades humanas deles, a extrarem mais-valia do trabalho de seus operrios.

    A viso de conjunto - ressalve-se - sempre provisria e nunca pode pretender esgotar a realidade a que ele se refere. A realidade sempre mais rica do que o conhecimento que temos dela. H sempre algo que escapa s nossas snteses; isso, porm, no nos dispensa do esforo de elaborar snteses, se quisermos entender melhor a nossa realidade. A sntese a viso de conjunto que permite ao homem descobrir a estrutura significativa da realidade com que se defronta, numa situao dada. E essa estrutura significativa - que a viso de conjunto proporciona - que chamada de totalidade.

    A totalidade mais do que a soma das partes que a constituem. No trabalho, por exemplo, dez pessoas bem entrosadas produzem mais do que a soma das produes individuais de cada uma delas, isoladam ente considerada. Na maneira de se articularem e de constiturem uma totalidade, os elementos individuais assumem caractersticas que no teriam, caso permanecessem fora do conjunto.

    H totalidades mais abrangentes e totalidades menos abrangentes: as menos abrangentes, claro, fazem parte das outras. A maior ou menor abrangncia de uma totalidade depende do nvel de generalizao do pensamento dos objetivos concretos dos homens em cada situao dada. Se eu estou empenhado em analisar as questes polticas que esto sendo vividas pelo meu pas, o nvel de totalizao que me necessrio o da viso de conjunto da sociedade brasileira, da sua economia, da sua histria, das suas contradies atuais. Se, porm, eu quiser aprofundar a minha anlise e quiser entender a situao do Brasil no quadro mundial, vou precisar de um nvel de totalizao mais abrangente: vou precisar de uma viso de conjunto do capitalismo, da sua gnese, da sua evoluo, dos seus impasses no mundo de hoje. E, se eu quiser elevar a minha anlise a um plano filosfico, precisarei ter, ento, uma viso de conjunto da histria da humanidade, quer dizer, da dinmica da realidade humana como um todo (nvel mximo de abrangncia da totalizao dialtica).

    E evidente que, na prtica, a vida coloca diante de mim problemas que eu tenho de resolver, em geral, sem necessidade de recorrer a cada passo a consideraes de filosofia da histria (isto , ao nvel de totalizao mais abrangente). De certo modo, contudo, mesmo no dia a dia, ns estamos sempre, implicitamente, totalizando; estamos sempre trabalhando com totalidades de maior ou menor abrangncia.

    O que dialtica

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    Para trabalhar diaieticamente com o conceito de totalidade, muito importante sabermos qual o nvel de totalizao exigido pelo conjunto de problemas com que estamos nos defrontando; e muito importante, tambm, nunca esquecermos que a totalidade apenas um momento de um processo de totalizao (que, conforme j advertimos, nunca alcana uma etapa definitiva e acabada). Afinal, a dialtica - maneira de pensar elaborada em funo da necessidade de reconhecermos a constante emergncia do novo na realidade humana negar-se-ia a si mesma, caso cristalizasse ou coagulasse suas snteses, recusando-se a rev-las, mesmo em face de situaes modificadas.

    A modificao do todo s se realiza, de fato, aps um acmulo de mudanas nas partes que o compem. Processam-se alteraes setoriais, quantitativas, at que se alcana um ponto crtico que assinala a transformao qualitativa da totalidade. E a lei dialtica da transformao da quantidade em qualidade. Voltaremos a falar dessa lei. Por enquanto, o que devemos sublinhar que a modificao do todo mais complicada que a modificao de cada um dos elementos que o integram. E devemos sublinhar outra coisa: cada totalidade tem sua maneira diferente de mudar; as condies da mudana variam dependendo do carter da totalidade e do processo especfico do qual ela um momento.

    Vejamos um exemplo. Observemos a sociedade brasileira. Podemos analis-la em trs nveis distintos. Num primeiro nvel, podemos estudar seu regime ju

    rdico-poltico, suas leis, suas instituies, seu sistema administrativo, a estrutura do seu Estado. Num segundo nvel, podemos mergulhar mais fundo e procurar examinar a histria da sociedade brasileira, a relao existente entre sua vida poltica, seus problemas sociais e sua economia; podemos encar-la como formao so- cioeconmica. E, finalmente, num terceiro nvel, mais geral e mais abstrato, podemos fixar nossa ateno no modo de produo que se acha na base da formao so- cioeconmica existente.

    Na prtica, no possvel separar inteiramente as questes que se apresentam num desses nveis das questes que se manifestam nos outros dois; afinal, concretamente, elas so elementos de uma mesma realidade global, que a sociedade brasileira. No entanto, focalizada no plano de cada uma das diversas totalizaes mencionadas, essa realidade nos revela aspectos distintos, que nos ajudam a compor sua verdadeira fisionomia e a orientar de maneira mais realista nossa atividade tendente a transform-la.

    Em 1964, quando foi deposto o presidente Joo Goulart, e em 1968, quando foi decretado o AI-5, o Brasil sofreu uma importante modificao (em dois episdios): mudou o seu regime jurdico-poltico. Era necessrio reconhecer a mudana qualitativa dessa totalidade, para extrair todas as consequncias que se impunham, no plano estratgico (e no ficar se iludindo com a ideia de que tinha ocorrido uma mera quartelada cujos efeitos seriam passageiros). Ao mesmo tem-

    O que dialtica

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    po, porm, era preciso observar que, como formao socioeconmica, o Brasil no sofrera nenhuma alterao significativa em 1964 ou em 1968. A formao socioeconmica, como totalidade, no muda no mesmo ritmo que o regime jurdico-poltico.

    Ao longo destas ltimas dcadas, num ritmo bem mais lento que o do regime jurdico-poltico, a nossa formao socioeconmica est se modificando; em certos aspectos, com o crescimento econmico, com o avano da industrializao, com a modernizao conservadora (promovida de cima para baixo), a nossa formao socioeconmica j mudou bastante e assumiu, inclusive, caractersticas qualitativamente novas. O que se passa, entretanto, com o modo de produo capitalista no Brasil? Ele apresenta sinais de que est na iminncia de sofrer alguma alterao qualitativa? Est na iminncia de ser modificado como totalidade? Em vo, os revolucionrios impacientes, acicatados pela pressa pequeno-burguesa, cansam-se na busca de indcios de que a grande crise do modo de produo capitalista no Brasil est prxima; tudo indica que esse modo de produo continua bastante forte.

    Temos, ento, trs totalidades, elaboradas em trs nveis diversos, exprimindo trs processos diferentes de totalizao e nos revelando trs aspectos distintos (todos os trs importantssimos) da mesma realidade brasileira.

    A CONTRADIO E A MEDIAO

    A esta altura da nossa exposio, o leitor pode indagar: como que eu posso ter a certeza de que estou trabalhando com a totalidade correta, de que estou fazendo a totalizao adequada situao em que me encontro? A nica resposta possvel a esta pergunta se arrisca a ser decepcionante: no h, no plano puramente terico, soluo para o problema. A teoria necessria e nos ajuda muito, mas por si s no fornece os critrios suficientes para estarmos seguros de agir com acerto. Nenhuma teoria pode ser to boa a ponto de nos evitar erros. A gente depende, em ltima anlise, da prtica - especialmente da prtica social - para verificar o maior ou menor acerto do nosso trabalho com os conceitos (e com as totalizaes).

    A teoria nos ajuda fornecendo importantes indicaes. Em relao totalidade, por exemplo, a teoria dialtica recomenda que prestemos ateno ao re-

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    cheio de cada sntese, quer dizer, s contradies e mediaes concretas que a sntese encerra.

    Na investigao cientfica da realidade, comeamos trabalhando com conceitos que so, ainda, snteses muito abstratas. Marx d o exemplo da populao. A populao um todo, mas o conceito de populao permanece vago se no conhecemos as classes de que a populao se compe. S podemos conhecer con- cretam ente as classes, entretanto, se estudarmos os elementos sobre os quais elas se apoiam, na existncia delas, tais como o trabalho assalariado, o capital etc. Tais elementos, por sua vez, supem o comrcio, a diviso do trabalho, os preos etc. Se comeo pela populao, portanto, tenho uma representao catica do conjunto; depois, atravs de uma determinao mais precisa, por meio de anlises, chego a conceitos cada vez mais simples. Alcanado tal ponto, fao a viagem de volta e retorno populao. Dessa vez, contudo, no terei sob os olhos um amlgama catico e sim uma totalidade rica em determinaes, em relaes complexas. Esse texto de Marx de grande interesse para ns. O ponto de partida - observemos - no um conceito rudimentar: uma expresso que designa, ainda confusamente, uma realidade complicada. A anlise, portanto, s pode ser orientada com base em uma sntese (mesmo precria) anterior. Uma certa compreenso do todo precede a prpria possibilidade de aprofundar o conhecimento das partes.

    Mas o texto ainda diz mais: por anlise, eu decomponho e recomponho o conhecimento indicado na expresso que me serviu de ponto de partida. No fim, realizada a viagem do mais complexo (ainda abstrato) ao mais simples e feito o retorno do mais simples ao mais complexo (j concreto), a expresso populao passa a ter um contedo bem determinado. O concreto, portanto, o resultado de um trabalho. O concreto- insiste Marx - concreto porque a sntese de vrias determinaes diferentes, unidade na diversidade.

    A concepo de Marx, segundo a qual o conhecimento no um ato e sim um processo, desenvolveu- -se em polmica contra a concepo irracionalista. Os irracionalistas consideram a intuio um instrumento privilegiado do conhecimento humano; para eles, o que sacado intuitivamente j possui valor de verdade, de modo que no existe nenhum motivo para ns trilharmos o trabalhoso caminho indicado por Marx: a impresso genrica obtida no ponto de partida j nos basta. O irracionalismo desestimula o ser humano a realizar o paciente esforo de ir alm da aparncia, em busca da essncia dos fenmenos. E as totalidades dos irracionalistas permanecem um tanto vazias, no tm um recheio definido.

    A dialtica muito mais exigente do que o irracionalismo. Para reconhecer as totalidades em que a realidade est efetivamente articulada (em vez de inventar totalidades e procurar enquadrar nelas a realidade),

    O que dialtica

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    o pensamento dialtico obrigado a um paciente trabalho: obrigado a identificar, com esforo, gradualmente, as contradies concretas e as mediaes especficas que constituem o tecido de cada totalidade, que do vida a cada totalidade.

    A dialtica - observa Carlos Nelson Coutinho- no pensa o todo negando as partes, nem pensa as partes abstradas do todo. Ela pensa tanto as contradies entre as partes (a diferena entre elas: o que faz de uma obra de arte algo distinto de um panfleto poltico) como a unio entre elas (o que leva a arte e a poltica a se relacionarem no seio da sociedade enquanto totalidade).

    Os irracionalistas, implicitamente, dispensam- -nos desse esforo. Quem achar que j sacou intuiti-r vmente o todo no precisar examinar cuidadosamente as partes. Mas tambm no ter uma compreenso clara das conexes e conflitos internos e ficar com uma totalidade um tanto nebulosa.

    J Hegel criticava a concepo irracionalista que seu ex-amigo Schelling adotara da totalidade (do absoluto), dizendo que se tratava de uma noite na qual todas as vacas eram pardas.

    Para que o nosso conhecimento avance e o nosso laborioso (e interminvel) descobrimento da realidade se aprofunde - quer dizer: para podermos ir alm das aparncias e penetrar na essncia dos fenmenos - precisamos realizar operaes de sntese e de anlise que

    esclaream no s a dimenso imediata como tambm, e sobretudo, a dimenso mediata delas.

    A experincia nos ensina que em todos os objetos com os quais lidamos existe uma dimenso imediata (que ns percebemos imediatamente) e existe uma dimenso mediata (que a gente vai descobrindo, construindo ou reconstruindo aos poucos). Vejamos, por exemplo, este livrinho sobre a dialtica que est nas mos do leitor: uma realidade imediata, palpvel, legvel; um conjunto de folhas impressas com smbolos grficos. Mas no s isso. Se o leitor parar um pouco para pensar sobre ele, verificar que o fato de o livro estar em suas mos passa por uma srie de mediaes, um fato que est mediatizado por outros fatos e por diversas aes humanas. A mediao mais prxima a ser reconstituda a do deslocamento do livro: como foi que ele veio parar nas mos do leitor? O leitor comprou-o numa livraria? Recebeu-o de presente? Est lendo o volume numa biblioteca? H tambm uma mediao subjetiva: qual foi o motivo que levou o leitor a se interessar pelo livrinho? Por que este livro e no outro? Quando e como o leitor passou a ter a impresso ou a convico de que o assunto do livro era digno de ateno e valia a pena l-lo? Quais foram as experincias pessoais e os condicionamentos culturais que o levaram a isso?

    Somente levando em conta essas (e outras) mediaes que poderemos avaliar corretamente toda a

    O que dialtica ^

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    significao do fato de o livro estar, agora, neste imediato momento, nas mos do leitor.

    As mediaes, entretanto, obrigam-nos a refletir sobre outro elemento insuprimvel da realidade: as contradies. H muita confuso em torno da palavra contradio. Desde que Hegel exps pela primeira vez os fundamentos do mtodo dialtico, uma das principais objees formuladas contra ele - uma objeo at hoje repetida - a de que o conceito de contradio usado pelos dialticos estaria errado.

    Durante sculos, a hegemonia do pensamento metafsico nos acostumou a reconhecermos somente um tipo de contradio: a contradio lgica. A lgica, como toda cincia, ocupa-se da realidade apenas em um determinado nvel; para alcanar resultados rigorosos, ela limita o seu campo e trata de uma parte da realidade. As leis da lgica so certam ente vlidas, no campo delas; e - nesse campo de validade - a contradio a manifestao de um defeito no raciocnio.

    Existem, porm, dimenses da realidade humana que no se esgotam na disciplina das leis lgicas. Existem aspectos da realidade humana que no podem ser compreendidos isoladamente: se queremos comear a entend-los, precisamos observar a conexo ntima que existe entre eles e aquilo que eles no so. Henri Lefebvre escreveu, com razo: No podemos dizer ao mesmo tempo que determinado objeto redondo e qua

    drado. Mas devemos dizer que o mais s se define com o menos, que a dvida s se define pelo emprstimo".

    As conexes ntimas que existem entre realidades diferentes criam unidades contraditrias. Em tais unidades, a contradio essencial: no um mero defeito do raciocnio. Num sentido amplo, filosfico, que no se confunde com o sentido que a lgica confere ao termo, a contradio reconhecida pela dialtica como princpio bsico do movimento pelo qual os seres existem. A dialtica no se contrape lgica, mas vai alm da lgica, desbravando um espao que a lgica no consegue ocupar.

    Para desbravar esse novo espao, a dialtica modifica os instrumentos conceituais de que dispe: passa a trabalhar, frequentemente, com determinaes reflexivas e procura promover uma fluidifi cao dos conceitos. No se assuste com essas expresses, leitor; vamos explic-las no prximo captulo.

    O que dialtica

  • A f l u id if ic a o d o s c o n c e it o s

    Marx pretendia escrever um livro, explicando sua concepo da dialtica. Chegou a anunciar o projeto, em dezembro de 1875, numa carta a Joseph Dietzgen. Mas os trabalhos de preparao e redao de O capital no lhe deixaram tempo para isso.

    O capital contm muitos elementos preciosos para estudarmos como Marx entendia e aplicava a dialtica. H, inclusive, estudos importantes sobre a dialtica n0 capital, podemos lembrar, por exemplo, os estudos dos soviticos Rudin, Rosental e Ilinkov, do polons Rosdolsky, do tcheco Zeleny e do sueco Helmut Reichelt. Por mais importantes que sejam, contudo, esses estudos so interpretaes polmicas, que no podem substituir a exposio da dialtica como mtodo, anunciada em 1875 a Dietzgen e jamais escrita. compreensvel, portanto, que at hoje existam muitas discusses sobre a dialtica de Marx. Quais so, pre-

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    cisamente, suas caractersticas essenciais? Quais so, precisamente, suas relaes com a dialtica de Hegel? Alguns pontos foram devidamente esclarecidos pelo prprio Marx, quando ele falou de diferenas fundamentais entre seu mtodo e o de Hegel, decorrentes do fato de Hegel ser idealista e ele ser materialista. H egel descrevia o processo global da realidade da seguinte maneira: a Ideia Absoluta assumiu a imperfeio (a instabilidade) da matria, desdobrou-se em uma srie de movimentos que a explicitavam e realizavam, para, afinal, com a trajetria ascensional do ser humano, iniciar- enriquecida - seu retorno a si mesma. Essa descrio que claramente idealista supe o conhecimento do ponto de partida e do ponto de chegada do movimento da realidade. Quer dizer: a descrio do processo da realidade como uma totalidade fechada, redonda . Marx, como materialista, no podia aceitar essa descrio: para ele, o processo da realidade s podia ser encarado como uma totalidade aberta, quer dizer, atravs de esquemas que no pretendessem reduzir a infinita riqueza da realidade ao conhecimento.

    Para dar conta do movimento infinitamente rico pelo qual a realidade est sempre assumindo formas novas, os conceitos com os quais o nosso conhecimento trabalha precisam aprender a ser fluidos. Hegel, com a dialtica dele, lanou as bases para a fluidificao dos conceitos; em Hegel, no entanto, a fluidificao ficava limitada pelo carter excessivamente abstrato do

    quadro global (totalidade) da histria humana. Isso se v, por exemplo, no uso do conceito de natureza humana: em Hegel, o ser humano que promovia o movimento da histria era uma abstrata autoconscincia, ligada tal da Ideia Absoluta, praticamente desvinculada dos problemas que afetam o corpo dos homens, de modo que a natureza humana, tal como Hegel a entendia, era idealizada, tinha muito pouco de natureza e por isso lhe faltava uma dimenso histrica mais concreta. Marx, por sua vez, conseguiu fluidificar muito mais radicalmente o conceito de natureza humana. Para Marx, o homem tinha um corpo, uma dimenso concretam ente natural, e por isso & natureza humana se modificava materialmente, na sua atividade fsica sobre o mundo: ao atuar sobre a natureza exterior, o homem modifica, ao mesmo tempo, sua prpria natureza. O movimento autotransformador da natureza humana, para Marx, no um movimento espiritual (como em Hegel) e sim um movimento material, que abrange a modificao no s das formas de trabalho e organizao prtica de vida, mas tambm dos prprios rgos dos sentidos: o olho humano passou a ver coisas que no enxergava antes, o ouvido humano foi educado pela msica para ouvir coisas que no escutava antes etc. A formao dos cinco sentidos - escreveu Marx - trabalho de toda a histria passada.

    A natureza humana, por conseguinte, conforme o conceito que Marx tem dela, s existe na histria, num

    O que dialtica

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    processo global de transformao, que abarca todos os seus aspectos. E a histria, em seu conjunto, no outra coisa seno uma transformao contnua da natureza humana (conforme se l na Misria da filosofia).

    A essa altura da nossa explicao do conceito marxista de natureza humana, entretanto, uma pergunta se impe: se a natureza humana se transforma globalmente e de modo contnuo ao longo da histria, por que continuar a empregar o conceito de natureza humana? Como ele poderia corresponder a algo de constante, capaz de justific-lo? Como poderia haver algo em comum entre ns, homens do sculo XX, e, por exemplo, os gregos do sculo V antes de Cristo?

    Marx no reconhece a existncia de nenhum aspecto da realidade humana situado acima da histria ou fora dela; mas admite que determinados aspectos da realidade humana perduram na histria. Exatamente porque o movimento da histria marcado por superaes dialticas, em todas as grandes mudanas h uma negao mas, ao mesmo tempo, uma preservao (e uma elevao em nvel superior) daquilo que tinha sido estabelecido antes. Mudana e permanncia so categorias reflexivas, isto , uma no pode ser pensada sem a outra. Assim como no podemos ter uma viso correta de nenhum aspecto estvel da realidade humana se no soubermos situ-lo dentro do processo geral de transformao a que ele pertence (dentro da totalidade dinmica de que ele faz parte), tambm no podemos avaliar

    nenhuma mudana concreta se no a reconhecermos como mudana de um ser (quer dizer, de uma realidade articulada e provida de certa capacidade de durar).

    Marx no era Herclito, o Obscuro. Ele sabia que, quando um homem se banha duas vezes num determinado rio, inegvel que da segunda vez o homem ter mudado, o rio tambm ter sofrido alteraes, mas apesar das modificaes o homem ser o mesmo homem (e no um outro indivduo qualquer) e o rio ser o mesmo rio (e no um outro rio qualquer). Por isso, Marx empregou o conceito de natureza humana.

    Para Marx, a fiuidificao dialtica dos conceitos no tinha nada a ver com o relativismo e no podia, em nenhum momento, ser confundida com ele. Num escrito de 1857, Marx lembrou o caso da arte grega do sculo V a.C. que refletia as condies sociais de Atenas, naquele momento, e no entanto continuava a ter algo a dizer a seres humanos que viviam em outros pases, em outros tempos, com outro nvel de desenvolvimento das foras produtivas, outras relaes de produo, vinte e quatro sculos mais tarde. O exemplo da epopeia e da tragdia dos antigos gregos mostrava que a dimenso histrica de certas criaes humanas no as impede de perdurar e nem as reduz a uma eficcia momentnea, limitada. A mesma vitalidade demonstrada pela arte grega, alis, pode ser encontrada em certas ideias e observaes de Aristteles, em alguns dos conceitos criados por ele: as criaes mais signi

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  • 54 Leandro Konder

    ficativas do esprito humano e da atividade prtica do homem se incorporam ao processo da histria da humanidade e so capazes, por assim dizer, de continuar vivas (mudam as condies histricas, muda a nossa maneira de avali-las, mas so elas - e no outras criaes do passado - que permanecem presentes no nosso horizonte). Em certo sentido, por conseguinte, podemos dizer que nessas criaes excepcionalmente bem-sucedidas dos seres humanos h alguma coisa de verdade absoluta; por isso, o desenvolvimento posterior do conhecimento humano no deixa que elas caiam no esquecimento (porqueprecisa delas). Nenhuma dessas criaes pode ser adequadamente compreendida e assimilada pelas pocas que vieram depois delas sem um exame das condies especficas em que cada obra foi elaborada; cada uma delas possui uma ligao essencial com o momento da sua gnese; mas, na maneira de expressarem o momento histrico em que nasceram, elas conseguem acrescentar algo ao processo histrico como um todo. A fluidificao dos conceitos destinados a tratar dos dois lados dessa realidade s pode ocorrer atravs da determinao reflexiva: os conceitos funcionam como pares inseparveis. Por isso, a dialtica no pode admitir contraposies metafsicas, tais como mudana/permanncia, ou absoluto/relativo, ou f i nito/infinito, ou singular/universal, etc. Para a dialtica, tais conceitos so como cara e coroa: duas faces da mesma moeda.

    As LEIS DA DIALTICA

    Nos ltimos anos de vida de Marx, enquanto ele se esforava para tentar acabar de escrever O capital, seu amigo Engels redigiu diversas anotaes sobre questes que nos interessam, relativas dialtica. Marx apoiou Engels nas observaes que este desenvolvia (e que continuou a desenvolver aps a morte do autor d O capital).

    A grande preocupao de Engels era defender o carter materialista da dialtica, tal como Marx e ele a concebiam. Era preciso evitar que a dialtica da histria humana fosse analisada como se no tivesse absolutamente nada a ver com a natureza, como se o homem no tivesse uma dimenso irredutivelmente natural e no tivesse comeado sua trajetria na natureza. Uma certa dialtica na natureza (ou pelo menos uma pr- -dialtica) era, para Marx e para Engels, uma condio prvia para que pudesse existir a dialtica humana.

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    Engels concentrou, ento, sua ateno no exame dos princpios daquilo que ele chamou de dialtica da natureza e chegou concluso de que as leis gerais da dialtica (comuns tanto histria humana como natureza) podiam ser reduzidas, no essencial, a trs:

    1) lei da passagem da quantidade qualidade (e vice-versa);

    2) lei da interpenetrao dos contrrios;3) lei da negao da negao.A primeira lei se refere ao fato de que, ao muda

    rem, as coisas no mudam sempre no mesmo ritmo; o processo de transformao por meio do qual elas existem passa por perodos lentos (nos quais se sucedem pequenas alteraes quantitativas) e por perodos de acelerao (que precipitam alteraes qualitativas, isto , saltos , modificaes radicais). Engels d o exemplo da gua que vai esquentando, at alcanar cem graus centgrados e ferver, quando se precipita a sua passagem do estado lquido ao estado gasoso.

    A segunda lei aquela que nos lembra que tudo tem a ver com tudo, os diversos aspectos da realidade se entrelaam e, em diferentes nveis, dependem uns dos outros, de modo que as coisas no podem ser compreendidas isoladamente, uma por uma, sem levarmos em conta a conexo que cada uma delas mantm com coisas diferentes. Conforme as conexes (quer dizer, conforme o contexto em que ela esteja situada), prevalece, na coisa, um lado ou o outro da sua realidade

    (que intrinsecamente contraditria). Os dois lados se opem e, no entanto, constituem uma unidade (e por isso essa lei j foi tambm chamada de unidade e luta dos contrrios).

    A terceira lei d conta do fato de que o movimento geral da realidade fa z sentido, quer dizer, no absurdo, no se esgota em contradies irracionais, ininteligveis, nem se perde na eterna repetio do conflito entre teses e antteses, entre afirmaes e negaes. A afirmao engendra necessariamente a sua negao, porm a negao no prevalece como tal: tanto a afirmao como a negao so superadas e o que acaba por prevalecer uma sntese, a negao da negao.

    Essas leis j se achavam em Hegel; Engels procurou resgat-las do idealismo hegeliano e dar-lhes um sentido claramente materialista. Expondo, simpli- ficadamente, algumas das noes bsicas da dialtica, Engels teve um imenso xito e exerceu uma influncia notvel no pensamento de vrias geraes de operrios conscientes e militantes socialistas. A polmica de Engels contra Dhring se tornou um marco na histria das ideias do movimento operrio.

    A experincia que foi sendo adquirida pelo movimento socialista ao longo do sculo XX mostrou que as formulaes de Engels - embora brilhantes e didticas- possuem certas limitaes.

    As leis da dialtica no se deixam reduzir a trs e essa reduo, tal como Engels a realizou, tem algo

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    de arbitrrio. Os princpios da dialtica se prestam mal a qualquer codificao. Um cdigo, por definio, articula as leis, fixa as leis em artigos (artigo primeiro, artigo segundo etc.). Como poderiam, porm, ser fixadas em artigos as leis de uma filosofia da mudana, de uma concepo do mundo segundo a qual existe sempre alguma coisa de novo sob o sol?

    O utra limitao: os exemplos usados por Engels para esclarecer o funcionamento das leis da dialtica eram todos extrados das cincias da natureza. Por qu? Porque nas cincias exatas - dizia ele - as quantidades podem ser medidas e a demonstrao pode se tornar mais convincente. Esse procedimento, entretanto, acabou sendo aproveitado por tendncias polticas e ideolgicas que, no interior do movimento socialista, sabotaram o aprofundamento da dialtica (por exemplo, as tendncias das quais Stlin foi o representante mais poderoso). Falaremos, mais adiante, dos problemas que vieram a se manifestar, ao longo do sculo XX, na histria da dialtica. Por ora, vamos nos limitar, aqui, a lembrar que a dialtica parte do reconhecimento do fato de que o processo de autocriao do homem introduziu na realidade uma dimenso nova, cujos problemas exigem um enfoque tambm novo. O terreno em que a dialtica pode demonstrar decisivamente aquilo de que capaz no o terreno da anlise dos fenmenos quantificveis da natureza e sim o da histria humana, o da transformao da sociedade.

    Evidentemente, o que acaba de ser dito a respeito das limitaes das formulaes de Engels sobre as leis da dialtica no significa que as referidas leis sejam falsas e devam ser esquecidas; significa apenas que elas devem ser utilizadas com as devidas precaues. Engels era um pensador dialtico de grandes mritos. Em sua obra existem elementos que podemos invocar em favor da advertncia que fizemos, quanto profunda diferena que existe entre a dialtica na natureza e a dialtica na histria humana.

    No Anti-Dhring, por exemplo, Engels d um caso de passagem da quantidade qualidade ocorrido na histria (um caso observado por Napoleo Bonaparte). Napoleo analisou as lutas entre a cavalaria francesa, bem organizada e disciplinada, e a cavalaria dos mamelucos (que eram hbeis cavaleiros, dispunham de excelentes cavalos, mas eram indisciplinados). E tinha dito: Dois mamelucos derrotavam seguramente trs franceses; cem mamelucos enfrentavam, em igualdade de condies, cem franceses; trezentos franceses venciam trezentos mamelucos; e mil franceses derrotavam, inevitavelmente, 1500 mamelucos.

    Esse exemplo de enorme utilidade para ns. Se o compararmos ao exemplo da gua que ferve aos cem graus e passa do estado lquido ao gasoso, perceberemos que ambos so casos de passagem da quantidade qualidade, porm so fenmenos de naturezas muito diferentes. No caso da gua, temos um fenmeno f

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    sico, que no depende da vontade humana. No caso do confronto das duas cavalarias, temos um processo que depende da organizao, isto , depende de fatores subjetivos, de decises e escolhas. Um processo que comporta alternativas e depende de iniciativas.

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    O SUJEITO E A HISTRIA

    Depois da morte de Marx (em 1883) e de Engels (em 1895), o desenvolvimento do pensamento dialtico no se interrompeu e prosseguiu seu acidentado caminho. No final do sculo XIX, o socialista alemo Eduard Bernstein (1850-1932) passou a criticar os escritos de Marx, sustentando que o capitalismo estava mais forte do que nunca, que as previses do Manifesto comunista (de 1848) tinham falhado, de modo que era preciso subm eter a uma rigorosa reviso os princpios que Marx tinha defendido. E a dialtica, segundo o revisionista Bernstein, era o elemento prfido na doutrina marxista, o obstculo que impede qualquer apreciao lgica das coisas. Bernstein preconizou, ento, um abandono da dialtica, da herana hegeliana do marxismo, e um retorno a Kant.

    Na ocasio, as posies de Bernstein foram criticadas e recusadas pela direo do principal partido so-

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    cialista do comeo do sculo XX: o Partido Social-De- mocrtico Alemo. As posies que venceram no debate foram as de Karl Kautsky (1854-1938). Mas Kautsky tambm no era um autntico dialtico: ele confundia a dialtica com o evolucionismo e s vezes se mostrava muito mais um discpulo de Darwin do que um discpulo de Marx (e tendia a considerar a histria da humanidade uma mera parte da histria global da natureza).

    A primeira gerao de tericos socialistas que veio depois da gerao de Marx e Engels no conseguiu assimilar a dialtica. O prprio genro de Marx, o cubano Paul Lafargue (1842-1911), publicou um livro intitulado O determinismo econmico de Karl Marx, que contribuiu para o fortalecimento, na conscincia dos socialistas, de uma verso antidialtica da concepo materialista da histria.

    Nas duas primeiras dcadas do sculo XX, difundiu-se entre os socialistas a ideia - falsa - de que, segundo Marx, os fatores econmicos provocavam, de maneira mais ou menos automtica, a evoluo da sociedade (sem que os homens - sujeitos do efetivo movimento da histria - tivessem um espao significativo para tomarem suas iniciativas). Essa concepo facilitava a infiltrao de tendncias polticas oportunistas no movimento socialista: quem no enxerga nada que dependa da sua ao tende facilmente a instalar-se na passividade (tende a contemplar a histria, em vez de faz-la).

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    Kautsky e o evolucionismo. Ao fundo, Darwin.

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    Houve revolucionrios que reagiram contra a deformao da concepo marxista da histria. Rosa Luxemburgo (1871-1919) e Lnin (1870-1924) se destacaram na revalorizao da dialtica. Invocando uma frase de Engels no Anti-Dhring, Rosa sustentou que a histria mundial se achava em face de um dilema: ou o socialismo vencia ou o imperialismo arrastaria a humanidade (como na Roma antiga) decadncia, destruio, barbrie. possvel que os termos do dilema tenham sido exagerados por Rosa, por influncia da situao, do momento em que ela escrevia (Rosa estava presa, em 1915, e a Primeira Guerra Mundial tinha comeado). De qualquer maneira, o dilema ajudou os militantes socialistas a compreenderem que a concepo marxista (dialtica) da histria no assegurava nenhum resultado preestabelecido.

    Lnin, por seu lado, desde 1902, no livro Que fa zer?, empenhou-se apaixonadamente, no plano da teoria poltica, em abrir espaos para a iniciativa do sujeito revolucionrio (e especialmente para a iniciativa da vanguarda do proletariado). Em seus estudos da obra de Hegel, em 1914, Lnin atribuiu imensa importncia herana hegeliana do marxismo e advertiu que, sem assimilar plenamente os ensinamentos contidos na Lgica de Hegel, nenhum marxista poderia entender inteiramente O capital de Marx.

    Os estudos da obra de Hegel e as reflexes sobre o mtodo dialtico foram de grande valia para Lnin em

    sua anlise do imperialismo e na elaborao estratgica que o levou a liderar a tomada do poder na Rssia, em 1917, pelos bolchevistas. O novo poder sovitico despertou entusiasmo em crculos revolucionrios e progressistas do mundo inteiro: era uma demonstrao prtica das possibilidades concretas que estavam ao alcance do sujeito humano disposto a transformar o mundo.

    Importantes marxistas dos anos 1920 e 1930 encontraram nas ideias de Lnin e sobretudo em suas realizaes prticas, elementos que os impulsionaram em seus esforos para levar adiante o desenvolvimento da dialtica. Esboou-se um vigoroso movimento terico que pretendia superar definitivamente as deformaes antidialticas a que tinham sido submetidas certas concepes de Marx no comeo do nosso sculo. As tentativas de confundir o marxismo com o materialismo vulgar ou com o determinismo econmico foram inteligentemente criticadas.

    O hngaro Georg Lukcs (1885-1971) advertiu: No a predominncia dos motivos econmicos na explicao da histria que distingue decisivamente o marxismo da cincia burguesa: o ponto de vista da totalidade. Somente o ponto de vista da totalidade, segundo Lukcs, permite dialtica enxergar, por trs da aparncia das coisas, os processos e inter-relaes de que se compe a realidade. Somente o ponto de vis-

    O que dialtica

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    ta da totalidade permite que se veja no real um jorrar ininterrupto de novidade qualitativa.

    O italiano Antonio Gramsci (1891-1937) caracterizou o marxismo como um historicismo absoluto. Para ele, o fatalismo determinista pode se tornar uma fora de resistncia moral, pode ajudar o revolucionrio a perseverar na luta, pode ajudar a organizao revolucionria a manter a sua coeso interna nos perodos marcados por uma sucesso de graves derrotas. Nesse sentido, Gramsci se dispe at a fazer-lhe um elogio fnebre, reconhecendo a funo histrica do determinismo, porm enterrando-o com todas as honras, pois se o determinismo persistir dificultar sempre o desenvolvimento do esprito crtico e da criatividade entre os revolucionrios.

    O materialismo histrico de Marx e Engels constatativo e no normativo: ele reconhece que, nas condies de insuficiente desenvolvimento das foras produtivas humanas e de diviso da sociedade em classes, a economia tem imposto, em ltima anlise, opes estreitas aos homens que fazem a histria. Isso no significa que a economia seja o sujeito da histria, que a economia vai dominar eternam ente os movimentos do sujeito humano. Ao contrrio: a dialtica aponta na direo de uma libertao mais efetiva do ser humano em relao ao cerceamento de condies econmicas ainda desumanas.

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    O alemo W alter Benjamin (1892-1940), alis, lembrou que a histria, tal como ela veio se desenrolando at o presente, est impregnada de violncia, de opresso, de barbrie; e exatamente por isso que a ta refa do terico do materialismo histrico no pode ser pensar uma espcie de prolongamento natural dessa histria, no pode ser promover a continuidade daquilo que essa histria produziu, limitando-se a transmitir seus produtos de mo em mo. Um esprito dialtico - escreveu Benjamin, atravs de uma sugestiva imagem insiste em escovar a histria a contrapelo.

    Infelizmente, os esforos de Lukcs, Gramsci, W alter Benjamin e vrios outros intelectuais marxistas dos anos 1920 e 1930 foram contrariados por uma tendncia antidialtica que avanou muito no interior do movimento comunista aps a morte de Lnin, em 1924. O principal representante dessa tendncia antidialtica foi Josef Stlin (1879-1953), que assumiu a direo do PC da URSS e do Estado sovitico e exerceu uma enorme influncia sobre o movimento comunista mundial.

    Stlin era um poltico de grande talento, mas desprezava a teoria, no a levava a srio: instrumentalizava o trabalho terico, com esprito pragmtico, cnico. Em Marx, Engels e Lnin, a prtica exigia um reexame da teoria e a teoria servia para criticar a prtica em profundidade, servia para questionar e corrigir a prtica. Em Stlin, isso mudou: a teoria perdeu sua capacidade

    de criticar a prtica e o trabalho terico ficou reduzido a uma justificao permanente de todas as medidas prticas decididas pela direo do partido comunista.

    Stlin considerava Hegel uma expresso sociolgica do atraso da Alemanha na poca da Revoluo Francesa e de Napoleo. Ao contrrio de Lnin, que estudava Hegel, Stlin tinha uma antipatia imensa pelo patrimnio da herana hegeliana. Em seu raciocnio, Stlin ignorava frequentemente as mediaes, cuja importncia tinha sido sublinhada tanto por Hegel como por Marx. Stlin pensava da seguinte maneira: Zinoviev, Kamenev, Trtsky, Bukhrin e outros tm opinies erradas a respeito de questes importantes; expondo suas opinies, defendendo-as, eles produzem efeitos daninhos, objetivamente to nocivos como os efeitos que seriam provocados pela ao de sabotadores, espies, agentes contrarrevolucionrios e traidores; portanto, objetivamente, eles so sabotadores, espies, traidores, agentes inimigos - e precisam ser objetivamente tratados como tais. Nas coisas que Stlin dizia ou escrevia apareciam, volta e meia, o advrbio objetivamente e o adjetivo objetivo (ou objetiva), precisamente porque ele no encarava dialeticamente a questo do papel da subjetividade na histria e tendia a identificar (de modo positivista) subjetivo com arbitrrio e objetivo com cientfico . Para se ter uma ideia de como esse modo de pensar e de agir era diferente do de Lnin, basta lembrarmos que Zinoviev, Kamenev,

    O que dialtica '

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    Trtsky e Bukhrin divergiram de Lnin em questes importantssimas e nem por isso Lnin os liquidou.

    Tal como Engels, Stlin tinha talento para as simplificaes didticas; faltava-lhe, entretanto, a slida base cultural e terica de Engels. Stlin retomou de Engels o esquema das trs leis da dialtica, mas corrigiu-o. Em seu trabalho Sobre o materialismo dialtico e o materialismo histrico (1938), Stlin sustentou que o mtodo dialtico no possua propriamente trs leis gerais e sim quatro traos fundamentais, que eram: 1) a conexo universal e a interdependncia dos fenmenos; 2) o movimento, a transformao e o desenvolvimento; 3) a passagem de um estado qualitativo a outro; 4) a luta dos contrrios como fonte interna do desenvolvimento. Para Stlin, a expresso negao da negao, usada por Engels, era muito hegeliana, muito abstrata: no correspondia claramente a um processo que se realizava sempre do simples ao complexo, do inferior ao superior . No bastava que a sntese (a negao da negao) fosse qualitativamente distinta tanto da afirmao (tese) como da negao (anttese): ela devia assumir um contedo nitidamente positivo, para poder ser aproveitada propagandisticamente na luta poltica. Nos esquemas de Stlin era assim mesmo: as categorias da reflexo, do estudo e da investigao cientfica deveriam estar sempre preparadas para ser postas a servio da propaganda.

    A deformao antidialtica do marxismo, caracterstica dos tempos de Stlin, influiu poderosamente na educao ideolgica de pelo menos duas geraes de comunistas, no mundo inteiro. Essa influncia est longe de ter sido suficientemente analisada em suas origens e suprimida em suas consequncias. Nikita Khrus- chov, quando era secretrio-geral do PC da URSS, denunciou, em 1956, o sistema do culto personalidade e as graves violaes da legalidade socialista, mas no contribuiu em nada para a elaborao de uma interpretao marxista das causas e da exata natureza dos fenmenos que abordava. Os mtodos de Stlin foram condenados em termos ticos e passaram a ser combatidos em termos polticos pragmticos. Como, porm, eles se baseiam numa crassa subestimao da teoria, nunca podero ser efetivamente superados enquanto no for plenamente recuperada a seriedade do trabalho terico; e essa seriedade s estar comprovada no dia em que as deformaes impostas dialtica marxista no perodo de Stlin tiverem sido submetidas a uma anlise cientfica e filosfica, a uma investigao historiogrfica profunda e convincente.

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  • As deformaes que se desenvolveram na poca de Stlin no constituem a nica fonte de modos de pensar antidialticos que se difundem entre os marxistas. Num mundo to dividido como este em que vivemos, a mera adeso aos princpios tericos do marxismo nunca pode, evidentemente, funcionar como vacina, imunizando as pessoas contra os males decorrentes de concepes estreitas, unilaterais, preconceituosas. O gnero humano est excessivamente fragmentado, muito difcil compreend-lo como totalidade concreta (e muito difcil tom-lo como base para uma abordagem verdadeiramente universal de certos problemas humanos gerais): os marxistas - da mesma forma que os representantes de outras correntes de pensamento- acabam, assim, muitas vezes, misturando interesses nacionais ou convenincias particulares com a universa-

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    lidade do autntico ponto de vista marxista. O ingresso do movimento comunista mundial em uma nova fase, na qual se tornou impossvel a manuteno da unidade monoltica dos tempos da Internacional Comunista (1919-1943), tornou igualmente muito difcil para os marxistas apoiarem-se numa compreenso do movimento comunista como totalidade concreta para resolverem todos os seus problemas tericos.

    Mesmo os indivduos mais empenhados na luta pela transformao da sociedade se confundem, com frequncia, quando falta coeso unidade deles. A falta de coeso diminui, para eles, as possibilidades de fa zerem histria de modo consciente. Diminui as possibilidades de se organizarem e de se reconhecerem na ao da comunidade organizada a que se integraram.

    O indivduo isolado, normalmente, no pode fazer histria: suas foras so muito limitadas. Por isso, o problema da organizao capaz de lev-lo a multiplicar suas energias e ganhar eficcia um problema crucial para todo revolucionrio. E preciso que a organizao no se torne opaca para o indivduo, que ele no se sinta perdido dentro dela; preciso que ela no o reduza a uma situao de impotncia contemplativa ou a um ativismo cego. Se no, o indivduo fica impossibilitado de atuar revolucionariamente e se sente alienado na atividade coletiva. A organizao deixa de ser o lugar onde suas foras se multiplicam e passa a ser um lugar onde

    elas so neutralizadas ou instrumentalizadas por outras foras, orientadas em funo de outros objetivos.

    (Lembremos a frase de Sartre colocada como epgrafe no comeo deste livrinho: A dialtica, como lgica viva da ao, no pode aparecer a uma razo contemplativa. [...] No curso da ao, o indivduo descobre a dialtica como transparncia racional enquanto ele a faz, e como necessidade absoluta enquanto ela lhe escapa, quer dizer, simplesmente, enquanto os outros a fazem.)

    Para um marxista contemporneo - mesmo que seja posta de lado a questo da herana stalinista - extremamente difcil enxergar uma transparncia racional de sua prpria ao no conflito entre a China e a Unio Sovitica, na invaso da Tcheco-Eslovquia pelas tropas do Pacto de Varsvia, na invaso do Cam- bodja pelo Vietn, na invaso do Vietn pela China etc. Qualquer que seja o seu ponto de vista pessoal, ele levado a ter a impresso de que os acontecimentos esto se precipitando fora do alcance do seu poder de intervir neles como indivduo.

    Por isso, se compreende que um marxista como Louis Althusser tenha chegado a se convencer de que a histria um processo sem finaiidade(s) e sem sujeito(s), isto , um processo mais ou menos automtico, cujos movimentos so determinados por estruturas nas quais no existe, concretamente, espao para as iniciativas do sujeito humano. Essa concepo - ressalvada a ho

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    nestidade subjetiva do filsofo francs - reflete uma impotncia em face da necessidade de pensarmos dia- leticamente as coisas que existem nossa volta. Se a histria ainda est sendo feita, em medida inaceitvel, pelos outros, ento o problema est em passarmos a faz-la mais decisivamente ns mesmos. E, se as formas de organizao criadas para isso esto funcionando de maneira insatisfatria, o problema est em ativ-las ou em mud-las, conferindo-lhes a eficcia que deveriam ter. Althusser preocupou-se sinceramente, ao longo de muitos anos, com essas questes; mas sua concepo da histria, que uma concepo antidialtica, no o ajudou a encaminhar nenhuma soluo para elas.

    O processo de superao do capitalismo pelo socialismo tem assumido formas bem mais complexas do que Marx ou Engels poderiam imaginar. Provavelmente, tais formas ainda vo se tornar mais complicadas neste novo sculo. E o encaminhamento de solues dialticas eficazes para os problemas dessa superao vai depender de opes ainda no realizadas, de caminhos imprevisveis.

    Quaisquer que sejam os caminhos que venham a ser trilhados, entretanto, os indivduos precisaro se empenhar em elevar o seu nvel da conscincia crtica, para poderem participar mais efetiva e conscientemente do movimento de transformao da sociedade; e para isso precisaro assimilar melhor e aprofundar o pensamento dialtico. Os indivduos, evidentemente, no

    existem margem da sociedade. O prprio Robinson Cruso, antes de poder sobreviver isolado na sua ilha, precisou formar-se no convvio organizado com outras pessoas: teve de se socializar, aprendendo uma srie de coisas imprescindveis sua capacidade de subsistir, sozinho. Uma criana, at para nascer, precisa de um pai e de uma me; e, se for abandonada e ningum cuidar dela, morre. O indivduo, ento, como dizia Marx, o ser social; e to intrinsecamente social que somente ao longo da sua histria em sociedade que o homem, depois de muitos sculos, chegou a se individualizar (j que, nas comunidades mais primitivas, os indivduos no contavam e existiam exclusivamente em funo da coletividade a que pertenciam).

    Mas a vida social, nos tempos atuais, j pressupe a existncia de indivduos que alcanaram um razovel grau de autonomia. Algumas comunidades alienadas ainda conseguem, em determinadas circunstncias, absorver e diluir grande nmero de indivduos (fanatizados) no interior delas; mas j avanou bastante nas pessoas a conscincia de que cada uma delas tem responsabilidades em relao s outras (e sociedade em geral), porm possui igualmente responsabilidades em relao a si mesma.

    A experincia vem ensinando a um nmero cada vez maior de indivduos que h problemas que dependem da pessoa e somente dela e cuja soluo no pode ser transferida para nenhuma organizao social.

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    Como escreveu o marxista tcheco Karel Kosik em sua Dialtica do concreto: Cada indivduo - pessoalmente e sem que ningum possa substitu-lo - tem de formar uma cultura e viver a sua vida.

    Essa compreenso que os indivduos esto adquirindo cada vez mais concretamente do seu valor intrnseco no enfraquece neles o reconhecimento da necessidade de se associarem, mas cria importantes exigncias, novas, quanto ao carter das associaes.

    Por um lado, h um nmero crescente de indivduos com maior riqueza e complexidade interior; e esses indivduos experimentam uma necessidade mais imperiosa de superar seus limites como indivduos, uma necessidade mais imperiosa de se completarem em alguma forma de existncia comunitria, que os aproxime uns dos outros (sem prejuzo da individualidade deles). Por outro lado, a racionalizao utilitria do capitalismo e o esprito exageradamente competitivo estimulado pelo mercado agravam muito as contradies entre os homens, diminuem a importncia das velhas formas tradicionais de comunidade (famlia, vizinhana antiga), criam situaes de solido, desenvolvem frustraes, espalham