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Pesadelos

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Pesadelos, sonhos

e contos

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Clotilde Chaparro Rocha

Pesadelos, sonhos

e contos

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© by Clotilde Chaparro Rocha – 2010

FiCha TéCniCa

Revisão

João Carlos Taveira

imagem de capa

Fragmento da tela Transcendentais

de Socorro Mota, Técnica Mista, 2008

Capa

Thiago Sarandy

Diagramação

Cláudia Gomes

iSBn: 978-85-7062-977-7

Todos os direitos em língua portuguesa, no Brasil, reservados de acordo com a lei. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópia, gravação ou informação computadorizada, sem permissão por escrito da autora. THESAURUS EDITORA DE BRASÍLIA LTDA. SIG Quadra 8, lote 2356 – CEP 70610-480 – Brasília, DF. Fone: (61) 3344-3738 – Fax: (61) 3344-2353, www.thesaurus.com.br, e-mail: [email protected]

Composto e impresso no Brasil

Printed in Brazil

R582p Rocha, Clotilde ChaparroPesadelos, sonhos e contos / Clotilde Chaparro

Rocha. – Brasília : Thesaurus, 2010.128 p.

CDU 82-3(81) CDD 869.3B

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Pesadelos, sonhos e contos

“Pode-se vencer pela inteligência, pela habilidade ou pela sorte, mas nunca sem trabalho”

a. Detocuf

“Uma boa leitura, que leve a viver com sabedoria, dispensa com grandes vantagens a companhia de pessoas vazias”

Felipe de aquino

“Toda empresa precisa de gente que erra, que não tem medo de errar e que aprende com o erro”

Bill Gates

“Reza como se tudo dependesse de Deus, e age como se tudo dependesse de ti”

Cardeal Spellman

“Que eu reze não para ser preservado dos perigos, mas para encará-los de frente”.

Rabindranat Tagore

“Seja você mesmo, porque ou somos nós mesmos ou não somos coisa nenhuma”

Monteiro Lobato.

“O reconhecimento de um erro envolve uma nova verdade” José Ortega y Gasset

“Só é vencido quem se acredita vencido” Fernando de Roja

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“a vida é maravilhosa se não se tem medo dela” Charles Chaplin

“Fanatismo é um mal que não conduz a lugar nenhum. Os fanáticos, tanto palestinos quanto israelenses, são os que boicotam to-dos os esforços pela paz. é preciso fomentar a tolerância entre os jovens. Um bom livro pode contribuir para o entendimento.”

amós Oz

“O passado é lição para refletir, não para repetir!” Mário de andrade.

“Se você não puder se destacar pelo talento, vença pelo esforço” Dave Weinbaum

“Quando você nasceu, todos sorriam, só você chorava. Faze por viver de tal modo que, à hora de sua morte, todos chorem, só você sor-ria”

Confúncio

“Os seres humanos não são prisioneiros do destino, mas de suas próprias mentes”

Franklin Roosevelt

“Sinto entre os espinhos o perfume de rosa que está para de-spontar”

Santa Catarina de Sena

“Use o tempo para progredir e não para se destruir”Felipe de aquino

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a você leitor, que me deu a honra de ler meu livro.

À minha avó antônia eà minha avó Lucinda da Conceição,

apesar de ambas terem morrido muitos anos antes de eu nascer, conseguiram me passar amor, força, determinação e exemplo de vida.

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Sumário

nota esclarecedora ............................................. 13

Meu pesadelo ...................................................... 17

a dona da pensão ou Coraline .......................... 21

Pesadelo do mau filho ........................................ 27

a má babá ........................................................... 31

Pesadelo da louca ............................................... 46

a história de minha avó – 1ª. Parte Sua amizade com Pablo Picasso. ....................... 49

história de minha avó – 2ª. Parte Sua morte na Revolução de 24. ......................... 56

no Piauí uma história quase igual à da minha avó. ...................................................................... 60

Pesadelo de família ............................................. 63

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Minha pronúncia do idioma inglês .................. 65

Pesadelo do(a) mal amado (a) .......................... 70

O pretenso sonho com nossa Senhora aparecida ............................................................ 71

Pesadelo da água ................................................ 75

a mimada ........................................................... 76

Pesadelo da ilusão .............................................. 87

a lésbica meiguinha ........................................... 89

Pesadelo das cobras ............................................ 100

as duas primas ................................................... 101

Pesadelo dos dias de hoje ................................... 111

as xarás ............................................................... 114

Pesadelo da adolescente apavorada com o triste fim de ana Lídia. ....................................... 120

O pesadelo que virou sonho .............................. 125

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nota Esclarecedora

aqui misturei contos e pesadelos. Eu coloquei os pesadelos na primeira pessoa do singular para dar mais efeito, entretanto o primeiro foi meu mes-mo, os outros os escutei de pessoas direta ou indi-retamente. Um deles trata do desassossego que se vive nos dias atuais.

nos contos, escrevi a história de minha avó paterna, incentivada pelos seus descendentes entu-siasmados por sua figura marcante.

há dois contos que falam de empregada do-méstica. Um, A má babá, tentando entender os motivos que podem levar alguém a maltratar uma criança; o outro, A mimada, procurando retratar uma patroa insegura se deixando abusar pela do-méstica.

O livro traz contos engraçados, como Coraline ou a dona da pensão e O pretenso sonho com Nossa Senhora Aparecida. há ainda uma crônica, Minha pronúncia do idioma inglês, também divertida.

Outros contos são mais dramáticos: A lésbica meiguinha, As duas primas, As xarás, e O pesadelo

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da adolescente apavorada com o triste fim de Ana Lídia.

Caro leitor, ao terminar de ler esta obra, eu es-pero que tenha conseguido lhe transmitir alguma coisa positiva, pois essa foi minha intenção.

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PESaDELO 1 Meu pesadelo

Era um aeroporto. De nenhuma cidade que eu conheço, de todas as cidades que conheço. Es-

tava muito nervosa, muito ansiosa. Entretanto feliz. apesar de uma pessoa nervosa e ansiosa não devia estar feliz, eu assim me sentia. Estava fazendo o que eu queria fazer. é que eu precisava ir, precisava estar lá. E eu estava indo.

De repente mudou a cena. Em sonho as coi-sas mudam sem coerência nem sentido. Pelo menos aparente.

Eu não consegui entrar no avião. E eu tinha de estar lá, não podia deixar de estar lá. Fiquei esba-forida. Gritei, corri e acenei. ninguém me viu nem me notou.

Consegui chegar até o avião, e num esforço sobre-humano, peguei em uns ferros debaixo do mesmo, que começou a subir. nesse momento, eu poderia ter largado tudo, porém eu estava tão en-louquecida, que continuei.

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Ele foi pegando altitude, e mais altitude. Sen-tia um tremor em todos os meus nervos. apesar de angustiante, havia um sabor de excitação radical. afinal eu precisava ir.

num dado momento, eu percebi a loucura de tudo aquilo. Eu me imaginei lá em cima. Minhas mãos não poderiam largar aquele ferro, o qual eu segurava. Caso contrário, eu cairia e me esborra-charia no chão. Podia ser até em algo pior. Então resolvi não olhar para baixo jamais.

Começou a me dar uma ânsia de vômito. En-tretanto aquilo tinha de passar. não podia vomi-tar nem ter as contrações, pois eu poderia largar o ferro, cair e morrer. ninguém nem saberia quem eu era, nem onde eu estava. a poça de sangue não deixaria reconhecer nada. Pelo menos para mim naquela situação.

Os momentos pareciam horas e as horas pare-ciam dias. Demorou muito.

até que percebi que o avião estava descendo. Uma alegria me invadiu. Por pouco tempo. Pois foi aí que pensei que, na descida do avião, talvez ele soltasse alguma peça e me esmagasse. Ou então – o que é mais provável – ele fosse numa velocidade muito grande e o chão duro fizesse minhas pernas em frangalhos. Precisava subi-las numa posição fe-tal.

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Eu não podia ficar sem pernas.havia o meu medo de, ao ficar encolhida, mi-

nhas mãos se soltassem. Sentia minhas mãos dolo-ridas e sangrentas. Mas não podia largar o ferro.

Os momentos, talvez poucos, que antecede-ram a aterrissagem foram muito difíceis. Tudo era tão maluco que eu sentia até cócegas pelo corpo.

O barulho era ensurdecedor. Era uma baru-lheira, uma loucura. Um pesadelo!

De repente, eu senti o avião estacionado no pátio. nem queria me mexer com medo do que poderia ter acontecido. aos poucos fui sentindo meu corpo. Desci as pernas e notei que, com um pequeno salto, chegaria ao chão. Cheguei até a ima-ginar que aquilo não era verdade, era fantasia. aos poucos fui indo, indo até chegar ao solo. Quando o senti bem firme – cheguei mesmo a pisar repetidas vezes – é que larguei o ferro do avião. Percebi mi-nhas mãos doloridas e um pouco ensanguentadas. Fui movimentando-as levemente até percebê-las sem lesões maiores.

Minhas roupas estavam um pouco rasgadas e meus documentos haviam sumido todos.

Eu me olhei e aparentemente estava inteira. Fui andando em direção ao aeroporto e à cidade. Como era sonho, ninguém me viu, nem me notou, nem me interrogou. Continuei andando, pensan-

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do em todo sofrimento passado e agradecendo por não ter sucumbido. Foi quando pensei:

– Se eu soubesse o que eu teria passado, não teria pegado esse avião!

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a DOna Da PEnSÃO ou CORaLinE

Coraline tinha uma pensão perto da estrada. Casara e engravidara. antes de nascer a crian-

ça, o marido foi embora. Sumiu. ninguém nunca mais soube dele nem de seus motivos.

a pensão continuou a receber hóspedes que ficavam uma noite, no máximo algumas noites, e depois se iam.

Depois de algum tempo, apareceu um se-nhor negro, muito distinto. Coraline ficou a con-versar com ele, encantada. Todos foram dormir e o papo continuou. Eram risos e mais risos. O tal hóspede, que ia pernoitar uma noite, ficou uma semana.

– Flores para a mais encantadora dona de pensão!

E assim ia. Quando se foi o distinto senhor, parecia que ela ficara saudosa. Entretanto levou a vida até que apareceu grávida, alguns meses de-pois.

– Quem é o pai da criança, Coraline?

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– Meu marido apareceu uma noite, nós nos amamos muito, mas no outro dia, ainda de madru-gada, ele partiu...

Quando nasceu a criança, ela a registrou como filho do marido, apresentando sua certidão de ca-samento.

– O bebê é escuro, não parece com seu marido...– no Brasil todos nós temos um pé na África

e outro pé na selva. Todos nós temos antepassados de todas as raças.

Ela ia criando os dois filhos, trabalhando na sua pensão e o tempo correndo.

Um dia apareceu um gringo, falando enrola-do, dizendo que era do leste europeu.

Coraline deu-lhe muita atenção. Ficavam até altas horas rindo e dançando. não falavam muito, pois quase não se entendia o que o tal loiro dizia. Bailar, bailaram muito. Porém ela estava encanta-da. Ele deu-lhe de presente uns biscuis de sua ter-ra. Lindos, muito bonitos. acho que o eslavo ficou quase um mês. Depois se foi. Outra vez ela ficou calada e saudosa.

alguns meses depois apareceu grávida.– Coraline, quem é o pai da criança?– Meu marido apareceu uma noite, nós nos

amamos muito, mas no outro dia, ainda de madru-gada, ele partiu...

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a criança nasceu loirinha, loirinha. Ela tam-bém o registrou como filha do marido, apresentan-do sua certidão de casamento.

– Quem em sua família tem esse loiro todo?– O avô de meu marido. O bebê é a cara de seu

bisavô.assim foi se passando o tempo, até que um

dia apareceu um japonês na pensão. Mais uma vez ela se encantou. Riam e bebiam. Esse ficou por três dias. Ofereceu-lhe, com reverências, uns ob-jetos orientais finíssimos. E de reverência em re-verência, ela mais uma vez se encantou. Quando partiu, já estava até mais acostumada com as sau-dades dos “amigos”.

Passaram-se alguns meses e nasceu outra criança.

– Coraline, esse bebê parece japonês... na fa-mília de vocês não tem oriental não...

– Como vocês são maldosas... a mãe de meu marido não era descendente de índio, de bugre? Os indígenas são iguais aos japoneses. Dizem que os orientais atravessaram um estreito lá na américa do norte e daí é que apareceram os índios. isso é conversa de cientista, mulher, não é nenhum igno-rante que disse, não...

Mais uma vez, registrou a criança com a certi-dão de casamento.

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nunca seus hóspedes voltaram para rever a amiga, nem ela os procurou para curtir novamente a amizade.

assim os anos foram passando. Os bebês apareciam vez por outra. Às vezes espaçavam dois anos, às vezes três e um só, o último, espa-çou cinco anos. Coraline teve sete filhos. Quatro homens e três mulheres. Um mais bonito que o outro. Uns com feições marcantes e outros, como uma das meninas, parecendo uma bonequinha de louça.

Coraline sabia criar os filhos. Eles sempre brincaram muito. Ela sabia lhes dar amor, mas sa-bia também lhes impor limites e disciplina.

Quando as crianças cresceram, queriam co-nhecer o pai, entretanto nunca o conseguiam.

– Seu pai esteve aqui. Chegou bem tarde e foi-se de madrugada.

a vizinhança comentava a vida dela, porém Coraline nunca se preocupou. O lugar, antes vilare-jo, transformou-se numa cidade. Cidadezinha. Sua pensão melhorava cada vez mais. Conseguira com-prar o prédio antes alugado. agora os quartos já se tornaram apartamentos e ela tinha até estaciona-mento privativo. agora ela era dona de um hotel, o único da redondeza com aquele porte. Como dizia ela a seus filhos:

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– O presente é consequência do passado e o futuro consequência do presente.

De vez em quando a molecada azucrinava seus filhos por causa do pai, porém isso nunca foi uma tragédia. Principalmente porque ela nunca deu atenção a isso.

Um dia, bem cedo, apareceu na recepção um molambo, procurando por ela. no começo, ela não o reconheceu, entretanto, com a conversa, viu que era seu marido. Ela o recolheu ao quarto imediata-mente. Lá conversaram muito. Ele lhe disse que foi se aventurar pelo mundo, mas que agora estava doente.

– Sei que não tenho perdão por ter ficado fora todo esse tempo.

Ela então lhe disse calmamente que tinha tido com ele, durante esse tempo, sete filhos. E registrou os sete em seu nome.

Ele ficou olhando quieto para ela durante muito tempo. Só seus olhos se mexiam um pouco. Ela também se manteve calada. não se sabe o que passou pela mente dele. Compaixão, remorso, inte-resse, maluquice, paixão, não se sabe.

– Venha tomar um banho e eu lhe darei roupas novas. Seus filhos devem vê-lo como um homem de bem. Eles querem tanto conhecer o pai. Você não quer ter uma família e não tem curiosidade em conhecê-los?

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– Tenho, Coraline, tenho muita vontade de ter um lar.

– Então vamos homem!O almoço foi alegre e os filhos todos se emo-

cionaram. Ele falava pouco, e a cada dia que passava, me-

nos ainda. Todos continuaram sua vida de antes, agora melhor com a volta dele. apesar de o pai ter todas as mordomias pelas mãos dos empregados, mais parecia um adorno na sala. Todos estavam bem.

numa noite, de madrugada, entre um copo e outro, ele teve um troço e morreu. Em seu enterro teve discurso sobre essa família bonita que ele havia construído. Ela olhava como viúva através de ócu-los escuros com o nariz para cima.

Coraline mandou fazer um retrato muito bo-nito dela e dele, e durante gerações seus descenden-tes se orgulhavam muito deles.

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PESaDELO 2 Pesadelo do mau filho

Era um quarto. nem grande nem pequeno. não tinha tamanho.Eu estava numa cama. Podia me mexer muito

pouco. Minhas limitações eram grandes. Fiquei bem quieta, pois elas estavam chegan-

do. Queria escutar o que diziam. Riam e falavam de assuntos supérfluos. alguns anos atrás eu não me interessaria por essas histórias fúteis, considerava-as entediantes. agora infelizmente eu tenho de me preocupar com tudo que venha delas.

Quando tive minha independência financeira, fiquei muito alegre. Quantos e quantos sacrifícios! Entretanto finalmente eu estava com meu futuro garantido. E minha velhice também. Triste ilusão!

Tudo certo. Só neglicenciei o conselho do mé-dico quando mandava me controlar na alimentação e fazer exercícios físicos. “Burramente” eu pensava: “quer que eu vire monge e coma comida de hospi-tal...” e “fazer caminhada e ginástica que nem boba...” ao contrário, gostava de vida sedentária, fumar e be-

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ber. Minha alimentação era composta de frituras, molhos gordurosos, chocolates, doces de toda espé-cie, muita massa e pães... até o dia triste que eu tive aquele problema. nem gosto de lembrar...

Elas não tinham independência financeira e não eram de trabalhar. Só gostavam de gastar e de futilidades.

Eu amei tanto o fruto do meu ventre e fiz por ele tantos sacrifícios ... nem os sentia de tanto ca-rinho que tinha a esse filho. Como o fruto do meu ventre pode gostar de vulgaridades, de se interessar tanto pelas coisas materiais, sem dar importância aos sentimentos e ao espiritual. não foi isso que lhe ensinei. Será que dei muito e não exigi nada em troca, não lhe impus limites, deixei o fruto do meu ventre ver os outros abusando de mim ou escolhi para ele o pai errado? não sei...

Só sei que atualmente o fruto de meu ventre só se importa com elas.

De repente falavam baixo, não sei bem, tudo era névoa, e uma delas estava no tal quarto. na prá-tica, eu não tinha mais nada, apesar de saber que a casa era minha. a comida que me davam era a pior possível. Só me alimentavam, pois precisavam que eu estivesse viva.

– Soube que a senhora trocou a senha de seu cartão. não se pode deixá-la um minuto sozinha,

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que a senhora faz alguma coisa para nos preju-dicar.

Eu respondi enrolado, com dificuldade:– Querida (como era falsa a expressão queri-

da, eu sempre tão autêntica...), querida, o dinheiro é meu, eu trabalhei tanto e me esforcei tanto para isso.

– E daí? a senhora é velha, doente e chata, não precisa de dinheiro para nada. nós precisamos. Qual sua nova senha?

Ela me maltratava e eu a badalava. O único consolo é que eu não lhe era sincera. Era sobrevi-vência minha. Fiquei calada.

– a senhora sabe quem eu vou ter que chamar, e o que vai acontecer... È a última vez que lhe per-gunto: qual sua nova senha?

Como é sonho, tudo ficou nebuloso, até que apareceu o fruto de meu ventre...

– Mudou a senha sem avisar, vai dizer ou não a nova senha?

Tudo ficou nebuloso de novo, até que eu vi o fruto de meu ventre levantar aquelas mãos enor-mes e bater, bater e bater em mim. não se importa-va com minha dor nem com meu choro. a dor em minhas carnes – apesar das agressões violentas em meu corpo – eram menores que o meu emocional sentia. Lembrava do fruto de meu ventre pequeni-

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no, inocente, sem o contágio nefasto que a vida lhe imprimiu. Sem se contaminar com a violência irra-cional e o consumismo exagerado que atualmente faz das pessoas robôs querendo o que a mídia lhes impõe. Ria para mim... era a cena mais linda de mi-nha vida, com tantas injustiças e ingratidões que eu sofri.

Eu só colocava as mãos para proteger-me o melhor que podia.

De repente acordei sobressaltada. não sabia se tinha dado a senha, se tinha sofrido mais e se morrera. Minha boca estava seca, eu suara muito e tinha uma sensação horrível ... mesmo sabendo que nada daquilo havia acontecido.

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a MÁ BaBÁ

Às boas babás que existem e que eu as

tive durante a criação de meus filhos.

Misa era uma jovem que veio do interiorzão do Brasil. Veio menina ainda para trabalhar

numa casa de família.a mãe, Fausta, trabalhava na roça e nunca teve

tempo para se dedicar aos filhos. Quando paria um, logo logo voltava à labuta, pois caso contrário não vinha dinheiro. O pai bebia muito, por isso não dava quase para a lavoura. Rendia pouco. O relacio-namento entre os dois era péssimo. Às vezes batia na mulher e às vezes apanhava. Diziam que apa-nhava mais que batia. Diziam também que, vez por outra, a mulher o traia. apesar desse fato não com-prometer em nada os dois. assim, de mal a pior, viviam os dois.

Misa cresceu sem amor. Da mãe teve o que a mãe recebeu da avó. Com o agravante de Faus-ta ainda descarregar nela todo o ressentimento da vida. O motivo estava no seu inconsciente (este, ela nunca nem imaginou que existia). De-

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via ter um motivo dentro de seus miolos que ela mesma nunca soube. Batia muito em seus irmãos, pois achava que a surra era necessária à educação, entretanto nela era mais. Muito mais. as agressões físicas em Misa eram por qualquer coisa que a menina fizesse, e também pelo que não fizesse. Uma vez uma vizinha, que se dizia estudada, repreendeu a mãe pelas exageradas pancadas na filha, inclusive perguntando-lhe se a menina era de fato sua filha. nem dá para ima-ginar o escândalo que Fausta fez e a implicância que pegou da boa senhora bem intencionada. ainda virou-se para a filha furiosa:

– Praga maldita!Misa sentiu-se culpada de toda a confusão,

parece incrível. não sentiu pena da sua defensora – ela lhe pareceu ter sido a causadora de suas de-savenças – mas sentiu dó da Fausta. Às vezes ela se achegava à mãe, e esta logo pegava uma varinha e cutucava seus braços, pernas e até a cara.

– Eta, filha do demo, menina fedida...E ria, uma risada escandalosa. a pobre crian-

ça achava que aquele relacionamento esdrúxulo era normal. até sorria. Sua mãe era o melhor que tinha na vida e a tratava assim... Da sua maneira, Misa amava sua mãe e queria ser amada. Então fa-zia uma substituição surreal: a pancada era sinal da

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proximidade com a mãe. neuroticamente associava a um sentimento de pseudo-afeto.

algumas vezes, o pai bêbado se achegava a ela e começava a lhe levantar a roupa. nessas ocasiões a mãe, que não tinha o vício da bebida, chegava, tirava a garota de perto e o casal iniciava mais uma briga. Quando estava sóbrio, cheirando ainda a be-bida, dava-lhe indiferença ou xingamento:

– Saia, você não serve para nada. nunca teve um carinho dos pais, nem de nin-

guém. nunca teve um brinquedo. Cresceu igual a um animalzinho. Sua autoestima era péssima.

Um dia seu pai morreu e, para ela, a situa-ção conseguiu piorar. O padrasto, que a mãe arru-mou, a importunava. Fausta a defendia com todas as suas forças, brigando com ele. Entretanto um dia chegou a ela e mandou que fosse embora, pois não estava interessada em se desfazer de seu novo homem.

Quando ficou mocinha e pegou corpo, o pri-meiro que lhe tocou, ela se encantou. acreditou que era o amor que falavam na televisão. Ele usou seu corpo, ela nem sabia o que era prevenção sexual e veio a gravidez. Demorou muito até descobrir que a falta de menstruação era sinal de que, provavel-mente, estava para ter bebê.

O rapaz lhe disse rindo sarcasticamente:

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– Você está ficando louca, eu nunca transei com um bagulho desses, não... puta igual você, deve dar pra qualquer um.

Em pleno século XXi os homens quando não querem assumir um filho – seja lá qual for o motivo – continuam enlameando a moral da mulher grávi-da, caluniando-a de todas as formas possíveis. isso até para aquelas moças de classes mais abastadas, imaginem as pobres coitadas que não têm ninguém para apoiá-las.

Misa não teve ninguém para lhe ajudar. ao contrário, todos a recriminaram. houve um irmão que lhe disse estar ela enlameando a honra da fa-mília. Tinha escutado essa frase numa música. Sua mãe esbravejou:

– Só podia dar nisso. Eu sempre soube que você não ia dar em nada de bom... nem pense em pegar esse filho sem pai e colocar aqui em casa. Vire-se!

Ela não chorou. Sempre soube que ninguém ouviria seu choro, porém sofreu muito. não enten-dia porque se irritava quando alguém chorava per-to dela. Devia ser por inveja daquilo que ela nem sabia ao certo que existia.

Trabalhava como empregada doméstica. Sua patroa soube que ela estava grávida e engambelou a infeliz, fazendo-a assinar uns papéis. no outro dia a colocou na rua. ainda foi trabalhar numa

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outra casa por uns meses, escondendo a barriga, porém quando a outra empregadora descobriu, fez um frege tremendo, colocando-a na rua no-vamente. Foi então trabalhar na limpeza de um bar, de madrugada, até o dia de seu filho nascer. Ele veio ao mundo numa maternidade pública de péssimo atendimento. Ela teve o parto normal e ninguém foi vê-la. Saiu de lá sem ter para onde ir. aonde foi? imaginem os leitores. O certo é que nada foi fácil nem bom.

Como não conseguira uma creche, mês depois arrumou uma mulher para ficar com seu filho du-rante o dia. Seu irmão lhe arrumou um lugar para trabalhar e lá foi ela. O dinheiro que sobrava mal dava para os dois se alimentarem. na maternidade uma moça toda bonita e arrumada – parecia uma artista – lhe ensinou a tomar pílulas anticoncepcio-nais e a usar camisinha.

Depois de alguns meses, ela conheceu ou-tro rapaz. Ele namorava todas as moças que con-seguia e só ficava com ela pela madrugada, no fim de tudo, quando estava bêbedo e não tinha conseguido nenhuma outra. Ela não percebia e o dizia seu namorado. Depois de um dia de descui-do, veio outra gravidez. Quando ela lhe contou, a resposta foi semelhante a do pai do primeiro filho.

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O mundo desabou em sua cabeça da mesma maneira e todos repetiram a cena. Ela sofreu muito e não chorou.

Tudo igual ao primeiro parto. Só que agora, em vez de um, deixava dois na tal mulher, e saía para trabalhar.

Sentia algo de bom pelos filhos, entretanto al-guma coisa dentro dela a travava e dava o mínimo que podia. apesar de tudo, ela os sentia ligados à sua pessoa. Era tudo tão estranho.

Ela não gostava de ser mãe, não tinha o ins-tinto materno. Seus filhos eram como uma trouxa pesada de roupas que ela tinha de carregar. não os desejou e vieram sem que ela os quisesse.

a tal moça chique da maternidade, que pare-cia artista, cismou com ela, encaixando-a num pro-grama de prevenção à maternidade. Colocaram um troço dentro de sua barriga.

Ela se sentiu moderníssima e preparada para um amor de novela. até conseguiu ficar uns anos sem filhos e teve vários homens. Todos a trataram como um corpo a ser usado. Sem escrúpulos, fa-ziam com ela todo tipo de sexo. Ela passou a se achar escolada e sabida. Pegava revistas de porno-grafia e imaginava luxúria como sexo normal. as-sim ia de mão em mão.

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a cada olhar e a cada homem, ela fantasiava um grande amor. Seu parâmetro eram as novelas da televisão. Ela as adorava, imaginando-se na pele das personagens boazinhas e glamourosamente bonitas. imaginava-se também beijando e fazendo amor com artistas sensuais.

Ela não gostava das patroas, porém as bajulava falsamente. Quando recebia uma censura, justa ou injusta, se desculpava sem sentimento nem since-ridade. Por trás fazia tudo que podia de mal, sem que elas percebessem. E não sentia nada por isso. Ela teve más patroas, entretanto teve boas também. aquelas que lhe faziam o bem, ela não conseguia absorver, e abusava delas.

Já faziam alguns anos que ela não ficava de barriga. adorava sair à noite para a balada/boemia. Deixava os filhos sozinhos ou com qualquer pessoa que ela conseguisse. até com maluca ela os entrega-va, ela queria era gandaiar. numa dessas noitadas, totalmente bêbada, transou com um sujeito todo drogado. E como Deus fez o sexo para nascerem crianças, aconteceu que ela ficou novamente grá-vida. Dessa vez ela se desesperou, xingou, berrou, dizem até que tomou remédio para abortar e não conseguiu. Pagar para tirar a criança ela não con-seguira dinheiro. nem é necessário dizer que o tal drogado não cooperou em nada. Se soube, fez de

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conta que não tinha nada com isso. Ela já se acos-tumara a parir sozinha. Dessa vez disse que era “produção independente”, como uma artista loira e muito famosa, que ela gostava demais, dizia.

Dessa vez tudo foi bem pior. não se sabe o motivo: se já não era tão jovenzinha, ou as loucu-ras para abortar ou alguma doença que ela pegou com tanto homem e tanta luxúria a que se deixou levar. O certo é que a gestação já foi bem mais di-fícil. Tinha dores, teve infecção vaginal, foi ruim. Com tudo isso, ela não conseguia trabalhar como das outras vezes. a família deu o mínimo possível e reclamava o máximo. Com tudo isso ela e os fi-lhos passaram muita fome e ficaram muito magros. O parto foi um drama. Ela até queria dar o filho para alguém, mas o coitadinho era tão magrinho e feinho, que ela não conseguiu. Foi nesse caos fi-nanceiro e social, aliado a uma saúde precária, que o tal irmão lhe anunciou que tinha um emprego ótimo. Bom salário, patroa boa e carteira assinada. Era para ser babá.

– é longe demais, eu preciso acordar de ma-drugada e só vou voltar nove, dez horas da noite... não gosto de cuidar de criança de madame, nem dos meus. E meus filhos ficam com quem?

– Uma porcaria igual a você arruma um em-pregão desses e ainda põe defeito, sua imprestável!

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a mãe disse palavrões e xingamentos para lhe mostrar que aquele emprego era a única coisa boa que ela poderia fazer.

não tinha nem saúde nem vontade do empre-go, porém foi obrigada a pegá-lo. não tinha outra saída.

acordava de madrugada, arrastava os filhos aos trancos e os levava para uma mulher com olhos esbugalhados. Essa ainda dormindo, se punha a resmungar do chororô do menorzinho. Pegava dois ou três ônibus e chegava à casa da madame.

Uma casa toda bonita, com tudo que se pode querer. ao chegar, os patrões iam malhar/caminhar para ficarem ainda melhores. Ela tinha de fazer o desjejum e cuidar da criança. Dava-lhe o leite, to-mava o seu café e chegavam os dois e comiam tudo que era bom, gostoso e saudável. Sim, para ter aquela pele e aquele corpo, precisavam de uma dieta balan-ceada. E ela é que tinha de fazer o que considerava “caprichos dos dois e muita frescura”. Depois tinha que trabalhar na cozinha, limpeza e roupa, lavar e passar. O homem não devia trabalhar muito não. Fi-cava pela manhã no computador e à tarde saía. al-gumas vezes, nem tinha ficado noite, lá estava ele de volta. Metia-se de novo no computador. Ela então era pior. De manhã enrolava, almoçava, e dizia que ia dar aula. não sei aula de quê, não parecia inteligente.

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adorava também o computador. Os dois também fi-cavam pendurados no telefone. Ela nunca entendeu o porquê da tal fulana fazer questão de ela só poder ir-se embora no começo da noite.

– Pra não cuidar da criança. Ela trata você bem?

– Falsa, faz de conta que gosta de mim e está preocupada comigo, com minha saúde e com meus filhos.

ainda havia as duas sogras que se digladiavam pelo pretenso amor ao neto. Uma comprava um presente, a outra fazia questão de ultrapassar. E as-sim iam acelerando cada vez mais. Os sogros acom-panhavam cada uma das duas partes. Esse exagero irritava profundamente Misa. Ela nunca teve nada, nem nenhum apoio de ninguém, e essa babaca com tudo isso...

ainda tinha o patrão... – Que homem bonito! Mais novo que eu, mas

gostoso...apesar de ela se insinuar a ele com tudo, ele

não lhe dava a mínima brecha.– Eu sei como transar com um homem des-

ses... não aquela metida.ainda ele era todo carinho com a patroa, elo-

giava e parecia que tinha por ela um encantamento especial. adorava sair com ela e dava-lhe roupas e

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presentes. a patroa era tão descuidada que deixa-va etiquetas no chão e Misa via os preços absurda-mente caros. além de se vangloriar do preço exage-rado que pagava pelo que comprava. Muitas vezes era mais que seu salário: a quantia que ela sonhava durante sua vida inteira e nunca conseguiu ter.

Os brinquedos também acompanhavam o ab-surdo que gastavam. Eram dois mimados que tive-ram um filho.

é comum as domésticas terem inveja ou admi-ração pelas patroas. Seria até um elogio à sua em-pregadora, desejarem suas roupas, seus perfumes e até seu parceiro... Como Misa não nutria bons sen-timentos pela “metida”, só sobrava o negativismo da inveja.

no final de semana ela estava cansada, mui-to cansada. aí vinham os filhos querendo brincar e brigando quem chegava mais perto dela. Ela se irri-tava e era um horror. Gostava de bater neles. Queria sair para a balada, pois o sexo nela vibrava muito e era o que ela mais gostava. Como deixava os filhos trancados para gandaiar – não tinha nem dinheiro nem ninguém para cuidá-los –, os vizinhos, a famí-lia e a mãe a reprovavam e a xingavam muito.

naquele final de semana, além das recrimina-ções de sempre, ainda o filho mais velho lhe disse que a tal mulher do olho esbugalhado quase não

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dava comida para eles (por isso estavam tão ma-gros). E ainda batia muito neles. O bater, ela não achou tão ruim. Ela apanhou tanto da mãe... Entre-tanto a fome deles lhe machucou.

na segunda feira, ao voltar à labuta, encon-trou a “madame” toda mimada... quanto ódio teve. Porém o sorriso falso a acompanhou.

Às vezes ficava com a criança. aconteceu que os pais do bonitão saíram

numa viagem longa e o pai da “chata” adoeceu e a esposa teve de cuidar dele no hospital. a dondoca teve de fazer um curso durante o dia inteiro, só vi-nha para almoçar.

Misa teve que cuidar da criança. achou isso horrível. Entretanto, como era seu costume, disse que adorava ser babá. a patroa tirou-lhe quase todo o serviço e a deixou para brincar com o fi-lho.

achava o “reizinho”, como era chamado, insu-portável. Ele dava-lhe uma sensação desagradável, porém mentia como estava acostumada.

Porém, quando o pequenino estava sozinho com ela, fazia-lhe caretas, ele a chamava e ela fin-gia não escutar. Ele foi tão mimado e protegido, que não soube criar defesas. Como o ódio dentro dela crescia a cada dia e a cada final de semana, as coisas começaram a piorar. no começo ela o

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xingava de tudo que fora xingada. Depois eram pequenas humilhações a que ela o submetia, e se seguiram as agressões físicas. Obrigava-o a pedir desculpas se ele se mexesse. na verdade, queria que pedisse desculpas de todo o mal que sofreu na vida. até a luxúrias ela o submeteu. O interes-sante é que ela não entendia o grande mal que estava causando.

a criança começou a ficar doente para não desgrudar da mãe. Como esta tinha obrigações e saía, ele ficou agressivo e cada dia pior.

O pai então instalou uma câmara para ver o que estava acontecendo e filmou todo o horror da criança.

Daí foi um escândalo.O pai entrou, foi ao computador, voltou e

pegou a criança. Uma hora depois, a casa estava cheia, com polícia e repórteres de jornal, rádio e televisão. Diziam-na um monstro. no início ela nem imaginou ser com ela. até curtiu quando a máquina da televisão quis filmá-la. Entretanto o patrão estava furioso com ela. Todos a acusavam. aos poucos, ela começou a entender que seria presa. apesar de nunca imaginar que suas atitudes com a criança seriam taxadas de criminosas, no começo negou tudo. negou pela confusão instala-da, pois não se arrependera e não considerava seus

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atos errados. Já não queria tanta câmera encima dela. Tapava o rosto. não pensou nos filhos soltos no mundo, pensou nos xingos da mãe. Quando saiu da casa da patroa para entrar no camburão policial, os vizinhos e a pequena multidão aglo-merada gritavam contra ela. Teve medo de ser lin-chada. Duma fresta da janela viu a patroa mimada chorando com o filho no colo e dando entrevista para muitos jornalistas, que se acotovelavam entre si. Todos a paparicar a “chata”. a cabeça de Misa estava a mil e ela não entendia direito o que estava acontecendo. Porém os xingos a ela e os mimos à madame, irritou-a profundamente. Uma força descomunal veio de dentro, ela conseguiu se des-vencilhar um pouco e cuspiu em direção à antiga patroa. a mãe da criança desmaiou. Foi quando os policiais começaram a esmurrar a má babá. a mídia e as pessoas dali os incentivavam. Ela che-gou à delegacia debaixo de uma blusa, pois estava com o rosto deformado e com várias fraturas. O médico, pai de um menino, que a atendeu, com revolta disse:

– não sei como conseguiu não ter morrido. Também se morresse não seria um mal...

Mesmo a moça dos direitos humanos – sepa-rada e se esforçando muito para criar suas duas fi-lhas – inventou um problema qualquer e se omitiu.

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Durante várias semanas o assunto da “tarada que batia em criancinha” alimentou a imprensa, aquela de baixo nível. na cadeia ela teve de ficar longe das outras. Sua vida conseguiu ficar bem pior. algum tempo depois, ela morreu queimada numa rebelião da penitenciária.

Seus filhos ficaram soltos no mundo...

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PESaDELO 3 Pesadelo da louca

Era um lugar, uma sala, uma varanda, um quar-to...Uma família ou grupo de pessoas riam em es-

tado de euforia. Todos gostavam muito dos praze-res da vida.

aquela era minha casa. Quem eram eles? Pa-rentes dele. Por ele, eu fiz tudo, entretanto ele nun-ca correspondeu ao meu sentimento. Sempre me agredia e me ridicularizava, mas fazia tudo que eles queriam.

nenhum deles eu via claramente. Eram fi-guras nebulosas. até ele. nem sei mesmo se es-tava lá.

Eu usava uma bata sem nada por baixo e tinha os cabelos sebosos. não mais tinha meu juízo nor-mal. Porém ainda lembrava de me tirarem a roupa e jogarem a mangueira para tirar o que chamavam de fedor horrível. E eu a gritar da dor da água gela-da rasgando meu corpo. Talvez até de pudor.

Tudo nebuloso. Riam e riam.

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– Você lembra dela, quando era boa da cabe-ça? Falava o português bem falado, tinha maneiras refinadas, vivia toda arrumada e tomava banho to-dos os dias...

– não mostrava as carnes, sempre tão coberta...!Continuavam a rir e rir com deboche. Eles têm abacates na mão, dos quais eu nunca

gostei de jeito nenhum, tinha até nojo, fobia. não podia nem ver a fruta que logo sentia vontade de vomitar...

Então eles pegam abacates, um a um, abrem-nos, cortam-nos e acertam as frutas na minha cabe-ça. Riem muito ao ver a meleca escorrer por minha cara e por meu corpo.

nessa hora tudo ficou nebuloso, o pesadelo acabou e mudou para outro sonho. acho que foi demais para mim...

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a hiSTÓRia DE Minha aVÓ – 1ª. parte SUa aMiZaDE COM PaBLO PiCaSSO

a história a seguir me foi contada por meu pai, minhas primas, tios e tias, enfim toda a famí-

lia. Tem fatos que há divergências: data de chegada ao Brasil e a tela/papel/quadro rasgado. Sobre este fato, meu pai dizia ter sido logo após meus avós se conhecerem (ao escrever este conto, a história e os personagens me pediram para ser após a volta de meu avô). Difícil saber aonde termina a fantasia e começa a verdade. ainda alinhavei os episódios com minha imaginação. Por tudo isso, aqui vai muita ficção, muita ficção mesmo, mas também muita admiração à minha avó, essa bela guerreira cheia de amor no coração.

na cidade de Málaga, andaluzia, Espanha, no século retrasado, talvez no ano de 1877 (ou 1880) – antes da abolição da Escravatura e da Proclamação da República no Brasil –, nasceu uma linda meni-na, a quem puseram o nome de antônia. Era a pri-meira filha de um casal apaixonado. infelizmente menos de um ano depois, quando a família vinha por aqueles morros íngremes dali, numa charrete,

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o cavalo se atrapalhou e todos caíram num despe-nhadeiro. Morreu o casal, ela já grávida, só sobran-do a bebê. antônia foi entregue a um avô, Juan, que vivia só e era el papelero . O motivo da solidão dele não se sabe. Só ficou que ela passou a ser o objeti-vo de sua vida. Da tragédia ficaram as histórias que o avô lhe contava, inclusive de como sua mãe era bela: cabelo loiro com os olhos claros que iam do azul ao verde, um verde clarinho da cor da alface. Procurava não se deter na parte negativa.

Ela cresceu saltitando, brincando e folhean-do os livros do avô. Sempre muito alegre, cresceu e tornou-se a mais bonita do lugar. a juventude flo-rescia num corpo escultural perfeito. não era mo-rena nem temperamental – como são descritas as espanholas –, ao contrário era clara, calma, segura de si e interiormente harmoniosa. ainda era ativa, dinâmica e muito ousada.

Quando tinha catorze anos, conheceu José. Ele se apaixonou na primeira vez que a viu. Ela também se encantou: ele era alto, forte, um ar cir-cunspecto e já tinha 24 anos. Era um homem feito e era alfabetizado. nisso era exceção entre os seus, como também por não gostar de touradas. na Eu-ropa daquela época, a ascensão social era muito difícil. Ele só tinha um problema: era só um agri-cultor, apesar de lidar com as letras. Pelas regras

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vigentes da época, ela, nieta del papelero – só um nível a mais na escala – não podia casar com ele. O amor era intenso e ele não podia abrir mão de sua felicidade, pois ela também estava apaixonada. Ele decidiu então que ia para a África, trabalhar muito e voltar rico para poder casar com a bela amada. Sua pretensão foi aceita e ela ficou a espe-rar por ele.

a cabecinha dela vagava pelo amado e a fan-tasia do futuro. Suspirava por onde andava e es-tava sempre com a felicidade estampada no rosto. Os rapazes dali não se conformavam como aquela linda jovem ficava a esperar e a suspirar por al-guém que poderia nem voltar... Porém ela não se importava. Em todas as épocas, na adolescência, todos os meninos se apaixonam por uma só me-nina e as meninas por um só menino. havia tam-bém um meninote meio feinho que estava obceca-do pela linda adolescente. Só pensava nela. Diziam que a espiava. (Meu pai contava que parece que ele foi pego espiando minha avó lavar os pés. na época, os pés de uma donzela serem vistos, era um escândalo). O molecote gostava também de pin-tar. Seu nome era Pablo. Ele a perseguia aonde ela ia. não se sabe se ela era inocente ou sentia-se li-sonjeada com tamanho sentimento. O certo é que conversava e conversava com o “frangote”. Ele ia

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ao infinito. Entretanto ela se mantinha fiel ao sen-timento ao noivo, ou namorado, e nunca o imagi-nou espiando, se é que ele a espiou.

José deve ter trabalhado muito e passado maus momentos na África, porém ninguém ficou sabendo. Um dia desembarcou de novo no porto de Málaga. Trazia dinheiro para desposar a sua preten-dida e o coração cheio de amor e saudades. Foi lin-do o encontro dos dois e diante do avô marcaram a data do casório.

Os rapazes dali não se conformaram com esse final bonito, e como a felicidade dos outros em al-guns incomoda, foram ao felizardo e começaram a falar de Pablo, que na sua ausência, não desgrudava de sua noiva. José, cheio de ciúmes, foi perguntar à amada sobre o assunto.

– No veo nada de más, en quedarte conversando com um muchacho. Quiere saber uma coisa? Él solo piensa em pintar.

– não vejo nada demais em ficar conversan-do com um menino. Quer saber uma coisa? Ele só pensa em pintar.

Quando falou que diziam que Pablo a espiou (e viu seus pés nus), ela ficou brava. na sua inocên-cia respondeu:

– Me es impossible imaginar a um chico espian-do a uma jóven...

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– acho impossível imaginar um menino es-piando uma moça...

O noivo ficou irritado com a resposta e saiu, deixando-a desapontada com a situação.

– Nunca traicioné a Jose, ni com el pensamento!– nunca traí José nem em pensamento!Estava ela triste com seus pensamentos, quan-

do chegou Pablo com papel/tela que lhe entregou.– Hice um retrato suyo, Antonia, quiere verlo?

Es mi mejor obra hasta ahora.– Fiz um retrato seu, antônia, quer vê-lo? é

minha melhor obra até agora. Em sua cabeça, naquele momento, aceitar um

presente do molecote era o mesmo que assinar sua culpa. Diante disso, com raiva, pegou a tela/o papel e a/o rasgou com fúria.

Pablo teve uma atitude inesperada. Ele sempre tão dócil com ela, ficou irritado e furioso quando viu que a pintura não poderia ser restaurada. Saiu xingando e blasfemando.

– Mira al niño, hasta parece que la pintura que rasgué, algún dia iria a valer alguna cosa.

– Mira al niño, até parece que a pintura que rasguei, algum dia ia valer alguma coisa.

José viu que era tudo bobagem e voltou para ela mais enamorado. Os dois se casaram e algum tempo depois nasceu uma menina. Entretanto

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como nem tudo são flores, os negócios do marido iam de mal a pior. Ele não tinha muito talento para o comércio. Para arrasar, ele gastou seu dinheiro com compra de vinho, que deu uma queda grande naquele ano. Ele foi à bancarrota. Pobres, não po-diam ficar em Málaga. isso era o mais triste de tudo. Ele não podia manter antônia abaixo de seu nível social. a jovem esposa demonstrou uma coragem e uma sublimação difícil de ser vista: acompanharia seu marido aonde fosse.

Decidiram então vir para o Brasil. a Revo-lução industrial levou a Europa ao desemprego e muita gente estava emigrando de sua terra natal. Sonhavam em voltar ricos. Tonterias, com diriam os nossos personagens. Os dois com a filhinha recém-nascida desembarcaram em Santos em 1897.

Muitos anos mais tarde, antônia viu um jornal em São Paulo e chamou-lhe atenção um rosto. Diziam ser um pintor famoso nascido em Málaga, sua terra, e que estava ganhando mui-to dinheiro com seus quadros. Seus descenden-tes fantasiam que o tal meninote da juventude da avó era Pablo Picasso. alguém diria que ela poderia estar riquíssima.

– Él nunca me daria el amor tal grande que me dio José e yo no sería tan feliz, aun non siendo rica.

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– Ele nunca me daria o amor tão grande como me deu o meu José. E nem eu seria tão feliz, mesmo sem ser rica.

De fato, José a amou e foi fiel não só até o fim da vida, como além de sua morte, para sempre...

Seus descendentes, em suas fantasias, só la-mentam que ela tenha rasgado o quadro... mas se orgulham muito do amor de seus avós.

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hiSTÓRia DE Minha aVÓ – 2ª. Parte SUa MORTE na REVOLUÇÃO DE 24

Minha avó antônia teve oito filhos: cinco ho-mens e três mulheres.

Sempre teve uma personalidade forte, entre-tanto tinha um bom relacionamento com todos e era muito simpática. Sabia resolver problemas.

a vida do casal no Brasil foi muito difícil. Como tinha muito dinamismo e vontade de ajudar a todos, tornou-se parteira. Era respeitada em sua profissão por sua grande habilidade profissional.

a idade e a maternidade foram vindo e as car-nes a mais também. Já não era mais aquela bela jo-vem de outrora. Porém isso para ela não tinha im-portância e nem para seu marido, que continuava a dedicar-lhe seu amor e sua admiração sem limites.

Os filhos foram crescendo e os mais velhos já entravam na juventude.

Foi quando estourou a Revolução de 1924. Os habitantes e seus descendestes da cidade de São Paulo ainda lembram dessa infeliz rebelião.

Os esquerdistas se rebelaram em plena ci-dade... Os governistas revidaram, também em

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plena cidade... E assim aconteceu que ambos os lados armaram trincheiras no meio de casas e de toda a população. Era tiro para todo lado e morte principalmente dos civis. Um horror!

a população apavorada debandava da cidade.nesse ambiente maluco, uma senhora recém-

chegada da itália, estava para dar a luz. O parto se complicava e o marido da italiana veio pedir a an-tônia para ajudar. Vizinhas ainda argumentaram que não era dia para atravessar a rua e ir até lá, um lugar afastado, além do fim da rua. O italiano implorava e antônia não hesitou:

– Ellos necesitan la ayuda de una partera y yo voy cump’lir com mi obligación!

– Eles precisam da ajuda de uma parteira e vou cumprir minha obrigação!

E foi. O parto demorou muito e se arrastou até as onze horas da noite. Os tiros e a barulhei-ra atrapalhavam a parturiente. Por fim, nasceu um menino forte. Era noite de frio, então o pai do bebê recém-nascido ofereceu emprestada uma capa grossa, de quando ainda era soldado lá na itália. a nossa parteira estava cansada e aceitou a oferta. O filho, caçula com sete anos, a esperava dormindo na soleira da porta. Ela se emocionou. Quando a sentiu, acordou e ambos foram embora.

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Quando atravessavam a rua, um soldado a no-tou e, imaginando que fosse outro soldado, soltou um só tiro, que a matou instantaneamente. O filho gritava, chorava e a abraçava. O marido veio socor-rê-la e toda a família também. Estava morta!

Logo chegou um carro com soldados. Vendo-a morta, o marido desesperado e os filhos choran-do, tiveram uma atitude absurda: com armas obri-garam a família a se retirar, deixando o corpo ali exposto.

Eles estavam obrigando todos a se retirar com o que podiam. Provavelmente para ampliar sua praça de combate e os civis atrapalharem menos.

a morta ficou ali estendida no chão. não ficou sozinha, porque o cachorro deles ficou ali o tempo todo guardando seu corpo.

na madrugada três dos filhos – um foi meu pai – voltaram. Os soldados já tinham passado dali. Eles resgataram o corpo e o enterraram numa cova rasa na casa deles, que também foi atingida. Quan-do toda a loucura daquela revolução terminou, José refez as paredes e o telhado com facilidade. a famí-lia a sepultou num cemitério dali: o Cemitério da 4ª. Parada.

Seu marido nunca mais se casou e nunca mais foi alegre. Durante todo o casamento, sua vida foi felicidade.

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Diz o povo que um acontecimento ruim ou uma pessoa pode amaldiçoar seus descendentes por sete gerações. Uma psicóloga amiga minha me disse que na verdade um ato negativo pode alcan-çar várias gerações que sofrem com aquele desatino ou mesmo desgraça. Com certeza, se superarmos um trauma de nossos ascendentes e conseguirmos não passar para nossos descendentes, poderemos ter uns pontos, uns beneplácitos, na hora do juízo final. isso porque conseguimos interromper a ca-deia negativa da herança de gerações.

Mas também tem a parte positiva. Quantos fazem atos e glórias que orgulham e ajudam suas futuras gerações. Minha avó antônia foi uma delas. Espalhou amor e segurança a todos que convive-ram com ela. Principalmente seus filhos, que foram pessoas amorosas e souberam distribuir carinho e alegria aos seus. Todos foram suporte e apoio de suas famílias, mesmo quando fatos desagradáveis surgiram, e souberam levar e carregar com sabedo-ria e afeto seus descendentes.

as traduções para o espanhol deste conto foram feitas pela professora Martha Constanza Chaparro aranguren, licenciada em Ciencias de La Educación da Universidad Pedagógica y Tecnológica de Colombia.

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nO PiaUÍ UMa hiSTÓRia QUaSE iGUaL À Da Minha aVÓ

Esta história foi baseada em acontecimentos re-ais, mas eu também a recriei e a alinhavei com

minha imaginação. Portanto também é ficção.Um padre vivia numa longínqua cidade do

interior do Piauí. Trouxe para seu convívio uma sobrinha, filha de seu irmão, para que pudesse estudar um pouco mais ali. Chamava-se Maria da Purificação e, ao crescer, tornou-se uma linda adolescente. a mais bela do lugar. Tinha a pele clara, os olhos grandes, o nariz bem feito e uma boca bem delineada. Tudo arrematado com um cabelo castanho escuro levemente cacheado, bem longo.

O sacristão/coroinha era o Raimundo (vinha de uma família de letras, mas não tinha lastro na-quela época). a cada dia se encantava mais com a linda jovem. Os olhares dos dois se cruzavam le-vemente e ele percebia que, apesar da timidez, ela parecia corresponder a todo aquele amor, que au-mentava vertiginosamente.

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Um dia ele escutou o padre dizer que só daria autorização para sua sobrinha casar para alguém que tivesse um futuro decente.

Ficou então matutando: ela, sobrinha do pa-dre, bonita, podia frequentar os melhores ambien-tes da cidade e ele era pobre, um sujeito qualquer. Quanto mais martelava isso, mais aumentava seu amor. até que decidiu: iria para Brasília, capital que estava sendo inaugurada, para se tornar uma pes-soa “decente”.

Chegou a ela e disse tudo que seu coração sentia. arrematou com a promessa de que iria lu-tar e voltaria para se casar com ela. infelizmente ia demorar algum tempo. Só precisava que ela tam-bém concordasse. Puri, seu apelido, com um sor-riso brejeiro, calmamente lhe respondeu que ela o esperaria. Só havia uma condição: ele precisava mandar-lhe cartas e notícias, e, periodicamente, voltar ao Piauí para consolidar suas intenções.

Provavelmente não queria fazer papel de moca – como se diz no nordeste –, como tantas mulhe-res que esperam seu homem que emigra para longe e nunca mais volta. Ele cumpriu o que prometera, enviando-lhe semanalmente uma carta de amor durante cinco anos.

Raimundo saiu como um louco para Brasília. Lá estudou, deve ter passado muitas e muitas neces-

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sidades. Fez concursos, teve dois empregos, dormiu pouco, reduziu o lazer ao mínimo necessário, lutou e lutou com a força da juventude de um amor. Todo dia se lembrava do rosto e do jeito dela, o que lhe dava forças para a empreitada.

Depois de muito esforço, conseguiu até com-prar um apartamento baratinho. Foi quando en-trou na faculdade e já tinha um emprego público garantido, com um salário que dava para sustentar uma família.

Voltou para a longínqua cidade do Piauí, ca-sou com sua amada e a trouxe para Brasília. Vive-ram muito felizes. Com muito esforço dos dois, vieram a ter uma situação financeira estável.

a diferença entre a história da minha avó e de Puri é que a nossa piauiense nunca foi morta por nenhuma revolução e viveu longos anos. Conse-guiu criar seus filhos, netos e até bisnetos (os des-cendentes hão de vir...). Sempre distribuindo mui-to amor e carinho aos seus.

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PESaDELO 4 Pesadelo de família

Meu marido/minha mulher não é mais aquele (a) por quem eu me apaixonei loucamente

na minha juventude. não mais acredito que fale a verdade simples, nem que me conte tudo que é seu. ao contrário o (a) acho capaz de maldades que tal-vez nem as faça. nunca o (a) considero puro (a) e inocente. inversamente, o penso como pessoa ma-nuseável àqueles que detesto.

Minha mãe/meu pai não são mais aqueles ídolos maravilhosos que tanto admirava... Percebi um monte de mentiras que me disseram propo-sitadamente para encobrir seus erros e defeitos. Castigos e censuras para não enfrentar seus fan-tasmas. a moral, a disciplina e a coragem que ela/ele queria em mim e nunca as teve. O pretenso amor, cheio de posse e vaidades, era sem a sinceri-dade que imaginei.

Meus filhos queridos não têm mais a inocên-cia da infância... não me contam mais suas verda-des para encobrirem suas mazelas. Dão atenção a

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pessoas e coisas tão materiais, tão supérfluas, tão diferentes de todos os conceitos bons que lhes dei na vida.

Meus irmãos e meus amigos aos quais lhe con-tei toda minha verdade, todas as minhas fraquezas... a retribuição foi rirem de mim, ridicularizar-me e traírem minha confiança. Tudo o que disseram e revelaram não passava de farsa e mentiras para se fazer maior. Tudo falso.

O pior ainda não foi isso: foi me acusarem de coisas que nunca fiz, nem pensei fazer. O motivo foi encobrir a inveja a mim ou algum outro sentimen-to negativo. Por me saberem pessoa que os ama tanto e que iria perdoá-los sempre, descarregam em mim toda podridão de dentro de si.

Fazem com que eu peça perdão por erros dos quais sou vítima. Dizem que tenho defeitos, sem ja-mais apontarem minhas qualidades...

não é pesadelo, estou acordada...

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Minha PROnÚnCia DO iDiOMa inGLÊS

Em 2004, tive a felicidade de ver meu livro Du-zinda ser traduzido para o idioma inglês e fui a

Miami Book Fair International expô-lo no stand do Consulado do Brasil nos Estados Unidos.

Por algumas circunstâncias, acabei viajando sozinha para essa feira de livro. Para mim foi difícil essa aventura, principalmente no exterior. Entre-tanto a vontade de poder divulgar minha obra foi maior, e lá fui eu.

apesar de ter conseguido passar no vestibu-lar da USP em inglês, a minha pronúncia e o meu entendimento dos gringos falando eram péssimos. isso eu havia percebido em outras viagens feitas ao exterior. havia tido algumas aulas de conversação em inglês com o prof. Clement – um diplomata aposentado da Guiana inglesa que gostava de se sentir inglês –, o que me animou um pouco.

Quando cheguei a Miami, tive que resolver vá-rios assuntos junto ao Consulado brasileiro e jun-to ao Centro Cultural Brasil-Estados Unidos, que

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era a fundação internacional que estava à frente do evento. Como tive a simpatia e a boa vontade dos brasileiros que estavam lá, logo consegui resolver tudo que se relacionava com a feira.

Então fiquei livre. Decidi ir ao saguão do hotel onde estava hospedada e comprei um city tour por Miami. Já havia feito um, quando fui aos Estados Unidos com meus filhos na Disneyworld. Porém, naquela ocasião, eu estava atônita por estar indo ao exterior pela primeira vez, preocupada com meus filhos, etc., e não pude desfrutar da viagem como devia. Para dizer a verdade, nem me lembrava mais desse tour.

O passeio começava cedo e ia até de tardinha. achei bom.

Pela manhã fui conduzida a um local de onde saíam os tours. Chegando lá, fiquei bem atenta por estar numa cidade estranha, falando outra língua e ainda sozinha. Percebi que a grande maioria dos participantes era norte-americana. Quando che-garam os responsáveis, fui uma das primeiras a entrar. Pude escolher o assento e fiquei no primei-ro banco. não naquele atrás do motorista. assim poderia ver mais, suprindo minha deficiência no idioma.

as pessoas começaram a subir e se acomo-dar. num dado momento, uma senhora americana

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sentou-se ao meu lado, inclusive pedindo permis-são. Talvez por eu ser clara, não a tenha levado a me imaginar uma cucaracha. Depois que percebeu, talvez não tenha se sentido tão ameaçada ou achou o lugar tão bom que valia a pena a incômoda com-panhia.

Como falo muito, consigo me comunicar até em lugares onde não sei patavina do idioma. Com muito esforço, consigo dar sorrisos e recebê-los. ali onde eu sabia um pouco da língua, comecei a exer-citar meu inglês com ela.

Ela se pôs a tagarelar. Soube então que estava com o filho, a nora, a filha e o genro nessa excursão. O marido não pôde vir na última hora devido aos negócios. Os dois casais estavam bem atrás e ela, so-zinha, ficou ali. Morava numa cidadezinha em um estado no centro-norte do país. a viagem a Miami era um sonho que ela sempre tivera. Calor, praia e descontração a encantavam. Planejara anos e anos a fio essa viagem. Por esse motivo, veio sem o ma-rido. Era a primeira vez que viajava sem ele. Devia ter uns poucos anos mais que eu e era dona de casa. Vivia para o lar. não era uma pessoa de cultura. não sabia onde ficava o Brasil. Para localizar para ela a américa do Sul não foi fácil. até tentei lhe dizer que ficava abaixo do Caribe, de Miami... Como ela estava achando complicado, arrematou com uma frase:

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– Ah, I see, you’re a Spanish-American, right?– Você é da américa hispânica, não é? (quando

escrevo américa com letra minúscula é porque ela a achava tão comum...).

no começo até tentei explicar, mas desisti e acabei deixando-a pensar assim.

Fiquei pensando na ironia da vida. Ela, ame-ricana, e eu, brasileira; no dizer deles, uma cuca-racha. Pode ser triste, porém eu sabia que ela me julgava inferior. Puro preconceito. na verdade, eu era formada em Direito e já viajara anteriormente a Miami. Estava ali numa feira de livros como es-critora. Writer a quem eles dão tanta importância. infelizmente, para nós, eles leem muito mais e con-sideram muito mais a literatura.

Entretanto aquela senhora americana era simpática e seu convívio foi alegre e agradável para mim. Para ela também deve ter sido, caso contrário, ela teria trocado de lugar nas várias paradas. havia alguns assentos vagos.

Passamos quase um dia inteiro compartilhan-do o mesmo banco. Ela até se preocupava comigo toda vez que, após uma parada, voltava ao ônibus, pois sabia que eu estava sozinha.

Da conversa com ela, o que mais estava me en-cantando era o fato de eu estar conseguindo me co-municar com uma americana típica, do “interior-

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zão” dos Estados Unidos. Para mim, ela entendia o meu inglês, que já devia estar bom e eu entendia o que ela falava, o que para mim estava sendo uma glória.

ao terminar o passeio, como é meu costume, agradeci a companhia dela. Ela, sempre muito sim-pática, também agradeceu dizendo:

– I was very happy to be with you. Mainly be-cause nowadays, over there in my city, we’re having a lot of Spanish people. And they’re arriving more and more everyday. And we – Americans – are now fee-ling the necessity to speak/understand a little of Spa-nish. And, today, I was talking all day with you in Spanish and I understood everything you spoke and you understood all I said, too. – that was wonderful!

– Fiquei muito feliz por estar com você. Prin-cipalmente porque agora lá na minha cidade está tendo muitos hispânicos, cada vez mais, e nós os americanos estamos tendo a necessidade de falar castelhano. E eu hoje fiquei o dia inteiro falando espanhol com você, entendi tudo que você disse e você entendeu tudo que eu disse.

não deu para imaginar minha cara de decep-ção...

As traduções para o inglês foram feitas pela minha prima Alexandrina Mautone.

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PESaDELO n. 5 Pesadelo do(a) mal amado (a)

Você a quem amei tanto, tanto...hoje me vi com menos confiança em você do

que aquela que tenho em empregados/colegas da minha empresa/da minha casa, em pessoas conhe-cidas ou em vizinhos. Entre névoa, notava-os com palavras gentis e atos de bondade para comigo, sempre que não fossem contra os seus interesses.

aí você aparecia sempre mau/má e perverso (a) comigo, muitas vezes não os deixando chegar até a minha pessoa ou então falseando toda a ver-dade com rostos e atitudes de ator/atriz.

De repente eu tentava me desvencilhar, a né-voa aumentava, eu me sufocava e parecia que ia su-cumbir...

Com esforço tentava sair não sei para onde... Lutava, lutava, rezava e xingava.

Quando pude ver alguma coisa, estava na mes-ma sala, junto a você, onde sempre estive...

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O PRETEnSO SOnhO COM nOSSa SEnhORa aPaRECiDa

Pepino era um velho corcunda que andava com dificuldade. Era nojento também. Tinha sem-

pre um lenço sujo limpando o nariz. Vivia com a filha assunta numa casa bem simples.

naquele dia, acordou e ao tomar seu café com pão, dirigiu-se à filha:

– assunta, hoje sonhei com nossa Senhora aparecida...

– Que absurdo! O senhor sempre foi pecador... acha que nossa Senhora ia perder tempo falando com o senhor? Ela ainda lembra da mamãe, que morreu de tanto apanhar e de tanto desgosto com o senhor...

– Você está com inveja! Porque ela apareceu para mim, e não para você. O porquê, não sei. Só sei que hoje sonhei com nossa Senhora aparecida!

houve discussões e ressentimentos de outrora. – Sabe o que nossa Senhora da aparecida me

disse? Que eu vou morrer hoje.a filha olhou séria e espantada.– Como vou morrer hoje, quero ter um enter-

ro muito bonito.

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– Com que dinheiro? Enterro bonito precisa de dinheiro...

– Tenho uma caderneta de poupança no ban-co. Vou tirar o dinheiro e dar a você para fazer meu enterro bem bonito.

– Pai, você sempre o mesmo egoísta. nós aqui em casa passando necessidades e você com cader-neta de poupança.

– Filha, o dinheiro era para o meu enterro. Ou alguma doença. nunca se sabe.

O velho então tomou banho, foi até o banco e resgatou o numerário que ali estava depositado. Tirou tudo. Comprou uma imagem da santa para ir com ele. Deu o restante para assunta.

– assim eu chego lá em cima com proteção de nossa Senhora aparecida.

Voltou e se deitou na cama. Exigiu da filha lençol limpo. afinal, era sua morte.

Chegou a hora do almoço, levantou, comeu e se deitou novamente. Passou a tarde esperando. Como chegou a hora da janta, também se levan-tou, comeu, escovou os dentes – mesmo não sendo comum, queria estar com bom hálito – e se deitou novamente. À noite dormiu.

na manhã seguinte, levantou-se e se deparou consigo mesmo vivo.

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– Será que nossa Senhora aparecida se enga-nou no dia?

– O senhor é que não entendeu direito o dia. Fica hoje igual a ontem.

a filha, agora com o dinheiro dele todo em suas mãos, já não achava absurda a história.

– é isso mesmo que vou fazer. Depois do café, já tomo banho para me prevenir.

E passou outro dia esperando a morte. acor-dou no dia seguinte vivo. achou muito estranho, porém continuou a esperar seu último suspiro.

assim se passaram dias e semanas. Quando já faziam dois meses, ele se desiludiu.

– assunta, nossa Senhora da aparecida me enganou.

– O senhor é que se enganou. nossa Senhora não se engana. Desde o começo que eu lhe disse que nossa Senhora não ia perder tempo com um pecador como o senhor...

– Seja lá como for, acho que não vou morrer mais. Portanto quero meu dinheiro de volta.

– O quê? O senhor não dá nada aqui em casa e quer seu dinheiro de volta? Já comprei uma máqui-na de costura de que estava precisando.

– Filha maldita, quero meu dinheiro de volta! Caso contrário vai levar minha maldição. Fazer isso para um pai...

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– Pai “de merda”. nunca me deu nada. Quem me criou foi minha mãe! não sei onde eu estava com a cabeça quando deixei o senhor ficar aqui na minha casa.

O forrobodó correu solto. Era uma gritaria até com sopapos. as mágoas do passado da filha vira-ram motivos para acusá-lo e, de mau humor, o pai aproveitava para grosserias sem fim.

Depois de muito desentendimento, assun-ta exigiu que ele saísse dali. Pepino teve de ir para um asilo. Levou uma trouxa de roupas e a imagem comprada.

Chegou lá, aconchegou-se em uma cama/vaga que lhe foi destinada. À noite dormiu. amanheceu morto no dia seguinte.

– E a filha, fez o tal enterro bonito que ele que-ria?

– Provavelmente não... Se não o fez, deu uma desculpa para si mesma.

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PESaDELO n. 6 Pesadelo da água

não era escuro, mas também não era muito cla-ro. Tudo azul, mas não um azul celeste, um

azul claro desbotado.Seria um lago ou talvez um mar... as águas es-

tavam congeladas encima. Eu andava sobre o gelo.num dado momento, uma fresta. as águas ge-

ladas eram relativamente claras. não sei por que eu precisava pegar daquela

água. a mão não alcançava. De repente eu estava num veículo. acho que

nem era dessa época. num dado momento que eu não pude evitar,

o tal carro, ou coisa parecida, caiu na água e foi para o fundo.

Eu não conseguia emergir enroscada nele. Quando consegui, peguei a borda do gelo, que se partiu.

Estava num sufoco quando acordei. apesar de estar a salvo, não entendia o motivo

de estar tão angustiada.

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a MiMaDa

Luluzinha nascera depois de dez anos de casa-dos de seus pais. E esse matrimônio aconteceu

em suas vidas lá pelos trinta anos. Tinham medo de tudo em relação à criança. não podiam mais ima-ginar a vida sem ela.

Toda casa muda a decoração depois do pri-meiro filho, entretanto com eles o exagero era tanto que a bebê ocupou quase a totalidade. Se a criança ia fazer alguma coisa, eles se antecipavam aos peri-gos que poderiam advir, e o faziam por ela.

a mãe a vestia como uma bonequinha de lou-ça que podia quebrar a qualquer momento. nun-ca brincava na terra nua nem com brinquedos que oferecessem perigos, pudessem estar sujos com bactérias ou outro foco de doença... O pai ainda exagerava mais...

Já grande, não se trocava nem tomava banho sozinha. Sempre dormira no quarto dos pais. Sua cama ficou quase acoplada a dos pais. O cômodo, que deveria ser seu quarto, ficou para seus brinque-dos, que eram muitos, muitos.

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as amiguinhas eram sempre escolhidas en-tre as crianças com educação, bons modos, limpas, etc.. Um dos pais ficava sempre atento a qualquer coisa que pudesse ameaçá-la.

– ameaçá-la de que?– De tudo!Quando teve de ir para a escola, houve muita

dúvida, enfim a escolha recaiu numa bem tradicio-nal e com segurança enorme. Quando lhe disseram que cada professor ficava com dez crianças, eles não se conformavam. Chegaram a propor à coordenação que pagariam uma estagiária só para sua filha. Como não foram aceitas suas pretensões – houve outras nes-se nível –, e depois de baterem em outros estabeleci-mentos de ensino, matricularam-na nesse mesmo.

as coleguinhas dela pegavam-lhe os brinque-dos e ela não falava nada, nem reagia. Parece que não sentia ficar sem eles. na verdade não sabia lu-tar. Escondia o fato dos pais, quando podia, pois eles iam à direção e faziam um escarcéu. Também a machucavam quando podiam e ela também fazia de conta que não sentia nada. isso, felizmente para ela, era um fator de desestímulo para os agressores. Com tudo isso, ela detestava a escola.

– Ela não nasceu para profissão de homem. Meu bibelozinho gosta do lar, nasceu para ser dona de casa. E será perfeita!

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aprendeu com a mãe a cozinhar, bordar, fazer crochê, tricô e outros trabalhos domésticos. além de etiqueta. nada aprendeu e nem quis aprender muito bem.

Quando chegou à adolescência, não saia nun-ca sozinha. O seu único lazer sem os pais eram as atividades juvenis da igreja. E nem todas. a juven-tude não afetou esse quadro. Suas amigas a usavam como ingênua que era.

– Ela é boba, não percebe?Ela queria ficar alienada de tudo, como ficou

desde que nasceu, pois não a deixaram viver nor-malmente.

Uma amiga de sua mãe tinha um dos filhos, Dimas, que se engraçou de uma fulana bem libera-da e mal falada, a Trícia.

– Toda Patrícia tem o apelido de Paty.– Eu não, todos me chamam de Trícia.Ele ficou vidrado nela. Só pensava nela. Ela era

um furacão. O namoro era movimentado e durou mais de ano. Foi quando a tal namorada ficou grá-vida. Foi um horror! a mãe dele foi até parar no hospital. Estava a situação de mal a pior, quando a moça anunciou:

– Vou abortar!Outro reboliço. a mãe do rapaz – muito re-

ligiosa e contra o aborto – chegou a propor-lhe

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cuidar do bebê quando nascesse, porém ela ficou irredutível:

– Vou abortar e vou abortar! O filho é meu e faço dele o que quiser. nem tenho certeza se o filho é dele... ninguém vai me impedir. não nasci para ser mãe.

E assim o fez. Todo o episódio só teve uma vantagem: o namoro com a tal zinha acabou. Os dois se desiludiram reciprocamente.

Então a mãe do rapaz ficou a pensar que Lulu-zinha seria uma nora perfeita. Falou com a amiga, que ficou de pensar. Ela conversou com o marido e, depois de muito meditar e parlamentar, os dois resolveram aproximar os jovens.

Conversaram com os dois antecipadamente. – até que ele é bonito, meio gordinho, mas

não é feio.– Gordinho não tem importância, todo ho-

mem engorda depois que casa.– Ela é bonitinha, meia sem sal, sonsinha,

nunca põe uma cor na cara.– Você quer o quê, alguém que tem tanta cor

que lhe põe os cornos. aos poucos você a torna como você a quer. não vai ser difícil, ela é tão obe-diente.

Fizeram um lanche e os dois se achegaram sa-tisfatoriamente. Menos de um ano depois, estavam

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casados. Foi quando ele foi transferido para Brasí-lia. não havia outra opção e ainda havia a vantagem de melhora financeira e a ascensão profissional. Fo-ram. infelizmente os pais dela morreram num aci-dente e a mãe dele ficou muito doente. O seu estado era tão ruim, que quase só ficava acamada.

assim ficaram os dois sós na capital federal e tiveram seu filho.

O serviço começou a aumentar. Ela nunca trabalhou fora do lar, entretanto como era pre-guiçosa, foi necessário arrumar uma empregada. no começo foi difícil, até que conseguiram a Val-denira. Ela tinha duas características necessárias para se admitir uma doméstica: queria trabalhar e gostava do trabalho que fazia. Tinha tido dois filhos, um de cada pai. a vida foi dura com ela, e considerava a falta de dinheiro um obstáculo para sua tranquilidade.

O marido tratava Luluzinha como um bibelô e ela era assim. Como sua vida era parada e ela as-sim o queria, seus desejos eram quase infantis:

– Roupa, para mim, tem de ter golinha, bolsi-nho e manguinha...

– Pra quê bolsinho?– Oras, sempre se precisa pôr uma chave de

casa, um troco ou uma presilha de cabelo... Fica im-prescindível!

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– no meu altar de orações, tem de ter sempre uma flor. não abro mão!

– Em casa só entra produtos de tal marca. não abro mão, é uma questão de qualidade!

– Mas a mulher do porteiro está fazendo umas coisas tão bem feitas, com qualidade, muito cari-nho e muita higiene...

– é tal marca? Caso contrário, não serve. Des-culpe!

– Copo descartável nem pensar... aliás qual-quer descartável eu detesto!

– Computador, abomino! Os preconceitos levam a uma falsa sensação

de segurança e a uma ilusão de controle. não dirigia automóvel e quase não saía sozi-

nha. Vivia num pedaço bem pequeno do mundo.O marido era um fraco. Ganhava dinheiro

porque se sujeitava aos seus superiores em qual-quer coisa, inclusive corrupção.

Em casa Dimas levava a vida com a barriga. in-clusive ele adorava comer. Parecia que estava sempre “sonado”. no seu mundo interior, vivia das lembran-ças do furacão Trícia. Tinha se fixado nela. apesar de toda a sua maluquice, ela representava o único epi-sódio de sua vida, em que ele não vegetara. Guarda-va ainda fotos e objetos dela numa caixa com chave, que só ele podia mexer. a esposa nunca teve a me-

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nor preocupação com isso, não por segurança sua, mas por omissão. Ele ficava horas e horas vivendo de lembranças do passado. artista só achava bonita se fosse aos moldes Trícia. Tudo isso não afetava o re-lacionamento conjugal, pelo menos ao que parecia.

Como Luluzinha detestava fazer o serviço da casa – aliás detestava fazer qualquer serviço – come-çou a valorizar em demasia o trabalho da domés-tica. Também “brincava de casinha”, igual quando era criança, com a serviçal.

– agora, você põe os pratos brancos e eu os amarelos de florzinha.

– Vamos ver quem conta isso primeiro? E ria infantilmente. Valdenira achava isso fora

do mundo, porém, como não via desvantagem, ia le-vando e fazendo de conta. Ela era muito vivida e a pa-troa sem vivência nenhuma. Quando tinha de resol-ver qualquer problema, lá ia a despachada empregada.

acontece que a doméstica foi começando a abusar. Luluzinha deixando. Os abusos foram au-mentando. a patroa não queria abrir mão dela e começou a ter dependência.

Valdenira passou a não vir dia de segunda-feira:

– Tenho médico lá no posto de saúde perto de casa às dez horas da manhã. Demoram muito, não dá para voltar.

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E o tratamento se estendia, se estendia... Frequentemente chegava atrasada, com uma

desculpa medíocre. Era comum que, logo após o al-moço – primeiro almoçava fartamente – inventava outra história estapafúrdia. Convenceu Luluzinha – foi quase uma exigência – à compra de máquina de lavar louça. isso porque já existia a lavadora de roupa e outros semelhantes.

Toda doméstica tem uma tendência ao abuso. Existem profissões muito piores, como, por exemplo, ficar horas e horas na frente de uma máquina num mesmo movimento. nesse caso, o empregado co-mum olha para o lado, vê seus colegas fazendo o mes-mo serviço e ele se conforma muito bem. Já no traba-lho do lar, a pessoa vive em estado de pobreza e assiste seus empregadores a uma vida social e financeira bem acima da sua. Então ele faz comparações que o inco-moda. Muitas vezes se revolta. Por sua vez, os patrões fazem falsa caridade e sentem remorsos que não de-viam. Muitas vezes, tudo fica muito complicado.

Valdenira comia tudo de bom da casa. Che-gava à insolência de pegar os queijos importados e deixar os comuns para os donos da casa. Com as frutas era a mesma coisa. Carne, o melhor pedaço era dela. O único a reclamar era o filho.

– Esse seu filho tem um gênio sovina... não é igual a você e seu marido.

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havia também os pequenos furtos. no come-ço levava restos de comida e mantimentos em poti-nhos. Em seguida houve o atrevimento de aumen-tar os pratos a serem feitos na quantia necessária para poder abastecer sua família.

Uma prima de Luluzinha veio visitá-la em Bra-sília, hospedando-se em sua casa. Logo percebeu o absurdo que a empregada fazia e quis alertá-la.

– Prima, deixa pra lá... Eu fico me perguntan-do por que uns têm tanto e outros não. E não con-sigo uma resposta.

– Como assim?– Eu tive tudo na vida. nasci depois de anos

de tentativa de meus pais para conceber uma crian-ça. Meu enxoval foi deslumbrante. até hoje a famí-lia comenta. Cresci tendo tudo e tudo. Cheguei à mocidade, nem precisei procurar casamento, meus pais me apresentaram Dimas, que é o melhor ma-rido do mundo. Ele me dá tudo que preciso. Meu casamento também foi de princesa. Minha mãe fez na festa tudo que sonhou.

– E você?– Eu também... O meu “lindinho” sabe o que

devo comprar de roupas, aonde devemos ir aos domingo, a um passeio noturno, ou a viagem que vamos fazer. não preciso pensar em nada, é só me divertir!

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a prima olhava espantada para ela. a família e as pessoas conhecidas sempre tiveram um olhar completamente diferente. Os pais dela se fixaram na ideia de ter um filho e não pensavam em ou-tra coisa. Quando ela nasceu, foi criada igual a uma porcelana. Eles não permitiam que ela brin-casse nem vivesse. Cresceu parecendo sempre estar numa vitrine ou numa redoma de vidro. não era só preocupação com ela, eles tomavam-lhe todas as decisões. Ficou moça e arrumaram um casamento para ela. O marido continuou a história. Como na história de ibsen, “Casa de Bonecas” – 1897, pres-tem atenção à data – , ela foi uma boneca nas mãos dos pais e depois passou a ser nas mãos do marido. Porém há uma diferença entre a personagem “nora helmer” e Luluzinha. aquela percebeu e se revol-tou, a nossa, não. ao contrário, ainda considerava sua vida melhor que a das outras.

não tinha coragem de se manifestar contra a mulher que trabalhava e enfrentava a vida com determinação, entretanto a julgava um ser inferior. Primeiro que não tinha conseguido alguém para lhe sustentar, para lhe dar “tudo que quero”. a mulher emancipada tem verdadeiramente tudo que quer.

a prima voltou ao seu Estado e só não esque-ceu dela, pois de vez em quando, contava sua ma-neira de ser, rindo em rodas de amigos.

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Os anos se passaram. num dia cinza o marido se foi e ela ficou só. O filho já tinha ido. não sabia administrar dinheiro nem queria. Deixou-se enga-nar e seu cérebro arrumou um jeito de se alienar. Foi para um sanatório sustentado por sua pensão. até parecia bem, como uma menininha. no final fazia cachos e colocava fitinha no cabelo. Talvez te-nha voltado a tomar mamadeiras...

O pedaço triste ficou com Valdenira. Ela abu-sou tanto e Luluzinha permitiu também tantos absurdos, que a doméstica se acostumou. Quando perdeu o emprego, não conseguia se adaptar a mais nenhum outro. Sim, por que qual patroa admitiria aquele comportamento sem limites? afinal a em-pregada está no emprego para fazer o serviço da casa e se alimentar dentro dos limites da dignidade, sem viver a vida dos patrões. O comportamento de Luluzinha e do marido a compeliu às transgressões que praticava. no final das contas, eles estragaram quem devia ser uma boa empregada...

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PESaDELO n. 7 Pesadelo da ilusão

Por que você me fala essas coisas? Por que? Por que me calunia?Essas coisas não são verdades, e você sabe...

impossível você não mais se lembrar de como tudo realmente se passou.

Por que você precisa colocar na sua cabeça ou-tra história? Para poder me culpar? Culpar de quê? Eu só quis o seu bem...

Por que essa expressão de tanto ódio? Machu-ca tanto, tanto...

Como pode deturpar tanto fatos que ocorre-ram? Por que isso sempre acontece comigo? Será por que deixo as pessoas abusarem de mim?

amei você tanto! até hoje, eu lhe amo tanto!Talvez eu consiga reverter tudo, se interessar

para você... Mas assim para mim não dá, eu não quero...

num momento percebo que não estou so-nhando: é um pesadelo real. E é tão ruim que, na sequência, imagino você entrando por aquela porta

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para me pedir perdão, dizer que me ama e que sem-pre soube do meu amor sincero. E isso eu deveria saber que não vai acontecer. Tenho de me confor-mar, mas não quero...

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a LéSBiCa MEiGUinha

Um prédio de apartamento. a menina Emiliana desceu sozinha para encontrar o pai. apesar

de tudo de ruim que a mãe e a tia haviam falado dele, ela estava alegre. Principalmente pelo sorriso e a satisfação dele ao encontrá-la. Os dois saíram tranquilos e felizes, enquanto conversavam e riam. a menina ainda olhou para trás para se certificar de que nenhuma das duas estava vendo a cena, pois poderiam aumentar os insultos ao pai.

ali presente estava o filho de outro morador, um moleque danado, o Paco. Os pais brigavam muito e existiam até agressões físicas à mãe. Ele se sentia mal por ser incapaz de resolver essas situa-ções, entretanto não tinha consciência disso.

Era um menino forte e saudável. Precisava gastar suas energias. Se estivesse harmonioso consi-go, escolheria alguma atividade construtiva: estudo, esporte, etc., porém nada disso o atraía. Ele pensava no que fazer. num dado momento resolveu pichar.

– adrenalina pura!

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Como conhecia bem o prédio, subiu pelo ele-vador até o último andar, pegou as escadas e con-seguiu ir até o teto. Entre os pichadores, ele seria importante se fizesse uma pichação bem no alto, o mais difícil possível. Sob grande risco, do teto des-ceu o corpo para seu objetivo. nem percebeu que a janela do apartamento da família de Emiliana esta-va aberta. Foi aí que seu corpo desceu e ele viu as duas irmãs fazendo sexo. Ele levou um susto tama-nho que por pouco não caiu. Elas se assustaram. as duas ficaram muito brabas. Dona Seboym, a tia, ficou então enlouquecida xingando o menino com fúria, enquanto colocava a roupa. não bateu nele porque não pôde. Desceu para o piloti chamando o síndico e o porteiro.

O apartamento era do marido da irmã, Dona Januária, mais nova, porém quem mandava em tudo era sua irmã solteirona. as duas se faziam guardiãs da moral e dos bons costumes. Esse as-pecto era tão forte, que Dona Seboym não se pre-ocupou em nenhum momento do moleque reve-lar seu segredo. as acusações pela pichação eram veementes e cheias de ameaças. Queria até chamar a polícia.

O menino foi trazido pelo porteiro. O síndico trouxe a mãe de Paco, que tinha acabado de chegar do trabalho, cansada e triste. ao descer, tentou co-

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meçar a resolver o problema. nem pôde conversar sozinha com o filho.

– O que a senhora quer que ele e eu façamos?– Queria que esse moleque descarado não ti-

vesse subido lá em cima!– Eu também. Só que agora ele já fez a picha-

ção. Vamos providenciar para limpar o estrago.– nem cheguei a pichar...!– Seu moleque vadio, se não pichou, é por não

ter conseguido, mas sua intenção era de Satanás.– Dona Seboym, eu peço desculpas por mim e

meu filho também irá pedir...– não peço, não! Sabe o que elas estavam fa-

zendo?– Ó Paco, cale a boca e não complique mais!O forrobodó continuou, não só naquele dia,

como por muito tempo. a solteirona queria até ex-pulsá-los do prédio. O pai do menino soube e fez dis-so uma desculpa para uma briga enorme, que termi-nou numa pancadaria na mulher e no filho. Foram todos para a delegacia. Como moravam de aluguel, Dona Seboym arrumou um jeito de colocá-los para fora. não podia ver o moleque que tinha chiliques.

Quando Paco contou à mãe o que tinha visto, ela não acreditou.

– Você está com tanta bobagem de sexo na cabeça, que deturpa o que vê. a culpada é a te-

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levisão que fala demasiadamente sobre homosse-xualismo.

Quando a mudança deles saiu, Dona Januária ficou aliviada. Começou então a lembrar de como tudo começou. Voltou ao passado.

O pai havia largado a família. Ela, a mais nova, nem o conheceu. Para Seboym foi pior, pois co-nheceu seus carinhos, sua atenção e depois ele se foi. Sempre culpou a mãe pela separação. Esta tra-balhava arduamente e acusava o marido de vaga-bundo. a separação foi inevitável e ela começou a ir de amores em amores. Januária adorava a mãe e copiou seu jeito meigo e amoroso. a avó materna, Dona Josefa, morava junto.

alguns anos mais tarde um velho bêbado e ama-lucado, namorado da mãe, assassinou a infeliz. Elas ainda a viram toda ensanguentada. Foi um horror!

Seboym tinha catorze anos e a irmã sete. a avó não podia trabalhar fora, porque não tinha jei-to nem estava acostumada. não houve previdência social nem nada. Sem dinheiro, Dona Josefa viu que a situação era caótica. Como elas conviviam com umas pessoas de um bordel, uma delas lhe sugeriu que Seboym fosse ser prostituta.

– Mas ela é virgem, nunca teve namorado.– Já tem corpo formado, é bonita e pode ren-

der uma quantia bem alta pela virgindade.

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a velha se entusiasmou. Quando lhe disse-ram o preço, ela se empolgou. Com jeito chamou a adolescente. Disse-lhe que não tinham outra saí-da. Como ela se recusava, com nojo, a avó insistiu dizendo que era só meia hora, no máximo uma hora, e os problemas de todos estariam resolvidos. Da forma como colocou, ficou a adolescente como sendo a responsável pela comida e o sustento da casa. Usando chantagem emocional a obrigou.

Então a levaram a um prostíbulo de luxo, pois o preço era mais caro. a cafetina conversou muito com ela, sempre sendo simpática e atenciosa.

Colocaram-na num quarto bonito com corti-nas chiques e colcha de cetim. Lá estava um senhor de meia idade. Para ela, um velho. Ele era careca, ca-belos grisalhos, não muito gordo, porém com uma barriga enorme. Para ela, horroroso. Já estava de cuecas. Ordenou que ela tirasse a roupa toda. Como ela começou a chorar e a implorar por nossa Senho-ra, mãe de Jesus, ele teve uma ideia estapafúrdia:

– Fique nua e comece a rezar...Trêmula, ela obedeceu. Então ele se pôs a boli-

ná-la e a usar seu corpo numa luxúria maluca. Ter-minou por violentá-la, tirando sua virgindade.

Depois ela ficou num canto a chorar, encolhi-da. Ele ainda deu um cochilo, depois calmamente se arrumou e deu dinheiro a ela.

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– O preço eu pago à dona, mas gostei tanto que lhe dou este extra, nem precisa falar para a Áu-rea, pois ela iria querer repartir. Esconda dela!

a adolescente ficou ali ainda algum tempo. Foi quando entrou outra prostituta do bordel: henrie-te.

– Dona Áurea ficou contentíssima com o re-sultado. O freguês mais ainda.

a colega se pôs a limpar o sangue entre suas pernas e a acariciá-la. Beijava suas lágrimas e a con-solava.

a cafetina ainda a usou outras vezes como pre-tensa virgem. após alguns dias, quando a avó veio lhe buscar para levá-la para casa, teve a ilusão de seu calvário ter acabado. Entretanto Dona Josefa ficou encantada com a quantia que a neta lhe proporcio-nara. Teve de disfarçar muito para Dona Áurea não perceber que ela não imaginava tanto dinheiro pelo “negócio”. ao chegar a sua casa, a adolescente disse que não iria voltar mais àquele lugar.

– O que? Descobrimos uma mina de ouro. Você agora vai sustentar a família: eu, seu avô velho e caduco, sua irmã Januária e você. nem pense em desistir desse emprego ótimo. Qual serviço lhe da-ria mais dinheiro? Diz! nenhum.

Ela voltou. no bordel, quando saía o cliente, sempre henriete chegava. acariciava seu corpo e

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a consolava. aos poucos aquilo passou a libidina-gem e elas foram ao sexo. as duas. Seboym passou a achar melhor transar com henriete do que com homem.

– Será que ela não era já homossexual enrus-tida?

– não sei ... atualmente é que se está falando desse assunto e levando para o lado da ciência. é difícil de saber.

O certo é que tudo continuou assim. Dona Josefa não a deixava sair para canto nenhum, com medo dela arrumar um namorado e mudar de vida. acabaria assim seu sustento fácil e rendoso.

– a Seboym era gostosona, sabia carícias exó-ticas, fazia sexo de ponta cabeça? Como arrumava clientes?

– Tem tarado para tudo!Seboym começou a descarregar na irmã todo

seu descontentamento, pois ela também precisava passar por sofrimento semelhante. Batia nela por nada. Às vezes chegava a torturá-la. Um dia a ado-lescente resolve fazer com a irmã o que fazia com henriete. apesar de achar estranho e ruim, os cas-tigos eram piores. a avó fazia de conta que não via nada. ainda dizia para Januária que o sustento vi-nha da irmã e todos tinham de agradá-la para com-pensá-la. assim a menina passou a se conformar.

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Com o tempo passou a tolerar. acho que depois até começou a gostar.

– Será que ela também não era já homossexual enrustida...?

– não sei... Logo depois a avó teve um derrame e ficou

numa cama, inválida. Januária foi escolhida para ser sua enfermeira. Quando ficou moça, Dona Jo-sefa continuou com ela o mesmo tratamento da irmã: não podiam sair nem se divertir. não se sabe o motivo de não a colocar na prostituição. Talvez fosse por ela ser grandona, sem cintura e barriguda. Ficou com a barriga saliente de tanto pegar peso, quando criança, tratando da avó. a irmã tinha um corpo bem ajeitado. numa noite a velha passou mal e morreu. O velho caduco já havia morrido. as duas ficaram sós no mundo. O estranho é que elas continuaram do mesmo modo que eram.

Passaram-se os anos e Seboym não conseguia mais os fregueses ricos de outrora. Dona Áurea a dispensou de seu bordel. Foi para outro inferior, e ainda outro bem pior. Chegou à triste conclusão de que logo não teria como se sustentar nessa profis-são. Estava viciada em ganhar dinheiro fácil e não queria trabalhar.

aconteceu então que um vizinho, Tibúrcio, não imaginando nem de longe como eram as duas

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– ninguém as imaginava –, ficou de encantos com Januária. apesar de não ser um modelo de bele-za, era meiga e delicada. Também estava encan-tada com o rapaz. Ele tinha um emprego público – não ganhava muito, entretanto era seguro – e um apartamento do governo. Parece até que tinha comprado. a mãe dele, já falecida, sempre lhe disse para casar com uma mulher que ficasse em casa, não dessas que viviam na rua, saindo a saracotear. Quer seja em namoro, quer seja em festas, e mesmo trabalhando. Sua eleita só ficava em casa fazendo serviços domésticos. Considerou-a tão perfeita que lhe viu encantos. além de sua meiguice. apesar dos ciúmes, Seboym viu que era a única solução para as duas.

– E o casamento dos dois?– O paspalho do marido seria igual aos meus

clientes. Januária concordou. Ela sempre quis casar e

ter filhos. Tinha o instinto maternal. Também se lembrava da mãe. apesar de seu encanto pelo ra-paz, concordou em continuar com a irmã.

O casamento foi rápido e, um ano e pouco depois, nasceu uma menina, Emiliana. Com os anos, os desentendimentos foram aumentando. Chegou a um ponto em que Januária não queria mais sexo com o marido e Seboym se metia em

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tudo, apesar do dinheiro vir dele. as brigas eram tantas que, numa tarde, Seboym colocou-o para fora de casa.

O apartamento era de Tibúrcio e o sustento da casa também. Porém ele era de boa índole e aceitou que elas ficassem lá, para criar a filha, além de dar uma pensão para a ex-esposa e a filha. Tinha um amor muito grande por elas. apesar das contínuas confusões e da falta de sexo no casamento, no dia em que foi embora, Tibúrcio sentiu muito.

as duas irmãs voltaram à antiga lua de mel. a menina sentiu muito a falta do pai, entretanto não podia se manifestar, pois as duas, principalmente a tia, sua madrinha, insultava-o mais e mais.

algum tempo depois Seboym pegou uma doença estranha, vinda de sua antiga vida de pros-tituição. Piorava a cada dia que passava. Estava já no fim, quando Januária teve um acidente e faleceu. a irmã muito doente, desgostosa, pensava em não ter mais ninguém no mundo. a sobrinha sempre foi um investimento para as duas. assim a pseudo solteirona morreu também.

Tibúrcio, que não casara novamente, voltou a morar com a filha no apartamento. Emiliana en-trou na faculdade, formou-se e resolveu fazer um curso de pós-graduação no exterior. (O leitor esco-lhe entre harvard/Boston/USa ou Sorbonne/Paris/

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França). Lá conheceu um jovem calmo e tranquilo – como seu pai –, com quem se casou. Teve filhos e se radicou por lá. Todo ano voltava à sua terra para ver o pai, de quem ela tinha muitas saudades e que tinha encantamento pelos netos. Também ia ao túmulo da mãe. não gostava nem de lembrar-se da tia, sua madrinha. nem entendia muito bem o por-quê. (Ela sempre quis ter uma família e nunca teve).

apesar da situação esdrúxula, Emiliana e Ti-búrcio conseguiram ser felizes. Pelo menos após a morte das duas. E talvez as duas irmãs também. To-dos a seu modo.

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PESaDELO n. 8 Pesadelo das cobras

Estou num ninho de cobras.Que horror!Elas me mordem. não posso me mexer que

elas me mordem.Ontem sonhei (ou tive pesadelo) que não

conseguia enterrar ossos, apesar de expô-los e não gostar disso.

Qualquer movimento ou qualquer coisa que falo, as cobras me mordem. Dói tanto...

E parece que estou há tempo aqui...Que horror!De repente, olho para as cobras e reconheço o

rosto de pessoas que amo tanto...acordo aos gritos.

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aS DUaS PRiMaS

– Como é a história? Eu não concordo, não. acho tudo isso um absurdo.

Em seguida, depois de algumas outras frases, desligou o telefone com tranquilidade.

– Vovó, por que você deu sua opinião, não era melhor não se envolver?

– na maioria dos casos, você tem razão. Mas sabe de uma coisa: na minha idade, já se sofreu tan-ta injustiça, tanto mal agradecimento e tanta calú-nia, que passa-se a ter uma vantagem.

– Vantagem, qual?– a gente pode fazer e falar o que quiser, desde

que seja da vontade de Deus, que mais nada nos atinge.

a neta, uma meninota ainda não adolescente, pôs-se a rir, e como estivesse chovendo, a avó teve vontade de lhe contar uma história, que há dias es-tava recordando.

– Maria Clara, você não está fazendo nada e eu vou lhe contar a história de duas primas mi-nhas:

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“Elas tinham mais ou menos a mesma fisiono-mia, pois as duas pareciam com vovó Gênia, a avó em comum. Eram muito bonitas. Uma era bem cla-ra, com os cabelos castanhos bem claros e os olhos meio verdes, e a outra tinha os cabelos bem pretos, a sobrancelha bem marcada e os olhos negros. a primeira se chamava Geni e a outra Jenifer. Foram moças na mesma época.

O pai da primeira bebia muito, não gostava de trabalhar e vivia pelos bares. Gostava também de um rabo de saia. nenhum de seus casos nun-ca foi adiante, pois ele nunca quis perder a esposa, que sempre trabalhou e sustentava a ele e a casa. atribuíam a ele inclusive alguns casos de tara, que foram abafados. nunca ligou para os filhos, que fo-ram criados pela mãe. Esta, a família considerava uma mártir, pois apesar de trabalhar muito, estava sempre alegre e nunca reclamava de sua sorte.

O pai da outra era trabalhador, bom pai e res-ponsável em sua vida. Sua mãe era uma boa pessoa, porém contraiu uma doença, câncer, que a maltra-tou durante muitos anos. a doença os abalou mui-to, de tal jeito, que só se falava nisso. não se confor-mavam. a casa ficou muito triste.

Geni tinha muitos namorados e procurava um amor desesperadamente em todos eles. Queria achar alguém para diminuir a carência do pai.

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Jenifer se encantou com Caix, um rapaz bonito, trabalhador e apaixonado por ela – assim ela o via –, morador da casa ao lado da sua. Morador mesmo não era, pois ele vinha visitar os pais. Segundo lhe di-ziam, o serviço era muito e ele pernoitava no centro para não perder tempo. Ela acreditava em tudo, pois estava no céu, julgava estar vivendo um grande ro-mance de amor. Precisava viver euforicamente uma história romanceada de fantasia para ficar longe da tristeza de seu lar. nesse embalo ela se entregou de corpo e alma. Principalmente de corpo.

Diziam que Geni se cansara dos agitos e resol-veu ancorar em algum porto. havia um rapaz que estava sempre ali, apaixonado por ela, era abed. Tinham quase a mesma idade. Ele não era feio e já era comerciante conceituado. Trabalhava muito, tinha apartamento próprio, muito bom, carro zero quilômetro e até apartamento na praia. Eles come-çaram a namorar e tudo ia muito bem. a mãe dela estava encantada com o relacionamento da filha. Ela ia ter um destino bem melhor que o seu. O ca-sal começou a frequentar bons restaurantes e o noi-vo lhe dava presentes maravilhosos. até a sogra era contemplada, o que a fazia ir às nuvens de tão feliz.

infelizmente um dia, ou uma noite, Jenifer sou-be que a história do Caix era diferente da que lhe ha-via sido contada. Ele era casado com uma moça rica,

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moradora de um bairro de luxo. Sua esposa era tão apaixonada por ele, que suportava suas traições. Ele vivia às custas da família dela, não trabalhava e ainda arrumava casos de infidelidade por aí.

– E os pais dele? Sabiam e não contaram nada?– é isso aí. Pela moral distorcida deles, o filho

estava tirando o melhor da vida, não se importando com os outros e com as consequências de seus atos.

Ela abominou a situação e não quis mais vê-lo. Ele então sumiu dali por uns tempos. Como já não era virgem e isso aconteceu antes da pílula anticon-cepcional – naquela época ter um relacionamento sexual antes do casamento era trágico –, ela teve cri-ses de culpa e entrou numa depressão enorme. ape-sar de sua família e a prima lhe darem todo o apoio.

O namoro com abed estava indo às mil ma-ravilhas, quando Geni conheceu Cosme. Ele era doze anos mais velho que ela, aparentemente não era bonito, tinha tido dois casamentos, ou rela-cionamentos, donde vieram quatro filhos: três da primeira e um da segunda. não dava pensão a ne-nhum deles. Morava de aluguel. Trabalhar, traba-lhava, porém nada assim com lastro. Depois de um final de semana na praia, ela ficou resolvida a largar o noivado seguro e se jogar ao que conside-rava um grande romance. a mãe dela não se con-formava. Pediu a uma parenta para lhe dar conse-

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lhos, entretanto nada adiantou. a carência do pai a levava a ele.

Como todos a aconselharam a tentar um na-moro novamente, Jenifer então deu atenção a um jovem que trabalhava junto a ela, Damião. Ele não era atlético nem bonitão. Era comum, comum. na primeira brecha dela, ele foi com tudo e declarou-se todo. Como ele costumava falar muito em moral, moral... ela, de cara no primeiro encontro, contou-lhe sua situação de desvirginada. Talvez até imagi-nando não ter de continuar a situação. Entretanto ele estava obcecado por ela. aceitou tudo.

– Será que a beleza interferiu nessa história?– num relacionamento amoroso, a beleza ser-

ve para a atração e para o desejo inicial. Depois de algum tempo, uma pessoa que disser que está com outra pela parte física somente, para mim não é normal.

– Por que?– Depois de algum tempo, o mais importante

deve ser a parte interior.assim, com diferença de seis meses, as duas

primas se casaram. a primeira, largando uma situa-ção estável financeira e emocional, para se entregar a uma aventura de paixão repleta de instabilidade. E a segunda pôs a razão na frente e casou sem amor com um rapaz que lhe desse uma estabilidade.

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Os anos se passaram. as duas tiveram filhos.Jenifer não via encanto naquele casamento.

até se esforçava – será que se esforçava mesmo? –, porém nada lhe satisfazia. não conseguia ver graça em nada. Seu marido fazia de tudo para agradá-la, entretanto não conseguia, pois sua insatisfação era carregada teimosamente. nunca se entregou verda-deiramente àquele relacionamento e nunca casou mesmo por dentro. Só por fora, no civil e no re-ligioso. Começou a comer compulsivamente. Sua vida estava tão sem sentido, que só via prazer na comida.

Geni tentava exageradamente fazer que seu homem não cobiçasse as outras mulheres, tarefa essa impossível, pois a necessidade das conquistas adúlteras de seu marido era da cabeça dele. Ela vi-via de regime exagerado e não era controle alimen-tar saudável. Fazia mais de quatro horas por dia de exercícios físicos compulsivamente. Só assistia te-levisão na esteira malhando. Fora os outros exces-sos em sua aparência física. nada lhe satisfazia e ela nunca conseguiria harmonia naquele casamento como fantasiava.

– Será que ela não queria o marido assim, mais ou menos igual a seu pai?

Jenifer se tornou uma pessoa amarga, engor-dou e era rabugenta com Damião. Ele aguentava

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tudo dela abnegadamente. O abuso dela era tanto que incomodava seus próprios parentes.

Geni ficou uma pessoa tensa, nunca estava re-laxada. Desconfiava do assédio de todas as mulhe-res que os rodeavam e o marido dava motivos. Para ele, qualquer uma servia para cortejar/dar em cima. a instabilidade financeira a incomodava. nunca quis ter uma carreira profissional por não admirar sua mãe, que trabalhou arduamente a vida inteira. ainda culpava essa abnegação pelos erros do pai.

infelizmente os filhos das duas tornaram-se problemáticos e infelizes.

Os pais das duas faleceram. Depois de algum tempo, o estranho era a forma delas se referirem ao próprio pai. Geni, cujo pai era um tarado vagabun-do, estava sempre falando dele como se fosse um galã romântico e cheio de qualidades. E Jenifer, cujo pai era um homem decente, trabalhador, bom pai e bom marido, raramente falava nele, e quando a ele se re-feria, era sempre de forma pejorativa e com desdém.

O tempo foi passando, até que as duas ficaram doentes de males diferentes e morreram com inter-valo de seis meses.”

– Que história triste, vovó!– Sabe por que eu quis contar essa história?Maria Clara a olhava com seus olhos grandes

e atentos. Seus cabelos eram no tom castanho escu-

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ro, bem lisos e cortados retos. Tinha ingenuidade e transparência.

– Porque as duas se casaram em estado de de-sarmonia psicológica.

– O que é isso, vó?– Geni tinha uma carência pelo pai e procura-

va alguém com algumas características semelhantes. Chegava a ponto de fantasiar o pai da forma antagô-nica que ele era. Por uma maluquice da sua cabeça não admirava sua mãe que se sublimou exagerada-mente.

Jenifer queria um grande amor diferente do ambiente de seu lar. Ela nunca entendeu que em sua casa houve uma tragédia de doença, mas havia amor sim e muita abnegação. até muito carinho. não deu valor ao pai, porque ele lhe permitiu a fal-ta de respeito, quando era vivo.

– é, vó?– Elas não estavam conseguindo superar seus

traumas.– Então o que deveriam ter feito?– O melhor que deviam ter feito seria não casar

e principalmente não ter filhos... mas isso é teórico! na prática é diferente. as pessoas vão para relacio-namentos amorosos com todos os seus traumas de infância e todas as suas carências, espalhando infe-licidade por todo lado. Parece que não querem ir

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pra frente... a vontade de melhorar deve ser o mais precioso de nossos desejos.

– Mas tem gente pior, não tem, vó?– infelizmente tem e muito pior. há os tara-

dos, os loucos. Estou falando das pessoas normais, ou mais ou menos normais. Se um dia você esti-ver angustiada com algum problema ou tiver tido um amor não correspondido, dá um tempo em sua vida. Para mim, não existe essa história de um amor substituir outro. Cada amor é único e intransferí-vel – inclusive de pais, enamorados, amigos, etc. – e merece um desapego especial para nosso equilí-brio. Vai viajar, estudar, comece um novo curso ou dê asas a um lazer. Só não pode é arrumar um pre-tenso amor para resolver seus problemas, que você só vai complicar sua vida e a dos outros.

– Vó, eu só vou ter amor com final feliz!– Minha querida Maria Clara, a vida não é

assim. a realidade da condição humana é se viver acompanhada de incerteza. a vida é resolver pro-blemas. Quem tem vitalidade, realiza projetos e o normal é aparecerem obstáculos a serem transpos-tos. Partindo de que a vida é luta, temos a obrigação de termos sempre objetivos positivos. Quem não quer se preocupar com nada, para de viver e come-ça a vegetar. E ainda inventa motivos para se preo-cupar. Termina tomando remédio até para dormir.

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– Que coisa, vó.– não se preocupe, meu amor, em sua vida

você vai saber resolver seus problemas calma e tran-quilamente. E saberá escolher seu parceiro amoroso num rapaz bom, alegre, trabalhador e equilibrado. Vocês dois se amarão e estarão sempre a procurar a felicidade de si e do outro.

– Que bom, não é, vó.– assim seja!

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PESaDELO n. 9 Pesadelo dos dias de hoje

Estou na rua. Tenho medo de quem vem atrás de mim na calçada... pode ser roubo. ando mais

um pouco e um carro estaciona perto de mim... te-nho medo de ser sequestro. Entro numa loja e te-nho medo de clonarem meu cartão e de entrar um bandido anunciando um assalto. no banco então é medo constante de tudo.

Entro no shopping e os medos continuam. Se subo a escada rolante, dá medo de ter alguém, com arma, no degrau de cima ou no de baixo... na inter-net não posso abrir e-mails para não entrar vírus... Tenho até medo de roubarem os órgãos de meu corpo...

Em casa não abro a porta para ninguém nem dou água, muito menos comida... pois pode ser um ladrão camuflado...Tenho medo também do telefone... não falo meu nome nem dou dado ne-nhum... não posso também dizer o nome de meus entes queridos... ah, também tenho medo de meus empregados, podem me furtar ou pior: contarem a

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um marginal sobre minha pessoa e ele vir me fazer mal... Os empregados têm medo dos patrões, destes usarem contra eles sua ignorância...

nem todos são maus, entretanto como dife-renciar os maus dos bons? atualmente às vezes, pa-rece impossível...

Que horror! acabou?não!a família está falindo. Essa instituição mile-

nar – quiçá mais antiga – está definhando. Os pais não são mais um casal. Vivem se engalfinhando, sem união entre si. Os filhos viraram um peso ou se tornaram tiranos sem limites. Desde o homem da caverna, que o lar, o núcleo familiar, era um lu-gar seguro para proteger-se dos perigos de fora. atualmente a violência doméstica aumenta em ní-veis alarmantes.

amigos só procuram o outro quando preci-sam de alguma coisa.

O respeito não tem mais vez. não se respeita pais, professores e aqueles que têm algo para nos passar. Cada um quer tirar o melhor proveito e de-pois jogar fora.

Só se para diante do mais forte ou daquele que pode mais. O infrator fica na cadeia e os ou-tros ficam atrás das grades de sua própria casa, com medo. Enfim todos ficam engaiolados dentro de

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quartos, saem à rua com uma violência em grau nunca visto nem em guerras. nas batalhas do pas-sado, agrediam-se somente os inimigos. hoje a vio-lência é diversão.

nas escolas e nas comunidades, em geral, os alvos a serem agredidos são os mais bonitos e os mais inteligentes. O que será da humanidade, da espécie humana?

a luxúria impera. O sexo normal está fora de moda. Quanto mais aberrações, mais encanta. al-gumas jovens, vindas de famílias comuns, fazem sexo numa noite com vários parceiros, cuja maioria nem conhecem...

Bebidas e drogam imperam. as religiões, com seus conceitos milenares,

também estão vendo tudo isso ser menosprezado e ridicularizado. Espertalhões safados, fantasiados de sacerdotes, enchem o bolso com a insegurança e a desorientação de todos.

O psicopata virou modelo de pessoa e aquele que tem sensibilidade, compaixão e sabedoria vi-rou otário, bobo, fora do mundo...

Estamos no apocalipse? Chegou o fim do mundo? não sei...

ainda acredito num amigo meu, que diz que Deus está lá em cima e há de dar o rumo certo à humanidade, vencendo o amor...

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aS XaRÁS

Teca seguia em seu carro. Era novo, desse ano ou do anterior, nem lembrava mais com certeza.

Vinha de seu confortável apartamento. não tinha luxo demais porque não gostava, entretanto tinha tudo que queria e precisava. Conseguira tudo aqui-lo graças a seu esforço profissional e muito traba-lho, economia a planejamento do futuro.

Estava descontente. havia descoberto que astolfo, seu namorado, havia pegado uma conta de luz de seu apartamento e não lhe avisou disso.

– Só pode ser para fazer comprovação de do-micílio.

– Se ele tivesse lhe pedido, você permitiria?– não mesmo. Definitivamente não.– Por esse motivo, talvez ele precisasse e omi-

tiu de você o fato.– não é não. Se ele precisava de um endere-

ço para comprovação de domicílio, pusesse o seu. Se não preenchesse, conversasse comigo e nós, eu... enfim se arrumaria um jeito. a mim parece prova premeditada de futura partilha de união estável.

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– Você não acha que está neurótica com essa história de partilha de união estável?

– absolutamente não. Estou me precavendo. Dar a um aproveitador metade do que se conquista arduamente, já é difícil. Mas assinar recibo perante o fórum e perante o público de que o “nosso grande amor” era só armação, um golpe sórdido... é horrí-vel! Com certeza é o pior de um final!

– Você está exagerando!– Tô não. Tava tudo tão gostoso... Ele ia comi-

go aos lugares que eu gosto: cinema, teatro e lugares onde se dançava sem parar... na transa, ele não era o máximo, mas tudo gostosinho, satisfatório. an-tes era tanto chamego, tanto carinho... Depois cada um para sua casa e continuávamos a nossa indivi-dualidade deliciosa. Casamento, totalmente descar-tado. Deixei isso claro desde que nos conhecemos. De vez em quando íamos viajar, aí sim, andávamos por todo lado de mãozinhas dadas e dávamos bi-toquinhas/beijinhos/selinhos, sempre sem fotos. Eu sabia que aquilo era coisa de adolescente, mas deixava rolar...

– Você não vai nem conversar com ele?– Provavelmente não. as explicações não vão

valer de nada.– Por que você não arruma alguém do seu ní-

vel social e financeiro?

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– Dá muito trabalho. Chega o pai de meu fi-lho. Deu trabalho enquanto estava com ele e depois na separação. Decididamente não.

Ela chegou ao salão de beleza para fazer mani-cure e pedicure. a profissional era sua xará.

Era uma moça bonita acima da média daque-las da periferia de onde morava. não conseguia o trato de sua xará lady, porém se produzia o melhor que podia. Como se sabia bela, ela passou a não se contentar com os rapazes de sua redondeza. imagi-nava que conseguiria mudar sua condição social e financeira para melhor através de relacionamento com o sexo oposto.

– E se fosse mais velho?– Com dinheiro, tudo é bom... De vez em

quando se dá uma escapadinha para compensar... Mas tudo com muita discrição, para haver respeito.

Ela havia conseguido um senhor – não tinha tanta idade assim – que chamavam de astolfo. não era o mesmo de sua xará. as duas haviam feito as comparações e não era a mesma pessoa.

Ele era educado e tinha atitudes gentis. Di-zia que não gostava de levá-la a frequentar lugares perto de onde ele morava para não chocar os fi-lhos – coitados, por causa da mãe, tinham tantos problemas... – entretanto costumava levá-la aos melhores restaurantes da periferia de onde mora-

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va. Lá ia com ela aos lugares onde ela queria ir. E as viagens, que maravilha! Era hotel de luxo, res-taurantes bons, passeios exóticos. Só não gostava de tirar fotos, pois se dizia não ser fotogênico. Ela achava exagero. havia outro fato estranho: não queria casar nem viver juntos. Era tocar no assun-to e ele ficava fora de si, desaparecendo por uns tempos.

– Ele acha que você quer o dinheiro dele.– nem sei o que de dinheiro ele tem. Ele é si-

giloso...– Mas você quer mesmo o dinheiro dele, não

quer?– não é que eu queira o dinheiro dele, eu que-

ro fazer parte da vida dele. E, é lógico, quero minha estabilidade financeira. Eu vou ficar com ele, depois um dia, ele morre e eu fico sem nada. Quero di-nheiro para me sustentar.

– Por que você não fica com o Ricardo? Eu sei que vocês, vez por outra, têm momentos de muito amor...

– O Ricardo é muito gostoso para ser de uma mulher só.

– não concordo. Um homem pode ser ótimo e ser fiel.

– acontece que ele se julga o tal e não quer ficar só com uma. além do mais, ele tem um rolo –

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não sei se é casado ou ajuntado – com filhas e tudo mais. Ele é só para algumas horas... nenhum de nós quer mais que isso.

– Por que você então não arruma um rapaz de sua idade, de sua condição financeira e começam uma vida de lutas.

– Eu...? isso já fez minha mãe. Olha para ela. Vê o bagulho em que ela se transformou. Se você prestar atenção a ela, vai perceber que já foi uma mulher muito bonita.

– Desculpe a sinceridade, precisa de muita boa vontade...

– Para você ver. Trabalha demais, aguenta a bebedeira do maluco do meu padrasto. Meu pai foi embora. Só se diverte um pouco na frente da televi-são. Ela acreditava em amor e luta de trabalho. não quero isso para mim.

– Mas não é sempre assim. Tem muita gente que se casa, vive momentos alegres com seu parcei-ro e os dois lutam, conseguindo uma estabilidade, mesmo sem ficarem ricos.

as duas xarás se encontram.– não estamos bem de homem, não é, xará?– Péssimas! – O meu acha que eu quero o dinheiro dele...– O meu quer meu dinheiro... – Como esses homens são complicados...

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infelizmente existem muitas pessoas como elas: materialistas e só dão importância a dinheiro e a prazeres, esquecendo-se de viver naturalmente. O mais estranho é que não percebem isso.

Muitas pessoas também têm a ilusão de domi-nar os acontecimentos e controlar plenamente suas vidas.

– não são como nós que só pensamos em ro-mance, eles só pensam em riqueza...

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PESaDELO Da aDOLESCEnTE aPaVORaDa COM O TRiSTE

FiM DE ana LÍDia

Zuca era uma adolescente quieta e estudiosa. não que fosse bonita, mas o corpo de mulher

começava a aparecer. Seu irmão mais velho era feio e bem magro. Sua insegurança o levara para as drogas. Seu pai sempre estava a lhe cobrar tudo na vida, principalmente o que não conseguira. isso, aliado às brigas conjugais, tirou dele a força e a luta pela vida. a mãe, em nome de um pretenso amor e de um casamento eterno, deixou-se abusar de-masiadamente. O jovem não estudava e não fazia nada. Em casa, com a mãe e a irmã, só reclamava. na rua não conseguia brincar normalmente, como os outros. Era abusado, outras vezes ficava de lado ou aliado aos mandões. Esta aliança é que o levou às drogas. Mal tinha entrado na adolescência e já estava viciado. Em casa, todos faziam de conta que não notavam, mesmo quando começaram a sumir pequenas quantias de dinheiro. até o pai se omitia.

na escola comentavam abertamente que Joca era drogado. Zuca chorou muito quando soube, en-

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tretanto não teve coragem de contar em casa. ins-tintivamente ela continuou o acordo tácito familiar. Ela era ainda uma menina, seu desabafo ficou com uma colega – filha única e adotada de uma família complicada – que se tornou sua melhor amiga.

Foi quando estourou o caso de ana Lídia. Uma menina bonita que, segundo comentários em Bra-sília, foi entregue pelo irmão viciado ao traficante, em troca de dívidas de drogas. a Polícia e, mais tar-de, a Justiça nunca conseguiram provar nada, em virtude dos outros envolvidos serem parentes de poderosos da época. O caso nunca ficou esclarecido devidamente. Porém a televisão, jornais e revistas falavam sem cessar na tragédia.

Zuca começou a se imaginar vendida também pelo irmão. Este vivia com ciúmes dela, acusado-a de bajular a mãe e ser fingida com o pai. imaginava que ele gostaria de sumir com ela de sua família. além do mais, os alunos da escola já tinham começado a notar-lhe o corpo e muitas vezes lhe falavam de seus desejos sexuais, mesmo sem ela lhes favorecer com esses atrevimentos. Sem contar aquele fulano chefe de uma turma da pesada, que ela considerava nojen-to, vivia lhe falando coisas de sexo com uma baixaria de mau gosto. Quanto mais ela ficava inibida verme-lha de vergonha, mais ele falava coisas piores e os ou-tros mais riam. Se o seu irmão estava por perto, ele

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queria entrar no chão, e aí é que aumentavam mais. E riam muito. Ela os odiava.

Sua cabecinha de adolescente contribuiu para ela exagerar muito, muito.

De sua casa, sumiam tênis e aparelhos eletrôni-cos. Uma vez, seus pais acusaram uma figura imagi-nária entrando pela porta do apartamento e furtando objetos de casa. numa maluquice, sua mãe passou a vigiar pela janela qualquer indigente que passasse.

Zuca sabia que era o irmão. Foi quando sumiu um tênis seu. Ela surtou, não só pelo furto, mas por tudo que estava sentindo nos últimos dias. Xingou o irmão, acusou-o e vomitou tudo que estava en-talado. a mãe, depois o pai, fingiu que não estava escutando a verdade. atarantada, a pobre correu a fazer um chá de camomila para a filha, justificando o seu desabafo como consequência de tanto estudo. O pai finalizou que iria ao shopping comprar-lhe outro par de tênis. E o assunto estava encerrado.

Ela chorou muito, passou dias a chorar, nem mesmo a compra prometida conseguiu fazer que ela parasse. Ela não chorava pela perda do objeto, mas pelo perigo iminente que imaginava estar para acontecer. Os pais não entendiam tanto choro.

Começou a usar roupas largas exageradamen-te. O objetivo era passar despercebida. Começou também a engordar para se enfear.

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O tal aluno problema – ela o imaginou chefe do tráfego de drogas – neuroticamente passou a lhe assediar mais ainda. Ela então passou a não sair de casa. assim corria menos perigo. Tinha medo de ficar sozinha com o irmão, pois se imagi-nava sendo levada pelos bandidos. numa das raras saídas da família, foram todos visitar um primo do pai. Ela não queria nem ficar no banco traseiro com o irmão.

Estava atenta a toda notícia que falava de ana Lídia, para se precaver. Quando começaram a atri-buir santidade à pequena mártir, ela foi uma das primeiras a lhe pedir um milagre de não ter o mes-mo fim. imaginou que ela teria prioridade pelos problemas semelhantes.

Um dia Joca teve um problema de saúde grave. Desmaiou e ficou em coma. Depois ficou internado vários dias. O médico disse aos pais que eram as dro-gas o problema do rapaz. aconselhou-os a tomarem uma providência bem rápida, enquanto ainda era tempo. a mãe desmaiou e o pai bebeu durante dois dias seguidos. Então uma tia do rapaz resolveu:

– Vamos interná-lo, sem ninguém saber, pois seria uma vergonha para as duas famílias.

assim foi feito. Como não tinham dinheiro, ele foi para uma clínica que interessava a eles, no aspecto financeiro e de transporte acessível. nin-

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guém pensou no rapaz, em qual seria o motivo que o estaria levando àquilo.

Zuca sentiu um alívio, entretanto não durou muito. Logo soube que o irmão iria ficar só três me-ses. Quando ele voltou, no começo, parecia que tinha ficado meio bobo. Porém logo foi se recuperando e infelizmente voltou às drogas com mais intensidade.

Joca ficava uns tempos em Brasília, uns tem-pos na clínica no interior de Goiás. O “segredo da família” evidentemente não pôde ser preservado, pois todas as pessoas já sabiam muito antes...

Zuca fez questão de passar num vestibular bem longe de sua cidade. Lá fez seu curso e aos poucos foi emagrecendo, voltando a ser uma bela mulher. Conheceu um rapaz e casou-se. Fez ques-tão também de se empregar bem longe de Brasília. Raramente vinha ver seus pais. Sua mãe ia sempre visitá-la, adorava os netos.

O irmão se envolveu num acidente de moto e morreu jovem ainda.

Tempos depois, Zuca voltou a sua cidade e soube que faziam 25 anos da morte da pequena ana Lídia. Percebeu então que havia dado outro rumo a sua vida em função do medo de ter seu triste fim.

Será que ela mudou por causa daquela tragé-dia? Provavelmente havia outros motivos antes dis-so.

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O PESaDELO QUE ViROU SOnhO

angústia, eu sentia muita angústia... Estava num pesadelo horroroso.Eu devia estar me agitando sem parar e suan-

do muito.a angústia de não conseguir mudar nada ali,

tudo só piorava cada vez mais...Depois névoa, fumaça... névoa, fumaça...Então eu vi uma pomba com muitos outros

passarinhos – na natureza nem sei se isso é possível –, eles começaram a me puxar, depois eu fui sendo levada... não sei... parecia que eu ia sendo arrastada e eu não queria que me arrastassem. Às vezes havia a sensação de que voava...

De repente estava diante de uma porta num campo. Como se fosse uma porta de fazenda. nem sei se havia cerca. Tudo muito tranquilo, aberto e cuidado.

Os pássaros me deixaram ali. Eu tive medo, muito medo do que viria pela frente, apesar da paz do lugar.

Com calma, tirei a tranca – era tão fácil tirar a tranca – e atravessei a porta. Respirei fundo, pois

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sabia que precisava de muito discernimento, muita sabedoria e muita força para seguir meu caminho. Seria normal encontrar dificuldades e eu teria de resolver muitos problemas.

Olhei para trás para levar a experiência do que não devia fazer e o que seria bom fazer de novo.

E segui meu caminho... eu me sentia tão bem, tão bem...

FiM

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Pesadelos, sonhos e contos foi composto em tipologia Minion, corpo 14 pt, impresso em papel Sinartech 80g nas oficinas da thesaurus editora de brasí-lia. acabou-se de imprimir em 2010, ano em que se comemora

o Cinquentenário de Brasília.