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apostila da disciplina pratica curricula IV - Facete
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Prática Curricular IV: Fontes Escritas, visuais e sonoras-construindo texto didático
Faculdade de Educação Teológica -
www.facete.com.br
Prática Curricular IV
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FACETE – FACULDADE DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DO PARÁ
CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA
DISCIPLINA: PRÁTICA CURRICULAR IV (FONTES ESCRITAS VISUAIS E
SONORAS – CONSTRUINDO TEXTOS DIDÁTICOS)
PROFESSOR:
EMENTA
“A História do Historiador”
Introdução ( ou, sobre o que precisamos considerar ao trabalhar com História)
Passado e memória dão conteúdo, identidade e espessura a todos os humanos. Por
mais isolado que se encontre um grupo, uma comunidade ou mesmo um só indivíduo, todos
estão imbuídos de um passado, de uma memória e de uma história. A história de si mesmos é
também a história da vinculação com determinado tempo e espaço. A história pessoal de cada
um inevitavelmente terá raízes numa história externa, mais ampla, mais difusa, imbricada com
o social, o econômico, com as estruturas da cultura, nem sempre perceptível no plano da
consciência individual. É justamente da tradução dessas histórias através de narrativa
coerente, elaborada a partir de elementos concretos, não ficcionais, com bases num múltiplo e
complexo inter-relacionamento entre tempo, espaço e a expressão dos grupos humanos, que
se ocupará o historiador. O historiador não será o guardião da memória individual, ou
memorialista, mas aquele que ao indagar, capta o sentido da construção de uma memória
social no tempo, criando uma imagem do passado. Neste sentido a memória é documento, não
produto final.
Assim como o conteúdo da história não é o indivíduo isolado, tampouco o
historiador expressará uma subjetividade ilimitada na sua captação do passado. Pelo simples
fato de participar de um passado realizado no presente, de pertencer ou se projetar num
determinado grupo social, seu trabalho expressará uma historicidade intrínseca na escolha de
temas, na abordagem, na leitura da documentação, no processo de reflexão convertido num
contexto. Paradoxalmente, nesta condenação do historiador ao presente situa-se a eternidade
de um passado que nunca se esgota. Caso contrário, a história da Grécia, por exemplo, teria
sido escrita por Homero e ponto final. No entanto, cada século reelaborou a história da Grécia
dentro de suas perspectivas e possibilidades. Nos limites entre a ―consciência possível‖ e a
―consciência real‖ próprias e de seu tempo, o historiador busca no passado a consciência de
seu tempo.
O historiador, diante da necessidade de organizar seu pensamento, seu
entendimento, cria medidas e categorias de tempo, organiza esse tempo em função de fatos,
de ciclos, de épocas, de estruturas. Dessa forma, acrescenta uma noção de tempo diversa
daquela vivida pelas comunidades, ou seja,, o tempo jamais é único no estudo da história, é
desigual e particular a cada sociedade, a cada momento e a cada espaço.É físico e metafísico.
Pode até mesmo não existir.
Dependendo de suas crenças, é possível a uma sociedade conceber um mundo
sem passado, num eterno presente em que passado e futuro se fundem. No Egito, na China, há
deuses que significam o próprio tempo, um tempo contínuo, seria um não-tempo divino que
interpreta o cotidiano.
Na cultura do cristianismo, o tempo existe na esfera do humano, fora da
divindade, que é eterna...
(QUEIROZ, Tereza Aline P. e IOKOI, Zilda Márcia G. A História do Historiador.
São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 1999. P.07 a 12, Introdução).
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Um pouco sobre o ensino da História no Brasil
A partir da constituição do Estado brasileiro a História tem sido um conteúdo
constante do currículo da escola elementar. O texto do decreto revelava que a escola
elementar destinava-se a fornecer conhecimentos políticos rudimentares e uma formação
moral cristã à população. A História a ser ensinada compreendia História Civil articulada à
História Sagrada.
A constituição da História como disciplina escolar autônoma ocorreu apenas em
1837, com a criação do Colégio Pedro II, o primeiro colégio secundário do país, que apesar de
público era pago e destinado às elites e apenas a História Universal. A História do Brasil foi
introduzida no ensino secundário depois de 1855 e, logo após, foram desenvolvidos
programas para as escolas elementares.
No final da década de 1870 foram feitas novas reformulações dos currículos das
escolas primárias visando criar um programa de História Profana, mais extenso e eliminar a
História Sagrada.
Os métodos de ensino estão aplicados nas aulas de História eram baseados na
memorização e na repetição oral dos textos escritos. Os materiais didáticos eram escassos,
restringindo-se à fala do professor e aos poucos livros didáticos com perguntas e respostas,
facilitando as argüições. Desse modo, ensinar História era transmitir os pontos estabelecidos
nos livros, dentro do programa oficial, e considerava-se que aprender História reduzia-se a
saber repetir as lições recebidas e prontas.
Pulando o século XIX, a partir de 1930, o ensino de História era idêntico em todo
o país, dando ênfase ao estudo de História Geral, sendo o Brasil e a América apêndices da
civilização ocidental.com o processo de industrialização e urbanização se repensou sobre a
inclusão do povo brasileiro na História.
Nos programas e livros didáticos, a História ensinada incorporou a tese da
democracia racial, da ausência de preconceitos raciais e étnicos. Nessa perspectiva, o povo
brasileiro era formado por brancos descendentes de portugueses, índios e negros, e, a partir
dessa tríade, por mestiços, compondo conjuntos harmônicos de convivência dentro de uma
sociedade multirracial e sem conflitos, cada qual colaborando com seu trabalho para a
grandeza do país.
Ao longo desse período, poucas mudanças aconteceram em nível metodológico.
Apesar das propostas escolanovistas de substituição de métodos mnemônicos pelos métodos
ativos, com aulas mais dinâmicas, centradas nas atividades do aluno, com a realização de
trabalhos concretos como fazer maquetes, visitar museus, assistir a filmes, comparar fatos e
épocas, coordenar os conhecimentos históricos aos geográficos.
Os métodos tradicionais de ensino têm sido questionados com maior ênfase. Os
livros didáticos, difundidos amplamente e enraizados nas práticas escolares, passaram a ser
questionados em relação aos conteúdos e exercícios propostos. A simplificação dos textos, os
conteúdos carregados de ideologias, os testes ou exercícios sem exigência de nenhum
raciocínio são apontados como comprometedores de qualquer avanço que se faça no campo
curricular formal. Dessa forma, o ensino de História atualmente está em processo de
mudanças substantivas em seu conteúdo e método.
Reafirmar a importância do currículo, não desprezando totalmente os livros
didáticos disponíveis já que alguns são de boa qualidade, mas atentando para a importância do
historiador produzir, a partir de um sólido referencial teórico, novos subsídios nascidos da
observação atenta e crítica dos fatos históricos, textos didáticos novos que contemplem
diversas fontes escritas visuais e sonoras são o que pretende esta disciplina.
OBJETIVO GERAL: Capacitar aos futuros historiadores construírem, a partir de
um sólido referencial teórico-histórico apreendido durante o curso e se utilizando das fontes
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escritas visuais e sonoras, textos didáticos que possibilitem aos seus alunos a realização de
leituras críticas dos espaços, das culturas e das histórias do seu cotidiano.
OBJETIVOS ESPECÍFICOS:
- Orientar aos professores a construção de um material didático que privilegie a
história crítica, pretendendo desenvolver com os alunos atitudes intelectuais de
desmistificação das ideologias, possibilitando a análise das manipulações dos meios de
comunicação de massas e da sociedade de consumo.
- Possibilitar a hetero-crítica dos livros didáticos e questioná-los e relação aos
conteúdos e exercícios propostos: a simplificação dos textos, os conteúdos sem nexo, os
exercícios sem exigência de nenhum raciocínio, imprópria iconografia e outros fatores que
denigram o ensino-aprendizagem da História.
CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
1- Conceitos de currículo e de referencial teórico;
2- Prática de produção de texto didático utilizando as normas da ABNT (Associação
Brasileira de Normas Técnicas) e o correto manuseio das fontes escritas visuais e sonoras;
3- Como fazer pesquisa bibliográfica relacionando com o assunto pesquisado.
METODOLOGIA/ATIVIDADES A disciplina Prática Curricular IV priorizará atividades que possibilitem a
construção de textos didáticos além de atividades em grupo, pesquisas e confecção de painéis
e outros.
O Ensino e a aprendizagem da História estão voltados, inicialmente, para
atividades em que os alunos possam compreender as semelhanças e as diferenças, as
permanências e as transformações no modo de vida social, cultural e econômico no presente e
no passado, mediante a leitura de diferentes obras humanas.
O trabalho do professor consiste em introduzir o aluno na leitura das diversas
fontes de informação: registros escritos, iconográficos e sonoros, para que adquira, pouco a
pouco, autonomia intelectual. O percurso do trabalho escolar inicia, dentro dessa perspectiva,
com a identificação das especificidades das linguagens dos documentos – textos escritos,
desenhos, filmes -, das simbologias e das formas de construções dessas mensagens.
Para tal tarefa é necessário que ao construir os textos didáticos a utilização de
vários materiais não só de origem canônica (sociais, culturais, artísticos, religiosos), mas
também requer o estudo de novos materiais (relatos orais, imagens, objetos, danças, músicas,
narrativas) que devem se transformar em instrumentos de construção do saber histórico.
Privilegiar, portanto, na construção dos textos didáticos de modo geral o trabalho
com fontes documentais – fotografias, entrevistas, pesquisa bibliográfica, formulação de
hipóteses, comparação de informações e perspectivas diferentes sobre um mesmo
acontecimento, teatro, murais, quadros cronológicos, debates, mapas, filmes, depoimentos,
edificações, objetos de uso cotidiano – é necessário desenvolver trabalhos específicos de
levantamento e organização de informações, leitura e formas de registro.
Os documentos são fundamentais como fontes de informações a serem
interpretadas, analisadas e comparadas. São cartas, livros, relatórios, diários, pinturas,
esculturas, fotografias, filmes, músicas, lendas, falas, espaços, construções arquitetônicas ou
paisagísticas, instruções e ferramentas de trabalho, utensílios, vestimentas, restos de
alimentos, habitações, meios de locomoção. São, ainda,os sentidos culturais, os estéticos,
técnicos e históricos que os objetos expressam, organizados por meio de linguagens( escrita,
oralidade, números, gráficos, cartografia, fotografia, arte).
É importante analisar a linguagem escrita, considerada como universo simbólico
que abarca signos simbólicos, conteúdos, mensagens, sentidos, construção argumentativa,
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estrutura lingüística, etc.
Finalmente, mas não menos importante é preciso que ao se produzir um texto
didático que contemple a história regional, o profissional de história deve fazer recortes e
considerar alguns aspectos relevantes, desenvolver um trabalho de integração dos conteúdos
de História com outras áreas do conhecimento.
REREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANPUH. Memória, História, Historiografia: dossiê ensino de história. Revista Brasileira de
História, São Paulo, v. 13, n. 25/26, set. 2002/ago.2003.
BITTENCOURT, C.M.F. Pátria, civilização e trabalho: ensino de História nas escolas
paulistas. São Paulo: Loyola, 1990.
BLOCH, M, Introdução à história. Lisboa: Presença, s/d.
BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto/ Secretaria do Ensino Fundamental e médio.
Parâmetros Curriculares Nacionais- História. Vol. 5. Brasília. 1997.
CABRINI, C. ET alii. O ensino de história: revisão urgente. São Paulo: Brasiliense, 1996.
CERTEAU, M. DE. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense. 2002.
COCH, Ingedore; TRAVAGLIA, Luiz C. A coerência textual. 3. Ed. São Paulo: Contexto,
2001.ão Paulo: Contexto, 2001.
DIAS, M.O.L.da S. Quotidiano e poder. São Paulo: Brasiliense, 1994.
FONSECA, S. G. Caminhos da história ensinada. Campinas: Papirus, 2003.
Guia do livro Didático/ PNLD 2004. Brasília: MEC, 200º.
HELLER, A. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro. 1992.
HOBSBAWM, E. e RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2004.
NADAI, E. A escola pública contemporânea: propostas curriculares e ensino de história.
Revista Brasileira de História, Rio de Janeiro, v. 11, 1996, p. 99-116.
SILVA, M. (ORG.). República em migalhas, História regional e local. Rio de Janeiro: Marco
Zero; MCT/CNPq, 2000.
____________. Repensando a história. Rio de Janeiro: Marco Zero, 2004.
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SUMÁRIO
1- Por que há tantas desigualdades sociais no Brasil? Um panorama da riqueza e da pobreza
brasileira.
2- Fazer História: Problemas de método e problemas de sentido.
3- Estrutura da Vida Cotidiana
4- Indivíduo e Comunidade: - Uma contraposição real ou aparente?
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M a r í a L a u r a S i l v e i r a
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CADA MOMENTO DA HISTÓRIA pode ser reconhecido por uma dada feição do território
ou, em outras palavras, pela existência de um sistema de infra-estruturas e uma dada
organização da vida política, econômica e social. Produto do trabalho, essas bases materiais e
políticas dão lugar à consecução de um novo trabalho e à sua divisão entre as pessoas e os
lugares.1 Assim, a história de uma nação pode ser contada pela sucessão das infra-estruturas
ligadas à produção e à circulação — que podemos chamar de configurações territoriais —
mas, ao mesmo tempo, pela sucessão de políticas industriais, financeiras, sociais etc.
Em cada pedaço do território nacional, a quantidade e qualidade das infra-estruturas e
das políticas possibilitam o exercício, mais ou menos bem-sucedido, de um tipo de trabalho
valorizado no mundo contemporâneo. É por isso que podemos dizer que as regiões dão valor
ao trabalho que nelas se desenvolve, mas, reciprocamente, a chegada de novos objetos e
normas também cria valor nas regiões; Produz-se então uma hierarquia entre as regiões do
país. Essa história paralela das coisas e das ações denota o modo como o território é usado
pela sociedade, e sua análise revelar-nos-ia as respectivas formas de inclusão das pessoas e
das regiões. O que não é incluído nessa repartição do trabalho privilegiada pela política de um
país perde valor e, assim, se empobrece.
Como o trabalho considerado moderno muda sua natureza e sua localização, as feições
e extensões da modernidade e da pobreza variam no tempo. Incapazes de acompanhar o passo
do processo de modernização material e organizacional, certas pessoas e regiões são excluídas
das benesses da modernização, sem todavia deixarem de ser resultado dela. Assim, a cada
momento certas formas de trabalho são valorizadas e outras não, certas regiões passam a
abrigar o trabalho que se valoriza e outras o perdem. Essa perda de valor é uma das causas
centrais da pobreza e, como esta adquire conteúdos diferentes segundo os contextos regionais,
falamos, conjuntamente, de desigualdades regionais.
1 Santos, Milton. A natureza do espaço: iécnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
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Apesar de ser vista, amiúde, como um resultado indesejado do processo modernizador,
a pobreza é, tantas vezes, considerada inelutável. Mas ela o é apenas quando estamos diante
de uma ação política que, explícita ou sub-repticiamente, valoriza a velocidade, a fluidez e a
competitividade do trabalho. Ao contrário, a construção de um pro-jeto coletivo de sociedade
aconselharia reconhecer a pobreza menos como um resultado indesejado e mais como uma
dívida social resultante de um processo produtor de formas de exclusão.
DOS T E M P O S VAGAROSOS DA N A T U R E Z A
AO BR A S I L AR Q U I P É L A G O
Uma das características marcantes do território brasileiro é sua grande extensão. Trata-
se de um território com uma enorme variedade de sistemas naturais sobre os quais a história
foi se fazendo de um modo também diferenciado. A conquista desse meio natural por formas
de trabalho modernas, frequentemente conhecida como ciclos da economia, mostra a escolha,
em cada momento, das áreas mais aptas para a implantação das novas atividades. A ocupação
do litoral é sucedida pela dinâmica das frentes pioneiras, que vagarosamente interiorizam a
exploração européia do território.2
Durante três longos séculos o uso da técnica na ocupação foi bastante limitado e, assim,
as condições naturais eram as respostas a uma ação humana tanto local quanto forânea. No
desafio às condições naturais e no enfrentamento das distâncias, o corpo do homem era o
principal instrumento. Criavam-se, em virtude do tipo de produção, áreas de densidade ou de
rarefação. Homens, plantas e animais de três continentes, sob o império dos europeus,
encontraram-se em pontos privilegiados da terra brasileira e, no seu convívio, tornado
obrigatório pelo trabalho, criaram uma nova geografia nesta porção dg planeta.
A ocupação primeira do território dá-se com a cultura da cana-de-açúcar, em seguida
do fumo e de produtos alimentícios e depois do algodão nos agrestes nordestinos. A cultura
da cana-de-açúcar, baseada no desmatamento da floresta, permite a criação das primeiras
plan-tations e a floração de uma série de pequenos centros no Recôncavo da Bahia e na Zona
da Mata. As localidades estavam separadas por distâncias que se cumpriam em um dia de
marcha e que presidiam o comércio e o abastecimento das áreas produtoras. Segundo suas
exigências no processo de produção, os diversos produtos conduziram a uma certa
organização do território, vinculada a uma organização do calendário agrícola, à demanda de
mão-de-obra e às necessidades de transformação. Ê o caso da cana-de-açúcar que precisava
2 Andrade, Manuel C. de. A questão do território no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1995.
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ser rapidamente levada aos engenhos, o beneficiamento do fumo se dava nas aglomerações e
assim por diante. Dessa forma, a natureza do produto conduzia a uma determinada
organização do território, sobretudo quando se tratava de um produto de exportação.3
Desde a instalação do Governo Geral em Salvador, em 1549, até a Independência, em
1822, não se criaram fluxos verdadeiramente nacionais no domínio da economia. A máquina
de Estado servia para preservar e ampliar as fronteiras, manter o regime e a ordem, assegurar
a coleta de impostos e, com a ajuda da Igreja, unificar a língua. A unidade política e
linguística era contemporânea da vinculação quase direta entre as diversas regiões e o
mercado externo. A falta de intermediários produziu uma evolução espacial e econômica
caracterizada por "ilhas" de produção. Daí a imagem de um vasto arquipélago, formado, na
verdade, por um conjunto de "penínsulas" da Europa.
A interiorização do povoamento foi devida à mineração e à criação de gado nas
fazendas. A pecuária era dispersa pelo território dos sertões, enquanto a exploração dos
diamantes e do ouro foi responsável pelo surgimento de inúmeros núcleos de vida urbana no
interior dos estados de Minas Gerais, Bahia, Goiás e Mato Grosso. Despontavam nos albores
da interiorização os sertões do Nordeste, que abasteciam as zonas de agricultura comercial do
litoral e as zonas de mineração, e os campos do Sul, que serviam à produção de couro e
charque.4
Durante séculos, o território brasileiro, sobretudo algumas áreas do Nordeste, conheceu
uma produção fundada muito mais no trabalho direto e concreto do homem do que na
incorporação de grandes sistemas de infra-estrutura à natureza. A pobreza estava ligada
sobretudo à seleção que a natureza fazia das produções e das formas de buscar domesticá-la.
Coincidindo com as condições dos meios naturais 'ou com as sazonalidades da incipiente
produção, a pobreza não significava verdadeiramente uma exclusão social.
A MECANIZAÇÃO DA P R O D U Ç Ã O E DO T E R R I T Ó R I O
Novas geografias desenham-se sobretudo a partir da utilização de novos recursos,
prolongamentos não apenas do corpo do homem, mas do próprio território. Emerge o espaço
mecanizado. São as lógicas e os tempos humanos impondo-se à natureza com a emergência
de sucessivos meios técnicos, todos incompletamente realizados, todos incompletamente
difundidos.
A partir da segunda metade do século XIX mecaniza-se a produção mediante a 3 Furtado, Celso. Formação econômica do Brasil. 2
a ed. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959.
4 Prado Jr., Caio. História econômica do Brasil. 23
a ed. São Paulo: Brasiliense, 1980 [1945].
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instalação de usinas açucareiras e, mais tarde, o território com a navegação a vapor e as
estradas de ferro. Às técnicas da máquina circunscritas à produção sucedem as técnicas da
máquina incluídas no território. Criam-se interdependências entre os navios, os portos, as
ferrovias, as primeiras estradas de rodagem e as usinas de eletricidade, que permitiram a
constituição dos primeiros sistemas de infra-estruturas, verdadeiros sistemas de engenharia no
território brasileiro. Todavia, em enormes pedaços do território reinava o meio natural,
impondo, como na Amazônia, significativos estorvos à exploração e à posse dos europeus.
Baseados em grande parte no investimento público, a produção e o comércio da
borracha permitiram o crescimento de Belém e de Manaus, assim como São Paulo e Santos
devem ao café o seu desenvolvimento. Na Bahia, sob o comando do porto de Ilhéus, o cacau
ajudou a criar uma rede de cidades. Foram instaladas as primeiras indústrias brasileiras, que
não eram necessariamente urbanas. Algumas dependiam da proximidade das matérias-primas
— como o algodão, cultivado em áreas da Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão —
ou de fontes de energia diretamente utilizáveis, que se encontravam fora das cidades.
Mas, a partir de um certo desenvolvimento técnico que permitiu o deslocamento de
materiais e fluidos, a localização da produção industrial tornou-se menos dependente da
presença contígua de matérias-primas e de fontes de energia e mais vinculada à oferta de
mão-de-obra e de mercados. Das 636 fábricas existentes no Brasil em 1890, que empregavam
54.169 operários, as mais numerosas e importantes estavam no Rio de Janeiro.
O crescimento das cidades foi, entretanto, desigual, em virtude das oscilações das
economias regionais ou de seu papel político.' Dominando uma vasta extensão do território,
cada cidade desenhava verdadeiros circuitos interiores. O motor fundamental dessa vida de
relações era o comércio, principalmente orientado para o estrangeiro. Mas, as regiões
organizavam-se com os meios muito limitados de que dispunham as cidades e suas relações
com o exterior eram hierárquicas. A inexistência de transportes interiores rápidos era
responsável por um isolamento, quebrado apenas pelos transportes marítimos. Mesmo na
primeira fase dos transportes mecânicos, com a criação das vias férreas, não mudou muito a
situação, pois a vinculação circunscrevia-se às zonas de produção e aos portos. Não havia
uma integração.
O aparelhamento dos portos, a construção de estradas de ferro e as novas formas de
participação do país na fase industrial do modo de produção capitalista permitiram às cidades
beneficiárias aumentar, pouco a pouco, seu comando sobre o espaço regional, enquanto a
navegação, muito mais importante para o exterior, apenas ensejava um mínimo de contatos
entre as diversas capitais regionais, mas também entre os portos de importância.
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Consolidavam-se as áreas de monocultura de exportação e, paralelamente, o processo de
urbanização aumentava as demandas de eletricidade.
A introdução da estrada de ferro vai permitir um uso mais dinâmico do território.
Criam-se duas lógicas. A exceção da área hoje nucleada por Rio de Janeiro e São Paulo, a
estrada de ferro reforça os laços privilegiados entre as metrópoles regionais e suas respectivas
hinterlândias, mas sem estabelecer entre tais metrópoles relações outras que não as permitidas
pela navegação marítima. Todavia, no Sudeste criam-se, de um lado, uma rede localizada de
ferrovias e, de outro, um intercâmbio baseado nas formas modernas de dividir territorialmente
o trabalho.
A expansão do sistema de circulação e das áreas de produção agrícola para exportação
reforçou o crescimento do emprego, sobretudo nas áreas próximas ao litoral. A pobreza, cuja
face era sobretudo rural, vinculava-se mormente a uma estrutura de propriedade injusta. Eram
situações locais, cujas soluções também eram locais por meio da política assistencialista do
Estado ou, por vezes, pela ação social e pontual de uma empresa. Tais soluções não estavam
ainda permeadas pela lógica do capital financeiro ou de instâncias internacionais. Era uma
"pobreza incluída".5 Embora a riqueza gerada nesse país-conti-nente não conhecesse formas
satisfatórias de distribuição, a inclusão social, a partir do crescimento do emprego, permitia
uma evolução menos brutal das desigualdades.
DA MECANIZAÇÃO DA CIRCULAÇÃO AO ALVORECER DA INDUSTRIALIZAÇÃO
Como a economia era fundada em técnicas menos intensivas, o aumento dos volumes
produzidos significava, frequentemente, a criação de empregos. Ao mesmo tempo, a
industrialização nascente se fez numa fase em que os progressos técnicos eram menos rápidos
e as escalas de produção menos estendidas, de sorte que o tempo de vida de uma fábrica era
maior, e a cada necessidade de aumentar a produção uma outra fábrica era agregada. A massa
salarial, fabril e rural, contribuía para o nascimento de outras fábricas. Paralelamente, uma
certa ociosidade da estrutura de transporte, já que os trens vinham carregados de café para
São Paulo e o litoral e voltavam vazios, permitiu uma diversificação produtiva. Esses fatos,
somados à expansão da capacidade de consumo de uma população que se urbanizava, permi-
tiram um maior desenvolvimento industrial.
A imigração beneficiou as regiões para onde se dirigia, já que os grupos de imigrantes
eram portadores de uma tecnologia industrial e constituíam uma mão-de-obra qualificada,
5 Santos, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro:
Record, 2000.
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desejosa de reproduzir no Brasil um modelo de consumo que haviam conhecido ou. almejado
obter nos seus países de origem. Nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná
a política oficial de imigração e colonização determinou a forma de povoamento e de
trabalho. São Paulo foi, certamente, o grande beneficiário desse movimento migratório.
A população brasileira aumentou continuamente no decorrer desses anos. A luta contra
a morte, conjuntamente com o combate menos eficaz contra o analfabetismo, resultou num
enorme aumento dos efetivos demográficos. Desde o início do século XX até a segunda
década, a população passou de 17,4 milhões para 30,6 milhões. O aumento populacional teve
como consequência não somente um aumento das densidades demográficas em cada região,
mas também a sua redistribuição. Se as populações do Nordeste, do Sudeste e do Sul
dobraram nesses vinte anos, o aumento foi ainda mais significativo na Amazônia. Essa
redistribuição manifestou-se por um novo equilíbrio demográfico regional e um abandono do
campo, com o aumento do número das cidades e de sua população. Em 1940, cerca de um
terço da população brasileira era urbana. Uma grande parte dos brasileiros do Norte e do
Nordeste abandonou essas regiões e dirigiu-se para as cidades do Sul. No final do século XIX
ambas regiões representavam mais de um terço da população nacional e em 1960 cor-
respondiam a um quarto, ainda que seus índices de natalidade fossem os mais altos do país.
Um aumento de 2,2 vezes na matrícula do ensino fundamental entre 1940 e 1960
revelou-se importante mas não suficiente, ainda que se verificasse uma expansão nas
diferentes regiões do país. Embora evidenciando uma velocidade de crescimento análoga, o
ensino médio mostrava um número de alunos consideravelmente mais baixo. As instituições
de ensino superior, que eram 28 em 1908, aumentaram para cinquenta em 1912 e para 248
em 1935. O Sudeste, o Nordeste e, mais tarde, o Sul foram as regiões que apresentaram o
maior número de instituições, tanto públicas como particulares. Paralelamente verifica-se
uma explosão no número de matrículas. O principal centro universitário nas primeiras
décadas do século era o Rio de Janeiro, que reunia cerca da metade dos alunos do país.
Alguns anos mais tarde, São Paulo despontou como um centro educacional importante,
sobretudo quando se generalizou uma demanda de cultura industrial orientada à
transformação material do território.
É o primeiro momento de um longo processo de integração nacional, que se
acompanha do início da hegemonia de São Paulo, com o crescimento industrial do país e a
formação de um esboço de mercado territorial no Centro-Sul.
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A INTEGRAÇÃO DO MERCADO E DO T E R R I T Ó R I O
A Segunda Guerra Mundial havia revelado as carências do sistema de transportes e a
necessidade de um planejamento nacional que se preocupasse com os sistemas de infra-
estruturas. Um sólido processo de industrialização pôs-se em marcha, e a cidade de São Paulo
tornou-se a grande metrópole fabril. Nessa cidade estavam presentes todos os tipos de
indústrias e, convocado a acompanhar esse despertar industrial, o país inteiro conheceu uma
quantidade de solicitações e foi impregnado pela necessidade de completar a integração
nacional. Juntou-se à rede de ferrovias um sistema de estradas de rodagem que permitiu, pela
primeira vez, comunicar as diversas regiões do país entre si.
As necessidades de alimentos e matérias-primas para uma metrópole que aumentava
sua população e suas indústrias e, de certo modo, seu nível de vida demandavam novos
patamares de circulação. Os intercâmbios foram favorecidos pela nova base material e por
políticas específicas e, assim, o mercado se unificava ao ritmo da integração do território. O
Brasil-arquipélago cedia lugar a um território mais fluido.
Em 1950, registravam-se mais de 70 mil estabelecimentos industriais e cerca de 1,3
milhão de pessoas ocupadas. Era uma época em que as micro e pequenas empresas
representavam 96,7% dos estabelecimentos e eram responsáveis por 42,3% dos empregos no
setor. Com 3 milhões de habitantes, São Paulo concentrava mais de um terço dos
estabelecimentos industriais e do emprego industrial do país, o que evidencia também o
crescimento da região do ABC.
É num Brasil integrado pelos transportes e comunicaçõese pelas necessidades
advindas da industrialização e da criação de um mercado interno que nascem importantes
cidades no interior. Estas decor-rem do crescimento populacional, da elevação dos níveis de
vida, da expansão do consumo e da demanda de serviços em número e fre-qúência maiores
que anteriormente.
O transporte rodoviário de mercadorias reorganiza as relações entre os centros
regionais e a metrópole econômica do país. Sem dúvida, o traçado das estradas obedecia às
novas exigências da indústria e do comércio, que acabaram por reforçar a posição de São
Paulo como centro produtor e, ao mesmo tempo, centro de distribuição primária. A criação de
uma indústria automobilística e a construção de Brasília j também confluíram para favorecer
São Paulo e ampliar, quantitativa e qualitativamente, as diferenças regionais.6
As antigas metrópoles costeiras foram, desse modo, tornando-se relativamente menos
6 Fernandes, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 3a ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981 [1974].
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polarizadoras das respectivas populações regio-nais. Como mencionamos, entre outras razões,
os novos sistemas de transporte induziam os deslocamentos para São Paulo e Rio de Janeiro,
e aquelas antigas metrópoles litorâneas tornaram-se incapazes de fornecer os novos bens e
serviços às suas tradicionais áreas de ínfluência. Por essa razão, os núcleos urbanos mais
recentemente criados ou desenvolvidos ligavam-se diretamente a São Paulo, para obter as
respostas econômicas e técnicas de que necessitavam.
Pouco a pouco, Brasília vai retirando do Rio de Janeiro a centralidade do poder, isto é,
das ordens de natureza pública com as quais o território deveria ser regulado. São Paulo, por
sua vez, vai subtraindo ao Rio de Janeiro o comando da economia, atribuindo-se, por meio de
uma indústria capaz de abastecer e equipar um Brasil relativamente unificado pelos
transportes, a produção das ordens econômicas e da regulação económica do território. O
desequilíbrio entre a estrutura industrial do Rio e a de São Paulo consolida-se realmente
quando a indústria paulista conhece uma diversificação e a do Rio de Janeiro deixa de seguir
esse caminho. A formação de capital na região de São Paulo é um dos fatores dessa
diversificação. Brasília tende rapidamente a se instalar como metrópole política e São Paulo
afirma-se ainda mais como metrópole econômica, enquanto ambas essas funções vão
minguando na antiga capital imperial e republicana, Rio de Janeiro.
Estabelecem-se relações entre a metrópole económica e as áreas agrícolas tecnificadas
e dinâmicas bem mais significativas do que com o resto do país, constituindo uma
especificidade da nova divisão territorial do trabalho. Abandonadas por essa repartição do
trabalho, gran-des camadas da população urbana do Nordeste e do Norte conheceram, agora,
o fenômeno da pobreza.
Essa urbanização recente foi acompanhada de um crescimento da demanda
educacional. A matrícula no ensino fundamental mais que triplicou entre 1960 e 1980 e
resulta significativa em todas as regiões. Todavia, surpreende a situação do ensino médio que,
ao longo dessas duas décadas, cresceu cerca de sete vezes, apesar de estar muito aquém de
uma universalização. Tal retrato completa-se com uma nova explosão da matrícula
universitária entre 1960 e 1970, quando aumentou em cerca de 3,6 vezes. Cursos e
instituições, sobretudo particulares, colonizam as diversas regiões do país.
Criavam-se então as condições de formação do que hoje é a região polarizada do país.
Foi um momento preliminar da integração territorial, marcado por uma integração regional do
Sudeste e do Sul. Mas, de certo modo, permaneciam muitas das velhas estruturas sociais. Em
1960, cerca de 33 mil proprietários possuíam quase a metade da superfície das propriedades
agrícolas brasileiras, enquanto 3,3 milhões dispunham apenas da outra metade. Tal estrutura
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da propriedade favorecia, ao mesmo tempo, a persistência da pobreza e o abandono do
campo. Os excedentes de população, cada ano mais numerosos, encontraram um refúgio nas
cidades. Isso explica um crescimento urbano superior a 10% anuais em vários centros
regionais e de 6% nas grandes metrópoles, enquanto o número de empregados e subempre-
gados aumentava num ritmo ainda maior.
O deslocamento desses milhares de indivíduos para as cidades respondia quase sempre
a uma busca por melhores condições de vida.
Os novos meios de comunicação foram em grande parte responsáveis por essa
revolução. Intensificaram-se as migrações para o estado de São Paulo. Bahia, Minas Gerais e
Pernambuco eram os principais estados de origem dos contingentes. Esse período criou as
condições para a reativação do processo de enfraquecimento de todas as periferias, enquanto
o país parecia refluir para o seu centro: capitais privados, investimentos públicos, população,
crescimento e pobreza. A pobreza despontava como uma das principais causas das migrações
desses contingentes, que amiúde encontravam uma pobreza de nova qualidade nos seus
lugares de destino.
OS P R I M Ó R D I O S DA G L O B A L I Z A Ç Ã O NO B R A S I L
A revolução dos transportes ocorrida nas décadas de 1950 e 1960 segue-sé", nos anos
1970, uma revolução das telecomunicações, com as perspectivas abertas pela revolução
científico-técnica e a incorporação dos satélites brasileiros.7 A ideologia de racionalidade e
modernização a qualquer preço ultrapassa o domínio industrial, impõe-se ao setor público e
invade áreas até então não tocadas ou alcançadas só indiretamente, como, por exemplo, a
manipulação da mídia, a organi-zacão e o conteúdo do ensino em todos os seus graus, a
profissionalização e as relações de trabalho.
As transformações das bases materiais e sociais do território brasileiro, graças aos
acréscimos de ciência e de técnica, significam, também, a exigência de novas qualificações
profissionais. O aumento de mais de 220% na matrícula universitária entre 1970 e 1980 é
talvez a melhor evidência da necessidade e do desejo de apropriar-se de uma sofisticada
cultura técnica e organizacional. Como a proporção de instituições particulares aumentou
ao longo desses anos, estaríamos autorizados a falar, ao mesmo tempo, de uma difusão geo-
oráfica do ensino superior e de uma difusão social, agora reguladas pelas leis do mercado.
Agravam-se o atraso e as disparidades sociais sobretudo a partir da imposição de um
7 Dias, Leila Christina. "Les enjeux socio-spatiaux du développement des réseaux de télécommunications au
Brésil". Document de Recherche du Credal, nº 204, 1989, pp. 28-41.
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modelo de consumo norte-americano que significa, ao mesmo tempo, um modelo de
produção, tornando mais pobre a nação, pois mesmo que os valores absolutos da renda
pudessem aumentar, crescia o desamparo social produzido pelo poder público e pela
dependência tecnológica, organizacional e financeira.
Tal promessa de consumo, encarnada na publicidade e no crédito, espalha-se na
sociedade e no território, de modo que os pobres já não podiam ser definidos como os
excluídos de tal consumo, nem o fato de consumir era prova de inclusão social. Considerada o
oferta infinita de bens e serviços e a criação científica e permanente de necessidades, a
pobreza torna-se relativa e quantificável, enquanto a carência dos mais elementares bens e
serviços ganha, agora, indicadores e participa de complexas equações. Pobreza e miséria
passam a ser alvo de programas específicos ou da aplicação de ações isoladas inspiradas nos
países que usufruíam das condições do Estado de bem-estar ou mesmo dos países socialistas.8
De alguma forma é o momento da aplicação de políticas desenvolvimentistas, precedidas por
discursos que denunciavam uma drenagem de regiões pobres para regiões mais ricas.
Testemunha precoce desse debate político, a Superintendência de Desenvolvimento do
Nordeste (Sudene) havia sido criada já no fim dos anos 1950.
O dinamismo econômico da área Sudeste-Sul e o esvaziamento demográfico e
económico das áreas periféricas perduraram até o final da década de 1970. A diminuição da
atividade econômica que afetava o país como um todo parecia, então, uma ameaça à
continuidade do modelo. Para mantê-lo, era indispensável retomar a atividade, ao preço de
mais investimentos públicos e mais injeção de recursos para promover a exportação, mais
proteção ao grande capital e menor retribuição ao trabalho,9 ao preço de uma política social
ainda menos generosa e, necessariamente, de uma ordem ainda maior no campo político-
social.
A prédica do crescimento foi razão política suficiente para a realização de grandes
projetos, viabilizados por volumosos empréstimos.
Em decorrência, o endividamento tornou-se — e é até hoje — uma forma onipresente
de distorção da economia e do território, pois todos os demais desejos e realidades deverão
subordinar-se à dívida, que passa a ser o eixo da vida nacional.
Uma nova divisão territorial do trabalho esboça-se no Brasil a partir da necessidade de
transformar minérios e produzir derivados do petróleo. É o momento de implantação de
8 Santos, Milton. Por uma outra globalização, op. cit.
9 Mamigonian, Armen. "Teorias sobre a industrialização". São Paulo: Laboratório de Geografia Política e
Planejamento Territorial e Ambiental, Departamento de Geografia da USP, 1992. (Seleção de Textos nº 4).
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complexos e pólos indus-triais ligados à petroquímica na Bahia, à siderurgia no Maranhão, ao
minério de ferro em Carajás, aos derivados do cloro em Alagoas e à eletrometalurgia em
Tucuruí. Paralelamente, havia a necessidade de substituir o petróleo em alguns setores da
circulação. Daí a institucionalização, em 1975, do Programa Nacional do Álcool (Proálcool),
que, com o ingresso maciço da cultura de cana-de-açúcar, muda a geogra-fia do interior
paulista.
Os anos 1970 foram, assim, um marco na modernização da agri-cultura, no
desenvolvimento do capitalismo agrário, na expansão das fronteiras agrícolas e na
intensificação dos movimentos dos trabalhadores volantes — os bóias-frias. Novos conflitos
no campo não se fizeram esperar.
Estados como Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais e Bahia
apresentam altas taxas de emigração líquida entre 1950 e 1980. Áreas que haviam sido
atrativas em outros momentos transformaram-se, nos anos 1970, em expulsoras de uma
população cujo destino eram as metrópoles ou as novas frentes pioneiras, como a Amazônia.
Uma produção industrial extrovertida, um maior endividamento, um aumento do
número e do poder das firmas estrangeiras, para as quais tudo era facilitado, uma ampliação
das facilidades de circulação dentro do país e para os canais de exportação se conjugaram
com uma tendência à concentração e à centralização da economia, assim como à concentração
geográfica e à concentração da renda.
Aumentam os intercâmbios, e em decorrência cresce e se diversifica o setor terciário
da economia, pois há maior necessidade de organização, de serviços públicos e privados, de
transportes e de bancos. Gesta-se, a um só tempo, uma grande especialização territorial, com
a tendência à concentração da produção de bens e serviços mais sofisticados em alguns
pontos do Sudeste e do Sul: Apesar da industrialização, as características do
subdesenvolvimento permanecem e muitas vezes se agravam com o crescimento econômico.
Malgrado o aumento do Produto Nacional Bruto e mesmo dg Produto , Nacional Per Capita,
acirram-se as disparidades regionais, as desigualdades da renda e o empobrecimento daqueles
que já eram pobres.
Como a expansão da indústria dinâmica é acompanhada pela redução absoluta ou
relativa do poder aquisitivo das massas, a economia vê-se forçada a procurar mercados
externos ou a reduzir seu próprio crescimento. Os investimentos dirigem-se aos setores em
que há possibilidade de exportação, isto é, à produção de bens para os quais existem
compradores estrangeiros potenciais. Essa orientação exige uma constante modernização do
equipamento industrial para poder concorrer internacionalmente, que agrava a dependência
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em relação aos centros mais avançados do sistema mundial. Por outro lado, a necessidade de
importação exige uma política de exportação agressiva.
Buscando o crescimento promove-se a produção de bens de capital, para os quais não
existe mercado interno. O Estado é então compelido a adotar uma política de grande potência,
favorecendo as maiores empresas, sem consideração pelas massas, cada vez mais
empobrecidas.
O extraordinário crescimento do capital fixo, revelado pelo aumento do tamanho das
infra-estruturas, fundamenta-se em projetos de planejamento aparentemente isolados, mas
orientados a acelerar a modernização capitalista. As formas têm um poder que convida a
ações como a modernização da agricultura e, no meio urbano, a renovação do meio
construído com o forte papel do capital especulativo. O capital comanda o território e o
trabalho torna-se, ainda mais, subordinado.
As modernizações mais recentes desintegram a economia e a so-ciedade porque
produzem um desequilíbrio e não criam os empregos suficientes. Como se desintegram as
estruturas no campo, não há migração escalonada na rede urbana, e por isso as grandes
cidades con-tinuam a crescer. Todavia, é a grande cidade que, pela existência de um mercado
amplo e segmentado, abriga os pobres, nativos ou imigrantes, cujo trabalho, pouco
valorizado, lhes permite, todavia, a sobrevivência.
O PAÍS GLOBALIZADO: MODERNIZAÇÃO E
POBREZA
No período atual, os imperativos de um mercado tornado global passam I a comandar
os acréscimos de ciência e tecnologia que o território brasi- leiro já começara a incorporar
nos anos 1970. A informação substitui a indústria como variável motora. Não se trata de
menosprezar os dinâmi- cos processos industriais, mas de apontar a relevância de um
fenômeno novo: a produção de informação. Assim, enquanto aumentam as ativi- dades de
serviços a indústria continua a crescer em várias porções do Brasil, como no estado de São
Paulo, ainda que com menor velocidade.
A implantação do sistema básico de telecomunicações permitiu não apenas a
transmissão de dados, mas também a unificação do sistema de televisão. A instalação das
redes possibilitou a difusão da informação gerais do consumo, assim como a financeirização
do território. Mais tarde, a incorporação da fibra óptica nos sistemas técnicos nacionais, a
partir dos projetos de interligação do planeta, ampliou a participação do país na globalização
das telecomunicações.
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O território ganha novos conteúdos e impõe novos comportamentos, em virtude das
enormes possibilidades da produção e, sobretudo, da circulação de insumos, produtos e
dinheiro, de idéias e informações, das ordens e dos homens. E a constituição de um espaço
moderno, reticular e fluído. Essa premente necessidade de criar condições para uma maior
circulação justifica a ênfase dada na política atual à criação e ao aprimoramento de sistemas
de infra-estrutura que facilitem o movimento.
Tal unificação técnica ou material do território se perfaz com a unificação do
mercado. A força difusora do consumo que, no período atual, ganha uma velocidade antes
nunca vista, acompanha-se do comportamento territorial das grandes empresas. As firmas
mais poderosas escolhem os pontos que consideram instrumentais para sua existência
produtiva e deixam o resto do território às empresas menos poderosas. É uma modalidade de
exercício do seu poder.
Os dados próprios do período tanto alcançam áreas agrícolas como industriais e de
serviços, que se caracterizam pela sua inserção numa cadeia produtiva global, pelo
predomínio de relações distantes e, frequentemente estrangeiras, e pela sua lógica
extrovertida. O país é cortado por estradas de rodagem que servem mais aos interesses
nacionais e internacionais do que aos regionais e locais. A pavimentação dos principais eixos
rodoviários e a construção de rodovias para os países vizinhos orientam-se a desenvolver
uma maior integração comercial.
Ainda que o peso dos empréstimos e créditos de organismos financeiros
internacionais nessa modernização do país seja marcante, não podemos deixar de assinalar
que o próprio Estado brasileiro investe pesadamente para dotar certas regiões das condições
de circulação indispensáveis ao comércio externo. Aquelas regiões orientadas a produzir para
a exportação e para um comércio distante têm prioridade nesse equipamento, de modo que se
criam no território áreas com maior densidade viária e infoviária a serviço de um dos
aspectos da economia nacional. Essas densidades não têm, pois, relação direta com o
tamanho e a densidade da população, nem com a antiguidade do povoamento, nem com as
urgências das sociedades locais, mas com certos nexos econômicos, sobretudo os da
economia internacional. Há, todavia, uma permanente insatisfação com o equipamento e com
os custos do seu uso, agravada por frequentes comparações com outros países, que alimenta a
produção de um discurso sobre a necessidade de modernizar o território nacional.
É uma divisão territorial nova e ampliada no Brasil, que permite, por um lado, ocupar
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áreas até então periféricas e, por outro, remodelar as áreas ocupadas.10
O consumo e o crédito
encontram as bases materiais para sua instalação em quase todo o território. Tornam-se, prati-
camente, ubíquos. Há uma unificação do território pelo mercado, pelos transportes e pela
informação. Num país de grandes disparidades regionais e de renda, o processo de criação de
fluidez é seletivo e não igualitário. A produção de fluidez se realiza não apenas com a
construção de equipamentos, mas também pela alocação de certas profissões e pela oferta de
certos empregos ligados à economia moderna, levando desse modo à desvalorização do resto
das formas de trabalho.
Superpõe-se ao velho tecido um novo tecido de urbanização. O nu-mero de grandes
cidades aumenta consideravelmente: as aglomerações com mais de 500 mil habitantes, que
eram quinze em 1980, passaram a 28 em 1996 e a 31 em 2000. Quanto às cidades com mais
de um mi- lhão de habitantes, que somavam dez em 1980, passaram a quinze em 2000.
Crescem as metrópoles e, ainda mais, as grandes cidades médias.
Nessas condições, novas fontes de riqueza e novas razões de pobreza se estabelecem
nas grandes cidades. Ao mesmo tempo que os salários dos trabalhadores industriais tendem a
baixar, verifica-se, ainda que com menor ímpeto, uma imigração de gente pobre proveniente
de áreas rurais modernas e tradicionais e de outras áreas urbanas.
Os processos de valorização da terra por consolidação de frentes pioneiras certamente
tiveram um papel detonador em vários movimentos migratórios do país, como é o caso do
Norte do Paraná ou, mesmo, do Mato Grosso. Por outra parte, o fenômeno de migração
circular já se havia esboçado alguns anos antes. Lembremos que, em 1980, 11,5 milhões de
famílias não dispunham de terra ou já não sobreviviam em pequenas propriedades. Isso
significa que um terço da população, cerca de 40 milhões de pessoas, estava em permanente
migração, tentando fixar-se no campo mas frequentemente não o conseguindo. E um novo
patamar do êxodo rural, devido à combinação explosiva de uma estrutura fundiária arcaica
em zonas agrícolas tradicionais e da modernização capitalista do campo em zonas dinâmicas
e em áreas de colonização agrícola e de ocupação recente.
Não podemos esquecer que na segunda metade da década de 1990 havia mais de 16
milhões de hectares produtivos não utilizados no Brasil — o equivalente ao total de terras de
Tocantins. Havia no país cerca de 332 milhões de hectares distribuídos em 3,6 milhões de
estabelecimentos, ao passo que cerca de 220 milhões de hectares estavam repartidos entre 1,3
milhão de estabelecimentos trabalhados por arrendatários, parceiros e ocupantes, o que
10
Santos, Milton e Silveira, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de
Janeiro: Record, 2001.
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configurava uma estrutura fundiária apta a expulsar a população rural. Expulsos das áreas
rurais modernas e tradicionais ou de outras cidades, os pobres encontram nas metrópoles
algum tipo de ocupação, mesmo que não constitua propriamente emprego. A variedade de
capitais existente na grande cidade assegura a possibilidade de uma extrema variedade do
trabalho. Entretanto, nas metrópoles ou em outras cidades a presença de pobres e a
correspondente depressão dó mercado de trabalho e dos salários projetam-se no
empobrecimento das respectivas municipalidades. Esse problema, aliás, é agravado com o
crescente desmantelamento do Estado de bem-estar, o que contribui para um empo-
brecimento ainda maior da população. Paralelamente, a implantação da modernidade na
metrópole representa um peso sobre os outros aspectos da vida local, mediante custos
públicos e privados, custos federais, estaduais e municipais. Tais adaptações ao moderno
representam lógicas distantes, que incidem sobre subáreas privilegiadas do organismo
urbano, mas cujo custo é verdadeiramente social. Toda a cidade sofre os resultados desse
processo aumentando os graus de pobreza.
Representando cerca da metade da população desse Brasil de contrastes, a população
economicamente ativa tem aumentado nos setores secundário e terciário. Verifica-se nas
últimas décadas uma verdadeira explosão do setor terciário, sobretudo na região Sudeste e no
estado de São Paulo. Nas regiões metropolitanas, boa parte da população está ocupada em
atividades de serviços, mas o comércio, que não pára de crescer, é também um importante
contratador de mão-de-obra. Observado com mais cuidado, esse fenômeno revela uma
economia pontual de comércios e serviços modernos coexistindo com uma enorme economia
pobre orientada ao comércio e aos serviços mais banais nessas grandes cidades.
A OPÇÃO POR MULTIPLICAR A POBREZA
Quando uma nação privilegia um tipo de produção que não ajuda a população a
subsistir e a se desenvolver, mas obriga à criação permanente de um excedente, ocasionando-
lhe um ônus excessivo, falamos: em produção desnecessária. Haveria também uma
circulação e um intercâmbio desnecessários, que têm um custo social, como as infra-
estruturas de investimento pesado e a respectiva mobilização de veícu-los e serviços que não
contribuem com o bem-estar geral da sociedade nem permitem sua ampliação, em virtude
dos custos que representam.
Quando a exportação é pregada como solução necessária, em vez de buscar a melhoria
das condições de vida dos mais pobres, ampliam-se a produção e a circulação desnecessárias
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e se aprofunda uma divisão do trabalho igualmente desnecessária. A globalização acelera
esse processo porque faz parte do seu credo a idéia de que sem exportar é
impossível modernizar-se e participar plenamente do mundo "civilizado". De fato, o que
resulta na prática é o triunfo de uma lógica econômica a despeito das distorções de ordem
social que possa causar. A decorrente divisão do trabalho passa a ser comandada sem preocu
pação com o interesse social.
Uma das consequências desse processo é a multiplicação e dis- semínação da pobreza
nas diversas camadas sociais das regiões brasi- leiras. Com a ampliação do poder do sistema
financeiro e de uma informação enviesada que reforça uma única interpretação da socíe-
dade, as políticas públicas, mais do que compensar esse jogo de forças, acabam por inclinar o
fiel da balança para o acirramento dessa situação. Subsídios e créditos do Tesouro para
auxiliar grandes corporações e bancos são, entre outras, formas legais de violência que, como
vemos cotidianamente, ampliam outras modalidades de violência, amiúde ilegais. A mídia,
frequentemente associada aos interesses hegemónicos, mostra isoladamente os fatos
emergentes de um processo mais complexo e invisível. Não se revelam os mecanismos
produtores de violência, mas suas manifestações visíveis. A ordem corporativa, criadora de
desordem para o poder público e para toda a sociedade, é dissimulada.
A morte anunciada do sistema previdenciário é mais um mecanismo de comando que
o sistema financeiro exerce sobre a política, reduzindo o debate nacional a uma complexa
contabilidade macroeconômica. Nesse processo, o papel da informação, produzida e
veiculada pela mídia hegemônica, não é menos importante. Forma-se assim a chamada
opinião pública, manifestação do pensamento único, que ampara as ações políticas orientadas
a erodir o embrionário Estado de bem-estar e a acelerar o empobrecimento das diversas
camadas sociais.
Se a massa da população economicamente ativa foi aumentando desde meados do
século XX até os dias de hoje, não se pode dizer o mesmo da evolução do número de
contribuintes para o Instituto da Previdência. Em 1981, metade de um total de 45,5 milhões
de trabalhadores contribuíam para a Previdência, e em 1995 essa proporção era de apenas
42,8%. Se o volume de trabalhadores cresceu em mais de 24 milhões nesses catorze anos, a
quantidade de contribuintes aumentou em apenas 7,1 milhões. Entre 1995 e 2002 o aumento
foi de pouco mais de 6 milhões de contribuintes. As consequências desse enfraquecimento
das estruturas fiscais são inúmeras, mas todas convergem para o empobrecimento da
população. A evolução negativa da base previdenciária é frequentemente apresentada, ainda
que isolada dos seus respectivos contextos explicativos, como uma das mais importantes
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razões da falência do Estado.
A regionalização torna-se mais uma vez necessária para a compreensão dos
fenômenos. Em 2002, pouco mais de 20 milhões de contribuintes viviam na região Sudeste,
6,7 milhões no Sul, 5,1 milhões no Nordeste, 2,5 milhões no Centro-Oeste e 1,3 milhão no
Norte. Num estado como Tocantins, apenas 20% dos trabalhadores contribuíam para a
Previdência, enquanto a situação era um pouco melhor no Pará e no Amazonas. O retrato dos
estados do Centro-Oeste não é muito diferente: em Goiás e Mato Grosso, cerca de 32% do
total de trabalhadores são contribuintes. De alguma maneira, as áreas que sediam a expansão
de atividades modernas, como a agricultura das novas frentes pioneiras, são manifestações de
um Estado menos preocupado na contenção social dos trabalhadores e mais prel ocupado na
produção de um território fluido. Novas relações traba-lhistas, mais despojadas dos freios
sociais a um processo de forte acu-mulação capitalista, asseguram o crescimento da
economia moderna.
A situação é um pouco diferente nas regiões Sul e Sudeste. Estados como Rio Grande
do Sul e Santa Catarina têm metade da massa de trabalhadores incluída no sistema
previdenciário, enquanto Rio de Janeiro e São Paulo registram porcentagens superiores a
62%| Não podemos esquecer, na análise dessa questão, o despontar de uma relação de nova
natureza que se difunde no Brasil nos anos noventa. E a previdência privada que, em 2002,
alcançava cerca de 2,1 milhões de contribuintes, dos quais mais da metade pertenciam à
região Sudeste. Se seu número representa pouco menos de 6% do total dos contribuintes da
previdência pública, a soma da sua poupança, agora subtraída do sistema público e universal,
não é todavia desprezível.
Um mapa semelhante ao da previdência pública é desenhado pela situação dos
trabalhadores com carteira assinada: 68% no Sul e 42% no Nordeste. No entanto, se as
médias nacionais indicavam cerca de 60% dos trabalhadores com carteira assinada no Brasil
ao longo da década de 1980 e início dos anos 1990, diminuíram para cerca de 37% na virada
do século. Consequentemente, o grau de sin-dicalização também diminuiu.
A precarização dos vínculos empregatícios e o aumento do de-semprego foram
acompanhados de um crescimento do número de tra-balhadores domésticos durante a década
de 1990. Em 1996 o emprego doméstico representava cerca de 10% da população
economicamente ativa do Brasil. Na região Norte a média subia para 11,3% e no Sul caía
para 8,3%. Já em 2002, acompanhando o empobrecimento rela-tivo das classes médias, que
provocou uma queda na procura, eram algo mais de 6 milhões de empregados domésticos,
cerca de 8% da população economicamente ativa do país.
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Durante a década de 1990 o desemprego aumentou em todo o país e, com oscilações,
superou os dois dígitos nas regiões metropolita- nas. Em São Paulo, atingia nos primeiros
meses de 2004 mais de 12% da população economicamente ativa, mas já atingira 20% nos
anos 1990. Recife e Salvador, que haviam alcançado porcentagens em torno de 30%,
registravam cerca de 15%. Mas também Belo Horizonte, Brasília e Porto Alegre registraram
taxas superiores a 10%.
Novas formas técnicas e organizacionais, como a informatização e a automação das
tarefas tanto nas atividades agropecuárias quanto na indústria e nos serviços, os novos modos
de circulação, os atuais tipos de contratação e as políticas trabalhistas levaram entre outros
aspectos, a uma precarização das relações de emprego e a um aumento do desemprego ao
longo dos últimos quinze anos. Por isso, a racionalidade dá ordem econômica atual revela-se
limitada, ainda mais nas grandes metrópoles, onde o número de pobres é importante. Do
norte ao sul desse Brasil urbano as maiores metrópoles do país têm suporta-' do taxas de
desemprego em torno de 20% da população economicamente ativa. Mas qual é a
racionalidade de uma economia urbana que despreza tamanha quantidade de trabalhadores?
O fato é que a cada dia há um menor número de atividades e empregos ligados a essa divisão
do trabalho hegemónica, e isso é mais visível nas grandes cidades.
Novas necessidades produtivas e novas formas de dividir social e territorialmente o
trabalho aumentam as necessidades de cooperação, criando novas profissões e rejeitando as
antigas, sobretudo a partir da revolução das telecomunicações, da informática e da
informação, da expansão do sistema bancário e da nova agricultura. Umas profissões cedem
lugar a outras, aptas a manipular os novos objetos técnicos, mas destinadas também a uma
vida efêmera. O resultado desse ato de império é que em alguns setores como o quaternário
aumenta o emprego, embora discretamente, ao passo que em outros, volumosos contingentes
são condenados ao desemprego.
Se a divisão social do trabalho que acompanha o mundo da informação e das finanças
multiplica as profissões, ao mesmo tempo diminui o número total de empregos. As formas
técnicas e de regulação contemporâneas satisfazem seu apetite com um número menor de
pessoas altamente qualificadas. O emprego tradicional da metrópole industrial esvai-se, de
um lado, ao ritmo das novas acelerações normativas como as formas de contratação
temporária e da terceirização, da interiorização da indústria, que é sinônimo de modernização
e de busca de novas densidades normativas, e, de outro, pelas novas ocupa-ções na produção,
e adaptação das informações externas ao mercado brasileiro, da criação de uma publicidade
que aprofunda os consumos, da produção codificada de formas de fazer e regular, como a
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miríade de instrumentos financeiros em vigor.
Esse movimento da sociedade contemporânea contribui também para concentrar a
renda. Em 1981 a classe mais rica (com renda de vinte salários mínimos ou mais)
representava 0,7% do total de pessoas com dez anos ou mais e concentrava 15,9% de Uma
renda nacional que beirava US$ 12 bilhões. Em 1997 esse grupo era composto por 1,8% da
população de mais de dez anos de idade (2.293.493) e deti- nha 26,4% do rendimento
nacional, que agora alcançava US$ 34,5 bilhões. Isso significa que em dezesseis anos essa
classe aumentou em mais de dez pontos percentuais a sua participação na distribuição da
renda nacional e conseguiu apropriar-se de um volume de riqueza (US$ 9,1 bilhões) a ser
comparado com o total nacional produzido em 1981(US$ 12 bilhões). Entre 1981 e 1997
aqueles cujos rendimentos superam os vinte salários mínimos ganham um aumento de renda
de US$ 7,2 bilhões, enquanto o respectivo contingente cresce em 1.627.585 pessoas.
Enquanto a classe mais rica aumenta 3,4 vezes em número de pessoas, seus rendimentos
multiplicaram-se por 4,8. Já as duas classes mais pobres, com renda entre meio e dois
salários mínimos aumentaram em 2,4 vezes o seu contingente, mas somente em 1,8 vez a
massa, de sua renda. Em 2002 essas classes pobres já representavam cerca de um terço da
população brasileira.
Nesse contexto, é visível o empobrecimento relativo de uma região como o Nordeste,
ao passo que se torna receptora de grandes investimentos libados a produções inseridas na
atual divisão internacional do trabalho.
Ao se considerar as classes de maior renda, é significativa a participação dos estados
das regiões Sudeste e Sul. Quanto à classe com rendimento superior a vinte salários mínimos,
cabiam à área metropolitana paulistana cerca de 22% do total nacional e 58% do total esta-
dual. Desse modo, mais de 40% das classes paulistas mais ricas moravam no interior do
estado, ligadas a uma agricultura cientificizada e a um processo de desconcentração de
indústrias modernas.
Em consequência, nos últimos anos aumenta o volume da renda e ao mesmo tempo
multiplica-se o número de excluídos no Brasil. Em outros termos, cresce a riqueza
socialmente gerada, com a produção de excedentes, mas piora sua distribuição social e
territorial. Em função de uma estrutura econômica e política concentrada, esse excedente é
legalmente transformado em lucro, isto é, ele é apropriado privadamente sem uma política
pública que permita, de fato, a ampliação do bem-estar social das maiorias. Na política atual,
as regiões mais pobres são alvo da implantação de grandes empreendimentos cujos lucros
tornam-se remessas para o estrangeiro ou para as classes hegemônicas nacionais, de modo
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que seu poder devastador sobre as formas de trabalho locais não é compensado por uma
reativação da economia regional.
É o paradoxo da nação brasileira.
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Todavia, o período atual caracteriza-se, entre outros complexos aspectos, pela
exacerbação da possibilidade de obter dinheiro adiantado. É por isso que coexistem uma
evolução decadente do emprego e do salário com um aumento relativo do consumo. Graças à
proliferação do crédito, que parece não abandonar nenhuma parcela da economia nem do
território, houve uma extraordinária expansão dos consumos materiais e imateriais,
produtivos e das famílias.
Ao contrário da produção, que é seletiva nas escolhas dos lugares, a finança se
interessa, direta ou indiretamente, pela totalidade do território vivente. E por isso que mesmo
aquelas atividades caracterizadas por baixo grau de capital fixo tecnológico, são chamadas a
aumentar seu capital de giro por meio do crédito, ainda mais quando muitos dos pequenos
empresários atuam como pessoa física. Quando o spread bancário para empréstimos às
empresas era de 25% ao ano, para as pessoas físicas gira em torno de 57%. A vulnerabilidade
aumenta com a utilização do cheque especial, do crediário e sobretudo do crédito pessoal,
pois os juros atingem valores extremamente altos (entre 505 160% ao ano). Como é
significativo o número de pessoas sem conta bancária ou incapazes de dispor das necessárias
garantias, o crédito pessoal concedido pelas instituições financeiras encontra um terreno
fértil. Formas de verticalização de uma economia popular que, no período da globalização,
conhecem graus superlativos.
Em 1999 havia 24 milhões de cartões de crédito no Brasil, nas mãos de pessoas que
recebiam mais de cinco salários mínimos. Dessa forma, amplas camadas da população abaixo
desse limiar e sem aces-so a cheques e cartões despontaram como um novo alvo para bancos,
financeiras e supermercados que decidiam fínanceirizar essas faixas da população. Criou-se
então o cartão de crédito popular, que funcio-na como um crédito pré-aprovado, é
proporcional à renda e pode ser usado numa rede comercial credenciada. Além de conseguir
clientes cativos, essas empresas lucram com os juros decorrentes do parcela-mento das
compras. Em 2003 o número total de cartões de crédito no Brasil havia aumentado para 47,5
milhões.
E uma verdadeira capilaridade das redes financeiras que resulta da coexistência de
filiais de grandes instituições, de todo tipo de agio- tas e da profusão de novos tipos de
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crédito oferecidos pelos bancos públicos e privados. A rentabilidade dos bancos, por
exemplo, passou de 10,6% em 1994 para 15,7% em 1998 e para 24,5% em 2002.
Nesse contexto, o consumo de eletrodomésticos e eletroeletrôni-cos ganha novas
dimensões. Objetos como fogão, geladeira, televisão e rádio chegam maciçamente aos lares a
partir da década de 1980, e mais recentemente se verifica uma expansão do telefone fixo e do
telefone celular. As novas condições de vida urbana se alastram no território brasileiro num
período relativamente curto. A exceção das áreas rurais modernizadas e povoadas por uma
classe média com poder de consumo, a precariedade de certas formas de vida rural parece
resistir tenazmente em certas ilhas do território.
Dentre os consumos imateriais, o ramo dos seguros também é objeto dessa formidável
ampliação. Com auxílio de uma publicidade que explora implicitamente as debilidades da
nova ordem social, criam-se medos e riscos diversificados que devem ser previstos de forma
crescentemente individualizada. O mercado de seguros, capitalização e previdência privada
cresceu cerca de duas vezes entre 1994 e 1998. Submetidos às lógicas do mercado, certos
bens e serviços, como a educação e saúde, também passam a fazer parte de uma vocação de
consumo que, graças à informação e aos transportes, se alastra na sociedade e no território.
Entre 1970 e 1980 foram criadas trezentas instituições do ensino superior, e a relação
de pessoas em idade universitária por aluno passa de 28,6 em 1970 para 12,2 em 1980. Após
o extraordinário crescimento de cerca de quinze vezes no número de alunos do ensino supe-
rior entre 1960 e 1980, há uma desaceleração no intervalo 1980-2002 (o aumento é de 2,5
vezes). Em 2002 havia cerca de 3,5 milhões de alunos, dos quais 70% (2,4 milhões)
estudavam em instituições particulares, e 1.637 instituições de ensino superior, das quais
88% eram particulares, o que significa que num período de dezessete anos (1985-2002)
praticamente dobrou o número de faculdades, com a criação de 778 novas instituições.
Uma "fronteira educacional" em expansão desenvolve-se nas regiões Centro-Oeste e
Sul. É nessas áreas novas que o setor privado participa da interiorização do ensino superior.
No Centro-Oeste, 90,9% das instituições são particulares. A presença do mercado privado de
ensino superior no Sudeste também é significativa. Em 2002, cerca de 77% dos ingressos por
vestibular correspondiam às instituições particulares. Apesar de sua extraordinária expansão,
o número de candidatos por vaga no sistema particular foi de 2,5 em 2002. Nesse ano havia
pouco mais de 280 mil vagas públicas, disputadas por 2,6 milhões de alunos, isto é, mais de
nove candidatos por vaga. Eis a extraordinária tensão social decorrente de um sistema
público engessado, que contribui para a produção de exclusão e pobreza.
Quanto à saúde, os estabelecimentos públicos com internação revelaram um ligeiro
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crescimento entre as décadas de 1980 e 1990, representando pouco menos de 30% do total
nacional. Já o crescimento do número de estabelecimentos de saúde com atendimento a pa-
cientes externos foi significativo. Em face da situação econômica e da desproteção social dos
trabalhadores e desempregados, o aumento do número de consultas em estabelecimentos
públicos foi explosivo. Em 1985 registraram-se 256,4 milhões de consultas públicas e 202,8
milhões de consultas particulares, números que em 1997 saltaram para 676 milhões e 388,9
milhões, respectivamente. Enquanto a demanda por serviços de saúde privados cresceu 1,9
vez, o setor público registrou um aumento de 2,6 vezes. Em 2001 realizaram-se mais de 420
milhões de consultas pelo Sistema Único de Saúde (sus), das quais 361 milhões foram
públicas.
A rede de saúde privada privilegia regiões como o Centro-Oeste e o Sul, mas a
presença dessa rede não se acompanha de um crescimento do acesso aos seguros de saúde e
convênios. Em 1995, apenas 10,7% da população brasileira (16,8 milhões de pessoas) tinha
acesso à medicina de grupo. Esse mercado se concentra nas regiões Sudeste e Sul, com cerca
de 90% (15,1 milhões de pessoas), e sobretudo no estado de São Paulo, com 58% do total
nacional dos beneficiários da medicina de grupo. Em 2002 havia no país 16,2 milhões de
beneficiários, isto é, 9,5% da população total.
O alargamento dos sistemas ligados à satisfação de necessidades universais tem sido,
no Brasil, sempre mais lento que o volume da demanda. Mas a questão é ainda mais
complexa, pois essa expansão é fortemente comandada por um verdadeiro processo de
privatização de vários aspectos da vida social. Como a distribuição da sociedade bra-, sileira
confunde-se com a amplitude do seu território, podemos dizer que a vida social constitui um
enorme mercado com densidades bastante diversas. Daí que as áreas de altas densidades
demográficas e altas rendas relativas, equipadas e dotadas de fluidez, configurem tesouros
disputados pelas empresas.
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Trata-se de um uso seletivo do território nacional, que pune as populações mais
pobres, mais isoladas, mais dispersas e mais distantes dos grandes centros e dos centros
produtivos. Enquanto o setor público pode se instalar nos lugares e esperar pela demanda, o
setor privado tende a alojar-se nas regiões onde a demanda já existe ou tem uma perspectiva
de desenvolver-se, sob a cadência de uma nova oferta. Por isso, o neoliberalismo conduz a
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uma maior seletividade na distribuição geográfica dos provedores de bens e de serviços,
levados pelo império da competitividade a buscar, sob pena de seu próprio enfraquecimento,
as localizações mais favoráveis. A concentração econômica agrava essa tendência.
Desse modo, a acumulação das atividades em certos pontos pode provocar maiores
dificuldades de acesso aos respectivos produtos, sejam eles bens ou serviços. É a situação da
educação privatizada, em que o efeito de escala leva a uma utilização mais eficiente das infra-
estruturas educacionais e da mão-de-obra docente, privilegiando-se assim aquelas áreas
concentradas nas quais os custos são mais baixos e o retorno é garantido. É o caso também da
saúde quando baseada na necessidade de lucro competitivo. E assim que a pobreza revela sua
face territorial.
Cada época produz as suas forças de concentração e de dispersão, que não podem ser
confundidas com as características dos momentos anteriores. Essas forças resultam da
utilização combinada de condições técnicas e condições políticas. Na época atual, o Estado
neoliberal, junto com a difusão do sistema técnico comandado pelas técnicas informacionais,
cria uma concentração e uma dispersão combinadas. De um lado, as atividades modernas
tendem a se dispersar em função das virtualidades oferecidas nos subespaços, distantes dos
centros estabelecidos, mais cobiçados pelas grandes empresas. Por outro lado há uma
concentração das decisões, mesmo que o comando técnico das operações produtivas possa ser
relativamente disperso. O fator de dispersão pede, por exemplo, a presença de novos
profissionais nas cidades médias das áreas mais desenvolvidas. E essas classes médias, ávidas
por consumir bens e serviços, revelam, sobretudo a partir das suas demandas sociais, a
ausência do poder público em aspectos centrais. São as novas fronteiras de um mercado
privado. Dessa maneira, essas camadas médias tornam-se, também, mais vulneráveis às crises
e à financeirização, podendo ser, a cada dia, mais pobres.
No mundo contemporâneo, as finanças internacionais, submetendo as moedas
nacionais, também representam um papel central. O comportamento do sistema financeiro
influencia a dinâmica econômica do país na medida em que alguns instrumentos financeiros
são privilegiados enquanto outros são negligenciados, arrastando as atividades
correspondentes e os lugares onde se situam. Por outro lado, os frenéticos processos de fusão
empresarial levam a uma redução do número de pólos decisórios, a uma maior concentração
dos vetores de comando e a uma maior rigidez nas relações entre as áreas polarizado
ras e as áreas polarizadas.
Nesse território adaptado a uma produção e uma circulação modernas, o crescimento
não beneficia a sociedade e o território como um todo. Parcelas crescentes da população são
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excluídas na formulação desses projetos e, por isso, estamos diante de uma pobreza estrutural.
É, no dizer de Milton Santos, uma "produção científica, globalizada e voluntária da
pobreza".11
Hoje, o emprego e o salário minguam em razão da crescente racionalização da
sociedade e do território. Em outras palavras, o que é mais racional no processo de tornar-se
competitivo deve ser aplicado, eliminando todo tipo de viscosidades políticas, jurídicas,
sociais e culturais. Desse modo, difundem-se sistemas técnicos automatizados para substituir
o trabalho humano, considerado mais caro, demandante de pausas e potencialmente criador de
conflitos, assim como também normas destinadas a reduzir a quantidade de mão-de-obra ou a
entregar, à própria esfera individual, um conjunto de condições consideradas, em períodos
anteriores, soluções de civilização como a aposentadoria, as férias pagas, as licenças e
afastamento por doenças e outros direitos sociais advindos do vínculo empregatício.
A medida que esse processo de racionalização, autorizado por uma nova base técnica e
por um novo quadro político, se globaliza, também o fazem suas consequências e seus
produtos, como a pobreza. Se no discurso a pobreza é tida como um fato indesejável, na
prática é necessária ao funcionamento de um sistema regido pelos nexos financeiros. Criada a
necessidade de liquidez, é difícil manter-se fora do sistema financeiro. E, como vimos, amplas
camadas sociais não têm condições legais de inserir-se no circuito bancário, ensejando-se a
entrada de outros agentes e modalidades financeiras. Ê o caso das instituições financeiras e de
certos bancos e agiotas de diversas espécies, que possibilitam a presença de um dinheiro cujo
custo é exorbitante.
O papel da informação é, outrossim, essencial na produção da racionalização atual,
pois cria uma necessidade premente de qualificação, de segurança e de previsão de diversa
natureza que, com um Estado menos presente, amplia o número de potenciais consumidores
de serviços privados. A medida que os custos dos diversos aspectos da vida social são
"devolvidos" às famílias, a pobreza aumenta, pois nem todas elas podem enfrentar essas
despesas integral e indefinidamente. A pobreza é vista como inevitável, um fato quase natural.
A sociedade segmenta-se e o futuro torna-se incerto.
A divisão do trabalho que resulta do neoliberalismo é produtora de pobreza e dívidas
sociais. Fundada nos acréscimos técnico-cientí-fico-informacionais e nos mecanismos
financeiros, ela é feita da superposição das divisões do trabalho das grandes corporações. Ê
por isso que a divisão do trabalho no país tem um papel ativo na desvalorização dos fazeres e
lugares que não perfazem essas necessidades. Daí os mecanismos de exclusão e a produção da 11
Santos, Milton. Por uma outra globalização, op. cit., p. 72.
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pobreza. Essa economia assim planejada é incapaz de criar um número de empregos satisfató-
rio, pois despreza as atividades que não são modernas. Diminuem o número de empregos e o
valor dos salários porque se desvaloriza o trabalho da maior parte da sociedade.
O T E R R I T Ó R I O C O R P O R A T I V O
A medida que o território brasileiro se torna fluido, as atividades econômicas
modernas se difundem e uma cooperação entre as empresas se impõe, produzindo-se
topologias de empresas de geometria variável, que cobrem vastas porções do território,
unindo pontos distantes sob uma mesma lógica particularista. De alcance global, essas
empresas pautam seus comportamentos por parâmetros planetários, Os sistemas de infra-
estruturas que permitem essas ligações foram feitos, na maior parte das vezes, com recursos
públicos, mas seu uso privado autoriza a falar de privatização do território.
Como essas grandes firmas arrastam, na sua lógica, outras empresas, industriais,
agrícolas e de serviços, e também influenciam fortemente o comportamento do poder público,
indicando-lhe formas de ação subordinadas, podemos dizer que estamos diante de um verda-
deiro comando da vida económica e social e da dinâmica territorial por um número limitado
de empresas. Assim, o território pode ser adjeti-vado como um território corporativo, do
mesmo modo que as cidades também podem ser chamadas de cidades corporativas, já que
dentro delas se verificam processos idênticos.
Cada empresa, cada ramo da produção cria uma lógica territorial que é visível por
meio de uma topologia, isto é, a distribuição no território dos pontos de interesse para a sua
operação.12
Esses pontos de interesse ultrapassam o âmbito da própria firma para se projetar
sobre as empresas fornecedoras, compradoras ou distribuidoras. Para cada uma delas, o
território do seu interesse imediato é formado pelo conjunto dos pontos essenciais para
conquistar uma posição vantajosa não apenas no país, mas sobretudo na escala internacional.
Por conseguinte, o uso desses pontos do território nacional é submetido a uma lógica que, por
intermédio de uma empresa global, acab sendo uma Lógica global.
No campo modernizado, a atividade é subordinada aos mandamentos dás empresas,
como a escolha induzida das sementes e das espécies, a condução e a fiscalização dos
processos, o uso do crédito oferecido, às vezes a taxas menores que as dos bancos comerciais,
e, na sua contrapartida, os contratos de exclusividade. Essas firmas também oferecem
assistência técnica e influenciam as formas de colheita e transporte. Trata-se de uma produção 12
Corrêa, Roberto Lobato L. "Corporação e organização espacial: um estudo de caso". Revista Brasileira de
Geografia (IBGE), ano 53, nº 3, 1991, pp. 33-66.
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quantitativamente ampliada em relação aos padrões técnicos e capitalistas anteriores, mas
também de uma circulação restrita, graças ao conjunto de condições de racionalização
introduzidas nas diversas áreas modernizadas por meio do nexo corporativo. Pode-se dizer
que tal mecanismo conduz ao crescimento econômico, mas à custa da perda do controle do
seu destino pelas regiões assim modernizadas.
Essa atividade agrícola moderna, sob o comando técnico-científi-co de grandes
empresas, se utiliza das condições encontradas em cada lugar. Na verdade, porém, não se trata
de uma atividade que permita falar de relações horizontais, já que as principais etapas do
respectivo processo dependem exclusivamente dos interesses dessas grandes empresas e estão
fora do lugar. Por isso, as grandes firmas obrigam a nação a uma profunda
internacionalização. Nessas condições, é lícito nos referirmos à existência de verdadeiros
oligopólios territoriais. Entretanto, muitas das atividades desenvolvidas nas diferentes regiões
brasileiras têm uma forte relação com o próprio território e, portanto, são mais dependentes da
sociedade próxima e das virtualidades materiais e sociopolíticas de cada área. Isso permite
certa horizontalização da atividade. O papel de comando, todavia, é reservado às empresas
mais fortes, e os pontos do território em que elas se instalam constituem meras bases de
operação, abandonadas logo que as condições deixam de lhes ser vantajosas. As grandes
empresas, por isso mesmo, apenas mantêm relações verticais com tais lugares.
Uma lógica menos dependente do chamado mercado global poderia atribuir às
empresas um conjunto diferente de opções, levando a outros comportamentos territoriais.
Todavia, a atual doutrina da economia internacional quanto aos países subdesenvolvidos
confere ao mercado interno uma lógica global à qual se opõe fracamente uma lógica nacional,
tanto mais débil quanto o Estado não se mostra interessado por ela, mesmo quando hoje o
discurso comece a valorizar a idéia do mercado interno. Na realidade, fala-se de um mercado
interno cujo consumo é extrovertido na sua natureza e nas condições de satisfação, uma vez
que os circuitos espaciais de produção e suas complementaridades técnicas, financeiras e
informacionaís são extremamente internacionalizados. Em outras palavras, como o território
brasileiro sedia apenas algumas instâncias de um processo produtivo cada vez mais
segmentado planetariamente, cada produto do trabalho nacional embute um forte conteúdo de
trabalho importado. Evidencia-se a incapacidade de fortalecer as engrenagens de uma
produção horizontalizada e orientada para um consumo endógeno.
O resultado é o exercício de um controle parcial de certos pontos por lógicas que se
interessam apenas por aspectos particularizados. Quanto aos outros interesses, não respondem
de forma neutra a essa ação privatista, já que tal ação tem sobre eles reflexos indiretos. Inseri-
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dos ou excluídos desse processo, os demais trabalhos e lugares são condenados a novas
formas de pobreza. É o caso de uma grande empresa global numa cidade. Sua presença incide
sobre a equação do emprego, a estrutura do consumo, o uso de infra-estruturas materiais e
sociais, a composição dos orçamentos públicos, a estrutura do gasto público e o
comportamento das outras empresas, sem falar da própria imagem do lugar e do impacto
sobre os comportamentos individuais e coletivos. Paralelamente há a exigência de uma dada
política, nos âmbitos federal, estadual e municipal, para atender às necessidades de instalação,
permanência e desenvolvimento dessa empresa.
Por essa razão, o território corporativo revela também uma utilização privilegiada dos
bens públicos e uma utilização hierárquica dos bens privados. É dessa forma que maiores
lucros são obtidos por alguns agentes, ainda que trabalhem sobre os mesmos bens e estes
sejam nominalmente públicos. Quando as corporações encorajam, segundo várias formas de
convicção, a construção das infra-estruturas de que necessitam e quando os governos decidem
realizar tais obras, o processo de produção do território corporativo se fortalece. Dessa forma,
as maiores empresas passam a desempenhar um papel central na produção e no
funcionamento do território e da economia. Mediante a colaboração ou a omissão do Estado,
acabam por tornar-se parte e juízes em conflitos de interesses com empresas menos poderosas
e com a sociedade como um todo.
Uma das manifestações do território corporativo é a chamada guerra fiscal, da qual
muito se fala hoje. Esta faz alusão à disputa, vista sobretudo nos seus aspectos fiscais, de
estados e municípios pela presença de empresas e, concomitantemente, a busca pelas
empresas de lugares para se instalar e obter lucros mais altos. A questão é mais ampla. Para as
empresas, o mais importante é a ação que empreendem para fazer com que esses lugares
apresentem um conjunto de circunstâncias que lhes sejam vantajosas. E esse rearranjo do
lugar tem um custo a ser assumido pela sociedade como um todo. Ao mesmo tempo, esse
processo é causa e consequência de uma disputa entre as empre-sas por posições hierárquicas.
As empresas mais poderosas obtêrn lugares mais rentáveis, enquanto as demais são relegadas
a posições menos produtivas.
Reorganiza-se assim a hierarquia regional. Ganira quem é mais forte. Cada região é
um tecido de condições de infra-estruturas; recursos humanos, fiscalidade, organização
sindical e força reivindicatória que afastam ou atraem determinadas atividades num dado
momento. Por isso, os lugares são permanentemente convocados a atualizar as condições
vantajosas segundo a inserção do país na divisão internacional do trabalho. E a velocidade
com que tais exigências se renovam não cessa de aumentar.
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Essas turbulências, que o mercado global produz na nação, criam uma instabilidade do
território. Tal instabilidade marca as relações da empresa com o seu entorno, isto é, com
outras empresas, as instituições e o próprio território, já que há uma contínua necessidade de
readaptação ao mercado e ao entorno. É uma permanente produção de desordem, que a cada
momento é diferente da desordem precedente e da desordem seguinte e cuja manifestação
mais visível é, certamente, a pobreza. Como atualmente a atividade corporativa se realiza por
intermédio de empresas-rede, sua influência estende-se à totalidade ou a partes significativas
do território, por meio das redes de infra-estruturas, informação e comunicação.
Desse modo, o território é também objeto de desarticulações que, repetidas vezes, se
tornam alvo de programas sociais nacionais ou internacionais. Não são raras as ocasiões em
que os financiadores são aqueles atores envolvidos nos permanentes ajustes macroeconômicos
aos quais o país é submetido e, também, algumas corporações globais. Conhecemos os
programas do' Banco Mundial e de tantas instituições financiadas pelos responsáveis de um
bom número de causas da situação aluai. O papel do Terceiro Setor está ainda para ser
discutido criticamente.
Esse modelo corporativo está tanto mais presente quanto mais o mercado interno passa
a ser objeto de uma preocupação residual. O abandono das preocupações com o mercado
interno aparece como o único caminho para uma inserção plena no mercado dito global. O re-
sultado é, frequentemente, a recessão, o desemprego e o empobreci-mento das populações. O
Estado se afasta da elaboração de políticas industriais e de outras políticas produtivas, assim
como de políticas de interesse social. O próprio fato da globalização e a subordinação do país
ao mercado global, conferindo um novo papel ao mercado, são causas do desequilíbrio do
pacto federativo, já que a União precisa reunir forças mais concentradas e maciças para
operacionalizar a economia globalizada. Para fazê-lo, tanto a nação quanto o território
devem ser desconsiderados, enquanto o próprio Estado renuncia às funções de regulação
social e privilegia o seu papel de suporte da expansão das lógicas monetaristas. Com a força e
a lei, o mercado aparece, ao mesmo tempo, como um ator e um caminho incontestáveis,
erodindo o grau de autonomia dos lugares e da nação brasileira.
Nesse contexto político, a descentralização, cujos fundamentos são manipulados, passa
a ser utilizada menos como um mecanismo de transferência de poder e mais para resolver
problemas de caixa e pulverizar a força das decisões políticas. Tal evolução leva a uma verda-
deira supressão do discurso territorial na retórica do Estado e à desconsideração dos processos
espaciais como dado tanto da dinâmica da sociedade e da economia quanto da formulação de
políticas públicas.
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UMA N A Ç Ã O DE C I D A D Ã O S
Considerar o território na sua totalidade como premissa da política significa também
reconhecer a necessidade de propor ações públicas compensatórias e universais diante das
ações corporativas norteadas pela obtenção de lucro. Há bens e serviços que são de interesse
geral comum, representativos de direitos "naturais" e que deveriam ser reconhecidos como um
direito legítimo, acessível a todos. Tal é o caso da educação, da saúde, da aposentadoria, da
cultura, cuja distribuição deveria ser universal. Mas quando não chegam a todas as pessoas e
todos os lugares, isto é, quando a essas demandas não corresponde uma oferta efetiva por
parte do Estado, encarnando uma resposta a esses reclamos, tende a instalar-se o setor
privado. Desse modo, criam-se compartimentações que acabam, amiúde, em curto-circuitos
com o exercício da cidadania.
Surgem configurações territoriais caprichosas, cuja variedade e distribuição não têm
relação direta com a presença da população. Certas regiões não serão atrativas para as novas
atividades, reforçan-do-se negativamente um processo cumulativo às avessas, enquanto em
lugares mais bem-dotados esse processo será positivo. Com o neo-liberalismo tal processo se
acelera, enquanto se agravam e aprofundam as polarizações. O neoliberalismo é um sistema
econômico e político no qual os processos cumulativos são exponenciais. Isso ocorre com
todos os aspectos da vida social no território. E esse não é um processo natural ou espontâneo,
como frequentemente anunciado, mas produto de decisões políticas, tantas vezes com
embasamento científico.
Haveria, assim, regiões luminosas e regiões opacas do ponto de vista da produtividade
e da competitividade. É um processo recorrente e acelerado de construção, destruição e
reconstrução de diferenciações e hierarquias que conduz a frequentes desvalorizações e reva-
lorizações das parcelas do território. O resultado é uma fragmentação política cuja
manifestação mais visível é a ingovernabilidade da nação. Tende a se instalar um verdadeiro
círculo vicioso, com a superposição da oferta e da demanda nas áreas geográficas já
privilegiadas. Lógica idêntica age, no sentido diametralmente oposto, com a vocação ao
esvaziamento de certas áreas. Quando o Estado deixa ao setor privado a regulação de aspectos
essenciais da vida social, acaba por penalizar certas camadas sociais e certas regiões.
Tudo isso leva à discussão sobre o papel do Estado como vetor autônomo na produção
de serviços sociais universais, cujos limites são sobretudo ideológicos e políticos, já que a
noção de recursos é politicamente definida, e o papel da economia, também considerada, pela
via do mercado, como vetor dotado de certa autonomia na produção de bens e serviços
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universais, e cujos limites são as regulamentações e as subvenções e incentivos diretos e
indiretos. Como dados explica-tivos, entram o próprio processo económico, ao qual se
relacionam a capacidade de investimento do Estado e o poder de compra da socie- dade, que
em geral se ampliam quando há crescimento e se reduzem quando há recessão.
Mas a educação e a saúde, entre outros, são bens a serem consumidos, e esse consumo
é cada vez mais produtivo. Essas atividades e aquelas que lhes são associadas, direta ou
indiretamente, desempe- nham um papel na geração da riqueza local, justificando, de um
ponto de vista económico e não apenas cívico ou cultural, sua permanência na esfera do poder
público. Essa produtividade é também a razão da acelerada conquista dessas atividades pelas
empresas privadas, cuja ação é centrada na demanda existente e na criação de uma demanda
solvente hoje possível graças ao crédito. Mas há também o problema da qualidade da oferta.
Uma nação de cidadãos não pode tolerar que se prolongue a atual situação de oferta de
serviços ditos universais em dois ou três níveis, segundo a capacidade económica e a
localização geográfica das famílias. A situação atual significa que os cidadãos já se instalam
na nação com um destino selado, discriminados ah initio, desde logo condenados a uma vida
social mutilada em função da sua posição social e territorial.
É necessário portanto que o Estado-nação recupere suas funções sociais, isto é, que
possa velar para que a nação como um todo tenha acesso aos bens fundamentais. Esse parece
o caminho mais direto para acabar com a maior dívida social de todos os tempos: a pobreza
estrutural.
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Problemas de método e problemas de sentido
A história religiosa é o campo de um confronto entre a historiografia e a arqueologia da
qual parcialmente tomou o lugar. Secundariamente, permite analisar a relação que entrelaça a
história com a ideologia da qual deve dar conta em termos de produção. As duas questões se
entrecruzam e podem ser consideradas em conjunto no setor estreitamente circunscrito do
"tratamento" da teologia por métodos próprios à história. De imediato, o historiador considera
a teologia como uma ideologia religiosa que funciona num conjunto mais vasto e supostamente
explicativo. Pode ele reduzi-la ao resultado desta operação? Sem dúvida que não. Porém, como
objeto de seu trabalho, a teologia se lhe apresenta sob duas formalidades igualmente incertas
na historiografia; é um fato religioso; é um fato de doutrina. Examinar, através deste caso
particular, a maneira pela qual os historiadores tratam hoje destes dois tipos de fatos e
particularizar quais os problemas epistemológicos que se abrem assim é o propósito deste
breve estudo.
A história, uma prática e um discurso.
Esta análise será, evidentemente, determinada pela prática bastante localizada da qual
pude lançar mão, quer dizer, pela localização do meu trabalho — ao mesmo tempo um
período (a história dita "moderna"), um objeto (a história religiosa) e um lugar (a situação
francesa). Este limite é capital. A evidenciação da particularidade deste lugar de onde falo,
efetiva-mente prende-se ao assunto de que se vai tratar e ao ponto de vista através do qual me
proponho examiná-lo. Três "postulados" individualizam um, e outro. Eles devem ser
francamente colocados como tais (mesmo que pareçam resultar com evidência da prática
histórica atual) já que não serão objeto de uma demonstração.
Sublinhar a singularidade de cada análise é questionara possibilidade de uma
sistematização totalizante, e considerar como essencial ao problema a necessidade de uma
discussão proporcionada a uma pluralidade de procedimentos científicos, de funções sociais e
de convicções fundamentais. Por aí se encontra, já esboçada, a função dos discursos que podem
esclarecer a questão, e que se inscrevem, eles próprios em seguimento a ou ao lado de muitos
outros: enquanto falam da história, estão sempre situados na história.
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Estes discursos não são corpos flutuantes em um englobante que se chamaria a história
(o "contexto"!). São históricos porque ligados a operações e definidos por funcionamentos.
Também não se pode compreender o que dizem independentemente da prática de que
resultam. De maneiras diferentes aí existe uma boa definição de historiografia contemporânea
(mas também da teologia — inclusive e particularmente a mais tradicional1). De qualquer
maneira uma e outra serão apreendidas nesta articulação entre um "conteúdo" e uma
operação. Além do que esta perspectiva caracteriza, hoje, os procedimentos científicos, por
exemplo, aquele que, em função de "modelos", ou em termos de "regularidades", explica os
fenômenos ou documentos, tornando manifestas regras de produção e possibilidades de
transformação2. Porém, mais simplesmente, é levar a sério expressões carregadas de sentido —
"fazer história", "fazer teologia" — quando se é mais propriamente levado a suprimir o verbo
(o ato produtor) para privilegiar o complemento (objeto produzido).
Por esta razão, entendo como história esta prática (uma "disciplina"), o seu resultado (o
discurso) ou a relação de ambos sob a forma de uma "produção"3. Certamente, em seu uso
corrente, o termo história conota, sucessivamente, a ciência e seu objeto — a explicação que se
diz e a realidade daquilo que se passou ou se passa. Outros domínios não apresentam a mesma
ambiguidade: o francês não confunde numa mesma palavra a física e a natureza. O próprio
termo "história" já sugere uma particular proximidade entre a operação científica e a realidade
que ela analisa. Mas o primeiro destes aspectos será nossa entrada no assunto, por diversas ra-
zões: porque a espessura e a extensão do "real" não se designam, nem se lhes confere sentido
senão em um discurso, porque esta restrição no emprego da palavra "história" indica seu
correspondente (a ciência histórica) à ciência, ou pelo menos à função particular que é a
teologia; finalmente para evitar a floresta virgem da História, região de "brumas" onde prolife-
ram as ideologias e se corre o risco de jamais reencontrar-se. Pode ser também que, atendo-se
ao discurso e à sua fabricação, se apreenda melhor a natureza das relações que ele mantém
com o seu outro, o real. A linguagem, não tem ela como regra implicar, embora colocando-a
como outra que não ela mesma, a realidade da qual fala?
Partindo assim, de práticas e discursos historiográficos eu me proponho considerar
sucessivamente as questões seguintes:
1. O tratamento dado pela historiografia contemporânea à ideologia religiosa, obriga ao
reconhecimento da ideologia já investida na própria história.
2. Existe uma historicidade da história. Ela implica no movimento que liga uma prática
interpretativa a uma prática social.
3. A história oscila, então, entre dois pólos. Por um lado remete a uma prática, logo, a
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uma realidade, por outro é um discurso fechado, o texto que organiza e encerra um modo de
inteligibilidade.
4. Sem dúvida a história é o nosso mito. Ela combina o "pensável" e a origem, de acordo
com o modo através do qual uma sociedade se compreende.
I. UM INDÍCIO: O TRATAMENTO DA
IDEOLOGIA RELIGIOSOSA EM HISTÓRIA
A relação entre história e teologia, inicialmente, é um problema interno da história.
Qual é o significado histórico de uma doutrina no conjunto de um tempo? Segundo quais
critérios compreendê-la? Como explicá-la em função dos termos propostos pelo período
estudado? Questões particularmente difíceis e controvertidas, quando não nos contentamos
com uma pura análise literária dos conteúdos ou da sua organização4 e quando, por outro lado,
recusamos a facilidade de considerar a ideologia apenas como um epifenômeno social,
suprimindo-se a especificidade da afirmação doutrinária5.
Por exemplo, que relação estabelecer entre a espiritualidade ou a teologia jansenista e
as estruturas sócio-culturais ou a dinâmica social da época. Existe todo um leque de respostas.
Assim, para Orcibal, o que se deve procurar é uma experiência radical em seu estado primeiro,
no texto mais primitivo. Porém, mesmo aí, ela se aliena nas imposições de uma linguagem
contemporânea; a história de sua difusão será, pois, a história de uma degradação progressiva.
Mesmo remontando incessantemente às fontes mais primitivas, perscrutando nos sistemas
históricos e linguísticos a experiência que escondem ao se desenvolverem, o historiador nunca
alcança a sua origem, mas apenas os estágios sucessivos da sua perda. Contrariamente, Goldmann
lê na doutrina jansenista o resultado e o signo da situação económica na qual se encontra contra
uma categoria social: perdendo seu poder, os magistrados se voltam para o céu da predestinação
e do Deus escondido, e revelam, assim, a nova conjuntura política que lhes fecha o futuro; aqui
a espiritualidade, sintoma daquilo, que não diz, remete à análise de uma mutação económica e
a uma sociologia do fracasso6.
Os trabalhos sobre Lutero apresentam a mesma diversidade de posições: ora referem a
doutrina à experiência de juventude que seria seu segredo inefável e organizador (Strohl,
Febvre, por exemplo); ora se inscrevem no contínuum de uma tradição intelectual (Grisar,
Seeberg, etc); ora vêem nela o efeito de uma modificação nas estruturas econômicas (Engels,
Stein-mertz, Stern) ou a tomada de consciência de uma mutação sócio-cultural (Garin,
Moeller, etc), ou o resultado de um conflito entre o adolescente e a sociedade dos adultos
(Erikson). Finalmente, far-se-á do Luteranismo a emergência da inquietação religiosa própria de
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um tempo (cf. Lortz, Delu-meau), o acabamento de uma promoção dos "leigos" contra os
clérigos (N. Z. Davis), um episódio inscrito no prosseguimento das reformas evangelistas que
balizam a história da Igreja, ou a vaga criada no Ocidente pela irrupção de um acontecimento
único (Holl, Bainton, Barth)? Pode-se encontrar todas estas interpretações e muitas outras7.
Está claro que elas são relativas à resposta que cada autor dá a questões análogas no
presente. Ainda que isto seja uma redundância é necessário lembrar que uma leitura do
passado, por mais controlada que seja pela análise dos documentos, é sempre dirigida por uma
leitura do presente. Com efeito, tanto uma quanto a outra se organizam em função de proble-
máticas impostas por uma situação. Elas são conformadas por premissas, quer dizer, por
"modelos" de interpretação ligados a uma situação presente do cristianismo.
O modelo "místico"e o modelo "folklórico": uma essência escondida.
Globalmente, desde há três séculos, no que concerne à França, a história religiosa parece
marcada por duas tendências: uma, originária das correntes espirituais, fixa o estudo na análise
das doutrinas; a outra, marcada pelas "Luzes", coloca a religião sob o signo das superstições.
Em última análise, teríamos, lá, verdades emergindo dos textos, e, aqui, "erros"ou um folklore
abandonado na rota do progresso.
Sem ir muito longe, pode-se dizer que durante a primeira metade do século XX, a
religião não aproveitou nada das novas correntes que mobilizaram os historiadores medievalistas
ou "modernistas", por exemplo a análise sócio-econômica de Ernest Labrousse (1933-1941). Ela
era muito mais o objeto que disputavam exegetas e historiadores das origens cristãs. Quando
intervinha na História das Mentalidades de Lucien Febvre (1932-1942), era como um índice de
coerência próprio de uma sociedade passada (e, sobretudo, superado graças ao progresso),
numa perspectiva muito marcada pela etnologia das sociedades "primitivas".
Paradoxalmente, dois nomes poderiam simbolizar o lugar mais ou menos explicitamente
dado à análise das crenças durante o entre-duas-guerras e o deslocamento que nele se
produziu: Henri Bremond e Arnold Van Gennep; um, inscrito na tradição da história literária,
atesta uma perda de confiança nas doutrinas, relerindo-as ã um sentido "místico", a uma "me-
tafísica" oculta dos santos8; o outro, escrupuloso observador do folklore religioso, vê aí o
ressurgimento de umímemorial das sociedades, o retor-no de um irracional, de um originário
e quase de um recalcado9. Suas posições não deixam de ter analogias, ainda que enunciadas em
termos de métodos bem distantes um do outro. O primeiro remete o sentido da literatura que
estuda a um fundo místico do homem, a uma "essência" que se difracta, exprime e compromete
com os sistemas religiosos institucionais ou doutrinários. Os fatos doutrinários são, pois,
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dessolidarizados do seu sentido, que permanece oculto em "profundezas", no fim das contas,
estranhas aos cortes intelectuais ou sociais. A seu modo, inspirado na antropologia americana
ou alemã, e cada vez mais na escola de Jung, Van Gennep revela nos folklores religiosos os
signos de arquétipos inconscientes e de estruturas antropológicas permanentes. Através de uma
mística sempre ameaçada (segundo Bremond) ou de um folklore (para Van Gennep), o
religioso assume a imagem do marginal e do atemporal, nele, uma natureza profunda, estranha à
história, se combina com aquilo que uma sociedade rejeita para suas fronteiras.
Este modelo, bem visível nesses dois autores, se reencontra depois sob outras formas
(o sagrado, o pânico, o inconsciente coletivo, etc).
Explica-se, sem dúvida, pela posição que tinha o cristianismo na sociedade francesa
antes de 1939 (partilhado entre um movimento de interiorização com o Primauté du Spirituel
de Maritain (1927) ou Esprit de Mounier (1932) — e um positivismo religioso dos
tradicionalistas). Explica também que a história religiosa tenha sido "pensável" com
dificuldade dentro de uma história social e que tenha permanecido "aberrante" com relação à
história que se inventava, particularmente com relação à história sócio-econômica de Henri See
(1921-1929), de Simiand (1932), de Hamilton (1934-1936), de Marc Bloch (1939-1940) ou de
Ernest Labrousse. Porém, dirigindo cada vez mais as pesquisas que inspirava para o estudo das
correntes espirituais ou da cultura popular, este modelo abria, à história religiosa, um belo
fruto. A ciência constituía um campo de puros "fenómenos" religiosos, cujo sentido se retirava
para uma outra ordem, oculta. Ela os situava ao lado da etnologia, e ligava um exotismo do
interior a um essencial perdido, no território do imaginário ou do simbólico social. Ela podia,
assim, buscar na religião a metáfora de um fundo a-histórico da história.
O modelo sociológico: a prática e o saber.
Também é preciso ligar a uma arqueologia recente a importância que tomou, com
Gabriel Le Brás, a análise das práticas religiosas10
. Ligado ao desenvolvimento da sociologia,
da etnologia, mas também do folklorismo11
, este modelo de interpretação representa uma
reação francesa em favor das práticas sociológicas (pesquisas, etc), e contra as tipologias
teóricas de Troeltsch (1912), de Weber (1920) ou de Wach (1931). Supõe igualmente, porém,
ao lado do cristianismo, uma situação nova que remonta à época "moderna". Um passado
frequenta este presente.
Com efeito, a prática, provavelmente, não tem o mesmo sentido no curso dos
diferentes períodos históricos. Durante o correr do século XVII, ela adquire uma função que
possuía, em muito menor grau, no século XIII ou no século XIV. O esboroamento das crenças
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em sociedades que deixam de ser religiosamente homogéneas torna ainda mais necessárias as
referências objetivas: o crente se diferencia do incréu — ou o católico do protestante — pelas
práticas. Tornando-se um elemento social de diferenciação religiosa, a prática ganha uma
pertinência religiosa nova. A gente se reagrupa e a gente se conta em função deste critério.
Hoje, quando toma a prática como uma mensuração quantitativa da religião, a
sociologia faz ressurgir na ciência uma organização histórica da consciência cristã (que por outro
lado não era própria do jansenismo). Acentua, também, um pressuposto já latente nessas
origens velhas de quatro séculos: uma clivagem entre os gestos objetivos e a crença subjetiva.
Já no século XVII, a crença começa a se dissociar da prática — fenómeno que não cessou de se
acentuar desde então. Para se contarem e para marcar rupturas, os reformistas desconfiavam
das doutrinas e insistiam nos atos sociais. Presentemente, nos trabalhos que levam em conta os
gestos, o interesse se volta para as práticas, porque elas representam uma realidade social, e tem
como reverso uma desvalorização científica de sua significação dogmática (remetida aos
"preconceitos" desmistificados pelo progresso ou às convicções privadas impossíveis de
introduzir numa análise científica). A lógica de uma sociologia acresce, pois, o cisma entre os
fatos religiosos sociais e as doutrinas que pretendem explicar-lhes o sentido12
.
Em seguida, um olhar sociológico transformou as próprias crenças em fatos objetivos.
Uma sociologia do conhecimento religioso desenvol- veu-se na proporção da retração do
sentido para "o interior". O mesmo corte se encontra, então, no terreno, aparentemente oposto
ao precedente, das pesquisas consagradas à ideologia. Porém, tampouco aí podemos dissociar,
em nossa relação dos historiadores com o século XVII, o conhecimento que temos dela e a
influência que exerce sobre nossos métodos de pesquisa. 0 olhar sociológico voltado para as
ideologias e os aparelhamen-tos conceituais que organizam nossa análise cultural (por exemplo,
a distinção entre elites e massas, o critério de "ignorância" para julgar a "descris-tianização",
etc. são ainda testemunhas do. função social que o saber recebeu no decorrer do século XVII.
Quando a diversidade dos Estados europeus sucedeu à unanimidade religiosa da "cristandade",
foi necessário um saber que tomasse o lugar das crenças e permitisse definir cada grupo ou
cada país distinguindo-o dos outros. Nesses tempos da imprensa, da alfabetização (ainda fraca) e
da escolarização, o conhecimento se torna um instrumento de unidade e de diferenciação: um
corpus de conhecimentos ou um grau de saber recorta um corpo ou isola um nível social, ao
mesmo tempo que a ignorância é associada à delinquência como causa desta, ou à massa
como ao seu próprio indício. O que é novo não são estas divisões sociais, mas, o fato de que um
saber ou uma doutrina constituíam o meio de as colocar, ou de as manter ou de as trocar.
Também entre Igrejas, as diferenças entre saberes tornam-se decisivas. A determinação
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daquilo que se conhece, quando se é Católico ou Reformado, fornece à comunidade seu modo
de identificação e distinção. Os catecismos mudam, remodelados pela urgência dessas
definições que circunscrevem ao mesmo tempo os conteúdos intelectuais e os limites sócio-
institucionais.
Hoje, trabalhos novíssimos, como o de R. Taveneaux, reconstituem as redes sócio-
culturais, esboçam as circulações mentais e podem estabelecer a geografia de grupos ocultos, a
partir dos traços e dos pontos de ressurgência das idéias religiosas, da mesma maneira pela qual
se determinam circuitos fisiológicos através das viagens de um elemento visível na opacidade
do corpo13
. Em suma, refazem caminhos trilhados ontem pelo uso que uma sociedade fazia do
saber. Privilegiando nessas idéias seu papel passado, explorando-as, por sua vez, como restos (e
às vezes os únicos visíveis) de cortes entre grupamentos, R. Taveneaux explicita a utilidade
que já tinham ontem subrepticiamente — o serviço que prestavam às sociedades que as
veiculavam —, mas é ao preço do seu sentido "doutrinal" — aquele que lhe davam ainda os
contemporâneos ou aquele que elas podem manter. O desmembramento dos métodos teve,
desde então, como efeito separar cada vez mais, em cada obra doutrinal, um "objeto"
sociológico visado pelo historiador e um "objeto" teórico que parece abandonado a uma análise
literária.
Um modelo cultural: das "idéias"ao "inconsciente coletivo".
Baczko o observou: "a história das idéias" nasceu de reações comuns, particularmente
contra o parcelamento que levou, no âmbito de uma obra ou de um período, à
compartimentação das disciplinas. Assim, em lugar de fragmentar arbitrariamente a obra de
Newton e de repartir suas parcelas entre especialidades diferentes, segundo tratem do Apoca-
lipse, dos calendários, da "filosofia natural" ou da ótica, procuramos compreender sua unidade e
seus princípios organizadores14
. Do mesmo modo recusamos explicar uma obra em termos de
influências, de esgotar assim um corpus, remetendo-o ao indefinido de suas origens, e de
provocar, por esse recuo sem fim através de uma poeira de fragmentos, o desaparecimento das
totalidades, das delimitações, das rupturas que constituem a história.
Como este estudo se confere os seus métodos? Desde a criação, nos Estados Unidos, do
Journal of the History of Ideas (1940) em New York-Lancaster, a mais antiga das revistas que
lhe foram consagradas, este estudo busca a si mesmo. Não tem sequer um nome: na Alemanha, é
a Geistesgesc-hichte; nos Estados Unidos, a Intelectual History; na França, a Hutoire des
Mentalités; na U.R.S.S., a História do Pensamento.
Baczko poderia, entre estas tendências, reconhecer origens filosóficas comuns,
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longinquamente hegelianas, através de Dilthey, Lukacs, Weber, Croce, Huizinga, Cassirer,
Groethuysen, etc, até os anos 1920-1930. As idéias tornam-se uma mediação entre o Espírito
(o Geist) e a realidade sócio-política. Supõe-se que constituam um nível onde se reencontrem
o corpo da história e sua consciência, o Zeitgeist. Entretanto, a simplicidade do postulado se
decompõe, diante da análise, em problemas complexos e aparentemente insolúveis. Por
exemplo, qual é o verdadeiro Newton? De que tipo é a unidade que se postula, a de sua obra,
e, portanto, a de um período? Que suporte fornece a tantas "idéias" diferentes a unidade em-
prestada às "idéias do tempo", à "mentalidade" ou a uma "consciência co-letiva"
contemporânea?
Esta unidade procurada, quer dizer, o objeto científico, se presta à discussão. Deseja-se
ultrapassar a concepção individualista que recorta e reúne os escritos segundo sua "pertença" a
um mesmo "autor", que, então, fornece à biografia o poder de definir uma unidade
ideológica16
, e supõe que a um homem corresponda um pensamento (como a arquitetura
interpretativa que repete o mesmo singular nos três andares do plano clássico: o Homem, a
obra, o pensamento). Tentaram-se identificar as totalidades mentais históricas: por exemplo, a
Weltanschauug em Max Weber (concepção do universo ou visão do mundo), o paradigma
científico em T. S. Kuhn, a Unit Idea em A. O. Lovejoy17
, etc. Essas unidades de medida se
referem ao que Lévi-Strauss chamará de a sociedade pensada em oposição à sociedade vivida.
Elas tendem a fazer ressaltar dos conjuntos "sancionados" por uma época, quer dizer das
coerências recebidas, implicadas pelo "percebido" ou pelo "pensado" de um tempo, sistemas
culturais suscetíveis de fundar uma periodização ou uma diferenciação dos tempos18
. Desta
maneira se opera uma classificação do material na base dos inícios e fins ideológicos, ou
daquilo que Bachelard chama de "rupturas epistemológicas"19
.
As ambiguidades desses sistemas de interpretação foram vigorosamente criticadas,
particularmente por Michel Foucault20
. Elas se prendem, essencialmente, ao estatuto incerto,
nem carne nem peixe, dessas "totalidades" que não são legíveis na superfície dos textos, mas no
interior deles, realidades invisíveis que conduziriam os fenômenos. Em nome de quê supor e
como determinar essas unidades a meio-caminho entre o consciente e o económico? Elas
ocupam o lugar de uma "alma coletiva" e permanecem como vestígio de um ontologismo. Logo
serão substituídas por um "inconsciente coletivo". Na impossibilidade de poder ser realmente
controlável, esse sub-solo é extensível; pode se estender ou contrair à vontade; tem a
amplitude dos fenómenos a "compreender". De fato, mais do que ser um instrumento de
análise, representa a necessidade que tem dele o historiador; significa uma necessidade da
operação científica, e não uma realidade apreensível em seu objeto.
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Esta concepção manifesta que é impossível eliminar do trabalho historiográfico as
ideologias que nele habitam. Porém, dando-lhes o lugar de um objeto, isolando-as das
estruturas sócio-econômicas, supondo, além disso, que as "idéias" funcionem da mesma
maneira que essas estruturas, paralelamente e num outro nível21
, a "história das idéias" não
pode encontrar a inconsistente realidade na qual sonha descobrir uma coerência autônoma,
senão através da forma de um "inconsciente". O que ela manifesta realmente, é o inconsciente
dos historiadores, ou mais exatamente, do grupo ao qual pertencem. A vontade de definir
ideologicamente a história é particularidade de uma elite social. Ela se fundamenta numa
divisão entre as idéias e o trabalho. Costuma negligenciar igualmente a relação entre as ciências
e suas técnicas, entre a ideologia dos historiadores e suas práticas, entre as idéias e sua
localização ou as condições de sua produção nos conflitos sócio-econômicos de uma sociedade,
etc. Nada espantoso, portanto, que esta divisão, ressurgência e reforço de um "elitismo" já
bem definido em fins do século XVIII (François Furet, entre outros, acentuou-o fre-
quentemente), tenha como símbolo a justaposição entre uma "história das idéias" e uma
"história económica".
A procura de uma coerência própria a um nível ideológico remete, pois, ao lugar
daqueles que a elaboram no século XX. Gramsci, sem dúvida, indica sua verdadeira proporção,
quando, reexaminando a história das idéias, a substiui pela história dos "intelectuais
orgânicos", grupo particular, e do qual analisa a relação entre sua "posição" social e os
discursos que eles produzem22
.
II. PRÁTICAS HISTÓRICAS E PRÁXIS SOCIAL
O exame desses "modelos" (dos quais se poderia prolongar a lista e a análise) revela dois
problemas conexos: a evanescência da ideologia como realidade a explicar, e sua reintrodução
como referência em função da qual se elabora uma historiografia. Enquanto objeto de estudo,
ela parece eliminada — ou sempre malograda — pelos métodos atuais de pesquisa. Por outro
lado, ressurgiu como o pressuposto dos "modelos" que caracterizam um tipo de explicação;
está implícita em cada sistema de interpretação, pelas pertinências que ele retém, pelos
procedimentos que lhe são adequados, pelas dificuldades técnicas encontradas e pelos
resultados obtidos. Dito de outra maneira, aquele que faz história, hoje, parece ter perdido o
meio de apreender uma afirmação de sentido como um objeto de seu trabalho, para encontrar
essa afirmação no próprio modo de sua atividade. Aquilo que desaparece do produto aparece
na produção.
Sem dúvida, o termo ideologia não mais convém para designar a forma sob a qual a
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significação ressurgiu na ótica ou no "olhar" do historiador. O uso corrente deste termo data
do momento em que a linguagem se objetivou; quando, reciprocamente, os problemas de
sentido foram deslocados do lado da operação e colocados em termos de escolhas históricas
investidas no processo científico. Revolução fundamental, é preciso dizê-lo imediatamente,
pois ela substitui o fazer historiográfico ao dado histórico. Ela transforma a pesquisa de um
sentido desvendado pela realidade observada, em análise das opções ou das organizações de
sentido implicadas por operações interpretativas.
Isto não significa, de forma alguma, que a história renuncia à realidade e se volta para si
mesma, contentando-se em observar os seus passos. Quer dizer, antes, nós o veremos, que a
relação com o real mudou. E se o sentido não pode ser apreendido sob a forma de um
conhecimento particular que seria extraído do real ou que lhe seria acrescentado, é porque
todo "fato histórico" resulta de uma práxis, porque ela já é o signo de um ato e, portanto, a
afirmação de um sentido. Este resulta dos procedimentos que permitiram articular um modo de
compreensão num discurso de "fatos"23
.
Antes de esclarecer esta situação epistemológica, que não permite mais buscar o
sentido sob a aparência de uma ideologia a mais ou de um dado da história, é preciso lembrar
os seus indícios na historiografia atual. Isto significa retomar, através dos estudos históricos, o
problema levantado, anteriormente, pela tese clássica de Raymond Aron24
. Porém, não nos
podemos contentar, como ele o fazia, em buscar a interpretação histórica apenas ao nível da
filosofia implícita dos historiadores, porque, então, se chega a um jogo indefinido de idéias
relativizadas umas pelas outras, jogo reservado a uma elite e combinado com a manutenção de
uma ordem estabelecida. A organização de cada historiografia em função de óticas particulares
e diversas se refere a atos históricos, fundadores de sentidos e ins-tauradores de ciências. Sob
este aspecto, quando a história leva em consideração o "fazer" ("fazer história"), encontra ao
mesmo tempo seu enraizamento na ação que "faz história". Da mesma forma que o discurso,
hoje, não pode ser desligado de sua produção, tampouco o pode ser a práxis política,
económica ou religiosa, que muda as sociedades e que, num momento dado, torna possível tal
ou qual tipo de compreensão científica.
Dos "preconceitos" históricos às situações que eles revelam.
A distância do tempo, e, sem dúvida, uma reflexão mais epistemológica permitem hoje
revelar os preconceitos que limitaram a historiografia mais recente. Eles aparecem tanto na
escolha dos assuntos quanto na determinação dos objetivos dados ao estudo. Mas, sempre, estão
ligados às situações que conferem ao historiador uma posição particular com relação a
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realidades religiosas.
Assim, os conflitos entre a Igreja e o Estado ou os debates acerca da escola "livre" e da
escola leiga, entre outros efeitos, tiveram o de privilegiar, dentre os fenómenos religiosos,
aqueles que se apresentavam sob a forma de uma oposição às ortodoxias, e, por consequência,
de favorecer a história das "heresias", privilegiando-as contra a das instituições eclesiásticas e
das "ortodoxias". Menos do que as intenções pessoais, então, as localizações sócio-culturais
mobilizam o interesse e o tipo de pesquisa.
Por exemplo, no estudo do início do século XVI prendemo-nos à "pré-reforma" mais
do que às correntes escolásticas, no entanto, majoritárias e igualmente importantes. Considera-
se mais o "humanismo" sob um aspecto de ruptura com relação à tradição cristã, do que
inscrito, também, no prolongamento da patrística, ou de reformismos sucessivos, ou de uma
série de retornos à Antiguidade no decurso da Idade Média25
. Da mesma forma, identificou-se
o século XVII, religioso, com o jansenismo, "rebelião" profética, quando ele é, apenas, um
dos fenómenos da época, e, quando muitos dos elementos considerados como característicos
do jansenismo se encontram em outras correntes espirituais26
. Ou, ainda, da obra dos grandes
"sábios" dos séculos XVI e XVII suprimiram-se seus escritos teológicos ou exegéticos,
considerados como restos de épocas encerradas, indignos de interessar uma sociedade de
progresso27
, etc.
A análise recortava, então, no tecido da história, "assuntos" relativos aos lugares de
observação. Não é de espantar que os estudos visando corrigir esses recortes, para fazer
prevalescer outros, provenham não apenas de tradições ideológicas diferentes, mas de lugares
justapostos e frequentemente opostos aos primeiros, por exemplo, de meios eclesiásticos ou de
Centros estranhos aos quadros da Universidade francesa. Assim, os tratados do Pe. Bernard-
Maítre e outros, até o grande livro de Massaut, sobre os teólogos "conservadores" no início do
século XVI28
; os trabalhos do Pe. de Lubac ou do Pe. Bouyer sobre a repetição da exegese
apostólica e patrística do humanismo erasmiano29
; e do Gilson sobre o vocabulário tradicional
retomado por Descartes30
; o de Bremond ou de tantos outros, desde então, dentro do amplo
mostruário de correntes místicas do qual o jansenis-mo faz parte. A contribuição considerável
destes estudos não disfarça seu caráter mais ou menos discretamente apologético. Talvez
mesmo a riqueza de seu conteúdo tenha se tornado possível graças a esse aspecto de réplica ou
de cruzada, que os assemelhava a um cavalo de Tróia.
A marca das compartimentações sócio-ideológicas é particularmente visível na
historiografia religiosa francesa. É um traço, muitas vezes sublinhado, da sociedade francesa. Os
trabalhos científicos forneciam, pois, a posição universitária neste mapa. Privilegiavam os
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"católicos liberais" frente aos "católicos intransigentes" (à parte a obra de Rene Rémond, estes
últimos foram estudados principalmente por ingleses ou norte-americanos, que não eram
afetados da mesma forma pelos problemas franceses31
); ou, então, preferiam ao "modernismo",
científico ou social, frente ao "inte-grismo" (do qual Poulat acaba de mostrar o interesse
histórico32
). Os debates internos da sociedade francesa provocaram um fixismo historiográfico
e, durante muito tempo, a reprodução indefinida de cortes formais, mesmo quando uma nova
erudição lhes modificava o conteúdo.
Este esquematísmo teve como efeito um reaproveitamento presente dos "partidos" antes
opostos — Reformados ou Católicos, Jansenistas ou Jesuítas, modernistas ou integristas, etc. E
deles fizeram bandeiras, menos de convicções pessoais do que de situações. As polêmicas
antigas organizaram, sem o saber, a pesquisa científica. Os historiadores chegaram a "me-ter-se
na sotaina, na cogula ou na toga de seus antecessores, sem se dar conta de que eram vestes de
polemistas ou de pregadores, cada um defendendo sua causa33
".
Alguns silêncios permanecem hoje como vestígios desse passado recente, até mesmo em
estudos magistrais sobre a sociedade e o pensamento clássicos: a discreção de Goubert a respeito
das teologias34
ou mesmo a respeito da religião35
; a ausência de referência à literatura religiosa
ha interpretação que M. Foucault faz da episteme clássica36
. Mas, também, e reciprocamente, o
silêncio do Abade Cognet a respeito da história sócio-eco-nômica em La Spiritualité Moderne31
,
ou ainda, ao contrário, em numerosos trabalhos consagrados às atividades temporais nas
Abadias, a pressão social que fez tantos historiadores clérigos desatentos à vida religiosa destas
mesmas Abadias38
.
A mutação dos "preconceitos" em objetos de estudo.
Afastados das situações conflitantes, cada vez mais distantes, é mais fácil para nós
revelar a sua marca nestes estudos. Estamos, nós mesmos, adiante disto. À medida que se
diluem as divisões que, ontem, organizaram ao mesmo tempo uma época e sua historiografia,
elas podem ser analisadas nos próprios trabalhos deste tempo. O desaparecimento do período
condiciona uma tal lucidez, mas esta compreensão, pretensamente "melhor", que de agora em
diante é a nossa, se refere ao fato de estarmos deslocados: nossa situação nos permite conhecer
a deles de outra maneira que eles a puderam conhecer.
O que torna possível a relativização desses debates de ontem, e, portanto, o balizamento
das imposições que exerceram sobre o discurso científico, é a posição nova da religião na
nossa sociedade. Bem longe de ser uma força, uma ameaça, um conjunto de grupos e de
corpos constituídos, como era o caso de ontem, o cristianismo francês se livra hoje de seu peso
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social, liberando-se dos fracionamentos recentes. Ele deixa de constituir lugares próprios,
vigorosos, porém fechados, na nação. Torna-se aí uma região mal definida e mal conhecida
pela cultura francesa. Uma historiografia religiosa pode, desde então, fazer-se o objeto de um
novo exotismo, semelhante àquele que conduz o etnólogo aos "selvagens" do interior ou aos
feiticeiros franceses. Socialmente, o cristianismo existia em mais alto grau, quando, ontem, se
lhe dava menos espaço no Tempo do que se lhe dá no Mundo hoje. Quando se tratava de
adversários, de oponentes, ou de grupos fechados a respeito de sua própria vitalidade, ficava-se
calado ou se era parcial. Fala-se mais dele agora que não é mais uma força e, que, por
necessidade se "abriu", "adaptou" e conformou com a situação na qual se tornou o objeto de
uma curiosidade "imparcial" e o signo longínquo de "valores39
". As renovações da história
religiosa não significam, pois, uma recrudescência do cristianismo, mas a diluição de suas
instituições e de suas doutrinas nas novas estruturas da nação — sua passagem de estado de
corpo opaco e resistente a um estado de transparência e de movimento.
Os "preconceitos" da história ou dos historiadores desaparecem quando se modifica a
situação à qual se referem. A organização ontem viva de uma sociedade, investida na ótica de
seus historiadores, se transforma, então, num passado suscetível de ser estudado. Ela muda de
estatuto: deixando de ser, entre os autores, aquilo em função de que eles pensavam, passa para
o lado do objeto que, como novos autores, temos que tornar pensável. Em função de uma
outra situação, desde então nos é possível examinar como "preconceitos", ou simplesmente
como os dados de um tempo, o modo de compreensão de nossos predecessores, de revelar suas
relações com outros elementos da mesma época, e de inscrever sua historiografia na história
que constitui o objeto de nossa própria historiografia40
.
Sob este aspecto, os modos de compreensão próprios da historiografia de ontem se
encontram na mesma posição que as ideologias ou as crenças cristãs. Estas últimas representam
apenas uma distância maior percorrida pela convicção que forneceu a um passado os seus
princípios de inteligibilidade, e que hoje deve ser compreendida de acordo com outros quadros
de referência. O afastamento entre essas duas posições indica o próprio problema do
procedimento historiográfico: a relação entre o "sentido" que se tornou um objeto e o
"sentido" que hoje permite compreendê-lo.
Desde que se procure o "sentido histórico" de uma ideologia ou de um acontecimento,
encontram-se não apenas métodos, ideias ou uma maneira de compreender, mas a sociedade à
qual se refere a definição daquilo que tem "sentido". Se existe, pois, uma função histórica, que
especifica a incessante confrontação entre um passado e um presente, quer dizer, entre aquilo
que organizou a vida ou o pensamento e aquilo que hoje permite pensá-los, existe uma série
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indefinida de "sentidos históricos". A crença oferece apenas um caso extremo de relação entre
dois sistemas de compreensão através da passagem de uma sociedade ainda religiosa (a do
século XVI, por exemplo) a uma sociedade, a nossa, onde o "pensávei"se secula-rizou.
III. A HISTÓRIA, DISCURSO E REALIDADE
Duas posições do real.
Se recapitularmos esses dados, a situação da historiografia faz surgir a interrogação
sobre o real em duas posições bem diferentes do procedimento científico: o real enquanto é o
conhecido (aquilo que o historiador estuda, compreende ou "ressuscita" de uma sociedade
passada) e o real enquanto implicado pela operação científica (a sociedade presente a qual se
refere a problemática do historiador, seus procedimentos, seus modos de compreensão e,
finalmente, uma prática do sentido). De um lado o real é o resultado da análise e, de outro, é o
seu postulado. Estas duas formas da realidade não podem ser nem eliminadas nem reduzidas
uma a outra. A ciência histórica existe, precisamente, na sua relação. Ela tem como obje-tivo
próprio desenvolvê-la em um discurso. Certamente, segundo os períodos ou os grupos, ela se
mobiliza, de preferência, em um de seus dois pólos.
Com efeito, existem dois tipos de história, conforme prevaleça a atenção a uma destas
posições do real. Mesmo que as imbricações dessas duas espécies predominem nos casos
puros, elas são facilmente reconhecíveis. Um primeiro tipo de história se interroga sobre o que
é pensável e sobre as condições de compreensão; a outra pretende encontrar o vivido, exumado
graças a um conhecimento do passado.
A primeira dessas problemáticas examina sua capacidade de tornar pensáveis os
documentos de que o historiador faz um inventário. Ela obedece à necessidade de elaborar
modelos que permitam constituir e compreender séries de documentos: modelos econômicos,
modelos culturais, etc. Esta perspectiva, cada vez mais comum hoje em dia, leva o historiador
às hipóteses metodológicas de seu trabalho, à sua revisão através de intercâmbios
pluridisciplinares, aos princípios de inteligibilidade suscetíveis de instaurar pertinências e de
produzir "fatos" e, finalmente, à sua situação epistemológica presente no conjunto das
pesquisas características da sociedade onde trabalha41
.
A outra tendência privilegiada a relação do historiador com um vivido, quer dizer, a
possibilidade de fazer reviver ou de "ressuscitar" um passado. Ela quer restaurar um
esquecimento e encontrar os homens através dos traços que eles deixaram. Implica, também,
um gênero literário próprio: o relato, enquanto a primeira, muito menos descritiva, confronta
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mais as séries que resultam de diferentes tipos de métodos.
Entre estas duas formas existe tensão, mas não oposição. Pois o historiador está numa
posição instável. Se dá prioridade a um resultado "obje-tivo", se visa colocar no seu discurso a
realidade de uma sociedade passada e a reviver um desaparecido, ele reconhece, entretanto,
nessa reconstituição, a ordem e o efeito de seu próprio trabalho. O discurso destinado a dizer o
outro permanece seu discurso e o espelho de sua operação. Inversamente, quando ele retorna
às suas práticas e lhes examina os postulados para renová-las, o historiador descobre nelas
imposições que se originaram bem antes do seu presente e que remontam a organizações
anteriores, das quais, seu trabalho é o sintoma e não a fonte. Da mesma forma que o "modelo"
da sociologia religiosa implica (entre outros) o novo estatuto da prática ou do conhecimento
no século XVII, também os métodos atuais trazem, apagadas como acontecimentos e
transformadas em códigos ou em problemáticas de pesquisa, antigas estruturações e histórias
esquecidas. Assim, fundada sobre o corte entre um passado, que é seu objeto, e um presente,
que é o lugar de sua prática, a história não pára de encontrar o presente no seu objeto. e o
passado, nas suas práticas. Ela é habitada pela estranheza que procura, e impõe sua lei às
regiões longínquas que conquista, acreditando dar-lhes a vida.
O intermédio, situação da história e problema do real.
Um incessante trabalho de diferenciação (entre acontecimentos, entre períodos, entre
dados ou entre séries, etc.) é, em história, a condição de todo relacionamento dos elementos
distintos e, portanto, de sua compreensão. Mas este trabalho se apóia na diferença entre um
presente e um passado. Supõe sempre o ato que propõe uma novidade, desligando-se de uma
tradição, para considerá-la como um objeto de conhecimento. O corte definitivo em qualquer
ciência (uma exclusão é sempre necessária ao estabelecimento de um rigor) toma, em história, a
forma de um limite original, que constitui uma realidade como "passada" e que se explicita nas
técnicas proporcionadas à tarefa de "fazer história". Ora, esta cesura parece negada pela
operação que funda, já que este "passado" retorna na prática historiográfica. O morto ressurge
dentro do trabalho que postulava seu desaparecimento e a possibilidade de analisá-lo como um
objeto.
O estatuto desse limite, necessário e denegado, caracteriza a história como ciência
humana. Efetivamente, ela é humana, não enquanto tem o homem por objeto, mas porque sua
prática reintroduz no "sujeito" da ciência aquilo que se havia diferenciado como seu objeto.
Seu funcionamento remete os dois pólos do real, um ao outro, A atividade produtora e o
período conhecido se alteram reciprocamente. A cesura que foi colocada entre eles por uma
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decisão instauradora do trabalho científico (e fonte de "objetividade") começa a mover-se. Ela
se inverte, se desloca, avança. Este movimento se deve, precisamente, ao fato de que ela foi
proposta e de que não pode ser mantida.
Durante a movimentação que desloca os termos da relação inicial, esta própria relação
é o lugar da operação científica. Mas é um lugar cujas mutações, como um flutuador no mar,
seguem os movimentos mais amplos das sociedades, suas revoluções económicas e políticas, as
relações complexas entre gerações ou entre classes, etc. A relação científica reproduz o
trabalho que assegura a certos grupos a dominação sobre os outros, a ponto de fazer deles
objetos de sua posse; mas atesta, também, o trabalho dos mortos que, por uma espécie de
energia cinética, se perpetua, silenciosamente, com as sobrevivências de estruturas antigas,
"continuando", diz Marx, sua "vida vegetativa" (Fortvegetation42
).
O historiador não escapa dessas latências e dessa gravidade de um passado ainda
presente (inércia que o "tradicionalista" chamará de "continuidade", tendo a esperança de
apresentá-la como a "verdade" da história). Ele não pode, entretanto, fazer abstração dos
distanciamentos e das exclusividades que definem a época ou a categoria social à qual
pertence. Em sua operação as permanências ocultas e as rupturas instauradoras formam
amálgama. A história o mostra tanto mais quanto tem por tarefa de as diferenciar43
. A frágil e
necessária fronteira entre um objeto passado e uma práxis presente se movimenta, desde que,
ao postulado fictício de um dado a compreender, se substitua o exame de uma operação
sempre afetada por determinismos e sempre a retomar, sempre dependente do lugar onde se
efetua numa sociedade e, não obstante, especificada por um problema, métodos e uma função
próprios.
A história está, pois, em jogo nessas fronteiras que articulam uma sociedade com o seu
passado e o ato de distinguir-se dele; nessas linhas que traçam a imagem de uma atualidade,
demarcando-a de seu outro, mas que atenua ou modifica, continuamente, o retorno do
"passado". Como na pintura de Miró, o traço que desenha diferenças através de contornos e que
torna possível uma escrita (um discurso e uma "historicização") é atravessado por um
movimento que lhe é contrário. Ele é vibração de limites. A relação que organiza a história é
uma relação mutável, na qual nenhum dos (dois) termos é o referente estável.
A relação com o outro.
Essa situação fundamental se manifesta hoje de várias maneiras, relativas à forma ou ao
conteúdo da historiografia.
Por exemplo, a análise de duração sócio-econômica ou cultural, breve ou longa, é
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precedida, na obra de história, desses Prefácios onde o historiador conta o percurso de uma
pesquisa. O livro, feito de duas metades desiguais, mas simbólicas, acrescenta, à história de um
passado, o itinerário de um procedimento. Já Lucien Febvre inaugurou a apresentação de
Lutero pelo exame de sua própria situação de historiador na série de estudos consagrados ao seu
objeto (1928). Ele se inscreveu na evolução de uma história presente, ao mesmo tempo em que
colocou Lutero numa série análoga, mais antiga. A partir daí não é mais, apenas, o lugar de
onde fala que o historiador particulariza, mas o movimento que fez, ou o trabalho que se
operou nos seus métodos e nas suas questões. Pierre Vilar e Emmanuel Le Roy Ladurie, cujas
obras dominam a historiografia presente, justapõem, assim, o traçado de uma curva
metodológica de seu empreendimento e aquele das transformações estruturais da Catalunha ou
do Languedoc durante quatro séculos44
. A verdade da história está nesse "intermédio", cujos
termos uma obra propõe sem poder criar um objeto que se substitua a essa relação. Em
Soriano, a análise dos contos de Perrault torna-se ela própria o relato ou a confissão de uma
pesquisa, de maneira que o objeto de estudo, fragmentado por sondagens metodológicas
heterogêneas, encontra sua unidade na operação onde se combinam sem cessar as ações do
autor e as resistências de seu material45
.
Dessa tensão interna, motor da explicação histórica, é preciso aproximar um outro
aspecto, não menos surpreendente, das pesquisas atuais: a confrontação de um método
interpretativo com seu "outro" ou, mais precisamente, o ato de evidenciar a relação que liga
um modo do compreender com o incompreensível que ele "faz surgir". Por exemplo, a imensa
erudição cultural de Alphonse Dupront extrai, por toda parte da história, um "pânico",
profundidade selvagem e sagrada. Se, às vezes, essa "alma pânica do coletivo", esta pulsão
originária, ou esse neutro opaco de um "mental coletivo" toma ares de um referente, de um
significado ou de um solo da história, é por uma espécie de ficção que se apóia nas concepções
mais discutíveis de Otto ou de Jung. Pois, na realidade, esse "pânico" é o nome que um
conhecimento prodigiosamente extenso dá ao seu próprio limite, ao desconhecido que revela
e encontra no seu avanço, à necessidade que faz aparecer o progresso de uma ciência. Uma
espessura da história é assim designada (e não eliminada, como alhures), mas por um
"irracional" conformado à investigação que se colocou sob o signo de um conhecimento das
idéias e das formas culturais: "O não-histórico, diz Dupront, é indispensável ao histórico46
".
Pierre Vilar apresenta um fenômeno análogo: a própria existência do seu assunto — a
Catalunha — é o enigma que uma rigorosa análise sócioeconómica faz surgir. De que maneira a
Catalunha se constitui como unidade própria? Como esta unidade muda com o aparecimento,
também ele problemático, da unidade "espanhola"? Com estas questões a notável
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demonstração de P. Vilar, que converteu a teoria económica em análise histórica para apreender
uma "história profunda", a partir das variações económicas, encontra o seu outro. Ela
desemboca em enigmas: "a formação de grupos com forte consciência de comunidade", a
natureza da "personalidade regional", ou nacional, e de um "querer político47
". O rigor de sua
interpretação segrega, como ser resto ou como aquilo que se lhe torna incompreensível, a
unidade de consciência cujas condições e funcionamento foram, não obstante, tão
vigorosamente esclarecidos.
Não é surpreendente que o problema aberto pela irrupção do outro nos procedimentos
científicos apareça, igualmente, nos seus objetos. A pesquisa não se põe mais, apenas, em busca
das compreensões que tiveram êxito. Retoma aos objetos que não compreende mais. Procura
medir aquilo que perde, fortalecendo suas exigências e seus métodos. A História da Loucura
criou o signo desse momento em que uma cientificidade ampliada se confronta com as zonas
que abandona como seu resíduo ou reverso ininteligível48
. A ciência histórica vê crescer, com seu
progresso, as regiões silenciosas do que não atinge. É, também, o momento em que outras
ciências fazem a dedução dos prejuízos que têm origem nos seus sucessos. O livro de Michel
Foucault marca essa interrogação. Ele a exprime através de um objeto perdido pela história,
mas impossível de suprimir: a loucura, constituída pelas exclusões da razão. Certamente,
depois disso, o esforço do autor para dar à loucura sua linguagem própria não pode chegar
senão a um fracasso e a se contradizer; ele vacila entre a "recuperação" da loucura numa
compreensão de um novo tipo, e o crescimento indefinido do signo abstrato (a loucura),
destinado a designar uma casa vazia, que não poderia obter da historiografia seu
preenchimento49
. Este vazio, porém, permanece aberto diante da razão científica sob a forma de
objetos que ela contorna sem atingir. Os estudos consagrados à feitiçaria, ao milagre, à
loucura, à cultura "selvagem", etc. se multiplicaram depois disto. Eles designam um "vis-à-
vis" cuja inquietante estranheza a etnologia e a psicanálise permitiram â história explicitar. A
"razão" científica está indissoluvelmente casada com a realidade que retoma, como sua sombra
e seu outro, no momento em que a exclui.
Essa mobilização da historiografia nos limites que especificam e relativizam seu discurso
se reconhece, ainda, sob a forma mais epistemológica dos trabalhos consagrados aos modos de
diferenciação entre ciências. Também, nesse caso, Michel Foucault tem valor de signo.
Retomando as análises anteriores, as de Canguilhem em particular, mostra como a história se
recorta (e se define) em função de uma combinação sincrônica de discursos que se
contradistinguem mutuamente e remetem às regras comuns de diferenciação50
. Quaisquer que
sejam as posições próprias do autor, sua obra descreve e precipita o movimento que leva a
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história a se tornar um trabalho sobre o limite: a se situar com relação a outros discursos, a
colocar a discursividade na sua relação com um eliminado, a medir os resultados em função dos
objetos que lhe escapam; mas também, a instaurar continuidades isolando séries, a
particularizar métodos, diferenciando os objetos distintos que ela discerne num mesmo fato, a
revisar e a comparar as periodizações diferentes, que fazem aparecer diversos tipos de análise,
etc. De agora em diante, "o problema não é mais da tradição e do vestígio, mas do recorte e do
limite".
Falemos antes de limite ou de diferença do que de descontinuidade (termo muito
ambíguo porque parece postular a evidência de um corte na realidade). É preciso dizer, então,
que o limite se torna, "ao mesmo tempo instrumento e objeto de pesquisa51
". Conceito
operatório da prática historiográfica, ele é o instrumento do seu trabalho e o lugar do exame
metodológico.
O discurso da história.
Mais um passo e a história será encarada como um texto que organiza unidades de
sentido e nelas opera transformações cujas regras são determináveis. Efetivamente, se a
historiografia pode recorrer aos procedimentos semióticos para renovar suas práticas, ela
mesma se lhe oferece como um objeto, na medida em que constitui um relato ou um discurso
próprio.
Talvez, até agora, os ensaios consagrados à história, nesta perspectiva, não sejam
absolutamente convincentes, de vez que postulam a univocidade do gênero "histórico" através
dos tempos. Assim faz Roland Barthes quando se pergunta se "a narração dos acontecimentos
passados, submetida... à sanção da "ciência" histórica, colocada sob a caução imperiosa do
"real", justificada por princípios de exposição "racional", ... difere verdadeiramente, por algum
traço específico, por uma pertinência indubitável, da narração imaginária, tal como se pode
encontrar na epopéia, no romance, no drama52
". Querer responder a esta questão pelo simples
exame de alguns "historiadores clássicos" — Heródoto, Maquiavel, Bossuet e Miche-let —, não
significa supor, muito rapidamente, a homologia entre estes discursos; lançar mão, muito
facilmente, dos exemplos mais próximos da narração mais afastada das pesquisas presentes;
tomar o discurso fora do gesto que o constitui, numa relação específica com a realidade
(passada) na qual ele se distingue, e não levar em consideração, por conseguinte, os modos
sucessivos dessa relação; finalmente, denegar o movimento atual que faz deste discurso
científico a exposição das condições de sua produção bem mais do que "a narração dos
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acontecimentos passados"?
Resta que, através dessas obras "clássicas", o estatuto de um escrito "histórico" parece
definido por uma combinação de significações articuladas e apresentadas apenas em termos de
fatos. Efetivamente, para Roland Barthes (se deixarmos de lado o detalhe de sua
argumentação linguística) os "fatos" de que fala a história funcionam como indícios. Através
das relações estabelecidas entre fatos, ou da elevação de alguns dentre eles ao valor de
sintomas para uma época inteira, ou da "lição" (moral ou política) que organiza o discurso
inteiro, existe em cada história um processo de significação que visa sempre "preencher" o
sentido da História": "o historiador é aquele que reúne menos os fatos do que os
significantes53
". Ele parece contar os fatos, enquanto efetivamente, enuncia sentidos que,
aliás, remetem o notado (aquele que é retido como pertinente pelo historiador) a uma
concepção do notável. O significado do discurso historiográfico são estruturas ideológicas ou
imaginárias; mas elas são afetadas por um referente exterior ao discurso, por si mesmo
inacessível: R. Barthes chama este artifício próprio ao discurso historiográfico, "o efeito do
real" que consiste em esconder sob a ficção de um "realismo" uma maneira, necessariamente
interna à linguagem, de propor um sentido. "O discurso historiográfico não segue o real, não
fazendo senão significá-lo repetindo sem cessar aconteceu, sem que esta asserção possa jamais
ser outra coisa do que o avesso significado de toda a narração histórica54
".
Evocando "o prestígio do aconteceu" a propósito da história, R. Barthes o relaciona
com o desenvolvimento atual do romance realista, do diário íntimo, das crônicas, dos museus,
da fotografia, dos documentários, etc. Efetivamente, todos estes discursos se articulam sobre
um real perdido (passado); reintroduzem como relíquia, no interior de um texto fechado, a
realidade que se exilou da linguagem. Parece que não se podendo mais atribuir às palavras uma
relação efetiva com as coisas que designam, elas se tornam tanto mais aptas para formular
sentidos, quanto menos limitadas são por uma adesão real. Também, mais do que um retorno
ao real, o "realismo" exprime a disponibilidade de uma população de palavras relativas a fatos
particulares e, de agora em diante, utilizáveis na produção de lendas ou de ficções. Pois, o
vocabulário do "real" integra o material verbal susce-tível de ser organizado no enunciado de
um pensável ou de um pensado. Não mais existe o privilégio de ser o afloramento dos fatos, de
fazer emergir, através deles, uma Realidade originária, nem de, por isso, ser aureolado pelo
poder de exprimir, ao mesmo tempo, a "própria coisa" e o Sentido que viria nela.
Deste ponto de vista, é possível dizer que "o signo da História é de agora em diante
menos o real do que o inteligível55
". Mas não qualquer inteligível. "A supressão da narrativa na
ciência histórica atual" atesta a prioridade concedida, por esta ciência, às condições nas quais
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elabora o "pensá-vel" (este é o sentido de todo o movimento "estruturalista"). E esta análise,
que versa sobre os métodos, quer dizer, sobre a produção do sentido, é indissociável, em
história, do seu lugar e de um objeto: o lugar é, através dos procedimentos, o ato presente desta
produção e a situação que hoje o torna possível, determinando-o; o objeto, são as condições
nas quais tal ou qual sociedade deu a si mesma um sentido através de um trabalho que é
também ele, determinado. A história não é uma crítica epistemológica. Ela permanece um
relato. Conta seu próprio trabalho e, simultaneamente, o trabalho legível num passado. Não o
compreende, no entanto, a não ser elucidando sua própria atividade produtiva e,
reciprocamente, compreen-de-se a si mesma no conjunto e na sucessão de produções das quais
ela própria é um efeito.
Se, pois, o relato "daquilo que aconteceu" desapareceu da história científica (para, em
contrapartida, aparecer na história vulgarizada), ou se a narração toma o aspecto de uma
ficção própria de um tipo de discurso, não se poderia concluir daí o desaparecimento da
referência ao real. Esta referência foi, ao invés, deslocada. Ela não é mais imediatamente dada
pelos objetos narrados ou "reconstituídos". Está implicada na criação de "modelos" (destinados
a tornar os objetos "pensáveis") proporcionados às práticas, pela confrontação com o que lhes
resiste, o que os limita e exige outros modelos, finalmente, pela elucidação daquilo que tornou
possível essa atividade inscrevendo-a numa economia particular (ou histórica), da produção
social.
Sob este ponto de vista, pode-se pensar com A. J. Greimas que com relação aos modelos
capazes de dar conta do funcionamento de uma linguagem, ou se preferirmos, com relação à
análise das combinações possíveis, na organização e transformação de elementos em número
finito, o histórico surge para a formulação estruturalista "com uma limitação de suas
possibilidades de manifestação". "Da mesma forma que a estrutura atômica, diz ele, se concebe
facilmente como uma combinatória cujo universo atualmente manifestado não passa de uma
realização parcial, a estrutura semântica, imaginada segundo um modelo comparável,
permanece aberta e não recebe o seu fecho senão da história56
".
O limite se encontra no cerne da ciência histórica, designando o outro da razão ou do
possível. É sob este aspecto que o real reaparece no interior da ciência. Poder-se-ia dizer que a
distinção entre ciências "exatas" e ciências "humanas" não mais consiste numa diferença de
formalização ou de rigor da verificação, mas numa separação das disciplinas de acordo com o
lugar que oferecem, umas ao possível e outras ao limite. Em todo caso, sem nenhuma dúvida,
existe, ligada ao trabalho do etnólogo ou do historiador, uma fascinação pelo limite ou, o que é
quase a mesma coisa, pelo outro.
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Mas o limite não é apenas aquilo que o trabalho histórico organizado pela vontade de
tornar pensável, encontra constantemente diante de si; ele se prende também ao fato de cada
procedimento interpretativo ter sido instaurado para poder definir os procedimentos adequados
a um modo de compreensão. Uma nova determinação do "pensável" supõe, por detrás de si
mesma, situações económicas e sócio-culturais que a tornaram possível. Toda produção de
sentido reconhece um evento que aconteceu e que a permitiu. Mesmo as ciências exatas são
levadas a exumar sua relação com a história, quer dizer, o problema da relação entre seu
discurso e aquilo que ele implica sem o dizer — entre uma coerência e uma génese. No discurso
histórico, a interrogação a respeito do real retorna, pois, não apenas com a articulação
necessária entre possibilidades e suas limitações, ou entre os universais do discurso e a
particularidade ligada aos fatos (qualquer que seja o seu recorte57
), mas sob a forma da origem
postulada pelo desenvolvimento de um modo do "pensável". A prática científica se apóia numa
práxis social que independe do conhecimento. O espaço do discurso remete a uma tem-
poralidade diferente daquela que organiza as significações de acordo com as regras
classificatórias da conjugação. A atividade que produz sentido e que instaura uma
inteligibilidade do passado é, também, o sintoma de uma atividade sofrida, o resultado de
acontecimentos e de estruturações que ela transforma em objetos pensáveis, a representação de
uma gênese organizadora que lhe escapa.
IV. A HISTÓRIA COMO MITO
A história cairia em ruínas sem a chave de abóbada de toda a sua arquitetura: a
articulação entre o ato que propõe e a sociedade que reflete; o corte, constantemente
questionado, entre um presente e um passado; o duplo estatuto de um objeto, que é um "efeito
do real" no texto e o não-dito implicado pelo fechamento do discurso. Se ela deixa seu lugar
— o limite que propõe e que recebe — ela se decompõe para ser apenas uma ficção (a
narração daquilo que aconteceu) ou uma reflexão epistemológica (a elucidação de suas regras
de trabalho). Ela, porém, não é nem a lenda à qual foi reduzida por uma vulgarização, nem a
criteriologia que faria dela a única análise crítica de seus procedimentos. Ela está entre estas
duas coisas, no limite que separa as suas reduções, como Charles Chaplin se definia, no final
de "The Pilgrin ", através da corrida sobre a fronteira mexicana, entre dois países que o
perseguiam e dos quais seus ziguezagues desenhavam ao mesmo tempo a diferença e a costura.
Também ele lançado, seja para o presente, seja para o passado, o historiador faz a
experiência de uma práxis que é inextricavelmente a sua e a do outro (uma outra época ou a
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sociedade que o determina hoje). Ele trabalha a própria ambiguidade que designa o nome de
sua disciplina, Historie e Geschichte: ambiguidade, afinal, rica de sentido. Com efeito, a
ciência histórica não pode desligar, inteiramente, a sua prática daquilo que escolheu como
objeto, e tem como tarefa indefinida tornar precisos os modos sucessivos dessa articulação.
Sem dúvida, essa é a razão pela qual a história tomou o lugar dos mitos "primitivos" ou
das teologias antigas desde que a civilização ocidental deixou de ser religiosa e que, de maneira
política, social ou científica, ela se definiu por uma práxis que envolve, igualmente, suas
relações consigo mesma e com outras sociedades. O relato dessa relação de exclusão e de
atração, de dominação ou de comunicação com o outro (posto preenchido alternadamente por
uma vizinhança ou por um futuro) permite à nossa sociedade contar-se, ela própria, graças à
história. Ele funciona como o faziam ou fazem ainda, em civilizações estrangeiras, os relatos de
lutas cos-mogônicas, confrontando um presente a uma origem.
Essa localização do mito não aparece apenas com o movimento que leva as ciências
"exatas" ou "humanas" em direção à história (que permite aos cientistas se situarem num
conjunto social58
), ou com a importância da vulgarização histórica (que torna pensável a
relação de uma ordem com a sua mudança, ou que a exorciza, na base de: "Foi sempre assim"),
ou ainda com as mil ressurgências da genial identificação, estabelecida por Miche-let, entre a
história e a autobiografia de uma nação, de um povo ou de um partido. A história tornou-se
nosso mito por razões mais fundamentais, do que as resumidas em algumas das análises
precedentes.
Identidade por diferenciação.
O discurso histórico explicita uma identidade social, não como "dada" ou estável, mas
enquanto se diferencia de uma época anterior ou de uma outra sociedade. Ele supõe a ruptura que
transforma uma tradição em um objeto passado, da mesma forma que a história do "Antigo
Regime" supõe a Revolução59
. Mas essa relação com a origem, próxima ou longínqua, da qual
uma sociedade se separa sem poder eliminá-la é analisada pelo historiador, que faz dela o lugar
da sua ciência. Em um texto que guarda ainda a forma de relato, ele articula a prática de uma
nova inteligibilidade e a remanescência de passados diferentes (que sobrevivem, não apenas nos
documentos, mas nesse "arquivo" particular que é o próprio trabalho histórico).
Se, por um lado, a história tem como função exprimir a posição de uma geração com
respeito às precedentes, dizendo: "Eu não sou isto", acrescenta sempre, a esta afirmativa, um
complemento não menos perigoso, que faz uma sociedade confessar: "Eu sou outra coisa além
daquilo que quero, e sou determinada por aquilo que denego". A história atesta uma autonomia
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e uma dependência cujas proporções variam segundo os meios sociais e as situações políticas
que presidem à sua elaboração. Sob a forma de um trabalho imanente ao desenvolvimento
humano, assume o lugar dos mitos através dos quais uma sociedade representava as relações
ambíguas com as suas origens e, através de uma história violenta dos Começos, suas relações
com ela mesma.
A origem da linguagem: o morto e o vivo.
Apesar de seus exórdios ou de seus prefácios na primeira pessoa (sob forma de Ichb .
icht) que tem valor de intróito iniciático e apresentam um "naqueles tempos", graças à
distância notada desde o tempo do autor, a história é um discurso na terceira pessoa. Batalhas,
políticas ou salários são o seu sujeito-objeto, mas como escreve Roland Barthes, "ninguém está
lá para assumir o enunciado60
". O discurso sobre o passado tem como estatuto ser o discurso do
morto. O objeto que nele circula não é senão o ausente, enquanto que o seu sentido é o de ser
uma linguagem entre o narrador e os seus leitores, quer dizer, entre presentes. A coisa
comunicada opera a comunicação de um grupo com ele mesmo pelo remetimento ao terceiro
ausente que é o seu passado. O morto é a figura objetiva de uma troca entre vivos. Ele é o
enunciado do discurso que o transporta como um objeto, mas em função de uma interlocuação
remetida para fora do discurso, no não-dito.
No modo dessas conjugações com o ausente, a história se torna o mito da linguagem.
Ela torna manifesta a condição do discurso: uma morte. Nasce, com efeito, da ruptura que
constitui um passado distinto de seu empreendimento presente. Seu trabalho consiste em criar
ausentes, em fazer, de signos dispersos na superfície de uma atualidade, vestígios de realidades
"históricas" ausentes porque outras.
Mas o ausente é também a forma presente da origem61
. Existe mito porque, através da
história, a linguagem se confrontou com a sua origem. Na verdade a confrontação adquire,
aqui, aspectos distintos: é a relação do discurso histórico com tal ou qual período que foi
privilegiado como obje-to de estudo, na série linear de uma cronologia; ou ainda o movimento
que remete esse período ao seu aquém mais primitivo, e volta, indefinidamente, até um
"começo" imaginário, um umbral fictício, mas necessário, para que se possa retornar ao longo
dos tempos e classificá-los, etc. Porém, uma relação mais próxima e mais fundamental é
significada por esse zero inicial, é a relação de cada discurso com a morte que o torna possível.
A origem é interna ao discurso. Ela é precisamente aquilo de que ele não pode fazer um
objeto enunciado. Esse discurso se define enquanto dizer, como articulado com aquilo que
aconteceu além dele; tem como particularidade um início que supõe um objeto perdido; tem
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como função, entre homens, a de ser a representação de uma cena primitiva apagada, mas
ainda organizadora. O discurso não deixa de se articular com a morte que postula, mas que a
prática histórica contradiz. Pois, falar dos mortos é também negar a morte e, quase, desafiá-la.
Igualmente diz-se que a história os "ressuscita". Esta palavra é um engodo: ela não ressuscita
nada. Mas evoca a função outorgada a uma disciplina que trata a morte como um objeto do
saber e, fazendo isto, dá lugar à produção de uma troca entre vivos.
Esta é a história. Um jogo da vida e da morte prossegue no calmo desdobramento de um
relato, ressurgência e denegação da origem, desvela-mento de um passado morto e resultado de
uma prática presente. Ela reitera, um regime diferente, os mitos que se constroem sobre um
assassinato ou uma morte originária, e que fazem da linguagem o vestígio sempre remanescente
de um começo tão impossível de reencontrar quanto de esquecer.
O dizer e o fazer.
Finalmente, a história se refere a um fazer que não é apenas o seu ("fazer história"),
mas aquele da sociedade que especifica uma produção científica. Se ela permite a um agir
comum dar-se uma linguagem técnica própria, remete a esta práxis social como àquilo que
torna possíveis os textos organizados por uma nova inteligibilidade do passado.
Essa relação do discurso com um fazer é interna ao seu objeto, já que, de um modo ou
de outro, a história fala sempre de tensões, de redes de conflitos, de jogos de força. Mas é
também externo, na medida em que a forma de compreensão e o tipo do discurso são
determinados pelo conjunto sócio-cultural mais amplo que designa à história seu lugar
particular. As sociedades estáveis dão lugar a uma história que privilegia as continuidades e
tendem a dar valor de essência humana a uma ordem solidamente estabelecida. Nas épocas de
movimento ou de revolução, as rupturas de ação coletiva ou individual se tornam o princípio
de inteligibilidade histórica. Mas essa referência à organização social do agir — mobilizado pelo
desenvolvimento de uma ordem política ou pela fundação de novos regimes — não intervém
senão indiretamente na análise científica. Introduz-se nela, simbolicamente, com uma tópica do
inteligível: segundo os períodos da historiografia, será o acontecimento, ou a série contínua, o
ponto de partida e a definição do inteligível. Um tipo de sociedade se trai, também, na maneira
pela qual se combinam a discursividade do "compreender" e a estranheza "daquilo que
acontece"; por exemplo, o modelo sócio-econômico será preferível à biografia, ou ocorrerá o
inverso, etc.
Espelho do fazer que hoje define uma sociedade, o discurso histórico é ao mesmo
tempo sua representação e seu reverso. Ele não é o todo - como se o saber fornecesse a
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realidade ou a fizesse aceder ao seu grau mais elevado! Esse lance maior do conhecimento está
ultrapassado. Todo o movimento da epistemologia contemporânea, no campo das ciências ditas
"humanas", o contradiz e, antes, humilha a consciência. O discurso histórico não é senão uma
cédula a mais numa moeda que se desvaloriza. Afinal de contas não é mais do que papel. Mas
seria falso lançá-lo do excesso de honrarias ao excesso de indignidade. O texto da história,
sempre a retomar, duplica o agir como seu rastro e sua interrogação. Articulado com aquilo
que não é — agitação de uma sociedade mas também a própria prática científica —, ele
sublinha o enunciado com um sentido que se combina simbolicamente com o fazer. Não
substitui a práxis social, mas é sua testemunha frágil e sua crítica necessária.
Destronado, do lugar para onde o havia alçado a filosofia que, desde o tempo das
Luzes ou do idealismo alemão, fazia dele a manifestação última do Espírito do mundo, sem
dúvida o discurso historiográfico troca o lugar do rei pelo da criança da estória, apontando
uma verdade que todos faziam questão de esquecer. Esta é, também, a posição do mito,
reservado à festa que abre no trabalho o parêntese de uma verdade. Sem nada retirar das
funções previamente sublinhadas, é necessário não negligenciar aquela que liga. o dizer histórico
ao fazer social, sem identificar o primeiro com o segundo: ela lembra ao trabalho sua relação
com a morte e com o sentido; ela situa a verdadeira historiografia ao lado das questões
indiscretas a serem abertas no imenso movimento da práxis.
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NOTAS
1 A teologia articula o ato comunitário da fé, e, nas suas antigas definições, ela
era o aprofundamento da própria experiência.
2 Em história, como no conjunto das ciências humanas, os antigos métodos de
observação foram substituídos pelo que Lévi-Strauss chamou "a experimentação nos
modelos"; a determinação de tipos de análise supera a dos meios ou dos lugares de
informação. Cf. Jean Viet, Les sciences de Vhommeen France, Mouton, p. 163-175.
3 Aqui como em muitos outros casos (cf. por "manifestação", "aparição" e
até por "ação"), uma pressão da linguagem corrente leva o sentido a se transformar
do ato em seu resultado, do ativo do fazer ao passivo do ser visto, do gesto à sua ima
gem rio espelho. Uma clivagem crescente entre a pesquisa e a vulgarização ocorre tan
to na história quanto na teologia: as pesquisas tomam a forma de meios específicos e
diferenciados por procedimentos próprios; mas, na sua "vulgarização", a história e a
teologia se tornam objetos de saber ou de curiosidade, distribuídos e impostos a um
"público" de consumidores que participa cada vez menos da produção.
4 Muitas das teses ditas de teologia, é necessário reconhecê-lo, são simples
mente análises literárias de um autor, e não se distinguem de qualquer outro estudo
literário senão pelo fato de terem um objeto religioso - como se "fazer teologia"
fosse descrever as idéias teológicas contidas em uma obra.
5 Assim, em seu grande livro Chrétiens sans Église. La conscience religieuse et
lè lien confessionnel au XVII? siècle (Gallimard, 1969), o marxista Leszek Kolako-
wski quer tomar a sério o fato doutrinário e religioso como tal: "Do ponto de vista de
uma interpretação materialista da história, pode-se admitir a irredutibilidade dos fe
nômenos religiosos, reconhecendo ao mesmo tempo que se pode explicá-los genetica
mente por outros... Julgamos que sua especificidade [aquela das "idéias religiosas"]
pode ser compreendida enquanto especificidade, levando em conta o conjunto mais
rico que é a totalidade das necessidades sociais da época, nas suas inter-relações"
(p. 49 e 51). Cf., sobre os problemas de método colocados pelo livro, R. Mandrou,
"Mysticisme et méthode marxiste", em Politique aujourdfiui, février 1970, p. 51 ss. e
M. de Certeau, VAbsent de 1'histoire, Mame, 1973, p. 109-115.
6 J. Orcibal, Les Origines du jansenisme, Vrin, 5 vol., 1947-1962; L. Gold-
mann, Le Dieu cache, 1956, etc. e M. de Certeau, "De Sait-Cyran ao jansenisme" em
Christus, 10,4963, p. 399-417.
7 Cf. a este respeito E. M. Carlson, The Reinterpretations ofthe Reformation, Philadelphie, 1948; J. V. M.
Pollet, "Interprétation de Luther dans 1'Allemagne con-temporaine", em Revue de sciences religieuses, 1953, p.
147-161; H. J. Grimm, "Luther Research since 1920", em Journal of Modem History, 32, 1960, junho; R. H.
Bainton, "Interpretations of the Reformation", em American HlstoricalReview, 36, 1960, outubro; J. Delumeau,
Naissance et afflrmatton de la Reforme, P.U.F., 1965, principalmente p. 281-300; ou os Bulletins de R. Stauffer
e Th. Siiss, em Buli. de la Société de 1'histoire du protestantisme français, 113,1967, p. 313-346 e 405 ss.
8 Cf. M. de Certeau, VAbsent de 1'histoire, Mame, Í973, p. 73-108: "Henri Bremond, historien d'une
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absence".
9 Infelizmente Van Gennep (t 1956) não fora ainda o objeto do estudo de conjunto que reclamava a
"Homenagem a A. Van Gennep", de Pierre Marot em Arts et traditions populaires, 5, 1957, p. 113 ss. (A partir
daí, esta lacuna foi preenchida por Nicole Belmont, Amold Van Gennep, Payot, 1974.)
10 Acerca da obra de G. Le Brás, cf. os estudos de Henri Desroche em Revue d'histoire et de philosophie
religieuse, 2, 1954, p. 128-158, e de François Isambert, em Cahiers intemationaux de sociologie, 16, 1956, p.
149-169.
11 O primeiro artigo de G. Le Bras sobre "a prática religiosa na França" tinha por objeto "a vida popular do
catolicismo"; por modelo "o folklorista"; e como ponto de partida, "o plano de pesquisa proposto por Saíntyves".
Ele foi publicado, aliás, na Revue de folklore français, 4, 1933, p. 193-206.
12 Na sua Introduction à 1'histoire de la pratique religieuse en France (P.U.F., 1945), G. Le Brás coloca o
problema da relação entre a "prática" e as "crenças" (t. I, p. 116-120), mas, para ele, este plural designa "a fé".
Reagindo contra o excesso de estudos consagrados às doutrinas (cf. seu artigo de 1933), ele curto-circuitou as
ideologias para consignar o enigma da relação entre "a prática" (= o sociológico, o visível, diz ele) e "as crenças"
(o que não é para ele um conceito sociológico, mas o invisível, "a chama" ou "a graça da iluminação interior").
Pouco a pouco será levado a graduar esta divisão, originária da distinção teológica entre natureza e sobrenatural,
ao mesmo tempo que confiará menos na prática (cujo nome desaparece do título dado à reedição da Introduction
em 1956). Ê a esta segunda evolução que Isambert consagrou o artigo citado supra: "Développement et
dépassement de 1'étude de la pratique religieuse chez G. Le Brás."
13 Desta maneira René Taveneaux, em Le Jansénisme en Lorraine, 1640-1789 (Vrin, 1960), tira da
obscuridade aquilo que chama de "redes de transmissão do pensamento". Na realidade o que surge são as
clivagens, as polarizações (parisienses, depois holandesas), as combinações insuspeitadas (por exemplo o
reemprego dos bastiões monásticos de Saint-Vanne neste conjunto), etc, que caracterizam uma unidade social
complexa. "O pensamento" lhe serve paia estabelecer uma sutil sociologia de um grupo de clérigos.
14 Ninguém poderá se espantar com o fato de ter esta corrente nascido de uma ampliação da história das
ciências, por exemplo com E. A. Burtt, The Metaphy-sics of Sir Isaac Newton (Londres, Routledge, 1925); H. A.
Smith, History of Modem Culture (New York, 1930-1934); A. Wolf, History of Science. Technology and Philo-
sophy in the 16th and 17th Century (Londres, AUen, 1935); A. R. Hall, The Scien-tific Revolution, 1500-1800
(Londres, Longmans, 1954); etc.
15 A noção de Zeitgeist tomou, na Geistesgeschichte, um sentido que quase inverte o de suas origens.
Central, entre os revolucionários alemães, na passagem do século XVIII para o XIX (Henning, Rebmann,
Níethammer, Arndt principalmente com seu Esprit du temps em 1806, ou Hardenberg, etc), designa uma força
irresistível cujo avanço derrubará todos os obstáculos institucionais. É com este sentido que foi retomada em
Hegel, e que em 1829 foi criticada por Schlegel como indeterminada e subversiva (Philosophie der Geschichte,
1829, II, 18). Cf. Jacques d'Hondt, Hegel philosophe de 1'histoire vivante, P.U.F., 1966, p. 211-216. Desde ai' o
Zeitgeist definiu, pelo contrário, uma ordem estabelecida, a coerência estática de uma mentalidade. Traço
significativo de um pensamento "liberal" e "ideológico" que faz, então, face ao marxismo.
16 Cf. por exemplo, V. P. Zoubov, "L'histoire de la science et la biogxaphie des savants", em Kwart. Hist.
Nauki, 6, 1962, p. 29-42.
17 A. O. Lovejoy, The Great Chain of Being. A Study of the History of an Idea, Cambridge (Mass.),
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Harvard Univ. Press, 1936.
18 A respeito da "história das mentalidades" francesa, cf. principalmente Geor-ges Duby, em LWstoire et
ses méthodes, Gallimard, Plêiade, 1961, p. 937-966. Po-re'm, mais do que às apresentações teóricas, é preciso
referir-se aos trabalhos históricos: os de G. Duby ou de J. Le Goff, certamente, mas também, ao estudo notavel-
mente lúcido de Franco Venturi, "L'Illuminismo nel settecento europeu", em Rap-ports du XIe Congrès
international des sciences historiques (Stockholm), Uppsala, Almquist, 1960, t. IV, p. 106-135. Na historiografia
do período "moderno", da mesma forma que o século XVII é ao mesmo tempo o objeto e a arqueologia de uma
análise das práticas, o século XVIII é uma e outra coisa para uma história das ideias. É, com efeito, no século
XVII que se forma, por exemplo, com os "Observateurs de 1' homme", a relação entre o homem das "Luzes" e o
homem-popular, entre a elite-su-jeito e o povo-objeto da ciência. Cf. Sérgio Moravia, La Scienzia delVuomo nel
settecento, Bari, 1970.
19 Gaston Bachelard, Le Rationalismeappliqué, P.U.F., 1949, p. 104-105.
20 Michel Foucault, L'Archeologie du savoir, Gallimard, 1969, p. 29-101.
21 O problema deste paralelismo permanece colocado, ainda que, como em Duby, o historiador se interesse
por uma literatura como por uma "transposição" ou "reflexo" do grupo que é o objeto real de seu estudo. Seria
necessário medir o efeito próprio desta "transposição". A expressão literária não é a transparência do vivido so-
cial, mas seu complemento, e, fequentemente, seu reverso (na medida em que enuncia aquilo que é percebido
como "ausente").
22 Cf. Antonio Gramsci, OEuvres choisies, Éd. sociales, 1959, p. 432: "Como estas diversas categorias de
intelectuais tradicionais experimentam, com um "espírito de corporação", o sentimento de sua continuidade
histórica ininterrupta e de sua qualificação, situam-se a si mesmos como autónomos e independentes do grupo
social dominante. Esta autoposiçao não t falta de consequências de grande alcance no domínio ideológico e
político: toda a filosofia idealista pode, facilmente, ter conexão com esta posição tomada pelo complexo social
dos intelectuais..."
23 Pode-se medir a evolução da historiografia com a noção de "fato histórico", comparando a colocação de
Henri-Irenée Marrou ("Qu'est qu'un fait histori-que?", em L'Histoire et ses méthodes, op. cit., p. 1494-1500) e os
problemas expostos por François Furet in J. Le Goff et P. Nora (Éd.), Faire de l'histoire, Galli-mard, 1974,t.1, p.
42-61.
24 Introduction à la philosophíe de 1'histoire. Essai sur les limites de 1'objecti-vité historique, Vrin, 1938.
As mesmas teses são retomadas em Dimensions de la conscience historique, Plon, 1961.
25 Cf. a obra magistral de A. Renaudet, Préréforme et humanismeà Paris pen-dant les premières guerres
d'ltalie, 1494-1517, Droz, 1916 e toda a sua posteridade.
26 Tradição universitária que corresponde à rejeição do jansenismo pelo ensino académico, difundido até
meados do século XIX, e que se mantém até na vigorosa síntese de Antoíne Adam, Du mysticisme à la révolte.
Les Janséniste du XVII6 siècle, Fayard, 1968.
27 Indício entre muitos, o lugar concedido aos Theological Manuscripts.(Éd. H. Mac Lachlan, Liverpool,
1950) na interpretação da obra de Newton. Alexandre Koyré, principalmente, modificou as perspectivas (cf. Du
monde closà Vunivers infi-ni, P.U.F., 1961). Hoje, chegamos a sublinhar que a ciência ocidental elaborou-se em
função de debates teológicos, e, que, por exemplo, ela tem uma relação intrínseca com o dogma da Encarnação;
cf. Alexandre Kojève, "L'origine chrétienne de la scien-ce moderne" em Mélanges Alexandre Koyré, Hermann,
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1964, t. II, p. 295-306.
28 Henri Bernard-Maítre, "Les "Théologastres" de 1'Université de Paris au temps d'Erasme et de Rabelais",
em Bibliothèque d'Humanisme et Renaissance, 27, 1965, p. 248-264; Jean-Pierre Massaut, Josse Oichtove
l"humanisme et la reforme du elergé, Les Belles Letíres, 968.
29 Louis Bouyer, Autour d'Erasme, Êtudes sur le christianisme des Humanis-tes catholiques. Paris, 1955;
Henri de Lubac, Exegese médiévale, Aubier, t. IV, 1964.
30 Étienne Gilson, Études sur le role de la pensée médiévale dans la formation du système cartésien, Vrin,
1951.
31 Cf. René Rémond, La Droite en France de 1815 à nos jours, Aubier, 1954. Temos as perspectivas
anglo-americanas com Richard Griffiths, The Reactionary Re-volution, Londres, 1966;Eugen Webei, L'Action
française,Stock, 1962;etc.
32 Émile Poulat, Intégrisme et catholicisme integral, Casterman, 1969, e o debate que se seguiu com Paul
Drouleus, em Archives de Sociologie des Religions, 28, 1969,p. 131-152.
33 Lucien Febvre,Au coeur religieux du XVf siècle, Sevpen, 1957, p. 146.
34 Em Beauvais et le Beauvaisis de 1600 à 1730, Sevpen, 1960.
35 Em Ancien Regime, 1.1, A. Colin, 1969.
36 M. Foucault, Les mots et les choses, Gallimard, 1966, chap. III-VI.
37 L. Cognet, La Sptritualité modeme, Aubier, 1966, e a resenha de Venard, na Rév. d'Hist. de VÊgl. de
France, 54,19"68, p. 101-103.
38 Cf. as notas de D. Júlia, P. Levillain, D. Nordman e A. Vauchez "Réflexi-ons sur lTiistoriographie
française contemporaine", em Recherches et Débats, 47, 1964, p. 79-94.
39 A respeito do interesse etnológico ou follclórico de que a religião se torna o objeto, e que explica ao
mesmo tempo a natureza de uma nova "curiosidade" e a recrudescência dos estudos sobre as ideologias (de
agora em diante tidas como inacredi-taVeís, mas simbólicas de um sentido a decifrar), cf. M. de Certeau, La
Culture ao plu-riel, coll. 10/18,1974, p. 11-34: "Les Révolutions du croyable".
40 Aqui o problema é o de saber que acontecimento ou que mutação sócio-po-
lftica torna possível, à visão da historiografia do século XX, uma análise, análoga a
que R. Mousnier consagrou seus últimos anos, dos historiadores do século XVIII. Mas,
sem dúvida, é necessário inverter os termos da questão: um novo olhar científico é,
justamente, um dos indícios através do qual se exprime ou se demarca um "aconte
cimento".
41 Cf., particularmente, à nova série dos Annales E.S.C, (a partir de 1969),
ou The Journal of Intedisciplinary History, 1970, M.I.T. Press (U.S.A.).
42 Karl Marx, Das Kapital, Berlin, 1947,1.1, p. 7 (primeiro prefácio); cf. OEu-vres, Plêiade, 1965,1.1, p.
549.
43 Foi isto que Michel Foucault sublinhou fortemente, em particular na Ar-
chéologie du savoir, 1969, p. 16-17.
44 Emmanuel Le Roy Ladurie, LesPaysans de Languedoc, Sevpen, 1966,1.1,
p. 7-11, e, principalmente, Pierre Vilar, La Catalogne dans 1'Espagne moderne,
Sevpen, 1962, t.I.p. 11-38.
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45 Marc Soriano, Les Contes de Perrault. Culture savante et traditions populai-
res, Gallimard, 1968.
46 In Revue de Synthèse, n°. 37-39, p. 329. Cf., também, estudos particularmente importantes: "Lourdes:
perspectives d'une sociologie du sacré", em La Table Ronde, 125, maio, 1958, p. 74-96; "Problèmes et méthodes
d'une histoire de la psy-chologie collective", em Annales E.S.C., 16, 1961, p. 3-11; "Formes de la culture des
masses: de la doléance politique au pèlerinage panique (XVIII^XX6 siècles)", em Niveaux de culture et groupes
sociaux, Mouton, 1968, p. 149-167.
47 P. Vilar, La Catalogne..., op. cit., 1.1, Prefácio, p. 36-37. O confronto entre expressão cultural e
estruturas económicas é particularmente rico (pelo próprio objeto estudado) em "Le Tems du Quichote"
(Europe,]zn. 1956, p. 3-16); "Les primitifs espagnols de la pensée économique" (Mélanges M. Bataillon, 1962,
p. 261-284); ou, de um ponto de vista mais metodológico, em "Marxisme et histoire, dans le dévelop-pement des
sciences humaines" (Studi storici l,n°.S, 1960, p. 1008-1043).
48 M. Foucault, Folie et déraison. Histoire de la folie à Tâge classique, Plon, 1961 (nova edição,
Gallimard, 1972).
49 Cf., a este respeito, as observações agudas de Jacques Derrida, L 'Êcriture et la difference, Seuil, 1967,
p. 51-97 ("Cogito et hístoire de la folie").
50 M. Foucault, VArchèologie du savoir, op. cit., p. 29-101: "Les régularités discursives".
51 rbid.,p.l2en.
52 Roland Barthes, "Le Discours de l'histoire", em Social Science informa tion, VI, 4, 1967, p. 65-75... A
comparar com, do mesmo autor, "L'effet de réel", em Communications, 11, 1968, p. 84-90, e "L'Êcriture de
1'e'vénement", em Communications, 12,1968, p. 108-113.
53 R. Barthes, "Le discours de 1'histoire", op. cit., p. 65.
54 Ibid.,p. 73-74.
55 Ibid.,p. 75. Na "ilusão referencial" do real, no "realismo", R. Barthes revela um novo verossímil ("O
efeito do real", op. cit., p. 88). Este "real" é a conotação de um pensável.
56 A. J. Greimas, Du sens. Essais sémiotiques, Seuil, 1970, p. 111. Cf. todo este capítulo, "Histoire et
structure", p. 103-116.
57 Problema que não deixa de ter analogia com aquele de que tratavam as primeiras filosofias da
linguagem, em fins da Idade Me'dia. Cf. J. Claude Piguet, "La que-relle des universaux et le probleme
contemporain du langage" na Revue de Théologie et de Philosophie, 19,1969, p. 392411.
58 Em "La Histoire et 1'unité des sciences de lfiomme" (in Annales E.S.C., 23, n? 2, 1968, p. 233-240),
Charles Moraze' encara sob este aspecto o papel central da história; é porque a relação entre ciências humanas se
traduz e ocorre na história que ela é "sincretista" e que hoje parece fragmentada, através de sua adesão a
disciplinas cada vez mais divergentes.
59 Após ter dito "c egime precedente" fala-se, a partir de novembro de 1789, do "antigo regime". Cf. Albert
Soboul, La Gvi. .ation et la Révolution Française, Arthaud, t. I, 1970, p. 37, e as reflexões de Píerre Boubeit,
L'Ancien Regime, A. Co-lin.t. 1,1969, chap.I.
60 R. Barthes, "Le discours de 1'histoire", op. cit. , p. 71.
61 Isto fala, deixando de lado o exame, esboçado alhures, dos problemas abertos pela intervenção da
psicana'lise no campo da história. Cf. "Aquilo que Freud fez da história".
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A VIDA COTIDIANA é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer
que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico. Ninguém consegue identificar-se
com sua atividade humano-genérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da
cotidianidade. E, ao contrário, não há nenhum homem, por mais "insubstancial" que seja, que
viva tão-somente na cotidianidade, embora essa o absorva preponderantemente.
A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida
cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Nela, colocam-
se "em funcionamento" todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas
habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, idéias, ideologias. O fato de que todas
as suas capacidades se coloquem em funcionamento determina também, naturalmente, que
nenhuma delas possa realizar-se, nem de longe, em toda sua intensidade. O homem da co-
tidianidade é atuante e fruidor, ativo e receptivo, mas não tem nem tempo nem possibilidade
de se absorver inteiramente em nenhum desses aspectos; por isso, não pode aguçá-los em
toda sua intensidade.
A vida cotidiana é, em grande medida, heterogénea; e isso sob vários aspectos,
sobretudo no que se refere ao conteúdo e à significação ou importância de nossos tipos de ati-
vidade. São partes orgânicas da vida cotidiana: a organização do trabalho e da vida privada,
os lazeres e o descanso, a ati-vidade social sistematizada, o intercâmbio e a purificação.
Mas a significação da vida cotidiana, tal como seu conteúdo, não é apenas heterogênea,
mas igualmente hierárquica. Todavia, diferentemente da circunstância da heterogeneidade, a
forma concreta da hierarquia não é eterna e imutável, mas se modifica de modo específico em
função das diferentes estruturas econômico-sociais. Assim, por exemplo, nos tempos pré-
históricos, o trabalho ocupou um lugar dominante nessa hierarquia; e, para determinadas
classes trabalhadoras (para os servos, por exemplo), essa mesma hierarquia se manteve du-
rante ainda muito tempo; toda a vida cotidiana se constituía em torno da organização do
trabalho, à qual se subordinavam todas as demais formas de atividade. Em troca, para a popu-
lação livre da Ática do século v antes de nossa era ocupavam o lugar central da vida cotidiana
a atividade social, a contemplação, o divertimento (cultivo das faculdades físicas e mentais), e
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as demais formas de atividade agrupavam-se em torno destas numa gradação hierárquica. A
heterogeneidade e a ordem hierárquica (que é condição de organicidade) da vida cotidiana
coincidem no sentido de possibilitar uma explicitação "normal" da produção e da reprodução,
não apenas no "campo da produção" em sentido estrito, mas também no que se refere às
formas de intercâmbio. A heterogeneidade é imprescindível para conseguir essa "explicitação
normal" da cotidianidade; e esse funcionamento rotineiro da hierarquia espontânea é
igualmente necessário para que as esferas heterogéneas se mantenham em movimento
simultâneo.
O homem nasce já inserido em sua cotidianidade. O amadurecimento do homem
significa, em qualquer sociedade, que o indivíduo adquire todas as habilidades
imprescindíveis para a vida cotidiana da sociedade (camada social) em questão. É adulto
quem é capaz de viver por si mesmo a sua cotidianidade.
O adulto deve dominar, antes de mais nada, a manipulação das coisas (das coisas,
certamente, que são imprescindíveis para a vida da cotidianidade em questão). Deve aprender
a segurar o copo e a beber no mesmo, a utilizar o garfo e a faca, para citar apenas os
exemplos mais triviais. Mas, já esses, evidenciam que a assimilação da manipulação das
coisas é sinônimo de assimilação das relações sociais. (Pois não é adulto quem aprende a
comer apenas com as mãos, ainda que também desse modo pudesse satisfazer suas
necessidades vitais.) Mas, embora a manipulação das coisas seja idêntica à assimilação das
relações sociais, continua também contendo inevitavelmente, de modo "imanente", o domínio
espontâneo das leis da natureza. A forma concreta de submissão ao poder (da natureza) é
sempre mediatizada pelas relações sociais, mas o fato em si da submissão à natureza persiste
sempre enquanto tal.
Se a assimilação da manipulação das coisas (e, e o ipso, a assimilação do domínio da
natureza e das mediações sociais) é já condição de "amadurecimento" do homem até tornar-se
adulto na cotidianidade, o mesmo poder-se-á dizer — e, pelo menos, em igual medida — no
que se refere à assimilação imediata das formas do intercâmbio ou comunicação social. Essa
assimilação, esse "amadurecimento" para a cotidianidade, começa sempre "por grupos" (em
nossos dias, de modo geral, na família, na escola, em pequenas comunidades). E esses grupos
face-to-face estabelecem uma mediação entre o indivíduo e os costumes, as normas e a ética
de outras integrações maiores. O homem aprende no grupo os elementos da cotidianidade (por
exemplo, que deve levantar e agir por sua conta; ou o modo de cumprimentar, ou ainda como
com-portar-se em determinadas situações, etc); mas não ingressa nas fileiras dos adultos, nem
as normas assimiladas ganham "valor", a não ser quando essas comunicam realmente ao in-
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divíduo os valores das integrações maiores, quando o indivíduo — saindo do grupo (por
exemplo, da família) — é capaz de se manter autonomamente no mundo das integrações
maiores, de orientar-se em situações que já não possuem a dimensão do grupo humano
comunitário, de mover-se no ambiente da sociedade em geral e, além disso, de mover por sua
vez esse mesmo ambiente.
A vida cotidiana não está "fora" da história, mas no "centro" do acontecer histórico: é
a verdadeira "essência" da substância social. Nesse sentido, Cincinato é um símbolo. As
grandes ações não cotidianas que são contadas nos livros de história partem da vida cotidiana
e a ela retornam. Toda grande façanha histórica concreta torna-se particular e histórica
precisamente graças a seu posterior efeito na cotidiani-dade. O que assimila a cotidianidade
de sua época assimila também, com isso, o passado da humanidade, embora tal assimilação
possa não ser consciente, mas apenas "em-si".
A vida cotidiana é a vida do indivíduo. O indivíduo é sempre, simultaneamente, ser
particular e ser genérico. Considerado em sentido naturalista, isso não o distingue de nenhum
outro ser vivo. Mas, no caso do homem, a particularidade expressa não apenas seu ser
"isolado", mas também seu ser "individual". Basta uma folha de árvore para lermos nela as
propriedades essenciais de todas as folhas pertencentes ao mesmo gênero; mas um homem não
pode jamais representar ou expressar a essência da humanidade.
Que caracteriza essa particularidade social (ou socialmente mediatizada)? A unicidade e
irrepetibilidade são, nesse ponto, fatos ontológicos fundamentais. Mas o único e irrepetível
con-verte-se num complexo cada vez complexo, que se baseia na assimilação da realidade social
dada e, ao mesmo tempo, das capacidades dadas de manipulação das coisas; a assimilação
contém em cada caso (inclusive no do homem mais primitivo) algo de momento "irredutível",
"único". As necessidades humanas tornam-se conscientes, no indivíduo, sempre sob a forma
de necessidades do Eu. O "Eu" tem fome, sente dores (físicas ou psíquicas); no "Eu" nascem
os afetos e as paixões. A dinâmica básica da particularidade individual humana é a satisfação
dessas necessidades do "Eu". Sob esse aspecto, não há diferença no fato de que um deter-
minado "Eu" identifique-se em si ou conscientemente com a representação dada do
genericamente humano, além de serem também indiferentes os conteúdos das necessidades do
"Eu".
Todo conhecimento do mundo e toda pergunta acerca do mundo motivados diretamente
por esse "Eu" único, por suas necessidades e paixões, é uma questão da particularidade
individual. "Por que vivo?", "Que devo esperar do Todo?' — são perguntas desse tipo. A
teleologia da particularidade ori-enta-se — sempre para a própria particularidade, ou seja,
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para o indivíduo.
Também o genérico está "contido" em todo homem e, mais precisamente, em toda
atividade que tenha caráter genérico, embora seus motivos sejam particulares. Assim, por
exemplo, o trabalho tem frequentemente motivações particulares, mas a atividade do trabalho
— quando se trata de trabalho efetivo (isto é, socialmente necessário) — é sempre atividade
do gênero humano. Também é possível considerar como humano-genéricos, em sua maioria,
os sentimentos e as paixões, pois sua existência e seu conteúdo podem ser úteis para
expressar e transmitir a substância humana. Assim, na maioria dos casos, o particular não é
nem o sentimento nem a paixão, mas sim seu modo de manifestar-se, referido ao eu e
colocação a serviço da satisfação das necessidades e da teleologia do indivíduo.
Também enquanto indivíduo, portanto, é o homem um ser genérico, já que é produto e
expressão de suas relações sociais, herdeiro e preservador do desenvolvimento humano; mas
o representante do humano-genérico não é jamais um homem sozinho, mas sempre a
integração (tribo, demos, estamento, classe, nação, humanidade) — bem como, frequen-
temente, várias integrações — cuja parte consciente é o homem e na qual se forma sua
"consciência de nós".
Não é casual que acentuemos o elemento "consciência". O indivíduo já pertencia à
humanidade — que é a integração suprema — mesmo quando ainda não se formara uma
humanidade unitária, uma história como história universal. (Não podemos aprofundar aqui a
questão das diferenças entre a relação mediatizada e a relação imediata com a humanidade.)
Para o homem de uma dada época, o humano-genérico é sempre representado pela
comunidade "através" da qual passa o percurso, a história da humanidade (e isso mesmo no
caso em que o destino dessa integração concreta seja a catástrofe). Todo homem sempre teve
uma relação consciente com essa comunidade; nela se formou sua "consciência de nós", além
de configurar-se também sua própria "consciência do Eu".
Nela, explicitou-se a teleologia do humano-genérico, cuja colocação jamais se orienta
para o "Eu", mas sempre para o "nós".
O indivíduo (a individualidade) contém tanto a particularidade quanto o humano-
genérico que funciona consciente e inconscientemente no homem. Mas o indivíduo é um ser
singular que se encontra em relação com sua própria individualidade particular e com sua
própria genericidade humana; e, nele, tornam-se conscientes ambos os elementos. É comum a
toda individualidade a escolha relativamente livre (autônoma) dos elementos genéricos e
particulares; mas, nessa formulação, deve-se sublinhar igualmente os termos "relativamente".
Temos ainda de acrescentar que o grau de individualidade pode variar. O homem singular
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não é pura e simplesmente indivíduo, no sentido aludido; nas condições da manipulação
social e da alienação, ele se vai fragmentando cada vez mais "em seus papéis". O
desenvolvimento do indivíduo é antes de mais nada — mas de nenhum modo exclusivamente
— função de sua liberdade fática ou de suas possibilidades de liberdade.
A explicitação dessas possibilidades de liberdade origina, em maior ou menor medida,
a unidade do indivíduo, a "aliança" de particularidade e genericidade para produzir uma indi-
vidualidade unitária. Quanto mais unitária for essa individualidade (pois essa unidade,
naturalmente, é apenas tendência, mais ou menos forte, mais ou menos consciente), tanto
mais rapidamente deixa de ser aquela muda união vital do genérico e do particular a forma
característica da inteira vida. A condição ontológico-social desse resultado é um relaxamento
da relação entre a comunidade portadora do humano-genérico e o próprio indivíduo, o qual
— já enquanto indivíduo — dispõe de um certo âmbito de movimento no qual pode escolher
sua própria comunidade e seu próprio modo de vida no interior das possibilidades dadas. A
consequência disso é uma certa distância, graças à qual o homem pode construir uma relação
com sua própria comunidade, bem como uma relação com sua própria particularidade vivida
enquanto "dado" relativo.
Mas nem mesmo nesse caso deixa essa unidade individual de ser mera tendência,
mera possibilidade. Na vida cotidiana, a esmagadora maioria da humanidade jamais deixa de
ser, ainda que nem sempre na mesma proporção, nem tampouco com a mesma extensão,
muda unidade vital de particularidade e genericidade. Os dois elementos funcionam em si e
não são elevados à consciência. O fato de se nascer já lançado na cotidianidade continua
significando que os homens assumem como dadas as funções da vida cotidiana e as exercem
paralelamente.
Os choques entre particularidade e genericidade não costumam tornar-se conscientes na
vida cotidiana; ambas subme-teru-se sucessivamente uma à outra do aludido modo, ou seja,
"mudamente". Mas isso não significa que a particularidade se submeta a uma comunidade
natural; nesse ponto, manifesta-se uma diferença de princípio entre a moderna estrutura da vida
cotidiana e a explicitação da estrutura que precedeu o nascimento da individualidade. Pois já
não existem "comunidades naturais". Com isso, aumentam as possibilidades que tem a
particularidade de submeter a si o humano-genérico e de colocar as necessidades e interesses
da integração social em questão a serviço dos afetos, dos desejos, do egoísmo do indivíduo.
Esse aumento de possibilidade — essa oportunidade de vitória espontânea da
particularidade — suscitou a ética como uma necessidade da comunidade social. As exigências
e normas da ética formam a intimação que a integração específica determinada (e a tradição do
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desenvolvimento humano) dirige ao indivíduo, a fim de que esse submeta sua particularidade
ao genérico e converta essa intimação em motivação interior. A ética como motivação (o que
chamamos de moral) é algo individual, mas não uma motivação particular: é individual no
sentido de atitude livremente adotada (com liberdade relativa) por nós diante da vida, a
sociedade e dos homens.
Umas das funções da moral é a inibição, o veto. A outra é a transformação, a
culturalização das aspirações da particularidade individual. Isso não se refere apenas à vida
do indivíduo, mas também à da humanidade. Por mais intenso que seja o esforço
"transformador" e culturalizador da moral, não se supera sua função inibidora e essa se
impõe na medida em que a estrutura da vida cotidiana está caracterizada basicamente pela
muda coexistência de particularidade e genericidade.
A vida cotidiana está carregada de alternativas, de escolhas. Essas escolhas podem ser
inteiramente indiferentes do ponto de vista moral (por exemplo, a escolha entre tomar um
ônibus cheio ou esperar o próximo); mas também podem estar moralmente motivadas (por
exemplo, ceder ou não o lugar a uma mulher de idade). Quanto maior é a importância da mo-
ralidade, do compromisso pessoal, da individualidade e do risco (que vão sempre juntos) na
decisão acerca de uma alternativa dada, tanto mais facilmente essa decisão eleva-se acima da
co-tidianidade e tanto menos se pode falar de uma decisão cotidiana . Quanto mais intensa é a
motivação do homem pela moral, isto é, pelo humano-genérico, tanto mais facilmente sua
particularidade se elevará (através da moral) à esfera da ge-nericidade. Nesse ponto, termina a
muda coexistência de particularidade e genericidade. É necessário o conhecimento do próprio
Eu, o gnôthi seautón, o conhecimento e a apaixonada assimilação das intimações humano-
genéricas, a fim de que o homem seja capaz de decidir elevando-se acima da cotidiani-dade.
Kant buscava no imperativo categórico o critério formal desse comportamento. Na realidade,
nenhum homem é capaz de atuar de tal modo que seu ato se converta em exemplo universal,
já que todo homem atua sempre como indivíduo concreto e numa situação concreta. Mas o
caráter paradigmático existe apesar de tudo, na medida em que se produz aquela elevação até
o genericamente humano.
Temos de introduzir aqui, contudo, duas restrições. Por um lado, a elevação ao
humano-genérico não significa jamais uma abolição da particularidade. Como se sabe, as
paixões e sentimentos orientados para o Eu (para o Eu particular) não desaparecem, mas
"apenas" se dirigem para o exterior, con-vertem-se em motor da realização do humano-
genérico, ou então permanecem em suspenso — na medida em que inibem a ação moralmente
motivada — enquanto duram as ações correspondentes. Por outro lado, uma decisão moral, no
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sentido aqui colocado, deve sempre ser considerada como uma tendência. Não é possível
distinguir, de modo rigoroso e inequívoco, entre as decisões e ações cotidianas e aquelas
moralmente motivadas. A maioria das ações e escolhas tem motivação heterogênea; as
motivações particulares e as genérico-morais encontram-se e se unem, de modo que a elevação
acima do particular-individual jamais se produz de maneira completa, nem jamais deixa de
existir inteiramente, mas ocorre geralmente em maior ou menor medida. Não há "muralha
chinesa" entre as esferas da cotidianidade e da moral. Apenas os moralistas utilizam
motivações morais "puras" e, mesmo eles, o fazem mais na teoria que na realidade.
Não se pode falar de "muralha chinesa", antes de mais nada, pelo fato de que a
herança moral do passado da humanidade e a exigência moral da época revelam-se ao homem
até mesmo nos usos e normas consuetudinárias da cotidianidade, cuja assimilação pode se
produzir de modo inteiramente espontâneo, sem nenhuma motivação moral. Mas, ainda que
essas normas contivessem motivos morais, a elevação acima da particularidade ou sua
suspensão não anularia o próprio movimento, nem sua existência estaria em contradição com
aquela "muda coexistência".
Os conflitos extremos e puramente morais se produzem nos casos em que a motivação
moral torna-se determinante e seu impulso, sua finalidaae e seu objeto são entendidos como
instrumento de elevação do humano-genérico. O caso típico desse comportamento — ainda
que não o único — é o serviço à comunidade. Mas o motivo moral manifesta-se igualmente
quando, com nosso comportamento pessoal, representamos o comportamento "correto" do
gênero humano (por exemplo, na atitude do estóico diante da morte natural). O caminho
desse comportamento é a escolha (a decisão), a concentração de todas as nossas forças na
execução da escolha (ou decisão) e a vinculação consciente com a situação escolhida e,
sobretudo, com suas consequências. Numerosas etapas do "caminho" esboçado são também
características das decisões semicotidianas, nas quais se realiza apenas parcialmente, ou nem
mesmo parcialmente, a elevação ao humano-genérico, a suspensão da particularidade. A
escolha e a aceitação das consequências, por exemplo, formam um só processo. Mas, na
cotidianidade, não é possível concentrar todas as energias em cada decisão. Um
comportamento de tal tipo estaria em contradição com a estrutura básica da cotidianidade.
Também seria absurdo, de nossa parte, assumir conscientemente as consequências de uma
escolha não praticada pelo indivíduo inteiro. O "ato de assumir" ou a aceitação são aqui mais
ou menos passivos e com-binam-se muito bem com a pergunta característica da parti-
cularidade: "E por que isso haveria de acontecer precisamente comigo?". O herói da escolha
moral é seu próprio destino; e aquilo que lhe acontece só pode acontecer a ele. O cume da
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elevação moral acima da cotidianidade é a catarse. Na catarse, o homem torna-se consciente
do humano-genérico de sua individualidade.
Em nenhuma esfera da atividade humana (e não apenas no caso da elevação moral), é
possível traçar uma linha divisória rigorosa e rígida entre o comportamento cotidiano e o não
cotidiano. (Estamos pensando, naturalmente, no caso dos comportamentos em que seja
possível uma elevação consciente ao humano-genérico.) Basta pensar na esfera política. Tam-
pouco fazem parte da cotidianidade as escolhas e decisões do "amour passion", por causa da
intensidade com que se processam a escolha e a paixão; mas, uma vez convertido em costume
e talvez mesmo em rotina, o amor pode novamente "dis-solver-se" na cotidianidade13
.
As formas de elevação acima da vida cotidiana que produzem objetivações duradouras
são a arte e a ciência. Reme-temo-nos nesse contexto, à profunda análise realizada por Georg
Lukács no capítulo introdutório de sua Estética14
. De acordo com essa análise, o reflexo
artístico e o reflexo científico rompem com a tendência espontânea do pensamento cotidiano,
tendência orientada ao Eu individual-particular. A arte realiza tal processo porque, graças à
sua essência, é autoconsciência e memória da humanidade; a ciência da sociedade, na medida
em que desantropocentriza (ou seja, deixa de lado a teologia referida ao homem singular); e a
ciência da natureza, graças a seu caráter desantropomorfizador. Nem mesmo a ciência e a arte
estão separadas da vida do pensamento cotidianos por limites rígidos, como podemos ver em
vários aspectos. Antes de mais nada, o próprio cientista ou artista têm vida cotidiana: até
mesmo os problemas que enfrentam através de suas objetivações e suas obras lhes são
colocados, entre outras coisas (tão-somente entre outros, decerto), pela vida. Artista e
cientista têm sua particularidade individual enquanto homens da cotidianidade; essa
particularidade pode se manter em suspenso durante a produção artística ou científica, mas
intervém na própria objetivação através de determinadas mediações (na arte e nas ciências
sociais, através da mediação da individualidade) . Finalmente, toda obra significativa volta à
cotidianidade e seu efeito sobrevive na cotidianidade dos outros.
O meio para essa superação dialética [A ufhebung] parcial ou total da particularidade,
para sua decolagem da cotidianidade e sua elevação ao humano-genérico, é a homogeneização.
Sabemos que a vida cotidiana é heterogênea, que solicita todas as nossas capacidades em
várias direções, mas nenhuma capacidade com intensidade especial. Na expressão de Georg
Lu-kács: é o "homem inteiro" ["ganze Mensch"] quem intervém na cotidianidade. O que
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O conceito de "dissolução" não tem aqui sentido pejorativo, mas pretende apenas caracterizar a diferença entre cotidianidade e não-cotidianidade.
14 Georg Lukács, Werke, vol. 11, Àslhetik I, t. 1, Luchterhand, Neu-wied e Berlim, pp. 33-138, Probleme der
Widerspiegelung im Alltags-leben (Problemas do Reflexo na Vida Cotidiana).
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significa homogeneização? Significa, por um lado, que concentramos toda nossa atenção
sobre uma única questão e "suspenderemos" qualquer outra atividade durante a execução da
anterior tarefa; e, por outro lado, que empregamos nossa inteira individualidade humana na
resolução dessa tarefa. Utilizemos outra expressão de Lukács: trans-formamo-nos assim em um
"homem inteiramente" ["Menschen ganz"}. E significa, finalmente, que esse processo não se
pode realizar arbitrariamente, mas tão-somente de modo tal que nossa particularidade individual
se dissipe na atividade humanogené-rica que escolhemos consciente e autonomamente, isto é,
enquanto indivíduos.
Apenas quando esses três fatores se verificam conjuntamente é que podemos falar de
uma homogeneização que se eleva totalmente acima da cotidianidade para penetrar na esfera
do humano-genérico. O tipo de homogeneização que só apresenta o primeiro fator, ou seja, a
concentração em uma única tarefa, concilia-se ainda perfeitamente com a cotidianidade,
fazendo parte orgânica da mesma. Quando, por exemplo, temos de assimilar um novo
movimento no trabalho, não podemos "pensar em outra coisa" enquanto trabalhamos, como
acontece, ao contrário, no exercício de movimentos já assimilados, convertidos em algo
mecânico, nesse caso, portanto, suspendemos qualquer outra atividade. E, quando examinamos
uma pessoa para qualificá-la em algum campo profissional, também homogeneizamos
espontaneamente, pois fazemos abs-tração das demais propriedades da pessoa que temos
diante de nós e encaramo-la tão-somente sob o aspecto de sua adequação ou inadequação para
a prática de um determinado trabalho. Mas, nesse caso, a concentração — a momentânea
homogeneização — não tem consequências posteriores para nós.
É evidente que, em tal tipo de homogeneização, não atuou toda nossa inteira
individualidade; por isso, a concentração não implica numa suspensão de nossa
particularidade. Mas os atos de decisão podem igualmente ocorrer num plano "superior", que
ultrapasse em maior ou menor medida a cotidiani-dade. Por exemplo: quando um camponês
começa a trabalhar numa fábrica e a assimilação dos movimentos do trabalho vai decidir se
ele é ou não adequado para o trabalho industrial, se poderá ou não abandonar para sempre a
sua aldeia, trata-se de uma prova cujos efeitos destinam-se a afetar toda a sua vida; durante o
exame a que for submetido, portanto, poderão produzir-se conflitos, até mesmo conflitos
morais. Em casos desse tipo, o Eu desempenha um papel decisivo na ação e a decisão torna-se,
em maior ou menor medida, função da individualidade. Decisões desse tipo já transformam,
mais ou menos amplamente, o homem inteiro, apresentando efeitos posteriores: embora ainda
sem predominar, manifesta-se já a homogeneização que abre caminho para o humano-
genérico; nesse ponto, tem início a "saída" da cotidianidade, sem chegar a consu-mar-se. A
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maioria das decisões que tomamos em nossa vida — a maioria das decisões fáticas — realiza-
se nesse plano.
A homogeneização em direção ao humano-genérico, a completa suspensão do
particular-individual, a transformação em "homem inteiramente", é algo totalmente
excepcional na maioria dos seres humanos. Nem sequer nas épocas ricas em grandes
comoções sociais existem muitos pontos críticos desse tipo na vida do homem médio. A vida
de muito homens chega ao fim sem que se tenha produzido nem um só ponto crítico
semelhante. A homogeneização em direção ao humano-genérico só deixa de ser excepcional,
um caso singular, naqueles indivíduos cuja paixão dominante se orienta para o hu-mano-
genérko e, ademais, quando têm a capacidade de realizar tal paixão. Esse é o caso dos
grandes e exemplares moralistas, dos estadistas (revolucionários), dos artistas e dos cientistas.
De resto, a respeito do grande estadista, do revolucionário profissional, do grande artista, do
grande cientista, deve-se afirmar que não apenas sua paixão principal, mas também seu
trabalho principal, sua atividade básica, promovem a elevação ao humano-genérico e a
implicam em si mesmos. Por isso, para tais pessoas, a homogeneização em "homem inteira-
mente" é elemento necessário de sua essência, da atividade básica de suas vidas.
Mas não se deve esquecer que o artista, o cientista, o estadista não vivem
constantemente nessa tensão. Possuem também, como todos os outros homens, uma vida
cotidiana; o par-ticular-individual manifesta-se neles, tal como nos demais homens. Tão-
somente durante as fases produtivas essa particularidade é suspensa; e, quando isso ocorre, tais
indivíduos se convertem, através da mediação de suas individualidades, em representantes do
género humano, aparecendo como protagonistas do processo histórico global. O estadista que
deve convencer às pessoas do seu meio, à multidão, e levá-las consigo à ação, ou que tem de
influir nos soldados para que tendam a um determinado objetivo, ou de resolver situações
complicadas prevendo suas consequências, esse estadista eleva-se acima de si mesmo, deixa-
se levar (por assim dizer) por sua força "invisível" que, com frequência, chama-se de
inspiração, mas que é tão-somente a força elevadora da decisão humano-genérica. O artista
parece guiado por uma mão "invisível", de tal modo que produz em sua obra algo diverso
daquilo que se propunha produzir; é arrastado pela força da objetividade, que extirpa da sua
criação tudo aquilo que, em seu projeto, pertencia ainda ao individual-particular.
Não podemos aqui estudar detalhadamente a estrutura da vida cotidiana. Limitar-nos-
emos a aludir a alguns momentos dessa estrutura que apresentem importância para os
desenvolvimentos subsequentes.
A característica dominante da vida cotidiana é a espontaneidade. Ê evidente que nem
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toda atividade cotidiana é espontânea no mesmo nível, assim como tampouco uma mesma ati-
vidade apresenta-se como identicamente espontânea em situações diversas, nos diversos
estágios de aprendizado. Mas, em todos os casos, a espontaneidade é a tendência de toda e
qualquer forma de atividade cotidiana. A espontaneidade caracteriza tanto as motivações
particulares (e as formas particulares de atividade) quanto as atividades humano-genéricas
que nela têm lugar. O ritmo fixo, a repetição, a rigorosa regularidade da vida cotidiana (que
se rompem quando se produz a elevação acima da cotidianidade) não estão absolutamente em
contradição com essa espontaneidade; ao contrário, implicam-se mutuamente. A assimilação
do comportamento consuetudinário, das exigências sociais e dos modismos, a qual, na
maioria dos casos, é uma assimilação não tematizada, já exige para sua efetivação a
espontaneidade. Pois, se nos dispuséssemos a refletir sobre o conteúdo de verdade material ou
formal de cada uma de nossas formas de atividade, não poderíamos realizar nem sequer uma
fração das atividades cotidianas imprescindíveis; e, assim, tornar-se-iam impossíveis a produção
e a reprodução da vida da sociedade humana. Mas a espontaneidade não se expressa apenas
na assimilação do comportamento consuetudinário e do ritmo da vida, mas também no fato de
que essa assimilação faz-se acompanhar por motivações efêmeras, em constante alteração, em
permanente aparecimento e desaparecimento. Na maioria das formas de ativiuade da vida
cotidiana, as motivações do homem não chegam a se tornar típicas, ou seja, as motivações em
permanente alteração estão muito longe de expressar a totalidade, a essência do indivíduo. O
mesmo pode ser dito da maioria das motivações explicita mente formuladas, embora em
menores proporções que no caso das motivações "mudas".
Na vida cotidiana, o homem atua sobre a base da probabilidade, da possibilidade:
entre suas atividades e as consequências delas, existe uma relação objetiva de probabilidade.
Jamais é possível, na vida cotidiana, calcular com segurança científica a consequência
possível de uma ação. Nem tampou-do haveria tempo para fazê-lo na múltipla riqueza das
atividades cotidianas. Ademais, isso nem mesmo é necessário: no caso médio, a ação pode ser
determinada por avaliações probabilísticas suficientes para que se alcance o objetivo visado. Os
conceitos de caso "médio" e segurança "suficiente" apresentam, nesse contexto, a mesma
importância. O primeiro indica o fato de que são perfeitamente possíveis casos em que fracas-
sam as considerações probabilísticas. Nesses casos, podemos falar de catástrofes da vida
cotidiana. Considerações probabilísticas utilizamos, por exemplo, ao cruzar a rua: jamais cal-
culamos com exatidão nossa velocidade e aquela dos veículos. Até agora nunca fomos parar
debaixo de um carro, embora isso possa ocorrer; mas se, antes de atravessarmos, resolvês-
semos realizar cálculos cientificamente suficientes, jamais chegaríamos a nos mover. Também o
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conceito de "suficiência" indica uma fronteira dúplice. Significa que, na cotidianidade,
podemos efetivamente nos orientar e atuar com a ajuda de avaliações probabilísticas, na
medida em que, abaixo dessa linha, na esfera da mera possibilidade, ainda não podemos con-
segui-lo e, por cima da correspondente fronteira superior, na esfera da segurança científica, já
não mais o necessitamos. Decerto, essa situação implica no risco da ação baseada na pro-
babilidade; mas não se trata de um risco autonomamente assumido e sim de um risco
imprescindível e necessário para a vida. Precisamente nisso ele se diferencia dos riscos da indi-
vidualidade, que são riscos morais.
Já a existência dessa ação realizada sobre a base da probabilidade indica o
economicismo da vida cotidiana. Toda categoria da ação e do pensamento manifesta-se e
funciona exclusivamente enquanto é imprescindível para a simples continuação da
cotidianidade; normalmente, não se manifesta com profundidade, amplitude ou intensidade
especiais, pois isso destruiria a rígida "ordem" da cotidianidade. E, quando efetivamente se
manifesta com maior intensidade, dissolve fatalmente essa ordem, tanto nos casos em que
tende "para cima", ele-vando-nos ao humano-genérico, fato que jamais pode caracterizar a
totalidade de nossa vida, quanto naqueles em que tende "para baixo", a ponto de — como
aconteceu a Oblomov — incapacitar-nos para a vida.
O pensamento cotidiano orienta-se para a realização de atividades cotidianos e, nessa
medida, é possível falar de unidade imediata de pensamento e ação na cotidianidade. As
idéias necessárias à cotidianidade jamais se elevam ao plano da teoria, do mesmo modo como
a atividade cotidiana não é praxis. A atividade prática do indivíduo só se eleva ao nível da
praxis quando é atividade humano-genérica consciente; na unidade viva e muda de
particularidade e genericidade, ou seja, na cotidianidade, a atividade individual não é mais do
que uma parte da praxis, da ação total da humanidade que, construindo a partir do dado,
produz algo novo, sem com isso transformar em novo o já dado.
A unidade imediata de pensamento e ação implica na inexistência de diferença entre
"correto" e "verdadeiro" na cotidianidade; o correto é também "verdadeiro". Por conseguinte,
a atitude da vida cotidiana é absolutamente pragmática.
Todavia, deve-se esclarecer e complementar essa afirmação acerca da igualdade de
correto e verdadeiro na vida cotidiana. O pensamento cotidiano apresenta-se repleto de pensa-
mentos fragmentários, de material cognoscitivo e até de juízos que nada têm a ver com a
manipulação das coisas ou com nossas objetivações coisificadas, mas que se referem exclusiva-
mente a nossa orientação social. Na manipulação das coisas ou de nossas objetivações
coisificadas, a identificação espontânea do "correto" e do "verdadeiro" é aproblemática (pelo
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menos no plano da vida cotidiana, pois aqui não falamos da ciência). Mas essa
aproblematicidade termina quando utilizamos o "correto" para avaliar a possibilidade de nos
movermos num meio determinado e de movermos esse mesmo meio determinado. Nesse caso,
o correto é verdade tão-somente na medida em que, com sua ajuda, pudermos prosseguir na
cotidianidade com os menores atritos possíveis. Isso nada significa com relação ao conteúdo
veritativo objetivo (independente de nossa atividade individual) do pensamento ou do juízo em
questão. (Naturalmente, a atividade individual é aqui muito poucas vezes completamente
individual; em geral, é uma projeção das aspirações e dos interesses de uma camada ou classe
social). Até mesmo os juízos e pensamentos objetivamente menos verdadeiros podem resultar
corretos na atividade social, quando representarem os interesses da camada ou classe a que
pertence o indivíduo e, desse modo, facilitarem a esse a orientação ou a ação correspondente
às exigências cotidianas da classe ou camada em questão. É indiscutível que uma ação
correspondente aos interesses de uma classe ou camada pode se elevar ao plano da praxis,
mas nesse caso superará o da cotidianida-de; a teoria da cotidianidade, nesses casos,
converte-se em ideologia, a qual assume uma certa independência relativa diante da praxis
cotidiana, ganha vida própria e, consequentemente, coloca-se em relação primordial não com a
atividade cotidiana mas com a praxis. Não será demais repetir aqui que não existe nenhuma
"muralha chinesa" entre a atividade cotidiana e a praxis não-cotidiana ou o pensamento não-
cotidiano mas existem infinitos tipos de transição.
Deduz-se, do exposto, que a fé e a confiança desempenham na vida cotidiana um
papel muito mais importante que nas demais esferas da vida. Isso não significa, de modo
algum, que a fé e a confiança sejam aqui mais intensas que em outros campos: a fé religiosa
costuma ser mais intensa e mais incondicional, assim como a confiança tem significação mais
intensa e emocionalmente maior na ética ou na atividade política. O que queremos dizer é que
esses dois sentimentos "ocupam mais espaço" na cotidianidade, que sua função mediadora
torna-se necessária em maior número de situações. Os homens não podem dominar o todo com
um golpe de vista em nenhum aspecto da realidade; por isso, o conhecimento dos contornos
básicos da verdade requer confiança (em nosso método científico, na cognoscibilidade da
realidade, nos resultados científicos de outras pessoas, etc). Na cotidianidade, o conhecimento
se limita ao aspecto relativo da atividade, e, por isso, o "espaço" da confiança e da fé é
inteiramente diverso. Ao astrônomo, não basta ter fé em que a Terra gira em redor do sol;
mas, na vida cotidiana, essa fé é plenamente suficiente. Não basta ao médico acreditar na
ação terapêutica de um remédio, mas essa fé é suficiente para o enfermo (e precisamente na
base de uma simples fé posta no médico ou na medicina, com maior ou menor fundamento
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empírico). Esses exemplos são já suficientes para indicar que não estamos aqui em face de
contradições insolúveis, mas de modos de comportamento "relacionados entre si". Quando o
médico atua na base da confiança (coisa que ocorre frequentemente), está atuando na base da
cotidianidade. E, em troca, quando — num dado momento da vida cotidiana — o indivíduo
começa a refletir acerca de uma superstição que compartilhava, ou de uma tese que assimilou
da integração de que faz parte, passando a supor que nem uma nem outra são aceitáveis porque
contradizem a experiência, e, logo após, começa a examinar o objeto posto em questão
comparando-o com a realidade, para terminar recusando-o, em tal momento o referido
indivíduo elevou-se acima do decurso habitual do pensamento cotidiano, ainda que apenas em
tal momento.
Temos falado de fé e de confiança, até aqui, de modo global. Neste contexto, não
podemos analisar a questão da diferença entre esses afetos, a qual se manifesta apesar da
frequente comunidade de função dos mesmos; limitar-nos-emos a precisar que a confiança é
um afeio do indivíduo inteiro e, desse modo, mais acessível à experiência, à moral e à teoria
do que a fé, que se enraíza sempre no individual-particular.
Dado que o pensamento cotidiano é pragmático, cada uma de nossas atividades
cotidianas faz-se acompanhar por uma certa fé ou uma certa confiança. Não há lugar para a fé
quando está em jogo a "justeza" da manipulação ou da obje-tivação coisifiçada; em princípio,
basta a experiência para realizar as correções necessárias. Depende da totalidade, da in-
dividualidade do homem e da situação social dada qual será o afeto fundamental do
movimento no meio social, no qual a unidade de correto e verdadeiro manifesta-se de modo
mais problemático.
O característico do pensamento cotidiano é a ultragenera-Uzação, seja em suas formas
"tradicionais", seja como consequência da experiência individual. Os juízos ultrageneraliza-
dores são todos eles juízos provisórios que a prática confirma ou, pelo menos, não refuta,
durante o tempo em que, baseados neles, formos capazes de atuar e de nos orientar. Se o afeto
"confiança" adere a um juízo provisório, não representa nenhum "preconceito" o fato de se ter
"apenas" juízos provisórios ultrageneralizados; como vimos, nem sequer é possível formular a
exigência, tanto no começo quanto durante a ação, de juízos mais precisos, sob pena de
perdermos a capacidade de ação. Mas, quando já não se trata da orientação na vida cotidiana
e sim de nossa inteira individualidade, de nossa integridade moral e de seu desenvolvimento
superior, caso em que só podemos operar com juízos provisórios pondo em risco essa
integridade, então deveremos ter a capacidade de abandoná-los ou modificá-los. Isso poderá
ser feito quando o juízo se apoiar na confiança, mas não quando se basear na fé. Os juízos
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provisórios que se enraízam na particularidade e, por conseguinte, se baseiam na fé são pré-
juízos ou preconceito15
.
Os juízos provisórios (e os preconceitos) são meros exemplos particulares de
ultrageneralização. Pois é característico da vida cotidiana em geral o manejo grosseiro do
"singular". Sempre reagimos a situações singulares, respondemos a estímulos singulares e
resolvemos problemas singulares. Para podermos reagir, temos de subsumir o singular, do
modo mais rápido possível, sob alguma universalidade; temos de organizá-lo em nossa
atividade cotidiana, no conjunto de nossa atividade vital; em suma, temos de resolver o
problema. Mas não temos tempo para examinar todos os aspectos do caso singular, nem
mesmo os decisivos: temos de situá-lo o mais rapidamente possível sob o ponto de vista da
tarefa colocada. E isso só se torna possível graças à ajuda dos vários tipos de ultragene-
ralização. É assim, por exemplo, que se recorre à analogia. É através dela que;
principalmente, funciona o nosso conhecimento cotidiano do homem, sem o qual não
poderíamos sequer nos orientar; classificamos em algum tipo já conhecido por experiência o
homem que agora queremos conhecer sob algum aspecto importante para nós e essa
classificação por tipos permite nossa orientação. Tão-somente a posteriori torna-se "evidente"
na prática que podemos dissolver aquela analogia e conhecer o fenômeno singular — nesse
caso, o homem em questão — em sua concreta totalidade e, assim, avaliá-lo e compreendê-lo.
Decerto, o juízo provisório de analogia pode se cristalizar em preconceito; pode ocorrer que
já não prestemos atenção a nenhum fato posterior que contradiga abertamente nosso juízo
provisório, tanto podemos nos manter submetidos à força de nossas próprias tipificações, de
nossos preconceitos. Desse modo, o juízo provisório analógico é inevitável no conhecimento
cotidiano dos homens, mas está exposto ao perigo da cristalização (fossilização); e, embora
inicialmente o tratamento grosseiro do singular não seja prejudicial, pode con-verter-se num
dano irreparável se se conserva após ter cumprido sua função. Pode se tratar de um erro
moral, caso em que a orientação na vida cotidiana não será "perturbada"; mas também pode
ser um erro capaz de acarretar uma das catástrofes da vida cotidiana.
Algo parecido ocorre no caso do uso dos precedentes. O precedente tem mais
importância para o conhecimento da situação que para o conhecimento das pessoas. É um
"indicador" útil para nosso comportamento, para nossa atitude. ("Outros agiram nessa
situação em que me encontro desse ou daquele modo", "já havia exemplos disso", etc.) Sem
essa atitude, ver-nos-emos constantemente na situação do asno de Buridan. Por isso, em
15
Estudei detalhadamente os preconceitos no livro Tarsadalmi nerep és (Papel social e preconceitos), publicado
em húngaro pela Akadémiai Kiadó (Editora Acadêmica), Budapeste, 1966.
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princípio, não se trata de um "mal". Essa atitude tem efeitos negativos, ou mesmo destrutivos,
apenas quando nossa percepção do precedente nos impede de captar o novo, irrepetível e
único de uma situação.
Não há vida cotidiana sem imitação. Na assimilação do sistema consuetudinário,
jamais procedemos meramente "segundo preceitos", mas imitamos os outros; sem mimese,
nem o trabalho nem o intercâmbio seriam possíveis. Como sempre, o problema reside em
saber se somos capazes de produzir um campo de liberdade individual de movimentos no
interior da mimese, ou, em caso extremo, de deixar de lado completamente os costumes
miméticos e configurar novas atitudes. Naturalmente, existem na vida cotidiana setores nos
quais não é necessária a individualização da mimese, bem como épocas nas quais ela se torna
supérflua; ademais, os tipos e os graus de individualização são necessariamente diversos nas
várias esferas vitais, nas diferentes épocas e situações.
A entonação tem uma grande importância na vida cotidiana, tanto na configuração de
nosso tipo de atividade e de pensamento quanto na avaliação dos outros, na comunicação, etc.
O aparecimento de um indivíduo em dado meio "dá o tom" do sujeito em questão, produz uma
atmosfera tonal específica em torno dele e que continua depois a envolvê-lo. A pessoa que
não produz essa entonação carece de individualidade, ao passo que a pessoa incapaz de
percebê-la é insensível a um aspecto importantíssimo das relações humanas. Mas conservar-
se preso a essa realidade tonal seria outro tipo de ultragene-ralização, mais no terreno
emocional, nesse caso, que naquele dos juízos. Talvez fosse possível aplicar a esse fenómeno
o termo "preconceito emocional". O fenômeno apresenta-se frequentemente ligado ao
preconceito baseado na ultrageneralização.
Todos esses momentos característicos do comportamento e do pensamento cotidianos
formam uma conexão necessária, apesar do caráter aparentemente casual da "seleção" em que
aqui se apresentam. Todos têm em comum o fato de serem necessários para que o homem seja
capaz de viver na cotidia-nidade. Não há vida cotidiana sem espontaneidade, pragmatismo,
economicismo, andologia, precedentes, juízo provisório, ul-trageneralização, mimese e
entonação. Mas as formas necessárias da estrutura e do pensamento da vida cotidiana não
devem se cristalizar em absolutos, mas têm de deixar ao indivíduo uma margem de
movimento e possibilidades de explicitação. (Isso tem grande importância para o que diremos
mais abaixo). Se essas formas se absolutizam, deixando de possibilitar uma margem de
movimento, encontramo-nos diante da alienação da vida cotidiana.
Deve-se afirmar, antes de mais nada, que alienação é sempre alienação em face de
alguma coisa e, mais precisamente, em face das possibilidades concretas de desenvolvimento
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genérico da humanidade. A mimese do mesmo tipo, fenómeno generalizado na época em que
ainda não se havia desenvolvido o indivíduo moderno, mas presente formalmente também em
nossos dias, nas mesmas proporções, deve ser entendida como produto da alienação apenas
nesse último caso, pois as possibilidades configuradas na humanidade a partir daquele então
exigem já uma orientação amplamente individual.
A vida cotidiana, de todas as esferas da realidade, é aquela que mais se presta à
alienação. Por causa da coexistência "muda", em-si, de particularidade e genericidade, a
atividade cotidiana pode ser atividade humano-genérica não consciente, embora suas motivações
sejam, como normalmente ocorre, efêmeras e particulares. Na cotidianidade, parece "natural" a
desagregação, a separação de ser e essência. Na coexistência e sucessão heterogêneas das
atividades cotidianas, não há por que revelar-se nenhuma individualidade unitária; o homem
devorado por e em seus "papéis" pode orientar-se na cotidiani-dade através do simples
cumprimento adequado desses "papéis". A assimilação espontânea das normas
consuetudinárias dominantes pode converter-se por si mesma em conformismo, na medida em
que aquele que as assimila é um indivíduo sem "núcleo"; e a particularidade que aspira a uma
"vida boa" sem conflitos reforça ainda mais esse conformismo com a sua fé.
Mas a estrutura da vida cotidiana, embora constitua indubitavelmente um terreno
propício à alienação, não é de nenhum modo necessariamente alienada. Sublinhemos, mais
uma vez, que as formas de pensamento e comportamento produzidas nessa estrutura podem
perfeitamente deixar ao indivíduo uma margem de movimento e possibilidades de explicitação,
permitindo-lhe — enquanto unidade consciente do humano-ge-nérico e do individual-particular
— uma condensação "prismática", por assim dizer, da experiência da cotidianidade, de tal
modo que essa possa manifestar-se como essência unitária das formas heterogêneas de
atividade próprias da cotidianidade e nelas objetivar-se. Nesse caso, o ser e a essência não se
apresentam separados e as formas de atividade da cotidianidade não aparecem como formas
alienadas, na proporção em que tudo isso é possível para os indivíduos de uma dada época e
no plano máximo da individualidade — e, por conseguinte, de desenvolvimento do humano-
genérico — característico de tal época. Quanto maior for a alienação produzida pela estrutura
econômica de uma sociedade dada, tanto mais a vida cotidiana irradiará sua própria alienação
para as demais esferas.
Existe alienação quando ocorre um abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e
as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção humano-
genérica e a participação consciente do indivíduo nessa produção. Esse abismo não teve a
mesma profundidade em todas as épocas nem para todas as camadas sociais; assim, por exem-
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plo, fechou-se quase completamente nas épocas de florescimento da polis ática e do
Renascimento italiano; mas, no capitalismo moderno, aprofundou-se desmesuradamente.
Ademais, tal abismo jamais foi inteiramente insuperável para o indivíduo isolado: em todas as
épocas, sempre houve um número maior ou menor de pessoas que, com ajuda de seu talento,
de sua situação, das grandes constelações históricas, conseguiu superá-lo. Mas, para a massa,
para o grande número dos demais, subsistiu o abismo, quer quando era muito profundo, quer
quando mais superficial.
Como dissemos, o moderno desenvolvimento capitalista exacerbou ao extremo essa
contradição. Por isso, a estrutura da cotidianidade alienada começou a expandir-se e a
penetrar em esferas onde não é necessária, nem constitui uma condição prévia da orientação,
mas nas quais aparece até mesmo como obstáculo para essa última.
Não se trata de afirmar que as categorias da cotidianidade sejam alheias às esferas não-
cotidianas. Basta aludir à função desempenhada pelos precedentes na atividade política, pela
analogia na comparação científica e artística, pela mimese ou pela entonação na arte. Mas
essa limitada comunidade ou universalidade de categorias jamais significou uma identidade
estrutural com, ou uma assimilação pelas, formas de atividade e conteúdos da cotidianidade.
Em troca, a ciência moderna, ao colocar-se sobre fundamentos pragmáticos, "absorve",
assimila a estrutura cotidiana; e, quando a arte moderna decide escolher como temas as
efêmeras motivações e resolve fazer abstração da essência da vida humana, da constante
oscilação e da interação entre a cotidianidade e a não-cotidianidade, a cotidianidade absorve
inclusive a arte. A aludida estrutura, que na cotidianidade não aparece como um fenômeno de
alienação, é necessariamente manifestação de alienação na arte, na ciência, nas decisões
morais e na política. E é evidente, com efeito, que a estrutura cotidiana só começa a expandir-
se "para cima" quando ela própria já é alienada.
Repetimos: a vida cotidiana não é alienada necessariamente, em consequência de sua
estrutura, mas apenas em determinadas circunstâncias sociais. Em todas as épocas, existiram
personalidades representativas que viveram numa cotidianidade não-alienada; e, dado que a
estruturação científica da sociedade possibilita o final da alienação, essa possibilidade
encontra-se aberta a qualquer ser humano.
Mas isso não significa, de nenhum modo, que a vida de qualquer homem torne-se
humano-genérica em sua atividade principal no trabalho e nas objetivações. Humanização da
vida cotidiana não quer dizer que os homens vão receber a inteligência de Planck, a mão de
Menuhin ou as capacidades políticas de Lênin. Trata-se de algo que pode ser expresso com as
palavras de Goethe: todo homem pode ser completo, inclusive na cotidianidade. Mas de que
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modo?
Sabemos que a vida cotidiana tem sempre uma hierarquia espontânea determinada pela
época (pela produção, pela sociedade, pelo posto do indivíduo na sociedade).
Essa hierarquia espontânea possibilita à individualidade uma margem de movimento
diferente em cada caso. Na época iniciada com a explicitação da sociedade burguesa, essa
margem se ampliou, pelo menos em princípio. Possibilidades sempre existiram; mas, a partir
do momento em que a relação de um homem com sua classe tornou-se "casual" (Marx), au-
mentou para todo homem a possibilidade de construir para si uma hierarquia consciente, ditada
por sua própria personalidade, no interior da hierarquia espontânea. Contudo, as mesmas
relações e situações sociais que criaram essa nova possibilidade impediram, no essencial, seu
desenvolvimento; no momento da superação dialética do conjunto da sociedade, ou seja, com
o fim da alienação, poder-se-á contar com a máxima explicitação daquela possibilidade.
Ainda com as palavras de Goethe, podemos chamar de "condução da vida" (Lebens-fúhrung) a
construção dessa hierarquia da cotidianidade efe-tuada pela individualidade consciente.
"Condução da vida", portanto, não significa abolição da hierarquia espontânea da
cotidianidade, mas tão-somente que a "muda" coexistência da particularidade e da
genericidade é substituída pela relação consciente do indivíduo com o humano-genérico e que
essa atitude — que é, ao mesmo tempo, um "engagement" moral, de concepção do mundo, e
uma aspiração à auto-realização e à autofruição da personalidade — "ordena" as várias e
heterogêneas atividades da vida. A condução da vida supõe, para cada um, uma vida própria,
embora mantendo-se a estrutura da cotidianidade; cada qual deverá apropriar-se a seu modo
da realidade e impor a ela a marca de sua personalidade. Ê claro que a condução da vida é
sempre apenas uma tendência de realização mais ou menos perfeita. E é condução da vida
porque sua perfeição é função da individualidade do homem e não de um dom particular ou
de uma capacidade especial.
Como vimos, a condução da vida não pode se converter em possibilidade social
universal a não ser quando for abolida e superada a alienação. Mas não é impossível empenhar-
se na condução da vida mesmo enquanto as condições gerais econô-mico-sociais ainda
favorecem a alienação. Nesse caso, a condução da vida torna-se representativa, significa um
desafio à desumanização, como ocorreu no estoicismo ou no epicurismo. Nesse caso, a
"ordenação" da cotidianidade é um fenômeno nada cotidiano: o caráter representativo,
"provocador", excepcional, transforma a própria ordenação da cotidianidade numa ação
moral e política.
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EXISTE contraposição real entre indivíduo e comunidade, ou trata-se de uma
contraposição apenas aparente? Colocada nesse nível de generalidade, essa pergunta não pode
ter uma resposta unívoca. Pois a resposta depende sempre das peculiaridades do indivíduo e da
comunidade que estivermos considerando; ela sempre apresenta, em primeira instância, um
ca-ráter de conteúdo.
Mas, antes de empreendermos uma análise detalhada do problema, devemos diferenciá-
lo de outras questões com as quais é habitualmente confundido. A primeira delas refere-se à
relação entre indivíduo e sociedade, a segunda à relação entre indivíduo e grupo, a terceira à
relação entre indivíduo e massa.
A vinculação do indivíduo com a sociedade coincide com a vinculação do indivíduo
com a comunidade quando a mais alta integração social assume ela mesma um caráter
comunitário. As últimas integrações desse tipo foram a família clânica e as tribos. Quanto
mais diferenciada e estruturada é uma sociedade concreta, tanto menos poder-se-á constituir
ela própria em comunidade do homem. Já na época da polis antiga e naquela dos estamentos
da Alta Idade Média, na da democracia urbana do Renascimento e ainda mais na situação de-
signada por Marx como "democracia de não-liberdade", a função de comunidade pode caber
apenas a uma das camadas ou classes essenciais da sociedade global, isto é, a uma integração
dentro da diferenciação. A partir do desenvolvimento dos grandes estados nacionais burgueses,
mesmo isso deixou de ser possível. Por outro lado, as teorias sociais contemporâneas estão
reagindo rapidamente a essa mudança. Nas utopias de Morus e de Campanella, a sociedade
inteira ainda funciona como uma comunidade; isso já não ocorre no utopismo que se inicia
com o Iluminismo francês. Desde Morelly até Fourier, o interesse dos utópicos concentra-se
em torno da questão de como construir uma sociedade a partir de comunidades, de como
possibilitar que a relação do indivíduo com a sociedade seja mediatizada por comunidades
orgânicas. No Contraí Social, Rousseau analisa detalhadamente a razão pela qual a ordem
estatal unitária moderna não pode ser uma comunidade; e, em LM Nouvelle Heloise, propõe-se
a apresentar um modelo da nova "pequena comunidade". É evidente que, tendo em vista a pro-
gressiva industrialização nessa época de "sociedades industriais", a única colocação razoável é
a última. Quando pensamos no futuro da humanidade, é quase impossível imaginar que a in-
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tegração total possa chegar a converter-se em comunidade; mais plausível aparece a imagem de
uma estrutura social articulada em comunidades orgânicas.
O problema indivíduo-comunidade não pode se identificar com a relação entre o
indivíduo e o grupo, já que essa relação pode perfeitamente basear-se numa casualidade. Que
nos matriculem na seção a ou b de um mesmo curso, por exemplo, é uma questão casual do
ponto de vista da minha individualidade; também dependem do acaso o bairro em que vivo, a
profissão para a qual sou formado, a fábrica em que encontro trabalho, etc. Na medida em que
esses fatores deixam de ser casuais, na medida em que minha individualidade "constrói" o
grupo a que pertenço, "meus" grupos convertem-se paulatinamente em comunidades. Nem
todo grupo, portanto, pode ser considerado como uma comunidade, embora qualquer grupo
possa chegar a ser comunidade. Para acrescentar um outro aspecto: o indivíduo pode
pertencer a numerosos grupos, na medida em que o fato de pertencer a grupos define-se
através de uma certa analogia de interesses e de objeti-vos, bem como mediante uma certa
atividade em comum. Mas há finalidades, interesses e atividades importantes, ao lado de
outros que não o são na mesma medida. Isso origina uma hierarquização de "nossos" grupos,
distinguindo principalmente entre os grupos que representam nossos principais interesses,
objetivos e atividades, os quais são assumidos igualmente por eles, e os grupos que se
relacionam com nossos interesses, atividades e objetivos secundários, inessenciais. Não existe
entre as comunidades uma hierarquia desse tipo. No caso "clássico", o homem pertence a uma
comunidade; e, nos casos "não clássicos", pertence apenas a poucas. Quando se pertence a
mais de uma comunidade, diminui o caráter de comunidade dos grupos secundários e
terciários. Vejamos, por fim, um outro aspecto, de grande importância: nem todo grupo
apresenta uma hierarquia fixa e específica de valores; no mais das vezes, a única coisa que se
choca com as normas do grupo é a violação dos interesses do grupo; fora isso, existem no
grupo "éticas" plenamente pluralistas e contraditórias. Os alunos da seção a têm de ser
incondicionalmente solidários em suas ações diante dos alunos da classe b; mas nem sequer
nesse caso o grupo se torna comunidade, salvo se dispuser de um sistema de normas
relativamente concreto e válido para todos os seus membros.
Acentuamos mais acima o caráter casual — casual em relação ao fato de pertencer a
uma comunidade — de nossa participação em um grupo. Mas esse ponto deve ainda ser
esclarecido. Pois se nos poderia objetar que o nascer numa determinada comunidade — na
comunidade da polis, por exemplo — é ainda menos objeto de escolha que o fato de pertencer
a essa ou aquela seção do curso. Mas é que o fato de pertencer a uma comunidade apresenta-
se segundo dois modos distintos, o que empresta à casualidade um aspecto novo. Por um
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lado, pode-se pertencer a uma determinada comuni-dade em consequência de uma
necessidade exterior; por outro, isso pode ocorrer em consequência de uma necessidade
interna, ou seja, em consequência de uma escolha individual. No caso da polis ou dos
estamentos, trata-se do primeiro tipo. Essas sociedades ainda não são sociedades "puras", ou
seja, ainda não se consumou nelas o processo que Marx designou como "retrocesso dos limites
naturais" ["Zuruckweichung der Na-turschranken"]. As comunidades dessas sociedades são
"naturais" no sentido de que não podem ser objeto de uma escolha livre e de que a posição
social do indivíduo, as possibilidades de desenvolvimento de sua individualidade e de sua
hierarquia de valores estão determinadas pelo nascimento e no momento do nascimento. Um
jovem nascido numa família nobre da Alta Idade Média talvez pudesse escolher livremente
(muito poucas vezes) entre ser cavaleiro ou sacerdote, mas não podia escolher uma vida de
servo ou uma existência burguesa; possibilidades de escolha desse tipo apresentam-se apenas
quando a comunidade em questão, de tipo natural, encontra-se já em processo de dissolução.
Mas a vinculação que venha a se estabelecer não é casual ou acidental, pois sua essência
consiste em que é impossível "sair" dela, transcendê-la em individualidade. Tão-somente uma
sociedade sem estamentos, a sociedade classista "pura", a sociedade burguesa, consegue abolir
as comunidades naturais enquanto integrações sociais primárias; e tão-somente em tal sociedade
pode se produzir, por conseguinte, uma relação acidental ou "casual" do homem com sua
integração social básica ou com sua classe. E apenas nessa sociedade — em paralelismo com o
fenômeno acima descrito — é que pode ganhar espaço o movimento que se manifesta na
escolha de nossa integração, isto é, o movimento que nos permite inverter a antiga situação:
não se tornar indivíduo mediante nossa comunidade, mas ser capaz de escolher uma
comunidade graças ao fato de já ser indivíduo. O aristocrata que, na Revolução Francesa,
adota um nome burguês, ou o burguês que assume como seus os interesses e os objetivos do
movimento operário, são produtos e representantes dessa nova possibilidade. O
desenvolvimento dessa relação "casual", a dissolução das comunidades de tipo natural, foi
também o que permitiu ao indivíduo a possibilidade de construir uma família sobre a base de
sua escolha individual. Disso decorre que a classe (a classe social) não é necessariamente uma
comunidade, embora os interesses e as funções dos membros de uma classe sejam idênticos
em todos os aspectos essenciais e embora dominem no sistema de valores da classe normas e
costumes que fornecem uma margem análoga de movimentos. Tampouco o fato de pertencer
à classe pode se transformar no fato de pertencer a uma comunidade; isso só ocorre quando o
membro da classe decide-se conscientemente nesse sentido.
Digamos ainda algo sobre a relação entre o indivíduo e a massa, questão que
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frequentemente se põe de contrabando em nossa problemática, ainda mais injustamente, sem
dúvida, que as demais. Sociedades, classe, grupo, estamento, comunidade, etc, são
efetivamente categorias de uma esfera homogênea de estruturação da sociedade; ao contrário,
a relação entre indivíduo e massa é heterogênea. A massa é co-partici-pação de muitos homens
numa ação determinante, que pode se expressar tanto através de uma ação comum idêntica
quanto de um comum "papel de coristas". Ambas as coisas — a ação comum e o papel de
acompanhamento — podem ser casuais (por exemplo, quando das reações em face do incên-
dio de um teatro), mas também podem ser não-casuais (por exemplo, numa manifestação).
Para a massa, para a multidão, o interesse e a finalidade comuns, a função comum, não são
características necessárias na mesma medida em que o são para os grupos sociais
estruturadores; reciprocamente, para tais grupos, não é característica necessária a atividade
comum ou a comum função de coro. Um grupo cu comunidade jamais pode ser uma "massa",
pois está sempre articulado e estratificado, ao passo que na ação comum a massa pode per-
feitamente aparecer não-estratificada e não-articulada. É evidente que esse "pode" admite a
existência do caso contrário: não é raro que a multidão apareça como uma "comunidade'
Assim, por exemplo, numa manifestação de Primeiro de Maio, a multidão pode ser
representante, nas ruas, de uma comunidade determinada, com interesses e objetivos comuns,
e, portanto, pode-se entendê-la nesse caso como uma entidade organizada, estruturada, de
nenhum modo casual.
Alguns autores, de modo simplista, contrapõem a multidão à comunidade, supondo
que existe multidão precisamente onde não há comunidade. Identificam assim um tipo de
multidão, a multidão não estruturada e, consequentemente, de fácil manipulação, com o
conceito de multidão enquanto tal; fazem e mesmo com a comunidade, ao identificá-la com a co-
munidade democrática formada por indivíduos. Essa equiparação é falsa, mesmo quando se
coloca a serviço de simpáticas idéias de oposição à manipulação. E é falsa até mesmo quando
a multidão realiza um dos seus mais conhecidos traços característicos: as ações "de massa" que
os homens realizam, ou seja, que empreendem conjuntamente, ou como reação a algum
acontecimento, acentuam nos indivíduos que constituem a multidão precisamente os traços, os
objetivos e os interesses idênticos àqueles dos demais, proporcionando-lhes com isso, como
ressonância, uma fundamentação afetiva adicional. Isso não implica de nenhum modo na
abolição da individualidade, mas sim, quando muito, na suspensão provisória ou na subor-
dinação temporária de suas aspirações heterogéneas. E tampouco implica em
manipulabilidade sem obstáculos, já que a força avassaladora da ação das massas persiste
apenas — se é que a massa é formada por verdadeiros indivíduos — enquanto ela não se
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choca com obstáculos na própria individualidade. Pode-se, no máximo, supor — mas essa é
uma restrição certamente importante — que, em consequência da coexistência massiva,
aumentam as possibilidades de manipulação quando a multidão é formada por indivíduos
pouco desenvolvidos ou quando pertence a uma comunidade não-estru-turada (essa segunda
hipótese não coincide necessariamente com a primeira).
Nesse sentido, costuma-se falar de "sociedade de massas". A palavra "massa", com
efeito, tem nesse contexto um sentido bastante lato. Não se trata de co-presença efetiva, de um
comum papel físico de coro. O que se deseja significar com essa expressão é, sobretudo, que
uma sociedade dada favorece exclusivamente — ou em primeiro lugar — a estruturação in-
terna na qual não se podem desenvolver nem a individualidade, nem a comunidade; a
socialidade dos homens, então, passa a expressar-se desde o primeiro momento como se todos
formassem uma multidão manipulada e como se por todos os lados dominasse uma atitude de
dispersão. "Sociedade de massas", portanto, é uma expressão metafórica para descrever uma
sociedade conformista manipulada.
A comunidade é uma unidade estruturada, organizada, de grupos, dispondo de uma
hierarquia homogênea de valores e à qual o indivíduo pertence necessariamente; essa
necessidade pode decorrer do fato de se "estar lançado" nela ao nascer, caso em que a
comunidade promove posteriormente a formação da individualidade, ou de uma escolha
relativamente autônoma do indivíduo já desenvolvido.
Voltemos à nossa questão inicial: a contraposição entre indivíduo e comunidade é real
ou aparente?
Enquanto as comunidades foram comunidades naturais e enquanto a existência social do
indivíduo foi uma existência "necessária" baseada no "estar lançado" na comunidade ao
nascer, essa pergunta teria carecido de sentido. Todo indivíduo se desenvolvia até tornar-se
individualidade precisamente no seio da comunidade. Quem perdia sua comunidade perdia
também a condição de existência da sua atividade; 0 castigo mais duro era o exílio.
Decerto, já nessa época, podiam se produzir contraposições concretas entre o indivíduo
e sua comunidade — e elas efetivamente se produziram. Como se sabe, a expulsão do seio da
comunidade (que se recorde o ostracismo) era a represália por uma contraposição desse tipo,
ou então uma medida preventiva contra ela. A contraposição podia originar-se de duas causas,
frequentemente entrelaçadas: em certos casos, o indivíduo — graças à sua importância ou
popularidade — elevava-se a tal ponto acima de seus concidadãos que sua simples existência
perturbava a atividade relativamente plana dentro da estrutura da comunidade em questão; em
outros, o indivíduo colocava seus objetivos e êxitos particulares, seu enriquecimento pessoal,
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acima dos interesses e das metas da comunidade, tentando utilizar essa como instrumento para
a realização daquelas suas metas particulares. Como é natural, o critério concreto segundo o
qual se determinava quando o indivíduo começava a prejudicar a sociedade variava de acordo
com os diferentes sistemas sociais e políticos. O banimento podia também ser injusto; com
efeito, era esse o seu risco, e as comunidades tinham consciência mais ou menos clara de sua
existência. Todavia, a possibilidade do erro ou da injustiça nunca levou a que se pusesse em
dúvida a justiça do ato preventivo de proteção da comunidade.
Em sociedades-comunidades (pensamos sempre em comunidades naturais), a expulsão
implica num juízo de valor.
O banido jamais está "certo", mesmo quando o concreto ato de banimento é
evidentemente injusto. O indivíduo banido da sociedade sente-se como um peixe fora d'água,
como um estrangeiro eterno (no caso de Ovídio), ou se rebela contra sua sociedade; mas esse
comportamento jamais lhe é perdoado, seja a causa de seu banimento a superioridade de sua
individualidade (caso de Temístocles), seja o fato de ter utilizado abusivamente a comunidade
para alcançar suas próprias metas e interesses (caso de Alcibíades). Coriolano, por um lado, e
a ida do Imperador Henrique a Canossa, por outro, são exemplos da catarse típica do homem
que vive em unidade natural.
O indivíduo reconhece à comunidade natural o direito de bani-lo mesmo quando se
considera mais valioso que aqueles que o expulsam. Por isso é que Sócrates negou-se a fugir
da prisão, convencido de que as leis de sua pátria — que o condenavam à morte — eram,
apesar disso, obrigatórias para ele.
Nas fases de dissolução das comunidades naturais, rom-pe-se definitivamente essa
contraditória harmonia entre o indivíduo e a comunidade e começam a desempenhar um papel
cada vez maior as comunidades não "pré-existentes", as comunidades escolhidas. Nessa fase,
ainda não se coloca o problema de saber se indivíduo e comunidade se contrapõem; o que está
em discussão é apenas se o homem pode entrar em conflito com uma comunidade
determinada, ou, mais exata-mente, se o indivíduo pode escolher autonomamente, no lugar
das comunidades em dissolução cujos valores se diluem progressivamente, uma nova
comunidade que explicite uma hierarquia de valores fixa e estável. Não se trata, portanto, de
uma simples contraposição entre indivíduo e comunidade, mas entre o indivíduo que aspira a
uma nova comunidade e uma velha comunidade em dissolução cada vez maior. Por todas as
partes encontramos essas comunidades livremente escolhidas, mas firmes, desde a poikilé stoá
até os discípulos de Jesus, passado pelo jardim de Epicuro. Uma situação análoga ocorre com
os movimentos heréticos da Idade Média, nos quais, como se sabe, os laços comunitários não
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foram mais débeis, e sim mais fortes, que na Igreja oficial.
O problema da contraposição entre comunidade e indivíduo surgiu com a "sociedade
pura", com a sociedade burguesa, por causa da relação casual do homem com sua classe. Em
suma: surgiu como consequência da sociedade na qual se separaram o fato de pertencer a uma
classe e o fato de pertencer a uma comunidade, na qual o indivíduo passou a estar submetido
enquanto tal às leis do movimento das classes, na qual o homem converteu-se em ser social não
necessariamente comunitário.
Até aqui, temos falado de modo simplificado das comunidades naturais, com o objetivo
de contrapô-las ao desenvolvimento iniciado com a sociedade burguesa. Mas agora teremos de
distinguir, já que as formas concretas das comunidades naturais foram muito variadas. Neste
momento, tem importância tão-só o fato de que também variou a margem de movimento que
essas comunidades apresentaram para o desenvolvimento do indivíduo ou concederam no caso
da individualidade já desenvolvida. Ou, em outras palavras: indivíduos com diferentes graus de
desenvolvimento concentraram diferentes margens de movimento em diferentes formas
comunitárias. O aumento da liberdade de movimento do indivíduo não se deve ao
debilitamento da comunidade, pois essa liberdade já está prefigurada, em proporções bastante
variáveis, nas comunidades que funcionam adequadamente e não se debilitam. Não vamos
nos aprofundar nessa problemática, mas observaremos que o tipo (variável) de comunidade e o
desenvolvimento da individualidade encontram-se em intexação. Gostaríamos de ilustrar esse
ponto com um exemplo. Se lermos hoje a República de Platão para o indivíduo mais
manipulado, menos "individual", esse exclamará horrorizado que, em um tal Estado, o
indivíduo está totalmente submetido ao posto que lhe é indicado pela divisão do trabalho e
não dispõe de nenhuma liberdade. Mas, na época de Platão, ninguém — nem mesmo os seus
piores inimigos (nem tampouco Aristóteles) — diri-giu-lhe uma tal acusação. Pois, para o
indivíduo da época, a vida em um Estado de tipo platônico não pressuporia nenhuma redução
da individualidade; aquele indivíduo não era o indivíduo de hoje, e só se pode falar numa
"redução" de necessidades, aspirações, etc, se essas já existirem efetivamente. Situação análoga
experimentamos ao ler a Utopia de Tomás Morus; mas, na época dele, todos afirmavam que
os habitantes da ilha de Utopia eram absolutamente livres. E os habitantes de Utopia, por sua
vez, teriam considerado como amor-daçamento do indivíduo o fato de que a comunidade pres-
crevesse a seus membros a inclusão numa determinada religião, o que numa comunidade do
século XI, provavelmente, ninguém teria considerado "como diminuição da própria Uberdade.
É evidente que, ao estudarmos o desenvolvimento histórico da individualidade, não
devemos jamais partir do termo médio dos indivíduos de uma época. Temos de analisar a
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possibilidade máxima produzida pela época em questão para o desenvolvimento da
individualidade. Essa possibilidade máxima pode ser descoberta nos chamados indivíduos
representativos, que são sempre excepcionais no sentido de que realizam até o fim a
possibilidade dada. Essa distinção é tanto mais importante quanto maior for, numa sociedade
determinada, a alienação, quanto mais radicalmente a essência humana estiver separada da
existência dos homens médios. Por isso é que ela se revela sobremaneira importante ao
estudarmos os indivíduos da sociedade capitalista. Na análise da individualidade burguesa,
manifestam-se principalmente dois pontos de vista contraditórios. Alguns autores afirmam que
a individualidade propriamente dita foi criada pela sociedade burguesa e que qualquer outra
sociedade não pode deixar de ter como consequência a abolição dessa individualidade (é a
tese dos liberais); outros opinam que a equiparação formal realizada pela burguesia, o
conformismo que isso acarretou e, sobretudo, a manipulação já teriam abolido o
desenvolvimento da individualidade, a iniciativa individual, e, com ela, a possibilidade de
explicitação de "grandes homens", de indivíduos verdadeiramente livres (é a concepção do
romantismo). Para quem considere os fatos com atenção, resultará evidente que as duas
análises contêm elementos de verdade, ainda que em sentidos diferentes. É verdade que a
sociedade burguesa desenvolveu a individualidade numa medida sem precedentes; isso pode
ser comprovado do modo mais evidente se recordarmos o momento histórico em que tal
desenvolvimento iniciou o seu processo, ou seja, o Renascimento. Posteriormente, a
individualidade se enriqueceu com características inteiramente novas, como a subjetividade, a
"interioridade", documentadas pelo grande desenvolvimento da música e da lírica, seus
sensíveis sismógrafos. Tão-somente a sociedade burguesa poderia proporcionar ao indivíduo
a possibilidade de elevar-se a qualquer altura: a personalidade de Napoleão exemplifica sen-
sivelmente essa circunstância. Mas, subsequentemente, revela-se a verdade da crítica
romântica: essa mesma sociedade, ao subsumir o indivíduo sob sua classe, ao submetê-lo às
leis econômicas como se essas fossem leis naturais, aboliu aquela grande possibilidade e fez
dos indivíduos livres nada mais que escravos da alienação, até o ponto em que de facto os
indivíduos se viram colocados num nível inferior àquele dos indivíduos de épocas anteriores.
Durante o século passado, essa segunda tendência reforçou-se constantemente e, em nossos
dias, a maior parte dos indivíduos representativos é representativa precisamente pelo fato de
negar seu mundo e de buscar uma nova perspectiva para o desenvolvimento humano.
A configuração do mundo burguês acarretou uma alteração básica da hierarquia moral
dos valores — e, de modo mais geral, da hierarquia social dos mesmos — e, ao mesmo
tempo, transformou a relação do indivíduo com essa hierarquia. Nas comunidades naturais,
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imperava uma ordem fixa de valores, existia uma hierarquia de valores representada pela co-
munidade e todo indivíduo assimilava-a necessariamente. (Na Antiguidade, por exemplo,
ninguém podia pôr em dúvida que as "virtudes fundamentais" eram a sabedoria, a coragem, a
temperança e a justiça). É evidente que também naquelas comunidades existia uma margem
de movimento e de escolha individual. O desenvolvimento da autonomia do indivíduo era
medida por sua capacidade de avaliar individualmente o caso singular oferecido a seu
julgamento, bem como de aplicar segundo sua individualidade os valores dados a cada
concreta situação de escolha. A explicitação da sociedade burguesa acarretou também a
dissolução das hierarquias axiológicas, fixas, inclusive das comunidades naturais. A partir de
então, a tarefa do indivíduo não mais consiste apenas em aplicar uma hierarquia de valores já
dada a cada ação concreta (embora também isso seja imprescindível), mas igualmente em
escolher os valores e construir sua própria hierarquia valorativa no interior de certos limites,
mais ou menos amplos. Assim, com a escolha dos valores, aumentam de modo particular as
possibilidades da individualidade. Mas temos de repetir que, na mesma sociedade, os
interesses, costumes, ou, simplesmente, as fórmulas de tratamento interindividual das classes
sociais, que em seu conjunto nada têm a ver com a tábua de valores morais, apresentam uma
tendência no sentido de cumprirem uma função avaliativa muito marcada e inequívoca.
Recordarmos aqui, ademais, o particular fortalecimento do conformismo.
Voltemos à relação do indivíduo com a comunidade. Do que até agora dissemos,
resulta que pertencer a uma comunidade não é um fato obrigatório. E isso porque, na
sociedade burguesa, o homem não nasce numa comunidade, sua existência individual não está
determinada por sua existência social: o indivíduo burguês cresce frequentemente fora de
qualquer comunidade e chega mesmo a viver assim por toda a sua vida. A maioria dos
indivíduos burgueses — pelo menos durante algum tempo — considera algo ideal essa vida
sem comunidade, idealizando-a enquanto "liberdade pessoal". A "libertação" do poder da
sociedade permite-lhe converter de modo explícito seus interesses privados em motor das ações
do individualismo, para os quais o chamado "interesse geral" — o progresso — da sociedade
realiza-se através da perseguição dos interesses privados. A carência de comunidade
converte-se em princípio para o individualismo, ao passo que sua autoconsciência desemboca
na chamada "teoria do egoísmo".
Mas isso não significa que o indivíduo da sociedade burguesa careça necessariamente
de comunidade. O que se altera é apenas sua relação com a comunidade. Quando chega a
pertencer a uma, trata-se de uma comunidade construída, livremente escolhida. Os
revolucionários burgueses, os plebeus, criaram sempre comunidades desse tipo, como ocorreu,
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por exemplo, durante a Revolução Francesa. Logo após, a classe operária começou a construir
também suas próprias organizações comunitárias independentes. O objetivo da criação de tais
comunidades era o prosseguimento vitorioso da luta contra a exploração. O trabalhador que
atinge a consciência de classe e cria uma comunidade para abolir a existência das classes,
colocando novos valores no lugar da ordem e da hierarquia axiológicas existentes, é o
representante de tudo aquilo que a própria sociedade burguesa criou no plano do desenvolvi-
mento da individualidade.
Mas o indivíduo tem sempre a possibilidade de escolher uma comunidade? E qualquer
comunidade? A primeira pergunta deve ser respondida com uma inequívoca negação. Basta
pensar em artistas como Schubert, Schumann, Beethoven. Todo o mundo afetivo musical
deles apresenta a marca da nostalgia de uma comunidade não encontrada ou perdida. Ê
evidente que a possibilidade aludida deve sempre ser analisada em relação com o indivíduo
em questão. E, para responder à segunda pergunta, devemos introduzir em nossa reflexão o
conceito de "valor".
Essa segunda pergunta é uma questão central própria de nossa época.
Não devemos esquecer que o individualismo burguês já se "esgotara" nos meados do
século passado. Em outras palavras: aquela ingênua confiança de que o indivíduo podia
desenvolver-se livremente inclusive fora de qualquer comunidade e de que o interesse
individual é um bom fio condutor para a liberdade individual foi-se tornando cada vez mais
problemática. A partir do "fin de siècle", o desespero substitui a segurança: o indivíduo
experimenta agora a falta de comunidade como solidão, como infelicidade. Isso reflete sub-
jetivamente o fato de que chegou ao fim o desenvolvimento da individualidade na sociedade
burguesa, inclusive para os indivíduos representativos. Paralelamente a isso, desenvolvem-se
— com crescente intensidade — os movimentos operários; e os intelectuais que aderem a tais
movimentos voltam a encontrar nas comunidades que eles formam o sentido de suas vidas.
Não se trata de um "medo da liberdade", mas sim de uma busca da mesma. O movimento
revolucionário florescente-te no século xx, sobretudo a Revolução de Outubro, deixou marcas
indeléveis na intelectualidade, pelo menos no que ela tinha de melhor. A busca de uma
atividade em comunidade, que elevasse o indivíduo "nas asas da comunidade", somou-se à
exigência de uma nova sociedade na qual o homem pudesse voltar a ser um ente comunitário.
Decerto, três fenômenos históricos que se diferenciam em seu caráter e em seu tipo
influíram de tal modo em nossa época, que a busca da comunidade voltou a sofrer um re-
trocesso. São eles: o culto da personalidade no socialismo; o fascismo; a manipulação de grupo
no mundo burguês contemporâneo. Devemos repetir que se trata de três fenómenos in-
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teiramente distintos. Não podemos analisar agora suas diferenças, mas temos de citá-los
porque eles provocaram ceti-cismo com relação à comunidade e, consequentemente, reco-
locaram com urgência a questão: Que comunidade deve o homem escolher?
Como dissemos, torna-se necessário, neste ponto, o uso do conceito de valor.
Consideramos valor objetivo, ou seja, independente da avaliação humana, o conjunto de todas
as relações, produtos, ações, idéias, etc. sociais que promovem o desenvolvimento da essência
humana no estágio histórico tomado em consideração.
Mas o que é "essência humana"? Essa pergunta pode ser iluminada por uma idéia de
Marx, através da interpretação feita pelo jovem filósofo húngaro Gyõrgy Márkus. Segundo
essa interpretação, a essência humana consta de atividade de trabalho (objetivação),
socialidade, universalidade, autoconsciência, liberdade. Essas qualidades essenciais já estão
dadas na própria hominização, enquanto meras possibilidades; tor-nam-se realidade no
processo indefinido da evolução humana.
São de valor positivo as relações, os produtos, as ações, as idéias sociais que fornecem
aos homens maiores possibilidades de objetivação, que integram sua socialidade, que con-
figuram mais universalmente sua consciência e que aumentam sua liberdade social.
Consideramos tudo aquilo que impede ou obstaculiza esses processos como negativo, ainda
que a maior parte da sociedade empreste-lhe valor positivo.
Como esses valores se configuram em esferas heterogêneas, podem certamente entrar
em contradição uns com es outros. Há situações sociais que desenvolvem um valor e destroem
outro, ou que desenvolvem um valor em seu aspecto social total e impedem seu
desenvolvimento nos indivíduos. Por isso, ao escolher uma comunidade, deve-se ter presente
o lodo, o predominante no contraditório complexo de valores, bem como suas consequências
possíveis para a explicitação da substância axiológica. A explicitação dessa substância, em nos-
sa hipótese, identifica-se com a explicitação da essência humana. Assim, portanto, se
quisermos comprovar o conteúdo axiológico de uma comunidade, temos de comprovar inicial-
mente sua relação com a essência humana e examinar se essa comunidade — comparada com
as demais comunidades (e possibilidades comunitárias) — explicita a essência humana de um
modo satisfatório, bem como o modo pelo qual o faz e em que medida.
O fato de que uma comunidade seja relativamente favorável à explicitação da essência
humana não significa, de nenhum modo, que também explicite — inequívoca e uniformemente
— as capacidades dos indivíduos. Pois não existe paralelismo necessário entre o
desenvolvimento humano-genérico e o desenvolvimento individual; na maioria das épocas
históricas, ao contrário, verifica-se uma discrepância, que se torna possível precisamente
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quando a participação do indivíduo numa comunidade baseia-se na escolha autônoma. Basta
recordar o terror revolucionário das comunidades jacobinas, necessário para o
desenvolvimento de seus conteúdos axiológicos, mas ao mesmo tempo significando ruína
moral para não poucos indivíduos que delas participavam, sobre a base de uma decisão
autónoma e dotados do pathos adequado à tarefa his-tórico-universal que tinham diante de si.
Isso é exemplo do caso no qual a explicitação do indivíduo torna-se problemática por causa
das contradições axiológicas contidas na comunidade em questão. Mas o paralelismo, também
sob outro aspecto, deve ser excluído: as comunidades organizadas tendo em vista
determinados fins históricos solicitam sobretudo determinadas capacidades dos indivíduos. Por
isso, os indivíduos cuja capacidades inatas são congruentes com as qualidades mais importantes
para as metas de uma comunidade têm maiores possibilidades de desenvolver sua
individualidade do que aqueles cujas capacidades e talentos inatos estão fora de tal tendência.
Portanto, dois motivos podem estar na base da escolha de comunidade: o valor
axiológico objetivo da comunidade, seus momentos favoráveis à essência humana; e a intenção
de explicitar nela e através dela a própria individualidade. O primeiro motivo tem
sempre primazia com relação ao segundo. Essa primazia não é um mero postulado, não se
situa na categoria do "dever ser", mas provém da essência da própria individualidade.
Com efeito, a individualidade humana não é simplesmente uma "singularidade". Todo
homem é singular, individual-particular, e, ao mesmo tempo, ente humano-genérico. Sua
atividade é, sempre e simultaneamente, individual-particular e humano-genérica. Em outras
palavras: o ente singular humano sempre atua segundo seus instintos e necessidades, so-
cialmente formados mas referidos ao seu Eu, e, a partir dessa perspectiva, percebe, interroga e
dá respostas à realidade; mas, ao mesmo tempo, atua como membro do gênero humano e seus
sentimentos e necessidades possuem caráter humano-genérico. Todo homem se encontra,
enquanto ente particular-singu-lar, numa relação consciente com seu ser humano-genérico nessa
relação, o humano-genérico é representado para o indivíduo como algo dado fora de si
mesmo, em primeiro lugar através da comunidade e, posteriormente, também dos costumes e
das exigências morais da sociedade em seu conjunto, das normas morais abstraias, etc. Em
sua atividade social global, o homem está sempre "em movimento" entre sua particularidade e
sua elevação ao genericamente humano; e é função da moral conservar esse movimento. O
homem torna-se indivíduo na medida em que produz uma síntese em seu Eu, em que
transforma conscientemente os objetivos e aspirações sociais em objetivos e aspirações
particulares de si mesmo e em que, desse modo, "socializa" sua particularidade. A distância é
essencial à individualidade: distância com relação à própria particularidade e, ao mesmo
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tempo, com relação à própria integração, isto é, uma atitude livre com relação a essa
integração. Isso é verdade — de acordo com o grau de desenvolvimento do indivíduo — já
no caso das comunidades naturais (que se recorde a relação de Sócrates com Atenas); mas
acentua-se particularmente após a dissolução daquele tipo de comunidade.
Dado que a atitude livre com relação à comunidade (ou, em outras palavras, a escolha
da comunidade) faz parte da essencialidade do indivíduo, o próprio conteúdo axiológico desse
indivíduo manifestar-se-á antes de mais nada no conteúdo axiológico da comunidade por ele
escolhida. Quod erat demons-trandum: o primado do conteúdo axiológico objetivo da comu-
nidade ganha legitimidade através da própria individualidade. E, com isso, torna-se evidente
outra coisa: uma comunidade cujo conteúdo axiológico seja basicamente negativo jamais de-
senvolverá a individualidade, visto que tampouco desenvolve o valor no indivíduo, nem
mesmo quando esse se sente bem em tal comunidade, quando acredita ter encontrado nela o
espaço adequado para a explicitação de suas capacidades. Quando muito, o que se pode
configurar numa comunidade de conteúdo axiológico negativo é a particularidade pessoal, não
a capacidade de tornar-se autêntico indivíduo.
A história demonstra isso de modo clássico no caso das comunidades fascistas. Essas
comunidades, bem como seus mitos relativos, aboliram uma extraordinária conquista da his-
tória humana quando suprimiram a liberdade relativa na escolha da comunidade. Em um
mundo no qual há já vários séculos não existiam comunidades naturais, o fascismo criou o
mito da comunidade natural, o mito do sangue e da raça. Esse mito se desmascara quando
abole a livre escolha da comunidade e quando deixa patente que os objetivos e conteúdos da
comunidade fascista são, em sua totalidade, tão negativos que nem sequer podem manter a
aparência da liberdade de escolha. Precisamente por isso, o mito fascista e sua prática tiveram
de abolir um dos valores básicos da individualidade, ou seja, a distância acima aludida, aquela
distância com relação não apenas à particularidade mas também à própria integração. A
relação imediata, sem distanciamento, com a integração acarreta inevitavelmente o
"descontrole", a ilimi-tação dos afetos particulares. Nas comunidades fascistas, não houve
realização do indivíduo; ao contrário, esse se "desintegrou" numa particularidade
descontrolada e numa pseudoco-munidade que se submeteu sem reservas a exigências pseudo-
humano-genéricas.
Ao buscar um contra-exemplo também em nosso século, deparamo-nos espontaneamente
com a comunidade descrita por Makarenko, em seu Poema Pedagógico. Não se trata aqui de
uma simples análise das características únicas ou casuais de uma coletividade juvenil, mas de
algo bem maior: de um exemplo de comunidade humana socialista, de um exemplo das pos-
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sibilidades que o socialismo contém em princípio. Não vamos nos deter nas peculiaridades
dessa comunidade, pois Georg Lukács já o fez em sua análise desse livro16
. Basta-nos lembrar
seus momentos essenciais. Antes de mais nada, a livre escolha dessa comunidade. Naquela
comunidade, podia ingressar quem quisesse, assim como podia sair quem o desejasse. Em
segundo lugar, a orientação teleológica da coletivida-de. A existência coletiva jamais é um
fim em si mesma, assim como não são fins em si mesmos a educação ou o "ficar sozinho".
Trata-se apenas de resultados produzidos para a realização de objetivos concretos fixados
pela sociedade em seu conjunto, embora a relação da comunidade com essa sociedade total
jamais seja aproblemática ou isenta de conflitos. (Com efeito, a relação da coletividade de
Makarenko com a totalidade da sociedade soviética foi sempre uma concordância carregada de
conflitos). E, finalmente: sua estrutura interna, a organização das normas éticas da comunidade,
que julga firmemente qualquer ação que nasça da particularidade e destrua os valores globais
da coletividade, não deixa, todavia marcas no indivíduo que realizou o ato, com o que sempre
se mantém a possibilidade de um renascimento. Ao mesmo tempo, essa estrutura oferece ao
indivíduo a possibilidade máxima de configurar as mais variadas hierarquias individuais de
valor no interior de um âmbito axiológico positivo, a possibilidade de desenvolver os mais
variados modos de comportamento. Trata-se de uma organização tão heterogênea, tão
polifacética das possibilidades ativas da coletividade que cada um dos membros pode
desenvolver suas capacidades naturais.
Tem sentido, então, falar numa contradição entre indivíduo e comunidade?
Não é casual que tenhamos contraposto, mais acima, duas comunidades diferentes.
Afirmamos que, na primeira, o homem não pode absolutamente desenvolver-se até chegar à in-
dividualidade, razão pela qual só lhe resta o recurso de defender sua individualidade contra a
comunidade; no segundo tipo, ao contrário, ele encontra condições ótimas para a explicitação
de sua individualidade. Assim, na verdade, já respondemos à questão de saber o que um
homem deve fazer quando existe, na sua sociedade, uma comunidade de conteúdo axiológico
positivo: não há dúvida de que deve escolher essa comunidade, a fim de que se explicitem
suas capacidades e de que sua individualidade possa desenvolver-se. Bem mais problemática
parece a réplica: que deve fazer o homem se sua sociedade não apresenta nenhuma
comunidade de conteúdo axiológico positivo?
A substância portadora dos valores é a própria história humana; e ela não se objetiva
apenas em comunidades. Supondo — ainda que sem admiti-lo — que uma sociedade não
16
Georg Lukács, Werke, vol. 5, Probleme des Realismus II, Der russische Realismus in der Weltiteratur,
Luchterband, Ncuwicd und Berlim, pp. 417-471
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permitisse o desenvolvimento de nenhuma comunidade de conteúdo axiológico positivo, poder-
se-iam realizar valores em outras numerosas objetivações: na arte, na ciência, na produção,
etc. E, ainda que o indivíduo não pudesse produzir em nenhuma dessas esferas, continuaria a
ter oportunidade de escolher possibilidades positivas. Pode encontrá-las nas objetivações, no
mundo intelectual e nas normas de épocas passa-das, e pode escolher os valores aí contidos,
convertê-los em valores próprios, hipostasiá-los no futuro, etc. O fato de que o indivíduo,
com uma tal escolha, entre em contraposição com as comunidades de seu tempo não anula
um dado efetivo: o de que ele está escolhendo uma comunidade, ainda que apenas
idealmente. O indivíduo decide-se por uma comunidade com aqueles que, em épocas
passadas, produziram aqueles valores; decide-se em favor da integração que venha a defendê-
los no futuro. Sem uma tal comunidade ideal não existe indivíduo realmente livre, dotado de
conteúdo axiológico positivo. Tão-somente o indivíduo que renuncia à humanidade e,
consequentemente, à realização de valores em geral pode se abster de escolher uma
comunidade: quem escolhe um valor e aspira à sua realização (e as duas coisas são
inseparáveis) escolhe também, no mais amplo sentido da palavra, uma comunidade.
Decerto, partimos do pressuposto de que existem épocas que não concedem nenhuma
possibilidade de explicitação de comunidades de valor axiológico positivo. Mas não o
afirmamos: não acreditamos na existência de épocas desse tipo. Ê evidente que existe uma
grande diferença entre o fato de que uma comunidade de conteúdo axiológico positivo seja ca-
racterística de uma época ou uma situação apenas excepcional, entre o fato dessa comunidade
se desenvolver dentro da tendência principal de desenvolvimento ou o fato de fazê-lo contra a
corrente, entre o fato de que possua um âmbito de influência (política, por exemplo) extenso
ou se limite a um estreito círculo de amizades. Mas, de um ou de outro modo, de um modo
amplo ou reduzido, com maior ou menor âmbito de influência, pode-se sempre encontrar uma
possibilidade para comunidades desse tipo: e todo verdadeiro indivíduo as merece. O homem,
enquanto ser humano-genérico, não pode conhecer e reconhecer adequadamente o mundo a
não ser no espelho dos demais.
A resistência do homem a uma comunidade de conteúdo axiológico negativo não é
simplesmente resistência do "indivíduo" à comunidade, mas oposição do indivíduo a uma
determinada comunidade, e precisamente em nome dos valores encarnados por outra
comunidade (mesmo que só relativamente), ou dos valores ideais de uma comunidade que
existiu no passado e que talvez seja agora postulada para o futuro.
Portanto, em toda época, pelo menos em princípio, é possível criar uma comunidade de
conteúdo axiológico positivo; mas — e essa limitação tem muita importância — não para
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todos. Existem épocas em que o ato de criar uma comunidade e desenvolver através dela a
individualidade requer capacidades tão extraordinárias, um emprego tão intenso de energia
moral e intelectual, que só os indivíduos representativos conseguem fazê-lo. Em outras
palavras: os homens capazes de criar uma comunidade desse tipo convertem-se necessariamente
em indivíduos representativos. A "sociedade de massas" manipulada preenche essas condições
negativas. Recordemos nossas anteriores afirmações sobre a "sociedade de massas": ela impos-
sibilita cada vez mais a decisão individual, sem a qual não se pode imaginar a comunidade,
sobretudo a partir do momento em que a escolha da comunidade converteu-se em requisito da
participação nela. O grupo manipulado não funciona como comunidade, visto que, de
"resultante" de sujeitos, converteu-se num mero objeto, numa "coisa". Nesses grupos, a
aspiração à comunidade e a formas comunitárias (idênticas com aquelas da individualidade e
com a reivindicação da explicitação dessa) converteu-se numa ação cada vez mais excepcio-
nal, heróica e infrenquente.
Como já dissemos, a sociedade não pode em sua totalidade tornar-se uma
comunidade. Mas depende da totalidade da sociedade — inclusive de sua estrutura econômica
— a medida em que é possível a configuração de comunidades de conteúdo axiológico
positivo e o tipo dos indivíduos aos quais se torna acessível essa possibilidade, ou seja, se
apenas aos indivíduos representativos ou se, pelo menos em princípio, a todo membro da
sociedade. Quando falamos de perspectiva socialista, hipostasiasmos uma sociedade cuja
estrutura oferece a todos essa possibilidade de princípio, uma sociedade construída com
comunidades organizadas por indivíduos e produtora de valores positivos. E, se alguém nos
perguntar o que é preciso fazer hic et nunc, responderemos: é preciso organizar e assumir
comunidades cujo objetivo seja o encaminhamento ou a aceleração do processo social que
possibilita o nascimento dessa sociedade.
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SS OO BB RR EE OO SS PP AA PP ÉÉ II SS SS OO CC II AA II SS
O s p r e s s u p o s t o s d o p a p e l s o c i a l
n a e s t r u t u r a n a v i d a co t i d i an a
A FUNÇÃO "papel social" não nasce casualmente, nem do nada, mas resulta de
numerosos fatores da vida cotidiana dados já antes da existência dessa função e que
continuaram a existir quanto ela já se tiver esgotado. Ao estudar a categoria "papel social" de
um modo "puro", ou seja, abstrato, segundo sua forma clássica de manifestação, não
pretendemos negar que numerosos indícios e numerosas componentes da atitude própria do
papel social já estejam, dados de modo geral na existência social do homem, e, pelo menos,
possam reivindicar um passado bem mais longo que a existência da função "papel social".
Ademais, não há nenhuma fronteira rígida entre os comportamentos destituídos do caráter de
"papel" e aqueles que o possuem.
Quais são esses fatores gerais?
Mesmo a vida social mais elementar seria inimaginável sem imitação. A mímese
humana distingue-se daquela animal já em suas formas mais primitivas; com efeito, o homem
é capaz de imitar não apenas momentos e funções isolados, mas também inteiros modos de
conduta e de ação. Baseia-se igualmente na mímese a assimilação de papéis, pois sem a
imitação ativa da totalidade de um comportamento não haveria essa assimilação de papéis.
Mas, nessa afirmação, deve-se acentuar a idéia de atividade. Pois mesmo a imitação humana
mais mecânica é assimilação ativa. O homem não pode alienar-se de sua natureza de um
modo absoluto, nem sequer nesse terreno.
A imitação manifesta-se sobretudo como imitação dos usos. Em todos os estágios do
desenvolvimento social, o homem nasce num mundo já "feito", numa estrutura consuetu-
dinária já "feita". Deve então assimilar esses usos, do mesmo modo como assimila as
experiências de trabalho. Desse modo, toma posse da história humana, "ingressa" na história,
e esse é o marco em que o homem consegue se orientar. Nos vários terrenos da realidade
constroem-se estruturas consuetudinárias diferentes. O homem jamais se enfrenta com usos
isolados; ele os "aprende" numa totalidade relativa, como sistema, como estrutura. O caráter
estruturado do uso, a presença simultânea de várias reações consuetudinárias (sistema tanto
mais complexo quanto mais desenvolvida é a sociedade), é um dos pressupostos da função
"papel". A sociedade não poderia funcionar se não contasse com sistemas consuetudinários de
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certo modo estereotipados. Esses sistemas constituem o fundamento do sistema de "reflexos
condicionados" do homem, sistema que permite aos membros de uma sociedade mecanizar a
maior parte de suas ações, praticá-las de um modo instintivo (mas instintivo por aquisição,
não como resíduo de uma estrutura biológica), ou seja, concentrar o pensamento, a força
moral, etc, nos pontos concretos exigidos pela realização de novas tarefas. Se tivéssemos de
decidir através de demorada reflexão se vamos ou não saudar a alguém, se vamos ou não
acender a luz, o que temos de fazer para obter alimentos, etc, não nos restaria tempo algum
não apenas para uma ocupação livre, mas nem sequer para o trabalho habitual. Por tudo isso,
torna-se necessário, na convivência social, um determinado plano de reações mecânicas
fornecidas pelo "papel", mesmo nos casos em que não se trata propriamente de funções do
tipo papel.
O mesmo podemos dizer da assimilação da hierarquia de valores morais. Até o homem
mais autônomo e mais moralmente consciente é incapaz de avaliar moralmente todos os
passos que dá, todas as atitudes que toma. Sempre existem na vida humana determinados
pontos nevrálgicos nos quais se projetam muito intensamente os problemas da escolha moral.
Mas esses problemas brotam do solo de uma hierarquia de valores já assimilada, que é
afirmada ou negada pelo homem em questão; e, apesar disso, não podem se repetir arbi-
trariamente no momento em que se deseja. Assim, por exemplo, há decisões das quais
decorrem outras de modo mais ou menos necessário, do ponto de vista do sujeito, à maneira
de uma rotina. Não é pelo fato de assumir um sistema de valores previamente construído que
o portador de um "papel" converte sua função em "papel".
A tradição e a moda são formas particulares de manifestação do sistema
consuetudinário e também, até certo ponto, do sistema de valores. A tradição ganha maior
importância na estrutura social orientada para o passado, enquanto a moda predomina naquela
orientada para o futuro. As sociedades pré-capitalistas orientavam-se essencialmente para o
passado. Isso implicava não apenas numa estabilidade relativa dos usos assimilados, mas
também na orientação da totalidade da vida pela atitude das gerações anteriores, dos
antepassados. Os filhos imitavam os pais, os netos imitavam os avós; e isso ocorria em todos
os aspectos da vida, das experiências da produção até a moral. Essa situação acarretava, entre
outras consequências, o prestígio dos anciãos, e a idade se tornava portadora de múltiplos
valores. Os velhos eram os que melhor conheciam as experiências do passado e os mais
capazes de resumi-las de modo útil. Com a ascensão da sociedade burguesa, a orientação para
o futuro começa a se impor crescentemente, a partir do Renascimento, no sistema da convi-
vência humana.
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A possibilidade de uma produção indefinida que não se limita ao essencial (Marx)
produz no homem a necessidade de modificar-se permanentemente, de renovar-se, de
transformar-se. Essa necessidade de novidade, a necessidade de transformarmos
constantemente tanto a sociedade quanto nós mesmos, é uma das maiores conquistas da
história humana. Mas, com a crescente alienação, também essa conquista converte-se em seu
contrário. A orientação para o futuro termina por transformar-se em moda. Da mesma maneira
como vão se estereotipando os sistemas funcionais da sociedade, do mesmo modo como os
tipos de comportamento tendem a converter-se em "papéis", assim também a orientação para o
futuro transforma-se na necessidade de não ficar atrasado com relação à moda. Quem quer
então desempenhar adequadamente seu papel não pode se permitir o menor atraso com
relação à moda; tem de segui-la passo a passo, tem de submeter-se a seu arbítrio, tanto no
sistema consuetudinário geral quanto no vestuário ou nas esferas estéticas da vida (decoração
da habitação, sensibilidade artística, etc). A moda, portanto, é a manifestação alienada da
orientação para o futuro, encontrando-se em relação necessária com o crescimento da
categoria de "papel". Isso não implica em que a orientação para o passado tenha desaparecido
inteiramente na época do capitalismo desenvolvido. Pode, ao contrário, ser até mesmo
dominante nas camadas sociais em que o capital penetrou apenas de modo relativo. É o caso,
por exemplo, dos pequenos camponeses, ainda que mesmo aqui o fenmeno esteja em
regressão. Tampouco se trata de afirmar que a orientação para o passado não esteja
absolutamente presente na cristalização dos comportamentos sob a forma de papéis;
certamente está, mas apenas com importância secundária.
A sociedade humana tem a propriedade essencial de que o caráter público das ações
influi nas próprias ações. O comportamento global dos homens transforma-se quando eles es-
tão colocados diante do público, diante de seus olhos e diante de seu julgamento; os homens,
nesses casos, adotam uma "postura" num sentido redundante. Isso se deve, em parte, ao fato de
que — colocado no meio público — o homem sente mais intensamente o dever de representar
a humanidade, de dar exemplo. Quem grita um viva à pátria no patíbulo, quem declara no
leito de morte seu legado moral à família reunida, o menino que se atreve a dizer a verdade ao
professor diante de seus companheiros, "superam-se a si mesmos". Por outro lado, é inegável
que o homem vê muitas coisas de outro modo quando se encontra sob uma luz pública. Quem
cometeu um erro é capaz de vê-lo muito melhor diante do público, e não por oportunismo,
mas porque a presença da comunidade funciona como um catalizador: nessa situação, é
possível reconhecer os próprios erros, os quais, em outras situações, passariam
desapercebidos. Mas isso não significa que os homens desempenhem um papel diante do
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público como consequência de sua essência social; na verdade, o que fazem é ser mais
sinceros. Quem se abandona ao medo da morte não é "mais sincero" do que quem a espera
serenamente; e quem dissimula seus erros não é "mais sincero" do que quem os vê, etc. De
resto, ao dar o exemplo, ao nos autocontemplarmos com os olhos do público, a presença da
comunidade nem sempre é materialmente necessária. A pessoa intimamente vinculada com as
normas da comunidade sente a presença da sociedade mesmo quando esta não está presente,
mesmo quando a pessoa em questão está sozinha. O revolucionário executado em segredo,
sem ser visto por ninguém, costuma comportar-se de modo nobre e sublime. Em sua mente,
está presente a comunidade. E seria possível, de um homem assim, afirmarmos que está
apenas representando seu papel diante de si mesmo? De nenhum modo. O ato de assumir uma
postura em público não tem nada a ver, em si mesmo, com o desempenho de um papel. Mas
não há dúvida que é um pressuposto desse desempenho. Pois, dado que o comportamento
humano se decompõe em vários clichês estereotipados e dado que a personalidade autônoma
do homem pode perder-se inteiramente nesses clichês, nos casos em que isso se verifica a
diferença gradual, a diferença de intensidade sempre existente entre a atitude "solitária" e a
atitude "pública" pode converter-se no oposto do acima dito. Nesse caso, o homem em
público representa um papel, um papel em sentido literal, "dá seu espetáculo", expressa
opiniões, estados de espírito, julgamentos, etc., que talvez nada tenham em comum com os que
lhe são próprios. Um exemplo de clichê obrigatório destinado ao público é o "keep smiUng" de
moda, o sorriso obrigatório, o otimismo incondicional exigido. Mesmo o homem mais pro-
fundamente desesperado sorri constantemente por necessidade, apresenta-se como "otimista", bem
humorado, porque o ambiente público espera isso dele. A cisão da personalidade do palhaço
converte-se em norma de toda a sociedade.
A unidade que se manifesta na diversidade, na dialética interna e externa desse
fenômeno, não tem importância apenas na relação da solidão com a publicidade. Revela-se
igualmente em muitos aspectos da personalidade, pois a multiplicidade da personalidade
humana é uma resultante da complexa totalidade de suas relações sociais. Mas não há nenhum
homem (nem nenhuma comunidade) que conheça cu seja capaz de conhecer o outro indivíduo
em todas as suas relações, na totalidade de suas reações. Tanto as pessoas quanto as co-
munidades podem conhecer ou captar, sempre, tão-somente aspectos isolados da
personalidade, da essência dos indivíduos. Mas isso não implica, de nenhum modo, em uma
contraposição necessária entre "essência íntima" e "manifestação exterior". Por um lado, todo
homem pode — mediante suas experiências sociais e individuais — obter um conhecimento
do homem que lhe permita averiguar se um determinado indivíduo se manifestou num ato
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importante, decisivo, essencial, ou seja, se determinadas ações do sujeito que ele quer conhecer
expressam algo decisivo acerca da sua essência. Com esse conhecimento dos homens, pode-se
também avaliar a possibilidade de inferir o comportamento de um indivíduo em situações
futuras, ou a atitude do homem inteiro, partindo dessa ou daquela ação. É evidente que uma
inferência desse tipo será apenas em raríssimos casos uma operação lógica; no mais das
vezes, tratar-se-á de uma intuição. O conhecimento dos homens pode evidentemente se
equivocar, mas apenas na medida em que qualquer conhecimento pode se equivocar, na
medida em que todos eles levam em si a possibilidade do erro. E nada disso altera o fato de
que, apesar da diferença entre a essência e a manifestação do homem, é possível inferir a
"interioridade a partir da exterioridade", e, ademais, é imprescindível fazê-lo.
O aparecimento de estereótipos dificulta extraordinariamente as tarefas do
conhecimento dos homens. Pois, quando o homem desempenha um papel, é perfeitamente
possível que não se "manifeste" de modo algum naquilo que faz e que suas relações sociais
(por numerosas que sejam) não aumentem a variedade de sua substância. Na estrutura própria
do papel, degradam-se as relações sociais, que deixam progressivamente de ser elementos
qualitativos para serem apenas quantitativos. Por muitos que sejam os papéis desempenhados
por um sujeito, sua essência se empobrecerá. Portanto, o conhecimento dos homens é
dificultado não apenas pelo fato de que a "exterioridade" em demasia encubra a "interioridade",
mas também porque a própria interioridade se empobrece. Também aqui estamos diante da
alienação de uma propriedade característica do homem. Mas a função "papel" jamais pode
esgotar a totalidade dos comportamentos humanos (do mesmo modo como a alienação nunca
é absoluta), de maneira que o conhecimento dos homens, embora seja dificultado, não chega de
nenhum modo a tornar-se impossível.
Outro aspecto da diferença entre exterioridade e interioridade ganha também
importância no comportamento do tipo "papel": em situações diferentes e na resolução de
diferentes problemas, explicitam-se inevitavelmente no homem valores igualmente diversos. A
colocação das tarefas atualiza valores potenciais que, sem esse complexo problemático, jamais
superariam a condição de mera possibilidade, jamais passariam à existência. Quando, ao
terminar uma tarefa, alguém se empenha em resolver outro problema, não se limita a trocar de
papel, mas começa a mudar a si mesmo na medida em que a nova tarefa reclama outras
qualidades. Uma pessoa, por exemplo, empregava métodos terroristas quando estava situado
no cume da hierarquia social, mas depois, ao ser derrubado, con-verte-se num tolerante; não é
inevitável — e, ao contrário, é até infrequente — a conclusão de que num e noutro caso tenha
assumido um papel adequado à situação em questão; também é perfeitamente possível que,
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quando de sua queda e posteriormente, tenha reexaminado sua vida anterior, tenha atravessado
uma catarse, uma crise, na qual realmente se transformou . Nesses casos de mudança de função,
a transformação real nunca é igual a zero. É um fato elementar que o indivíduo desenvolve
capacidades diferentes na execução de tarefas diferentes; e que, em diferentes situações,
consegue inverter a atitude de todo o seu ser moral, ou seja, que a "interioridade" do homem
transforma-se em interação com a sua exterioridade. Mas, na medida em que os modos de
comportamento convertem-se em papéis estereotipados, as transformações se mantêm como
meras aparências (sem esquecer que, como dissemos, essas transformações aparentes jamais são
absolutamente aparentes, jamais absolutamente nulas). Quando os papéis são múltiplos e
intensamente mutáveis, a situação exige do homem uma rica e mutável explicitação de suas
habilidades técnicas, de sua capacidade de manipulação. Também e precisamente nesse caso a
alienação significa que o enriquecimento das capacidades técnicas e manipulatórias não ocorre
paralelamente ao enriquecimento do homem inteiro (de sua essência social-moral), ou seja, —
e para voltarmos ao problema aqui analisado, — significa que a mudança de papel não implica
absolutamente numa transformação do homem. O fenômeno é expresso de modo bastante
plástico no drama O Vigário, de Rolf Hochhuth. O autor apresenta numerosos fascistas,
"burocratas da morte", que prestaram "serviço" nas câmaras de gás de Auschwitz. E esses
mesmos homens, sem a menor alteração de sua essência, são hoje comerciantes, especialistas
industriais, juízes. Hochhuth sublinha precisamente o fato de que essas pessoas mudaram
muito pouco, de que viveram e praticaram sem a menor catarse- as monstruosidades do
fascismo e sua posterior revelação pública, etc, e que neles a mudança de ocupação é uma
simples mudança de papel, no sentido primário de uma mudança de papel no palco. Quanto
mais se estereotipam as funções de "papel", tanto menos pode "crescer" o homem até a altura de
sua missão histórica, tanto mais infantil permanece.
Ao se generalizarem, os comportamentos de tipo "papel" modificam a função do dever-
ser na vida cotidiana. No dever-ser, revela-se a relação do homem inteiro com os seus "de-
veres", com suas vinculações, sejam essas económicas, políticas, morais ou de outro tipo.
Todos conhecemos, enquanto expressão de fatos da vida, fórmulas de exortação como: "tenho
de estar no escritório às oito, "devo ser sincero nesse ponto", "hei de levar sempre uma vida
honrada", "tenho de me casar com essa garota", bem como "tenho de escovar os dentes", etc.
Não menos conhecido é o fato de que o dever-ser entrelaça-se frequentemente com o fato da
representação. Tenho de comportar-me, per exemplo, como um cavalheiro, tenho de saber
resistir se sou bom marinheiro, etc. Nesses casos de dever-ser, eles podem se referir a um fato
singular, a um só assunto, bem como a inteiros complexos de comportamento. Assim, por
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exemplo, a exortação "tenho de comportar-me como um cavalheiro, ou como um marinheiro"
não se refere apenas a um aspecto do comportamento, mas à sua totalidade. Com efeito, a
autonomia do homem, sua possibilidade de escolher, sua liberdade no sistema dos casos de
dever-ser, revela-se apenas quando tal sistema contém igualmente o dever-ser moral. Se o
dever-ser referente ao complexo global do comportamento se torna exclusivo, então chega-se a
reprimir ou abolir o dever-ser moral, dissipando-se também a autonomia, a verdadeira
alternativa moral, a liberdade do homem. Mas, em situações sociais não alienadas, ou
alienadas apenas parcialmente, o dever-ser referido a inteiros complexos de comportamento não
apenas não reprime o dever-ser moral, mas até mesmo o pressupõe. Assim, o pathos básico
da vida de Antígona apóia-se no fato de que deve-ser uma boa irmã, ou seja, de que esse
dever-ser refere-se ao complexo de comportamento "ser irmã". Como, apesar das ameaças de
Creonte, ela decide se manter fiel à tradição moral, decide ao mesmo tempo acerca do modo
de cumprir o dever-ser referente ao "ser irmã". Em troca, quando os complexos de comporta-
mento se cristalizam em papéis, não se pode sequer colocar a questão do "como". Sou
camareiro, portanto comporto-me como camareiro, como deve comporíar-se um camareiro;
sou mãe, portanto faço aquilo que uma mãe deve fazer, etc. Os estereótipos descrevem
detalhadamente o que uma mãe ou um camareiro devem fazer; e, na medida em que os
aspectos morais do dever-ser se atrofiam, não pode mais se apresentar a questão de saber se
efetivamente serei uma mãe tão boa quanto prescreve o papel, ou se basta como conteúdo de
uma vida o exato cumprimento dos deveres de camareiro. O dever-ser converte-se numa
exigência puramente externa e minha atitude será uma simples adaptação. Observamos, de
passagem, que a conexão dos aspectos do dever-ser é muito mais complicada na realidade.
Não apenas os casos de dever-ser moral e os casos de dever-ser referentes aos complexos de
comportamento se encontram ligados através de numerosas transposições e sobreposições;
essa ligação ocorre também, por exemplo, nas situações de dever-ser político. Seria ridículo,
por exemplo, pretender que o operário em greve atua contra o dever-ser de seu papel de
operário, embora o ato de trabalhar seja indubitavelmente um elemento do conceito de ope-
rário. Mas o indivíduo é um operário consciente precisamente na medida em que derruba,
afasta e recusa o papel que lhe é prescrito pelos patrões.
A recusa do papel é característica daqueles que não se sentem à vontade na alienação.
Mas o conflito entre os casos de dever-ser, e, neste caso, o conflito moral, que se expressa de
modo particular, são inevitáveis na medida em que um homem não submete
incondicionalmente todo o seu ser ao papel que desempenha num dado momento. Por isso, os
representantes da teoria do papel são inimigos irreconciliáveis de todo conflito. Interpretam os
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conflitos como "defeitos de organização", como "perturbações funcionais" corrigíveis; alguns
chegam a interpretá-los como "complexos", como perturbações psíquicas. Mas o conflito é a
rebelião das sadias aspirações humanas contra o conformismo: é uma insurreição moral,
consciente ou inconsciente. (É evidente que isso não pode ser dito de todo e qualquer tipo de
conflito).
O dever-ser descreve sempre, de um modo conceitual-mente acessível, a relação do
homem com sua obrigação. A obrigação manifesta no dever-ser pode ser uma meta do ho-
mem, mas não tem necessariamente de sê-lo. Também c ideal contém algo assim como uma
exigência, mas esse seu traço característico revela-se muitas vezes inacessível ao conceito.
Assim, por exemplo, muitos meninos dizem querer ser como Júlio César, mas sem
especificar, sem poder descrever com exatidão os traços, as virtudes, etc, do personagem que
os atrai. Não é impossível encontrar os momentos do ideal no comportamento de tipo "papel".
Quem deseja assimilar o papel de camareiro, ou o que se sente feliz desempenhando o papel
de noivo, não se coloca diante do conceito abstrato de camareiro ou de noivo, da totalidade
dos direitos e, deveres e complexos consuetudinários abstratos correspondentes a tais
conceitos. É mais certo que escolha como ideal um determinado camareiro ou noivo,
passando a assimilar — no ato de imitá-lo — o correspondente comportamento de "papel".
A alienação enquanto estereotipia não se revela no fato de que os homens escolham ideais e
os imitem em seu comportamento. Esse é um momento necessário do desenvolvimento da
personalidade humana. Na concreta escolha do ideal, na autonomia concreta, na liberdade
com a qual se escolhe o ideal é que se revela se na sociedade surgem personalidades múltiplas
dentro de um determinado complexo de comportamento, de modo a se tornar possível uma
variada escolha do ideal; e revela-se, ademais, se mediante a assimilação de tais complexos de
comportamento é possível alguém desenvolver-se realmente como personalidade autônoma.
Hollywood, por exemplo, produz anualmente a "mulher ideal" de cada temporada, divulga-a
em suas películas; todas as garotas, então, querem tornar-se esse ano precisamente como a
"mulher ideal", enquanto todos os homens passam a desejar esse tipo de mulher. Nessa
situação, a personalidade individual, o indivíduo, não pode se explicitar na escolha do ideal,
pois o ideal é mercadoria, e o homem não é criador, mas consumidor de ideais. Nesse caso, a
escolha do ideal não pode ser considerada como um grau de desenvolvimento da
personalidade no sentido de uma elevação na qual se torne possível até mesmo recusar o
ideal, mas sim uma muleta inteiramente exterior, substituída constantemente — e de modo
absolutamente independente da personalidade e da vontade do indivíduo — por outras
muletas não menos exteriores. Mas, dado que o ideal é sempre um objetivo, isso significa que
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o homem recebe seus ob-jetivos já prontos e acabados para o consumo, e sempre de um modo
acidental com relação à essência humana pessoal. Isso significa que os ideais de um papel
conduzem tão-somente ao empobrecimento, à atrofia do homem. Levam simplesmente a uma
direção manipulada e, mecanizada do comportamento. É possível aprender com qualquer um
as operações e os gestos correios de uma profissão; mas não é possível aprender a "cortejar"
com alguém que saiba fazê-lo.
Para terminar nossas considerações, podemos afirmar que as formas de
comportamento, os métodos e os conteúdos cog-noscitivos e éticos que aparecem na função
"papel" já existiam antes que aparecesse essa função. Contudo, todos eles — a imitação, o
uso, o sistema de "reflexos condicionados", a tradição, a orientação para o futuro, a
publicidade, a diferença entre o interior e o exterior, a transformação da personalidade, a
explicitação de capacidades diferentes em diferentes situações, o dever-ser e o ideal —
aparecem no papel de modo alienado. Em seguida, vamos estudar de dentro a categoria
"papel". Primeiro, em seu aspecto objetivo, do ponto de vista de sua posição no sistema das
relações sociais; e, depois, com referência ao sujeito, de acordo com o aspecto de sua relação
com o papel do homem.
Indivíduo e papel social
Já indicamos que o comportamento do indivíduo com relação ao seu papel ou a seus
papéis pode variar muito. E essas variações são praticamente inesgotáveis. Mas, de qualquer
modo, se prescindirmos das formas de transição, podemos distinguir quatro comportamentos
fundamentais, quais sejam: 1) identificação; 2) distanciamento aceitando as regras de jogo
dominantes (incógnito dissimulado); 3) distanciamento recusando intimamente as regras de
jogo dominantes (incógnito oposicionista); 4) recusa do papel.
A plena identificação com o papel ou os papéis é precisamente a forma direta de
revelar-se a alienação. Nesse caso, chega-se a perder a continuidade do caráter, chega-se à
completa atrofia, à dissolução da personalidade. Típico exemplo literário é Peer Gynt, que —
após uma vida mais do que rica em aventuras e aparentemente muito variada — volta a sua
pátria e vê-se obrigado a constatar que, como as cebolas, só tem cascas e nenhum núcleo.
Essas cascas são os vários papéis, enquanto o núcleo humano inexistente é a personalidade
dissipada.
Diferentemente dessa atitude, no incógnito dissimulado o homem não se identifica com
seu papel. É capaz de penetrar no papel e em sua função social. Por isso, tem uma persona-
lidade que não se dissipa, que não se aniquila. Mas, dado que a preservação de sua
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personalidade corre paralelamente à aceitação e aproveitamento da realidade (realidade que
ele aceita tão mais prazerosamente quanto pior ela é), essa personalidade torna-se demoníaca,
amoral. Ninguém o conhece, mas ele conhece todos e tem todos em suas mãos, de tal modo
que — para aludir apenas a um exemplo — pode se distrair, como o faz Tartufo, com os
honestos cidadãos que perderam a capacidade de ver através dos papéis. Mas é extremamente
importante e nunca se sublinhará em demasia o fato de que todos esses jogadores demoníacos
que vivem no incógnito não podem jamais evitar seu colapso final, por muitas que sejam as
almas que tenham confundido e dominado. É o que podemos depreender, em todo caso, da
arte e da história. Cippola enganou muitos cavalheiros de Romat mas no final chega Mário e
dispara sua arma contra ele17
. E isso indica uma coisa não menos importante: que todos os
experimentalistas que podemos encontrar entre os criminosos da literatura e da história — ou
seja da vida — compartilham os preconceitos da moderna filosofia burguesa. Com efeito,
todos eles desprezam tanto os pobres homens que desempenham seus papéis que passam a
considerar a fetichização como algo absoluto e definitivo, acreditando assim que é possível
manipular o homem tanto quanto se queira. Mas sempre acontece que, na realidade, os homens
não são manipuláveis indefinidamente e em qualquer direção, pois sempre existe um ponto
limite, um limes no qual deixam de ser objetos e se transformam em sujeitos: que existe um
ponto além do qual já não é mais possível confundir os homens e os povos. Esse ponto pode
surgir em lugares diferentes quando se trata de homens diferentes, ou seja, um homem poderá
ser arrastado a uma situação de desumanidade diante da qual outro já terá gritado "basta!". E
também nos vários povos esse ponto se situa em locais distintos; basta comparar, para
exemplificá-lo, o fascismo alemão com o italiano. A localização do ponto varia também
segundo as classes: o pequeno burguês (visto, certamente, no nível médio da sua classe) é
moralmente mais débil que o operário, etc. Mas, em todos os casos, o ponto sempre existe.
A estrutura psicológica básica do homem situado num incógnito de oposição parece-se
formalmente com a do homem em incógnito dissimulado. Também o de oposição representa,
em maior ou menor medida, o papel que lhe é exigido no mundo, mas não abandona seu
núcleo humano, já que distancia sua personalidade daquele papel; todavia, no que se refere ao
conteúdo e à moralidade desse comportamento, trata-se de um fenómeno inteiramente diverso
do anterior. O homem situado num incógnito de oposição encontra-se em contraposição com o
mundo em que vive; não despreza os homens que representam ingenuamente os vários papéis,
mas sim o mundo que lhes prescreve tais papéis. Preserva as normas morais de tempos
passados ou tem uma marcada sensibilidade para com as normas morais de épocas futuras. 17
Personagens e situações da novela Mário e o Mago, de Thomas Mann (Nota dos Tradutores).
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Não se sente à vontade na realidade; esta lhe faz sofrer, assim como também sofre por causa
dos papéis que tem de representar. Gostaria de manifestar-se, de depor o seu incógnito, de
estabelecer con-tatos com os homens, de travar relações; mas não encontra nenhuma
comunidade em que isso seja possível. Já não é mais um conformista, mas tampouco chega a
ser um revolucionário. Esse comportamento é muito frequente entre os melhores re-
presentantes da intelectualidade burguesa. Para descrevê-lo mais plasticamente,
transcreveremos uma bela poesia de Ârpád Tóth, o conhecido poeta húngaro:
Mascarado (Âlarcosan)
Estou mal-humorado? Sou taciturno, fechado, talvez frio? Perdoa-me. Se eu pudesse, gostaria de oferecer em abundância toda a luz, todo o calor do mundo.
Palácios. Palmeiras. Danças. A Riviera infernal com violetas, ou, pelo menos, de quando em vez, uma feliz, uma rica hora de companhia.
Mas agora é tão difícil. Agora não posso mentir nem roubar nenhum raio. Serei derrotado
numa convulsa luta sem glória.
Esse é o tempo do Anticristo.
Brilha a repugnante sujeira dourada do mundo.
E entram no Céu:
nadas engravatados, canalhas sutis.
Mas eu luto aqui em baixo; e ninguém nem vê
esses tormentos que me queimam nas noites do meu [silêncio.
Tem paciência. Ainda hão de chegar os dias de harmoniosa música.
Tem paciência. Enquanto puderes, continua a ser o porto que me espera, meu refúgio em
[flores. Agora levo uma máscara fria e obscura, mas dela me libertarei.
Porque, se não o fizer, encharcada de lágrimas ela cairá aos pedaços em teu seio. E tu então me acalentarás, me acalentarás em teu colo até a morte.
No caso daquele que recusa um papel, a categoria "distanciamento é superada,
conservada e elevada a um nível mais alto. Esse homem já não se distancia do papel, nem
tenta preservar sua personalidade através do papel, mas a realiza sem inserir-se na ordem dos
comportamentos de tipo "papel". Trata-se sempre de um rebelde, ainda que não neces-
sariamente de um revolucionário. É evidente que existem recusas de papel que são uma
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questão puramente privada. Nesses casos, quem consuma essa recusa não se preocupa abso-
lutamente com o problema de saber se, para os outros, os comportamentos do tipo "papel" são
ou não obrigatórios. Ele se limita a negar essa obrigatoriedade para si mesmo. Há épocas nas
quais esse tipo de recusa do papel entra na moda, como ocorreu com o costume de "épater le
bourgeois", praticado pela juventude intelectual de princípios do século. Shaw construiu
numerosos excêntricos desse tipo, como, por exemplo, o Senhor Trefusis, que se recusa a
vestir luto pela morte de sua mulher tão-somente porque é isso que esperam dele. A expectativa
tem sempre efeitos negativos sobre o excêntrico, pois esse faz sempre, intencionalmente, o
contrário do que esperam que ele faça. (Ademais, Shaw mostrou — com grande agudeza —
que esse tipo de atitude excêntrica é um luxo, já que é necessário muito capital para poder
mantê-la). De qualquer modo, observaremos aqui que a recusa particular de papéis não se
converte necessariamente em excentricidade, embora isso seja muito provável, tendo em vista
que não existe nenhuma norma sócio-moral com a qual medir o conteúdo moral da realização
da personalidade. Por isso, nesses casos, a realização da personalidade é sempre problemática.
Em troca, aquele que recusa o papel por motivos revolucionários não apenas subtrai
sua própria pessoa ao jogo dos papéis, mas também se opõe à base econômica e política de
determinadas funções de papel e se propõe a abolir a sociedade que produz os costumes e usos
determinados que se cristalizaram em papéis. Que se pense, por exemplo, em Lênin, que era
inimigo radical de todos os clichês de comportamento, mas apesar disso insistiu na
conservação das normas tradicionais elementares, embora nos clichês de comportamento
expres-sem-se precisamente, com frequência, de um modo fetichizado c alienado, essas
normas.
A relação geral média com os papéis se apresenta, decerto, nos períodos históricos
relativamente tranquilos, como de identificação, como perda de si mesmo na simultaneidade e
na sucessão dos papéis representados. Nesse processo, o interesse é sempre a determinante
mais abstraía e mais universal. Isso pode ser visto claramente nos casos conflitivos, mas se
trata de uma situação que — embora possa ser latente — existe em todos os casos. A
determinante universal mais concreta é a socialidade do homem, a aspiração de todo homem
no sentido de que essa socialidade se realize em contatos externos, em relações humanas. No
princípio de minha exposição, referi-me ao fato de que o capitalismo desenvolvido aliena
todas as relações humanas, cristalizando em papéis todos os sistemas consuetudinários, todas as
hierarquia de comportamento, etc., de tal modo que os fatos vitais imprescindíveis para a
convivência humana, tais como a imitação, os estereótipos básicos, a relação com a tradição,
os costumes, etc, passam a aparecer sob a forma de papéis. Para a média dos homens, é prática
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e teoricamente impossível distinguir entre as estruturas valiosas ou relativamente valiosas da
tradição, etc, e a sua função de papel. Para efetuar essa distinção, são necessárias capacidades
intelectuais incomuns, bem como uma força moral extraordinária. Essa possibilidades
aumentam subitamente em épocas revolucionárias, mas os períodos de crise revolucionária
aguda são relativamente curtos se comparados com todo o desenvolvimento capitalista. Quanto
mais desenvolvido é o capitalismo, quanto mais encobertas são suas manifestações de crise,
tanto mais heróico vai se tornando até mesmo o mero comportamento médio estóico que se
distancia do papel.
Embora tenhamos estabelecido uma relação entre a identificação com o papel e a
alienação, com isso não queremos afirmar que haja sempre uma razão direta entre a medida
dessa identificação e a alienação. A situação está determinada em grande parte pela relação
entre as concretas possibilidades dadas à personalidade e o papel concreto em questão.
Existem, por exemplo, possibilidades pessoais que podem ser desenvolvidas — ainda que
limitadamente — em determinados papéis. Nesses casos, naturalmente, a alienação será menor
do que quando o papel em questão ou o sistema de papéis for contrário às possibilidades
pessoais de um homem em todos os terrenos. De modo análogo, as motivações psicológicas
conscientes ou inconscientes da identificação podem diferir muito; e é evidente que influem
de modo muito variado no desenvolvimento ou na involução da perscnalidade. Um papel po-
de, por exemplo, ser assumido por obrigação íntima. Embora o papel seja objetivamente
conforme à estrutura social dada e embora também o seja a determinante última da
motivação, pode ocorrer — se essa determinação aparecer à consciência sob uma forma
inconformista, ou seja, se na esfera da chegada da motivação à consciência se der uma
aparência de inconformismo — que a personalidade se empobreça apenas limitadamente. O
resultado, sem dúvida, depende em grande medida do conteúdo sócio-moral dos papéis em
questão. Mas não há dúvida de que o desenvolvimento da personalidade tem menos
possibilidades de ocorrer nos casos em que as motivações conscientes se adaptam aos papéis
aceitos e diretamente expressos pela opinião pública manipulada.
Também aqui devemos fazer uma distinção. Não é possível identificar a diferença que
existe entre aceitar um papel por obrigação íntima ou aceitá-lo através da manipulação com
aquela que se estabelece entre os fatos da consciência e os da espontaneidade. Pois tanto a
consciência quanto a espontaneidade apresentam formas alienadas e formas não-alienadas
(deixando-se de lado a amplíssima escala de formas de transição) . Quando a cristalização das
formas de comportamento em papéis é um processo já adiantado da consciência, ele não se
contrapõe simplesmente à espontaneidade, mas as contraposições reais se verificam, por um
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lado, entre a consciência alienada e a não-alienada, e, por outro, entre a espontaneidade
alienada e não-alienada. Em ambos os casos, o problema consiste em saber a profundidade com
que essas formas conseguem penetrar na essência da personalidade, a proporção com que essa
terceira dimensão (a profundidade) determina as ações. Decerto, há muitas coisas que são
consciência, mas consciência caricatural e fetichizada; por exemplo, saber reconhecer as
exterioridades de um determinado status quo da realidade, saber "utilizá-las", saber prever
dentro dos seus limites, ser capaz de decidir aos vinte anes o que se poderá ganhar em
determinado emprego quinze anos mais tarde, quando será conveniente casar, quantos filhos
convirá ter, etc. De modo análogo, representa uma caricatura fetichizada da espontaneidade o
homem que tudo aceita, sem preocupações, do modo como lhe aparece na vida; o homem que
atua segundo o princípio do "seja o que deus quiser", sem nenhuma perspectiva que transcenda o
dia a dia. A verdadeira espontaneidade é sempre exteriorização da personalidade, e, como tal,
um ato de liberdade; a verdadeira consciência é um comportamento que busca as conexões
objetivas da realidade, sendo também um ato da liberdade: A espontaneidade criadera está
acima da consciência conformista; por sua vez, a consciência criadora está acima da
espontaneidade criadora, embora sempre conservando dialeticamente os elementos da esponta-
neidade.
Por conseguinte, é inteiramente equivocado afirmar que o índice psicossocial de status
e a capacidade de desempenhar papéis são correlativos. Essa tese significa não apenas uma
aceitação do status quo dos países mais manipulados, como também situações extremas que
não predominam sequer em tais países.
Não é verdade, em primeiro lugar, que um caráter seja tanto mais social quanto mais
adaptável, quanto maior número de papéis for capaz de "representar" sucessiva e simultanea-
mente. Os indivíduos não suficientemente adaptáveis a nenhum papel foram sempre
autênticas personalidades, portadoras de novas tendências sociais e de novas idéias. Disso
decorre, em segundo lugar, que a maior ou menor adaptabilidade ou a maior ou menor
aspereza de um caráter colocam problemas que, de nenhum modo, são apenas puramente psi-
cológicos. É evidente que se trata também de um problema psicológico, mas em igual medida
— ou mesmo em maior medida — estão implicados valores morais. Um caráter é muitas
vezes inflexível, ou insuficientemente flexível, pela simples razão de que não quer ser diferente,
porque vê na flexibilidade que a tudo se adapta indignidade e amoralidade. Por que os
meninos em idade escolar simpatizam muito mais com o papel de chefe de bandidos que com
aquele de provocador policial? Ambos são papéis. Se se deve responder que é o desprezo
geral o que impede a segunda escolha, essa resposta será suficiente para refutar a tese de que
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o índice psicossocial de status seja correlativo da capacidade de desempenhar papéis. Mas irei
ainda mais longe. Em ambientes como os internatos, nos quais pode ser uso e sintoma de
distinção troçar dos calouros, dos. estudantes do primeiro ano, há sempre estudantes veteranos
que se negam a participar dessas brincadeiras, ainda que, por causa disso, sua comunidade os
despreze e até mesmo os segregue. E ocorre, com frequência, que aquele que é capaz de
suportar essa segregação passa a desfrutar depcis de um prestígio maior que qualquer outro de
seus colegas, de curso. Mas, se responde que os homens que se negam a aceitar determinados
papéis, que os homens não dispostos a aceitarem qualquer papel, terminam inevitavelmente
segregados quando chegam à idade adulta, por que considerar essa resposta uma verdade
eterna, "correlação psicossocial", ao invés de sublevar-se contra ela?
O condicionamento do papel social
Já várias vezes sublinhamos o caráter condicional da função "papel". O homem é mais
do que o conjunto de seus papéis, antes de mais nada porque esses são simplesmente as
formas de suas relações sociais, estereotipadas em clichês, e posteriormente porque os papéis
jamais esgotam o comportamento humano em sua totalidade. Assim como não existe nenhuma
relação social inteiramente alienada, tampouco há comportamentos humanos que se tenham
cristalizado absolutamente em papéis.
Vimos que as funções de tipo "papel" são condicionadas, antes de mais nada, pelo
conjunto da sociedade. Mesmo nos contextos mais manipulados, produz-se constantemente a
"recusa do papel". Em todos esses contextos, há excêntricos, rebeldes e revolucionários. Até
mesmo os contextos mais manipulados estão repletos de homens que vivem em "incógnito de
oposição".
Embora limitando nossa investigação ao comportamento objetivamente cínico, embora
pensando apenas naqueles que se identificam com seu papel ao aceitá-lo, ainda assim nos en-
contramos diante do referido caráter condicional.
Pensemos no camareiro de Sartre. Esse camareiro representa dia após dia, do início da
manhã até o fim da noite, o papel de camareiro. Mas que acontecerá no dia em que —
hipótese nada excepcional, mas cotidiana — alguém por ele servido (uma garota, ou uma
velha senhora) começar se sentir mal? Como reagirá a essa situação inesperada? Nas "ex-
pectativas" do papel de camareiro não existem preceitos ou receitas que digam se, ao
necessitar um concreto ser humano de uma ajuda concreta, deva o camareiro ajudar-lhe, nem
tampouco o modo de tal ajuda. Nessa situação, portanto, o camareiro não se comportará de
acordo com as expectativas do papel. Seria ridículo afirmar que, nesse caso, o camareiro "as-
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sume" os papéis de médico, enfermeiro, amigo, etc. A verdade é que, na hipótese examinada,
devem entrar em ação as qualidades humanas mais gerais e imediatas, como a bondade, a
solidariedade, e também — e não em último lugar — a capacidade simpatética de conhecer
uma situação e, com ela, o emprego do tato. Ou, no caso de um comportamento contrário, as
qualidades humanas, também gerais e imediatas, de indiferença, egoísmo, falta de tato,
comodismo, etc. É claro que as qualidades que, num tal caso, impõem-se em primeira instância
não se limitam a papéis determinados, mas são características do homem inteiro, do indivíduo.
Em situações novas, surpreendentes, nas quais os estereótipos deixam de funcionar ou funcionam
mal, restabelece-se sempre a unidade da personalidade, ou seja, manifesta-se repentinamente
como é o homem em questão, de que tipo de homem se trata. Daremos também aqui um
exemplo literário: o Holmer, de Ibsen, desempenha durante toda a sua vida dois papéis 18
. É
um funcionário duro e egoísta; mas, ao mesmo tempo, um marido amável e afetuoso e um pai
exemplar. Quando se encontra diante de uma situação nova, de uma situação conflitiva,
desprende-se subitamente de qualquer elemento de papel e comporta-se também diante de sua
mulher como um egoísta brutal e desumano. Inutilmente tenta retornar a seu "papel" familiar
anterior, após o conflito. Nora já o conhece e não acredita nele. Quanto mais conflitiva e
desconhecida, quanto mais inédita for uma situação, tanto menos será possível comportar-se
diante dela conforme as prescrições de um papel. Por isso, já sublinhei repetidamente que o
elemento "papel" do comportamento debilita-se do ponto de vista social geral nos casos em
que, durante seu decurso, produz-se uma situação conflitiva repentina e revolucionária.
Assim como a perda da personalidade, também a interrupção da continuidade do
caráter é naturalmente uma simples tendência. Quanto mais fetichizado estiver o comporta-
mento humano, tanto menos os vários papéis conseguem lhe imprimir marcas, caso em que o
homem já será velho mas continuará pueril. Mas, também aqui, deve-se recordar que não
existe nenhum contexto, por mais alienado que seja, no qual os papéis assumidos não deixem
marca alguma no sujeito, visto que — embora isso pareça paradoxal — a própria circunstância
de que um homem assuma e realize cegamente determinados papéis diz algo sobre ele; também
a vacuidade, a corrosão moral, são um conteúdo humano, embora se trate de um conteúdo
negativo. Toda negação é, ao mesmo tempo, afirmação: esse princípio também se aplica
plenamente ao caráter.
Como já dissemos, o menino não se reconhece simplesmente em outros papéis, mas
sim no ser-outro em geral, em outrem. E já dissemos que o menino não assimila papéis, mas
18
Os eventos descritos são tomados da peça Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen (Nota dos
Tradutores).
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sim modos de comportamento, percebendo a unidade deles. Quando, na vida adulta,
perde-se paulatinamente essa sensibilidade (o que ocorre na medida em que a sociedade é
manipulada) e as expectativas vão se estreitando efetivamente até coincidirem com as do
papel, nem mesmo assim elas chegam jamais a identificar-se completamente com o papel.
Basta pensar num fato elementar: a escolha do companheiro sexual ou do cônjuge. Os
sociólogos norte-americanos costumam lamentar o fato de que essa decisiva esfera da vida
esteja profundamente manipulada; notam que os esquemas de tipo "papel" revelam-se
decisivos na escolha do companheiro e que o conjugue "ideal", do qual o cinema e a televisão
fazem propaganda, determina em dado momento a escolha, a qual incide, portanto, nas
pessoas que melhor representam esse papel. E isso se refere tanto às qualidade externas (ideal
conformista de beleza) quanto às "internas". Mas, dentro do grupo dos muitos homens cu
das muitas mulheres uniformes, escolhe-se precisamente esse ou aquela, não esse outro nem
aquela outra, e essa circunstância não pode ser explicada exclusivamente pelo acaso. £
inimaginável que não haja, mesmo no interior dos estereótipos, nenhuma qualidade
particular, individual, nenhummatiz individual que não "permaneça", por assim dizer, nada
particular que atraia mais para una do que para outros; e também é impossível que esses
"matizes" individuais sejam apenas externos, sem nenhuma característica simultaneamente
interna. Certa feita, ouvi de uma mulher: "Um homem não gosta de nós pelo tipo de sua
relação conosco, mas pelo tipo de sua relação com o mundo". É evidente que não se trata das
palavras que deveriam decorrer das expectativas de seu papel. Mas, inclusive no caso das
expectativas adequadas ao papel, deve-se negar que sejam indiferentes as formas de com-
portamento nos campos não determinados pelo papel (nesse caso, pelo papel de marido) com
relação aos sentimentos (por mais pobres que sejam) ou com relação à escolha (por mais
mecânica que seja).
Já dissemos que, no comportamento de "papel", os homens atuam segundo as regras
do jogo. Mas, tampouco aqui deve-se passar por alto o fato de que não existe nenhum com-
portamento, por mais que esteja cristalizado em papel, no qual não desperte, com maior ou
menos frequência, a consciência da responsabilidade pessoal, cu, pelo menos, a sensibilidade
correspondente. A consciência moral e os apelos dessa consciência jamais se reduzem
exclusivamente à observância ou ao desprezo pelas regras do jogo da vida, à questão vitória-ou-
derrota. Qualquer homem psiquicamente normal pode distinguir entre a vida real e o jogo; e
efetivamente o faz. Precisamente nisso se encontra a linha divisória entre a esquizofrenia social
e a esquizofrenia médica; o esquizofrênico médico perde realmente a capacidade de distinguir
entre o jogo e a vida, entre a representação e a realidade. Muitos psicólogos sociais não
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reconhecem esse fato elementar porque passam da investigação dos fenômenos patológicos à
análise do comportamento de homens psiquicamente normais e interpretara a analogia como se
fosse uma identidade.
Last buí not least: a existência econômica das diversas classes e camadas não
condiciona na mesma medida a formação de papéis estereotipados em clichês. As mais
expostas à fetichização do comportamento humano segundo as regras do papel são as camadas
dos pequenos burgueses, dos burocratas, dos managers e dos pequenos capitalistas. Menos
expostos a essa fetichização são a classe operária e as camadas superiores da burguesia. No
caso da classe operária, o decisivo é que o processo de trabalho — por mais alienado e
mecânico que seja — presta-se pouco à formação de papéis estereotipados em clichês. Pode-
se "representar" o papel de porteiro de hotel, assim como um diretor-gerente pode sem dúvida
sumir no papel de "diretor-gerente ideal". Mas não é possível "representar" o papel de
"torneiro ideal", pois diante de um torno nada há a fazer senão trabalhar, e servindo-se
precisamente dos movimentos mais simples e econômioos entre os conhecidos. Todos esses
movimentos estão determinados pela peça trabalhada e pela ferramenta, e não diretamente
pela relação social. Os representantes mais destacados da burguesia — cujos comportamentos
cotidianos podem ser clichês — vêem-se constantemente em face da necessidade de elaborar
respostas não determinadas pelo papel, por causa da luta de classes nacional e internacional e
por causa do constante aparecimento de situações novas. Se respondesse conforme o papel
estereotipado em clichés, a burguesia já há muito teria desaparecido.
Na leitura de novelas policiais norte-americanas de hoje, podemos encontrar
frequentemente a seguinte situação: parte-se de um fato que merece punição e tenta-se
descobrir seu autor. O caráter dos personagens não oferece nenhuma ajuda para essa
investigação sobre a autoria do crime. Por quê? Porque não são caracteres, não são
personalidades, de modo que em princípio — todos poderiam ter cometido o ato em questão.
O assassino é "substituível": todos podem ser assassinos. A tensão resulta precisamente do fato
de que ora suspeitamos de um, ora de outro, até que — no final — o genial detetive consegue
descobrir o verdadeiro assassino. Esse genial detetive é o único que consegue penetrar com o
olhar em todas as complicações, é o único situado acima do mundo do acusado, é o único
capaz de jogar com os seres humanos, e, por conseguinte, de triunfar em última instância.
Ora, se o mundo absolutamente manipulado existisse, seria precisamente assim.
Todavia, "enquanto for capaz de aspirar, nosso coração não será uma ficha".
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OO LL UU GG AA RR DD AA ÉÉ TT II CC AA NN OO MM AA RR XX II SS MM OO
TODO MOVIMENTO social importante, mais cedo ou mais tarde, deve enfrentar os problemas
éticos. Pode não tomar posição espontaneamente, pode não propor aos seus seguidores uma teoria, uma
ideologia, ou perspectivas ligadas a semelhante teoria ou ideologia, porém, se exige uma militância
consciente não pode deixar de assumir uma atitude determinada, positiva ou negativa, em face da
tradição moral. No entanto, do fato de que um movimento social importante não pode existir por muito
tempo sem uma tomada de posição diante da ética não decorre que o seu alcance, a sua importância e o
entusiasmo que ele suscita estejam ligados, de modo diretamente proporcional, à elaboração da sua ética.
Isso aparece de maneira evidente no estudo dos movimentos socialistas. O marxismo já existe há mais
de um século, há mais de um século ele exerce sua influência, mobiliza massas. Hoje, de um modo ou
de outro, ele se acha na base da concepção do mundo adotada por movimentos que exercem influência
política no mundo inteiro. Nenhum dos marxistas, contudo, mesmo os mais notáveis, nenhum deles
definiu os problemas da ética, a não ser de maneira apriorística. Apesar disso, a ética possui no
conjunto da teoria marxista um lugar que merece exame e que nós gostaríamos de examinar,
mesmo porque se impõe hoje a exploração urgente dessa "terra desconhecida".
Não basta certamente constatar que um movimento de importância histórico-mundial,
cuja doutrina inclui teoricamente uma posição diante das questões morais, não formulou no
curso de um século sua ética; é preciso nos perguntarmos por que não a formulou.
A ausência de uma ética em um movimento não significa certamente que ele não tenha
seus costumes e que nestes não haja um código moral. Entre esses três existe um nexo. E, nos
costumes de um determinado movimento, no seu código, no seu código moral, em seus
conteúdos e suas funções, podem ser encontrados elementos para uma resposta à pergunta:
por que semelhante movimento possui ou não possui uma ética, e por que semelhante ética é
exatamente assim e não de outro modo?
O código moral e a ética podem ser inversamente proporcionais um ao outro. Se as
escolhas e as ações são guiadas por um código fixo, a opção é relativamente segura e o seu
conteúdo moral nunca é problemático. Além disso, a opção nunca apresenta o caráter de
opção individual, só se apoia minimamente num risco pessoal, nunca é dinâmica (no sentido
de poder levar em conta o "elemento novo"). Quando, numa situação concreta, uma escolha se
impõe, a ética não contribui para trazer uma certeza maior; ela pode até, ao contrário, di-
minuir o grau de certeza. Ela não facilita a escolha: leva ao reconhecimento dos diversos
aspectos da situação e do caráter relativo da opção, leva à tomada de consciência de seus
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riscos e possíveis consequências. Quando o indivíduo se coloca a pergunta referente ao
conteúdo moral e aos possíveis abertos à sua ação, a ética pode proporcionar uma resposta a
essa pergunta, mas nunca lhe oferecerá conselhos concretos.
Um movimento elabora uma ética, elabora os nexos teóricos da sua ética, quando os
seus costumes e as suas necessidades morais apresentam maior afinidade com a ética do que
com a ação codificada. Mas o conteúdo das suas necessidades morais depende de fatores
muito variados. Enumeremos alguns deles:
a) uma ética só pode se formar cm movimentos que não se considerem absolutos, isto é,
em movimentos que se considerem um fator no conjunto dos movimentos da
sociedade, um fator da história;
b) a elaboração de uma ética torna-se possível c necessária quando a espontaneidade do
movimento é cortada. Nas épocas históricas em que os acontecimentos (entre os quais o
movimento em questão) se desenvolvem sem comoções internas e sem pontos de
estrangulamento, o que se vê aparecer é uma ideologia da espontaneidade e uma
postura burocrática, que subestimam a importância das opções humanas. Por isso, é
natural que a ética, na doutrina do movimento, só passe ao primeiro plano em épocas
revolucionárias (de crise positiva) e quando no interior do próprio movimento
manifestam-se contradições (crise negativa);
c) a constituição da ética é possível e se torna necessária quando, no seio de uma
comunidade, o juízo individual (e portanto o papel da decisão individual) assume real
importância; particularmente quando um grande número de indivíduos se acha em
uma situação na qual se torna impossível para eles agir de acordo com o código;
d) por fim, para que em um movimento se forme uma ética, é necessário que nele exista
uma consciência de si, uma autoconsciência, uma autocrítica. Não se trata apenas de re-
conhecer com isso sua relatividade histórica; trata-se da tomada de consciência das
contradições internas do movimento por parte dos indivíduos, contradições que
aparecem aos referidos indivíduos como contradições morais.
Os termos "possível" e "necessário" possuem significados que podem variar, de modo
que convém esclarecer que, na realidade, na acepção com que acabamos de utilizá-los, a
"possibilidade" é absoluta, ao passo que a "necessidade" é hipotética, constitui o objeto de
uma alternativa: indica uma necessidade cuja satisfação depende de um grande número de
fatores heterogêneos.
Desde o nascimento do socialismo até os nossos dias, tais condições nunca se reuniram.
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Isso ainda é mais verdadeiro para os movimentos socialistas não-marxistas, que preferimos
não levar em conta no presente estudo.
Na evolução do movimento marxista, podemos distinguir aproximativamente as
seguintes etapas:
a) o desenvolvimento do marxismo no próprio Marx, na época da Revolução de 1848 e
da Primeira Internacional;
b) a Segunda Internacional, isto é, o marxismo dos clássicos da social-democracia;
c) o renascimento do movimento revolucionário marxista, do começo do nosso século
até a consolidação definitiva da sociedade soviética (Lênin e o leninismo, Luxemburg,
Jaurès, Gramsci, o Lukács de História e Consciência de Classe, e, sob certos aspectos,
Pannekoek e Otto Bauser;
d) o período do culto à personalidade, do marxismo positivista e manipulatório;
e) a inversão da tendência. No curso dos anos sessenta, particularmente, as tentativas de
suscitar um segundo renascimento do marxismo.
Queremos desde logo afirmar que a premissa e ao mesmo tempo o postulado de uma
ética marxista já se apresentaram em três ocasiões: no próprio Marx, no período
revolucionário do começo do Século XX e, por fim, nos nossos dias.
Se consideramos os fatores que tornam possível o nascimento de uma ética,
compreenderemos facilmente por que semelhante possibilidade não se apresentou nem na
época da Segunda Internacional nem no tempo do culto à personalidade.
O movimento operário do final do século passado ficou mais ou menos isolado do
conjunto da sociedade. Baseou-se sobretudo na espontaneidade e se interessou
unilateralmente pelos fatores econômicos. Ê natural, portanto, que a praxis, sobretudo as
motivações da praxis, mas também a heterogeneidade de seus sistemas de valores, tudo isso
tenha ficado fora de seus horizontes ideológicos. De tal situação resultou que a ética foi
definida unanimemente como uma ética de classe e, ainda por cima, como um sistema
absoluto e fechado, elaborado à base de interesses e necessidades, e tornando biológicas as
motivações morais. Era uma posição mais aproximada da de D'Hclbach ou da de Darwin do
que da de seus pontos de partida marxianos. A ética de Kautsky nos fornece um exemplo
eloquente do que dizemos, porém, poderíamos lembrar também o estudo em que Lafargue
analisa o nascimento das noções morais. O próprio Engels, em alguns capítulos do Anti-
Duhring, "adaptou" a teoria do egoísmo dos filósofos do século XVIII à análise das classes.
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A evolução tranquila dessa época não compelia o movimento a tomar consciência dessa sua
carência de uma ética.
O marxismo da época do culto à personalidade adotou quase que integralmente a
interpretação da moral realizada por Kautsky e Plekhânov, acrescentando-lhe entretanto
algumas inovações. Na realidade, ele fundiu positivismo e voluntarismo, combinando à fusão
um código extremamente rígido e limitado. Esse matrimônio artifical é uma decorrência do
ca-ráter mesmo do movimento. Subsistia o fator do isolamento, que se tornara até mesmo
mais relevante do que na época da Segunda Internacional. E as possibilidades de uma praxis
real no interior do movimento se tornaram ainda mais reduzidas. Tudo isso, porém,
misturava-se a um ativismo coletivo no qual não existia mais espaço para a espontaneidade, a
margem para a atividade individual era mínima e o conteúdo das ações individuais era
determinado pelo código moral a que já nos referimos.
Como já dissemos, a necessidade de uma moral reaparece no primeiro quartel do
nosso século. Semelhante necessidade se manifestou não só em decorrência da revolução,
mas também por força da crise da social-democracia. Tornara-se possível, então, escolher
entre dois tipos de movimento, entre dois ou mais caminhos. Não é casual que, em condições
bastante diversas e de maneiras diferentes, Lênin e Jaurès, que não queriam isolar o mundo
operário dos problemas e conflitos do conjunto da sociedade, tenham percebido claramente
essa necessidade. No Que Fazer? Lênin recoloca programaticamente a categoria de "praxis"
em seu justo lugar, enquanto reavalia positivamente, de outro lado, o papel das alternativas,
como também o papel de todos e cada um dos indivíduos na formação, na realização e
concretização das alternativas.
Não podemos analisar aqui a explicitação histórica dessas posições: limitamo-nos a
constatar que, apesar de tudo, a elaboração de uma ética marxista não representou, naquela
ocasião, um problema que pudesse ser efetivamente enfrentado. E verdade que, juntamente
com as questões da praxis e das alternativas, surgiram outros problemas teóricos: a função so-
cial e ética da violência as contradições éticas entre a espontaneidade e a consciência, as
relações com as tradições morais, a determinação dos valores com base nos quais cabe
transformar a sociedade; a concreta aplicação da tese marxiana sobre Feuerbach que analisa o
dilema entre o "educador" e o "educando" (tese segundo a qual a sociedade é sempre
transformada pelos homens que nela vivem e, portanto, ainda que não necessariamente, está
sempre exposta à possibilidade de deformações). Em todas essas questões transparece a noção
de que uma reorganização da sociedade, capaz de humanizar a vida não depende de uma única
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ação revolucionária drástica c sim de uma revolução permanente. Apesar disso, as teorias que
chegaram a se elaborar no trato com essas questões, naquele então, nunca chegaram a
constituir um todo orgânico, ou só o constituíram transitoriamente. Isso não ocorreu porque
"ainda não era a época própria", pois a época é sempre própria quando se trata de dar resposta
a uma exigência que se acha na ordem-do-dia: na realidade, não ocorreu porque a exigência
ainda não se achava na ordem-do-dia.
Atualmente são numerosos os pensadores que, como Mar-cuse, encaram as revoluções
da primeira parte do nosso século como "revolução da fome". Conquistar o poder, fazer
desaparecer a miséria e a opressão e reorganizar a economia eram, de fato, as exigências que
estavam na ordem do dia. Os problemas éticos se colocam apenas como problemas marginais,
como elementos contidos nos objetivos supra-indicados e, em seguida, como valores que
caracterizam o tipo de cada perspectiva (e, portanto, como todos os valores, vistos como mo-
tivadores das ações).
A situação atual é completamente diversa. Em primeiro lugar, as tragédias e os
horrores do passado mostraram o que pode acontecer quando a moral, a escala dos valores
morais, desaparece da esfera da política e é separada do esforço de humanização, o que pode
acontecer quando a iniciativa individual desaparece em todos os níveis e a responsabilidade
individual deixa de existir. Além disso, as sociedades eminentemente "manipuladas" da
América e da Europa, que asseguram a todos um crescente, embora relativo, bem-estar mate-
rial, colocam em termos novos o problema do Que Fazer? A libertação ou dcscartamento da
miséria passa a ter apenas uma função que agora já passa a ser secundária e logo será até mes-
mo terciária. Já não se trata mais de criar as condições elementares para a vida humana e
depois chegar a uma vida verdadeiramente humana: o nosso objetivo imediato é, desde logo,
chegar efetivamente a esta última. A consciência do direito a uma vida verdadeiramente
humana está presente nos homens, potencialmente, da mesma maneira como a consciência do
direito à satisfação das necessidades mais primárias se achava presente nos homens na época
das "revoluções da fome". Lassalle ainda falava da "maldita falta de exigências" dos operários.
No século XX, os operários já superaram isso, o problema que se coloca é o das exigências
relativas à humanização da vida em geral. É à luz dessas novas exigências que a consciência de
classe deve propor as iniciativas capazes de transformá-la numa força apta para mudar o
mundo (e, para tal fim, cabe à consciência de classe estimular essas exigências e
corresponder a elas). Desenvolver e formular a nova reivindicação é mais difícil do que foi, no
passado, desenvolver e formular a luta do movimento operário. Por isso mesmo, a ética — se
conseguir efetivamente assumi-lo — deverá desempenhar um papel decisivo. O elemento
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ético, de fato, não existe apenas de maneira implícita: a consciência da nova exigência
significa ao mesmo tempo a consciência dos valores e da orientação ética em que se há de
basear a criação da nova realidade. Marx disse que, transformando o mundo, os homens se
transformam a si mesmos. Não modificaremos substancialmente o seu pensamento se
alterarmos a sua frase e afirmarmos agora que não podemos transformar o mundo se, ao
mesmo tempo, não nos transformarmos nós mesmos.
Voltamos, então, a um dos princípios que havíamos enunciado no início dessas nossas
considerações: a ética tem seu lugar na concepção de Marx. Procuraremos precisar ainda, em
breves traços, qual é esse lugar e o que é que o caracteriza.
Todos sabem que Marx interpreta a sociedade como praxis, como unidade de ser e
consciência, uma unidade em cujo quadro os limites mais gerais das possibilidades da ação
humana são determinados pelo grau de assenhoreamento da natureza, pelo avanço cuja
contrapartida é o "Retrospecto dos limites naturais". A humanidade se produz a si mesma a
partir de um mundo que já existia antes dela. A história da humanidade é a história do
nascimento e do desenvolvimento da liberdade: os homens se libertam cada vez mais da
fatalidade natural e, no entanto, nunca chegam a suprimi-la. Marx nos dá portanto uma
dedução consequente da idéia da imanência. As motivações da humanidade são, de fato,
sempre imanentes; mas os homens não têm consciência disso (ou, pelo menos, não têm
plenamente). A consciência da liberdade, para a humanidade e para os indivíduos,
desenvolve-se na medida em que os homens compreendem semelhante imanência, a
alternativa e o poder que nascem dela. É aqui que podemos discernir os contornos gerais da
ética de Marx. A moral é sempre imanente porém a humanidade — enquanto humanidade
livre — só pode se elevar à autoconsciência à base da imanência moral, o que significa —
convém repetir — a tomada de consciência do caráter terreno da vida e da contínua
autocriação humana. A meu ver, essa é a contraposição de princípio existente entre a ética de
Marx e todas as éticas religiosas, independentemente do fato de que ambas as espécies de
ética podem chegar a resultados completamente diversos, ou semelhantes, ou até idênticos, na
apreciação de determinados valores.
Como dissemos, para Marx o grau de "retrocesso dos limites naturais" (resultante de
finalidades humanas) indica as possibilidades colocadas em cada época e para cada grupo, o
âmbito do movimento da humanidade, e, no interior desse movimento, as integrações, as
ações, das classes, as camadas sociais e os indivíduos. Mas existem sempre alternativas, e o
resultado só aparece depois de uma escolha entre as inumeráveis alternativas. Em nossa
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opinião, a autonomia relativa da atividade humana constitui o segundo ponto de partida da
ética marxista.
Essa autonomia relativa significa duas coisas para o indivíduo: por um lado, ela lhe
oferece a possibilidade dele criar seu próprio destino e promover, mediata ou imediatamente,
sua integração e a de toda a humanidade; por outro lado, ela lhe dá a possibilidade de levar
em conta tudo aquilo que é necessário e cobra dele o esforço no sentido de encarar os fatos
tais como eles são, reconhecimento sem o qual todo comportamento ativo degenera em
moralismo abstrato ou sonho estéril. As atitudes de Prometeu ou de Epicuro representam,
para Marx, juntas, a tomada de posição correia diante dessas alternativas.
Para Marx, a moral é a relação existente entre o indivíduo, sua circunstância e suas
possibilidades concretas. Por isso, ele criticou implacavelmente os que pretendiam descrever as
circunstâncias com a terminologia da moral e protestou energicamente contra os que
identificavam o conceito de "capitalista" com o de "mau" e o conceito de "operário" com o de
"bom", repelindo ainda toda e qualquer tentativa de caracterizar a sociedade do futuro através
de noções morais. Marx considerava desprovida de sentido a crença na onipotência da
"educação moral". Isso não significa que ele negasse a existência dos valores e até da
acumulação dos valores; só que não considerava os valores sociais, antropológicos,
acumulados como sendo por si mesmos valores morais, entendendo-os como valores mais
amplos ou mais limitados do que aqueles que se realizam no âmbito dos costumes (e, de
qualquer modo, como valores de outro tipo). No que concerne a tais valores, a moral se
manifesta pela escolha ou pela rejeição do desenvolvimento da essência humana: na
perseverança, nas formas da busca dos fins almejados, etc. Somente à base dessa concepção é
que pôde nascer a caracterização do "revolucionário prematuro" (tal como ela se acha nas
cartas sobre o drama Franz von Sickingen de Lassale), tipo no qual a grandeza humana da
ação não fica indicada pela pura motivação, nem pelas consequências, e sim pelo fato do herói
assumir a defesa de uma causa, tornar-se responsável por ela, e essa causa representar valores
humanos e sociais que o próprio herói não pode realizar nas condições dadas e que, no
entanto, são valores inseridos na perspectiva do desenvolvimento efetivo da humanidade.
Do que dissemos, conclui-se que para Marx a moral não pertence a qualquer esfera
particular. Quase todas as ações humanas têm um conteúdo moral, mas não há nenhuma na-
tureza puramente ética. A moral indica a relação objetiva do indivíduo com a sua espécie, a
sua pertinência ao gênero humano (relação dos valores), o nível em que expressa essa relação
(em que medida o indivíduo tem consciência de sua pertinência ao gênero, em que medida sua
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personalidade particular se combina com essa pertinência e em que medida a universalidade
do gênero chega a constituir a fundamentação ética das suas ações). £ no plano moral que se
manifesta igualmente a sabedoria da vida ao indivíduo: em que medida ele reconhece os
conflitos entre os valores, em que medida é capaz de avaliar e escolher diante das
circunstâncias, "aplicando" seus princípios sem se submeter passivamente à situação. E é no
plano moral, por fim, que se manifesta a força, a resistência e a solidez do caráter.
Como em outros campos, também no da moral Marx discerne o fenômeno da
alienação. Quando a moral se apresenta como uma esfera autônoma, trata-se de uma morai
alienada: suas exigências se opõem rigidamente às particularidades da vida individual e a
moral esmaga o indivíduo, mesmo nos casos em que este se submete voluntariamente, tal
como o esmagam a Justiça e o Estado (pense-se na análise de Fleur de Marie, na Sagrada
Família). Mas a moral também se acha alienada quando — e na medida em que — os
interesses de uma entidade e especialmente de uma classe tornam-se um postulado moral
"natural" para os indivíduos que a integram. O movimento comunista deve levar à supressão
de semelhante determinismo de classe: cabe-lhe conseguir que a motivação das escolhas
morais se destaque cada vez mais de suas derivações dos interesses de um determinado estrato
social para vin-cular-se cada vez mais diretamente à humanidade como um todo, à essência do
gênero humano. O fortalecimento dessa essência genérica do homem e a efetiva humanização
global da vida acarretam ao mesmo tempo a superação da alienação moral: a conquista de um
âmbito de movimento individual cada vez mais amplo, no qual a decisão ética concreta vai
poder substituir em geral, para todos, a vigência de princípios de moral abstrata, o
automatismo dos costumes.
Depois de ter sustentado em linhas gerais a existência de um lugar para a ética no
sistema do marxismo e de ter procurado caracterizar rapidamente qual e esse lugar, devo
explicar ainda uma coisa: por que falei de uma ética dos movimentos socialistas e não somente
de uma ética marxista? Por que essa ética não poderia ser elaborada a partir da doutrina
filosófica -de Marx? Por que um "especialista" no estudo do pensamento de Marx (um
"marxólogo") não poderia elaborá-la?
Todo filósofo deve viver seus pensamentos; as idéias que não forem vividas não são
efetivamente filosóficas. Semelhante princípio prevalece com especial vigor no caso da ética,
e ainda mais particularmente no caso da ética marxista. A ética marxista é uma praxis, não
pode existir sem uma realização prática sem se realizar na prática de algum modo. Mesmo
elaborada com base nos princípios teóricos de Marx, uma ética que se limite a contrapor-se
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passivamente ao atual mundo manipulado não passará de uma nova expressão,
contemporânea, da "consciência infeliz". A ética marxista só pode ser a tomada de
consciênncia do movimento que se humaniza a si mesmo e humaniza a humanidade. Por isso,
a ética marxista não depende só da compreensão e da aplicação correta dos textos de Marx:
ela depende muito mais do desenvolvimento do movimento que a adote como moral. Os que
hoje tentam elaborar uma ética marxista e querem explorar essa "terra desconhecida" da qual
falamos só podem ter uma perspectiva: um reencontro do movimento revolucionário, de seus
homens, de suas massas (da atividade que humaniza e transforma o mundo), com a teoria de
Marx. A "maldita falta de exigências" das novas condições tornou necessária a ética marxista,
porém, a fecunda ética de Marx só pode avançar com a diminuição e a superação dessa "falta
de exigências".
Eis-nos portanto de volta à nossa afirmação inicial. Indicamos quando um movimento
pode elaborar uma ética: pode fazê-lo no momento em que se considera absoluto, desaparece
a espontaneidade da sua consciência, aumenta o âmbito da atividade individual no seio da
comunidade e ele passa a ter consciência de si mesmo, autocrítica. Mesmo se esses elementos
se acham total ou parcialmente em falta, o movimento pode se desenvolver, desperta
entusiasmo, exercer uma crescente influência sobre as massas (como ocorreu na história dos
movimentos marxistas na época da Segunda Internacional). No mundo atual, contudo, um
movimento capaz de transformar o mundo num sentido marxista não pode se realizar se esses
fatores estiverem ausentes. Para a ética — e também para a ética marxista — prevalece aquilo
que vale para todos os postulados do movimento comunista, entendido no sentido de Marx.