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Quadros e esculturas- São Bernardo

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Quadros e Esculturas. O ouro e a prata nos nossos mosteiros

Isto não é nada. Vamos a coisas mais graves mas que passam despercebidas por serem tão comuns. Não me refiro às imensas massas das oratórias, ao seu excessivo comprimento e a sua largura desnecessária, nem à riqueza dos seus ornamentos polidos e das originais pinturas, que atraem a atenção dos que vão ali rezar, mas que até tiram a devoção.

A mim fazem-me invocar o antigo ritual judaico. Claro que tudo isto é para a glória de Deus. Não faltava mais! Mas eu, monge, pergunto aos outros monges aquilo que um pagão perguntava aos outros pagãos: Digam-me, pontífices, o que faz o ouro no santuário. Mas eu abordo-o de outra maneira porque não me fixo na letra do verso, mas no seu espírito: ”Digam-me, pobres, se é o que são, o que faz o ouro no santuário?”. Porque uma é a missão dos bispos e a outra dos monges. Eles devem ensinar igualmente os sábios e os ignorantes, e têm que estimular a devoção exterior do povo através da decoração artística, porque não lhes basta os recursos espirituais.

Mas nós os que já haviam saído do povo, os que deixámos por Cristo as riquezas e os tesouros do mundo a fim de ganhar Cristo, consideramos tudo o resto lixo. Tudo o que atrai pela a sua beleza, o que agrada pela sua sonoridade, o que intoxica com o seu perfume, o que lisonjeia pelo seu sabor, o que se revela no seu toque. Afinal, tudo o que satisfaz o prazer corporal.

E podemos querer agora que estas coisas existam na nossa devoção? Que finalidades perseguiríamos assim? Que fiquem pasmados os tolos que deixam-nos as suas ofertas os ingénuos? Talvez seja que vivemos ainda como os pagãos e temos assimilado o seu comportamento rendendo-nos aos seus ídolos. Falando já com toda a sinceridade e sem medo não nascerá tudo isto da nossa ganância, que é idolatria? Porque não procuramos o bem que possamos fazer, mas sim os donativos que vão enriquecer-nos. Se me perguntas, de que maneira? Responder-te-ia: numa maneira originalíssima. Há uma arte hábil que consiste em plantar dinheiro para que se multiplique. É invertida para produzir. Desperdiça-lo equivale a enriquecer-se. Porque a simples contemplação de tanta grandiosidade que se reduz simplesmente a maravilhosas vaidades, move os homens a dar donativos mais do que orar. De este modo, as riquezas geram riquezas. O dinheiro atrai o dinheiro, pois não sei o segredo onde há mais riquezas que se seguram, mais por boa vontade se oferecem as esmolas. Ficam cobertas de ouro as relíquias e deslumbram os olhos, mas abrem os bolsos. São exibidas imagens preciosas de um santo ou de uma santa, e os fiéis acreditam que é mais poderoso quanto mais sobrecarregado está de policromia. Agrupam-se os homens para beijá-lo, convida-los a depositar a sua oferta, ficam pasmados pela arte, mas saem sem admirar a sua santidade. Não pendurar nas paredes simples coroas, mas sim

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grandes rodas cravejadas de joias, cercadas de lâmpadas rutilantes pela sua luz e pelas suas ricas pedras enfiadas. E podemos contemplar também verdadeiras árvores de bronze, que se levantam em forma de imensos lustres trabalhados em delicadas filigranas, pelas imensas velas que brilham e as pedras preciosas.

O que procuram com tudo isto? O arrependimento dos convertidos ou a admiração dos visitantes? Vaidade das vaidades. Vaidade ou insensatez? Arde de luz a igreja, nas suas paredes e agoniza de miséria os pobres. Reveste ouro as suas pedras e deixamos os seus filhos . Com o que pertence aos pobres, se recria os ricos. Encontram onde satisfazer os curiosos e não têm com que alimentar os necessitados. E ainda por cima nem sequer respeitamos as imagens dos santos que abundam até à calçada que os nossos pés pisam. Mais do que uma vez se cospe na boca de um anjo ou se sacode o calçado sobre o rosto de um santo. Se chegamos a não poder prescindir das imagens no chão, porque eles pintam com tanta dedicação? É embelezar o que a seguir se vai estragar. É pintar que se vai pisar. Para que tanta imagem maravilhosa destruída continuamente? De que serve isto aos pobres, aos monges e aos homens espirituais?

A não ser que respondamos áquela pergunta do poeta com as palavras do salmo: Senhor, eu amo a beleza da tua casa, o lugar onde reside a tua glória. Nesse caso o toleraria, pois embora sejam prejudiciais as riquezas para os gananciosos, não são para os homens simples e dedicados.

Mas nos capitais dos claustros onde os irmãos fazem a sua leitura, qual é a lógica de haver tantos monstros ridículos, tanta beleza disforme e tanta deformidade artística? Esses macacos imundos, esses leões ferozes, esses horríveis centauros, essas representações e máscaras com corpos de animal e caras de homens, esses tigres com pintas, esses soldados que lutam, esses caçadores com alto-falantes… Poderás também encontrar muitos corpos humanos pendurados por uma só cabeça, e um único tronco para várias cabeças. Aqui um quadrúpede com a cauda de serpente, ali um peixe com cabeça de quadrúpede ou uma besta com a frente de cavalo e seus quartos traseiros de cabras das montanhas. Ou aquele outro bicho com cornos na cabeça e forma de cavalo na outra metade do seu corpo. Em toda a parte aparece tão grande e prodigiosa variedade dos mais diversos caprichos, que os monges mais lhes agrada ler nos mármores que nos códices, e passar todo o dia admirando tantos detalhes sem meditar na lei de Deus. Ai Meu Deus! Já que nos fazemos insensíveis a tanta loucura, como não nos doí o desperdício?

Um tema tão complexo como este dá-me pé para prolongar muito mais. Mas apressam-me as minhas próprias ocupações bastantes absorventes, e a tua pressa para ires embora querido Ogerio, pois não estás desposto a demorar-te mais, nem queres ir-te sem esta nova obra. Por isso vou satisfazer

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o teu desejo duplo. Deixo-te partir e resumo o que ainda me falta. Além disso, é melhor dizer pouco com paz do que muito com escândalo. E oxalá que esse pouco que tenho escrito não escandalize ninguém. Pois sei muito bem que criticando vícios ofende-se os seus autores. Ainda também poderia suceder, com o querer de Deus, que alguns a quem eu temo enfurecer, talvez o leiam com gosto, se seus vícios são corrigidos.

Especificando. Tudo dependerá dos monges mais rigorosos deixem de murmurar e os mais relaxados cortem com o desnecessário. Assim cada um conservaria o dom que possuí, sem julgar os que não o têm; se já escolher ser bom não inveja os que são melhores e que crê fazer melhor não despreza a bondade do outro, se os que podem viver mais rigorosamente não desprezam os que não podem faze-lo e estes admiram os primeiros, mas sem pretendes imita-los imprudentemente. Aos que já respeitam uma vida mais rigorosa não lhe está permitido mudar para outra menos exigente sem cair em apostasia. O que não significa que tem que chegar à conclusão de que todos deveriam passar por observações menores a outras maiores, para que caiam em ruína.