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Razão e emoção em torno da tecnologia nuclear 1 Philippe Pomier Layrargues Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas Nem todo avanço científico e tecnológico vem acompanhado de expectativas positivas pela sociedade. Muitos são recebidos com inquietação e ansiedade, devido aos conhecidos efeitos colaterais decorrentes da inovação tecnológica que, normalmente, apresentam riscos consideráveis. Essa postura é válida para a questão nuclear, cujo atual debate polariza seus defensores e opositores em relação à ausência ou presença de um risco tecnológico associado à instalação de reatores nucleares, fenômeno verificado não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro. Do lado dos opositores, assumindo a existência de um risco de radioatividade, está a sociedade brasileira em geral ou, pelo menos, um expressivo número de cidadãos apreensivos que se mobilizam em instâncias coletivas de pressão, quando se vêem diante da possibilidade de instalação de reatores nucleares. Prevalece no imaginário coletivo uma rejeição à possibilidade de submissão ao risco decorrente da instalação de usinas nucleares, transporte de material radioativo e depósitos temporários ou definitivos de rejeitos radioativos. Por mais que a sociedade possa se manifestar favorável à energia nuclear, poucos são os que querem assumir o risco de tê-la perto de si. Aceita-se a energia nuclear, contanto que esteja a uma distância segura o suficiente para não apresentar riscos de contaminação radioativa. Essa postura é chamada, no jargão ambientalista, de síndrome NIMBY, do inglês Not in my backyard (não no meu quintal), ou seja, que cada um cuide dos seus próprios problemas com relação ao lixo em geral e ao lixo radioativo em particular. Mobilizações populares contra a tecnologia nuclear revelam a percepção dominante a respeito da existência do risco, e em última instância, manifestam o desejo social de não convivência com esse risco. Por outro lado, assumindo a inexistência de um risco de contaminação radioativa associado à tecnologia nuclear ou, na melhor das hipóteses, um risco calculado, estão os defensores da energia atômica, representados pelos técnicos especialistas em assuntos nucleares. Na tentativa de evidenciar que o risco, se existente, é estatisticamente mínimo e perfeitamente controlável, eles têm uma significativa dificuldade em considerar o imponderável. Diante daqueles que percebem o risco de modo ‘subjetivo e distorcido’, esses técnicos acreditam ser necessário prover a sociedade com informações científicas para uma espécie de alfabetização do risco, que significa a aproximação do risco percebido pelo opositor leigo ao risco objetivo. Assim, se engajam numa verdadeira cruzada nacional de divulgação, visando o esclarecimento e a conscientização da sociedade sobre as vantagens e a segurança da tecnologia nuclear, apesar dos acidentes decorrentes dos reatores nucleares já ocorridos. Embora o acesso à informação seja legítimo, pois auxilia a tomada de decisão coerente e refletida, a transmissão de informações nunca é ideologicamente neutra. O discurso dos defensores que agencia uma alta dose de emoção apenas ao opositor, enquanto que para si se reveste de uma alta dose de cientificidade, não reflete o verdadeiro estado das coisas e camufla os interesses políticos sobre a questão nuclear. Na verdade, a própria defesa incondicional de um ponto de vista, mesmo que oriunda do setor representante da ciência, que tem por princípio a neutralidade científica e a 1 Ciência Hoje, 30(175):65-67.2001.

Razão e emoção em torno da tecnologia nuclear

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Razão e emoção em torno da tecnologia nuclear1

Philippe Pomier LayrarguesInstituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas

Nem todo avanço científico e tecnológico vem acompanhado de expectativas positivas pela sociedade. Muitos são recebidos com inquietação e ansiedade, devido aos conhecidos efeitos colaterais decorrentes da inovação tecnológica que, normalmente, apresentam riscos consideráveis. Essa postura é válida para a questão nuclear, cujo atual debate polariza seus defensores e opositores em relação à ausência ou presença de um risco tecnológico associado à instalação de reatores nucleares, fenômeno verificado não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro.

Do lado dos opositores, assumindo a existência de um risco de radioatividade, está a sociedade brasileira em geral ou, pelo menos, um expressivo número de cidadãos apreensivos que se mobilizam em instâncias coletivas de pressão, quando se vêem diante da possibilidade de instalação de reatores nucleares. Prevalece no imaginário coletivo uma rejeição à possibilidade de submissão ao risco decorrente da instalação de usinas nucleares, transporte de material radioativo e depósitos temporários ou definitivos de rejeitos radioativos.

Por mais que a sociedade possa se manifestar favorável à energia nuclear, poucos são os que querem assumir o risco de tê-la perto de si. Aceita-se a energia nuclear, contanto que esteja a uma distância segura o suficiente para não apresentar riscos de contaminação radioativa. Essa postura é chamada, no jargão ambientalista, de síndrome NIMBY, do inglês Not in my backyard (não no meu quintal), ou seja, que cada um cuide dos seus próprios problemas com relação ao lixo em geral e ao lixo radioativo em particular. Mobilizações populares contra a tecnologia nuclear revelam a percepção dominante a respeito da existência do risco, e em última instância, manifestam o desejo social de não convivência com esse risco.

Por outro lado, assumindo a inexistência de um risco de contaminação radioativa associado à tecnologia nuclear ou, na melhor das hipóteses, um risco calculado, estão os defensores da energia atômica, representados pelos técnicos especialistas em assuntos nucleares. Na tentativa de evidenciar que o risco, se existente, é estatisticamente mínimo e perfeitamente controlável, eles têm uma significativa dificuldade em considerar o imponderável. Diante daqueles que percebem o risco de modo ‘subjetivo e distorcido’, esses técnicos acreditam ser necessário prover a sociedade com informações científicas para uma espécie de alfabetização do risco, que significa a aproximação do risco percebido pelo opositor leigo ao risco objetivo. Assim, se engajam numa verdadeira cruzada nacional de divulgação, visando o esclarecimento e a conscientização da sociedade sobre as vantagens e a segurança da tecnologia nuclear, apesar dos acidentes decorrentes dos reatores nucleares já ocorridos.

Embora o acesso à informação seja legítimo, pois auxilia a tomada de decisão coerente e refletida, a transmissão de informações nunca é ideologicamente neutra. O discurso dos defensores que agencia uma alta dose de emoção apenas ao opositor, enquanto que para si se reveste de uma alta dose de cientificidade, não reflete o verdadeiro estado das coisas e camufla os interesses políticos sobre a questão nuclear.

Na verdade, a própria defesa incondicional de um ponto de vista, mesmo que oriunda do setor representante da ciência, que tem por princípio a neutralidade científica e a 1 Ciência Hoje, 30(175):65-67.2001.

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absoluta isenção e imparcialidade a respeito dos debates sociais, comporta um determinado interesse e um juízo de valor. Ele só poderia ser racional e não emotivo se fosse absolutamente neutro para considerar na mesma medida tanto os argumentos favoráveis como os desfavoráveis da tecnologia nuclear. Além disso, o discurso dos que defendem a adoção da energia nuclear carregam uma baixa dose de conhecimento científico a respeito das ciências humanas e sociais que também se encarregam da análise do risco, como a teoria cultural do risco e a sociologia do risco.

O paradoxo entre a vontade dos técnicos de dominar o risco e o aumento constante das inquietações públicas já assumiu na história recente a dimensão de um problema de sociedade. E negar, ou pelo menos temer, o risco significa querer dar um basta ao rumo tecnológico de produzir cada vez mais efeitos colaterais. Isso motivou renomados sociólogos a batizar a atual sociedade industrial de sociedade do risco. O risco nuclear é considerado pela sociologia como um risco tecnológico maior, já que um acidente nuclear é um evento único, com potencial de aniquilar a vida no planeta inteiro. Se não houvesse risco associado à tecnologia nuclear, não haveria motivos para a Agência Internacional de Energia Atômica não recomendar a instalação de reatores nucleares na rota de aeroportos, em locais populosos ou às margens de rodovias. O risco é real e inerente aos aparatos técnicos, do mais simples ao mais complexo. Ele pode ser previsto e calculado, mas dificilmente controlado. Em primeiro lugar, porque o prazo para cessar a radioatividade é desconhecido pelo ser humano, já que o rejeito atômico pode permanecer ativo na ordem de dez mil anos; em segundo, porque nenhum sistema tecnológico pode escapar de imprevistos e falhas durante a intervenção humana; e finalmente, por causa da própria lógica dos sistemas complexos, sempre sujeitos a eventos desconhecidos.

Nada pode garantir que rejeitos radioativos, como urânio e plutônio, não sejam utilizados para fins bélicos depois de servirem como combustível nas usinas nucleares. Apenas nos Estados Unidos, existem 18 toneladas de plutônio que podem ser alvo de terrorismo nos próximos milênios. Se a meia vida do plutônio é de cerca de 10 mil anos, que legado estaremos deixando para as futuras gerações? Como elas nos julgarão pela decisão de tornar a energia nuclear a principal fonte energética do século 21?

Os defensores da energia nuclear se utilizam de um argumento pífio para traduzir o que seria, segundo o seu ponto de vista, um risco nuclear aceitável. Equiparando a produção de energia nuclear a outros tipos de produção de energia, destacam o impacto ambiental equivalente, porque promove semelhantes processos de intervenção no ambiente físico, inclusive com um nível de radioatividade emitido na atmosfera semelhante ao encontrado no estado natural. Acrescentam ainda a vantagem de que a energia nuclear não produz os gases que provocam o efeito estufa, gerados com a energia produzida a partir de combustíveis fósseis. Tudo isso que pode ser válido em condições normais de operação, mas não em condições de acidente, onde o discurso apresenta uma silenciosa lacuna.

Segundo a teoria cultural do risco, este é culturalmente construído. Diante de um lago congelado, por exemplo, um especialista irá analisar as condições atmosféricas, hidrológicas e outros parâmetros que se façam necessários para estabelecer o grau de risco estatisticamente calculado que o lago congelado apresenta para que sua superfície seja rompida. Mas as reações humanas serão diferentes mesmo com o estabelecimento desse padrão racional: crianças se lançarão à aventura da patinação, idosos se manterão afastados da possibilidade de tombos na superfície escorregadia. São distintas culturas que frustram a tentativa de tornar o estudo do risco uma ciência objetiva com instrumentos de mensuração quantitativos.

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Conhecer o grau de risco objetivo não é a única variável da equação que interfere na decisão de se lançar ou não ao risco. Outra variável é o cálculo subjetivo dos benefícios e prejuízos decorrentes da aceitação do risco. Ou seja, o comportamento diante do risco está condicionado a uma avaliação individual (psicológica) e coletiva (cultural) que varia de acordo com o filtro cultural que reforça a recompensa com benefícios ou o dano com prejuízos.

Os papéis sociais da disputa em torno da tecnologia nuclear estão muito bem definidos: cabe aos opositores alertar sobre os riscos do nuclear, e cabe aos defensores, tanto a doutrinação dos aspectos favoráveis à energia nuclear, como a existência de um risco calculado e controlável. Ocorre um embate cultural entre as forças propensas ao risco (Homo aleatorius) personificando a aventura, e as forças avessas ao risco (Homo prudens), personificando a responsabilidade.

Mas quando se trata de um risco tecnológico maior como o da radiação nuclear, essa avaliação dos benefícios e prejuízos assume diferentes contornos perdendo completamente seu sentido, pois aqui não há como comparar resultados com o que nunca se experimentou na vida humana. Os defensores entendem valer a pena assumir o risco da tecnologia nuclear, pois para eles a recompensa dos benefícios supera os prejuízos; e ao contrário, os grupos sociais que não querem assumir o risco dessa tecnologia entendem que os prejuízos podem superar em muito suas vantagens. Diante disso, torna-se evidente a necessidade de disseminação de informação científica para aproximar o risco percebido e subjetivo ao risco calculado e objetivo, como se a razão fosse determinante e a emoção dos opositores algo a se converter cientificamente.

Um fenômeno adicional que determina a impossibilidade da racionalização do risco é a compensação do risco. O uso de equipamentos de segurança e sistemas de proteção modificam o comportamento do usuário, tornando-o mais propenso a assumir atitudes de risco. Esse fenômeno também é válido para a tecnologia nuclear, na medida em que planos de prevenção, vigilância e combate ao acidente nuclear são implementados, no intuito de supervisionar o possível e o impossível. Mas esses planos funcionam apenas como uma garantia psicológica de que tudo está sob controle, que será possível assumir o risco em busca de seus benefícios sem que ocorram problemas. A incerteza do risco é compensada pela certeza do planejamento. Mas que tipo e que grau de risco a sociedade brasileira deseja?

Elevar o grau de cientificidade do debate a título de comprovação da ausência de risco significa nada mais do que a constatação da disputa estabelecida entre defensores e os opositores, onde os primeiros entendem-se no direito legítimo de deter o poder decisório, por supostamente agir para o bem da coletividade, de modo racional e científico, neutro portanto. Entende a manifestação dos opositores como uma posição incapaz de assumir decisões, não apenas por não possuir o instrumental próprio do especialista, mas também por não se coadunar com um suposto interesse nacional. A manifestação contrária ao nuclear estaria ocorrendo de acordo com interesses individuais. Ou seja, a percepção do defensor é aquela que entende ser prioritário, inquestionável e não negociável a implantação de uma matriz energética nuclear a qualquer custo, mesmo que existam pessoas que não compartilhem desse ideal.

Essa perspectiva resulta então na inibição da expressão genuinamente democrática. Os defensores da energia nuclear se legitimam no poder por intermédio da desqualificação dos seus opositores. Essa desqualificação diz respeito não apenas ao opositor não ser especialista (engenheiros nucleares ou técnicos do risco), como também não proveniente de quadros científicos e, portanto, imbuídos do espírito científico que prima pela

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neutralidade, mas sim proveniente de quadros políticos, que são por natureza, carregados de emotividade, com pouca neutralidade e isenção. A função ideológica presente nesse discursivo reside na tentativa de anular a possibilidade de haver qualquer processo decisório democrático a respeito da questão.

No final das contas, outro risco a que a sociedade brasileira está se expondo é o da falência da democracia. É no intuito de diluir a polarização entre os opositores e defensores das inovações tecnológicas, evitando posições extremadas e tendenciosas, para impedir o embate entre a ciência e a política, que o governo francês criou em 1989 o Colegiado de Prevenção de Riscos Tecnológicos para assessorar o processo decisório sobre as atividades industriais, notadamente as nucleares, químicas e petrolíferas. Esse colegiado se distingue dos demais conselhos assessores justamente por não ser formado apenas por especialistas, mas por cidadãos notáveis em várias áreas de saber e atividades profissionais, sem que sejam necessariamente profundas conhecedoras dos riscos tecnológicos.

De fato, é preciso saber analisar o risco tecnológico não apenas em seus fatores técnicos, mas como um problema de sociedade: um modelo de cultura simbólica, uma manifestação democrática, uma relação de poder. É preciso saber inserir a questão do risco tecnológico na racionalidade determinante da lógica produtiva da tradição econômica, como uma variável para além dos custos da economia de escala. Afinal de contas, o culto ao Sol era o elemento de maior significado simbólico na cultura asteca e vidas humanas eram sacrificadas como oferendas para evitar a morte do Sol, o maior risco existente. Sabemos hoje que essa atitude é completamente irracional, o sacrifício de vidas humanas em nada poderia implicar que o Sol não se apagasse. Mas na nossa cultura, fazemos de tudo para evitar que a máquina tecnológica não se apague, a exemplo do que os astecas faziam. Será que existe alguma diferença entre as duas culturas?