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Literatas Director Editorial: Eduardo Quive * Maputo * 16 de Agosto de 2011 * Ano 01 * Nº 06 * E-Mail: [email protected] Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona Literatas agora é no SAPO literatas.blogs. sapo.mz Não conhecemos o preço da palavra. Envie esta revista a um amigo Sai às Terças-feiras RUBERVAM DU NASCIMENTO EM MAPUTO Retratos duma viagem interrompida pg. 10 As margens da nação na poesia de Sangare Okapi e Hlder Faife pg. 2

Revista literatas edição 6

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LiteratasDirector Editorial: Eduardo Quive * Maputo * 16 de Agosto de 2011 * Ano 01 * Nº 06 * E-Mail: [email protected] Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona

Literatas agora é no SAPO

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Espólio é lançado nesta sexta-feira em Maputo

As margens da nação na poesia de Sangare Okapi e Hlder Faife

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Em primEiraTerça-feira, 16 de Agosto de 2011 https://literatas.blogs.sapo.mz 2

razão de evasão e de imaginação erótica, por outro lado continua a ser um arquivo líquido de memórias de antigos conflitos, tra-zendo das profundidades as significações violentas que também marcam o imaginário a ele ligado. Ainda na esteira da tradição, de fato, a viagem pela geografia líquida, recriada também através de recursos gráficos, se faz tentativa de interrogar o passado, incorporando-se à memória histórica do colonialismo na inter-rogação identitária pós-colonial que, de fato, coloca esta herança numa dimensão irônica e contraditória:

(…) Nu e vazio regresso pelo túnel da memória (alguma rede ou algum anzol do chão cavado) ! Que recorda-ções para o futuro!... (...) (OKAPI, 2007, p.15); Uma estória antiga no tempo se dilui. Inimiga com as chalupas se afunda e somos nós a dor fecunda. Nenhuma alegria trazida das redes nos consola. Oh! No mar nossas vozes seu templo constroem. (idem, p.29) Matéria irrefutável na íris, resto de rasto a remo conquistado. Alguma estória arroto, razão aduzida na rota dos escravos, o mesmo cravo ou açafrão para todo o fado. (...) (idem, p.37) . A ilha de Moçambique nunca é nomeada, mas sim evocada através do jogo intertextual e de um conjunto de referências que remetem ao seu espaço. Pelos títulos dos poemas, se entrelaçam o roteiro

corpo, de Sangare Okapi, publicado em 2007, e Poemas em sacos vazios que ficam de pé, de Helder Faife, editado em 2010. Tratam-se de duas experiências poéticas que, se por um lado se inserem nas tendências da poesia moçambicana apontadas por Secco (2006, pp. 229-49), por outro lado partilham desse traço comum a outras literaturas pós-coloniais, na medida em que transitam por distintos espaços e lugares da nação, buscando reinventar esses locais, convocando algumas das suas margens. Inserindo-se naquela que se poderia definir como uma vertente índica da poesia moçambicana (LEITE, 2003), o livro de Sangare Okapi, como já o subtítulo revela, revisita parte do corpus poético moçambicano e do próprio corpo da nação, percorrendo, de outras formas, o imaginário ligado ao Índico e à ilha de Moçambique, o que remete à notória “marginalidade” do norte em relação ao sul na configuração política, econômica e identitária do Moçambique pós-colonial. O imaginário insular é invocado logo na abertura do livro através de duas epígrafes, que, por via da autoria, remetem simultaneamente a uma dimensão diaspórica, já que, curiosamente, são ambas retiradas de obras de autores de origem africana (Maria Orrico e Eduardo Bettencourt Pinto) que residem fora dos seus países de origem e são ligados à literatura dos Açores. Por tal razão, este imaginário híbrido é configurado como um lugar comum, onde se instauram múltiplas e insuspeitadas conexões (GLISSANT, 1996, 28; ZACCARIA, 2004, 14). O intenso diálogo intertextual com a tradição poética moçambi-cana marca grande parte da construção do livro de Sangare, em que são repropostos muitos dos “tópicos” do imaginário ligado ao Índico, sedimentado pela poesia anterior. É o caso, por exemplo, da dimensão erótica associada à deambulação pelo espaço litoral, insular e oceânico, tão presente na poesia de Virgílio de Lemos, Luís Carlos Patraquim e Eduardo White. Se por um lado o mar é

JESSicA FALcONi*Pensar nos lugares da nação tem sido, e continua a ser, uma das práticas centrais nas literaturas surgidas em contextos de domi-nação colonial, na medida em que o espaço físico da nação, com todas as suas fronteiras, internas e externas, se faz “significante” de um conjunto de questões que envolvem processos e fenômenos de inclusão e exclusão, conflitos identitários que remetem para múltiplas memórias, histórias e diásporas. É através da evocação dos lugares que, de fato, também se recuperam heranças culturais e histórias outras, apagadas ou marginalizadas, pelas narrativas coloniais, e/ou pelas novas narrativas nacionais, questionando-se conceitos de pertença, autenticidade, cidadania. A metáfora do “mapa” é, de fato, frequente nas literaturas pós-coloniais, enquanto estratégia que, a partir das margens, questiona e reformula as lógi-cas de inclusão e exclusão, reconfigurando as relações culturais e identitárias (HUGGAN, 1995, p. 407). Nessa perspectiva, os lugares da nação proporcionam também um terreno para se equacionarem, de modo crítico, as continuidades e descontinuidades entre pas-sado e presente, no intuito de continuar a imaginar e criar múltiplos futuros possíveis.Relativamente a países como Moçambique ou Angola – nações de muitas nações, parafraseando Mia Couto – onde a construção da nação independente foi imaginada e desenvolvida dentro das fronteiras herdadas pela dominação colonial, e onde os conflitos civis recriaram e impuseram fraturas e descontinuidades a partir do próprio espaço físico da nação, a literatura tem percor-rido e habitado estas geografias fraturadas, ainda não resolvidas, desconstruindo-as ou recompondo-as, segundo instâncias e estra-tégias diversas, no intuito comum de refletir sobre as dinâmicas que marcam a equação entre desigualdade e diferença. Estas reflexões vêm a propósito da leitura de alguns livros de poemas de jovens autores moçambicanos publicados recente-mente, entre os quais Mesmos barcos ou poemas de revisitação do

ACOMPANHO A trajetória poética de Rubervam Du Nascimento desde que ele mesmo se autodenominava poeta de um livro só: A Profissão dos Peixes, livro que foi transformado por seu autor num recital performático, denominado Corpo-a-corpo, levado com muito sucesso por todo o Brasil.

ERA SUA intenção reeditá-lo a cada cinco anos, sempre em edições revistas e diminuídas, até a “impressão da Pedra/Peixe, em enormes cartazes”, moto-contínuo às avessas. Assim foi com a 2ª edição, em 1993 e... bem, o poeta resolveu mergulhar em outras águas, aumentar o estoque do oxigênio e de lá, da “Distanteresina”, enviar seus poemas em garrafas que foram sendo recolhidas em portos sem prévia destinação. EM 1997, uma dessas garrafas é recolhida por Leila Mic-colis, da Editora Blocos, no porto do Rio de Janeiro, e leva o 1º lugar do 1º Concurso Blocos de Poesia: Marco-Lusbel desce ao inferno, um livro, no mínimo, perturbador. Sem descuidar da linguagem, particularíssima, o poeta, na pele de Lusbel, vai exercendo seu papel de sedutor de almas, enquanto, não sem uma fina ironia, vai apontando as feridas sociais. Bons anos depois, uma dessas garrafas é recolhida no porto do Recife, e lá recebe mais um prêmio, o Prêmio Literário Cidade do Recife, em 2004, com Os Cavalos de Dom Ruffato, livro premiado e editado pela Fundação Cultural da Prefeitura daquela capital. O POETA revira o seu baú de memórias recolhidas em suas andanças, mas também recolhas da memória ances-tral, verdadeiro cavalo de tróia, carregado de surpresas, onde uma avó inca remete a mundos míticos, repletos de simbologias, mas também (novamente) de indignações sociais.MUITAS LUAS depois, o nosso poeta mergulha novamente em seus baús de inventos e recolhas, e envia mais uma de suas garrafas que aporta em Sampa (“como costurar

velas dos barcos de aço / elas rasgaram sem pena asas do oceano”) e abocanha mais um prêmio: VI Prêmio Literário Asabeça, 2007, cujo resultado é este Espólio, volume para o qual não poderia haver título mais adequado. Trata-se de um

comovente espólio de “inutilidades” que só um poeta em sua plenitude poderia transformar em verdadeira poesia. O UNIVERSO da paisagem e dos personagens poderia ser classificado como o de uma verdadeira saga nordestina, mas que, pela sua extraordinária carga de humanidade, pode muito bem ser “colada” numa paisagem nórdica, americana ou de qualquer recanto do planeta, onde “toda escrita acabou rouca / de tanto exigir da língua / escrita ficou vazia / diante do sumiço da ira”. SEM DEIxAR de exercer sua capacidade de indignação, Rubervam mergulhou fundo mesmo foi no ofício da palavra, da qual se serve para produzir esta poesia que veio para ficar, não à superfície, como garrafa enviada por um náufrago qualquer, mas por alguém que sabe que a garrafa e a palavra nela contida chegarão ao porto almejado. Dalila Teles Veras RUBERVAM DU Nascimento nasceu na Ilha de Upaon-Açu, Maranhão, vive e trabalha em Teresina. Formado em Ciên-cias Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Piauí. Compõe a Editoria de Literatura da Revista de Cultura Pulsar. Publicou colunas e artigos literários em revistas e jornais. É verbete da Enciclopédia de Literatura Brasile-ira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa. Presidiu a União Brasileira de Escritores do Piauí – UBE/PI. Participou de coletâneas de poesias e contos nas décadas de 70 e 80. Livros individuais editados: A Profissão dos Peixes, 2ª edição, revista e diminuída – Editora Códice/DF (1993);

Marco-Lusbel desce ao inferno, 1º lugar no 1º Concurso Nacional de Poesia da Editora Blocos/RJ (1997); Os Cava-los de Dom Ruffato, Prêmio Literário “Cidade do Recife”, categoria: poesia 2004 - Fundação de Cultura Cidade do Recife/PE (2005)

O evento terá lugar nesta sexta-feira, dia 19 de Agosto, no centro cultural Brasil Moçambique, pelas 18:00 Horas

O artigo propõe uma leitura de Mesmos barcos, de Sangare Okapi (2007), e Poemas em sacos vazios que ficam de pé, de Helder Faife (2010), como exemplos de evocação de algumas margens da nação moçambicana no pós-independência.

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Exero 01, 5555 BLA BLA BLA 3Terça-feira, 16 de Agosto de 2011 https://literatas.blogs.sapo.mz 3

(poético e privado) da Ilha de Próspero, de Knopfli, e a errância insular de Virgílio de Lemos: “T. Amizade” (OKAPI, 2007, p.16); “Fortaleza” (idem, p.17); “Língua: ilha ou corpo?” (idem, p.20); “S. Paulo” (idem, p.21). Alguns destes títulos, por outro lado, remetem às fronteiras internas da cidade da ilha que, como todas as cidades coloniais, mostra, na configuração urbanística e arquitetônica, as formas de hierarquização criadas pela dominação colonial.Ao mesmo tempo, dentro dos textos, enunciam-se marcas rela-cionadas com a multiplicidade do universo étnico-cultural do norte do país, de que a ilha, na poesia, sempre foi metonímia, evocando-se, por exemplo, a arte e a cultura dos macondes de Moçambique (“Varias acções de mapiko”, 2007, p. 36). Na seção final do livro, intitulada “Mesmos Barcos”, que recria os fragmentos de prosa poética de Patraquim e Eduardo White, e no poema que fecha o livro, “O Barco Encalhado”, dedicado ao poeta Campos de Oliveira, a ilha e o norte do país, as suas paisagens culturais e identitárias, são recriados na sua diferença, permanecendo, simultaneamente, como margens da nação, já que se reitera a sua “distância” do “centro”, Maputo, que emerge também como lugar de enunciação da poesia, a partir do qual se enuncia a “nostalgia” em relação a esta margem, novamente ressignficada como lugar de alguma “origem”: Aterra a saudade sobre o meu terraço. Aço azul do céu. Seta certa perto do peito. Emakhuwa é como onda no asfalto. Lembra-nos a casa, a cana, o caniço ou bambu. Nosso barco encalhado com terra. transportando marítimo o silêncio da Ponta da Ilha (tufo mudo na cicatriz da tarde). Onde em Maputo porque circunsisos garotos somos nossas garotas o rosto de m´siro maquilham? (OKAPI, 2007, p.49) Se, na poesia que tem consolidado o mito da ilha no imaginário moçambicano, a sua evocação estava fortemente ligada à recu-peração e reivindicação de matrizes “orientais”, na construção da identidade cultural moçambicana, a revisitação pós-colonial de Sangare Okapi partilha desta instância, resgatando, por outro lado, sobretudo, a evocação da ilha e do norte enquanto sig-nificantes de uma diferença ainda percebida como “margem” no espaço identitário e político da nação, uma fronteira interna que a poesia interroga e tenta incorporar ao imaginário do centro/sul moçambicano. Outras margens e fronteiras internas marcam também o espaço referencial do livro de poemas de Helder Faife, que nos devolvem um olhar para o espaço urbano: a cidade pós-colonial, por um lado, libertada da autoridade colonial, por outro lado, profunda-mente marcada por fenômenos e lógicas de desumanização trazi-das pela economia neoliberal. Neste aspecto, a cidade africana é, de fato, um símbolo visual da condição pós-colonial, enquanto lugar de encontros e conflitos entre mundos diferentes e síntese poderosa e contraditória de modernidade e tradição, onde novas linhas de divisão e “segregação” se entrecruzam e se sobrepõem às antigas configurações coloniais, cuja memória permanece em forma de vestígios disseminados na estrutura do espaço público, onde, ao mesmo tempo, emergem novas formas de resistência e de reconfiguração identitária (TRIULZI, 1996, 81). Partilhando de uma vertente recente da poesia moçambicana que, como observa Carmen Tindó Secco, problematiza a realidade do país a partir da denúncia da fome e da corrupção (SECCO, 2006, p. 244), a poesia de Helder Faife constrói o seu olhar para o espaço da cidade pós-colonial a partir do cotidiano da humanidade marginal e submersa, ligada ao chamado setor informal, que se configura como resposta localizada frente às dinâmicas da pós-colonialidade global. Relativamente às populações das zonas urbanas de Moçambique, da cidade de Maputo em particular, Teresa Cruz e Silva esclarece os vários fatores que determinaram o aumento progressivo da pobreza urbana e do setor informal, quer em termos quantita-tivos, quer em termos de espectro de atividades envolvidas. O crescimento deste setor, resultante de um conjunto de fenôme-nos locais e globais, constitui também uma forma de resposta aos impactos das reformas impostas pela economia neoliberal e à ausência do Estado na gestão das consequências sociais destes impactos, acabando “por espelhar a crise geral que afecta o país” (CRUZ E SILVA, 2006, p. 86) e, noutra perspectiva, por marcar de modo significativo a paisagem urbana. O belo texto de abertura do livro de Helder Faife anuncia a viagem por este universo subalterno que os poemas irão cumprir, suger-indo, ao mesmo tempo, a ideia de um movimento quase que subterrâneo das margens para o centro: “Tímido curso de águas domésticas suburba o lustro urbano destas páginas” (FAIFE, 2010, p.5). A referência ao célebre verso de José Craveirinha anuncia também o diálogo com o seu legado ético e poético. Definida como “gente anti-municipal” (idem, ibidem), a humanidade pro-tagonizada nos poemas remete às figuras dos subúrbios, à “gente a trouxe-mouxe” (CRAVEIRINHA, 1997, p.11) de que José Craveir-inha sempre se fez porta-voz nos poemas de denúncia do colo-nialismo e, posteriormente, em Babalaze de hienas, denunciando a violência e a desumanização trazidas pela guerra civil. Se este legado de Craveirinha é visível em todo o livro, é também pelo cotejo do presente com o passado, em alguns de seus poema, que se torna patente a condição pós-colonial da nação e da cidade,

na medida em que antigas e novas subalternidades transitam e se reconfiguram entre o ontem e o hoje. O movimento das margens para o centro enunciado na abertura do livro marca a prática cotidiana de uma consistente maioria dos atores envolvidos no comércio informal, configurando-se como um trajeto de sobrevivência, portador de uma consciência do estigma social e da condição de não-pertença e exclusão. Lidos em contra-ponto com o passado, estes trajetos do presente, que cruzam os limites internos do atual espaço da cidade pós-colonial, por um lado ativam a memória de antigos percursos e antigas fronteiras e, por outro lado, convocam as travessias das migrações contemporâneas, que vão alterando também a paisagem das antigas metrópoles: (…) chegamos viemos quentes das gélidas catacumbas do destino infestar o sexo da calçada urbana com nossas trouxas anti-municipais de noite somos caçadores de lua de dia vendedores de rua (FAIFE, 2010, p. 9) As trouxas e os sacos, que criam corcundas nos corpos, tornam-se marcas desta sobrevivência e desta identidade “anti-municipal”, enquanto sinal de insubordinação perante às regras que regulam o universo de atividades, ao qual vendedoras e vendedores de rua não têm acesso. Nos poemas recria-se, de fato, o embate entre dois mundos aparentemente em contraposição: o universo do setor informal e as suas dinâmicas de “ilegalidade” versus o circuito da economia oficial, aliado aos dispositivos da legalidade, como a repressão exercida pelas autoridades policiais. Por outro lado, em sintonia com a já mencionada vertente de crítica da degradação em que se encontra o país, esta contraposição é desconstruída e subvertida pela denúncia, quer da corrupção, quer da violência que os dispositivos da economia oficial exercem sobre os setores mais vulneráveis da sociedade. (…) num ímpeto de precaução recolho as coisas em comércio gazela furtiva sobrevivo na selva urbanaà fome predadora do polícia municipal (FAIFE, 2010, p.18). No poema “Cá e lá”, a contraposição entre os dois mundos é con-struída para subverter a lógica de atribução de valor negativo ao setor informal: cá sentada num banco a mamana monta a banca prospera o negócio minúsculo e lucra sem crises lá a banca lacra os bancos já sem músculos e decreta a crise (FAIFE, 2010, p.17) Conjugando as instâncias da poesia de denúncia social a um certo paradigma da poesia do cotidiano, o olhar que o poeta projeta para a cidade pós-colonial utiliza o poder transfigurador da poesia, para também subverter percepções e representações comuns. As personagens e as dinâmicas relativas ao mundo do comércio informal são, de fato, representandas, em vários poemas, através de estratégias de imitação e apropriação dos códigos da economia e do trabalho “formais”, da lei e da administração, produzindo um efeito de subversão, que procura reatribuir, a estes sujeitos subalternos, o poder de resistência e de negociação da sua identidade social dentro do espaço da cidade e da nação. É o caso, por exemplo, de poemas como “Entro para relento”, em que o espaço ocupado pelo vendedor torna-se “alcatifado de asfalto/ mobilado de esquinas/ com o perfume da poeira/ o candeeiro do sol/ o vento é ar condi-cionado” (FAIFE, 2010, p. 11); “Banco” que alude à grande presença das mulheres na gestão de atividades do setor informal (CRUZ e SILVA, 2002, p. 82) e em que os códigos da economia formal são apropriados pelo corpo do agente feminino do comércio informal,

ressignificando-se, simultaneamente, também, o código do vestuário feminino geralmente percebido como tradicional: 1 no norte da capulana um nó providencial é cofre seguro o pano mãe com que se enroupa agasalha a receita do dia2. adentro o soutien um depósito profundo prudente conta bancária 3. o corpo é um banco muito próximo (…) (FAIFE, 2010, p. 14). No poema “Nas repartições”, enunciado por um sujeito coletivo, os códigos oficiais são apropriados e subvertidos para uma afirmação declarada de insubordinação, na qual o mundo do comércio informal é provocatoriamente ressignificado como espaço de transgressão e liberdade: “cumprimos o expediente/ nas repartições do dumbanengue/ sem a forca das gravatas/ e não juramos juros/ indispostos a impostos/ transaccionamos acções da vida ao sol” (FAIFE, 2010, p. 38). Através de várias estratégias de subversão do sentido comum, a poesia de Helder Faife imagina o modo como esta vária humani-dade subalterna – formada por mulheres, homens e crianças – habita e marca, com os seus corpos, os seus pensamentos e a sua insubordinação, o espaço físico da cidade, onde ruas e esquinas são recriadas como lugares de sobrevivência e con-testação da nova ordem estabelecida, bem como de nego-ciação do direito à presença, no espaço sócio-econômico do “coração” da nação. A instância de denúncia da desumanização faz com que a poesia resista à retórica da idealização da pobreza, salientando, pelo contrário, que as dinâmicas da sobrevivência, as leis das economias, formais e informais, bem como a precariedade das condições materiais, atingem e reconfiguram constantemente as relações sociais e as representações identitárias, recriando um mundo onde “a vida/ esta que frequentamos/ é um grande mercado informal” (FAIFE, 2010, p. 44) e as “pessoas são atm’s1 móveis urgentes” (FAIFE, 2010, p. 79). Há, por outro lado, uma vontade de resgatar o direito da “gente anti-municipal” à imag-inação e à beleza, que o poder transfigurador da poesia, de fato, reafirma. Em poemas como “Pagamento”, a dimensão lírica devolve toda a espessura humana da luta pela sobrevivência: a mão em flor desabrocha da bolsa para o mundo cinco dedos em pétalas notas verdes a sorrir dentadura em clorofila (…) nas falanges esvoaçam pássaros e borboletas alegres porque depois da florvem fruto (FAIFE, 2010, p. 25) Do espaço líquido e insular do Índico ao mundo do comércio informal da cidade, a poesia percorre e repensa o mapa da nação, devolvendo-nos fragmentos das suas margens, inter-rogando as continuidades e descontinuidades entre passado e presente, entre centros e margens, projetando inquietações e contradições que marcam a construção do futuro.

REFERÊNCIAS:

CRAVEIRINHA, José. Babalaze das hienas. Maputo: AEMO, 1997. CRUZ e SILVA, Teresa. “Determinantes globais e locais na emergência de solidariedades sociais: O caso do sector infor-mal nas áreas periurbanas da cidade de Maputo”. In: Revista Crítica de Ciências Sociais. N. 63. Coimbra: CES, Outubro de 2002: pp. 75-89. FAIFE, Helder. Poemas em sacos vazios que ficam de pé. Maputo: Edição Gráfica A2 Design, Lda.; TDM, 2010. (Concurso Literário TDM, Prêmio Poesia, 2010). GLISSANT, Edouard. Poetica del diverso (trad. it.de Poetique de la relation por Francesa Neri). Roma: Meltemi, 1996. HUGGAN, Graham. “Decolonizing the Map”. In: ASHCROFT et alii (ed.) The post-colonial Studies Reader. London: Routledge, 1995. LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Colibri, 2003. OKAPI, Sangare. Mesmos barcos ou poemas de revisitação do corpo. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 2007. SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. “Entre sonhos e memórias: trilhas

da poesia moçambicana”. In: Poesia sempre. Ano 13, número 23, 2006,

pp. 229-249.

TRIULZI, Alessandro. “African cities, historical memory and street

buzz”. In: CHAMBERS, I. and CURTI, L., (ed.). The post-colonial question:

common skies, divided horizons. London: Routledge, 1996, pp.78–91.

ZACCARIA, Paola. La lingua che ospita. Roma: Meltemi, 2004

Helder Faife

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FICHA TÉCNICAPropriedade do Movimento Literário Kuphaluxa

Sede: Centro Cultural Brasil-Moçambique* AV. 25 de Setembro nº 1728, Maputo, Caixa Postal nº 1167 * Celulares: (+258) 82 27 17 645 e (+258) 84 57 78 117 * Fax: (+258) 21 02 05 84 * E-mail: [email protected]

Director Editorial: Eduardo Quive ([email protected])Coordenador: Amosse Mucavele ([email protected]) Editor - Canto da Poesia: Rafael Inguane ([email protected])Redacção: David Bamo, Nelson Lineu, Mauro Brito, Izidine Jaime, Japone Arijuane.Colaboradores: Maputo: Osório Chembene Júnior * Xai-Xai: Deusa D´África * Tete: Ruth Boane * Nampula: Jessemusse Cacinda * Lichinga: Mukurruza*Brasil: Itapema - Pedro Du Bois * Santa Catarina: Samuel da Costa * Nilton Pavin * Marcelo Soriano * Portugal: Victor Eustaquio e Joana Ruas.Design e páginação: Eduardo Quive

AS MÃOS DOS PRETOS

4 BLA BLA BLA Exero 01, 5555Terça-feira, 16 de Agosto de 2011 LiTERATURA MOÇAMBicANA 4

LUíS BERNARDO HONwANAJá nem sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo. Lembrei-me disso quando o Senhor Padre, depois de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores do que nós, voltou a falar nisso de as mãos deles serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles, às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agoraé ver-me a não largar seja quem for enquanto não me disser porque é que eles têm as palmas das mãos assim tão claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazer e que não deva ficar senão limpa.O Senhor Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as coca-colas das cantinas já tenham sido todas vendidas, disse-me que tudo o que me tinham contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de eu lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:“Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu, fizeram uma reunião e decidiram fazer pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes usados e para cozer o barro das criaturas levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum, ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber porque é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!”.Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir, todos satisfeitos.Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima pêta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Vírginia e de mais não sei aonde. Já se vê que a Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos desbotarem à força de tão lavadas.Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que ainda que calosas e gretadas, as mãos dum preto são sempre mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão de as mãos de um preto serem mais claras do que o resto do corpo. No dia em que falámos disso, eu e ela, estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de se rir. O que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quis saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir sobre a coisa, e mesmo assim a chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela me disse foi mais ou menos isto:“Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exactamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem, é apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem, é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos”.Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.Quando fugi para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido

Luís Bernardo HonwanaLuís BerNArdo Honwana

esCrITor moçAmBICANo, de nome

completo Luís Augusto Bernardo

Manuel, nascido em 1941, em Louren-

ço Marques (actual Maputo). Viveu em

Moamba, província de Maputo, até aos

17 anos. Frequentou o liceu daquela

cidade, onde exerceu também a profis-

são de jornalista, tendo frequentado

posteriormente um estabelecimento

de Ensino Superior no Porto. Estudou

desenho e pintura durante algum

tempo e participou em exposições

de arte. Publicou, em 1964, um livro

de contos intitulado Nós Matamos o

Cão Tinhoso , uma das obras mais mar-

cantes da literatura moçambicana.

Page 5: Revista literatas   edição 6

MARcELO SORiANO - [email protected]

Nota preliminar: Antes de prosseguir com este artigo, lembro ao leitor que me dirijo à CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), portanto, podemos encontrar gerúndios, futuros do pretérito, expressões etnocêntricas, familiares a certos leitores, porém, inusitadas a outros. Oxalá, que esta peculiaridade não seja pretexto para correções, mas para integrações e enriquecimentos léxicos e culturais entre nós. Marcelo Soriano. Santa Maria - RS - BR. 14/07/2011.

1. mICroCoNTos à BrAsILeIrA

...................................

O AlíviO de OlíviA... Duas vogais que mudavam de lugar...

...................................

Quebrou a cara com um soco no espelho.

...................................

Cobriu as idéias com palavras para que ficassem nuas...

...................................

Morreu de não rir.

...................................

Doce menina se fez bela dona, que se fez linda senhora, que se fez sereno cadáver, que se fez livre pó... E se refez nas tintas de Renoir.

...................................

2. LITerATurA VIsuAL

3.moNóLogos PósTumos Com QuINTANA - PArTe V

“ Esquece todos os poemas que fizeste. Que cada poema seja o número um.”Mário Quintana

Eu a ele: O Escritor é o verdadeiro mestre-cuca. Alimentos para as cucas. Macarronadas esferográficas.

Ele a mim: Assim como um louco que fala sozinho, os escritores são aqueles tipos que vivem escrevendo consigo mesmos.

(3.) CoNTINuA NA PróxImA edIção..

MORTE A DENTRO

DAviD BAMO - MATOLA

Marx de Jesus é meu nome, nasci num quarto trancado com livros de Marx e Pepetela. Eis que uma jovem escura, com curas um pouco por todo o corpo delira de paixões por

ouvir a voz firme do magro jovem e pequeno radialista de Lourenço Marques. Um mês foi muito de mais para a tal, de nome Ginoca, interessar se pelos lençóis do pequeno e grande Marx de Jesus, jovem cuja reputação é de torturador de donzelas de tudo o quanto é comunidade. Aos 20 anos magoara incontáveis corações da meninada. A Ginoca, habituada a vidas e paixões cheias de carinho e atenção, aceitava daquele modo uma nova etapa e oposta ao que os outros rapazes aldeianos, citadinos e camponeses a haviam habituada, pois com Marx passaria o resto da vida levando e sendo enfiada em todas suas covas, isto é, a frente, atrás, e até na boca. A orgia entre estes dois aventureiros dos prazeres carnais, tem inicio justamente na primeira visita que a Ginoca faz a casa do seu tão amado namorado, que por longos meses estivera na vida boémia, entretido nas bebidas e mulheres da vida, tendo ficado uma grande marca da desprevenção. Era sexo sem compromisso mais tão envolvente que hipotecara alguma coisa na estrutura imunológica do Marx. Contudo, ele não seropositivo, mas diga ao bem da verdade, era escravo do sexo. A paixão dela, a Ginoca, pelo Marx estava disposta a tudo, enfrentar a todos, queriam a jovem, também radialista, remar contra a maré, pese embora a barreira da idade, porque ela era mais velha que o moço. Ginoca só queria saber do “saboroso pénis do Marx”, julgava a morena. Hoje, passam 10 anos desde que Marx e Ginoca se conheceram. Por heroína do destino, mesmo depois de ter passado por várias mulheres, Marx de Jesus casara com ela. Não foram felizes, são décadas onde a voz da traição gritou mais alto que a força do pouco amor que um dia lhes uniu.Ginoca abandonou um tal de Rony, que provavelmente teria sido um homem certo da sua vida. E o Marx fora abandonado pela maior paixão da sua vida, a formosa Defa. Hoje em dia o Rony é um louco que anda sem norte e nem sul, percorre ruas e avenidas da cidade de Maputo, come lixo e até fezes. Rony não suportou o adeus da sua amada Ginoca.A Defa está internada no Hospital Central de Maputo, dizem que tem uma doença que os médicos não conseguem curar. Faz necessidades maiores sentada. O marido dela morreu vítima da mesma doença. Marx e Ginoca vivem os piores momentos das suas vidas. Já não tem sentido partilhar a mesma cama. Os seus dois filhos, a Gisela e o Marx Júnior nem tão pouco lhes admiram porque as duas pobres crianças testemunharam graves discussões dos pais, para além do adultério que nunca conseguiram esconder, a traição. Marx e Ginoca estão a pagar pelas enganações da paixão. Deixaram as vontades falarem mais alto que a razão dos seus sentimentos. Um tem a raiva do outro......são dez anos de um casamento que de recordação só tem a sentença ditada na Comunidade Imaculada Conceição, no bairro da Malanga, pelo Padre João Luís Gonzaga. As lágrimas fazem o dia a dia daquele casal que perdera esperanças de viver. Amizade não existe, camaradagem nem se fala, solidariedade não há hipótese de existir. É a morte viva do Marx e da Ginoca, que vontade de cometer um suicídio não lhes falta. A amargura de ter assumido um amor inventado pela aparência gera dor e pavor aos dois e aos poucos vão morrendo por dentro

Exero 01, 5555 BLA BLA BLA 5Terça-feira, 16 de Agosto de 2011 cRÓNicA / cONTO 5

FiLosoFonias rapsódicas

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6 BLA BLA BLA Exero 01, 5555

- discurso dirEcto“Refuto a ideia da participação do escritor como militante partidário”

Terça-feira, 16 de Agosto de 2011 https://literatas.blogs.sapo.mz 6

se destina à leitura fácil de um texto de puro entreteni-mento. Busco, na escrita, provocar a reflexão, o espan-to.

Literatas – O escritor angolano José Agualusa disse certa vez que “o escritor africano deve sair do gheto”. Sendo o escritor a voz dos que não têm voz, a sua intervenção social não só deve cingir-se à escrita num país com baixos níveis de leitura, o escritor deve se expor na sociedade. comunga da mesma ideia? O ser escritor compensa? E qual é o papel do escritor?

AMOSSE MUcAvELE

Literatas – Na infância qual foi o seu primeiro contacto marcante com a escrita?

Geraldo Lima: Não me recordo de um momento marcante. O contacto com o texto dava-se somente na escola, pois não havia livros em casa. Li pouco na infância, apenas textos das cartilhas, ou seja, fragmentos. Assim, comecei a es-crever também um pouco tarde, depois dos dezasseis anos de idade, creio. Coisas rudimentares, sem muita bagagem literária, pois nesse período minha leitura era basicamente de gibis e dos chamados bolsilivros de bang-bang.

Literatas – Que espaço os livros ocupam no seu dia-a-dia? A leitura, de alguma forma, influencia no seu trabalho e no seu quotidiano?

gerALdo LImA: Os livros têm uma presença marcante no meu dia a dia. Tenho por regra ler todos os dias, nem que seja apenas uma página. Estou sempre lendo. Como escritor, não posso abrir mão da leitura, pois a partir dela posso chegar também a ideias para compor meus textos. Não concebo o escritor que não leia. Leitura e escrita não se dissociam. Sou professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira; tenho então, dessa forma, um compromisso profissional também com o ato de ler.

Literatas – O escritor peruano Mário vargas Llosa certa vez disse o seguinte: “a minha passagem pelo jornalismo foi fundamental como escritor”. como porta-voz da sociedade você percebe na literatura ou no jornalismo uma função definida ou mesmo prática?

gerALdo LImA: Talvez essa função seja mais definida no jor-nalismo, que tem, basicamente, o objectivo de informar. A literatura é escorregadia, ora tende para um lado, ora para outro. O que eu sei é que o texto literário refuta o aspecto panfletário. Mais do que informar ou doutrinar, seu objec-tivo é desnortear, deslocar o leitor do seu eixo de certezas e tranquilidade. Para o poeta Manoel de Barros, por exemplo, a poesia é um “inutensílio”. Ou seja, num primeiro momento, não serve para nada, não tem um sentido prático, e é isso que a salva de ser usada como instrumento. É claro que o texto literário pode servir como instrumento de crítica social, mas o que não se deve perder de vista é o seu carácter essencial-mente literário, ou seja, a sua literariedade. O discurso político ou de crítica social por si só não basta para validar a qualidade literária de um texto.

Literatas – Quais são os autores imprescindíveis nas suas leituras como escritor e leitor? E quais nunca o abandonam?

gerALdo LImA: Machado de Assis é o primeiro. Com ele apren-di a ousar, a brincar com a forma do texto (tenho em mente, agora, o seu Memórias Póstumas de Brás Cubas). A ironia machadiana está presente também em minha escrita. Cito também como imprescindíveis para a minha escrita e para minhas leituras escritores como Kafka, Dostoiévski, Beckett, Ionesco, Lima Barreto, Cruz e Sousa, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Jorge Luis Borges, Gra-ciliano Ramos, Léopold Senghor, Edgar Allan Poe, Saramago, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector... Desses, estão sempre comigo, na hora em que estou escrevendo, Machado de Assis, Kafka, Clarice Lispector e Dostoiévski.

Literatas – Neste mundo cada vez mais globalizado, tão afeito ao imagético, com um nível elevado de analfabetis-mo, e atrasado culturalmente: O que te leva a dedicar-se à arte de escrever numa era onde ler um livro não é a palavra de ordem?

gerALdo LImA: A necessidade de expressão. Só assim sei exi-stir. Só assim posso existir. É através da acção de escrever, de criar mundos ficcionais, que consigo me situar como cidadão. Se o meu texto será lido por milhões ou por meia dúzia, pouco importa. Sei que escrevo para um leitor capaz de se emocio-nar, para alguém que vai se enxergar no meu texto, e isso é que importa. Tenho plena consciência de que meu texto não

gerALdo LImA: De certo modo sim.

Tenho consciência de que o papel do escritor extrapola, de

alguma maneira, o mero ato de escrever. Ainda mais em socie-dades tão carentes de uma voz

que se destaque pela criatividade e pela lucidez das ideias. É, em

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Exero 01, 5555 BLA BLA BLA 7

“Refuto a ideia da participação do escritor como militante partidário”

Terça-feira, 16 de Agosto de 2011 https://literatas.blogs.sapo.mz 7

parte, o papel do intelectual como Sartre o via. Ser essa voz crítica, que desvela os

males da sociedade. Talvez a recompensa maior esteja aí. Mas vejo também, com certo receio, essa actuação muito

exposta do escritor. Refuto, por exemplo, a ideia da partici-pação do escritor como mili-tante partidário. Guardo, de memória, um poema

de um poeta brasiliense da década de 70, que diz assim: “militar/não milito, /militar/me limita”. É claro que esse poema foi escrito no contexto histórico da ditadura militar no Brasil, mas isso não exclui a interpretação que dei a ele

para responder a questão posta aqui. Gosto mais do escritor

como escafandrista das solidões e fraquezas humanas.

Literatas – A língua nos une, mas continuamos muito distantes um do outro. Em termos globais, qual é o estado clínico da literatura de expressão portuguesa? E o que a literatura do seu país recebe dos outros quadrantes lusófonos, concretamente os africanos, refiro-me a literatura moçambicana, angolana, guineense, cabo-verdiana.

gerALdo LImA: O estado clínico não é dos melhores. Talvez os portugueses estejam em melhor situação que os brasileiros, já que ganharam um Prémio Nobel com o Saramago. No Brasil temos grandes escritores, mas ainda não conseguimos implacar um Nobel. Falta, creio, maior divulgação dos nossos autores lá fora, um trabalho de marketing pesado, envolvendo editores e governo. A importância da Língua Portuguesa deve ser destacada também no cenário internacional, pois está entre as línguas com o maior número de falantes no mundo. Penso que actualmente tem havido uma repercussão maior das obras de autores africanos no Brasil, refiro-me a autores como Ondjaki, José Agua-lusa e Mia Couto. Creio que há um marketing maior na divulgação das obras desses autores entre nós. Só não saberia quantificar a influência que essa literatura africana exerce actualmente na produção de alguns autores brasileiros.

Literatas – Se em Moçambique, Angola, cabo-verde, São-Tomé, Timor Leste, e.t.c., o grande problema que cruza o caminho do escritor é encotrar uma Editora

do indivíduo. Em relação a isso, penso como Platão: “... O conhecimento que penetra na

alma pela força não cria raízes nela”

AUTOBiOGRAFiAsou AuTor dos livros A noite dos vagalumes (contos, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária), Baque (contos, LGE Editora/FAC), Nuvem muda a todo instante (infantil, LGE Editora) e UM (romance, LGE Editora/FAC).Participei das antologias: Anto-logia do conto brasiliense (Projecto Editorial, org. por Ronaldo Cagiano)e Todas as gerações - o conto brasiliense contemporâneo (LGE Editora, org. por Ronaldo Cagiano). Participei, também, do Projeto Portal: revista Solaris e revista Neuromancer, org. por Nelson de Oliveira.mANTÉm o blog: http:// http://baque-blogdoger-aldolima.blogspot.com/

onde possa publicar o seu trabalho, e em seguida alguém que compre e leia a mesma, creio que em Portugal e no Brasil acontece o inverso, há tanta facilidade de publicar. E com isso não corre-se o risco de se ter muita obra imatura nas prateleiras? Ou mesmo por parte dos escritores consagrados publicarem livros de auto-ajuda?

gerALdo LImA: De fato, há bastantes editoras no Brasil, e não param de publicar. Mas não creio que haja tanta facilidade assim para os novos autores publicarem, não. No Brasil, os novos autores, e também os que estão fora do chamado eixo Rio - São Paulo, esbarram nas mesmas dificuldades para encontrar uma editora que publique e distribua seus textos. É difícil chegar lá. Há uma política per-versa aí no meio, a tal lógica do mercado, a visão do capital. E a maioria dos leitores prefere a literatura de entretenimento, os livros de auto-ajuda, princi-palmente os que vêm de fora. Esses, sim, encontram espaço nas editoras e nas gôndolas das livrarias. Estão sempre expostos para atrair o leitor de amenidades.

Literatas – Que obra, de um escritor de qualquer quadrante do mundo, os moçambicanos deviam ler urgentemente? E como formar leitores?

gerALdo LImA:

Se ainda não leram, deveriam ler, urgentemente, a obra de

Dostoiévski. Há que se experi-mentar, para nunca mais esquecer, esse mergulho nos

tormentos da alma humana. Depois desse mergulho, estamos

preparados para entender as complexidades do ser humano. Formam-se leitores permitindo

que crianças tenham acesso aos livros de forma prazerosa,

lúdica, para que esse gosto pela leitura crie raiz na alma

- discurso dirEcto

Page 8: Revista literatas   edição 6

SAMUEL cOSTA - iTAJAí - BRASiLEu prefiro frases feitas...

Lê-las, e pensar que são minhas!

Dizer: Eu te amo...

Usando velhos clichês

Finjo ser poeta

Às vezes contista...

Uso velhos clichés

‘’Porque dizer eu te amo...

Não é dizer bom dia!’’

Escuto velhas músicas!

E chego a pensar que a dor é minha.

Mas não é!!!

Penso em ser prosador...

Para voltar para a minha infância...

Aonde corro e corro de novo...

Corro entre becos e vielas...

...de braços abertos!

Finjo ser poeta...

...na pós-modernidade!

A ignorar regras, rimas e métricas...

A desdenhar de antigas elegias!

Todas as velhas fórmulas prontas e acabadas.

Velhas formas de amar musas intocadas...

Finjo ser versejador...

Nos tempos modernos!

E em meus versos!

Sinto que não fosses embora...

Estas perdida...entre os meus versos...

Mais profanos...

Finjo...que não te perdi para sempre,

Às vezes leio velhas poesias.

Mas, só às vezes...

E penso que são meus...

Aqueles idílios de saudade...

Eu gostaria ser um poeta.

Para pensar que não te perdi para sempre...

Imortalizar-te-ia em meus versos!

Às vezes penso ser poeta!

Na pós-modernidade!

A usar velhos clichés!

E digo: ’’Dizer te amo...não é dizer bom dia’’

Poesia na árvorePEDRO DU BOiS - BRASiL

Amanheço em nuvens de inver-

no.

No esfriar da hora sou corpo

despertado. Sigo o leito do rio

ao largo: estrito ao peito

da mulher amada no anunciar

horas anteriores de refúgio. Acordo

e levanto em ensolarados passos.

Da manhã retiro a necessidade

da utilidade. Sou repositório

da inatividade.

AmanhecerBáRBARA LiA - BRASiLEntre estrelas

entre algas

entre brancos lençóis

e paredes brancas.

Vermelha viagem da vida nas veias.

Instante que precede ao nascimento,

também à morte.

A morte é um silêncio suspenso

e o sol, um silêncio vermelho.

Nuvens em seu passeio

diante da janela deste apartamento.

Tem uma sinfonia em tons vários

a gritar – Silêncio!

Silencio.

Branca, como estrelas e algas.

Passeio brancas areias de Maputo,

olhando ao redor em busca de Mia Couto

ansiando que ele me ensine a estrondar

o encanto.

in Noir (2006)

Encantado silêncio das areias de Maputo

8 BLA BLA BLA Exero 01, 5555

no rEcanto dE apoLo...Terça-feira, 16 de Agosto de 2011 https://literatas.blogs.sapo.mz 8

ALBERTO ARAúJO - MAPUTO

Um ente desponta,E aponta o que é ser belo,E da beleza nascem palavras. Singrando pela almaVão-se as palavras entintadas e solfejadas,As quais o tempo fez produzi-las Certas, se fazem fato central de uma vida.Por esse motivo nunca as deixarão adormecidas no cais,Aneladas a tristezas e angústiasTampouco dá guarida aos proveitos do que se fez. Apenas o querer que, as palavras ditas no papelSejam viajadas através do tempo,Fazendo-se cantigas no coração de quem amaAssim o tornando um ser meramente feliz.

iDENTiDADE DO SOL

NELSON LiNEU

Como latas tocadas ao meu ouvido

oiço falar-se ou os próprios heróis

que eu duvido

que se achem tal

dizerem que perderam a sua juventude.

Heróis, lutar jovem

pela independência do seu país

é perder a juventude?

Corrompendo-me como nunca fiz,

admito que perderam a juventude.

Agora é para ganhar a velhice

a qualquer custo?

Perderam a sua juventude

Page 9: Revista literatas   edição 6

inconsolado

Exero 01, 5555 BLA BLA BLA 9

canto da poEsia Terça-feira, 16 de Agosto de 2011 https://literatas.blogs.sapo.mz 9

Conteúdos desta página são da inteira responsábilidade do grupo Canto da Poesia do Facebook : http://www.facebook.com/groups/185846178099556/

Recolha de Rafael Inguane - [email protected]

iziDiNE JAiME Ando sozinho Mesmo com gente movendo me os pés. Me acho na vida. Um sorriso me arquiteta um novo rosto. Não me acho em lágrimas, Chorar é tão inútil como lembrar o que se foi e nunca tivemos. Me encanta a minha pobre alma O pouco na vida é um muito que tenho. Querer ter como outros é tornar me pobre na riqueza que é minha. Sou um tudo nesse vazio que me molda a vida. Não preciso embanceirar-me cores Para aceite como tal. Pois... No meu grito minúsculo Não me importam os muitos que ouvem Mas os poucos que entendem. No meu verso triste Não me importam os que me secam as lágrimas Mas os que choram comigo.

PETER PEDRO PiERRE PETROSSE

O dia estava deserto e cheio de tristeza. Decidi ir ao bar Magostosa. Cheguei, Entrei, E sentei -me numa mesa.Lá estava ela, A minha fiel amante, A minha mulande mulandinha,A minha preta. Com o seu traje habitual. Bem geladinha e transpirando. As gotas escorriam pelo seu corpo esbelto. Sorriu para mim, Retribui lambuzando os beiços. Aproximou-se exibindo a sua beleza, E sentou-se sobre a mesa. Projectou o seu olhar No fundo do meu olhar. Não resiste, Apliquei os meus lábios nela. Demo-nos um beijo longo, suculento E altamente refrescante. Um beijo com uma mistura de malte, cevada, açúcar e água. Beijos com um sabor sem igual. Beijamo-nos a noite toda, Até que eu não pudesse mais, Pois já estava aturdido. Demos um beijo de despedida Com esperanças de um reencontro, Mas antes da minha partida, Sussurrei “ Minha preta, tu és mesmo boa”.ARTHUR DELLARUBiA

Talvez queira Perder-me para além fronteiras Exportar-me para que me recebas importado Como um presente espero que me recebas embalado Ate que a morte nos separe Acho que não minha querida E certo que ainda te amo repare Quase morto de4c saudades estou, nos encontraremos noutra vida Que tu mesmo desejaste paixão E como um, virei minha doce dama Embalado e soterrado naquele lindo caixão Com a promessa de casarmo-nos em espírito e alma Para discordamos dessas míseras palavras Ate que a morte nos separe não existe Pois ainda penso em ti, meu doce querubim Doce anjo, que me agasalha no frio, minha fada Motivo das minhas lágrimas de saudade E desse meu suicídio, que agora e absurdo Que me faz gemer nesse tédio, que e essa imortalidade Agora que que o altíssimo deu-te de novo a vida daquele mundo Choro… Olhando para o teu novo futuro e feliz, pequena princesa Talvez eu queira ser o teu anjo de guarda, minha paixão Dar-te o rumo quando perderes-te para alem fronteiras Importante em minha mente, já que foste exportada do meu coração Amor sem separação, e a vida… Bruta paixão Que a morte a leva para mesma vida Reencarnação.

BENJAMiM TOMAS

Estava o presente prometido pelo papai. O inicio das aulas no carrinho novo de arame, … Naquele carro que todo paizinho dissolve-se Na avenida da felicidade. Pequeno menino conduzindo na estrada da inocência Um carro de arame lindo, bordado nas mãos do pai. Lá brincava o menino Sob o transito inocente do alcatrão. Será este um presente dos pais?!... Quando entre repentino som de travagem O estrondo do pneu rebentou! E o Paizito estava em baixo do grande camião Uma voz gritou, Mamãaaaaa!!!!!!!!!!!!!!!!!!

vicENTE SiTOEI Um dia conheci o Nada do qual advinha tudo Era igual à inexistência e residia em mim Não entendendo a sua essência busquei explicação em todo o universo Até no Mundo da Sofia Mas não decifrei o sinistro em mim Havia nele algo de cósmico Uma sobrenaturalidade natural Como se fosse óbvio que tenho várias existências Noutro dia conheci a Vida Ela estava fora de qualquer corpo Não tinha nem a alma Era a existência em sujeito A vida levitava entre as ruas De geração à geração De uma nação à outra Transportando o mesmo nada Mas quando conheci a Morte Percebi que a minha vida não tem sentido Sou apenas uma ideia um pensamento na cabeça da natureza II Sou uma poeira orgânica andante Sou uma poeira cósmica pensante Esboço de um erro permanente Uma ideia que inventou a si mesma e inventou muitas outras Uma partícula quântica indivisível Pedaço de um sonho surreal Significado oculto de um Nada Sou campo de manifestações alheias Sou a essência das reticências Estou cansado das loucuras da vida Cansado das suas crónicas irónicas Cansado do preço das suas aventuras Por isso escrevo este manifesto Talvez alguém me vai ouvir Cansado das psicologias da vida segunda as quais ninguém é saudável apenas há pessoas não diagnosticadas Fatigado pelas matemáticas subtraentes mais um amigo, menos dois Me ensinem a fórmula da lucidez Quero provar a minha sanidade mental Estou é cansado de ser confundido Que alguém feche o meu inconsciente Não quero mais viver de memórias esquecidas Sou reflexo do meu passado e espelho do meu próprio futuro Sou a parte descartável da natureza Pensando sobre vários nadas em mim... É pena que até o Nada termina

A Preta

Morte que traz a vida

Manifesto contra minha natureza

No fim da alegria do Paizinho

Page 10: Revista literatas   edição 6

10 BLA BLA BLA Exero 01, 5555

mentes e o meu ego, livros e citações. O pronunciamento da hospedeira não teve

espaço no meu pensamento, descartei de imediato.

Isso sim é que nutrição mental, queria mesmo é ler e debruçar aquelas palavras

que o Mia escrevera naquelas páginas elucidativamente, mas que para muitos não

passavam de letras órfãs; queria me suicidar naquele mato sem coelhos. Sem que

desse conta, o machimbombo avançava freneticamente, apetrechado de luzes,

minhas vontades abafadas, maus agoiros serão? Aos bocados diminuía meus des-

contentamentos guardando-os para outra parte, a segunda; recolhi-me num silêncio

de quase séculos, o mencionado cenário ficou parecendo um funeral de alguém sem

belezas nem posses. Ergui as minhas mãos na cabeça, juntando conformidades no

alheio, pensamento ausente.

Recolhi o aconchego do livro, enterrei as palavras sem cerimónias, amaldiçoei os

passageiros presentes, terminando-lhes a vida terrena, injustos com o justo.

De repente a luz caiu como um véu negro, acalmando o escuro sombrio, tudo tem

sombra, até agulha que seja; eu apalpava sem vergonha palavras no velho livro, letra

a letra sem deixar nada para trás, o parágrafo anterior puxava-me para o próximo.

Afinei a vista como um gato de noite, espreitando os espíritos, no momento em

que aguçava mais a vista para vislumbrar palavras, uma voz surgiu, anunciando o

início do verdadeiro percurso. Iniciávamos a partida ao nosso destino, passávamos

já pela ponte do rio limpopo, cabisbaixos e desatinados, todos distraídos pelo

escuro e pelas vozes atrapalhadiças, então lembrei me que nunca lutara e denun-

ciara atrocidades por causa destas bisbilhotices, apenas os livros e as palavras de

ensinamentos, que antes lera, ficaram semeadas no meu subconsciente como uma

gota de esperança

mesmo tempo, ao dobro, numa só vez para um sofredor do povo, era inacreditável

aquela cena, parecia combinação de me fazer cair no desespero de afligir até no mais

fundo do ser. Uns no silêncio, uns bebendo algumas garrafadas de 2M, e outros ainda

recolhiam os cansaços. Não entendia com bons olhos aquele afrontamento.

A minha imploração parecia não ter parido frutos naquele mato com coelhos

surdos, não convencera os viajantes daquele tempo, todos distraídos nos seus

afazeres, alimentando as suas crias e suas bocas, sob o comando do motorista

Freitas, como era conhecido. Homem de varias viagens no seu currículo, fretava de

lá para cá. Sem respostas cedidas a mim, notei que o meu pedido fora condenado

ao fracasso, nem um sim para apoiar na minha candidatura de leitura condigna

e fértil, se confirmara mais uma vez o insucesso de ler histórias e contos da boca,

oralmente divulgados no tempo. A injustiça era tanta que nem conversas se faziam

ouvir, todos no silêncio, ouvia-se apenas o motor roncar sem parar. Era injusto que

se estavam a comportar daquele jeito, sem explicações a dar, não reclamara apenas

por mim, pensava nos outros que compartilham das mesmas ideias, e ainda pelos

que gastam noites e tintas redigindo textos e rabiscos, mesmo para aqueles que

rabiscam e os guardam nas gavetas, pelas editoras, produtores, até chegar aos

leitores, reclamara por causa das noites perdidas pelo escritor, no suor para casar

palavras em verdadeiras obras de arte. O que faz de um livro, bom livro são as

palavras que lá misturam se, em versos, estrofes, parágrafos, o que faz do bolo um

sucesso são os ingredientes e a forma como são misturados.

O meu devaneio foi interrompido por uma voz, era a hospedeira do autocarro,

sabe desses autocarros que nada falta, tudo de bom, casa de banho, música, pro-

jecção de filmes, tudo para não cair em atenção total:

Temos água, sumos e refrigerantes, estão a temperatura ambiente, quem quiser

que me diga. Dirigia-se a passageirada.

O meu olhar para com ela já era mais apurado, confiante em mim mesmo,

para que pudesse denunciar sem arrepios os meus desagrados, nada de sumos e

refrescantes, agora nem nunca, ideias e acontecimentos e que melhor refrescam as

Em outras paLavrasTerça-feira, 16 de Agosto de 2011 https://literatas.blogs.sapo.mz 10

A interrupção das ViagensMAURO BRiTO - MAPUTO

-Não apague a luz, por agora não, por favor.

Implorava eu ao motorista do autocarro onde viajara, a minha voz tudo dizia,

sem mascara, como quando o cão é deixado pelo proprietário, para entrar em novas

estradas, chorando o cãozinho de manso só pela alma, em latir internamente animal,

o choro não invade sequer os ossos que fazem o corpo. Enunciava pedires de favores

sem muitos cortejos fúnebres.

-Ao menos deixe-me terminar este capítulo onde me encontro, não demoro

muitas horas, é que gosto muito de literatura, aprendi debaixo do cajueiro a ler e

a escrever.

-Nem mais, estamos já a começar a viajem, o sol já se pôs, e não quero diminuir a

minha bateria de energias, uma boa musica caia vos muito bem, não essas colecções

que nada dizem, parecem jornais em bancas, anunciando fofocas diárias para tirarem

nossos tostões do bolso mal cozido.

O meu implorar preenchera vazio do cair da tarde, já diz o adágio despovoado,

que só chora quem precisa de mamar, chorava eu na minha própria personagem para

ver o meu pedido satisfeito, infelizmente na lei do ser natural as coisas não funcio-

nam de tal forma, ganha quem fizer parte do grupo dos apoiantes de maior numero

absoluto, a regra de sinais na matemática chama-nos para o mesmo ponto de vista,

o resultado da soma de dois números de sinais contrários é ditado pelo numero de

maior valor absoluto, no caso recente eu era o menor absoluto. Simplesmente não

tinha poderes perante o motorista e os restantes viajantes. Me rendo já.

A lua ocupara já o seu devido lugar, dançando entre algumas estrelas no nascente,

pendura-se ao alto do mais alto da noite brava, no autocarro, mulheres, crianças,

e jovens como eu, gozavam dos saltos oferecidos pela estrada mal concebida, não

nacionais. O soprar do inverno quase que me congelara as reclamações de direito,

estava com a pele nua, num castigo total de corpo e alma, sofria dois castigos ao