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Janeiro 2016 www.sciam.com.br 9 771676 979006 00164 ISSN 1676-9791 ANO 14 | n o 164 | R$ 13,90 | 4,90 € ideias 10 mundo Grandes avanços para melhorar a qualidade de vida, impulsionar a computação, reduzir a poluição e promover a sustentabilidade ASTRONOMIA Rivalidade entre grupos de pesquisa prejudica projeto de grandes telescópios DINOSSAUROS Impacto de asteroide foi de fato devastador, mas o momento foi um dos piores possíveis AMBIENTE Após se alastrar pelo Sul e Sudeste, o mexilhão-dourado chegou ao Rio São Francisco

Scientific american brasil janeiro 2016

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Janeiro 2016 www.sciam.com.br

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4ISSN 1676-9791

ANO 14 | no 164 | R$ 13,90 | 4,90 €

ideias10mundo

Grandes avanços para melhorar aqualidade de vida, impulsionar acomputação, reduzir a poluição e

promover a sustentabilidade

ASTRONOMIARivalidade entre grupos de pesquisa prejudica projeto

de grandes telescópios

DINOSSAUROSImpacto de asteroide foi de fato devastador, mas o momento foi

um dos piores possíveis

AMBIENTEApós se alastrar pelo Sul e

Sudeste, o mexilhão-dourado chegou ao Rio São Francisco

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Page 3: Scientific american brasil   janeiro 2016

BRASIL

JANEIRO 2016

NÚMERO 16 4 , ANO 14

INOVAÇÃO

24 Ideias para mudar o mundo 10 grandes avanços para melhorar a

vida, transformar a computação e

talvez até salvar o planeta.

Os editores

MEIO AMBIENTE

36 O invasor douradoOriginário da Ásia e detectado na

América do Sul em 1991, o molusco

mexilhão-dourado foi encontrado no

Rio São Francisco.

Arthur C. Almeida, Newton P. U.

Barbosa, Fabiano A. Silva, Jacqueli-

ne A. Ferreira, Vinícius de Abreu e

Carvalho, Marcela D. Carvalho e

Antônio V. Cardoso

PALEONTOLOGIA

42 O que matou os dinossaurosO impacto do asteroide foi ruim, mas

seu momento foi pior.

Stephen Brusatte

NA CAPA A edição atual de “Ideias para mudar o mundo” mostra o levantamento da de avanços da ciência e da tecnologia com

entre os principais a serem enfrentados pela sociedade em áreas como energia, segurança ambiental, informática, exploração espacial e outras. Ilustração de Tavis Coburn.

J nei o 2016 www s iam om br

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ANO 14 | n 64 | R$ 13 90 | 4 90 €

para mudar o10mundo

Grandes avanços para melhorar aqualidade de vida, impulsionar acomputação, reduzir a poluição e

promover a sustentabilidade

ASTRONOMIAR validade entre grupos depesquisa prejud ca projeto

de grandes telescóp os

DINOSSAUROSmpacto de asteroide foi de fatodevastador, mas o momento foi

um dos piores possíveis

AMBIENTEApós se alastrar pe o Sul e

Sudeste, o mexilhão-douradochegou ao R o São Francisco

ASTRONOMIA

49 Guerra de telescópiosAntigos rancores entre três equipes

de astrônomos têm ameaçado a

sobrevivência do maior e mais ousa-

do projeto de astronomia em solo.

Katie Worth

MEDICINA

55 Genômica para as pessoasClínica infantil fundada e fi nancia-

da por amish e menonitas mostra

que a pesquisa genética de alta tec-

nologia pode ser direcionada para

prevenir doenças.

Kevin A. Strauss

Page 4: Scientific american brasil   janeiro 2016

BRASIL

5 Carta do editor

6 CartasCIÊNCIA EM PAUTA

7 O preço da poluiçãoEstá na hora de taxar combustíveis fósseis.

Pelo Conselho de Editores da Scientifi c American

8 Memória

9 AvançosDinheiro fala e tuíta.

O curioso cortejo rotativo de uma espécie de morcegos.

Neutrinos do início dos tempos.

Químico desenvolve técnica para identifi car odores.

CIÊNCIA DA SAÚDE

16 A dor no cérebroNova teoria sobre a enxaqueca dá origem a medicamentos

que evitam crises.

David Noonan

TECNOLOGIA

18 A guerra digitalO que fazem as grandes companhias desse setor para atrair

você para seus ecossistemas.

David Pogue

OBSERVATÓRIO

19 Pingue-pongue e raios cósmicosAo rebater e impulsionar partículas, campos magnéticos

funcionam como raquetes.

Otaviano Helene

DESAFIOS DO COSMOS & CÈU DO MÊS

20 Civilizações superdiscretasSe houver vida inteligente fora da Terra, talvez seus sinais

sejam muito recatados.

21 Cometa vem com chuva de meteorosCatalina atinge brilho máximo e se exibe na constelação

do Boieiro, antes de se esconder em defi nitivo no

Hemisfério Norte.

Salvador Nogueira

CIÊNCIA EM GRÁFICO

66 O jogo da bactériaAnálise do pó revela como a presença de homens, mulheres,

cães e gatos afeta a variedade de microrganismos domésticos.

Mark Fischetti

7

9

20

SEÇÕES

EDIÇÃO ESPECIAL CÃES E GATOS 2

www sc am com br

O problemada obesidadeO mundo vistopor cachorrosA evoluçãoa partir do lobo

GatosCães

IS N 1 79522 9

Nº 67 R$ 13,90 € 4,50

Aciência

de

&

A vida interiordos felinosComo evitara gestação

Animaissentem empatia?

ESPECIALJá está nas bancas o volume 2 de “A

Ciência de Cães e Gatos” (à direita),

edição especial da Scientifi c Ame-rican Brasil. Além de temas

científi cos sobre os dois animais do-

mésticos mais presentes na vida

humana, os artigos abor dam também

nossa relação com eles. Como é o

mundo visto pelos cães? A partir de

que peso um cão pode ser conside-

rado obeso? Os gatos veem seus

donos como familiares? Os volumes 1

e 2 também estão à venda no site

http://www.lojasegmento.com.br

Page 5: Scientific american brasil   janeiro 2016

CARTA DO EDITOR

www.sciam.com.br 5

é editor da .

Os sotaques brasileiros do molusco asiáticoHá alguns anos, pescadores em rios de algumas das bacias da

regiões Sul, Sudeste e Centro-oeste do Brasil às vezes têm uma sur-

presa desagradável. Ao limpar, antes de assar, piaparas, mandis,

piaus cascudos, pacus e outras espécies que fi sgaram, eles encon-

tram estranhas conchas nas vísceras desses peixes. Na verdade,

por não poderem excretar esses moluscos que foram ingeridos

ainda na forma de minúsculas larvas, muitos peixes acabam mor-

rendo devido ao entupimento de seu trato intestinal.

Essa surpresa indesejada tem acontecido também em instala-

ções de captação de água para abastecimento e geração de energia

hidrelétrica, prejudicando inclusive usinas de grande porte, como

a de Itaipu, na fronteira entre Brasil e Paraguai no Rio Paraná, a de

Ilha Solteira, no mesmo rio, na divisa entre São Paulo e Mato Gros-

so do Sul, e a hidrelétrica de Água Vermelha, no Rio Grande, na di-

visa de São Paulo e Minas Gerais. Como não é possível desentupir

tubulações atingidas por essa praga, o jeito é substituí-las.

Esse invasor é o mexilhão-dourado, originário da Ásia e conhe-

cido pelo nome científi co Limnoperna fortunei. A mortandade de

peixes e o estrago em tubulações são apenas parte de danos de ex-

tensão muito maior devidos à infestação desse molusco, explicam

pesquisadores do Centro de Bioengenharia de Espécies Invasoras

(CBEI) e da Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG), em

seu artigo nesta edição de Scientifi c American Brasil.Limitada no Brasil até então às regiões Sul, Sudeste e Centro-

oes te, a presença dessa espécie invasora foi detectada em junho do

ano passado por técnicos do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio

Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), ao procederem a

uma vistoria no reservatório da usina hidrelétrica de Sobradinho,

na Bahia. Ou seja, a infestação chegou ao sertão nordestino e em

pleno Rio São Francisco, que passa por cinco estados – Minas Ge-

rais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas – e 521 municípios bra-

sileiros, por isso conhecido como “Rio da Integração Nacional”. E

próximo a um dos canais da enorme obra de transposição, em um

momento especialmente grave, marcado pela prolongada estia-

gem que tem prejudicado a economia e a população dessa região.

Até o início de dezembro, o Ibama não havia divulgado esse

fato para o público em geral. Em nota para meu blog no site do

jornal Folha de S.Paulo, o órgão afi rmou a necessidade de que “o

MMA [Ministério do Meio Ambiente] conduza os debates, sendo

o Ibama não mais que o executor das políticas daquele ministé-

rio. No momento, nem sequer existem recursos no Ibama desti-

nados ao controle de espécies exóticas invasoras”.

Felizmente, em outubro, a equipe de pesquisadores do CBEI e

da CEMI G foi a Sobradinho e confi rmou a presença do molusco

invasor. E divulgou um boletim de alerta nos dias seguintes.

Em dezembro, em Paris, na COP-21, a ministra do Meio Am-

biente, Izabella Teixeira, falou que, graças à atuação do Brasil, o

acordo sobre a mudança do clima, então em fi nalização, iria ter

“sutaque brasileiro” [sic]. Infelizmente, após todos esses anos de-

baixo do nariz do MMA, a infestação do mexilhão-dourado já

tem vários sotaques brasileiros, entre eles o gaúcho, o caipira do

Sul de Minas e São Paulo e, agora, o baiano. Por enquanto.

Boa leitura!

ALGUNS COLABORADORES

Arthur C. Almeida, ,

,

e são pesquisadores

do Centro de Bioengenharia de Espécies Invasoras (CBEI) em Belo Horizonte, MG.

é analista de meio ambiente da Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG) em Belo Horizonte, MG.

escreve sobre ciência e medicina. Ele abordou tratamentos para vertigem na edição de setembro.

é colunista-âncora do Yahoo Tech e apresentador das minisséries NOVA na PBS.

Katie Worth é uma repórter do Frontline, uma produção televisiva da WGBH, em Bos ton. Ela passa tempo pensando em política, ciência e suas intersecções.

é doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade Harvard e diretor médico da Clínica para Crianças Especiais em Strasburg, Pensilvânia

mestre e doutor em física pela Universidade de São Paulo, onde é professor, tem

trabalhado em áreas que incluem tratamento estatís-tico de dados experimentais. Tem se dedicado também a trabalhos de

é jornalista de ciência especializado emastronomia e astronáutica.

é paleontólogo da Universida-de de Edimburgo, na Escócia. Ele pesquisa evolução e anatomia de dinossauros. No artigo anterior que escreveu para a American ele analisou a ascensão dos tiranossauros.

NEW

TON

P. U

. BAR

BOSA

Page 6: Scientific american brasil   janeiro 2016

6 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016

OEFEITOPIRÂMIDEAchei muito esclarecedora a matéria sobre como foi

possível há milhares de anos os egípcios construírem

esses gigantescos monumentos que são as pirâmides.

Enfim, não existe mistério nenhum. O “segredo”, como

bem explicou a revista, existia apenas por desconheci-

mento, que muitas vezes deu espaço para charlatões aproveitarem para

fomentar o ocultismo oportunista e vender livros mistificadores. É

muito bom poder contar com a divulgação de informações esclarecedo-

ras e desmistificadoras como essas, deste mês de dezembro (edição nº

163), da Scientific American Brasil. Obrigado!

CHIPSEVITAMTESTESCOMANIMAISParabéns aos pesquisadores alemães que estão desenvolvendo essa

maravilhosa tecnologia que permite à ciência, sem maltratar seres vivos,

continuar o desenvolvimento de novos medicamentos e até mesmo de

novos cosméticos – pois a vaidade faz muita gente esquecer ou descon-

siderar a crueldade cometida contra os animais em experimentos. Para-

béns aos brasileiros que estão trazendo essa tecnologia para nosso país.

E parabéns para a Scientific American Brasil [edição de novembro

(nº 162)] por divulgar essa informação.

Sensacional a revista de novembro [edição nº 162] sobre os

chips feitos por cientistas para livrar animais da crueldade em

experimentos científicos.

A edição de vocês de novembro foi show também. Eu a li toda e em

pouco tempo.

100ANOSDARELATIVIDADEGERALAdorei a edição da Scientific American Brasil de outubro [nº 161],

que comemorou os 100 anos da teoria da relatividade geral de Albert

Einstein. Fiquei espantada por saber das informações sobre as dificul-

dades enfrentadas por ele na elaboração dessa teoria e também dos pre-

conceitos dele sobre outros conhecimentos da ciência.

CORREÇÕESAScientificAmerican dos EstadosUnidos publicou as seguintes cor-

reções que correspondemànossa edição de outubro (nº 161).

1)Noartigo “OndeEinstein errou”, napág. 46, está erradaaafirmação

“Einstein tinha feito os mesmos cálculos da curvatura da luz em 1912”,

pois o fato se deu em 1911.

2)Esse errodedata se repetiunapág. 48, no infográfico complementar

ao mesmo artigo, “Os grandes erros de Einstein”, em seu item “Lentes

gravitacionais”.

POR RESTRIÇÃO DE ESPAÇO, A REDAÇÃO TOMA A LIBERDADE DE ABREVIAR CARTAS MAIS EXTENSAS.

EDIÇÃO 163

Dez mbro 2015 www c am com br

SN

ANO 4 | n 163 | R$ 13 90 | 4 9

daspirâmides

O

Por trás dessas grandes obrasm lenares existia uma complexaorganização social capaz de unir todosos recursos e esforços do ntigo Egito

MEDICINANanossessores estão cada vezmais próximos de diagnos icar

infecções em m nutos

COSMOLOGIAOs primeiros passos do proje opara expl car a expansão cadavez mais rápida do Universo

AGRICULTURA

e cientistas agrava praga que atinge olivais italianos

segredoEdimilson Cardial

 Carolina Martinez,

Marcio Cardial, Rita Martinez e

Rubem Barros

ANO 14 – Nº 164

JANEIRO DE 2016

ISSN 1676979-1

 

 Rubem Barros

 Maurício Tuff ani

  João Marcelo Simões

  Jullyanna Salles (web)

 Luiz Roberto Malta

e Maria Stella Valli (revisão); Aracy

Mendes da Costa, Laura Knapp,

Marcio G. B. Avellar, Regina Cardeal,

Suzana Schindler (tradução)

 

Paulo Cesar Salgado

 

Cinthya Müller 

 

Sidney Luiz dos Santos

 

 Almir Lopes

[email protected]

Brasília – Sonia Brandão

(61) 3321-4304/ 9973-4304

[email protected]

Paraná – Marisa Oliveira

(41) 3027-8490/9267-2307

[email protected]

 Paulo Cordeiro

 

Diego de Andrade

 Carolina Martinez

 Carolina Madrid

Lila Muniz

 Jonatas Moraes Brito

 Lucas Carlos Lacerda

e Lucas Alberto da Silva

 Gabriel Andrade 

Mariana Monné

Ana Lúcia Souza

 Cláudia Santos 

Cleide Orlandoni

Roseli Santos

Simone Melo 

Weslley Patrik

Cláudia Barbosa

Cinthya Müller

Viviane Carrapato

SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL é uma

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sob licença de Scientifi c American, Inc. .

SCIENTIFIC AMERICAN INTERNATIONAL

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Fred Guterl

Ricki L. Rusting

Philip M. Yam

Mark Fischetti

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Michael Moyer, George Musser,

Gary Stix, Kate Wong

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Page 7: Scientific american brasil   janeiro 2016

CIÊNCIA EM PAUTA OPINIÃO E ANÁLISE DO

CONSELHO EDITORIAL DA SCIENTIFIC AMERICAN

www.sciam.com.br 7Ilustração de Thomas Fuchs

O preço da poluiçãoEstá na hora de taxar combustíveis fósseisDos editores

Na Colúmbia Britânica, a poluição do ar diminui, enquanto a

economia cresce. Em 2008, a província canadense começou a

taxar usuários de combustíveis fósseis, de grandes fábricas a pro-

prietários de automóveis. Desde então, a economia vem crescen-

do, em média, cerca 2% ao ano, apesar da grande recessão nacio-

nal que atravessou em 2009, superando o resto do Canadá. No

mesmo período, o consumo de gasolina, carvão e outros combustí-

veis à base de carbono diminuiu 16%, com redução paralela dos

gases estufa. O imposto sobre o carbono é de 30 dólares canaden-

ses por tonelada cúbica. Como compensação, indústrias e cida-

dãos têm redução no imposto de renda e outros benefícios.

A Colúmbia Britânica copiou a ideia de sua vizinha produtora

de petróleo, a província de Alberta. Agora é a hora certa para os

Estados Unidos copiarem esse exemplo. Carvão, gás e petróleo

estão tão baratos atualmente que mesmo com um imposto adicio-

nal, o custo dos combustíveis permanecerá mais baixo que o valor

que a população e as empresas pagavam há apenas alguns anos.

Isso é economia básica de mercado: se for cobrado um valor

sobre o uso do ar, as pessoas não o tratarão mais como um depósito

de lixo. A ideia é antiga. Em 1920 o economista Arthur Pigou suge-

riu que obrigar poluidores a pagar pelo ar que poluíam desencora-

jaria uma descarga abusiva de poluentes, no mesmo modelo dos

impostos sobre artigos supérfl uos como bebidas alcoólicas e cigar-

ros. Anos depois, o já falecido economista Ronald Coase, Nobel de

Economia em 1991, aprimorou a ideia. Ele propôs que o governo

vendesse às companhias e pessoas o direito legal de poluir, for-

mando uma espécie de mercado da poluição. Todos podiam con-

correr para comprar essas permissões, o que elevaria o preço do ar

sujo. A ideia de Coase convenceu até o ícone conservador Milton

Friedman de que comercializar, comprar ou vender direitos de

poluir eram o meio racional de resolver problemas ambientais.

Mais recentemente, os EUA usaram esse mecanismo de merca-

do para combater um problema específi co de poluição: a chuva

ácida. Nos anos 1990 a administração George Bush impôs um

limite máximo na quantidade de dióxido de enxofre que poderia

ser emitida pelas chaminés das usinas de energia elétrica. Cotas

dessas quantidades foram divididas entre os poluidores. Para se

manter dentro da cota, os proprietários de usinas de energia deve-

riam instalar equipamentos para fi ltrar os poluentes ou usar com-

bustíveis menos poluentes. Ou poderiam desembolsar uma boa

quantia para aumentar sua cota, comprando permissões de outros

poluidores que já tivessem reduzido suas emissões.

Para combater o dióxido de carbono nove estados do nordeste

dos EUA aderiram a um programa similar para usinas de energia,

e a Califórnia até incluiu veículos, como fez a União Europeia. Mas

as tentativas em nível nacional foram rejeitadas pela oposição

como um imposto a mais, o que poderia custar empregos.

Uma abordagem mais direta – cobrar imposto sobre o carbono

– poderia ter benefícios imediatos para os negócios e não signifi -

caria uma conta fi nal mais alta. Como foi feito na Colúmbia

Britânica, o imposto sobre o carbono poderia substituir outros

impostos. Uma taxação de US$ 25 por tonelada de carbono emiti-

da por queima de carvão, gás e petróleo, por exemplo, resultaria

em mais de US$ 100 bilhões que poderiam ser compensados

reduzindo impostos na folha de pagamento, estimulando créditos

que seriam deduzidos do imposto de renda, fi nanciando pesquisas

em inovação ou revertendo em melhoria de infraestrutura, ou

qualquer combinação dessas medidas. Foi por isso que a proposta

recebeu apoio de economistas dos partidos Democrata e Republi-

cano. O imposto também não penalizaria os consumidores. Na

Colúmbia Britânica a cota de impostos na bomba de gasolina é de

apenas cerca de sete centavos de dólar canadense a mais por litro.

Se a palavra “imposto” continua assustando os políticos, não há

outro jeito, se não o mais direto, para criar um verdadeiro merca-

do de carbono: parar de gastar dólares arrecadados em impostos

para subsidiar combustíveis fósseis. Segundo o Fundo Monetário

Internacional, mais de meio trilhão de dólares são gastos, no mun-

do todo, para tornar o preço do carvão, gás e petróleo mais barato

para a indústria explorar ou para os consumidores queimarem.

Esses subsídios dão uma falsa impressão de que os combustíveis

fósseis são baratos. Qualquer abordagem que pare de mascarar o

preço verdadeiro, seja um imposto, um limite de comercialização

ou uma revisão dos subsídios, ajudaria a limpar o ar.

Page 8: Scientific american brasil   janeiro 2016

50, 100 & 150 ANOS DE MEMÓRIA INOVAÇÕES E DESCOBERTAS NARRADAS PELA SCIENTIFIC AMERICAN

8 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016

SCIE

NTI

FIC

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L.CX

IV,N

O1;

JAN

EIRO

DE

1916

.

Janeiro 1966

Teste com laser“O anúncio, em 1960, de

que um modelo funcio-

nal de laser havia sido

obtido foi celebrado

com entusiasmo por militantes de diversas

áreas. Como a luz produzida por essa ra-

diação é coerente e monocromática, o laser

foi considerado, na época, como a resposta

para as preces dos engenheiros de comuni-

cação. Embora um sistema funcional e

prático de comunicação de longa distância

por laser ainda deva ser construído, o en-

tusiasmo inicial não diminuiu.”

Japoneses antes de Colombo?“À medida que civilizações do Novo Mun-

do se tornaram mais bem conhecidas ar-

queologicamente, paralelos surpreenden-

tes foram observados na arquitetura, práti-

cas religiosas e em estilos de arte da Ásia.

Foi sugerido que esses paralelos são evi-

dências de ‘descobertas’ da América, não

registradas, anteriores à chegada de Co-

lombo. (...) Investigações arqueológicas re-

centes na costa do Equador, no entanto, le-

vam a uma única conclusão: um barco car-

regado de viajantes do Japão perambulou

intencionalmente pelas costas do Novo

Mundo, cerca de 4.500 anos antes de Cor-

tez chegar ao México. — Betty J. Meggers.”

Janeiro 1916

Rodovia nacional“Passei minhas férias

deste ano numa viagem

de carro para a Costa do

Pacífi co pela Lincoln

High way (construída em 1913). Há dois

anos, quando realizei essa mesma viagem,

foi um fato inusitado — talvez um dos 50

turistas que fi zeram a mesma viagem. Não

creio que seja exagero afi rmar que nos úl-

timos meses eu fui um dos cinco mil que

tentaram chegar à Costa do Pacífi co de car-

ro, e realmente cheguei lá depois de uma

série de experiências que fariam o autor de

um popular suspense moderno corar de

vergonha por falta de imaginação. É a me-

lhor estrada de rodagem, a única, que liga

o Atlântico ao Pacífi co.”

Alguns trechos da Lincoln Highway permaneceramsem asfalto até os anos 1930.

Carros mais rápidos“O desenvolvimento mecânico mais inte-

ressante do ano foi o aumento da populari-

dade dos carros com vários cilindros, re-

presentados pelo motor de quatro cilin-

dros duplos e de seis cilindros duplos, o

primeiro formando um motor de oito cilin-

dros e o último de 12 cilindros. As vanta-

gens desses carros com vários cilindros são

tão notáveis em todos os sentidos que não

precisam de mais elaboração.

(Ver ilustração.)”

Janeiro 1866

Cometa de 1861“M. (Emmanuel) Liais,

famoso astrônomo, pu-

blicou cálculos provan-

do inquestionavelmen-

te que em 19 de junho

de 1861 a Terra realmente havia passado

por uma das caudas do cometa. O momen-

to do contato foi aos 12 minutos depois da

seis da manhã, horário do Rio de Janeiro, e

segundo as dimensões calculadas por M.

Liais, a Terra deve ter permanecido total-

mente imersa em sua cauda por cerca de

quatro horas! Essa imersão não representa

efeitos perceptíveis no clima, um fato notá-

vel, acrescentando mais uma razão às vá-

rias que já existem, para a suposição de

que a matéria cometária é um milhão de

vezes mais rarefeita que nossa atmosfera.”

Em 1880 Heinrich Kreutz calculou que o período orbital do cometa era de 409 anos.

Manias“Estranhas paixões se apoderam da

humanidade em certos momentos.

Moedas têm seu valor, quadros são

ansiosamente adquiridos, tulipas ho-

landesas atingem preços exorbitantes

e, ultimamente, selos postais têm sido

o alvo das atenções. Todas essas ex-

centricidades humanas são explora-

das por pessoas espertas com mentali-

dade especulativa que desejam obter

lucros, honestamente ou não. Alguns

ilustradores de selos franceses pensa-

ram que valeria a pena o esforço de

desenhar novos selos postais, como ja-

mais tinham sido vistos antes. Os se-

los foram desenhados para serem dis-

tribuídos pelo correio das ‘Ilhas Sand-

wich’, e por isso foram avidamente

adquiridos por compradores crédulos

que imaginavam que naquela região

nada seria absurdo. Os selos havaia-

nos, não genuínos, são laranja, violeta,

verde e outras cores do arco-íris.”

Por volta de 1916, os carros motorizados tornaram-

corridas esportivas em pistas de alta velocidade

Page 9: Scientific american brasil   janeiro 2016

www.sciam.com.br 9

SAÚDE

Antídotos mais efi cazesPesquisas trazem novas perspectivas para tratar picadas de cobras

A medicina moderna é capaz de cultivar rins a

partir do zero, impedir a propagação de doenças

infecciosas como Ebola e diagnosticar a causa de

uma tosse com um smartphone. Mas picadas de

cobras ainda frustram a ciência. Todos os anos, o

veneno de serpentes mata quase 200 mil pessoas

e deixa outras centenas de milhares desfi guradas

ou incapacitadas, tornando esses répteis escama-

dos rastejantes o segundo animal mais mortífero

do mundo. Só mosquitos talvez matem mais pes-

soas todos os anos (ao disseminarem os protozoá-

rios que causam malária).

Cobras venenosas recentemente deslizaram

novamente para as manchetes noticiosas quando

foi revelado que líderes do mundo farmacêutico

haviam decidido suspender o desenvolvimento

de antídotos. A empresa farmacêutica francesa

Sanofi Pasteur, por exemplo, foi destaque em

setembro de 2015, quando a ONG internacional

Médicos Sem Fronteiras (MSF) anunciou que o

lote fi nal do soro antiofídico FAV-Afrique, o único

que provou tratar efetivamente vítimas de pica-

A naja indiana, Naja naja, abre seu “capuz”, ou “manto”, quando ameaçada. Ela é uma das serpentes mais mortíferas no subcon-tinente indiano.

• Dinheiro fala e tuíta

• O curioso cortejo rotativo de uma espécie de morcegos

• Neutrinos do início dos tempos

odores

NÃO DEIXE DE LER

AVANÇOS CONQUISTAS EM CIÊNCIA , TECNOLOGIA E MEDICINA

Page 10: Scientific american brasil   janeiro 2016

10 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016

AVANÇOS

das peçonhentas na África Subsaariana,

expirou em junho. A Sanofi , único fabri-

cante, suspendeu sua produção em 2014

porque a droga não compensava fi nancei-

ramente. Outras empresas já tinham

tomado medidas similares, inclusive a

Behringwerke, alemã, e a Wyeth Pharma-

ceuticals dos EUA (agora parte da Pfi zer).

A situação terapêutica agravou-se tan-

to que a MSF agora descreve picadas de

cobras como “uma das emergências de

saúde pública mais negligenciadas do

mundo”. E, em outubro, dezenas de espe-

cialistas que participavam do 18º Congres-

so Mundial da Sociedade Internacional de

Toxicologia, em Oxford, na Inglaterra,

pediram que a Organização Mundial da

Saúde (OMS) listasse picadas de cobras

novamente como doença tropical carente

de atenção. A maioria desses incidentes

ocorre na África e no Sudeste Asiático.

O desenvolvimento de antídotos enca-

lhou no século 19 porque o campo é subfi -

nanciado, diz David Williams, toxicologis-

ta clínico e herpetólogo da Uni ver si dade

de Melbourne e também dirigente da

ONG Iniciativa Global contra Picadas de

Cobras (Global Snakebite Initiative). Para

isolar compostos para tratamentos, pes-

quisadores normalmente injetam veneno

em níveis subtóxicos em ani mais, coletam

os anticorpos formados pela resposta

imune e os depuram. Antídotos precisam

ser customizados para diversas toxinas de

diferentes espécies de serpentes por

região. Não existe um antídoto universal.

Apesar de obstáculos e restrições, gru-

pos de pesquisa de várias partes do mun-

do trabalham discretamente em soluções

novas e empolgantes à espera de um sub-

sídio inesperado de dinheiro e impulso

para prosseguir. Entre as novas possibili-

dades se destaca um antídoto desenvolvi-

do especialmente para a África Subsaaria-

na, que poderia servir como modelo para

a produção de compostos mais baratos

para combater picadas de cobras veneno-

sas de outras regiões. Pesquisadores do

Reino Unido, Costa Rica e Espanha come-

çaram com um “antídoto básico” compro-

vado para três serpentes e já fazem sua

triagem contra toxinas de mais cobras.

Proteínas da toxina que não se ligam ao

antídoto-base são examinadas sobre sua

toxi cidade; somente as toxinas identifi ca-

das como perigosas são incorporadas ao

coquetel imunizante usado para produzir

o próximo lote de antídoto mais efi ciente.

Essa triagem seletiva e os testes iterati-

vos de proteínas específi cas resultam em

um antídoto direcionado mais forte em

comparação com outros convencionais,

que neutralizam indiscriminadamente as

proteínas tóxicas e as inócuas do veneno.

O grupo também planeja reduzir custos

com um método pioneiro desenvolvido na

Costa Rica, que requer menos etapas no

processo de produção. “Nossa meta é

criar um produto mais barato, ou tão

barato quanto US$ 35 por ampola, para a

África Subsaariana”, diz Robert Harrison,

diretor da Escola de Medicina Tropical de

Liverpool, na Inglaterra. O soro antiofídi-

co da Sanofi custa US$ 150 por frasco.

Outros animais, e bactérias, podem

fornecer antídotos alternativos. Uma pro-

teína de gambá, identifi cada originalmen-

te na década de 1990, já provou proteger

camundongos contra toxinas ofídicas

capazes de provocar hemorragia interna

generalizada. Além disso, a proteína neu-

tralizou toxinas hemorrágicas de cobras

venenosas nos EUA e no Paquistão. A des-

coberta sugere que ela talvez possa prote-

ger contra todas as toxinas ofídicas

hemorrágicas, observa Claire Komives,

engenheira química na Universidade

Estadual de San José, na Califórnia. Ela já

demonstrou que pode modifi car genetica-

mente bactérias Escherichia coli para que

produzam a proteína; o que poderia redu-

zir o custo terapêutico para cerca de US$

10 por ampola. “Estou tentando fazer isso

em bactérias porque podemos intensifi car

[a produção] mais economicamente”, diz.

Para fi nanciar sua pesquisa, Komives ape-

lou ao serviço de crowdfunding (fi nancia-

mento coletivo) Experiment.com.

Grupos de pesquisa em outros lugares

se afastaram completamente do desenvol-

vimento de antídotos tradicionais. Mat-

thew Lewin, diretor do Centro para

Exploração e Saúde em Viagens da Acade-

mia de Ciências da Califórnia, começou a

triar medicamentos aprovados pelo FDA

– órgão dos EUA que controla alimentos e

medicamentos – para ingredientes quími-

cos que poderiam formar a base de uma

injeção ou pílula que estabilize pessoas

picadas no campo ou

que pelo menos lhes dê

tempo para chegarem a

um hospital. “Se existis-

se um antídoto farma-

cêutico, a pessoa sem-

pre poderia levá-lo

consigo”, argumenta

Lewin. Muitas mortes

decorrentes de picadas

de cobras peçonhentas acontecem justa-

mente quando as vítimas não conseguem

chegar a hospitais ou clínicas para rece-

ber um antídoto intravenoso.

Da mesma forma, Sakthivel Vaiyapuri,

pesquisador farmacológico na Universi-

dade de Reading, na Inglaterra, está trian-

do moléculas que bloqueiam os efeitos de

venenos de serpentes. Ele também espera

acabar conseguindo desenvolver um

coquetel de inibidores químicos que

poderiam levar a um antídoto universal.

Tratamentos modernos contra vene-

nos seriam um sólido primeiro passo para

reduzir mortes resultantes de picadas de

cobras. Mas até as melhores terapias do

mundo falharão sem fi nanciamento e dis-

tribuição adequada. “Se os ministérios de

saúde responsáveis pelo bem-estar físico

das pessoas não priorizarem tratamentos

contra picadas de cobras, você está baten-

do sua cabeça contra uma parede de tijo-

los”, resume Williams da ONG Global

Snakebite Initiative. —Jeremy Hsu

O desenvolvimento de antídotos encalhou no século 19 porque o

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Page 11: Scientific american brasil   janeiro 2016

www.sciam.com.br 11Ilustração de Thomas Fuchs

APRENDIZADO DE MÁQUINAS

Dinheiro fala e tuítaInternautas deixam pistas de seu status socioeconômico

Como sexo, dinheiro é um tema que a maioria das pessoas evita discutir publi-camente. No entanto, deixamos regular-mente rastros digitais de nossa situação econômica, mesmo quando nos expres-samos nos 140 caracteres do Twitter.

Uma análise de cerca de 10,8 milhões de tuítes postados por mais de cinco mil usuários da rede de mídia social on-line constatou que as sucintas mensagens

revelar a faixa de renda de uma pessoa. Daniel Preo iuc-Pietro, pesquisador de pós-doutorado em processamento de lin-guagem natural, e seus colegas na Uni-versidade da Pensilvânia se basearam em

90% de suas amostras em grupos de ren-da correspondentes. Eles usaram um pro-grama capaz de aprender a partir de dados e fazer previsões baseadas neles,

grupo. Aplicado aos outros 10% de amos-tras, o modelo previu com sucesso os

Conforme os pesquisadores descreve-ram na PLOS ONE, pessoas com rendi-mentos mais altos tenderam a discutir

lucrativos. Usuários em faixas de ren-das mais baixas se ativeram principal-mente a assuntos pessoais, como dicas de beleza e experiências. “Pes-soas de renda mais alta usam o Twit-ter como meio para divulgar informa-

ções; as de rendas mais baixas o usam mais para comunicação social”, explica

Preo iuc-Pietro. A análise também reve-lou que tuítes de usuários que ganham mais dinheiro são mais propensos a expressar temores ou indignação.

Em estudos anteriores, Preo iuc-Pietro e seus colegas foram capazes de prever o gênero, a idade e a tendência política de usuários do Twitter. Eles conseguiram até detectar sinais de depressão pós-parto e transtorno de estresse pós-traumático. “O aprendizado de máquinas só é tão poderoso quanto os dados que podemos acessar”, diz Preo iuc-Pietro. “As pessoas devem estar cientes do quanto revelam inadvertidamente sobre elas mesmas”.

—Rachel Nuwer

COMPORTAMENTO ANIMAL

Bat karaokêMachos de morcegos cantam em rodízio para ampliar cortejos

restas ecoam guinchos e chiados de ma-chos de morcegos de cauda curta (Mystaci-na tuberculata), que cantam até 100 mil “canções românticas” por noite, mais do que qualquer outro animal, para atrair umacompanheira. Eles executam suas serenatasdo alto de um poleiro especial, usado exclu-sivamente para exibição sexual.

Após estudar os hábitos desses mamí-feros noturnos durante três anos, Cory Toth, da Universidade de Auckland, constatou que os machos fazem uso compartilhado em quase metade dos 12 poleiros de canto que observou na Ilha do Norte. “Um macho estará can-tando, sairá de lá, e apenas três segun-dos depois outro concorrente entrará no

poleiro e começará a cantar”, explica Toth. Ao todo, de dois a cinco machos se apre-sentarão todas as noites em um poleiro, cantando durante algumas horas cada um.

Em termos gerais, os “palcos” comparti-lhados transmitem mais músicas que os ocupados por apenas um único morcego durante a noite toda, aumentando as chan-ces de que uma fêmea que esteja passando por perto pare por ali. De início, Toth teori-zou que os morcegos praticantes de time-

-share eram aparentados e trabalhavam juntos para garantir o sucesso reprodutivo

quando os machos em três de quatro polei-ros de cantoria revelaram não ter vínculos de parentesco, ou eram apenas distante-mente aparentados, a atenção dele se vol-tou para o tamanho dos morcegos: os machos que se revezavam no palco eram bem maiores que os que cantavam sozi-nhos. Machos maiores gastam mais ener-gia nas tarefas diárias de sobrevivência e, portanto, talvez poupem suas forças à noite ao se alternarem na cantoria, sugere Toth. De fato, testes de DNA revelaram que o sucesso reprodutivo de morcegos maiores

e menores dentro da colônia era mais ou menos igual, sugerindo que o esquema de “time-share” dos poleiros ajuda os maiores a competir com os pequenos.

O conhecimento dos hábitos repro-dutivos da espécie poderia fornecer

informações valiosas para os esforços de conservação. — David Godkin

Page 12: Scientific american brasil   janeiro 2016

12 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016

AVANÇOS

TECNOLOGIA

Faixas de pedestressem riscosTreinamento poderia melhorar a habilidade de criançaspara atravessar ruas

“Olhe para os dois lados antes de atravessar a rua!”“Olhe para aesquerda, para a direita e novamente para a esquerda!”Essas clássi-cas lições de segurança da infância se estendem por gerações eculturas.Ainda assim, acidentes de trânsito continuam sendo umadas fontes mais comuns de ferimentos e fatalidades para criançasao redor do mundo. Na União Europeia, menores de 14 anos res-pondem por uma proporção bem mais elevada de mortalidade depedestres do que qualquer outro grupo etário, exceto o dos idosos;nos EUA, entre as crianças mortas por carros, quase 25% estavam apé. Os números são particularmente assustadores em Israel, ondeelas representam 20% das mortes de pedestres.

Estudos passados constataram que jovens são menos hábeis

catedrática em engenharia e gestão industrial na UniversidadeBen-Gurion do Negev e no Instituto Holon de

precisão quais comportamentos levavam aacidentes, com o objetivo de encontrar meiospara corrigi-los.

Para fazer isso sem colocar ninguém em

perigo, ela recorreu à realidade virtual. Em2013, Meir e seus colegas simularam 18 ruasprototípicas em Israel e utilizaram um disposi-tivo de monitoramento ocular para estudarcomo 46 adultos e crianças (com idades entresete e 13 anos) avaliavam quando era seguroatravessar. Eles constataram que criançasentre sete e nove anos demonstravam menorcuidado, decidindo tipicamente pisar, ouentrar na rua virtual com pouca ou nenhumahesitação, mesmo quando seu campo devisão era restrito.“Tínhamos pais observandoque reagiram com expressões como‘Uau! não

vessar ali’”, conta Meir.“Isso os levou a reava-

uma rua.”As crianças mais velhas não tiveramum desempenho muito melhor, embora por

na calçada por tempo excessivo, uma indica-ção de que são menos capazes de distinguirentre situações seguras e perigosas que adul-tos e, em entrevistas, não expressaram umacompreensão de como fatores como velocida-

de de carros e campo de visão afetam uma travessia segura.Intervenções parecem melhorar o desempenho. No estudo

mais recente de Meir, descrito em Accident Analysis & Prevention,24 crianças, com idades entre sete e nove anos, passaram por umtreinamento de 40 minutos para aprender a detectar perigos.Depois disso, Meir e seus colegas compararam o comportamentodas crianças treinadas com o de um grupo de controle não treina-do na tarefa de atravessar uma rua virtual. Os jovens que recebe-

no cruzamento do que os do grupo de controle, a ponto de suashabilidades de travessia se assemelharem às de adultos.

Agora, Meir e formuladores de políticas pretendem descobrircomo traduzir essas constatações para o mundo real.“Esses tiposde resultados são importantes porque não se pode elaborar inter-venções sem uma compreensão do problema”, observa JosephKearney, professor de ciência da computação e diretor associadode pesquisa e infraestrutura na Universidade de Iowa, que nãoesteve envolvido no trabalho.“Agora cabe a pessoas ‘que estãocom seus pés no chão’determinar como podem desenvolver pro-gramas de treinamento para crianças e pais sobre bons hábitospara atravessar ruas e avenidas.”—Rachel Nuwer

Crianças com idades de sete a nove anosdemonstraram menor cuidado ao atravessar,decidindo tipicamente entrar na rua virtualcom pouca ou nenhuma hesitação

Quando sentiam que era segu-ro atravessar uma rua virtual, as crianças apertavam um botão para indicar “atravessar”

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MEIO AMBIENTE

Reservatórios subterrâneosHidrólogos testam técnica agrícola que poderia aliviar as secas

A Califórnia está estorricada. Sem chuva para irrigar terras agrícolas, produtores recorrem a aquíferos subterrâneos, mas o bombeamento excessivo já teve sérias consequências, ao fazer com que os lençóis freáticos caíssem drasticamente.

da Califórnia em Davis estão realizando experimentos com o chamado groundwa-ter banking, uma ferramenta de gestão hídrica desenvolvida para aumentar a con-

feros. No verão, esse excesso de água absorvida no inverno pode, então, servir para irrigar culturas em desenvolvimento, explica Helen Dahlke, da universidade.

Durante dois meses neste inverno Dahlke e sua equipe inundarão pomares de amendoeiras no Central Valley, perto de Davis, até uma profundidade de 60 cm, ao redirecionarem as águas pluviais por uma rede de canais concebidos originalmente para desviar águas de enchentes para longe. Testes anteriores da técnica provaram ser bem-sucedidos. Em 2011, Don Cameron, gerente-geral da Terranova Ranch Inc. desviou águas de enchente do Rio Kings, em Fresno County, para pouco mais de 97 hectares de vinhedos e outras terras agrícolas, inundando-os durante cinco meses.

ser bombeada de volta para as lavouras durante o ciclo de crescimento seguinte.

gia arbórea e em que medida sais e nitratos de fertilizantes poderiam migrar para a água potável. Os custos do desvio de águas pluviais e questões legais, inclusive a quem pertence a água captada, também precisam ser resolvidos. Ainda assim, cer-ca de 1,45 milhão de hectares de terras agrícolas na Califórnia poderiam servir como pontos de recarga de águas subterrâneas. E, como climatologistas esperam

uma única estação de fortes chuvas de inverno, um número crescente de fazendei-ros está mais que interessado nas novas possibilidades para suas terras. Como observa Cameron: “A seca torna as pessoas mais criativas”. —Jane Braxton Little

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GEOLOGIA

Calor interno da TerraGeólogos têm debatido há

décadas a causa das chamadas

xos de rochas superaquecidas que escapam e ascendem do núcleo da Terra, ou em reserva-tórios de calor mais rasos no manto superior. Sismólogos da Universidade da Califórnia em Berkeley e do Laboratório Nacio-nal Lawrence Berkeley recente-

das entranhas do planeta. E encontraram mais de duas deze-

rando continuamente do núcleo para a superfície; muitas delas alimentando hotspots direta-mente. As plumas, relatadas na revista Nature, fornecem a pri-meira evidência direta de que essas colunas de calor geram pontos quentes vulcânicos, como a Islândia e a cadeia de ilhas do arquipélago do Havaí. — Shannon Hall

28do núcleo terrestre

600 a 800 kmLargura média das plumas.

44 terawatts (44 trilhões de

joules por segundo)Calor liberado pela Terra por meio de plumas mantélicas

Inundação intencional de terras agrícolas, como o pomar de nogueiras, abaixo, tem o potencial para reabastecer os aquíferos da Califórnia

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14 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016

AVANÇOS

EMPREGOS ESTRANHOS

Ned, o narizUm cientista e engenheiro de odores sabe como “farejar” aromas ruins

O nariz de Ned Ostojic o levou a lugares que variam de estranhos a repugnantes. Ele inalou o ar de fábricas de conservas de atum na Samoa Americana, cheirou ração canina moída e pegajosa em fábricas de pet-food no Canadá, e “farejou” tanques de esgoto no Brooklyn. Globalmente, só existem poucas pessoas como ele: especialistas em diagnosticar odores ofensivos. Seus clientes em geral estão desesperados para eliminar um mau cheiro que incomoda vizinhos ou representa um risco para funcionários. Treinado como químico analítico, seu trabalho é encontrar a fonte de um odor desagradável e então descobrir como corrigi-lo.

nas de receptores olfativos no nariz humano, cada um associado à detecção de diferentes moléculas de odor. Cheiros são a percepção de combinações dessas moléculas e, como tais, difíceis de manipu-lar e registrar. O ato de cheirar em si tem sido há tempos um “senti-do órfão”, especialmente quando comparado a uma capacidade mais dominante como a visão, observa Ostojic. “Podemos repre-sentar o mundo inteiro em nossas televisões usando apenas três

mos ver um único átomo”, argumenta ele, mas o odor continua sendo evasivo, fugidio.

Como resultado, Ostojic aborda seu trabalho com uma mistura de ciência e arte. Em campo, ele emprega um olfatômetro com um nome de marca agressivo: Nasal Ranger. Pressionado contra seu rosto, ele funciona inicialmente como uma máscara de gás. Assim

acresce quantidades controladas do ar circundante para mapear a intensidade e o raio de propagação de um odor fétido.

Milhares de nova-iorquinos podem agradecer a Ostojic e ao seu Nasal Ranger por tornarem a maior estação de tratamento de esgoto da cidade inodora (acima). “Tivemos um histórico horren-do”, admite Jim Pynn, que recentemente se aposentou como supe-rintendente da Estação Newton Creek de Tratamento de Água Residual, no Brooklyn. “Tínhamos um cheiro tão repugnante, pútri-do, que até eu sentia ânsias de vômito com alguns odores na usina.” Nesse caso, todo mundo sabia de onde vinha o cheiro ruim: dos tanques de aeração. Então Ostojic desenvolveu um jeito para cobri--los e depois ventilar o ar fétido através de largos cilindros de car-bono poroso, que absorve odores. Agora, o local tem um cheiro

Salt, estrelado por Angelina Jolie; as equipes de

uma estação de tratamento de esgoto, alegra-se Pynn. “Quando

que] atingimos a nossa meta”, resume Pynn, que chama Ostojic um “herói silencioso”.

Os próximos projetos de Ostojic incluem mapear as pegadas odoríferas de vapores de tinta em fábricas de automóveis em Michi-gan e de lixo em decomposição enterrado em aterros sanitários no

mas esses dados não esclarecem se pessoas tolerarão qualquer

ma quando as pessoas se queixam dele. “Tudo leva de volta ao nariz humano”, resume Ostojic. — Megan Gannon

FÍSICA

O brilho de partículas do Big BangAstrônomos detectaram indiretamente neutrinos que surgiram apenas um segundo após o nascimento do Universo

A luz mais antiga do Universo não fez um “pit stop” durante 13,82 bilhões de anos, a partir do início de sua jor-nada, somente 380 mil anos após o Big Bang. Essa luz, a chamada radiação cósmica de fundo (CMB, na sigla em inglês), serve como um terreno conhecido de caça para astrônomos que procuram entender o Universo em sua infância. Infelizmente, ela também obscurece o que jaz por trás dela: as primeiras centenas de milhares de anos do Universo. Agora, astrônomos acreditam ter espiado além da própria CMB ao captarem evidências de neutrinos que viajam desde o instante em que o Cosmos tinha apenas um segundo de idade.

Os neutrinos, partículas fundamentais sem carga elétri-ca e pouquíssima massa, escaparam do Big Bang quase imediatamente. Sua natureza evasiva, fugidia, lhes permite passar despercebidos por quase todas as barreiras físicas, raramente interagindo com a matéria comum. Nas raras ocasiões em que se chocam com fótons, no entanto, eles

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alteram sutilmente as temperaturas das partículas. Foi essa mudança de temperatura que astrônomos da Universidade da Califórnia em Davis notaram recentemente em mapas de CMB produzidos pelo satélite Planck, da Agência Espacial Europeia. Eles descreveram esse “fundo cósmico de neutrinos” em um recente artigo publicado no periódico Physical Review Letters.

Modelos do Big Bang previram o fundo cósmico de neutrinos há décadas. Mas essa nova observação indireta é a mais robusta prova disso até agora. A des-coberta “nos proporciona uma nova janela para o Universo”, comemora Lawrence M. Krauss, codiretor da Iniciativa de Cosmologia da Universidade Estadual do Arizona, que não participou do estudo. A detecção também restringe as propriedades de neutrinos, que são, de longe, os “animais mais estranhos no zoológi-co de partículas”. Ela prova, por exemplo, que neutri-nos não podem interagir com eles mesmos, como muitas outras partículas fazem. Se pudessem, eles deixariam assinaturas dife-rentes das observadas dentro da CMB.

Futuras detecções desses neutrinos primordiais talvez expli-quem por que existem 10 bilhões de partículas de matéria no Universo para cada partícula isolada de antimatéria. A assimetria foi produzida no Universo incipiente e especialistas acreditam que os neutrinos tiveram algo a ver com isso; nem que seja só

porque são tão misteriosos. “Como sabemos menos sobre neutri-nos, podemos ser mais criativos com os tipos de física que apre-sentamos”, reconhece Lloyd Knox, coautor do estudo. Embora essas partículas sejam incrivelmente difíceis de detectar direta-mente, Knox antecipa que dicas obtidas por meio de observações cosmológicas ajudarão a resolver muitos quebra-cabeças de neu-trinos e, portanto, fornecer uma ideia mais reveladora de como o Universo era em seus primórdios. —Shannon Hall

FAZENDO NOTÍCIAS

Notas rápidas

Ilustração de Thomas Fuchs

Agora aposentado, o obser-vatório Plank mapeou a CMB de 2009 a 2013

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CIÊNCIADA SAÚDE

16 Scientific American Brasil | Janeiro 2016

escreve sobre ciência e medicina. Ele abor-dou tratamentos para vertigem na edição de setembro.

Ilustração de Julia Yellow

A dor no cérebroNova teoria sobre a enxaqueca dá origem a medicamentos que evitam crisesDavid Noonan

O principal executivo, aos 63 anos, não conseguia fazer o seu

trabalho. Ele havia passado toda a vida adulta debilitado pela en-

xaqueca e estava no meio de uma nova onda de ataques. “Eu tenho

só uns poucos momentos pela manhã em que consigo ler ou escre-

ver ou pensar”, escreveu a um amigo. Depois disso, ele tinha de se

trancar em um quarto escuro até o anoitecer. Dessa forma, o presi-

dente Thomas Jeff erson, no início da primavera de 1807, em seu

segundo mandato, fi cava incapacitado todas as tardes pela mais

comum defi ciência neurológica no mundo.

O coautor da Declaração da Independência nunca subjugou o

que ele chamava sua “dor de cabeça periódi-

ca”, embora as crises pareçam ter diminuído

após 1808. Dois séculos depois, 36 milhões

de norte-americanos lutam contra a dor que

ele sentia. Como Jeff erson, que costumava se

tratar com uma infusão de casca de árvore

com quinino, eles tentam diferentes terapias,

que vão de drogas cardíacas, a ioga e ervas.

Agora, neurologistas acreditam ter iden-

tificado um nervo hipersensível que de sen-

cadeia a dor, e estão nos estágios finais de

testes de medicamentos que acalmam suas

células demasiadamente ativas. São as pri-

mei ras drogas para especificamente evitar as dores incapacitantes

antes que elas comecem. E podem ser aprovadas no próximo ano

pela FDA, agência que controla alimentos e medicamentos nos

EUA. Se cumprirem a promessa de estudos com cerca de 1.300 pa-

cientes, milhões de dores de cabeça poderão ser evitadas.

“Isso muda completamente o paradigma de tratamento da en-

xaqueca”, comenta David Dodick, neurologista do campus da Clí-

nica Mayo, no Arizona, e presidente da Sociedade Internacional de

Cefaleia. Embora existam drogas específi cas para enxaqueca que

freiam os ataques depois que estes começam, o Santo Graal para

pacientes e médicos tem sido a prevenção.

As crises de enxaqueca afetam quase 730 milhões de pessoas no

mundo e costumam durar de quatro a 72 horas. A maioria dos pa-

cientes tem crises esporádicas de até 14 dias por mês. Os que so-

frem da forma crônica – quase 8% da população com enxaqueca –

têm 15 dias ou mais de dor de cabeça por mês. Os ataques são, em

geral, precedidos por fadiga, mudanças de humor, náusea e outros

sintomas. Cerca de 30% dos pacientes apresentam distúrbios vi-

suais, as chamadas auras, antes das dores. O peso econômico total

da enxaqueca nos EUA, inclusive custos médicos diretos e dias de

trabalho perdidos, é estimado em US$ 17 bilhões ao ano.

Nos 5.000 anos desde que os sintomas da enxaqueca foram

descritos pela primeira vez em documentos na Babilônia, os trata-

mentos têm refl etido, ao mesmo tempo, a evolução de nossa com-

preensão e nossa quase cômica ignorância sobre a doença. San-

gria, trepanação e cauterização do couro cabeludo raspado com

uma barra de ferro em brasa eram tratamentos comuns no perío-

do greco-romano. O ponto mais baixo dos remédios equivocados

provavelmente foi atingido no século 10º, quando o oftalmologista

Ali ibn Isa recomendou atar uma toupeira morta à cabeça. No sé-

culo 19, a eletricidade medicinal se tornou moda e os pacientes de

enxaqueca eram rotineiramente estremecidos por diversas inven-

ções, incluindo o banho hidroelétrico, que era basicamente uma

banheira de água eletrifi cada.

No início do século 20, clínicos voltaram sua atenção para os

vasos sanguíneos, inspirados em parte por observações da forte

pulsação das artérias temporais em pacien-

tes com enxaquecas, assim como descrições

de dores latejantes e alívio que os pacientes

conseguiam com a compressão das artérias

carótidas. Por décadas, a enxaqueca foi atri-

buída sobretudo à vasodilatação no cérebro.

Essa ideia foi reforçada no fi m dos anos

1930 por um estudo sobre o tartarato de er-

gotamina. Apesar de efeitos colaterais, como

vômitos e dependência, a droga vasoconstri-

tora evitou crises em alguns pacientes.

Mas, se a vasodilatação era parte do que-

bra-cabeça, não era a única coisa que acon-

tecia no cérebro dos pacientes, como a onda seguinte de tratamen-

to sugeriu. Na década de 1970, pacientes cardíacos que também so-

friam de enxaqueca começaram a relatar aos médicos que

betabloqueadores que tomavam para desacelerar os batimentos

cardíacos também reduziam a frequência das crises. Pessoas com

enxaqueca que tomavam medicamentos para epilepsia e depres-

são, e outros que recebiam injeções cosméticas de Botox, também

relataram alívios. Assim, os especialistas em cefaleia começaram a

prescrever essas drogas “emprestadas” para enxaqueca. Cinco des-

ses medicamentos foram por fi m aprovados pela FDA para a dor.

Infelizmente, ainda não se sabe exatamente como as drogas adota-

das (efi cazes em apenas cerca de 45% dos casos e com diversos

efeitos colaterais) ajudam nas enxaquecas. Dodick opina que elas

podem atuar em vários níveis do cérebro e tronco encefálico para

reduzir a excitabilidade do córtex e vias de transmissão da dor.

As primeiras drogas específi cas para enxaqueca, os triptanos,

foram introduzidas nos anos 1990. Richard Lipton, diretor do Cen-

tro de Cefaleia Montefi ore, em Nova York, conta que os triptanos

foram desenvolvidos em resposta à antiga ideia de que a dilatação

Células superativas respondem a luzes,

sons e odores tipicamente benignos liberando substâncias que transmitem sinais

de dor e causam enxaqueca

Page 17: Scientific american brasil   janeiro 2016

www.sciam.com.br 17

CIÊNCIADA SAÚDE

dos vasos sanguíneos é a causa primária da enxaque-

ca; triptanos deveriam inibi-la. Ironicamente, estudos

posteriores mostraram que a droga de fato interrom-

pe a transmissão de sinais de dor no cérebro e que a

vasoconstrição não é essencial. “De qualquer forma,

funciona”, comenta Lipton. Uma pesquisa de 133 estu-

dos detalhados dos triptanos descobriu que eles ali-

viam a dor em duas horas em 42% a 76% dos pacien-

tes. Pessoas os usam para bloquear o ataque depois

que ele começa, e eles entraram para a linha de frente

dos tratamentos confi áveis para milhões de pacientes.

O que os triptanos não podem fazer – e o que Peter

Goadsby, diretor do Centro de Cefaleia da Universida-

de da Califórnia em São Francisco, sonha em conse-

guir há mais de 30 anos – é evitar que a enxaqueca co-

mece. Nos anos 1980, buscando esse objetivo, Goadsby

se concentrou no sistema do nervo trigêmeo, há muito

conhecido como o caminho da dor no cérebro. Era ali,

suspeitou, que a enxaqueca fazia seu trabalho sujo. Es-

tudos em animais indicaram que em ramos do nervo

que saem de trás do cérebro e se estendem por várias

partes da face e da cabeça, células superativas

respondem a luzes, sons e odores tipicamente

benignos liberando substâncias que transmitem

sinais de dor e causam enxaqueca. A sensibilidade

intensificada dessas células pode ser herdada; 80%

dos pacientes têm histórico familiar de enxaqueca.

Goadsby foi coautor do primeiro estudo sobre o tema em 1988.

Outros pesquisadores, inclusive Dodick, se uniram ao esforço. O

objetivo era encontrar uma forma de bloquear os sinais de dor.

Uma das substâncias encontradas em altos níveis no sangue de

pessoas com enxaqueca é o peptídeo relacionado ao gene da calci-

tonina (PRGC), um neurotransmissor que é liberado de uma célu-

la nervosa e ativa a próxima em um ataque. Mirar e interferir no

PRGC não foi fácil. Difícil foi encontrar uma molécula que funcio-

nasse nesse neurotransmissor e não tocasse em outras essenciais.

Com o avanço da capacidade de engenheiros de biotecnologia

controlarem e projetarem proteínas, várias empresas farmacêuti-

cas desenvolveram anticorpos monoclonais para combater a enxa-

queca. Essas proteínas criadas se ligam fortemente às moléculas

PRGC ou seus receptores nas células do nervo trigêmeo, evitando

a ativação celular. As novas drogas são “como mísseis guiados com

alta precisão”, compara Dodick. “Vão diretamente ao seu alvo.”

Essa especifi cidade e o fato de que os cientistas na verdade sa-

bem como as drogas funcionam animaram Dodick, Goadsby e ou-

tros. Em dois testes controlados com placebo com um total de 380

pessoas que sofriam de enxaqueca severa até 14 dias por mês, uma

única dose com um medicamento PRGC reduziu os dias de dor

mais de 60% (63% em um estudo e 66% no outro). Além disso, no

primeiro estudo, 16% dos pacientes continuaram livres da enxa-

queca por 12 semanas no teste de 24 semanas. Testes clínicos mais

amplos para confi rmar essas descobertas estão sendo feitos. Até

agora, as PRGC funcionam melhor na prevenção que qualquer

droga de doenças cardíacas ou epilepsia e têm menos efeitos cola-

terais, ministradas em uma única injeção mensal.

Especialistas também exploram outros tratamentos, inclusive

cirurgia da fronte e pálpebras para descomprimir ramos do nervo

trigêmeo, e estimulação magnética transcraniana (EMT), uma for-

ma não invasiva de alterar a atividade das células nervosas.

Lipton afi rma ter conseguido bons resultados com EMT. Ele

também encaminhou pacientes para cirurgias, mas conta que a

experiência “tem sido decepcionante”, e não as recomenda. Goads-

by, de seu lado, vê cirurgias e esforços de alta tecnologia como um

certo desespero. “Eles me soam como um grito de ajuda. Se enten-

dermos mais sobre a enxaqueca, saberemos melhor o que fazer.”

Embora a causa agora pareça estar enraizada no sistema do

nervo trigêmeo, a origem de suas células hiperativas ainda é um

mistério, diz Goadsby. “Qual é a natureza do que você herdou com

a enxaqueca?”, pergunta. “Por que você e por que não eu?”, prosse-

gue. Se desvendarem a genética da enxaqueca, a “dor de cabeça pe-

riódica” de Jeff erson pode aliviar sua dolorosa tenaz moderna.

Page 18: Scientific american brasil   janeiro 2016

TECNOLOGIA

18 Scientific American Brasil | Janeiro 2016

é colunista-âncora do Yahoo Tech e apresentador das minisséries NOVA na rede pública de tevê PBS.

Ilustração de Jori Bolton

A guerra digitalO que fazem as grandes companhias desse setor para atrair você para seus ecossistemasDavid Pogue

A pergunta não é mais “Que celular devo ter?”. Essa era uma

questão importante logo após a chegada do iPhone e seus concor-

rentes. Agora é hora de admitirmos que os smartphones (e tablets)

estão quase idênticos. Apple e Google (fabricante do sistema ope-

racional Android) se copiaram tão completamente que seus apare-

lhos têm incrível semelhança em aparên-

cia, preço, velocidade e funcionalidades.

Apples, Googles e Microsofts do mun-

do se enfrentam atualmente em outro

campo de batalha: a corrida para o

melhor e mais sedutor ecossistema. Cada

uma está montando um imenso arquipé-

lago de produtos e serviços interconecta-

dos. São algemas de veludo para fazê-lo

abraçar suas ofertas e difi cultar ao máxi-

mo a mudança para o concorrente. Um

ecossistema típico inclui hardware (celu-

lar, tablet, laptop, relógio inteligente,

televisão), lojas on-line (música, fi lmes,

tevê, livros eletrônicos), sincronização de

seus dados em aparelhos (calendário,

favoritos, notas, fotografi as), armazena-

mento em nuvem (discos on-line gratui-

tos para arquivos) e sistemas de paga-

mentos (acene com o relógio ou celular

em vez de passar o cartão de crédito).

Ao consumidor cabe escolher que

pacote de produtos ele prefere. Mas para

as companhias a decisão é difícil: elas

devem abrir seus serviços para usuários

de produtos de seus con cor ren tes? Dei-

xar, digamos, um usuário de iPhone car-

regar um calendário Outlook ou alguém com uma pulseira inteli-

gente Microsoft Band sincronizar dados com um tablet Android.

Tornar seu software acessível fora de seu ecossistema pode, por

um lado, mostrar ao resto do mundo a superioridade de seus pro-

dutos e atrair novos consumidores. Em contrapartida, pode-se

perder o atrativo da exclusividade desses serviços. Por que alguém

mudaria se já pode ter o melhor que um concorrente oferece?

Que postura as gigantes estão adotando em relação aos seus

ecossistemas? Trata-se de uma cesta variada.

A Apple é a mais fechada. Em geral, desenvolve aplicativos ape-

nas para iPhones e iPads. Você não pode fazer uma chamada Face-

Time para um Android ou Windows Phone, por exemplo, ou exe-

cutar o Apple Maps nesses aparelhos (não que você fosse querer).

E não se pode usar o Apple Watch com nada a não ser um iPhone.

Você pode, no entanto, usar o iCloud (serviço de armazenamento e

sincronização de arquivos on-line da Apple) em um dispositivo

Windows, mas não em um que use o Android, da Google.

A Google se esforça para tornar seus produtos acessíveis em

outras plataformas. Se você tem um iPhone, pode usar aplicativos

Google (Gmail, Chrome, Google Maps), serviços (Docs, Sheets, Sli-

des) e mesmo lojas digitais (Books, Music Newsstand). Os serviços

e lojas também estão disponíveis para usuários de Mac, Windows

e Linux. Você pode até ligar um relógio

inteligente Android Wear a um iPhone.

Por fi m, a Microsoft, cujo Offi ce é

acessível a tudo que tenha tela, assim

como muitos de seus aplicativos móveis.

Por que essa inconsistência?

Os motivos corporativos individuais

ajudam a entender. Embora essas três

companhias ofereçam tantos dispositi-

vos e serviços similares (OK, quase idên-

ticos), cada uma, de fato, usa um modelo

de negócios completamente diferente. A

Apple está sobretudo no negócio de ven-

der hardware; Microsoft, software; Gog-

gle, publicidade. Cada uma considera

diferentes fatores ao calcular o que abrir.

E Apple e Google continuam se rami-

fi cando; ambas oferecem agora, acredi-

te, software para painel de instrumentos

de carros e sistema de automação

doméstica projetados para seus respec-

tivos smartphones. Seguramente a

Microsoft não fi cará muito atrás. A Sam-

sung ostenta seu próprio grupo de pro-

dutos competitivos e serviços interliga-

dos. E a Amazon – que já foi uma livraria

– agora produz telefones, tablets e tevês.

O rumo das coisas deve deixar você, consumidor, satisfeito. Tal-

vez incomodado com toda a duplicação de esforços, mas feliz que

haja concorrência, que sempre gera inovação (e, com frequência,

preços menores). E você deve fi car contente que a tendência seja,

aparentemente, de essas companhias tornarem mais serviços

acessíveis, não importa que celular ou computador você tenha.

No fi m, os ecossistemas poderão bem ser quase idênticos,

também. Talvez nesse ponto a questão volte a ser: “Que celular

eu devo ter?”.

Page 19: Scientific american brasil   janeiro 2016

mestre e doutor em física pela Universidade de São Paulo, onde é professor, tem trabalhado em áreas que incluem problemas relacionados ao tratamento estatístico de dados experimentais. Mais recentemente, tem se dedicado

OBSERVATÓRIO

www.sciam.com.br 19

Pingue-pongue e raios cósmicosAo rebater e impulsionar partículas, campos magnéticos funcionam como raquetes Otaviano Helene

Se os choques entre raquetes e bolinhas de pingue-pon-

gue fossem totalmente elásticos e a massa da raquete fosse

muito, muito maior que a da bolinha, ao rebater uma delas,

mandando-a de volta exatamente na mesma direção da qual

ela veio, sua velocidade seria igual àquela com a qual ela

chegou à raquete mais duas vezes a da própria raquete.

Os choques entre bolinhas de pingue-pongue e raquetes

não são, de fato, totalmente elásticos. Há uma pequena per-

da de energia mecânica nesse choque, no qual o coefi ciente

de restituição é da ordem de 0,9.

A massa da raquete (e daquilo que a segura) também não

é infi nitamente maior que a massa da bolinha, embora seja

muito maior, pois bolinhas de pingue-pongue têm menos

que 3 g. Por causa desses dois fatores, o ganho pela raqueta-

da não chega a dobrar a velocidade da raquete, mas chega

bem perto disso.

Depois de uma raquetada, uma bolinha de pingue-pon-

gue pode atingir, segundo publicações especializadas nesse

esporte, de 30 m/s a 40 m/s. Com essas velocidades, ela pode-

ria chegar até o adversário em cerca de um décimo de segun-

do ou pouco mais.

Entretanto, por causa da resistência do ar, a velocidade

da bolinha é reduzida para a metade a cada cerca de meio

segundo. Assim, o tempo entre uma raquetada e a seguinte,

dada pelo adversário, varia de 0,5 s a 1,0 s, dependendo, cla-

ro, de quão afastados da mesa estão os jogadores.

No tênis, a situação é similar. A cada raquetada, supondo

um choque totalmente elástico entre a bolinha e a raquete e

que a massa da raquete (mais mão e braço do atleta) seja

bem maior que a da bola, esta adquire, após ser rebatida,

velocidade igual à sua inicial mais duas vezes a da raquete.

Como no pingue-pongue, a resistência do ar reduz a veloci-

dade da bolinha.

Se não houvesse o ar, as velocidades das bolinhas de tênis

e de pingue-pongue aumentariam indefi nidamente a cada

rebatida. Se as bolinhas e raquetes fossem infi nitamente

resistentes e os jogadores infi nitamente hábeis e rápidos, as

bolinhas atingiriam velocidades relativísticas e não conse-

guíramos analisar a situação usando apenas as equações de

Newton, precisando das equações relativísticas.

Vários esportes têm batidas de coisas contra bolas e pete-

cas, como o badminton, a pelota basca, o golfe, o beisebol,

entre outros. Em todos esses esportes, o efeito físico de

transferência de velocidade para a bola é similar à do tênis e

do tênis de mesa. E, claro, se a bola estiver parada, ela é lan-

çada com o dobro da velocidade daquilo que a atingiu – des-

de que sua massa seja bem pequena e o choque seja elástico.

Pancadas são formas efi cientes de transferir energia para

bolas, petecas e outras coisas. E é mais ou menos isso que,

possivelmente, também ocorre com alguns raios cósmicos

ultraenergéticos. Neste caso, as coisas rebatidas não são

bolinhas, mas, sim, núcleos atômicos, como núcleos de ferro

ou hidrogênio, e no lugar das raquetes, as coisas que batem

são campos magnéticos, como aqueles criados por explosões

de supernovas, por exemplo.

Esses campos magnéticos funcionam como raquetes ou,

no jargão dos físicos, como espelhos magnéticos, já que

“refl etem” as partículas: os raios cósmicos são rebatidos por

esses campos magnéticos, ganhando velocidade a cada vez

que isso ocorre.

Como os raios cósmicos viajam por regiões do Universo

onde não há nada que os possa frear, eles ganham energia a

cada encontro com os campos magnéticos, diferentemente

do que acontece nos esportes aqui na Terra, onde o ar freia

as bolas. Como essas raquetadas podem se repetir inúmeras

vezes durante as longuíssimas viagens que essas partículas

fazem, elas acabam por atingir velocidades e energias

altíssimas.

A energia cinética de algumas dessas partículas, apesar

de suas massas extremamente pequenas, pode ser compará-

vel à de uma bolinha de pingue-pongue. (Para somar uma

massa equivalente àquela de uma bolinha de pingue-pongue

seriam necessários núcleos de ferro em quantidade de apro-

ximadamente dez elevado à vigésima terceira potência.)

Sabemos bem de onde vêm as bolinhas de tênis ou de pin-

gue-pongue (embora vez ou outra não saibamos bem para

onde elas foram).

Quanto aos raios cósmicos, uma questão é saber de onde

eles vêm. Outra questão é saber, detalhadamente, o processo

pelo qual ganham tanta energia, inclusive porque algumas

partículas têm energias mais elevadas do que o processo de

raquetadas por campos magnéticos permite estimar.

Para responder a essas e outras questões, vários grupos

de pesquisa pelo mundo afora estudam os raios cósmicos

ultraenergéticos. A maior instalação construída com esse

propósito, o Observatório de Raios Cósmicos Pierre Auger,

está instalado em Mendoza, na Argentina. Essa colaboração

conta com a participação de pesquisadores de vários países,

inclusive do Brasil.

Page 20: Scientific american brasil   janeiro 2016

DESAFIOS DO COSMOS

20 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016

é jornalista de ciência especializado em astronomia e astronáutica. É autor de oito livros, dentre eles Rumo ao

e .

Civilizações superdiscretasSe houver vida inteligente fora da Terra, talvez seus sinais sejam muito recatados Salvador Nogueira

Os últimos meses foram tomados por um frisson quando pes-

quisadores envolvidos com o projeto de ciência-cidadã Planet

Hunters encontraram, em meio aos dados do satélite Kepler, uma

estrela que sofre apagões signifi cativos sem periodicidade defi ni-

da. Em certos momentos, o brilho dela chega a cair para menos de

80% do normal.

Ordinariamente, o Kepler detecta planetas em torno de estre-

las quando eles passam à frente delas, obstruindo parcialmente

sua luz. Mas nenhum planeta seria capaz de bloquear um quinto

do total da luz de sua estrela-mãe. Algo muito estranho estava

acontecendo no jovem astro conhecido como KIC 8462852.

A astrônoma Tabetha Boyajian, da Universidade Yale, nos

Estados Unidos, coordenou a primeira análise do fenômeno e

aventou, em artigo publicado nos Monthly Notices of the Royal

Astronomical Society, que a explicação mais provável para o

apagão fosse a passagem de uma família de cometas destroça-

dos pela frente da estrela. Isso, contudo, não impediu que seu

colega Jason Wright, da Universidade Estadual da Pensilvânia,

sugerisse uma explicação mais arrojada – uma gigante obra de

engenharia espacial conduzida por uma civilização alienígena.

Wright estava se referindo a uma ideia proposta pela pri-

meira vez nos círculos científi cos pelo físico britânico Freeman

Dyson, em 1960. Ele

indicou que uma civi-

lização avançada com

muita “fome” de ener-

gia poderia construir

uma efetiva cápsula

em torno de sua estre-

la — de forma a colher

100% da radiação emi-

tida por ela.

No caso de KIC

8462852, como ora

vemos a estrela, é

fortemente bloqueada,

poderíamos imaginar

uma esfera parcial.

Mas observações pos-

teriores conduzidas pelo Instituto SETI com o Allen Telescope

Array não detectaram nenhuma transmissão artifi cial, e um

estudo subsequente coordenado por Massimo Marengo, da Uni-

versidade Estadual de Iowa, com o telescópio espacial Spitzer,

confi rmou que a obstrução da luz pela destruição de uma família

de cometas era mesmo a explicação mais razoável. Nada de

supercivilização alienígena em ação.

Mais do que falar algo sobre a existência de vida inteligente no

Universo, o episódio realça como cultivamos ideias retrógradas

sobre o que signifi ca ser uma civilização avançada. Em 1964, o

astrônomo soviético Nikolai Kardashev imaginou que pudés-

semos classifi car a evolução de sociedades cósmicas com base no

seu consumo de energia. Aquelas capazes de usar o equivalente ao

total de radiação incidente em seu planeta seriam do tipo I. Já as

que lançassem mão da energia total produzida por sua estrela (as

potenciais construtoras de esferas Dyson) seriam de tipo II. Indo

mais longe, civilizações capazes de consumir uma fração signifi ca-

tiva do total de energia de uma galáxia inteira seriam do tipo III.

A premissa é que civilizações progridem necessariamente para

consumir cada vez mais energia. Afi nal de contas, foi exatamente

isso que aconteceu com a humanidade até agora. Contudo, ainda

que a passo de tartaruga, a mentalidade por essas bandas parece

estar mudando. A noção de um futuro recheado de energia abun-

dante está sendo gradualmente trocada por um amanhã de sus-

tentabilidade e efi ciência energética, onde se faz mais com menos.

Convenhamos, nossa progressão rumo ao tipo I na escala Kar-

dashev (seríamos no momento algo como tipo 0,7) veio à custa da

mudança climática e da degradação do ambiente. Seria uma péssi-

ma ideia continuar nessa trajetória de consumo desmedido.

Um caminho alternativo que parece mais razoável, diante do

que estamos fazendo com a Terra, é o aventado por Amâncio Fria-

ça, astrônomo da Universidade de São Paulo. Ele aposta que o con-

sumo energético das

civilizações atinja um

pico e depois comece a

cair, conforme elas

apren dem as limitações

ambientais dos planetas

que ocupam e avançam

na direção da sustenta-

bilidade. Ao fi m das

contas, civilizações mui-

to avançadas seriam

ainda mais discretas do

que nós mesmos – o que

pode ajudar a explicar

por que é tão difícil

encontrar qualquer

si nal delas por aí. NAS

A/JP

L-CA

LTEC

H

Concepção artística do sistema KIC 8462852. Apagão da estrela foi associado a possível

Page 21: Scientific american brasil   janeiro 2016

CÉU DO MÊSJANEIRO

www.sciam.com.br 21

Cometa vem comchuva de meteorosCatalina atinge brilho máximo e se exibe naconstelação do Boieiro, antes de se esconder

O mês de janeiro marca o momento de máxima aproximação

do cometa Catalina (2013 US10), mas em posição desfavorável

para observadores do Hemisfério Sul. Ainda assim, é possível

tentar vê-lo se você estiver disposto a madrugar. O pico de brilho

deve ser atingido no dia 4, quando o cometa terá magnitude 4,8,

ou seja, visível a olho nu – mas apenas em céus livres de poluição

luminosa. Cruzando acima do horizonte depois das 3h, na cons-

telação do Boieiro (Boötes), na direção norte, ele permanecerá

visível, mas nunca muito alto no céu, até o amanhecer.

No mesmo dia, teremos o máximo da chuva de meteoros

Quadrantídeos, que também tem seu radiante na mesma região

do céu. O nome é derivado de uma antiga constelação criada

em 1795 pelo astrônomo francês Jérôme Lalande, o Quadrante,

depois descartada pela União Astronômica Internacional. Hoje,

no mapa das constelações, aquela região pertence à do Boieiro.

A origem das Quadrantídeas foi atribuída pelo astrônomo

Peter Jenniskens ao asteroide 2003 EH1, que completa uma volta

em torno do Sol a cada 5,5 anos e provavelmente é um cometa

extinto – um astro que já esgotou seu material volátil após múlti-

plas passagens pelas redondezas do Sol. Uma peculiaridade dessa

chuva é que seu pico de atividade é bem rápido: se dá em apenas

algumas horas, durante as quais o número de meteoros rivaliza

com o de chuvas famosas, como as Perseidas e os Geminídeos.

Agora, quem não pode madrugar e procura atrações celestes

nas primeiras horas da noite poderá se deleitar em janeiro com

um passeio pela constelação de Órion, que estará no alto do céu

logo após o pôr do sol durante o mês. Trata-se de um dos mais

famosos conjuntos de estrelas, facilmente reconhecível pelas

“Três Marias”, que compõem o cinturão do caçador Órion.

Aliás, a estrela mais a oeste desse trio, Delta Orionis, na ver-

dade é ela mesma um grupo estelar, com cinco membros – duas

estrelas solitárias e um astro trinário composto por outras três

estrelas. Um estudo recente feito com obser-

vações do Telescópio Espacial Chandra de

Raios X, da Nasa, revelou detalhes da

dinâmica desse sistema complexo.

Ao norte das Três Marias, você há de

notar uma estrela brilhante e avermelhada –

Alfa Orionis, ou, como é mais conhecida,

Betelgeuse. Trata-se de uma supergigante

vermelha, um astro muito mais massivo que

o Sol e no fi m de sua vida útil. Localizada a

640 anos-luz daqui, ela deve detonar como

uma supernova em breve – mas esse “em

breve” é na escala astronômica, ou seja, em

algum ponto do próximo milhão de anos.

Por fi m, ao sul das Três Marias, você pode

encontrar uma suave mancha difusa, visível

a olho nu – a famosa nebulosa de Órion, um

berçário estelar a 1.500 anos-luz da Terra.

Com telescópios amadores, trata-se de uma

das mais magnífi cas visões que se pode ter.

Bons céus a todos! (S.N.)NEW

TON

CESA

RFL

ORÊ

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OQUER VER SUA ASTROFOTOGRAFIA NA SCIAM? ESCREVA PARA

[email protected] fotos precisam ser em alta resolução, com no mínimo 300 dpi, para serem publicadas.

ASTROFOTOGRAFIA

Newton Cesar Florêncio, astrofotógrafo de Londrina (PR), registra a nebulosa escura Cabeça de Cavalo (Barnard 33) e sua vizinha mais famosa, a nebulosa de Órion (M42). Imagem é

Page 22: Scientific american brasil   janeiro 2016

Passagem da Terra pelo Periélio

Máximo da chuva de meteoros quadrantídeos (Böotes - Boie

Máxima brilho do Cometa C/2013 US10 (Catalina) com a Terr

Conjunção inferior de Mercúrio.

Máxima aproximação do Cometa C/2013 US10 (Catalina) com

DESTAQUES DO MÊS

VISIBILIDADE DOS PLANETAS

Em Capricórnio e depois Sagitário. Visível ao anoitecer, cada dia mais baixo, na direção do por do Sol. Em conjunção inferior com o Sol em 14. Volta a ser visível pela

Visível ao amanhecer na direção do nascer do Sol. Primeiro

Vênus em 9.

Visível na madrugada, a leste do meridiano, primeiramente na direção da constelação de Virgem e depois Libra. Próximo da Lua em 3.

Visível durante toda a noite entre as estrelas da constelação de Leão. Perto da Lua em 27.

em 7. Em conjunção com Vênus em 9.

Em Peixes. Visível no início da noite, logo após o por do Sol, a oeste do meridiano.

Visível ao por do Sol, a oeste, em Aquário. Próximo da Lua em 13.

N

O

22 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016

Page 23: Scientific american brasil   janeiro 2016

Sagitário de 18/12/2015 à 20/01/2016

Capricórnio de 20/01/2016 à 16/02/2016

* O limite das constelações foi estabelecido pela União AstronômicaInternacional em 1930, o que permite estabelecer, com grande precisão, oinstante de entrada e saída do Sol de cada uma das 13 constelações que sãoatravessadas pela trajetória anual aparente do Sol, a eclíptica.

A carta celeste anexa corresponde à projeção das estrelasvisíveis na latitude de 23°27’ Sul (Trópico de Capricórnio) às21h do dia 15 de JANEIRO. Exceto pela posição dos planetas,

a mesma também corresponde à projeção do céuaproximadamente às 22h no início do mês e às 20

vigorando o Horário de Verão.

DIA HORA* EVENTO

2 02h31 Lua quarto minguante.

2 08h46 Lua no apogeu, maior distância à Terra. Dis-tância 404.302 km. Diâmetro aparente 29,9’.

2 17h24 Terra passa pelo periélio, menor distância ao Sol - 147,1 milhões de quilômetros.

2 22h57 Lua passa a 5,3°N a estrela Spica (Alfa de Virgem).

3 16h43 Lua passa a 1,8°N de Marte.

4 --- Máximo da chuva de meteoros quadrantídeos (Böotes)

4 17h51 Cometa C/2013 US10 (Catalina) exibe seu brilho máximo, 4,8 magnitudes.

6 02h15 Melhor ocasião para visualizar o brilho da

falcada (luz cinérea). O horário refere-se ao nascer da Lua em São Paulo, sem contar o horário de verão.

7 00h28 Lua passa a 3,9°N de Saturno (conjunção).

9 00h59 Vênus a 0,1°N de Saturno.

9 22h31 Lua nova.

12 18h40 Melhor ocasião para visualizar o brilho da Terra

(luz cinérea). O horário refere-se ao por do Sol em São Paulo, sem contar o horário de verão.

13 10h12 Lua passa por Netuno.

14 10h59 Mercúrio em conjunção inferior com o Sol – planeta entre o Sol e a Terra.

14 21h11 Lua no perigeu, menor distância à Terra. Dis-tância 369.656 km. Diâmetro aparente 32,4’.

16 03h52 Lua passa por Urano.

16 20h27 Lua quarto crescente.

17 02h09 Cometa C/2013 US10 (Catalina) mais próximo da Terra. 108,44 milhões de quilômetros.

19 04h01 Lua a 8,6°S do aglomerado estelar de Plêiades (Messier 45).

20 00h44 Lua passa a 1,1°N da estrela Aldebaran (Alfa de Touro).

23 22h46 Lua cheia.

24 09h16 Lua passa a 4,9°S do aglomerado estelar de Praesepe (Messier 44).

26 02h36 Lua passa a 2,1°S da estrela Regulus (Alfa de Leão).

27 20h34 Lua passa a 0,8°S de Júpiter (conjunção).

30 06h03 Lua no apogeu, maior distância à Terra. Dis-tância 404.583 km. Diâmetro aparente 29,9’.

30 10h20 Lua passa a 5,0°N a estrela Spica (Alfa de Virgem).(*) No horário de verão some uma hora

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Page 25: Scientific american brasil   janeiro 2016

QUE MUDARÃOOMUNDO

IDEIAS

201510 grandes avanços que irão melhorar a vida, transformar a computação e talvez até salvar o planeta

Em 1878, Thomas Edison recorreu às páginas de Scientifi c American para esclarecer

algumas concepções equivocadas sobre uma nova invenção sua: o fonógrafo. Setenta anos

mais tarde, um de nossos correspondentes escreveu sobre um substituto para o tubo a

vácuo, um dispositivo que poderia resultar em “aparelhos auditivos menores, rádios por-

táteis realmente pequenos [e] componentes eletrônicos mais compactos para aeronaves”.

A nova invenção chamava-se transístor. Para comemorar seu aniversário de 170 anos, a

Scientifi c American selecionou 10 dos maiores avanços de 2015. Talvez alguns deles entrem

na coletânea dos maiores sucessos daqui a 170 anos. – Os editores

I N OVA Ç Ã O

Ilustrações de Tavis Coburn www.sciam.com.br 25

Page 26: Scientific american brasil   janeiro 2016

26 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016

Máquinas controladas pelos olhos

No início deste ano, Erik Sorto, um tetra-plégico, usou seus pensamentos para guiar um braço robótico a levar uma cerveja até seus lábios. O problema dessa façanha impressionante é que sua tecnologia, um chip repleto de eletrodos implantado no cérebro, é cara e invasiva, e muitas vezes requer meses de treinamento. Pior, poucas

e físico exigido pela técnica.Em vez de criar uma ligação direta entre

a atividade elétrica do cérebro e máquinas, Aldo Faisal, professor associado de neuro-tecnologia no Imperial College de Londres, quer usar movimentos oculares para contro-lar cadeiras de rodas, computadores e jogos de videogame. Ele e seus colegas construí-ram óculos especiais que registram os movi-mentos dos olhos do usuário e transmitem

esses dados para um computador. Em seguida, um software traduz essas informa-ções em comandos para máquinas. Quase qualquer pessoa pode usar a tecnologia, inclusive amputados, tetraplégicos e aqueles que sofrem de Parkinson, esclerose múltipla

menos de US$ 50. Em uma exposição de ciências, a maioria de milhares de voluntá-

bem após 15 segundos para jogar o video-game Pong, sem necessidade de instruções.

Baseando-se em 70 anos de pesquisas sobre a neurociência de movimentos ocula-res, Faisal e seus colegas escreveram algorit-mos que transformam um olhar em um comando para uma cadeira de rodas, uma piscada em um clique do mouse, ou o movi-mento rápido de uma pupila [contração ou

dilatação] em uma guinada de um game paddle, ou joystick, o dispositivo de controle de jogos. Para prever intenção, os algorit-mos dependem de treinamento com dados do mundo real, adquiridos através do regis-tro dos movimentos oculares de voluntários enquanto eles dirigiam uma cadeira de rodas com um joystick ou operavam um braço robótico. Gradativamente, o software aprendeu a diferenciar entre, por exemplo, o jeito como as pessoas olham para um copo quando estão avaliando seu conteúdo e quando querem pegá-lo para dar um gole.

Antes que Faisal possa comercializar quaisquer dispositivos médicos baseados na

para ensaios clínicos. Enquanto isso, um sub-sídio de 4 milhões de euros da União Euro-peia apoiará seu grupo enquanto este desenvolve exoesqueletos robóticos que pessoas paraplégicas poderiam controlar utilizando o software de monitoramento ocular que criou. —Rachel Nuwer

IDEIAS QUE MUDARÃO O MUNDO

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www.sciam.com.br 27Ilustração de Don Foley

downrange

Foguetes a micro-ondas Modelo de baixo custo pode impulsionar exploração espacial

Há mais de 50 anos, cerca de 90% do peso dos foguetes usados para atingir a órbita terrestre é constituído de combustível e material de propulsão, deixando pouco espaço para cargas. Se fosse possível dimi-nuir esse peso, se reduziriam também os custos de programas espaciais.

Em 1924, o cientista russo Konstantin Tsiolkovsky expôs um jeito para fazer isso acontecer ao sugerir que raios de micro-on-das disparados por transmissores baseados em terra poderiam fornecer a energia necessária para a subida de um foguete. Tsiolkovsky propôs usar espelhos parabóli-cos para apontar “um feixe paralelo de raios eletromagnéticos de curto comprimento de onda” para a “barriga”, ou parte de baixo, de um foguete, aquecendo o material de pro-pulsão para produzir empuxo sem a neces-sidade de grandes quantidades de combus-

mente alcançou a visão de Tsiolkovsky. Os

de micro-ondas por emissão estimulada de radiação) foram inventados na década de 1950, mas foi só após surgirem geradores melhores e mais acessíveis, chamados giro-trons, eles conseguiram atingir níveis de energia em escala megawatt necessários para lançamentos espaciais. Recentes avan-ços em baterias e outros sistemas de arma-zenamento de energia também possibilita-

grandes sem sobrecarregar a rede elétrica.Kevin Parkin comandou um estudo pio-

neiro sobre esse conceito em 2012, no Insti-tuto de Tecnologia da Califórnia (Caltech). Baseada em parte no trabalho de Parkin, a empresa Escape Dynamics está realizando testes para desenvolver um sistema reutili-zável, acionado por micro-ondas, que pode-ria levar satélites, e, futuramente talvez até humanos ao espaço. Em julho a Nasa adi-cionou a tecnologia de foguetes impulsio-nados por radiação ao seu roteiro para o desenvolvimento de tecnologia futura.

— Lee Billings

1

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downrange

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Cerca de 90% do peso de foguetes é formado por combustível e materiais de propulsão

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28 Scientific American Brasil | Janeiro 2016

SCIE

NCE

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URCE

(víru

s)

Arrasto de víruscom quase 100% de precisão

infecção, médicos geralmente usam a rea-ção em cadeia da polimerase (PCR), que“amplia” fragmentos de DNA em uma

dada. Mas a técnica exige do médico teralguma previsão de quais vírus procurar.

Em setembro passado, uma equipe da Universidade Columbia, em Nova York, criou um método para eliminar essas suposições, detectando todos os vírus em

nal com precisão de quase 100%. O méto-do permite fazer 21 análises simultâneas em menos de 48 horas a um custo esti-mado de apenas US$ 200 por amostra. Além disso, a técnica também detecta

sejam pelo menos 40% idênticos aos conhecidos. “Quando alguém vai a um pronto-socorro e é submetido a todos os tipos de exames, isso custa milhares de dólares”, observa W. Ian Lipkin, professor de epidemiologia na Escola Mailman de Saúde Pública da universidade. “Esse método é muito barato e nos permite per-sonalizar a medicina ao lhe dizer exata-mente o que você tem.”

Lipkin e seus colegas criaram primeira-mente um banco de dados de mais de mil

vírus de vertebrados. Em seguida, sinteti-zaram sondas genéticas para combinar com todas as cepas de todos os vírus —

to DNA de 25 a 50 nanômetros. Quando uma sonda encontra um vírus correspon-dente, ela se liga a ele. Para extrair esses vírus, técnicos adicionam “pérolas” mag-néticas que medem de um a três mícrons de diâmetro à mistura; um ligante quími-co então liga essas “pérolas” ou grânulos às sondas genéticas e vírus que captura-

ram. Depois disso, os pesquisadores põem tubo com a mistura em um suporte mag-nético, que atrai as sondas para as paredes do tubo. Depois de isolar e lavar os con-juntos sonda-pérola-vírus, eles sequen-ciam geneticamente os vírus, eliminando o risco de falsos positivos. Lipkin e seu grupo agora procuram formar uma parce-ria comercial para distribuir a tecnologia a hospitais e clínicas. Eles também planejam adicionar sondas para todas as bactérias e fungos infecciosos conhecidos. — R.N.

Ilustração de Don Foley

O H1N1 INFLUENZA é um de muitos vírus detectados por um único novo teste inédito.

Sondas cerebraisDispositivos eletrônicos macios podem impulsionar a neurociência

Para desvendar os mistérios do cérebro, cientistas precisam monitorar neurônios delica-da e em objetos de estudos vivos. Mas, em termos gerais, sondas cerebrais têm sido ins-trumentos de força bruta. Uma equipe na Universidade Harvard, liderada pelo químico

Charles Lieber, espera que implantes de malhas de polímeros, macias como seda e

cheia de sensores eletrônicos incrustados, em camundongos vivos. Uma vez que tenha provado ser segura, ela poderia ser utilizada em pessoas para estudar como

a cognição brota da ação de neurônios individuais e para tratar de doenças como Parkinson. —Seth Fletcher

amarelo

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(vermelho)

IDEIAS QUE MUDARÃO O MUNDO

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www.sciam.com.br 29

CORT

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FUS

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Fusão encolhe para crescerApós décadas de lento progresso e investimentos pesados, alguns grupos de pesquisa de energia estão mudando sua estratégia

Defensores da energia de fusão podem ser acusados de serem excessivamente oti-mistas, mas jamais de pensar “pequeno”. A fusão ocorre quando dois átomos se fundem para, juntos, formarem um terceiro, conver-tendo matéria em energia. Esse é o processo que alimenta o Sol, e os principais projetos do mundo da fusão são igualmente grandes e grandiosos. Um consórcio de sete países está construindo na França o Reator Termo-nuclear Experimental Internacional (ITER, na sigla em inglês). Seu reator de US$ 21 bilhões em forma de “rosquinha” usará mag-netos supercondutores para criar plasma

a fusão. Quando concluído, o ITER pesará 23 mil toneladas, três vezes o peso da Torre Eif-fel, em Paris. Seu principal concorrente, a National Ignition Facility (NIF), do Laborató-rio Nacional Lawrence Livermore, na Cali-fórnia, é igualmente complexo: ele dispara

192 lasers contra uma pequena “bola” de combustível, até esta ser submetida a tem-peraturas de 50 milhões de graus Celsius e pressões de 150 bilhões de atmosferas.

Apesar de tudo isso, uma usina de ener-gia por fusão operacional, baseada nas tec-nologias do ITER ou da NIF, continua a décadas de distância. Uma nova safra de pesquisadores está seguindo uma estratégia diferente: encolher em vez de expandir. Em 2015, a ARPA-E, a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada–Energia dos EUA, inves-tiu quase US$ 30 milhões em nove projetos menores visando uma fusão acessível atra-vés do programa Aceleração de Plasma com Aquecimento e Montagem de Baixo Custo (Alpha, na sigla em inglês). Um proje-to representativo, executado pela empresa Magneto-Inertial Fusion Technologies, de Tustin, na Califórnia, está sendo concebido para atingir um plasma com uma corrente

para induzir a fusão. A abordagem tem pedi-gree: cientistas do Laboratório Nacional de Los Alamos empregaram esse efeito em 1958 para criar a primeira reação de fusão sustentada em um laboratório.

Empresas não afiliadas ao projeto Alpha também estão nessa corrida. A General Fusion, no Canadá, construiu um dispositivo que usa ondas de choque que se propagam por metal líquido para induzir fusão. A Tri Alpha Energy está construindo um reator de 23 metros de comprimento que dispara par-tículas carregadas umas contra as outras. E a gigante da defesa Lockheed Martin diz que terá um reator de fusão magnética do tama-nho de um contêiner de transporte que será comercialmente disponível em uma década.

O histórico da fusão sugere que esses projetos devem ser vistos com ceticismo. Mas, se qualquer uma dessas abordagens conseguir produzir energia limpa e abun-dante, sem resíduos radioativos, ela poderia resolver males que vão da pobreza energéti-ca a mudanças climáticas com uma única inovação. —David Biello

PROTÓTIPOem uma esfera central.

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30 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016

Segurança para transgênicosInterruptor genético pode evitar contaminação ambiental

Números incalculáveis de bactérias Escherichia coliproduzem pelo mundo coisas úteis como insulina medicinal, polímeros sintéticos e suplementos alimentares. Após cumprirem seus papéis, elas são descartadas como resí-duo industrial ou reusadas como fertilizante.

Esse descarte atualmente constitui pou-co risco ambiental, pois a E. coli transgênica é fraca comparada a suas primas selvagens e não sobreviveria por muito tempo fora do laboratório. Mas e se no futuro bactérias transgênicas mais resistentes forem libera-das por acidente? Ou se elas compartilha-

tência a antibióticos, por trans ferência horizontal de genes? Ou se uma empresa

dos no DNA de uma bactéria patenteada?

temas de segurança à prova de falhas.Em 2009, Brian Caliando, bioengenheiro

à época na Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF), começou a trabalhar em uma forma de garantir a destruição do

bactéria antes de ela escapar ou ser rouba-da. Ele havia lido recentemente sobre o método CRISPR [sigla, em inglês, de repeti-ções palindrômicas curtas agrupadas e regularmente interespaçadas], uma defesa que bactérias usam para picotar e destruir o DNA de vírus invasores, e percebeu que poderia usá-lo como um “interruptor assas-sino” embutido em bactérias transgênicas.

Primeiro na UCSF e depois no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Caliando desenvolveu o DNAi, um sistema

baseado em CRISPR que leva bactérias a

programou plasmídeos, pequenos círculos de DNA que se replicam autonomamente

formam o interruptor. Em seguida, ele inse-riu esses plasmídeos em E. coli genetica-

e infectaram as bactérias com seus progra-mas mortais. A adição do açúcar chamado arabinose à cuba de cultura aciona o inter-

ruptor matador, e o dispositivo DNAi come-

O trabalho de Caliando foi publicado em Nature Communications, em 2015. Os mes-mos princípios poderiam ser adaptados para funcionar em diversos organismos e condi-ções. O DNAi poderia, por exemplo, impe-dir a polinização cruzada entre organismos

lavouras, ou campos próximos, sugere Caliando. — Jennifer Abbasi

ainda não inventados, podem ir parar onde são indesejados. Cientistas desenvolvem sistemas para evitar contingências desse tipo

IDEIAS QUE MUDARÃO O MUNDO

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www.sciam.com.br 31Ilustração de Don Foley

(acima)

(à direita):

Termoaspirador Espelho versátil absorve calor e o irradia para o espaço exterior

Aparelhos de ar-condicionado respon-dem por quase 15% do consumo energético de edifícios nos EUA. O número de dias com calor recorde pode aumentar muito nas próximas décadas. Como arrefecer nossas casas e locais de trabalho e, ao mesmo tem-po, reduzir o consumo de energia?

Para pesquisadores da Universidade de Stanford, parte da solução é um espelho que absorve o calor de edifícios banhados pelo Sol e o irradia para o espaço sideral. O con-ceito básico, conhecido como resfriamento radiativo, se originou na década de 1980, quando engenheiros descobriram que cer-tos tipos de coberturas de metal pintado “extraíam” calor de edifícios e o irradiavam

em comprimentos de onda que passam livres pela atmosfera. Mas o processo nunca funcionou durante o dia, pois ninguém tinha feito um material que irradiasse energia tér-

Em ensaios sobre o telhado de seu labo-ratório, a equipe de Stanford testou seu dis-positivo, feito de camadas de dióxido de háf-nio e dióxido de silício sobre uma base de

solar. Os átomos de dióxido de silício se comportam como pequenas antenas que absorvem calor do ar de um lado do painel e emitem radiação térmica do outro. O mate-rial irradia principalmente em comprimen-tos de onda entre oito e 13 nanômetros. Como a atmosfera da Terra é transparente a esses comprimentos de onda, em vez de aquecer o ar ao redor do prédio, o calor escapa para o espaço. Mesmo exposto à luz solar direta, a temperatura da “bolacha” de 20 centímetros de diâmetro do grupo é cer-

ca de 5oC mais baixa que a do ar.Shanhui Fan, engenheiro elétrico de

Stanford e autor sênior de um artigo de 2014, publicado em Nature, descrevendo o trabalho, imagina que painéis desse material poderiam cobrir edifícios. Com seu telhado expelindo continuamente calor, o ar-condi-cionado de um prédio poderia funcionar a uma taxa mais módica e consumir menos energia. Outras aplicações também seriam possíveis. Remover o componente espelho e combinar o material com células solares, por exemplo, poderia arrefecer as células foto-voltaicas, permitindo, ao mesmo tempo, que

cientes. “É muito interessante pensar sobre como seria possível acessar esse enorme recurso termodinâmico que o Universo representa como um sumidouro de calor”, comenta Fan. “Realmente só estamos muito no começo do reconhecimento dessa fonte de energia renovável subexplorada.” — R.N.

(cinza)(preto)

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32 Scientific American Brasil | Janeiro 2016

Máquinas autodidatasTecnologia de aprendizado profundo ajuda inteligência

A Google, o Facebook e outros gigantes corporativos estão dando importantes pas-sos na construção de tecnologia capaz de aprender por conta própria. Seus esforços dependem fortemente de algo conhecido como aprendizado profundo.

Enraizadas na ideia existente há décadas de que computadores seriam mais inteli-gentes se operassem mais como o cérebro humano, as redes de aprendizado profundo consistem em camadas sobrepostas de uni-dades de processamento conectadas, cada uma das quais executa uma operação dife-

As redes de aprendizado profundo têm mui-to mais camadas que as neurais convencio-nais. Quanto mais profunda é a rede, mais camadas ela tem e mais elevado é o nível de abstração em que ela é capaz de operar.

O aprendizado profundo ganhou impul-so em meados dos anos 2000 com o traba-

Toronto, Yoshua Bengio, da Universidade de Montreal, e Yann LeCun, da Universidade de Nova York. Mas só recentemente a tecnolo-gia começou a fazer incursões comerciais. Um exemplo disso é o Google Fotos, lança-do em maio. O software é capaz de carregar

minimizadas. Ele consegue fazer isso porque aprendeu a reconhecer rostos com a exposi-

ção a milhões de imagens analisadas pelo sistema. Uma vez que tenha treinado em

narizes e as bocas de pessoas individuais em imagens que nunca viu antes.

O aprendizado profundo pode fazer mui-to mais que organizar fotos. Ele pode mar-

que exibe comportamentos praticamente indistinguíveis dos de humanos. Em feverei-ro, a DeepMind (comprada pela Google em 2014 por US$ 617 milhões), sediada em Lon-dres, informou ter usado o aprendizado pro-fundo para construir um computador auto-didata, capaz de ensinar a si mesmo a jogar dezenas devideogames da empresa Atari. Após muita prática, o software teria vencido humanos peritos nesses jogos. O passo é pequeno, mas a era das máquinas tem de começar em algum lugar. — Gary Stix

IDEIAS QUE MUDARÃO O MUNDO

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www.sciam.com.br 33Ilustração de Don Foley

Câmera

Visão em curvaFótons ajudam a captar imagens além do campo visual

Se câmeras“enxergassem”em ângulo, elas poderiam alertar motoristas paraperigos após uma curva, ajudar bombeiros a vasculhar prédios em chamas e permitira cirurgiões visualizar áreas de difícil alcance no interior do corpo. Há alguns anos,pesquisadores do Media Lab, no MIT, construíram um protótipo precoce e caro, que

software memorizava o tempo de chegada de cada fóton, calculava distâncias e

tecnologia.Agora ela consegue registrar objetos em movimento. Um LED e um sen-— Larry Greenemeier

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Química em câmera lentaSimulações computadorizadas e espectroscopia no infravermelho revelam o mundo oculto das reações em líquidos

As ligações de hidrogênio de nosso DNA

parte da química ambiental de nosso plane-ta ocorre nas águas. A maioria das drogas é sintetizada em solventes. No entanto, quí-micos em geral só estudam a mecânica liga-ção a ligação na fase gasosa, em que as moléculas são relativamente esparsas e fáceis de rastrear. Em um líquido há mais moléculas e mais colisões entre elas, com reações rápidas, confusas e complicadas. O processo a ser observado parecerá um bor-rão indistinto, a menos que se possam tirar fotos instantâneas da reação em poucos tri-lionésimos de um segundo.

Andrew Orr-Ewing, da Universidade de Bristol, na Inglaterra, usa lasers para estudar reações químicas. Ele sabia que reações em líquido catalisadas por calor criam vibrações que podem ser observadas no espectro infravermelho. Em experimentos conduzi-dos de 2012 a 2014, ele e o então estudante de doutorado Greg Dunning dispararam um pulso ultravioleta ultrarrápido contra molé-

vente chamado acetonitrila, ou cianeto de metila. O pulso de laser desbastou, como um bisturi, átomos de flúor altamente reati-vos que, por sua vez, roubaram átomos de deutério das moléculas do solvente, forman-

que as reveladoras vibrações de infraverme-lho apareceram e sumiram após o primeiro pulso de laser, revelou a rapidez com que as ligações entre átomos se formavam e com que velocidade a reação atingia equilíbrio.

Os experimentos foram uma prova de conceito para observar os detalhes, em fra-ções de segundo, de reações em líquidos.

cas, a maioria dos químicos usa simulações computadorizadas em vez de detectores e lasers caros. Para eles, David Glowacki e Jeremy Harvey, também de Bristol, dese-nharam um software de simulação que pre-

viu os resultados dos experimentos com um nível extraordinário de precisão.

“Podemos usar essas simulações para investigar mais profundamente o que está acontecendo, pois elas nos dão informações mais precisas do que as que podemos obter dos experimentos”, explica Orr-Ewing.

Em conjunto, os experimentos e as simu-lações fornecem os melhores insights até

agora de como uma reação química realmente acontece em um líquido. Desen-volvedores de novas tecnologias já estão começando a incorporar métodos da equipe em simulações computadorizadas para uso acadêmico e industrial, que poderiam bene-

de doenças, desenvolvimento de medica-mentos e estudos ecológicos. — J. A.

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Microscopia Eletrônica de Varredura/CBEI

M E I O A M B I E N T E

O invasor

Arthur C. Almeida, Newton P. U. Barbosa, Fabiano A. Silva,

Jacqueline A. Ferreira, Vinicius de Abreu e Carvalho,

Marcela D. Carvalho, Antônio V. Cardoso

Originário da Ásia, o mexilhão-dourado (Limnoperna fortunei) foi detectado na América do Sul em 1991 na foz do Rio da Prata, na Argentina.

Nas décadas seguintes ele se dispersou pelas bacias do Sul e Sudeste do Brasil, prejudicando a fauna e fl ora aquáticas e instalações de captação de água e

geração de energia. Em 2015 foi confi rmada sua presença no Rio São Francisco, trazendo o risco de

a invasão se alastrar para a Amazônia.

DOURADO

36 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016

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38 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016

A primeira ocorrência ofi cial do mexilhão-dourado (Limnoper-

na fortunei, Mitilidae) na América do Sul foi registrada em 1991,

na foz do Rio da Prata, Argentina. Desde então, a espécie tem se

alastrado por diversos rios do continente. Os primeiros registros

no Brasil aconteceram por volta do ano de 1998, no Rio Grande do

Sul e no Mato Grosso do Sul. A principal hipótese acerca da inva-

são dessa espécie em nosso continente é de que ela teria chegado

por meio da água de lastro de navios mercantes, que é devolvida

ao ambiente enquanto o navio é abastecido com mercadorias.

Após se estabelecerem, as minúsculas larvas do mexilhão-dou-

rado se dispersam rapidamente pela água e a sua invasão também

é potencializada por atividades humanas, tais como a pesca e o

transporte fl uvial, que transportam ativamente essas larvas e tam-

bém as colônias incrustantes de mexilhões adultos. Além disso,

algumas espécies de peixes nativos já incluíram o mexilhão-doura-

do em suas dietas, intensifi cando ainda mais a dispersão do inva-

sor. Já existem, por exemplo, relatos de indivíduos de mexilhão-

-dourado consumidos e excretados vivos nas fezes de abotoados

(Pterodoras granulosus) na bacia do Rio Paraná.

Por esses e outros motivos, as populações de mexilhão-dourado

se dispersaram a uma velocidade de aproximadamente 240 quilô-

metros anuais continente adentro, apenas entre os anos de 1991 e

1998, até chegar ao Brasil. São inúmeros os impactos ecológicos

resultantes do seu estabelecimento nos rios sul-americanos. A

ausência de grandes predadores e

parasitas, por exemplo, oferece uma

vantagem considerável ao mexilhão-

-dourado, em comparação com as espé-

cies nativas de moluscos e crustáceos.

As densas populações de mexilhões-

-dourados aderem a esses organismos,

prejudicando a captação de alimentos

e provocando a morte de um grande

número de indivíduos.

Devido à grande densidade das

populações estabelecidas e à sua efi ciência na fi ltração de água,

os agrupamentos de mexilhões-dourados podem também inter-

ferir no equilíbrio fi sico-químico local dos corpos d’água, reti-

rando grande quantidade de partículas em suspensão, alteran-

do a zona fótica (a que recebe luz sufi ciente para haver

fotossíntese) e as populações planctônicas que dela dependem

diretamente. O resultado é a completa alteração da cadeia ali-

mentar nesses locais, que muitas vezes pode resultar na extin-

ção de diversas espécies nativas de moluscos, peixes, micro-

crustáceos, dentre outros organismos.

PREJUÍZOS DA INVASÃO

Acredita-se que populações densas de mexilhões-dourados pos-

sam também favorecer a proliferação de cianobactérias tóxicas.

Similarmente, diversos trabalhos têm demonstrado que outro

molusco invasor, o Dreissena polimorpha, conhecido como mexi-

lhão-zebra (causador de problemas similares aos do mexilhão-dou-

rado, em diversas regiões da América do Norte), tem provocado o

aumento das fl orações de cianobactérias tóxicas em grandes lagos e

reservatórios. Na baía de Saginaw e no lago Erie, na região dos

Grandes Lagos, na América do Norte, ocorrências de fl orações de

Microcystis aeruginosa, que não eram mais registrados após o con-

trole da entrada de fósforo no sistema, voltaram a ocorrer após o

estabelecimento do mexilhão-zebra.

Arthur C. Almeida, , , ,

são pesquisadores do Centro de Bioengenharia de Espécies Invasoras (CBEI) em Belo Horizonte, MG.. Marcela D.

é analista de meio ambiente da Companhia Energéticade Minas Gerais (CEMIG) em Belo Horizonte, MG.

O MEXILHÃO-DOURADO É UM PEQUENO MOLUSCO DE COLO-

ração dourada do Sudeste Asiático. Em seu hábitat

de origem, a bacia do Rio Yang Tsé, na China, essa

espécie aquática compete por nutrientes com

outros organismos e ainda sofre predação e ação de parasitas.

Assim, as suas populações se encontram relativamente controla-

das nessa região. Entretanto, ao ser inserido em outras bacias

hidrográfi cas, a sua elevada capacidade de reprodução faz desse

organismo um excelente invasor. Na década de 1960, o pequeno

molusco já havia se estabelecido em diversas regiões do Japão,

Taiwan e Hong Kong, causando vários prejuízos ambientais e eco-

nômicos, entre eles a introdução de parasitas de peixes.

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FABI

ANO

SIL

VA

Trabalhos recentes têm demonstrado que o mexi-

lhão-dourado filtra as células individuais de Microcys-

tis sp. tóxicas, excretando-as através das suas pseudofe-

zes. Entretanto, na presença de um outro alimento

disponível, o mexilhão-dourado funciona como um

agente seletivo, reduzindo a abundância dos organis-

mos competidores e também favorecendo a ocorrência

de florações tóxicas da cianobactéria Microcystis aeru-

ginosa nos ambientes invadidos. Estas florações podem

potencializar ainda mais os efeitos negativos do proces-

so de invasão, tais como a mortalidade de peixes e de

outros organismos aquáticos, e ainda inviabilizam a

utilização dessas águas para o abastecimento humano.

O mexilhão-dourado possui uma concha nacarada,

composta por aproximadamente 95% de matriz mine-

ral. Os indivíduos podem chegar a 5 centímetros de

comprimento, mas já são capazes de se reproduzir

com apenas 0,5 centímetro, atingindo populações

extremamente densas de até 200 mil indivíduos por

metro quadrado, aderidos ao substrato e também uns

sobre os outros, em gerações consecutivas.

Esse pequeno molusco adere a praticamente qual-

quer substrato sólido, inclusive vidros, PET e teflon. O

pé, órgão com funções táteis e locomotoras, é coberto

por cílios que podem atuar temporariamente como

estruturas de adesão. O mexilhão se fixa de forma

definitiva por meio do bisso, que é composto por um

conjunto de polímeros secretados pelas glândulas do

pé. Do bisso um conjunto de emaranhados fibrosos se

projeta individualmente de cada bainha, em forma de

fios. Estes são compostos por um eixo interior flexível

de colágeno revestido por uma proteína polifenólica

curada e endurecida, que compõe a cutícula bissal.

Para diversas atividades humanas, a presença do mexilhão-dou-

rado é sinônimo de prejuízos financeiros. Eles podem, por exemplo,

se incrustar nos tanques-rede utilizados na piscicultura, prejudican-

do o fluxo de água entre os tanques e o rio, provocando acúmulo de

metabólitos dentro dos tanques e eventualmente causando um

aumento na mortalidade dos peixes. Os mexilhões-dourados podem

também invadir estruturas industriais de captação de água, inter-

rompendo atividades de irrigação e fornecimento de água, como já

foi observado em Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, e em Presidente

Epitácio, em São Paulo. Esses moluscos invasores também se acu-

mulam nos encanamentos das usinas hidrelétricas, causando o

entupimento dos trocadores de calor, provocando a parada das

máquinas para manutenção e limpeza. Além disso, a decomposição

de mexilhões mortos dentro de câmaras de passagem de água de

uma usina hidrelétrica provoca a liberação de gases que oferecem

risco aos trabalhadores envolvidos com a limpeza das estruturas.

O acúmulo de mexilhões nos cascos dos veículos aquáticos

aumenta a força de arrasto na água resultando em maior consumo

de combustível, que também pode ser afetado com incrustações no

interior dos motores. Somados, os prejuízos causados por esse inva-

sor nos últimos anos já somam centenas de milhões de dólares ape-

nas no Brasil.

O SALTO DO SUDESTE AO NORDESTE

Nos últimos anos as áreas invadidas se expandiram do sul do

país até o Pantanal Mato-grossense e também o Triângulo Minei-

ro, regiões limítrofes da bacia do Paraná. Até então a maior preo-

cupação dos pesquisadores envolvidos com esse tema era como

fazer para impedir o mexilhão de se dispersar para as bacias do

São Francisco, Amazonas e Tocantins, regiões de enorme diversi-

dade biológica e cultural, a partir das áreas infestadas ao sul.

Entretanto, assim como os alemães se desviaram da linha Magi-

not para invadir a França, em 1940, o mexilhão, de alguma forma,

teria circundado o que chamávamos de linha do Cone Sul, e che-

gou à Caatinga, a 1.500 km da área infestada mais próxima.

Em junho deste ano foi relatada a presença do mexilhão-dou-

rado no reservatório de Sobradinho, no submédio São Francisco.

Em outubro, uma equipe do Centro de Bioengenharia de Espécies

Invasoras (CBEI), sediado em Belo Horizonte (MG), foi à região

para confirmar. Foram encontradas larvas e adultos no reservató-

rio, indicando que o mexilhão já estava bem estabelecido.

Ainda é cedo para se mensurar os impactos da chegada do

mexilhão-dourado na bacia do Rio São Francisco. Entretanto,

diversos impactos ambientais e sociais devem se intensificar no

médio e longo prazo nessa região.

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40 Scientific American Brasil | Janeiro 2016

FABI

ANO

SIL

VA

reservatório de Sobradinho. Infelizmente, a equipe do Centro de

CBEI também coletou indivíduos e larvas de mexilhão-dourado na

entrada do eixo norte do canal de transposição do São Francisco. O

eixo norte do canal de transposição do rio irá levar água para

diversos açudes do Nordeste, tais como o de Entremontes a alguns

quilômetros dali, no estado de Pernambuco.

RISCO DE NOVAS INVASÕES

A presença do molusco invasor nessas localidades é altamente

prejudicial, pois afetará a captação de água pelas comunidades

adjacentes, agravando o que já é grave: a falta de água. Por essa

razão, é extremamente urgente que essas localidades comecem a

ser monitoradas desde já. A identificação da presença do mexilhão-

dourado na fase de estabelecimento é de suma importância para

serem tomadas medidas de controle.

Um organismo invasor geralmente só é identificado quando as

suas populações já estão bem estabelecidas e podem ser

visualizadas com facilidade. Entretanto, após o estabelecimento, o

controle se torna muito mais custoso e difícil. Por isso, técnicas de

detecção rápida devem começar a ser utilizadas imediatamente

nessas regiões e em outras localidades do país, assim como já é

realizado na América do Norte, por exemplo, e também já utiliza-

da pela Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG), por

meio do CBEI.

Somando a isso, torna-se real a possibilidade de o mexilhão-

-dourado subir o São Francisco até a região central de Minas

Gerais, de onde poderia se alastrar para diversas sub-bacias. Uma

destas é a do Rio das Velhas, que é de extrema importância para o

fornecimento de água para a região metropolitana de Belo Hori-

zonte, com cerca de seis milhões de habitantes.

Além disso, a nova ocorrência fez soar o “alerta vermelho”, pois

foi observado que o molusco asiático pode entrar no Brasil por

novas rotas. Os portos do Norte e Nordeste, por exemplo, conti-

nuam sendo uma provável via de entrada para o mexilhão-doura-

do. Nos últimos anos o fluxo de navios mercantes nessas regiões

aumentou consideravelmente, o que pode resultar em uma nova

onda de invasões do mexilhão-dourado e de outros organismos

aquáticos invasores. Por essas razões, é imprescindível que medi-

das emergenciais sejam tomadas para o controle dessa espécie,

que é extremamente nociva para os ecossistemas e para a econo-

mia de nosso país.

Os episódios de invasão pelo mexilhão-dourado podem ser

identificados de diversas maneiras. Geralmente, o problema é

identificado quando as populações já se encontram grandes e

bem estabelecidas. A observação de larvas ou indivíduos isolados

é extremamente difícil, e é um problema comum para o manejo

de diversas espécies invasoras. Além disso, muitas vezes os orga-

nismos vindos de outras regiões se mantêm em um determinado

lugar por anos antes de se tornarem invasores. Dessa forma, a

detecção rápida destes organismos na fase de preestabelecimento

é de extrema importância para o controle das populações invaso-

ras. A utilização de um protocolo de detecção rápida periódico em

regiões não afetadas assegura que um episódio de invasão seja

controlado em suas fases iniciais, o que potencializa as chances

de sucesso no controle populacional da espécie.

Larvas pegam caronaA piscicultura em tanques rede, localizados em rios e reser-

vatórios, assim como as atividades de peixamento, que consistem no povoamento ou repovoamento de um rio ou reservatório por

rior à pós-larval), são atividades de alto risco à introdução de espé-cies exóticas invasoras. O risco de invasão pelo mexilhão-dourado é altamente potencializado já que durante o processo de introdução de alevinos, águas contaminadas com larvas microscópicas do mexilhão servem de propágulos que podem cul-minar na invasão do organismo. Na fase larval, o mexilhão é microscópico e, por isso, mesmo uma água cristalina pode conter larvas que permitam a invasão pelo molusco. Assim, as larvas de mexilhões podem pegar carona na água utilizada para o trans-porte de alevinos. Por isso, é de suma importância que as empre-sas responsáveis por estas atividades estejam bem informadas e adotem medidas de biossegurança que garantam a ausência de espécies invasoras nas águas que transportam alevinos. Além dis-

garantir que a origem dos alevinos para estas atividades sejam de áreas livres, não infestadas pelo mexilhão-dourado.

AQ U I C U L T U R A

A presença de populações de mexilhões-dourados no Rio São

Francisco pode causar a alteração da cadeia alimentar das áreas

afetadas, podendo também desencadear florações de cianobacté-

rias e o deslocamento de espécies nativas de peixes e outros orga-

nismos. As comunidades de pescadores serão impactadas e a cap-

tação de água em pequenas comunidades e em pivôs de irrigação

poderá ser seriamente afetada devido à presença de incrustações

de mexilhões que poderão entupir as tubulações.

Para uma região já gravemente afetada pela falta de água, esses

problemas terão um peso ainda maior. A Caatinga é uma região

extremamente seca, e por isso, grandes projetos de captação de

água estão em andamento, tais como o eixo norte do canal de

transposição do São Francisco, a aproximadamente 150 km do

Page 41: Scientific american brasil   janeiro 2016

www.sciam.com.br 41

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Diversas técnicas de identifi cação podem ser empregadas,

como a microscopia óptica. Também pode ser usada a amplifi ca-

ção do DNA do mexilhão em amostras de água por reação da

cadeia da polimerase (PCR), além de equipamentos de identifi ca-

ção de larvas por reconhecimento automático de imagens.

É de extrema importância a fi scalização de embarcações, pois

o mexilhão-dourado se dispersa com relativa facilidade através

das incrustações. Por isso, é sugerida a limpeza frequente dos cas-

cos com o uso de jatos de água, água sanitária, além de tintas anti-

-incrustantes, nas embarcações que frequentam áreas infestadas.

Restos de plantas e outros organismos, como moluscos e peixes,

não podem ser descartados nos rios e reservatórios – devem ser

descartados fora dos cursos d’água, enterrados ou incinerados.

Na piscicultura os cuidados devem ser redobrados. Telas e

outros equipamentos usados nessa atividade muitas vezes são

levados a regiões diferentes. E muitas vezes a água usada para

transportar alevinos carrega larvas de mexi lhões -dou ra dos.

Do ponto de vista estratégico, é necessário que os órgãos públi-

cos fi scalizem o trânsito de embarcações e de turistas. O turismo

de pesca pode ser um vetor de alastramento importante, uma vez

que as iscas artifi ciais, boias e outros equipamentos podem carre-

gar larvas de mexilhão-dourado entre regiões distintas. Nesse

contexto, a educação ambiental tem um papel primordial. É

importante que as populações dos locais invadidos e daqueles

que apresentam risco de invasão conheçam o organismo invasor

e os impactos decorrentes de seu estabelecimento.

Em novembro passado, em Belo Horizonte, o 2º Fórum de

Debates sobre os Problemas Ambientais e Econômicos das Espé-

cies Invasoras (http://www.cbeih.org/forum) discutiu a articula-

ção do setor de geração de energia hidrelétrica para enfrentar o

problema das espécies invasoras aquáticas, com atenção especial

ao mexilhão-dourado. Organizado em parceria entre o CBEI e a

CEMIG, o evento teve participação de representantes da indús-

tria, do meio acadêmico e do poder público. Ficou claro para

todos os participantes que só a ação coordenada das empresas e

órgãos públicos será efetiva para controlar as espécies invasoras.

Além disso, torna-se indispensável uma aliança com instituições

ambientais e de pesquisa, inclusive com o acompanhamento pelo

Ministério Público, para esse problema deixar de ser visto de for-

ma isolada e ser colocado na agenda ambiental brasileira .

PARA CONHECER MAIS

Centro de Bioengenharia de Espécies Invasoras (CBEI) –

Andrade et al., em Materials Science and Engineering 54, págs. 32-42; 2015.

Riera et al., em Revista de Pesquisa e Desenvolvimento da ANEEL no 6 ; 2015.

3Limnoperna fortunei Nakamura et al., em Materials Research 17, págs. 15-22; 2014.

M. D. Oliveira, D. M. R. Ayroza, D. Castellani, M. C. S. Campos e M. C. D. Man-sur, em Panorama da Aquicultura 24, vol. 145; págs. 22-29; 2014.

O mexilhão-dourado foi detectado na América do Sul pela primeira vez em 1991 na foz do Rio da Prata, na Argentina, pro-vavelmente por meio da água de lastro despejada por navios mercantes vindos da Ásia. Nas duas décadas seguintes ele se alastrou pela região Sul, chegando à divisa de São Paulo com Minas Gerais e ao sul de Mato Grosso do Sul.

A regulação da água de lastro e os protocolos internaciona-is para reduzir o potencial de transporte de espécies potencial-mente invasoras são relativamente recentes. O Brasil participa do “Programa Global de Gerenciamento de Água de Lastro” (GLOBALLAST), criado pela Organização Marítima Internacio-nal (IMO) para evitar invasões como a do mexilhão-dourado.

Da Ásia ao São FranciscoO C A M I N H O DA I N VA S ÃO

Page 42: Scientific american brasil   janeiro 2016

42 Scientific American Brasil | Janeiro 2016 Ilustração de Jon Foster

PA L EO N TO LO G I A

O impacto do asteroide foi ruim,

O quematouos

Stephen Brusatte

mas o momento foi pior

E M S Í N T E S E

dos dinossauros é um dos maiores mistériosda ciência. proposta há algumasdécadas sugere que o impacto de um asteroide foi a cau-sa do desaparecimento desses animais. es-

peculam se outros fatores podem ter contribuído parasua destruição. sugere que na épocaem que a gigantesca rocha espacial atingiu o planeta, ascomunidades de dinossauros já estavam vulneráveis.

Page 43: Scientific american brasil   janeiro 2016
Page 44: Scientific american brasil   janeiro 2016

44 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016

IGREJA DO SANGUE DERRAMADO, EM SÃO PETERSBURGO, NA RÚSSIA, PARECE TER SAÍ-

do de um conto de fadas. Situada às margens de um canal gelado, de uma

fl oresta de cúpulas em forma de cebola que se elevam na direção do céu, ela

é revestida com mosaicos coloridos que cobrem cada centímetro quadrado

de seu interior. Esse não é o tipo de lugar que paleontólogos costumam visi-

tar, mas eu estava na cidade para estudar um novo dinossauro, e insisti em

conhecer o lugar. A visita tinha caráter pessoal. A igreja foi construída no

local onde o czar Alexandre 2º foi assassinado pelos revolucionários em 1881, dando início a uma série de

eventos que acabaram chegando até mim. A morte do czar foi o estopim para um frenético extermínio

antissemita. Judeus em situação de risco no império russo estavam muito assustados, e uma família na

Lituânia entrou em pânico e enviou o fi lho mais jovem para a América, que era mais segura. Esse homem

foi meu bisavô. Se não fosse essa sucessão de fatos que começou há mais de 100 anos em São Petersburgo,

hoje eu não estaria aqui.

Todas as famílias têm histórias como essa para contar —

estranhas guinadas do destino num passado distante. Sem elas

o presente seria muito diferente. A evolução também funciona

assim. As histórias de vida são contos inesperados, sujeitos a

serem redirecionados a qualquer momento. Na verdade, foi

exatamente isso o que aconteceu há 66 milhões de anos, no

fi nal do período Cretáceo. Nos 150 milhões de anos anteriores,

os dinossauros dominaram o planeta, atingindo dimensões

gigantescas e prosperando em praticamente todos os ambien-

tes terrestres imagináveis. Mas então alguma coisa mudou, e

tiranossauros, triceratopes e seus parentes desapareceram.

A extinção dos dinossauros é um dos maiores mistérios da

ciência e foi o que me entusiasmou na adolescência. Na década

passada, enquanto ou coletava fósseis de dinossauros pelo

mundo, isso fi cou martelando na minha cabeça: como criaturas

tão bem-sucedidas simplesmente desapareceram? Uma teoria

popular que se desenvolveu nos anos 1980 defende que um

asteroide foi a causa. Mas os céticos especulam que outras for-

ças podem ter contribuído para seu desaparecimento. À medi-

da que os pesquisadores descobrem novos espécimes e apren-

dem mais sobre a evolução desses animais, se aproximam mais

de uma resposta conclusiva.

Recentemente, organizei um grande encontro internacional

de paleontólogos para reunir exatamente todo o conhecimento

disponível e chegar a um acordo sobre a extinção dos dinossau-

ros. Utilizamos os inventários de diversidade mais atualizados

sobre esses répteis para examinar tendências evolucionárias ao

longo do tempo, revisamos as últimas informações sobre o

momento da extinção e analisamos atentamente as várias

mudanças ambientais que ocorreram na época em que eles

desapareceram. Para nossa surpresa, nossa equipe de quase

uma dezena de especialistas em dinossauros — um grupo bas-

tante inquisidor — chegou a um claro consenso: como era do

conhecimento geral, a extinção foi um processo abrupto, e um

asteroide foi o principal causador. Mas isso não é tudo: o aste-

roide atingiu a Terra num momento que já era desfavorável

para os dinossauros, quando os ecossistemas estavam vulnerá-

veis devido a uma mudança ambiental anterior.

é paleontólogo da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Ele pesquisa evolução e anatomia de dinossauros. No artigo anterior que escreveu para a American ele analisou o ascensão dos tiranossauros.

Page 45: Scientific american brasil   janeiro 2016

www.sciam.com.br 45Gráfico de 5W Infographics

FON

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15.

Essa é uma nova e inesperada guinada da antiga narrativa,

extremamente relevante para o mundo moderno e para nossa

própria descrição evolucionária.

O MISTÉRIO CONTINUA

Como a maioria dos adolescentes, eu fi z coisas impetuosas

na época da escola. Talvez nada tenha sido mais atrevido que

apanhar o telefone, num dia na primavera de 1999, e ligar sem

nenhum constrangimento para Walter Alvarez, geólogo da Uni-

versidade da Califórnia em Berkeley. Eu era um garoto de 15

anos obcecado por dinossauros. Ele era um eminente membro

da Academia Nacional de Ciências que, cerca de 20 anos antes,

tinha proposto a ideia de que o impacto de um enorme asteroi-

de havia acabado com os dinossauros.

A hipótese de Alvarez começava com uma observação curio-

sa. O registro geológico preserva uma fi na faixa de lama que

marca o limite entre os sedimentos propícios para o desenvolvi-

mento de dinossauros do período Cretáceo, que se estende

entre 145 milhões e 66 milhões de anos atrás, e sedimentos

impróprios para a proliferação de dinossauros do período

Paleogêneo, entre 66 milhões e 23 milhões de anos. Alvarez des-

cobriu que a faixa de lama estava saturada de irídio, elemento

raro na Terra, mas comum em objetos extraterrestres como

cometas e asteroides. Ele observou essa anomalia, pela primei-

ra vez, num desfi ladeiro rochoso perto do vilarejo medieval de

Gubbio, na região da Úmbria, Itália. Por coincidência, minha

família estava se preparando para viajar para a Itália para

comemorar o aniversário de 20 anos de casamento de meus

pais. Eu atormentei meus pais para fazerem uma pausa nas

visitas a basílicas e museus de arte e ir para Gubbio por um dia

para ver os aspectos geológicos que criaram o famoso cenário

destruidor de dinossauros de Alvarez. Mas eu precisava de indi-

cações, por isso decidi ir diretamente à fonte.

O fato de Alvarez não só ter respondido ao meu telefonema,

mas também de ter me fornecido as indicações detalhadas

sobre o local exato do desfi ladeiro onde ele detectou os picos de

irídio ainda me intrigam. Eu não esperava que aquele gênio da

ciência fosse tão gentil e generoso com o tempo que me dedi-

cou. Publicada na revista Science, em 1980, com Luis, seu pai,

físico, ganhador do Nobel, e dois colegas de Berkeley, sua teoria

do asteroide desencadeou uma década de debates acalorados.

Dinossauros e extinções em massa estavam constantemente

nos noticiários. A ideia do impacto aparecia em vários livros e

nos documentários da televisão. E centenas de artigos científi -

cos discutiam o que realmente tinha matado os dinossauros,

com paleontólogos, geólogos, químicos, ecólogos e astrônomos,

todos discutindo o tema científi co mais quente do dia.

No fi nal dos anos 1980 era incontestável que um asteroide

ou cometa tinha se chocado contra o planeta há 66 milhões

de anos. A mesma camada de irídio tinha sido observada no

mundo todo. E outros aspectos geológicos formados durante

impactos extraterrestres, como pequenas pedras de vidro,

chamadas tectitos, e grânulos deformados de quartzo,

conhecidos como quartzo de impacto, apareciam junto com

o irídio.

Variação porcentual

Terópodes

Terópodes

0%

0%

20%

20%

-40%

-60%

0%20%

-80%

0%-20%

20%

0%20%

-100%

0%-20%

40%

Todos os dinossauros

Dinossaurosbico de pato

Dinossaurosde chifre

Todos osornitísquios(incluindo dinossaurosde chifre, bico depato, entre outrasespécies)

Impacto do asteroideMilhões de anos

70 69 68 67 66717273

Campaniano

7475

C R E T Á C E O T A R D I OMaastrichtiniano

-15,1%

-36,9% -34,0%

-3,3%

+12,6

-23,3%

-47,2%

+2,3%

-100%

+1,4%

-61,3%

+20,0

Ornitísquios (herbívoros)

Diversidade(linhas azuis)

Disparidade(linhas verdes)

Terópodes (carnívoros)

Herbívoros em dificuldadesAnálises de dinossauros da América do Norte mostram que, no geral, eles estavam prosperando em termos do número total de espécies – uma métrica conhecida como diversidade – quando o asteroide atingiu a Terra há 66 milhões de anos (acima). Mas uma análise mais apurada revela tendências veladas de redução. Um grupo maior, os terópodes, estava se desenvolvendo bem (abaixo). Mas outro grande grupo, formado pelos ornitísquios, estava diminuindo tanto em diversidade como em disparidade, métrica que mede a variação da anatomia e tamanho das espécies presentes (meio). Dois subgrupos de ornitísquios – os dinossauros de chifre e os dinossauros bico de pato – foram duramente atingidos. É quase certo que seu declínio teve consequências para outras espécies de dinossauros.

U M A T E N D Ê N C I A V E L A DA

Page 46: Scientific american brasil   janeiro 2016

46 Scientific American Brasil | Janeiro 2016

Além disso, geólogos até localizaram a cratera que data

da mesma época da extinção dos dinossauros — cratera Chi-

cxulub, com 180 quilômetros de diâmetro, no México. Algu-

ma coisa imensa e inesperada com cerca de 10 quilômetros

de extensão veio do espaço e desencadeou um cataclismo de

erupções vulcânicas, incêndios em florestas, tsunamis, chu-

va ácida e poeira que bloqueou a luz solar, selando o destino

dos dinossauros.

No entanto, os cientistas tinham pouquíssimas informa-

ções sobre como os dinossauros estavam evoluindo no perío-

do anterior ao impacto repentino, e exatamente como eles e

o ecossistema responderam a esse extraordinário desastre

ambiental. O debate continuou acirrado para descobrir se o

asteroide destruiu os dinossauros de repente, enquanto eles

ainda estavam na sua melhor fase, ou se foi o golpe de mise-

ricórdia para um grupo moribundo que estava sendo dizima-

do aos poucos e que acabaria se extinguindo de qualquer

maneira. Afinal, o asteroide não atingiu um planeta estático,

mas um mundo que estava passando por terríveis flutuações

no nível dos oceanos, mudanças de temperatura e vulcanis-

mo extremo. Alguns desses fenômenos podem ter contribuí-

do para a extinção?

NOVAS DESCOBERTAS

Eu não consegui ir para Gubbio naquela viagem para a

Itália com a família. Inundações fecharam a principal estra-

da de ferro de Roma, e eu fiquei desolado. O destino pode ser

cruel (pergunte aos dinossauros), mas ele também pode ser

promissor. Imagine então minha surpresa quando, cinco

anos depois, eu voltei à Itália para um curso de geologia de

campo da universidade. Nós estávamos alojados num peque-

no observatório nos montes Apeninos, dirigido por Alessan-

dro Montanari, um dos vários cientistas que se promoveram

nos anos 1980 estudando a extinção do fim do Cretáceo. No

primeiro dia de nossa permanência, passamos pela bibliote-

ca, onde uma figura solitária examinava um mapa geológico

sob uma luz bruxuleante. “Eu quero que todos vocês conhe-

çam meu amigo e orientador, Walter Alvarez”, disse Monta-

nari com seu carregado sotaque italiano. “Alguns de vocês

devem ter ouvido falar dele.”

Alguns dias depois estávamos no desfiladeiro de Gubbio,

sob o escaldante sol do Mediterrâneo e carros velozes zunindo

ao redor. Alvarez estava diante de uma turma de alunos univer-

sitários, apontando para o exato lugar onde a teoria do asteroi-

de foi concebida. Meus colegas começaram a zombar de mim,

porque, depois que me apresentei a Alvarez, e ele se lembrou de

nossa discussão cinco anos antes, eu não parava de sorrir.

Aquele dia ficou gravado na minha memória como um dos

momentos mais importantes do início de minha carreira. Eu

soube então que o mistério da extinção dos dinossauros tinha

tomado conta de mim.

Talvez paradoxalmente, como aluno de pós-graduação

minha pesquisa focaliza principalmente a ascensão dos dinos-

sauros até o ápice, e a origem e início da evolução das aves

(que se originaram desses répteis e, portanto, são o único gru-

po originado deles

que não foi extinto).

Mas finalmente tive a

oportunidade de con-

tribuir para o debate

sobre a extinção dos

dinossauros em 2012,

quando estava termi-

nando a pós-gradua-

ção. Meu colega

Richard Butler, da

Universidade de Bir-

mingham, na Ingla-

terra, que usava esta-

tística para estudar

tendências evolucio-

nárias, teve uma ideia

brilhante: que tal se

nós concentrássemos

nosso conhecimento

de diferentes grupos

de dinossauros e dife-

rentes técnicas de

análise para obter

uma visão atualizada

das mudanças que os

dinossauros sofreram durante os 15 milhões a 10 milhões de

anos antes da extinção?

Decidimos examinar as tendências de diversidade de

dinossauros usando uma métrica chamada disparidade mor-

fológica. A disparidade é, essencialmente, uma medida anatô-

mica da biodiversidade — ela quantifica a variabilidade de

dimensões, forma e anatomia do corpo de um grupo ao longo

do tempo ou em seus ecossistemas. Imagine dois ecossiste-

mas, um com 15 espécies de pequenos roedores e outro com

um morcego, uma gazela e um elefante. O primeiro pode ter

mais espécies, mas o segundo tem um conjunto de espécies

com diversidade de tamanho, forma e comportamento muito

maior. A disparidade geralmente fornece um quadro mais

completo da vitalidade e biodiversidade de grupos que a sim-

ples contagem de uma espécie, e queríamos descobrir se havia

quaisquer tendências óbvias nos dinossauros. Disparidade

estável ou crescente durante o Cretáceo tardio indicaria que

os dinossauros estavam vivenciando um período de prosperi-

dade, quando o asteroide brutalmente interrompeu seus dias

de glória, enquanto uma disparidade decrescente sugeria que

eles estavam enfrentando problemas, antes do impacto.

Encontramos alguns resultados intrigantes. A maioria dos

dinossauros mostrou disparidade relativamente estável duran-

te os 15 milhões a 10 milhões de anos anteriores ao impacto,

inclusive os carnívoros terópodes (como o tiranossauro e o

velociraptor), os saurópodes de pescoço longo, e os herbívoros

de médio e pequeno porte (o cefalossauro com cabeça em for-

ma de domo coriáceo, por exemplo). Mas dois subgrupos apre-

sentavam disparidade decrescente quando o asteroide atingiu

O declínio de toda a cadeia alimentar Modelagens por computador das cadeias alimentares de dinossauros do Cretáceo tardio, de Careless Creek Quarry, no estado de Mon-tana, e o mais jovem Lull 2 Quarry, no Wyoming, sugerem que a grande redução de dinossauros de chifre teria afetado drasticamente outras espécies. Por serem herbívoros de corpos avantajados, eles eram espé-cies chave, que serviam de presas para dinossauros carnívoros. Seu desaparecimento desestabilizou as cadeias alimentares, deixando todos os dinossauros mais vulneráveis aos efeitos devastadores do impacto do asteroide.

I M PAC T O M A I O R

Page 47: Scientific american brasil   janeiro 2016

www.sciam.com.br 47

FON

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Gráficos de Daisy Chung

a Terra: o dinossauro de chifre (triceratopes e seus parentes) e o

de bico de pato. Os dois grupos eram herbívoros de grande por-

te que consumiam enormes quantidades de vegetação. Se vivês-

semos na Terra há 66 milhões de anos, rapidamente teríamos

notado que esses dinossauros eram os mais abundantes. Eles

eram o gado do Cretáceo — os herbívoros mais importantes de

cadeia alimentar.

Praticamente na mesma época em que publicamos nossos

resultados, outros pesquisadores estavam examinando a

extinção dos dinossauros sob outros ângulos. Equipes lide-

radas por Paul Upchurch, da Universidade College de Lon-

dres, e Paul Barrett, do Museu de História Natural de Lon-

dres, realizaram um censo da diversidade de espécies de

dinossauros ao longo do tempo e descobriram que esses ani-

mais, em geral, ainda eram muito diversificados na época do

impacto do asteroide, mas que estava minguando o grupo

que incluía aqueles que tinham chifre e os de bico de pato.

Essas descobertas concordavam claramente com nossos cál-

culos de disparidade.

Como o declínio da riqueza de espécies e a disparidade de

grandes dinossauros herbívoros afetou o resto do grupo? Os

insigths surgiram de estudos inovadores de modelagem por

computador, realizados por Jonathan Mitchell, na época alu-

no de pós-graduação da Universidade de Chicago. Mitchell e

sua equipe criaram cadeias alimentares para vários ecossiste-

mas de dinossauros do Cretáceo e simularam o que acontece-

ria se algumas espécies fossem eliminadas. O resultado foi

surpreendente: as cadeias alimentares que existiam quando o

asteroide se chocou com a Terra, que continham menor quan-

tidade de grandes herbívoros por causa da diminuição da

diversidade, colapsaram mais facilmente que cadeias alimen-

tares mais diversificadas a partir de alguns milhões de anos

antes do impacto.

MOMENTO ERRADO

Com a publicação de todas essas novas ideias sobre a extin-

ção dos dinossauros nos periódicos científicos, Butler e eu

tivemos uma ideia um tanto perigosa: talvez pudéssemos reu-

nir um grupo de elite de especialistas em dinossauros dispos-

tos a sentar, discutir todo o conhecimento acumulado até o

momento sobre a extinção dos dinossauros e tentar chegar a

um consenso sobre por que desapareceram. No início foi qua-

se que por brincadeira. Os paleontólogos discutiram esse pro-

blema por décadas. Quem éramos nós para pensar que podía-

mos resolvê-lo? Provavelmente nosso pequeno gráfico

subversivo acabaria em um beco sem saída, ou pior, em uma

gritaria. Na verdade, aconteceu exatamente o oposto. Nosso

grupo, que incluía 11 cientistas dos Estados Unidos, Canadá e

Reino Unido, na verdade chegou a um acordo. Publicamos

nosso estudo em maio passado na revista Biological Reviews.

Ao reanalisar todas as evidências, descobrimos que os

dinossauros pareciam estar prosperando muito bem na parte

final do Cretáceo. Não há sinais de que sua diversidade geral

(tanto em número de espécies como em disparidade) tenha

diminuído gradualmente ao longo de milhões de anos. Todos

os grandes grupos de dinossauros subsistiram até o fim do

Cretáceo e, pelo menos na América do Norte, onde os regis-

tros fósseis de dinossauros da fase tardia desse período são

Careless Creek QuarryCampaniano78 milhões – 75 milhõesde anos

Tiranossauro

Troodonte

RichardoestesiaOrnitomimossauro

Hipsilofodonte

EuoplocéfaloCoritossauro*

Hadrossauro*

Centrossauro†

Avaceratopo†

Insetos

Parassaurolofo*

Estegoceratopes

Dromeossauro

Vegetais Vegetais

Tiranossauro

Troodonte

RichardoestesiaOrnitomimossauro

Tescelossauro

Mamíferos

LagartosAnfíbios

Insetos

Mamíferos

LagartosAnfíbios

Paquicefalossauro

Dromeossauro

Anquilossauro

Edmontossauro*

Triceratopes†Carnívoro topo de cadeiaCarnívoro médioPequeno predador/insetívoroMédio onívoro Médio herbívoro Grande herbívoro

Cadeia alimentar forteLull 2 QuarryMaastrichtiniano71,6 milhões – 66 milhões de anos

Cadeia alimentar fraca

*Dinossauro bico de pato†Dinossauro de chifre

Page 48: Scientific american brasil   janeiro 2016

48 Scientific American Brasil | Janeiro 2016

mais completos, sabemos que

tiranossauros, triceratopes e

seus clãs estavam todos lá para

testemunhar o impacto do aste-

roide. Essa descoberta descarta

a hipótese, antes bem difundi-

da, de que os dinossauros desa-

pareceram aos poucos, em eta-

pas, provavelmente por causa

das flutuações de longo período

do nível dos oceanos, da tempe-

ratura que alterou as massas

continentais e dos tipos de ali-

mento a que tinham acesso.

Mas ao contrário, a extinção dos

dinossauros foi abrupta em ter-

mos geológicos. Então é razoá-

vel pensar que o impacto do

asteroide – um evento súbito e

inesperado – causou a extinção.

Mas, como suspeitávamos

com base em estudos anterio-

res, o impacto do asteroide não

explica toda a história. Os gran-

des herbívoros sofreram um

certo declínio bem no fim do

Cretáceo. A razão exata desse

decaimento não é conhecida,

mas pode estar relacionada a

uma queda do nível dos oceanos

de período mais curto, que alterou significativamente a área

continental disponível para os dinossauros durante seus últi-

mos milhões de anos — pelo menos na América do Norte, que,

sem dúvida, preserva os melhores registros fósseis desse

período. Por serem os herbívoros mais abundantes, os dinos-

sauros de chifre e os de bico de pato seriam os primeiros a

sentir os efeitos das mudanças na extensão territorial e na

vegetação. Seu declínio aparentemente teve consequências:

tornou os hábitats mais vulneráveis ao colapso, desestabili-

zando a base da cadeia alimentar e aumentando a probabili-

dade de que a extinção de apenas algumas espécies desenca-

dearia um efeito cascata no ecossistema.

Considerando tudo isso, parece que o impacto do asteroide

ocorreu num momento crítico para os dinossauros. Se tivesse

ocorrido alguns milhões de anos antes – antes da queda da

diversidade de grandes herbívoros – os ecossistemas de dinos-

sauros teriam sido mais robustos e mais capazes de resistir ao

impacto. Se tivesse ocorrido alguns milhões de anos depois, a

diversidade de herbívoros talvez tivesse se recuperado, como

aconteceu inúmeras outras vezes ao longo dos primeiros 150

milhões de anos de evolução dos dinossauros. Nunca é uma boa

hora para um asteroide de dez quilômetros de extensão cair do

céu. Mas, para os dinossauros, há 66 milhões de anos, pode ter

sido o pior momento. Apenas um ligeiro desvio na cronologia e

os dinossauros ainda poderiam estar por aqui.

O que aconteceu há 66

milhões de anos, quando um

bloco de rocha e gelo vindo do

espaço colidiu com a Terra no

momento mais inoportuno para

os dinossauros, ecoa até nossos

dias. Extinções em massa são

trágicas, mas elas também

abrem espaço para novos vege-

tais e animais evoluírem e se

tornarem dominantes. A morte

dos dinossauros abriu as possi-

bilidades para os mamíferos,

que viveram nas sombras por

mais de 100 milhões de anos,

mas passaram a ter a chance de

evoluir livremente. Os mamífe-

ros prosperaram quase que ime-

diatamente após a extinção dos

dinossauros, evoluindo em

tamanho, variedade de novos

hábitos alimentares e compor-

tamentos, e se espalharam pelo

mundo todo. Esse florescimento

acabou levando ao surgimento

dos primatas, chegando até nós.

Se qualquer elo dessa reação em

cadeia histórica tivesse sido eli-

minado, provavelmente não

haveria seres humanos.

Mas podemos tirar uma grande lição da extinção dos dinos-

sauros. Não é apenas uma questão de mudança de rumo da

contingência evolucionária – mais um daqueles eventos no pas-

sado distante que nos permitem fazer conjecturas do tipo “e se”.

De forma simples, o que aconteceu no fim do Cretáceo nos ensi-

na que mesmo grupos de animais dominantes podem ser extin-

tos e muito rapidamente. Os dinossauros dominaram por mais

de 150 milhões de anos até chegar sua hora decisiva – uma coli-

são de segundos entre a Terra e um objeto do espaço. E sua

extinção foi facilitada, talvez até possibilitada, pela perda da

biodiversidade que precedeu o impacto do asteroide.

Os seres humanos modernos têm vagado por aí, no máximo,

há algumas centenas de milhares de anos. E estamos alterando

o ambiente a uma velocidade tão grande que, com o rápido

declínio da biodiversidade global, a chamada sexta extinção já

está ocorrendo. Como saber o quanto estamos nos tornando

vulneráveis nesse processo?

PARA CONHECER MAIS

Stephen L. Brusatte et al., em Biological Reviews,vol. 90, no 2, págs. 628-642; maio de 2015.

David E. Fastovsky e Peter M.Sheehan, em GSA Today, vol. 15, no 3, págs. 4-10; março de 2005.

Walter Alvarez. Princeton University Press, 1997.

Nunca é uma boa hora para

um asteroide de dez quilômetros

de extensão cair do céu. Mas, para os dinossauros,

há 66 milhões de anos, pode ter sido o pior

momento.

Page 49: Scientific american brasil   janeiro 2016

www.sciam.com.br 49Ilustração de Alex Nabaum

DE TELESCÓPIOS

Antigos rancores entre três equipes de astrônomos têm ameaçado a sobrevivência do maior e mais ousado projeto de astronomia em solo

Katie Worth

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Page 50: Scientific american brasil   janeiro 2016

50 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016

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Katie Worth é repórter do Frontline, produção televisiva da WGBH, em Bos ton. Ela passa seu tempo pensandoem política, ciência e suas interseções.

Por 15 anos, três grupos concorrentes de astrônomos têm

perseguido um único sonho: construir o maior telescópio do pla-

neta. Esses gigantescos dispositivos seriam três vezes maiores

que o maior telescópio óptico do mundo, e seriam poderosos o

sufi ciente para tirar fotos de planetas em órbita de outras estre-

las e espreitar toda a amplitude do Universo, olhando para o pas-

sado, quase até o Big Bang.

Esse observatório dos sonhos viria

em três versões: o Giant Magellan Te-

lescope (GMT), desenvolvido por um

consórcio que inclui a Carnegie Institu-

tion for Science; o Thirty Meter Telesco-

pe (TMT), desenvolvido pelo Instituto

de Tecnologia da Califórnia (Caltech, na

sigla em inglês), pelo sistema da Uni-

versidade da Califórnia e outras insti-

tuições; e o European Extremely Large

Telescope (E-ELT), desenvolvido pelo

European Southern Observatory (ESO).

A construção dos três custaria cerca de

US$ 4 bilhões, mas até agora o mundo

tem frustrado os projetos, deixando

cada um com pouco dinheiro e desespe-

rados por mais. Não fosse isso, pelo

menos um telescópio gigante já estaria

olhando para os céus; em vez disso,

existem apenas hardwares parcialmen-

te construídos, aguardando a entrega

em canteiros de obras estéreis.

Os três telescópios têm grande

probabilidade de falhar até a linha de chegada dessa corrida

tecnológica e começar a operar apenas em algum momento da

década de 2020, com atraso e acima do orçamento.

Como isso aconteceu? Como três projetos s eparados, mas

com objetivos comuns, competem entre si por fi nanciamento?

E o que os impediu de unir forças para minimizar a chance de

um fracasso coletivo?

Essas perguntas vêm sendo feitas repetidamente, inclusive por

um perplexo painel de âmbito nacional dos EUA que está conside-

rando dois dos telescópios para receber fi nanciamento federal. De-

zenas de cientistas entrevistados para este artigo ponderaram o

que poderia ter sido se, em vez de três empreendimentos, fossem

apenas um ou dois. Quase todos concordaram que a humanidade

estaria muito mais perto de construir a próxima e maior geração de

observatórios se grupos concorrentes de astrônomos não tivessem

repetidamente desdenhado das chances de colaborar. Essa compe-

tição começou nas primeiras décadas do século 20 e se mantém ao

longo dos anos por confl itos pessoais, falhas de comunicação, tec-

nologias concorrentes e um universo de amargura em expansão.

E M S Í N T E S E

estão atualmente em cons trução e com previsão para iniciar suas ope rações na década de 2020.

terá um espe lho primário de cerca de 30 m de diâmetro, que permitirá aos astrônomos estudar o Cosmos com uma clareza sem precedentes.

ciamento. Críticos perguntam por que es-tão sendo construídos simultaneamente

três telescópios gigantes em vez de ape-nas um ou dois. A resposta está em uma rivalidade desde os primeiros grandes telescópios do início do século 20.

Page 51: Scientific american brasil   janeiro 2016

www.sciam.com.br 51

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O NEGÓCIO

A história começa em 1917, quando George Ellery Hale, um

ambicioso astrônomo e diretor de observatório, revelou algo in-

teiramente novo para a ciência, um telescópio óptico de 100 po-

legadas (2,54 metros).

No mundo da construção de telescópios, o tamanho importa:

quanto maior for o espelho deles, mais longe se vê. O novo teles-

cópio, alocado em Mount Wilson, naquela época ainda conside-

rado um “céu escuro” na região de Los Angeles, ofuscava todos

os outros na Terra. Seu tamanho revolucionário rapidamente

produziu resultados revolucionários. Edwin Hubble utilizou-o

para descobrir que nossa galáxia é apenas uma entre muitas e,

em seguida, para reunir provas de que o Universo está se

expandindo.

Mas Hale não estava satisfeito. Ele queria um telescópio de

5 metros. O telescópio de 2,5 metros estava construído e sen-

do gerenciado pela então denominada Carnegie Institution de

Washington, uma entidade filantrópica criada pelo barão do

aço Andrew Carnegie, que não estava preparado para gastar

milhões a mais em um novo telescópio. Desse modo, Hale ma-

liciosamente sugeriu o projeto para uma organização finan-

ciada pelo rival de Carnegie, o magnata do petróleo John D.

Rockefeller. Em 1928, Rockefeller pessoalmente aprovou o te-

lescópio de 5 metros de Hale, fornecendo, por fim, US$ 6 mi-

lhões em financiamento – na época, a maior soma até então

doada para um projeto científico.

Houve um problema: os astrônomos da Carnegie Institution

eram os únicos no mundo com a experiência necessária para

construir o novo telescópio, mas Rockefeller não financiaria o

seu velho rival de ações beneficentes. “Isso certamente não

aconteceria”, diz o historiador Ronald Florence, que escreveu A

máquina perfeita, um livro sobre o telescópio de 5 metros. “Foi

assim que os problemas chagaram a uma sinuca de bico.”

Hale veio com uma solução: Rockefeller daria o dinheiro do

telescópio como um presente para o Caltech, que acabara de ser

instalado a apenas duas milhas (cerca de três quilômetros) do

observatório de Carnegie, sediado em Pasadena, Califórnia. O

Caltech era ainda tão embrionário que não empregava um único

astrônomo sequer, e muito menos um departamento de astrofí-

sica. No entanto, a Fundação Rockefeller financiou para o Cal-

tech a construção do novo telescópio de Hale no novo Observa-

tório Palomar, no Condado de San Diego. Hale acreditava que os

líderes da Carnegie achariam irresistível trabalhar nessa magní-

fica ferramenta para esquadrinhar os céus e emprestariam sua

expertise para projetar e construir o novo telescópio.

Hale estava enganado. Segundo Florence, o negócio enfure-

ceu John Merriam, o presidente da Carnegie Institution, que en-

xergou essa situação como um dolo imperdoável. Ele trabalhou

para sabotar o projeto, não permitindo que os cientistas da Car-

negie ajudassem e pressionando a Fundação Rockefeller a ir

embora. Desesperado, Hale recorreu ao diplomata Elihu Root,

um velho amigo de Rockefeller e de Carnegie. Root sensibilizou

Merriam, que finalmente assinou contrato para o projeto.

Mas a discórdia estava apenas começando: Merriam ainda

estava com raiva e tentou por anos assumir o controle do teles-

cópio do Caltech, diz Florence, até que a desconfiança institu-

cional tornou-se mútua e profunda.

Depois que Merriam se aposentou, as instituições de carida-

de que viviam em guerra finalmente acordaram uma trégua. A

Fundação Rockefeller se aproximou de seus adversários com

um acordo: o Caltech possuiria o telescópio, quando ele abrisse

seu olho de 5 metros em 1949, mas Carnegie iria operá-lo.

GIGANTES DE VIDRO: O Telescópio de Trinta Metros (TMT, acima à esquerda) e o Telescópio Gigante de Magalhães (GMT, acima à direita) serão aproxim-

Page 52: Scientific american brasil   janeiro 2016

52 Scientific American Brasil | Janeiro 2016 Gráfico por Daisy Chung

European ExtremelyLarge Telescope

ChileChile HavaíHavaíChile

TelescópioThirty Meter

TelescópioGiant Magellan

39,3 m30 m24,5 m

TelescópioKeck

10 m

TelescópioMagellan

6,5 m

Califórnia

Telescópio de2,5 m de Hale

2,5 m Escala humana

492 hexágonos,com 1,44 m dediâmetro cad

36 hexágonos,com 1,8 m de diâmetro cada

Cada com8,4 m de diâmetro

798 hexágonos,cada um com 1,44 m de diâmetro

O frágil relacionamento entre as instituições inevitavelmente

contaminou a ciência, especialmente após a identifi cação dos “ob-

jetos quase estelares” – quasares – no início dos anos 1960 pelo as-

trônomo holandês-americano Maarten Schmidt. Embora esses

objetos parecessem, a princípio, estrelas fracas no céu, outros es-

tudos mostraram que quasares tinham um brilho quase impensá-

vel, vindo do Universo distante. Os objetos misteriosos rapida-

mente se tornaram o assunto mais apelativo da astronomia, e os

pesquisadores do Caltech e da Carnegie disputavam tempo no

maior telescópio do mundo para estudá-los, às vezes, recorrendo à

“mesquinhez infantiloide de alto nível”, diz Florence.

Em 1979, após meio século de tensões, o Caltech fi nalmente

procurou acabar com a tensa guarda compartilhada de Palomar. A

separação não correu bem e se provou intensamente pessoal. O fa-

lecido Allan Sandage, lendário astrônomo da Carnegie, que havia

alcançado o trabalho de sua vida em Palomar, se recusou a pôr o

pé no observatório outra vez. “Foi o tipo de divórcio em que você

tem de escolher o marido ou a esposa”, diz Florence. “Não houve

aquele negócio de manter a amizade com ambos.”

CONFLITO DE PROJETOS

Durante as duas décadas seguintes, as instituições trilharam

caminhos separados. Nos anos noventa, o Caltech criou uma par-

ceria com a Universidade da Califórnia para desenvolver os teles-

cópios gêmeos de 10 metros Keck em Maun a Kea, no Havaí, usan-

do o que era então um novo projeto de espelho segmentado no

qual muitos espelhos pequenos criavam um maior. O risco valeu a

pena: o projeto funcionou perfeitamente, e seus astrônomos des-

frutaram anos de proeminência científi ca antes que alguém mais

construísse algo competitivo. Enquanto isso, Carnegie ainda usava

a velha tecnologia de espelho único, mas se aventurou no Hemis-

fério Sul, construindo os telescópios gêmeos de 6,5 metros Ma-

gellan no deserto de Atacama no norte do Chile.

A Carnegie completou esses telescópios apenas em 1999, quan-

do o Caltech e a Universidade da Califórnia anunciaram a sua in-

tenção de construir um telescópio de 30 metros. O ESO, uma orga-

nização intergovernamental de astrônomos europeus, já falava de

algo ainda mais ambicioso, um telescópio de 100 metros, apro-

priadamente chamado OverWhelmingly Large Telescope.

Para a maioria dos astrônomos, saltar de um telescópio de 10

metros para um de 100 metros era absurdamente ambicioso.

Mas um telescópio de 30 metros parecia viável, para a conster-

nação de Gus Oemler, então diretor dos observatórios de Carne-

gie. Ele se lembra de acordar se sentindo doente com o anúncio

do Caltech. “Estávamos lutando para terminar os telescópios

Magellan, que fi nalmente nos dariam algum tipo de paridade

com o Caltech depois de muitos anos e, de repente, eles estavam

começando a próxima fase.”

Depois de muito debate, Carnegie e Caltech acordaram uma

colaboração. Ambos os lados estavam hesitantes, mas os comi-

tês de cada instituição pensaram que era hora de superar o anti-

go rancor que os separava e trilhar novos caminhos. “Reconhe-

cemos que seria uma espécie de loucura ter dois telescópios gi-

gantes centrados em duas instituições a três quilômetros uma

da outra”, diz o astrônomo da Carnegie Alan Dressler.

Então, em 21 de junho de 2000, dois cientistas do Caltech –

os falecidos Wal Sargent, astrônomo, e Tom Tombrello, chefe da

cadeira de física – e dois de Carnegie – Oemler e Dressler – se

reuniram para discutir a parceria.

Por todos os lados, a discussão foi terrível. A reunião foi tensa,

desarticulada e cheia de mal-entendidos. Ambos, Wendy Freed-

man, que mais tarde se tornaria diretor dos observatórios Carne-

gie, e Richard Ellis, agora um cientista sênior no ESO, que estava

então prestes a substituir Sargent como diretor do Observatório

Grande, maior e gigantescoTelescópios cresceram em tamanho desde 1917, quando debutou o primeiro gigante, o telescópio de 2,5 metros de George Ellery Hale. Atualmente, ele está ofuscado pelos grandes observatórios modernos, como os telescópios gêmeos Keck, de 10 metros, e os mais modestos telescópios Magellan, de 6,5 metros. Os gigantes de amanhã (em azul, abaixo) serão ainda maiores, utilizando arranjos de espelhos para se aproximar de 40 me tros de tamanho total. Embora esses gigantes não sejam construídos até a década de 2020, os astrônomos já estão discutindo seus sucessores: telescópios de 100 metros.

T E L E S C Ó P I O S G I G A N T E S

Page 53: Scientific american brasil   janeiro 2016

www.sciam.com.br 53

Palomar do Caltech, falaram com os quatro homens imediata-

mente após a reunião e ouviram uma história diferente cada um:

Dressler sentiu que os homens do Caltech não estavam levando a

proposta da Carnegie a sério, enquanto Tombrello acreditou

equivocadamente que Carnegie não tinha realmente dinheiro a

contribuir. Oemler disse que Sargent ficou em um silêncio gelado

durante a maior parte da reunião. Sargent disse, mais tarde, que

estava preocupado em perturbar o delicado relacionamento do

Caltech com a Universidade da Califórnia. Mas Sargent não ha-

via explicado a preocupação durante a reunião, diz Ellis. Assim,

“claro que o pessoal da Carnegie ficou ofendido”.

No dia seguinte, Tombrello enviou um e-mail “para resumir

nossa desmedida discussão”. O Caltech não estava interessado

em trabalhar com a Carnegie no telescópio naquele momento,

escreveu Tombrello, embora ele não tenha excluído a possibili-

dade no caso de o trabalho ficar caro demais. Os astrônomos da

Carnegie sentiram-se inferiorizados e insultados. A colaboração

nascente morreu, e a longa tradição de relacionamento áspero

entre as instituições cresceu por mais tempo.

Essa reunião é, agora, parte do folclore do telescópio gigante.

Ellis é um dos muitos astrônomos que se perguntam o que po-

deria ter acontecido se a reunião corresse de forma diferente.

“Quando você revê esse momento, que tragédia!”, diz. “Com

alguns telefonemas e um pouco de diplomacia, poderíamos ter

trazido Carnegie. E se tivéssemos trazido, provavelmente tería-

mos um telescópio agora.”

Garth Illingworth, astrônomo da Universidade da Califórnia

em Santa Cruz, diz que ainda permanece “apenas ressentimento

e infelicidade residuais” da velha rivalidade para descarrilar

uma conversa construtiva. “Você pensa: nossa, por que não hou-

ve supervisão de um adulto na sala para ajudar essas pessoas a

superar isso?”, acrescenta.

DIVIDIDOS, TODOS PERDEM

Após essa fracassada reaproximação, a rivalidade só aumen-

tou. O Caltech e o sistema da Universidade da Califórnia desen-

volveram o TMT, a ser construído próximo dos telescópios Keck,

no Havaí. Enquanto isso, a Carnegie projetou o GMT, um teles-

cópio de 24,5 metros, para coroar o seu Observatório Las Cam-

panas, no Chile. Na mesma época, os europeus reduziram seus

sonhos em relação ao “esmagadoramente grande” para apenas

“extremamente grande” e planejaram a construção do E-ELT, te-

lescópio de 39 metros, no Chile.

Os três projetos vasculharam o mundo procurando por finan-

ciamento, por vezes, pesquisando nos mesmos lugares. Desem-

bolse dinheiro e, como consequência, aos seus astrônomos será

garantido tempo de telescópio. Astrônomos canadenses, por

exemplo, foram cortejados tanto pelo grupo da Carnegie como

do Caltech-UC, e escolheram a segunda opção. A Universidade

Harvard também foi cortejada por ambos, mas se comprometeu

com Carnegie. Pelo menos uma vez, as duas equipes dos EUA

desconfortavelmente se cruzaram em aeroportos em suas via-

gens para reuniões com os mesmos parceiros em potencial. E os

europeus não estavam acima da briga: inicialmente garantiram

o apoio do Brasil, cujo presidente concordou em participar do

ESO e subscrever uma grande fatia do E-ELT. Mas a confusa e di-

vidida política brasileira paralisou o acordo. A Carnegie se apro-

veitou dos problemas do ELT: em julho de 2014, a Universidade

de São Paulo (USP) se juntou ao projeto GMT, e de acordo com

Dressler, as lideranças do GMT esperavam que o governo brasi-

leiro logo seguisse, embora esse não tenha sido o caso.

O segundo mais procurado parceiro de todos tem sido o go-

verno dos EUA, que poderia abrir seu cofre de financiamento fe-

deral para financiar um telescópio gigante e fornecer acesso

para todos os astrônomos americanos. Em 2000, a Astronomy

and Astrophysics Decadal Survey (a Avaliação Decenal sobre

Astronomia e Astrofísica), um painel nacional que orienta fi-

nanciamentos federais dos EUA, havia declarado um telescópio

gigante da próxima geração como a prioridade mais alta do país

em astronomia óptica terrestre.

Com esse apoio, a Fundação Nacional da Ciência (NSF) co-

meçou, em 2003, a discutir uma parceria com o Caltech-U.C.

para o projeto TMT. Mas, poucos meses depois, os astrônomos

do GMT escreveram uma carta dizendo que o acordo injusta-

mente favoreceria o TMT. A carta foi eficaz: a NSF empacou, não

estando disposta a tomar partido na cada vez mais divisiva polí-

tica de astronomia óptica de alto nível.

Na realidade, de qualquer maneira não havia muito dinheiro

federal a ser fornecido, segundo Wayne Van Citters, conselheiro

sênior da NSF. Mas a rixa não ajudou, diz ele: “Precisávamos

que a comunidade viesse junta para decidir qual deles ela que-

ria fazer. Não podíamos fazer ambos, afinal”.

A comunidade, por sua vez, tentou várias vezes fazer exata-

mente isso, mas os esforços foram infrutíferos. Astrônomos

europeus discutiram colaborações com ambos os rivais, mas

finalmente só concordaram em compartilhar insights tecnoló-

gicos. E, em 2007, por insistência de seus comitês, os líderes

do TMT e do GMT realizaram várias reuniões com frieza cor-

dial para discutir caminhos em que poderiam trabalhar jun-

tos. Não deu em nada.

A situação confundiu os membros do comitê da avaliação de-

cenal de 2010, que questionou por que a comunidade astronô-

mica dos EUA estava sendo convidada a apoiar dois projetos de

grandes telescópios ópticos separados, ambos liderados por

americanos. No final, a NSF não tomou lados, chutando os pro-

jetos para o fim da lista de prioridades, efetivamente anulando

financiamentos federais por mais 10 anos.

Rivalidade não é algo raro na ciência: mentes brilhantes são

frequentemente acompanhadas por grandes egos com uma pro-

pensão para o confronto. Às vezes, a discórdia pode produzir

inovações; outras vezes ela pode transformar a mais iluminada

busca pela descoberta em uma série de conflitos pessoais mes-

quinhos. Algumas disciplinas convenceram, com sucesso, po-

tenciais rivais a unir forças: físicos de alta energia trabalham

em grandes grupos internacionais em aceleradores de partícu-

las. Radioastrônomos têm colaborado na maior ferramenta de

próxima geração da sua área, o Atacama Large Millimeter/Sub-

millimeter Array, de US$ 1,4 bilhão.

Em contraste, a astronomia óptica nos EUA ficou dividida pela

rivalidade. O astrônomo ítalo-americano e Prêmio Nobel Riccardo

Page 54: Scientific american brasil   janeiro 2016

54 Scientific American Brasil | Janeiro 2016

Giacconi descreveu a situação como um problema sociológico em

um discurso na Academia Nacional de Ciências em julho de 2001.

Para o historiador W. Patrick McCray, da Universidade da Ca-

lifórnia em Santa Barbara – que escreveu Giant Telescopes, livro

sobre a comunidade de astronomia óptica dos EUA –, o que é

impressionante com relação à inimizade entre o Caltech e a Car-

negie é a sua longevidade: eles disputam grandes telescópios

desde 1928. “Você pensa: ‘não aprenderam nada?’”, diz McCray.

Mas a rivalidade sozinha não explica o estado de coisas. Exis-

tiram motivos racionais para trabalhar em telescópios separa-

dos, observa o astrônomo Ray Carlberg, da Universidade de To-

ronto, que faz parte de uma associação envolvida com o projeto

TMT. Inicialmente, os astrônomos acreditavam que haveria di-

nheiro para os três, e telescópios gigantes em ambos os hemisfé-

rios garantiriam a cobertura integral de todo o céu. “O mundo

tinha acabado de construir um punhado de telescópios de oito e

10 metros, e não parecia absurdo ter alguns desses grandes tam-

bém”, diz Carlberg. Naquela época, estava claro que o Caltech

poderia usar a ajuda da Carnegie, mas a Carnegie tinha investi-

do pesadamente em seu próprio projeto para abandoná-lo.

TELESCÓPIOS DEMAIS

Na ilha maior do Havaí, um pedaço do imenso pico de Mauna

Kea foi aplainado para abrir caminho para o TMT. O espelho de

30 metros do telescópio, com o diâmetro do domo do capitólio

dos EUA, será composto por 492 segmentos hexagonais de 1,44

metro em forma de favo de mel, todos alojados em uma estrutura

de 18 andares sobre o vulcão adormecido. Ao projeto foram con-

cedidas licenças de uso da terra, embora ainda enfrentem a opo-

sição vocal e desafios legais de nativos havaianos e ambientalis-

tas. Para ajudar a pagar por esse esforço de US$ 1,5 bilhão, o Cal-

tech e a UC asseguram parcerias internacionais com a Índia,

China, Japão e Canadá. Eles ainda estão à procura de um adicio-

nal de US$ 270 milhões; o atual melhor palpite para a estreia do

telescópio está em algum momento no início dos anos 2020.

A onze quarteirões da sede do TMT em Pasadena, Carnegie e

seus parceiros estão trazendo o GMT, de 24,5 metros, à vida. Ele

será composto de sete espelhos de 8,4 metros, com seis espelhos

dispostos como pétalas de flor ao redor de um espelho central –

uma abordagem muito diferente e incompatível com a do TMT

com seus numerosos espelhos hexagonais. Quatro espelhos já

foram projetados em um laboratório na Universidade de Arizo-

na. O tamanho menor e design um pouco mais simples vêm com

um custo mais modesto: pouco abaixo de US$ 1 bilhão. A Carne-

gie obteve o apoio de universidades da Coreia do Sul, Austrália e

Brasil, bem como de várias universidades nacionais. Elas levan-

taram cerca de metade do dinheiro necessário para a constru-

ção do telescópio no seu canteiro de obras no âmbito do Obser-

vatório Las Campanas. E se tudo correr como planejado, o GMT

começará a coletar luz até 2022.

A 12 horas de carro pela Rodovia Pan-americana a partir de

Las Campanas está Cerro Armazones, a montanha deserta onde

o E-ELT um dia estará. O site foi inicialmente estudado por as-

trônomos do TMT, que passaram anos monitorando a atmosfera

acima de Cerro Armazones em transparência e turbulência an-

tes de concluírem que preferiam construir o TMT no Hemisfério

Norte; os europeus se aproveitaram disso e reivindicaram Ar-

mazones para seu próprio projeto. Hoje, uma recém-pavimenta-

da estrada leva ao cume da montanha, que foi raspado com di-

namite e maquinaria pesada em uma planície do tamanho de

um campo futebol. Visível a leste da montanha, o firmamento se

encontra com o vulcão andino Llullaillaco, com 6.723 metros,

onde os incas sacrificavam crianças aos deuses. Ele e o resto do

panorama árido desvanecem-se ao cair da noite, abrindo cami-

nho para um grande campo de estrelas acima.

Com um espelho de 39 metros de largura, o E-ELT será o te-

lescópio mais grandioso de próxima geração. Como o TMT, o

E-ELT terá um design segmentado, mas em vez de 492 espelhos

hexagonais, ele contará com 798. Em dezembro de 2014, o ESO

votou para avançar com a construção da primeira fase. Uma se-

gunda fase ainda não foi financiada. As lideranças do E-ELT pla-

nejam que o telescópio comece a olhar para o céu em 2024, com

um custo total de construção de 1,1 bilhão de euros.

Uma vez construídos, os três telescópios terão forças sinérgi-

cas, diz Roberto Gilmozzi, do E-ELT. O E-ELT será especializado

em zooming para fornecer imagens de alta resolução de peque-

nas regiões do céu; o GMT vai sobressair em astronomia de

campo largo. E o TMT se localizará em um hemisfério diferente,

observando um céu diferente.

Gilmozzi, como a maioria dos astrônomos entrevistados para

esta matéria, acha que se fossem dois telescópios, em vez de três,

ambos estariam em fase de conclusão atualmente, a um custo de

centenas de milhões de dólares a menos. “Se você não conside-

rar o problema de encontrar o dinheiro, é maravilhoso ter mais

de um”, ele diz. “Cientificamente falando, eu poderia usar 100 te-

lescópios, se eu tivesse recursos para construí-los.”

Infelizmente, a construção de telescópios é apenas o primei-

ro passo. Nem o GMT nem o TMT têm, atualmente, dinheiro su-

ficiente para sustentar sua operação, uma vez construídos. Am-

bos esperam que o governo federal acabe por entrar em cena

para ajudar, mas Van Citters diz que não está claro com quanto

dinheiro o governo será capaz de contribuir. Estima-se que os

telescópios custarão dezenas de milhões de dólares por ano para

manter a operação. “Isso é o suficiente para dar às pessoas pesa-

delos”, McCray diz.

Mesmo assim, o problema de muitos telescópios tem uma

fresta de esperança: o mundo poderia, um dia, ter três olhos gi-

gantes olhando para o Cosmos. Esta seria uma grande vitória

para a ciência, diz McCray. “E se esta situação é uma tragédia, é

uma tragédia com um ‘t’ minúsculo.”

PARA CONHECER MAIS

W.Patrick McCray. Harvard University Press, 2004.

DOS NOSSOS ARQUIVOS

Michael West, agosto de 2015.Robert Irion, novembro de 2010.

Roberto Gilmozzi, junho de 2006.

Page 55: Scientific american brasil   janeiro 2016

www.sciam.com.br 55Fotografias de Grant Delin

Levi e Emma Kinsinger administram uma

pequena estufa no sul da Pensilvânia. Em 6 de

novembro de 2002, viajaram 720 km de táxi, ida e

volta, a uma taxa de cerca de R$ 2,5 por

quilômetro, para levar seu filho mais velho –

Mark – até a Clínica para Crianças Especiais, em

Strasburg, na Pensilvânia. Com quatro anos, Mark

era frágil e deslocado socialmente. Ele ficava

deitado no chão em constante movimento e

agitação. Seus olhos vagavam, mas não se fixavam

em nada, e ele não reagia a sons. De tempos em

tempos, um som gutural escapava de sua

garganta e ele se chacoalhava de forma violenta.

A pergunta dos Kinsinger, pergunta que ouvi

inúmeras vezes em meu trabalho como pediatra,

exprimia seu calmo desespero:

“O que podemos fazer para ajudar nosso filho?”

GENÔMICA

PESSOASPARA AS

M E D I C I N A

Clínica infantil fundada e financiada por amish e menonitas mostra que a

pesquisa genética de alta tecnologia pode ser canalizada, mesmo agora, para

prevenir doenças

Kevin A. Strauss

Page 56: Scientific american brasil   janeiro 2016

56 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016

Nossa clínica é um lar médico para crianças como Mark.

(Por questões de privacidade, mudei os nomes de todos os pa-

cientes e de suas famílias.) Sua estrutura robusta de madeira,

erguida por mãos amish e menonitas, abriga consultórios pe-

diá tricos modernos, equipados com um arsenal de ferramentas

de sequenciamento de genes de alta tecnologia. Atendemos às

chamadas comunidades Simples, descendentes dos anabatistas

europeus que fugiram para o Novo Mundo entre 1600 e 1800

em busca de asilo religioso. Os Simples hoje vivem pela Améri-

ca do Norte em povoados cristãos pequenos e isolados e evitam

os meios modernos. Eletricidade e telefone são comumente

proibidos nas casas. O código de vestimenta e de conduta enfa-

tiza a coesão do grupo. Seguros privado ou do governo são rejei-

tados. E os membros dessas comunidades desconfi am de tecno-

logias que minam a interdependência social.

Os Simples escolhem viver de modo diferente no mundo

moderno, mas cada pai sabe o que signifi ca temer por um fi -

lho doente: “Minha fi lha algum dia vai andar?” “É possível

acabar com as convulsões?” “É autismo?”. Essas são as pergun-

tas que nos fazem traduzir a linguagem complexa da bioquí-

mica e da genética modernas para dar respostas signifi cativas

para as crianças e suas famílias. Até agora, nosso laboratório

já identifi cou mais de 170 diferentes mutações genéticas que

causam doenças desproporcionalmente representadas entre

os Simples. Quase metade delas coloca em perigo o cérebro

em desenvolvimento e, caso não sejam tratadas, levam à mor-

te ou causam defi ciências nas crianças. Testes moleculares rá-

pidos, acessíveis monetariamente e feitos no local abrem um

caminho precioso; permitem que possamos descobrir futuras

ameaças à saúde, elaborar terapias mais precisas e prevenir as

doenças antes que se instalem.

Nosso relacionamento de colaboração com os Simples tam-

bém oferece um vislumbre de como a pesquisa genômica vai

transformar nossa compreensão sobre doenças mais comuns.

Com a cooperação de algumas famílias amish dedicadas, recen-

temente descobrimos uma variação genética específi ca que pa-

rece estar ligada ao transtorno bipolar (maníaco-depressivo),

que afeta entre 2% e 4% das pessoas no mundo inteiro e, de ma-

neira lamentável, permanece não diagnosticada e não tratada.

Ligar uma variação genética ao transtorno bipolar aproxima

um pouco a genômica da medicina convencional; desafi a a co-

munidade de pesquisa médica a fechar a lacuna entre o que sa-

bemos sobre as causas do sofrimento humano e o que podemos

fazer para as pessoas que precisam de nossa ajuda.

PROGRESSO, UMA CRIANÇA POR VEZ

Os Kinsinger precisavam de clareza. Em poucos dias, detec-

tamos uma constelação de anormalidades químicas no sangue

de Mark, que implicavam como a causa de sua defi ciência a de-

fi ciência de uma enzima – 5.10-metilenotetra-hidrofolato redu-

tase (MTHFR). O diretor do laboratório, Erik Puff enberger, tra-

balhou rapidamente a fi m de descobrir um erro em ambos os

genes de codifi cação da MTHFR de Mark. Esse conhecimento

permitiu que diagnosticássemos outras três crianças que so-

friam do mesmo mal no povoado dos Kinsinger.

Pesquisei a literatura médica e encontrei a primeira descri-

ção acerca da defi ciência de MTHFR, publicada 30 anos antes

por S. Harvey Mudd e colegas. Mudd era lendário no pequeno

E M S Í N T E S E

emStrasburg, Pensilvânia, em colaboraçãocom as famílias amish e menonitas queserve, aproxima o conhecimento da gené-tica e sua tradução em cuidados médicos.

, colhida por meiosde alta tecnologia e baixo custo, permite à

dezenas de condições genéticas com po-

com a colaboração das famílias de pacien-tes é considerada um modelo para melho-rar os cuidados médicos em comunidadescarentes em todo o mundo.

liderado pela clínicaliga uma mutação genética à desordem bi-polar e mostra como a pesquisa em comu-nidades isoladas pode enriquecer a com-preensão e o tratamento de doenças.

doutor pela Faculdade de Medicina de Harvard, é diretor médico da Clínicpara Crianças Especiais em Strasburg, Pensilvân

Page 57: Scientific american brasil   janeiro 2016

www.sciam.com.br 57

MARK KINSINGER (esquerda) e sua irmã mais nova, Ruth (direita, não são seus nomes verdadeiros), nasceram com a mesma

doença genética. Mark, que não foi diagnosticado até fazer quatro anos, sofre

danos cerebrais irreversíveis. Desde então, um programa

piloto de avaliação e intervenção precoce evitou

totalmente que outras crianças com a mesma

condição, inclusive Ruth, desenvolvessem

Page 58: Scientific american brasil   janeiro 2016

58 Scientific American Brasil | Janeiro 2016

mundo de pesquisa dedicada ao metabolismo intermediário,

que envolve os processos coletivos que convertem alimentos

em energia e componentes essenciais das células. Ele elucidou

o que veio a ser conhecido como via de transulfuração – uma

rede complexa de reações químicas que recicla um aminoácido

essencial, metionina, enquanto simultaneamente fornece gru-

pos metila (CH3) para moléculas em todo o organismo. A me-

tionina é indispensável para o crescimento do cérebro e de ou-

tros tecidos, e os marcadores de metila afetam profundamente

o modo como esses tecidos funcionam. A MTHFR é um elo vital

na cadeia de fornecimento químico: sem essa enzima, Mark so-

fre as consequências neurológicas devastadoras da carência de

metionina e CH3 no cérebro.

Telefonei para Mudd, então com 75 anos e pesquisador emé-

rito no Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA. Generosa-

mente ele me orientou através das complexidades das transul-

furação e sugeriu um tratamento: um composto encontrado em

farmácias, sem necessidade de prescrição médica, chamado be-

taína, que fornece metionina e CH3 para o cérebro, por uma via

metabólica alternativa, e pode ser administrado como pó ali-

mentar por apenas US$ 0,60 por dia. Nos meses seguintes,

muitas vezes fi z a viagem de quatro horas até o povoado dos

Kinsinger com a enfermeira Christine Hendrickson. Íamos de

fazenda em fazenda, analisando com cuidado os efeitos da be-

taína em nossos jovens pacientes. De posse de uma geladeira

com gelo seco, uma centrífuga portátil e um conversor de po-

tência no acendedor de cigarros do carro, centrifugamos e con-

gelamos amostras de sangue no campo. Elas foram enviadas

para Mudd, que pediu que sua rede de colegas analisasse a me-

tionina, a betaína e uma gama de outros componentes quími-

cos na via de transulfuração. Essa parceria permitiu que fi zés-

semos uma correlação entre a dose de betaína a sua ações tera-

pêuticas específi cas, e assim estabelecêssemos um protocolo de

tratamento que publicamos em conjunto em 2007.

Semanas após ter iniciado o tratamento com betaína, Mark

deu os primeiros passos e começou a reagir à luz e a sons. Ou-

tros pacientes também fi zeram progressos rápidos e decisivos,

mas aprendemos uma lição comovente sobre a curva do tempo

Como as mutações genéticas levam à doençaMutações genéticas podem perturbar a biologia em vários níveis(moléculas, células, tecidos e órgãos) e causar doenças. Certasmutações têm prevalência especialmente nas populações amishe menonita. Em cada paciente que vai à clínica são usadas tecno-

duais, compreender suas ligações causais com doenças e elabo-rar modos de aliviar ou prevenir os efeitos danosos da mutação.

Em um trabalho relacionado a essa atividade, a clínica e seus

ca ligada à desordem bipolar entre os amish, e agora constroemum quadro de como pode prejudicar a regulação emocional(abaixo). Esse conhecimento poderia levar a uma compreensãomais profunda acerca do distúrbio bipolar na população emgeral e a novas estratégias de prevenção e tratamento.

FUNDAMENTOS

Gene

KCNH7

Proteína Célula

KCNH7

Tecido Órgão

KCNH7

Comportamento

KCMH7

Ilustrações de Amanda Montañez

Page 59: Scientific american brasil   janeiro 2016

www.sciam.com.br 59

biológico. Mark e outras crianças que começa-

ram o tratamento com betaína mais tarde na

vida ficaram com deficiências permanentes,

resultado do crescimento cerebral estagnado

durante a infância. A matriz densa de cone-

xões neurais que se forma dentro dessa janela

estreita se torna um substrato duradouro em

nossa vida mental. Quando essa janela se fe-

cha, o dano está feito. O caso de Mark fez com

que a tragédia de uma comunidade inteira en-

trasse em forte evidência. Durante as três décadas seguintes à

publicação de Mudd acerca da deficiência de MTHFR, crianças

como Mark viviam e morriam na obscuridade, envoltas em

confusão e dor.

Enquanto acertávamos os detalhes da terapia, desenvolve-

mos um teste para avaliar jovens casais em relação ao defeito

genético, e ficamos alarmados ao descobrir que 30% de pessoas

amish saudáveis do povoado dos Kinsinger tinham uma cópia

mutante do MTHFR. A partir desse dado, pudemos deduzir que

um em cada 50 de seus bebês nasceria com a doença. Em 2003,

reconhecendo o papel crítico da terapia preventiva, procura-

mos o bioquímico Edwin Naylor em seu laboratório de análises

recém aberto e pioneiro em Pittsburgh. Juntos conseguimos

desenvolver e implementar um método para identificar a muta-

ção de MTHFR a partir dos coágulos de sangue secos em papel

filtro, coletados de cada recém-nascido, como parte de uma

triagem estadual obrigatória para detectar vários distúrbios.

Para nosso espanto, a primeira criança diagnosticada por este

método novo de papel filtro foi a irmã de Mark, Ruth, nascida em

setembro de 2003, apenas dez meses depois que os Kinsinger ha-

viam levado Mark pela primeira vez à nossa clí-

nica. Ruth começou a terapia com betaína du-

rante sua segunda semana de vida e floresceu

durante os doze anos seguintes de acompanha-

mento. Atualmente ela é aluna talentosa, filha

carinhosa e jogadora formidável de taco.

Em 2009, Mudd e sua esposa tiveram a

oportunidade de conhecer os Kinsinger duran-

te a comemoração de 20 anos da Clínica para

Crianças Especiais. Enquanto os Mudd conver-

savam com os pais de Ruth, calmamente ela subiu no colo de

Mudd. Mais tarde ele me contou que aquele foi o melhor mo-

mento de sua carreira científica.

Mudd morreu em janeiro de 2014, aos 86 anos de idade. Vá-

rias semanas depois, sua viúva recebeu um cartão feito à mão

que dizia: “Querida Sra. Mudd, saudações de amor estão sendo

enviadas a você. Como está a senhora? Eu estou bem. É uma

manhã enevoada, e parece que vai ficar ensolarada. Estou ani-

mada para sair descalça. Com amor, Ruth.”

MEDICINA GENÔMICA DE BASE

A alta incidência, incomum, de deficiência de MTHFR e de

outras desordens genéticas entre pessoas das comunidades

Simples tem raízes em sua história social e cultural única. Pe-

quenos grupos de anabatistas que sobreviveram à migração

transatlântica compuseram um patrimônio genético escasso.

Como todos nós, esses indivíduos, sem saber, cultivaram dano-

sas variantes de sequências (mais comumente chamadas de

mutações) em seu código genético. Em populações isoladas, es-

sas variações podem se propagar silenciosamente durante ge-

O MENINO MENONITA à esquerda tem a doença da

bordo (veja quadro na página 61) e vive a cerca de 39 km

da clínica. O menino à direita tem aciduria

se mudou para que ele pudesse receber

tratamento na clínica.

Page 60: Scientific american brasil   janeiro 2016

60 Scientific American Brasil | Janeiro 2016

rações por portadores, indo para baixo ou

para cima fortuitamente em prevalência,

até que uma criança herde cópias da mu-

dança genética danosa de pais que têm

ancestrais em comum. Esse padrão reces-

sivo de herança é um mecanismo impor-

tante da doença genética em comunida-

des isoladas em todo o mundo. Entre os

anabatistas modernos, a constelação an-

cestral de versões genéticas causa muito

sofrimento individual e comunitário,

um problema agravado por sua educa-

ção científica limitada e pelo pouco

acesso que têm ao sistema de saúde dos

Estados Unidos.

No começo da década de 1960, o agora

falecido Victor McKusick, pioneiro da ge-

nética médica moderna, reconheceu pela

primeira vez o potencial de estudar pa-

drões de doenças hereditárias entre os

amish e lançou um amplo estudo de cam-

po com esse fim. Apesar de cientes sobre o

poder da tecnologia para minar relaciona-

mentos sociais, as pessoas Simples abriram suas casas para

McKusick e seus colegas, na esperança de que futuras gerações

pudessem se beneficiar disso. Esse trabalho culminou na publi-

cação, em 1978, do Medical Genetic Studies of the Amish (Estu-

dos médicos genéticos dos amish), que catalogou 18 desordens

genéticas previamente reconhecidas e 16 outras recentemente

diagnosticadas entre os amish da América do Norte. Esses pri-

meiros empenhos de pesquisa estabeleceram vários princípios

fundamentais acerca das desordens genéticas humanas, mas fi-

zeram pouco para auxiliar a população em estudo. Muitos

amish se tornaram desconfiados de médicos interessados em

investigar seus padrões de doença, mas incapazes ou pouco dis-

postos a cuidar deles.

Uma década depois, um jovem cientista chamado D. Holmes

Morton fez uma abordagem diferente. Em 1988, enquanto ele

trabalhava em genética bioquímica no Hospital Infantil de Fila-

délfia, um colega lhe pediu que analisasse uma mostra de urina

de um menino amish de seis anos de idade chamado Danny

(nome verdadeiro), que havia sofrido uma regressão abrupta e

inexplicada em sua capacidade motora aos 14 meses de idade.

Os médicos locais acharam que a doença fosse paralisia cere-

bral, mas Morton, usando uma técnica chamada cromatografia

gasosa/espectrometria de massa, detectou uma substância de-

nominada ácido 3-hidroxiglutárico na urina do menino. O ras-

tro químico distinto indicava uma doença genética rara, cha-

mada acidúria glutárica tipo 1 (GA1) — e não paralisia cerebral

– como a causa do dano causado ao cérebro de Danny.

Morton fez uma visita a Danny em sua casa no condado de

Lancaster, onde ficou sabendo das muitas famílias que se co-

municavam, por carta, sobre seus filhos que tinham a assim

chamada paralisia cerebral amish. Em 1991, ele e seus colegas

publicaram um estudo sobre dez casos definitivos de GA1 entre

os amish, duplicando o número de casos

descritos no mundo inteiro. Ele ouviu as

histórias angustiantes de pais que haviam

caído em um tipo de “desamparo aprendi-

do”; geração após geração, viam seus fi-

lhos atingidos por uma misteriosa doença

cerebral apenas para ficarem, então, irri-

tados com um sistema médico muito dis-

tante, muito fragmentado e muito caro

para ajudá-los. Esse ciclo de angústia con-

venceu Holmes e sua esposa, Caroline, so-

bre a necessidade de haver uma clínica lo-

cal – um lar médico – onde famílias Sim-

ples, sem seguro saúde, poderiam levar

suas crianças especiais para serem cuida-

das de forma acessível e solidária.

Assim começou uma experiência de cui-

dados com a saúde fundamentalmente di-

ferente do sistema de saúde dos Estados

Unidos, guiado pelo lucro: uma colabora-

ção de base entre os Morton e um punhado

de pais comprometidos, que conheciam na

pele as dores infligidas pela doença genéti-

ca. Um fazendeiro amish que tinha dois netos com GA1 ofereceu

dois acres e meio de seus campos para abrigar a clínica. Outros

membros das comunidades Simples providenciaram madeira e

mão de obra para levantar sua estrutura de encaixes. De lá para

cá, as comunidades Simples continuaram a apoiar o projeto

como um investimento valioso para seus filhos. Quase 75% do or-

çamento operacional anual de hoje em dia, de US$ 2,6 milhões,

vem de fontes de caridade, inclusive mais de US$ 850 mil levan-

tados pelos Simples em leilões beneficentes que oferecem man-

tas, móveis, plantas, cavalos, frango assado, pretzels feitos a mão

e tortas, entre outros. Esse apoio limita o desembolso por taxas

clínicas e de laboratório a valores entre US$ 50 e US$ 150 por vi-

sita, entre 70% e 90% abaixo do custo de serviços comparáveis

em centros de saúde acadêmicos.

Os Morton reconheceram, desde o início, que a abordagem

mais eficaz para tratar a desordem de GA1, assim como outras,

era começar com recém-nascidos saudáveis, detectando riscos

genéticos antes que a doença tivesse início, e providenciar ser-

viços abalizados, no local, durante a juventude dos pacientes.

No entanto, estratégias de prevenção são mais fáceis de contex-

tualizar do que de implementar. E os detalhes importam: um

diagnóstico genético preciso não faz sentido se chega muito

tarde, e uma terapia molecular inteligente é inútil se é cara. A

clínica é um local onde a ciência é canalizada para fins práticos,

dando poder às comunidades para que possam oferecer cuida-

dos melhores para os seus, enquanto ficam protegidas contra a

falência médica.

O andar térreo da clínica está equipado com uma diversidade

de ferramentas avançadas de sequenciamento genético. A equipe

do laboratório local, dirigida por Puffenberger, trabalhou de per-

to com médicos clínicos, e vem descobrindo entre cinco e 15 va-

riações genéticas danosas específicas da população a cada ano,

Os detalhes

importam: um

diagnóstico

genético preciso

não faz sentido

se chega tarde, e

uma terapia

molecular

inteligente é

inútil se é cara.

Page 61: Scientific american brasil   janeiro 2016

www.sciam.com.br 61

desde 1998. Estratégias moleculares focadas permitem que a

equipe diagnostique, com precisão, a maioria das desordens ge-

néticas em menos de 24 horas, por um custo de US$ 50. O conhe-

cimento genético preciso permite que olhemos para o futuro,

compreendamos quando e como a doença deve se revelar e to-

mar atitudes para manter as crianças fora de perigo.

No caso do GA1, Morton trabalhou de perto com Naylor a

fim de implementar a triagem eletiva de recém-nascidos no es-

tado todo, a partir de 1994. Alguns anos depois, Stephen I.

Goodman, da Faculdade de Medicina da Universidade do Colo-

rado, decifrou a mudança genética específica inerente ao GA1

“amish”, o que possibilitou que Puffenberger realizasse testes

moleculares rápidos e baratos. Ao identificar crianças acometi-

das antes do início da doença e intensificar os cuidados médi-

cos para elas, conseguimos reduzir o risco de deficiência de

94% para 36%, mas ainda sofríamos toda vez que um bebê afe-

tado sucumbia à lesão cerebral.

Então, em 2006, colaborei com Richard Finkel, um dos fun-

dadores da empresa de suplementos nutricionais Applied Nu-

trition, a fim de projetar o que chamamos de uma “fórmula mé-

dica” – uma dieta sob prescrição – para bebês e crianças com

GA1. Sabíamos que a mutação responsável pelo GA1 fazia com

que se acumulassem no cérebro o ácido glutárico e outras toxi-

nas – produzidas a partir do aminoácido lisina – e que a presen-

ça de um aminoácido diferente, arginina, poderia limitar a en-

trada da lisina no cérebro. Ao manipular judiciosamente as

proporções relativas de dieta desses dois aminoácidos (com a

ajuda de um modelo de computador), achamos que podería-

mos reduzir a captação de lisina pelo cérebro e assim limitar a

produção de neurotoxina por ele.

Testei a nova abordagem em 12 bebês afetados em um en-

saio clínico feito entre 2006 e 2011. Correspondendo a um terço

das hospitalizações, os bebês tratados tinham metade da excre-

ção de toxina e tiveram proteção completa contra danos ao cé-

rebro. Publicamos nossas descobertas em 2011 e até agora trata-

mos um total de 215 recém-nascidos com a fórmula médica

customizada. Os resultados têm sido duradouros; a taxa de

dano cerebral permanece menor do que 5%, e quase todas as

crianças nascidas atualmente com GA1 crescem com saúde.

Para muitas outras desordens genéticas que tratamos, inova-

ções graduais simples em diagnóstico e tratamento possibilita-

ram que reduzíssemos as taxas de deficiência, hospitalização e

morte entre 50% e 95% – um testemunho poderoso da ideia de

que a ciência guiada pela consciência pode fazer muito para

prevenir a miséria humana.

MUITAS POPULAÇÕES, UMA BIOLOGIA

O estudo sobre desordens genéticas tem um papel especial na

ampliação da ciência biológica. Somente ao observar com cuida-

do as consequências médicas de uma mutação genética podemos

A economia da prevenção

O progresso da Clínica para Crianças Especiais para lidar com um distúrbio cha-mado doença da urina em xarope de ácer, ou boldo, (MSUD, na sigla em inglês) ilus-tra os benefícios econômicos funcionais da integração entre a ciência genética e a bioquímica com a prática cotidiana da medicina. A MSUD é rara no mundo, mas comum entre povoados de menonitas da

recém-nascidos. Trata-se de um distúrbio perigoso; antes que a clínica fosse aberta em 1989, 39% das vítimas de MSUD mor-riam durante a infância, e a maioria dos

-ências mentais e físicas.

Nas crianças com MSUD, há falta de uma enzima necessária para degradar três aminoácidos vindos dos alimentos. Conse-quentemente, certos componentes che-gam a concentrações que envenenam o cérebro. Em excesso, essas substâncias vazam para a urina, dando a ela o odor característico do xarope de boldo. Crian-

ças com a doença parecem normais ao nascer, mas em três a cinco dias se tornam inconsoláveis e depois desenvolvem espasmos involuntários e vigorosos. Caso não sejam tratadas, o acúmulo de toxinas leva ao inchaço do cérebro, coma e morte.

Antes da inauguração da clínica, cuida-dos de saúde para crianças com distúrbios genéticos raros e complexos eram lamen-tavelmente inadequados em comunidades rurais. O cuidado médico para crianças com doenças com a MSUD era fragmen-

as famílias eram forçadas a viajar 160 km ou mais até chegar ao centro médico aca-

semanas e pagavam taxas, em dinheiro vivo, de US$ 50 mil a US$ 100 mil por ser-viços de emergência. Esse ciclo vicioso sobrecarregava o povo menonita com dívidas médicas, mas não aliviava o fardo da doença.

Desde 1989, nossa clínica tratou 80 pacientes menonitas com MSUD desde que nasceram. Metade deles foi diagnos-ticada no local quando tinha entre 12 e 24 horas de vida, e foram em segurança para casa. Os restantes foram diagnosticados

pela avaliação de recém-nascidos estadu-al obrigatória, e dispensados com segu-rança para casa após uma estadia média de cinco dias no hospital. Durante 25

-toramento e no tratamento da MSUD,

barato em casa, misturas intravenosas nutricionais usadas para reduzir os níveis de toxina, e novas fórmulas dietéticas projetadas para otimizar o ambiente quí-mico do cérebro. Essas inovações reduzi-ram as hospitalizações de 7,0 para 0,1 dias por paciente por ano. Um decréscimo de 98% nos custos hospitalares, aplicado a todos os pacientes com MSUD sob nos-sos cuidados, resulta em economia de pelo menos US$ 4,8 milhões por ano para a comunidade – quase o dobro do orça-mento operacional da clínica.

Tecnologias de ponta têm a reputação de serem proibitivamente caras, mas o cus-to depende em grande parte de como elas são empregadas. Investir recursos em diag-nósticos preventivos, assim como na pre-venção de doenças, pode ser fundamental para que se reduzam gastos médicos des-necessários. – K.A.S.

E S T U D O D E C A S O

Page 62: Scientific american brasil   janeiro 2016

62 Scientific American Brasil | Janeiro 2016

CRIANÇASarritmias do coração (fotos de cima) (abaixo à esquerda),

(todos os três, abaixo à direita).

Page 63: Scientific american brasil   janeiro 2016

www.sciam.com.br 63

compreender totalmente como o gene

normal contribui para a biologia humana.

William Harvey previu isso em 1657, quan-

do sugeriu que a análise de desordens ra-

ras é o melhor modo de revelar os “misté-

rios secretos” da natureza, e assim fazer

avanços na prática médica convencional.

Três séculos e meio depois compreende-

mos o axioma de Harvey em termos mo-

dernos. Ao assistir de perto à interação di-

nâmica entre uma variação genética rara e

a saúde mental, recentemente ganhamos

uma percepção-chave acerca de umas das

aflições humanas mais comuns.

Era uma manhã límpida de outono

quando encontrei pela primeira vez Katie,

uma mulher de cerca de 40 anos que ha-

via concordado em participar de nosso es-

tudo de pesquisa sobre desordem bipolar

entre os amish da Pensilvânia. Ela prefe-

riu que nos encontrássemos no celeiro

onde seu marido, David, estava conser-

tando pequenas máquinas. Partes das má-

quinas estavam jogadas sem cuidado por

ali, de maneira inusitada para uma ofici-

na amish. Na maioria dos dias, David fa-

zia o trabalho de dois – a doença bipolar de Katie havia domi-

nado sua vida em comum por mais de uma década, e David com

frequência batalhava sozinho para criar seus cinco filhos.

A primeira vez em que a desordem bipolar cobrou seu preço

de Katie foi depois do nascimento de seu segundo filho. Ela co-

meçou a falar rápido, às vezes muito rápido, e com frequência

seguia linhas de pensamento aleatórias até não fazer mais sen-

tido. De vez em quando passava a noite inteira acordada, lim-

pando e relimpando a casa. “Esse chão está nojento. Nojento.

Nojento.” Durante os períodos sombrios que se seguiram, Katie

ficava ruminando na cama, desesperançada e atormentada pela

culpa. Vozes conhecidas – o marido, os filhos, os pais – sussur-

ravam sem parar por trás dela: “Você é imprestável”. Mas sua

maior preocupação, transmitida repetidamente quando nos

encontramos pela primeira vez, era uma massa que enchia seu

abdômen e a atormentava sem cessar, uma alucinação de per-

cepção crônica que ela chamava de “miserável”.

Problemas mentais – inclusive a desordem bipolar – são co-

muns no mundo inteiro, e afetam de 12% a 47% de pessoas em di-

ferentes populações. Nos Estados Unidos, a doença psiquiátrica

corresponde a 40% das deficiências médicas entre jovens adul-

tos, e os suicídios excedem os homicídios em dois por um. Gru-

pos isolados como os amish fornecem vantagens especiais para

investigar a hereditariedade de doenças psiquiátricas e outras

condições médicas comuns. Um empenho como esse, o Amish

Study of Major Affective Disorders (estudo amish sobre as prin-

cipais desordens afetivas) começou em 1976 e seguiu várias li-

nhagens grandes e de gerações múltiplas de amish com alta pre-

valência de desordem bipolar. Durante três décadas, o estudo

ampliou-se e incluiu mais de 400 indivídu-

os, e continua sendo um dos analisados

com maior intensidade na história da ge-

nética médica.

Em 31 de outubro de 2011, Puffenber-

ger e eu participamos de uma reunião de

família organizada por Alan Shuldiner e

pela Clínica de Pesquisa Amish (Amish

Research Clinic) da Universidade de

Maryland. Destacados pesquisadores psi-

quiátricos discursaram para um grupo de

pessoas das comunidades Simples, preo-

cupadas com a doença mental em suas fa-

mílias e comunidades. Quando a reunião

estava no fim, os pesquisadores resumi-

ram 35 anos de pesquisa bipolar entre os

amish com uma mensagem desalentado-

ra: “Não há muito o que dizer para vocês”.

No caminho até o estacionamento, fui pa-

rado por três irmãs amish cuja família ha-

via participado da pesquisa bipolar fami-

liar por mais de duas décadas. Nove entre

11 irmãos da geração delas haviam passa-

do grande parte de suas vidas debilitados

por manias ou depressões. Elas se pergun-

tavam se nossa clínica, que tinha a repu-

tação de lidar com problemas intratáveis, poderia ajudá-las a

entender se “algum gene estava envolvido”.

O momento era correto. Recentemente havíamos começado

e colaborar com o Instituto Broad, em Cambridge, Massachu-

setts, para explorar a utilidade do sequenciamento completo do

exoma, a fim de investigar desordens genéticas raras em crian-

ças. O exoma consiste de todas as letras de codificação, ou nu-

cleotídeos, que são “lidas” para que as 19 mil proteínas do cor-

po sejam construídas.

Apesar de o exoma representar somente 1% do genoma hu-

mano, ele contém a grande maioria de mutações genéticas que

podem causar doenças, e o sequenciamento completo do exo-

ma é, atualmente, o método mais eficaz e de menor custo para a

descoberta de genes de doenças.

Apesar de historicamente nossa clínica ter se concentrado

em saúde pediátrica, desordens psiquiátricas permeiam todos

os aspectos da vida familiar e da comunidade, e nossos colabo-

radores em Cambridge permitiram que reservássemos sete

amostras de exoma de adultos amish com distúrbio bipolar.

Surpreendentemente, todas as sete pessoas compartilhavam

uma variante extremamente rara em um gene que decodifica a

proteína KCNH7. Essa substituição de apenas uma letra, cha-

mada de mutação missense, altera a estrutura do KCNH7 em

um aminoácido conservado durante a evolução de muitas espé-

cies diferentes de animais; mudanças em regiões conservadas

dessa maneira com frequência alteram de forma crítica o modo

como a proteína funciona.

Nos dois anos seguintes, Sander Markx e Michael First, do de-

partamento de psiquiatria da Universidade Colúmbia, nos ajuda-

Grupos

isolados como os

amish fornecem

vantagens

especiais para

investigar a

hereditariedade

de doenças

psiquiátricas e

outras condições

médicas comuns.

Page 64: Scientific american brasil   janeiro 2016

64 Scientific American Brasil | Janeiro 2016

ram a expandir o estudo para englobar mais indivíduos e imple-

mentar um método de classificação rigorosa dos sintomas. Final-

mente tivemos o privilégio de colaborar com pesquisadores da

Faculdade de Medicina Weill Cornell, da Universidade da Pensil-

vânia, da Faculdade Franklin & Marshall e do Instituto de Medi-

cina Genética McKusick-Nathans. A abordagem dessa equipe

também permitiu que rastreássemos o movimento da proteína

KCNH7 nas células, demonstrássemos como sua forma mutante

altera o disparo elétrico nos neurônios e estabelecêssemos uma

fundação estatística para nossa descoberta. Pela primeira vez,

identificamos uma mudança genética específica, que sinaliza

uma forte predisposição para a doença bipolar entre os amish.

Publicamos nossas descobertas em 2014; agora elas permitem

que pesquisadores em todo o mundo explorem as conexões entre

o KCNH7 e doenças mentais em outras populações.

O KCNH7 é especialmente abundante em regiões cerebrais

que afetam o humor e a cognição, onde formam canais que fa-

zem a mediação do movimento do potássio pelas membranas

celulares. Essas ondas efêmeras de íons, saindo e entrando de

membranas muito finas para serem vistas, estão diretamente li-

gadas ao que pensamos e sentimos. Nossa experiência cotidia-

na contradiz esse fato; é difícil imaginar sinais eletroquímicos

na raiz da violência, do vício, da psicose e de suicídio. Mas nos-

sa pesquisa sugere que uma mudança sutil no limiar e na sin-

cronização de correntes de íon pode lançar uma pessoa em ci-

clos repetitivos de loucura e desespero.

Perceber, no plano genético, que a mente está inserida desse

modo permite que compreendamos o sofrimento mental em

termos concretos. A descoberta sobre a variante do KCNH7 é

importante porque fornece uma base para discussões racionais

entre cientistas e pacientes, e ajuda a eliminar as camadas de

culpa e vergonha que cercam a doença mental.

A curto prazo, o conhecimento que conecta a variante gené-

tica à doença bipolar pode levar a cuidados médicos mais opor-

tunos e eficazes para pessoas como Katie. Em um prazo mais

longo, pode ser que seja possível projetar drogas que modulem

o canal de íon do KCNH7 – uma forma de medicina de precisão

que poderia abrir uma nova classe completa de terapias para o

tratamento da desordem bipolar em todas as populações.

TEMPO E OPORTUNIDADE

O estudo da genética bipolar nos amish é uma parábola sobre

o futuro da medicina – sobre como a informação genética pode

ser usada para predizer seu futuro. Na clínica, agora temos um

teste sanguíneo simples e barato que pode ser coletado do san-

gue do cordão umbilical no nascimento, a fim de nos informar

sobre o risco de a criança desenvolver o distúrbio bipolar nos 30

anos seguintes.

Como as desordens psiquiátricas que surgem na idade adul-

ta frequentemente são precedidas por pensamentos e compor-

tamentos erráticos durante a juventude, a detecção precoce de

um fator genético de risco poderia possibilitar o cuidado com a

saúde mental com prazo maior e mais eficiência durante a

vida. Mas será que deveríamos começar a triar recém-nasci-

dos amish à procura da variante danosa do KCNH7?

Tais perguntas vêm se acumulando com rapidez e dizem res-

peito a todos nós. Dê uma olhadinha em seu exoma e encontra-

rá entre 20 mil e 40 mil anomalias da assim chamada sequên-

cia humana normal de letras do nucleotídeo. Vinte por cento

das variações no código de DNA têm o potencial de alterar a

função das proteínas, e cerca de 1 mil são extremamente raras,

possivelmente só de você. Quantas dessas mutações são capazes

de prever seu futuro? E, se isso for possível, o que pode ou

deveria ser feito a esse respeito? A resposta depende, em parte,

de qual conhecimento consideramos útil para cada pessoa em

particular e em uma época específica. Talvez esse seja um dos

fatores do sucesso de nossa clínica: o conhecimento cumulativo

sobre a população – meticulosamente adquirido nos últimos 25

anos – funciona como uma Pedra de Rosetta. Permite que deci-

fremos o significado dos dados genômicos em um contexto so-

cial específico e, a partir daí, projetemos um atendimento mé-

dico para o indivíduo sob medida: o tratamento certo para a

pessoa certa na hora certa.

Em todas as populações, esse tipo de conhecimento profun-

do sobre a ação genética permitirá que os cientistas visualizem

o equipamento celular em requintado detalhe e compreendam

como as diversas partes moleculares interagem na saúde e na

doença. Mas são as pessoas – e não as partes que as compõem –

que sofrem. Biólogos moleculares e clínicos que trabalham lado

a lado em uma escala apropriada, um paciente por vez, podem

tecer a genômica no ofício do médicos, produzindo estratégias

que são preventivas e não reativas.

A prática pediátrica é um bom local para colocar essa ideia

em teste. Em nossa clínica, o conhecimento e o tratamento

crescem no mesmo ritmo, enquanto exploramos as complexas

interações, entre variação genética e o ambiente, que têm papel

fundamental durante o estágio de formação da pessoa.

Cuidar de crianças nos coloca desafios para alavancar o po-

der de previsão do conhecimento genético, concentrando-nos

nos resultados de maior importância. Continuamos a fechar a

lacuna, uma criança por vez, entre a pesquisa genômica e a prá-

tica cotidiana da medicina, que na nossa clínica é um esforço

pragmático, direcionado para aquilo que essa criança precisa

agora mesmo.

PARA CONHECER MAIS

Kevin A. Strauss et al., em Human Molecular Genetics, vol. 23, no 23, págs. 6395–6406;1o de dezembro de 2014.

e D. Holmes Morton, em American Journal of Public Health, vol. 102, no 7, págs. 1300–1306; julho de 2012.

Annual Review of Genomics and Human Genetics, vol. 10, págs. 513–536; setembro de 2009.

Kevin A. Strauss et al., em Molecular Genetics and Metabolism, vol. 91, no 2,págs. 165–175; junho de 2007.

DOS NOSSOS ARQUIVOS

Dina Fine Maron, Ciência da Saúde,fevereiro de 2015.

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CIÊNCIA EM GRÁFICO

66 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016

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DE

2015

Gráfi co de Martin Krzywinski e B. Jeannie Hunnicutt

Corynebacterium

Lactobacillus

Porphyromonas

Moraxella

Jeotgalicoccus

Sporosarcina

Roseburia

Collinsella

Megamonas

Pasteurella

Helicobacter

Catenibacterium

Mai

sabu

ndan

teM

enos

abun

dant

e

Dermabacter

Treponema

Base

Chave

2x–2x–4x–8x–16x–32x

Resultado forte (p < 0,01) Resultado fraco (p < 0,05)

4x 8x 16x 32x

Diferença da base de referência*

SIMNÃO

Você tem um cão?

Você tem um gato?

Você temum gato?

Na sua casa vivem mais homens que

mulheres?

Na sua casa vivem mais homens que

mulheres?

Na sua casavivem maishomens que

mulheres?

Na sua casavivem maishomens que

mulheres?

Na sua casavivem maishomens que

mulheres?

Na sua casavivem maishomens que

mulheres?

Na sua casavivem maishomens que

mulheres?

Na sua casavivem maishomens que

mulheres?

Como jogar

(círculos)

(pontos)

*mostrada. Por exemplo, os pontos para uma residência com maioria de

RESIDÊNCIAS INDIVÍDUOS

O jogo da bactéria Análise do pó revela como a presença de homens, mulheres, cães e gatos afeta a

variedade de microrganismos domésticos

Estudos mostraram que homens lançam mais bactérias em

seu ambiente que mulheres. Cientistas descobriram agora que

homens e mulheres também têm diferentes efeitos sobre os tipos

de bactérias dentro de uma casa. A variação está relacionada à

biologia da pele e “talvez ao tamanho do corpo e práticas de hi-

giene”, segundo pesquisadores que sequenciaram os genes na

poeira acumulada no alto de portas em 1.200 residências nos

EUA. Cães aparentemente alteram as bactérias no lar de forma

mais ampla que humanos ou gatos. A identifi cação bacteriana de

cada um desses seres é tão diferente que, pelo simples exame do

pó de uma residência, os investigadores podem dizer com preci-

são se ali há mais mulheres ou homens, ou cães e gatos.

– Mark Fischetti

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