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Janeiro 2016 www.sciam.com.br
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16
4ISSN 1676-9791
ANO 14 | no 164 | R$ 13,90 | 4,90 €
ideias10mundo
Grandes avanços para melhorar aqualidade de vida, impulsionar acomputação, reduzir a poluição e
promover a sustentabilidade
ASTRONOMIARivalidade entre grupos de pesquisa prejudica projeto
de grandes telescópios
DINOSSAUROSImpacto de asteroide foi de fato devastador, mas o momento foi
um dos piores possíveis
AMBIENTEApós se alastrar pelo Sul e
Sudeste, o mexilhão-dourado chegou ao Rio São Francisco
BRASIL
JANEIRO 2016
NÚMERO 16 4 , ANO 14
INOVAÇÃO
24 Ideias para mudar o mundo 10 grandes avanços para melhorar a
vida, transformar a computação e
talvez até salvar o planeta.
Os editores
MEIO AMBIENTE
36 O invasor douradoOriginário da Ásia e detectado na
América do Sul em 1991, o molusco
mexilhão-dourado foi encontrado no
Rio São Francisco.
Arthur C. Almeida, Newton P. U.
Barbosa, Fabiano A. Silva, Jacqueli-
ne A. Ferreira, Vinícius de Abreu e
Carvalho, Marcela D. Carvalho e
Antônio V. Cardoso
PALEONTOLOGIA
42 O que matou os dinossaurosO impacto do asteroide foi ruim, mas
seu momento foi pior.
Stephen Brusatte
NA CAPA A edição atual de “Ideias para mudar o mundo” mostra o levantamento da de avanços da ciência e da tecnologia com
entre os principais a serem enfrentados pela sociedade em áreas como energia, segurança ambiental, informática, exploração espacial e outras. Ilustração de Tavis Coburn.
J nei o 2016 www s iam om br
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0SN
ANO 14 | n 64 | R$ 13 90 | 4 90 €
para mudar o10mundo
Grandes avanços para melhorar aqualidade de vida, impulsionar acomputação, reduzir a poluição e
promover a sustentabilidade
ASTRONOMIAR validade entre grupos depesquisa prejud ca projeto
de grandes telescóp os
DINOSSAUROSmpacto de asteroide foi de fatodevastador, mas o momento foi
um dos piores possíveis
AMBIENTEApós se alastrar pe o Sul e
Sudeste, o mexilhão-douradochegou ao R o São Francisco
ASTRONOMIA
49 Guerra de telescópiosAntigos rancores entre três equipes
de astrônomos têm ameaçado a
sobrevivência do maior e mais ousa-
do projeto de astronomia em solo.
Katie Worth
MEDICINA
55 Genômica para as pessoasClínica infantil fundada e fi nancia-
da por amish e menonitas mostra
que a pesquisa genética de alta tec-
nologia pode ser direcionada para
prevenir doenças.
Kevin A. Strauss
BRASIL
5 Carta do editor
6 CartasCIÊNCIA EM PAUTA
7 O preço da poluiçãoEstá na hora de taxar combustíveis fósseis.
Pelo Conselho de Editores da Scientifi c American
8 Memória
9 AvançosDinheiro fala e tuíta.
O curioso cortejo rotativo de uma espécie de morcegos.
Neutrinos do início dos tempos.
Químico desenvolve técnica para identifi car odores.
CIÊNCIA DA SAÚDE
16 A dor no cérebroNova teoria sobre a enxaqueca dá origem a medicamentos
que evitam crises.
David Noonan
TECNOLOGIA
18 A guerra digitalO que fazem as grandes companhias desse setor para atrair
você para seus ecossistemas.
David Pogue
OBSERVATÓRIO
19 Pingue-pongue e raios cósmicosAo rebater e impulsionar partículas, campos magnéticos
funcionam como raquetes.
Otaviano Helene
DESAFIOS DO COSMOS & CÈU DO MÊS
20 Civilizações superdiscretasSe houver vida inteligente fora da Terra, talvez seus sinais
sejam muito recatados.
21 Cometa vem com chuva de meteorosCatalina atinge brilho máximo e se exibe na constelação
do Boieiro, antes de se esconder em defi nitivo no
Hemisfério Norte.
Salvador Nogueira
CIÊNCIA EM GRÁFICO
66 O jogo da bactériaAnálise do pó revela como a presença de homens, mulheres,
cães e gatos afeta a variedade de microrganismos domésticos.
Mark Fischetti
7
9
20
SEÇÕES
EDIÇÃO ESPECIAL CÃES E GATOS 2
www sc am com br
O problemada obesidadeO mundo vistopor cachorrosA evoluçãoa partir do lobo
GatosCães
IS N 1 79522 9
Nº 67 R$ 13,90 € 4,50
Aciência
de
&
A vida interiordos felinosComo evitara gestação
Animaissentem empatia?
ESPECIALJá está nas bancas o volume 2 de “A
Ciência de Cães e Gatos” (à direita),
edição especial da Scientifi c Ame-rican Brasil. Além de temas
científi cos sobre os dois animais do-
mésticos mais presentes na vida
humana, os artigos abor dam também
nossa relação com eles. Como é o
mundo visto pelos cães? A partir de
que peso um cão pode ser conside-
rado obeso? Os gatos veem seus
donos como familiares? Os volumes 1
e 2 também estão à venda no site
http://www.lojasegmento.com.br
CARTA DO EDITOR
www.sciam.com.br 5
é editor da .
Os sotaques brasileiros do molusco asiáticoHá alguns anos, pescadores em rios de algumas das bacias da
regiões Sul, Sudeste e Centro-oeste do Brasil às vezes têm uma sur-
presa desagradável. Ao limpar, antes de assar, piaparas, mandis,
piaus cascudos, pacus e outras espécies que fi sgaram, eles encon-
tram estranhas conchas nas vísceras desses peixes. Na verdade,
por não poderem excretar esses moluscos que foram ingeridos
ainda na forma de minúsculas larvas, muitos peixes acabam mor-
rendo devido ao entupimento de seu trato intestinal.
Essa surpresa indesejada tem acontecido também em instala-
ções de captação de água para abastecimento e geração de energia
hidrelétrica, prejudicando inclusive usinas de grande porte, como
a de Itaipu, na fronteira entre Brasil e Paraguai no Rio Paraná, a de
Ilha Solteira, no mesmo rio, na divisa entre São Paulo e Mato Gros-
so do Sul, e a hidrelétrica de Água Vermelha, no Rio Grande, na di-
visa de São Paulo e Minas Gerais. Como não é possível desentupir
tubulações atingidas por essa praga, o jeito é substituí-las.
Esse invasor é o mexilhão-dourado, originário da Ásia e conhe-
cido pelo nome científi co Limnoperna fortunei. A mortandade de
peixes e o estrago em tubulações são apenas parte de danos de ex-
tensão muito maior devidos à infestação desse molusco, explicam
pesquisadores do Centro de Bioengenharia de Espécies Invasoras
(CBEI) e da Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG), em
seu artigo nesta edição de Scientifi c American Brasil.Limitada no Brasil até então às regiões Sul, Sudeste e Centro-
oes te, a presença dessa espécie invasora foi detectada em junho do
ano passado por técnicos do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), ao procederem a
uma vistoria no reservatório da usina hidrelétrica de Sobradinho,
na Bahia. Ou seja, a infestação chegou ao sertão nordestino e em
pleno Rio São Francisco, que passa por cinco estados – Minas Ge-
rais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas – e 521 municípios bra-
sileiros, por isso conhecido como “Rio da Integração Nacional”. E
próximo a um dos canais da enorme obra de transposição, em um
momento especialmente grave, marcado pela prolongada estia-
gem que tem prejudicado a economia e a população dessa região.
Até o início de dezembro, o Ibama não havia divulgado esse
fato para o público em geral. Em nota para meu blog no site do
jornal Folha de S.Paulo, o órgão afi rmou a necessidade de que “o
MMA [Ministério do Meio Ambiente] conduza os debates, sendo
o Ibama não mais que o executor das políticas daquele ministé-
rio. No momento, nem sequer existem recursos no Ibama desti-
nados ao controle de espécies exóticas invasoras”.
Felizmente, em outubro, a equipe de pesquisadores do CBEI e
da CEMI G foi a Sobradinho e confi rmou a presença do molusco
invasor. E divulgou um boletim de alerta nos dias seguintes.
Em dezembro, em Paris, na COP-21, a ministra do Meio Am-
biente, Izabella Teixeira, falou que, graças à atuação do Brasil, o
acordo sobre a mudança do clima, então em fi nalização, iria ter
“sutaque brasileiro” [sic]. Infelizmente, após todos esses anos de-
baixo do nariz do MMA, a infestação do mexilhão-dourado já
tem vários sotaques brasileiros, entre eles o gaúcho, o caipira do
Sul de Minas e São Paulo e, agora, o baiano. Por enquanto.
Boa leitura!
ALGUNS COLABORADORES
Arthur C. Almeida, ,
,
e são pesquisadores
do Centro de Bioengenharia de Espécies Invasoras (CBEI) em Belo Horizonte, MG.
é analista de meio ambiente da Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG) em Belo Horizonte, MG.
escreve sobre ciência e medicina. Ele abordou tratamentos para vertigem na edição de setembro.
é colunista-âncora do Yahoo Tech e apresentador das minisséries NOVA na PBS.
Katie Worth é uma repórter do Frontline, uma produção televisiva da WGBH, em Bos ton. Ela passa tempo pensando em política, ciência e suas intersecções.
é doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade Harvard e diretor médico da Clínica para Crianças Especiais em Strasburg, Pensilvânia
mestre e doutor em física pela Universidade de São Paulo, onde é professor, tem
trabalhado em áreas que incluem tratamento estatís-tico de dados experimentais. Tem se dedicado também a trabalhos de
é jornalista de ciência especializado emastronomia e astronáutica.
é paleontólogo da Universida-de de Edimburgo, na Escócia. Ele pesquisa evolução e anatomia de dinossauros. No artigo anterior que escreveu para a American ele analisou a ascensão dos tiranossauros.
NEW
TON
P. U
. BAR
BOSA
6 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016
OEFEITOPIRÂMIDEAchei muito esclarecedora a matéria sobre como foi
possível há milhares de anos os egípcios construírem
esses gigantescos monumentos que são as pirâmides.
Enfim, não existe mistério nenhum. O “segredo”, como
bem explicou a revista, existia apenas por desconheci-
mento, que muitas vezes deu espaço para charlatões aproveitarem para
fomentar o ocultismo oportunista e vender livros mistificadores. É
muito bom poder contar com a divulgação de informações esclarecedo-
ras e desmistificadoras como essas, deste mês de dezembro (edição nº
163), da Scientific American Brasil. Obrigado!
CHIPSEVITAMTESTESCOMANIMAISParabéns aos pesquisadores alemães que estão desenvolvendo essa
maravilhosa tecnologia que permite à ciência, sem maltratar seres vivos,
continuar o desenvolvimento de novos medicamentos e até mesmo de
novos cosméticos – pois a vaidade faz muita gente esquecer ou descon-
siderar a crueldade cometida contra os animais em experimentos. Para-
béns aos brasileiros que estão trazendo essa tecnologia para nosso país.
E parabéns para a Scientific American Brasil [edição de novembro
(nº 162)] por divulgar essa informação.
Sensacional a revista de novembro [edição nº 162] sobre os
chips feitos por cientistas para livrar animais da crueldade em
experimentos científicos.
A edição de vocês de novembro foi show também. Eu a li toda e em
pouco tempo.
100ANOSDARELATIVIDADEGERALAdorei a edição da Scientific American Brasil de outubro [nº 161],
que comemorou os 100 anos da teoria da relatividade geral de Albert
Einstein. Fiquei espantada por saber das informações sobre as dificul-
dades enfrentadas por ele na elaboração dessa teoria e também dos pre-
conceitos dele sobre outros conhecimentos da ciência.
CORREÇÕESAScientificAmerican dos EstadosUnidos publicou as seguintes cor-
reções que correspondemànossa edição de outubro (nº 161).
1)Noartigo “OndeEinstein errou”, napág. 46, está erradaaafirmação
“Einstein tinha feito os mesmos cálculos da curvatura da luz em 1912”,
pois o fato se deu em 1911.
2)Esse errodedata se repetiunapág. 48, no infográfico complementar
ao mesmo artigo, “Os grandes erros de Einstein”, em seu item “Lentes
gravitacionais”.
POR RESTRIÇÃO DE ESPAÇO, A REDAÇÃO TOMA A LIBERDADE DE ABREVIAR CARTAS MAIS EXTENSAS.
EDIÇÃO 163
Dez mbro 2015 www c am com br
SN
ANO 4 | n 163 | R$ 13 90 | 4 9
daspirâmides
O
Por trás dessas grandes obrasm lenares existia uma complexaorganização social capaz de unir todosos recursos e esforços do ntigo Egito
MEDICINANanossessores estão cada vezmais próximos de diagnos icar
infecções em m nutos
COSMOLOGIAOs primeiros passos do proje opara expl car a expansão cadavez mais rápida do Universo
AGRICULTURA
e cientistas agrava praga que atinge olivais italianos
segredoEdimilson Cardial
Carolina Martinez,
Marcio Cardial, Rita Martinez e
Rubem Barros
ANO 14 – Nº 164
JANEIRO DE 2016
ISSN 1676979-1
Rubem Barros
Maurício Tuff ani
João Marcelo Simões
Jullyanna Salles (web)
Luiz Roberto Malta
e Maria Stella Valli (revisão); Aracy
Mendes da Costa, Laura Knapp,
Marcio G. B. Avellar, Regina Cardeal,
Suzana Schindler (tradução)
Paulo Cesar Salgado
Cinthya Müller
Sidney Luiz dos Santos
Almir Lopes
Brasília – Sonia Brandão
(61) 3321-4304/ 9973-4304
Paraná – Marisa Oliveira
(41) 3027-8490/9267-2307
Paulo Cordeiro
Diego de Andrade
Carolina Martinez
Carolina Madrid
Lila Muniz
Jonatas Moraes Brito
Lucas Carlos Lacerda
e Lucas Alberto da Silva
Gabriel Andrade
Mariana Monné
Ana Lúcia Souza
Cláudia Santos
Cleide Orlandoni
Roseli Santos
Simone Melo
Weslley Patrik
Cláudia Barbosa
Cinthya Müller
Viviane Carrapato
SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL é uma
publicação mensal da Editora Segmento,
sob licença de Scientifi c American, Inc. .
SCIENTIFIC AMERICAN INTERNATIONAL
Mariette DiChristina
Fred Guterl
Ricki L. Rusting
Philip M. Yam
Mark Fischetti
Christine Gorman, Anna Kuchment,
Michael Moyer, George Musser,
Gary Stix, Kate Wong
Michael Mrak
Monica Bradley
Steven Inchcoombe
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CIÊNCIA EM PAUTA OPINIÃO E ANÁLISE DO
CONSELHO EDITORIAL DA SCIENTIFIC AMERICAN
www.sciam.com.br 7Ilustração de Thomas Fuchs
O preço da poluiçãoEstá na hora de taxar combustíveis fósseisDos editores
Na Colúmbia Britânica, a poluição do ar diminui, enquanto a
economia cresce. Em 2008, a província canadense começou a
taxar usuários de combustíveis fósseis, de grandes fábricas a pro-
prietários de automóveis. Desde então, a economia vem crescen-
do, em média, cerca 2% ao ano, apesar da grande recessão nacio-
nal que atravessou em 2009, superando o resto do Canadá. No
mesmo período, o consumo de gasolina, carvão e outros combustí-
veis à base de carbono diminuiu 16%, com redução paralela dos
gases estufa. O imposto sobre o carbono é de 30 dólares canaden-
ses por tonelada cúbica. Como compensação, indústrias e cida-
dãos têm redução no imposto de renda e outros benefícios.
A Colúmbia Britânica copiou a ideia de sua vizinha produtora
de petróleo, a província de Alberta. Agora é a hora certa para os
Estados Unidos copiarem esse exemplo. Carvão, gás e petróleo
estão tão baratos atualmente que mesmo com um imposto adicio-
nal, o custo dos combustíveis permanecerá mais baixo que o valor
que a população e as empresas pagavam há apenas alguns anos.
Isso é economia básica de mercado: se for cobrado um valor
sobre o uso do ar, as pessoas não o tratarão mais como um depósito
de lixo. A ideia é antiga. Em 1920 o economista Arthur Pigou suge-
riu que obrigar poluidores a pagar pelo ar que poluíam desencora-
jaria uma descarga abusiva de poluentes, no mesmo modelo dos
impostos sobre artigos supérfl uos como bebidas alcoólicas e cigar-
ros. Anos depois, o já falecido economista Ronald Coase, Nobel de
Economia em 1991, aprimorou a ideia. Ele propôs que o governo
vendesse às companhias e pessoas o direito legal de poluir, for-
mando uma espécie de mercado da poluição. Todos podiam con-
correr para comprar essas permissões, o que elevaria o preço do ar
sujo. A ideia de Coase convenceu até o ícone conservador Milton
Friedman de que comercializar, comprar ou vender direitos de
poluir eram o meio racional de resolver problemas ambientais.
Mais recentemente, os EUA usaram esse mecanismo de merca-
do para combater um problema específi co de poluição: a chuva
ácida. Nos anos 1990 a administração George Bush impôs um
limite máximo na quantidade de dióxido de enxofre que poderia
ser emitida pelas chaminés das usinas de energia elétrica. Cotas
dessas quantidades foram divididas entre os poluidores. Para se
manter dentro da cota, os proprietários de usinas de energia deve-
riam instalar equipamentos para fi ltrar os poluentes ou usar com-
bustíveis menos poluentes. Ou poderiam desembolsar uma boa
quantia para aumentar sua cota, comprando permissões de outros
poluidores que já tivessem reduzido suas emissões.
Para combater o dióxido de carbono nove estados do nordeste
dos EUA aderiram a um programa similar para usinas de energia,
e a Califórnia até incluiu veículos, como fez a União Europeia. Mas
as tentativas em nível nacional foram rejeitadas pela oposição
como um imposto a mais, o que poderia custar empregos.
Uma abordagem mais direta – cobrar imposto sobre o carbono
– poderia ter benefícios imediatos para os negócios e não signifi -
caria uma conta fi nal mais alta. Como foi feito na Colúmbia
Britânica, o imposto sobre o carbono poderia substituir outros
impostos. Uma taxação de US$ 25 por tonelada de carbono emiti-
da por queima de carvão, gás e petróleo, por exemplo, resultaria
em mais de US$ 100 bilhões que poderiam ser compensados
reduzindo impostos na folha de pagamento, estimulando créditos
que seriam deduzidos do imposto de renda, fi nanciando pesquisas
em inovação ou revertendo em melhoria de infraestrutura, ou
qualquer combinação dessas medidas. Foi por isso que a proposta
recebeu apoio de economistas dos partidos Democrata e Republi-
cano. O imposto também não penalizaria os consumidores. Na
Colúmbia Britânica a cota de impostos na bomba de gasolina é de
apenas cerca de sete centavos de dólar canadense a mais por litro.
Se a palavra “imposto” continua assustando os políticos, não há
outro jeito, se não o mais direto, para criar um verdadeiro merca-
do de carbono: parar de gastar dólares arrecadados em impostos
para subsidiar combustíveis fósseis. Segundo o Fundo Monetário
Internacional, mais de meio trilhão de dólares são gastos, no mun-
do todo, para tornar o preço do carvão, gás e petróleo mais barato
para a indústria explorar ou para os consumidores queimarem.
Esses subsídios dão uma falsa impressão de que os combustíveis
fósseis são baratos. Qualquer abordagem que pare de mascarar o
preço verdadeiro, seja um imposto, um limite de comercialização
ou uma revisão dos subsídios, ajudaria a limpar o ar.
50, 100 & 150 ANOS DE MEMÓRIA INOVAÇÕES E DESCOBERTAS NARRADAS PELA SCIENTIFIC AMERICAN
8 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016
SCIE
NTI
FIC
AMER
ICAN
,VO
L.CX
IV,N
O1;
JAN
EIRO
DE
1916
.
Janeiro 1966
Teste com laser“O anúncio, em 1960, de
que um modelo funcio-
nal de laser havia sido
obtido foi celebrado
com entusiasmo por militantes de diversas
áreas. Como a luz produzida por essa ra-
diação é coerente e monocromática, o laser
foi considerado, na época, como a resposta
para as preces dos engenheiros de comuni-
cação. Embora um sistema funcional e
prático de comunicação de longa distância
por laser ainda deva ser construído, o en-
tusiasmo inicial não diminuiu.”
Japoneses antes de Colombo?“À medida que civilizações do Novo Mun-
do se tornaram mais bem conhecidas ar-
queologicamente, paralelos surpreenden-
tes foram observados na arquitetura, práti-
cas religiosas e em estilos de arte da Ásia.
Foi sugerido que esses paralelos são evi-
dências de ‘descobertas’ da América, não
registradas, anteriores à chegada de Co-
lombo. (...) Investigações arqueológicas re-
centes na costa do Equador, no entanto, le-
vam a uma única conclusão: um barco car-
regado de viajantes do Japão perambulou
intencionalmente pelas costas do Novo
Mundo, cerca de 4.500 anos antes de Cor-
tez chegar ao México. — Betty J. Meggers.”
Janeiro 1916
Rodovia nacional“Passei minhas férias
deste ano numa viagem
de carro para a Costa do
Pacífi co pela Lincoln
High way (construída em 1913). Há dois
anos, quando realizei essa mesma viagem,
foi um fato inusitado — talvez um dos 50
turistas que fi zeram a mesma viagem. Não
creio que seja exagero afi rmar que nos úl-
timos meses eu fui um dos cinco mil que
tentaram chegar à Costa do Pacífi co de car-
ro, e realmente cheguei lá depois de uma
série de experiências que fariam o autor de
um popular suspense moderno corar de
vergonha por falta de imaginação. É a me-
lhor estrada de rodagem, a única, que liga
o Atlântico ao Pacífi co.”
Alguns trechos da Lincoln Highway permaneceramsem asfalto até os anos 1930.
Carros mais rápidos“O desenvolvimento mecânico mais inte-
ressante do ano foi o aumento da populari-
dade dos carros com vários cilindros, re-
presentados pelo motor de quatro cilin-
dros duplos e de seis cilindros duplos, o
primeiro formando um motor de oito cilin-
dros e o último de 12 cilindros. As vanta-
gens desses carros com vários cilindros são
tão notáveis em todos os sentidos que não
precisam de mais elaboração.
(Ver ilustração.)”
Janeiro 1866
Cometa de 1861“M. (Emmanuel) Liais,
famoso astrônomo, pu-
blicou cálculos provan-
do inquestionavelmen-
te que em 19 de junho
de 1861 a Terra realmente havia passado
por uma das caudas do cometa. O momen-
to do contato foi aos 12 minutos depois da
seis da manhã, horário do Rio de Janeiro, e
segundo as dimensões calculadas por M.
Liais, a Terra deve ter permanecido total-
mente imersa em sua cauda por cerca de
quatro horas! Essa imersão não representa
efeitos perceptíveis no clima, um fato notá-
vel, acrescentando mais uma razão às vá-
rias que já existem, para a suposição de
que a matéria cometária é um milhão de
vezes mais rarefeita que nossa atmosfera.”
Em 1880 Heinrich Kreutz calculou que o período orbital do cometa era de 409 anos.
Manias“Estranhas paixões se apoderam da
humanidade em certos momentos.
Moedas têm seu valor, quadros são
ansiosamente adquiridos, tulipas ho-
landesas atingem preços exorbitantes
e, ultimamente, selos postais têm sido
o alvo das atenções. Todas essas ex-
centricidades humanas são explora-
das por pessoas espertas com mentali-
dade especulativa que desejam obter
lucros, honestamente ou não. Alguns
ilustradores de selos franceses pensa-
ram que valeria a pena o esforço de
desenhar novos selos postais, como ja-
mais tinham sido vistos antes. Os se-
los foram desenhados para serem dis-
tribuídos pelo correio das ‘Ilhas Sand-
wich’, e por isso foram avidamente
adquiridos por compradores crédulos
que imaginavam que naquela região
nada seria absurdo. Os selos havaia-
nos, não genuínos, são laranja, violeta,
verde e outras cores do arco-íris.”
Por volta de 1916, os carros motorizados tornaram-
corridas esportivas em pistas de alta velocidade
www.sciam.com.br 9
SAÚDE
Antídotos mais efi cazesPesquisas trazem novas perspectivas para tratar picadas de cobras
A medicina moderna é capaz de cultivar rins a
partir do zero, impedir a propagação de doenças
infecciosas como Ebola e diagnosticar a causa de
uma tosse com um smartphone. Mas picadas de
cobras ainda frustram a ciência. Todos os anos, o
veneno de serpentes mata quase 200 mil pessoas
e deixa outras centenas de milhares desfi guradas
ou incapacitadas, tornando esses répteis escama-
dos rastejantes o segundo animal mais mortífero
do mundo. Só mosquitos talvez matem mais pes-
soas todos os anos (ao disseminarem os protozoá-
rios que causam malária).
Cobras venenosas recentemente deslizaram
novamente para as manchetes noticiosas quando
foi revelado que líderes do mundo farmacêutico
haviam decidido suspender o desenvolvimento
de antídotos. A empresa farmacêutica francesa
Sanofi Pasteur, por exemplo, foi destaque em
setembro de 2015, quando a ONG internacional
Médicos Sem Fronteiras (MSF) anunciou que o
lote fi nal do soro antiofídico FAV-Afrique, o único
que provou tratar efetivamente vítimas de pica-
A naja indiana, Naja naja, abre seu “capuz”, ou “manto”, quando ameaçada. Ela é uma das serpentes mais mortíferas no subcon-tinente indiano.
• Dinheiro fala e tuíta
• O curioso cortejo rotativo de uma espécie de morcegos
• Neutrinos do início dos tempos
odores
NÃO DEIXE DE LER
AVANÇOS CONQUISTAS EM CIÊNCIA , TECNOLOGIA E MEDICINA
10 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016
AVANÇOS
das peçonhentas na África Subsaariana,
expirou em junho. A Sanofi , único fabri-
cante, suspendeu sua produção em 2014
porque a droga não compensava fi nancei-
ramente. Outras empresas já tinham
tomado medidas similares, inclusive a
Behringwerke, alemã, e a Wyeth Pharma-
ceuticals dos EUA (agora parte da Pfi zer).
A situação terapêutica agravou-se tan-
to que a MSF agora descreve picadas de
cobras como “uma das emergências de
saúde pública mais negligenciadas do
mundo”. E, em outubro, dezenas de espe-
cialistas que participavam do 18º Congres-
so Mundial da Sociedade Internacional de
Toxicologia, em Oxford, na Inglaterra,
pediram que a Organização Mundial da
Saúde (OMS) listasse picadas de cobras
novamente como doença tropical carente
de atenção. A maioria desses incidentes
ocorre na África e no Sudeste Asiático.
O desenvolvimento de antídotos enca-
lhou no século 19 porque o campo é subfi -
nanciado, diz David Williams, toxicologis-
ta clínico e herpetólogo da Uni ver si dade
de Melbourne e também dirigente da
ONG Iniciativa Global contra Picadas de
Cobras (Global Snakebite Initiative). Para
isolar compostos para tratamentos, pes-
quisadores normalmente injetam veneno
em níveis subtóxicos em ani mais, coletam
os anticorpos formados pela resposta
imune e os depuram. Antídotos precisam
ser customizados para diversas toxinas de
diferentes espécies de serpentes por
região. Não existe um antídoto universal.
Apesar de obstáculos e restrições, gru-
pos de pesquisa de várias partes do mun-
do trabalham discretamente em soluções
novas e empolgantes à espera de um sub-
sídio inesperado de dinheiro e impulso
para prosseguir. Entre as novas possibili-
dades se destaca um antídoto desenvolvi-
do especialmente para a África Subsaaria-
na, que poderia servir como modelo para
a produção de compostos mais baratos
para combater picadas de cobras veneno-
sas de outras regiões. Pesquisadores do
Reino Unido, Costa Rica e Espanha come-
çaram com um “antídoto básico” compro-
vado para três serpentes e já fazem sua
triagem contra toxinas de mais cobras.
Proteínas da toxina que não se ligam ao
antídoto-base são examinadas sobre sua
toxi cidade; somente as toxinas identifi ca-
das como perigosas são incorporadas ao
coquetel imunizante usado para produzir
o próximo lote de antídoto mais efi ciente.
Essa triagem seletiva e os testes iterati-
vos de proteínas específi cas resultam em
um antídoto direcionado mais forte em
comparação com outros convencionais,
que neutralizam indiscriminadamente as
proteínas tóxicas e as inócuas do veneno.
O grupo também planeja reduzir custos
com um método pioneiro desenvolvido na
Costa Rica, que requer menos etapas no
processo de produção. “Nossa meta é
criar um produto mais barato, ou tão
barato quanto US$ 35 por ampola, para a
África Subsaariana”, diz Robert Harrison,
diretor da Escola de Medicina Tropical de
Liverpool, na Inglaterra. O soro antiofídi-
co da Sanofi custa US$ 150 por frasco.
Outros animais, e bactérias, podem
fornecer antídotos alternativos. Uma pro-
teína de gambá, identifi cada originalmen-
te na década de 1990, já provou proteger
camundongos contra toxinas ofídicas
capazes de provocar hemorragia interna
generalizada. Além disso, a proteína neu-
tralizou toxinas hemorrágicas de cobras
venenosas nos EUA e no Paquistão. A des-
coberta sugere que ela talvez possa prote-
ger contra todas as toxinas ofídicas
hemorrágicas, observa Claire Komives,
engenheira química na Universidade
Estadual de San José, na Califórnia. Ela já
demonstrou que pode modifi car genetica-
mente bactérias Escherichia coli para que
produzam a proteína; o que poderia redu-
zir o custo terapêutico para cerca de US$
10 por ampola. “Estou tentando fazer isso
em bactérias porque podemos intensifi car
[a produção] mais economicamente”, diz.
Para fi nanciar sua pesquisa, Komives ape-
lou ao serviço de crowdfunding (fi nancia-
mento coletivo) Experiment.com.
Grupos de pesquisa em outros lugares
se afastaram completamente do desenvol-
vimento de antídotos tradicionais. Mat-
thew Lewin, diretor do Centro para
Exploração e Saúde em Viagens da Acade-
mia de Ciências da Califórnia, começou a
triar medicamentos aprovados pelo FDA
– órgão dos EUA que controla alimentos e
medicamentos – para ingredientes quími-
cos que poderiam formar a base de uma
injeção ou pílula que estabilize pessoas
picadas no campo ou
que pelo menos lhes dê
tempo para chegarem a
um hospital. “Se existis-
se um antídoto farma-
cêutico, a pessoa sem-
pre poderia levá-lo
consigo”, argumenta
Lewin. Muitas mortes
decorrentes de picadas
de cobras peçonhentas acontecem justa-
mente quando as vítimas não conseguem
chegar a hospitais ou clínicas para rece-
ber um antídoto intravenoso.
Da mesma forma, Sakthivel Vaiyapuri,
pesquisador farmacológico na Universi-
dade de Reading, na Inglaterra, está trian-
do moléculas que bloqueiam os efeitos de
venenos de serpentes. Ele também espera
acabar conseguindo desenvolver um
coquetel de inibidores químicos que
poderiam levar a um antídoto universal.
Tratamentos modernos contra vene-
nos seriam um sólido primeiro passo para
reduzir mortes resultantes de picadas de
cobras. Mas até as melhores terapias do
mundo falharão sem fi nanciamento e dis-
tribuição adequada. “Se os ministérios de
saúde responsáveis pelo bem-estar físico
das pessoas não priorizarem tratamentos
contra picadas de cobras, você está baten-
do sua cabeça contra uma parede de tijo-
los”, resume Williams da ONG Global
Snakebite Initiative. —Jeremy Hsu
O desenvolvimento de antídotos encalhou no século 19 porque o
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www.sciam.com.br 11Ilustração de Thomas Fuchs
APRENDIZADO DE MÁQUINAS
Dinheiro fala e tuítaInternautas deixam pistas de seu status socioeconômico
Como sexo, dinheiro é um tema que a maioria das pessoas evita discutir publi-camente. No entanto, deixamos regular-mente rastros digitais de nossa situação econômica, mesmo quando nos expres-samos nos 140 caracteres do Twitter.
Uma análise de cerca de 10,8 milhões de tuítes postados por mais de cinco mil usuários da rede de mídia social on-line constatou que as sucintas mensagens
revelar a faixa de renda de uma pessoa. Daniel Preo iuc-Pietro, pesquisador de pós-doutorado em processamento de lin-guagem natural, e seus colegas na Uni-versidade da Pensilvânia se basearam em
90% de suas amostras em grupos de ren-da correspondentes. Eles usaram um pro-grama capaz de aprender a partir de dados e fazer previsões baseadas neles,
grupo. Aplicado aos outros 10% de amos-tras, o modelo previu com sucesso os
Conforme os pesquisadores descreve-ram na PLOS ONE, pessoas com rendi-mentos mais altos tenderam a discutir
lucrativos. Usuários em faixas de ren-das mais baixas se ativeram principal-mente a assuntos pessoais, como dicas de beleza e experiências. “Pes-soas de renda mais alta usam o Twit-ter como meio para divulgar informa-
ções; as de rendas mais baixas o usam mais para comunicação social”, explica
Preo iuc-Pietro. A análise também reve-lou que tuítes de usuários que ganham mais dinheiro são mais propensos a expressar temores ou indignação.
Em estudos anteriores, Preo iuc-Pietro e seus colegas foram capazes de prever o gênero, a idade e a tendência política de usuários do Twitter. Eles conseguiram até detectar sinais de depressão pós-parto e transtorno de estresse pós-traumático. “O aprendizado de máquinas só é tão poderoso quanto os dados que podemos acessar”, diz Preo iuc-Pietro. “As pessoas devem estar cientes do quanto revelam inadvertidamente sobre elas mesmas”.
—Rachel Nuwer
COMPORTAMENTO ANIMAL
Bat karaokêMachos de morcegos cantam em rodízio para ampliar cortejos
restas ecoam guinchos e chiados de ma-chos de morcegos de cauda curta (Mystaci-na tuberculata), que cantam até 100 mil “canções românticas” por noite, mais do que qualquer outro animal, para atrair umacompanheira. Eles executam suas serenatasdo alto de um poleiro especial, usado exclu-sivamente para exibição sexual.
Após estudar os hábitos desses mamí-feros noturnos durante três anos, Cory Toth, da Universidade de Auckland, constatou que os machos fazem uso compartilhado em quase metade dos 12 poleiros de canto que observou na Ilha do Norte. “Um macho estará can-tando, sairá de lá, e apenas três segun-dos depois outro concorrente entrará no
poleiro e começará a cantar”, explica Toth. Ao todo, de dois a cinco machos se apre-sentarão todas as noites em um poleiro, cantando durante algumas horas cada um.
Em termos gerais, os “palcos” comparti-lhados transmitem mais músicas que os ocupados por apenas um único morcego durante a noite toda, aumentando as chan-ces de que uma fêmea que esteja passando por perto pare por ali. De início, Toth teori-zou que os morcegos praticantes de time-
-share eram aparentados e trabalhavam juntos para garantir o sucesso reprodutivo
quando os machos em três de quatro polei-ros de cantoria revelaram não ter vínculos de parentesco, ou eram apenas distante-mente aparentados, a atenção dele se vol-tou para o tamanho dos morcegos: os machos que se revezavam no palco eram bem maiores que os que cantavam sozi-nhos. Machos maiores gastam mais ener-gia nas tarefas diárias de sobrevivência e, portanto, talvez poupem suas forças à noite ao se alternarem na cantoria, sugere Toth. De fato, testes de DNA revelaram que o sucesso reprodutivo de morcegos maiores
e menores dentro da colônia era mais ou menos igual, sugerindo que o esquema de “time-share” dos poleiros ajuda os maiores a competir com os pequenos.
O conhecimento dos hábitos repro-dutivos da espécie poderia fornecer
informações valiosas para os esforços de conservação. — David Godkin
12 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016
AVANÇOS
TECNOLOGIA
Faixas de pedestressem riscosTreinamento poderia melhorar a habilidade de criançaspara atravessar ruas
“Olhe para os dois lados antes de atravessar a rua!”“Olhe para aesquerda, para a direita e novamente para a esquerda!”Essas clássi-cas lições de segurança da infância se estendem por gerações eculturas.Ainda assim, acidentes de trânsito continuam sendo umadas fontes mais comuns de ferimentos e fatalidades para criançasao redor do mundo. Na União Europeia, menores de 14 anos res-pondem por uma proporção bem mais elevada de mortalidade depedestres do que qualquer outro grupo etário, exceto o dos idosos;nos EUA, entre as crianças mortas por carros, quase 25% estavam apé. Os números são particularmente assustadores em Israel, ondeelas representam 20% das mortes de pedestres.
Estudos passados constataram que jovens são menos hábeis
catedrática em engenharia e gestão industrial na UniversidadeBen-Gurion do Negev e no Instituto Holon de
precisão quais comportamentos levavam aacidentes, com o objetivo de encontrar meiospara corrigi-los.
Para fazer isso sem colocar ninguém em
perigo, ela recorreu à realidade virtual. Em2013, Meir e seus colegas simularam 18 ruasprototípicas em Israel e utilizaram um disposi-tivo de monitoramento ocular para estudarcomo 46 adultos e crianças (com idades entresete e 13 anos) avaliavam quando era seguroatravessar. Eles constataram que criançasentre sete e nove anos demonstravam menorcuidado, decidindo tipicamente pisar, ouentrar na rua virtual com pouca ou nenhumahesitação, mesmo quando seu campo devisão era restrito.“Tínhamos pais observandoque reagiram com expressões como‘Uau! não
vessar ali’”, conta Meir.“Isso os levou a reava-
uma rua.”As crianças mais velhas não tiveramum desempenho muito melhor, embora por
na calçada por tempo excessivo, uma indica-ção de que são menos capazes de distinguirentre situações seguras e perigosas que adul-tos e, em entrevistas, não expressaram umacompreensão de como fatores como velocida-
de de carros e campo de visão afetam uma travessia segura.Intervenções parecem melhorar o desempenho. No estudo
mais recente de Meir, descrito em Accident Analysis & Prevention,24 crianças, com idades entre sete e nove anos, passaram por umtreinamento de 40 minutos para aprender a detectar perigos.Depois disso, Meir e seus colegas compararam o comportamentodas crianças treinadas com o de um grupo de controle não treina-do na tarefa de atravessar uma rua virtual. Os jovens que recebe-
no cruzamento do que os do grupo de controle, a ponto de suashabilidades de travessia se assemelharem às de adultos.
Agora, Meir e formuladores de políticas pretendem descobrircomo traduzir essas constatações para o mundo real.“Esses tiposde resultados são importantes porque não se pode elaborar inter-venções sem uma compreensão do problema”, observa JosephKearney, professor de ciência da computação e diretor associadode pesquisa e infraestrutura na Universidade de Iowa, que nãoesteve envolvido no trabalho.“Agora cabe a pessoas ‘que estãocom seus pés no chão’determinar como podem desenvolver pro-gramas de treinamento para crianças e pais sobre bons hábitospara atravessar ruas e avenidas.”—Rachel Nuwer
Crianças com idades de sete a nove anosdemonstraram menor cuidado ao atravessar,decidindo tipicamente entrar na rua virtualcom pouca ou nenhuma hesitação
Quando sentiam que era segu-ro atravessar uma rua virtual, as crianças apertavam um botão para indicar “atravessar”
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MEIO AMBIENTE
Reservatórios subterrâneosHidrólogos testam técnica agrícola que poderia aliviar as secas
A Califórnia está estorricada. Sem chuva para irrigar terras agrícolas, produtores recorrem a aquíferos subterrâneos, mas o bombeamento excessivo já teve sérias consequências, ao fazer com que os lençóis freáticos caíssem drasticamente.
da Califórnia em Davis estão realizando experimentos com o chamado groundwa-ter banking, uma ferramenta de gestão hídrica desenvolvida para aumentar a con-
feros. No verão, esse excesso de água absorvida no inverno pode, então, servir para irrigar culturas em desenvolvimento, explica Helen Dahlke, da universidade.
Durante dois meses neste inverno Dahlke e sua equipe inundarão pomares de amendoeiras no Central Valley, perto de Davis, até uma profundidade de 60 cm, ao redirecionarem as águas pluviais por uma rede de canais concebidos originalmente para desviar águas de enchentes para longe. Testes anteriores da técnica provaram ser bem-sucedidos. Em 2011, Don Cameron, gerente-geral da Terranova Ranch Inc. desviou águas de enchente do Rio Kings, em Fresno County, para pouco mais de 97 hectares de vinhedos e outras terras agrícolas, inundando-os durante cinco meses.
ser bombeada de volta para as lavouras durante o ciclo de crescimento seguinte.
gia arbórea e em que medida sais e nitratos de fertilizantes poderiam migrar para a água potável. Os custos do desvio de águas pluviais e questões legais, inclusive a quem pertence a água captada, também precisam ser resolvidos. Ainda assim, cer-ca de 1,45 milhão de hectares de terras agrícolas na Califórnia poderiam servir como pontos de recarga de águas subterrâneas. E, como climatologistas esperam
uma única estação de fortes chuvas de inverno, um número crescente de fazendei-ros está mais que interessado nas novas possibilidades para suas terras. Como observa Cameron: “A seca torna as pessoas mais criativas”. —Jane Braxton Little
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GEOLOGIA
Calor interno da TerraGeólogos têm debatido há
décadas a causa das chamadas
xos de rochas superaquecidas que escapam e ascendem do núcleo da Terra, ou em reserva-tórios de calor mais rasos no manto superior. Sismólogos da Universidade da Califórnia em Berkeley e do Laboratório Nacio-nal Lawrence Berkeley recente-
das entranhas do planeta. E encontraram mais de duas deze-
rando continuamente do núcleo para a superfície; muitas delas alimentando hotspots direta-mente. As plumas, relatadas na revista Nature, fornecem a pri-meira evidência direta de que essas colunas de calor geram pontos quentes vulcânicos, como a Islândia e a cadeia de ilhas do arquipélago do Havaí. — Shannon Hall
28do núcleo terrestre
600 a 800 kmLargura média das plumas.
44 terawatts (44 trilhões de
joules por segundo)Calor liberado pela Terra por meio de plumas mantélicas
Inundação intencional de terras agrícolas, como o pomar de nogueiras, abaixo, tem o potencial para reabastecer os aquíferos da Califórnia
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14 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016
AVANÇOS
EMPREGOS ESTRANHOS
Ned, o narizUm cientista e engenheiro de odores sabe como “farejar” aromas ruins
O nariz de Ned Ostojic o levou a lugares que variam de estranhos a repugnantes. Ele inalou o ar de fábricas de conservas de atum na Samoa Americana, cheirou ração canina moída e pegajosa em fábricas de pet-food no Canadá, e “farejou” tanques de esgoto no Brooklyn. Globalmente, só existem poucas pessoas como ele: especialistas em diagnosticar odores ofensivos. Seus clientes em geral estão desesperados para eliminar um mau cheiro que incomoda vizinhos ou representa um risco para funcionários. Treinado como químico analítico, seu trabalho é encontrar a fonte de um odor desagradável e então descobrir como corrigi-lo.
nas de receptores olfativos no nariz humano, cada um associado à detecção de diferentes moléculas de odor. Cheiros são a percepção de combinações dessas moléculas e, como tais, difíceis de manipu-lar e registrar. O ato de cheirar em si tem sido há tempos um “senti-do órfão”, especialmente quando comparado a uma capacidade mais dominante como a visão, observa Ostojic. “Podemos repre-sentar o mundo inteiro em nossas televisões usando apenas três
mos ver um único átomo”, argumenta ele, mas o odor continua sendo evasivo, fugidio.
Como resultado, Ostojic aborda seu trabalho com uma mistura de ciência e arte. Em campo, ele emprega um olfatômetro com um nome de marca agressivo: Nasal Ranger. Pressionado contra seu rosto, ele funciona inicialmente como uma máscara de gás. Assim
acresce quantidades controladas do ar circundante para mapear a intensidade e o raio de propagação de um odor fétido.
Milhares de nova-iorquinos podem agradecer a Ostojic e ao seu Nasal Ranger por tornarem a maior estação de tratamento de esgoto da cidade inodora (acima). “Tivemos um histórico horren-do”, admite Jim Pynn, que recentemente se aposentou como supe-rintendente da Estação Newton Creek de Tratamento de Água Residual, no Brooklyn. “Tínhamos um cheiro tão repugnante, pútri-do, que até eu sentia ânsias de vômito com alguns odores na usina.” Nesse caso, todo mundo sabia de onde vinha o cheiro ruim: dos tanques de aeração. Então Ostojic desenvolveu um jeito para cobri--los e depois ventilar o ar fétido através de largos cilindros de car-bono poroso, que absorve odores. Agora, o local tem um cheiro
Salt, estrelado por Angelina Jolie; as equipes de
uma estação de tratamento de esgoto, alegra-se Pynn. “Quando
que] atingimos a nossa meta”, resume Pynn, que chama Ostojic um “herói silencioso”.
Os próximos projetos de Ostojic incluem mapear as pegadas odoríferas de vapores de tinta em fábricas de automóveis em Michi-gan e de lixo em decomposição enterrado em aterros sanitários no
mas esses dados não esclarecem se pessoas tolerarão qualquer
ma quando as pessoas se queixam dele. “Tudo leva de volta ao nariz humano”, resume Ostojic. — Megan Gannon
FÍSICA
O brilho de partículas do Big BangAstrônomos detectaram indiretamente neutrinos que surgiram apenas um segundo após o nascimento do Universo
A luz mais antiga do Universo não fez um “pit stop” durante 13,82 bilhões de anos, a partir do início de sua jor-nada, somente 380 mil anos após o Big Bang. Essa luz, a chamada radiação cósmica de fundo (CMB, na sigla em inglês), serve como um terreno conhecido de caça para astrônomos que procuram entender o Universo em sua infância. Infelizmente, ela também obscurece o que jaz por trás dela: as primeiras centenas de milhares de anos do Universo. Agora, astrônomos acreditam ter espiado além da própria CMB ao captarem evidências de neutrinos que viajam desde o instante em que o Cosmos tinha apenas um segundo de idade.
Os neutrinos, partículas fundamentais sem carga elétri-ca e pouquíssima massa, escaparam do Big Bang quase imediatamente. Sua natureza evasiva, fugidia, lhes permite passar despercebidos por quase todas as barreiras físicas, raramente interagindo com a matéria comum. Nas raras ocasiões em que se chocam com fótons, no entanto, eles
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alteram sutilmente as temperaturas das partículas. Foi essa mudança de temperatura que astrônomos da Universidade da Califórnia em Davis notaram recentemente em mapas de CMB produzidos pelo satélite Planck, da Agência Espacial Europeia. Eles descreveram esse “fundo cósmico de neutrinos” em um recente artigo publicado no periódico Physical Review Letters.
Modelos do Big Bang previram o fundo cósmico de neutrinos há décadas. Mas essa nova observação indireta é a mais robusta prova disso até agora. A des-coberta “nos proporciona uma nova janela para o Universo”, comemora Lawrence M. Krauss, codiretor da Iniciativa de Cosmologia da Universidade Estadual do Arizona, que não participou do estudo. A detecção também restringe as propriedades de neutrinos, que são, de longe, os “animais mais estranhos no zoológi-co de partículas”. Ela prova, por exemplo, que neutri-nos não podem interagir com eles mesmos, como muitas outras partículas fazem. Se pudessem, eles deixariam assinaturas dife-rentes das observadas dentro da CMB.
Futuras detecções desses neutrinos primordiais talvez expli-quem por que existem 10 bilhões de partículas de matéria no Universo para cada partícula isolada de antimatéria. A assimetria foi produzida no Universo incipiente e especialistas acreditam que os neutrinos tiveram algo a ver com isso; nem que seja só
porque são tão misteriosos. “Como sabemos menos sobre neutri-nos, podemos ser mais criativos com os tipos de física que apre-sentamos”, reconhece Lloyd Knox, coautor do estudo. Embora essas partículas sejam incrivelmente difíceis de detectar direta-mente, Knox antecipa que dicas obtidas por meio de observações cosmológicas ajudarão a resolver muitos quebra-cabeças de neu-trinos e, portanto, fornecer uma ideia mais reveladora de como o Universo era em seus primórdios. —Shannon Hall
FAZENDO NOTÍCIAS
Notas rápidas
Ilustração de Thomas Fuchs
Agora aposentado, o obser-vatório Plank mapeou a CMB de 2009 a 2013
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CIÊNCIADA SAÚDE
16 Scientific American Brasil | Janeiro 2016
escreve sobre ciência e medicina. Ele abor-dou tratamentos para vertigem na edição de setembro.
Ilustração de Julia Yellow
A dor no cérebroNova teoria sobre a enxaqueca dá origem a medicamentos que evitam crisesDavid Noonan
O principal executivo, aos 63 anos, não conseguia fazer o seu
trabalho. Ele havia passado toda a vida adulta debilitado pela en-
xaqueca e estava no meio de uma nova onda de ataques. “Eu tenho
só uns poucos momentos pela manhã em que consigo ler ou escre-
ver ou pensar”, escreveu a um amigo. Depois disso, ele tinha de se
trancar em um quarto escuro até o anoitecer. Dessa forma, o presi-
dente Thomas Jeff erson, no início da primavera de 1807, em seu
segundo mandato, fi cava incapacitado todas as tardes pela mais
comum defi ciência neurológica no mundo.
O coautor da Declaração da Independência nunca subjugou o
que ele chamava sua “dor de cabeça periódi-
ca”, embora as crises pareçam ter diminuído
após 1808. Dois séculos depois, 36 milhões
de norte-americanos lutam contra a dor que
ele sentia. Como Jeff erson, que costumava se
tratar com uma infusão de casca de árvore
com quinino, eles tentam diferentes terapias,
que vão de drogas cardíacas, a ioga e ervas.
Agora, neurologistas acreditam ter iden-
tificado um nervo hipersensível que de sen-
cadeia a dor, e estão nos estágios finais de
testes de medicamentos que acalmam suas
células demasiadamente ativas. São as pri-
mei ras drogas para especificamente evitar as dores incapacitantes
antes que elas comecem. E podem ser aprovadas no próximo ano
pela FDA, agência que controla alimentos e medicamentos nos
EUA. Se cumprirem a promessa de estudos com cerca de 1.300 pa-
cientes, milhões de dores de cabeça poderão ser evitadas.
“Isso muda completamente o paradigma de tratamento da en-
xaqueca”, comenta David Dodick, neurologista do campus da Clí-
nica Mayo, no Arizona, e presidente da Sociedade Internacional de
Cefaleia. Embora existam drogas específi cas para enxaqueca que
freiam os ataques depois que estes começam, o Santo Graal para
pacientes e médicos tem sido a prevenção.
As crises de enxaqueca afetam quase 730 milhões de pessoas no
mundo e costumam durar de quatro a 72 horas. A maioria dos pa-
cientes tem crises esporádicas de até 14 dias por mês. Os que so-
frem da forma crônica – quase 8% da população com enxaqueca –
têm 15 dias ou mais de dor de cabeça por mês. Os ataques são, em
geral, precedidos por fadiga, mudanças de humor, náusea e outros
sintomas. Cerca de 30% dos pacientes apresentam distúrbios vi-
suais, as chamadas auras, antes das dores. O peso econômico total
da enxaqueca nos EUA, inclusive custos médicos diretos e dias de
trabalho perdidos, é estimado em US$ 17 bilhões ao ano.
Nos 5.000 anos desde que os sintomas da enxaqueca foram
descritos pela primeira vez em documentos na Babilônia, os trata-
mentos têm refl etido, ao mesmo tempo, a evolução de nossa com-
preensão e nossa quase cômica ignorância sobre a doença. San-
gria, trepanação e cauterização do couro cabeludo raspado com
uma barra de ferro em brasa eram tratamentos comuns no perío-
do greco-romano. O ponto mais baixo dos remédios equivocados
provavelmente foi atingido no século 10º, quando o oftalmologista
Ali ibn Isa recomendou atar uma toupeira morta à cabeça. No sé-
culo 19, a eletricidade medicinal se tornou moda e os pacientes de
enxaqueca eram rotineiramente estremecidos por diversas inven-
ções, incluindo o banho hidroelétrico, que era basicamente uma
banheira de água eletrifi cada.
No início do século 20, clínicos voltaram sua atenção para os
vasos sanguíneos, inspirados em parte por observações da forte
pulsação das artérias temporais em pacien-
tes com enxaquecas, assim como descrições
de dores latejantes e alívio que os pacientes
conseguiam com a compressão das artérias
carótidas. Por décadas, a enxaqueca foi atri-
buída sobretudo à vasodilatação no cérebro.
Essa ideia foi reforçada no fi m dos anos
1930 por um estudo sobre o tartarato de er-
gotamina. Apesar de efeitos colaterais, como
vômitos e dependência, a droga vasoconstri-
tora evitou crises em alguns pacientes.
Mas, se a vasodilatação era parte do que-
bra-cabeça, não era a única coisa que acon-
tecia no cérebro dos pacientes, como a onda seguinte de tratamen-
to sugeriu. Na década de 1970, pacientes cardíacos que também so-
friam de enxaqueca começaram a relatar aos médicos que
betabloqueadores que tomavam para desacelerar os batimentos
cardíacos também reduziam a frequência das crises. Pessoas com
enxaqueca que tomavam medicamentos para epilepsia e depres-
são, e outros que recebiam injeções cosméticas de Botox, também
relataram alívios. Assim, os especialistas em cefaleia começaram a
prescrever essas drogas “emprestadas” para enxaqueca. Cinco des-
ses medicamentos foram por fi m aprovados pela FDA para a dor.
Infelizmente, ainda não se sabe exatamente como as drogas adota-
das (efi cazes em apenas cerca de 45% dos casos e com diversos
efeitos colaterais) ajudam nas enxaquecas. Dodick opina que elas
podem atuar em vários níveis do cérebro e tronco encefálico para
reduzir a excitabilidade do córtex e vias de transmissão da dor.
As primeiras drogas específi cas para enxaqueca, os triptanos,
foram introduzidas nos anos 1990. Richard Lipton, diretor do Cen-
tro de Cefaleia Montefi ore, em Nova York, conta que os triptanos
foram desenvolvidos em resposta à antiga ideia de que a dilatação
Células superativas respondem a luzes,
sons e odores tipicamente benignos liberando substâncias que transmitem sinais
de dor e causam enxaqueca
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CIÊNCIADA SAÚDE
dos vasos sanguíneos é a causa primária da enxaque-
ca; triptanos deveriam inibi-la. Ironicamente, estudos
posteriores mostraram que a droga de fato interrom-
pe a transmissão de sinais de dor no cérebro e que a
vasoconstrição não é essencial. “De qualquer forma,
funciona”, comenta Lipton. Uma pesquisa de 133 estu-
dos detalhados dos triptanos descobriu que eles ali-
viam a dor em duas horas em 42% a 76% dos pacien-
tes. Pessoas os usam para bloquear o ataque depois
que ele começa, e eles entraram para a linha de frente
dos tratamentos confi áveis para milhões de pacientes.
O que os triptanos não podem fazer – e o que Peter
Goadsby, diretor do Centro de Cefaleia da Universida-
de da Califórnia em São Francisco, sonha em conse-
guir há mais de 30 anos – é evitar que a enxaqueca co-
mece. Nos anos 1980, buscando esse objetivo, Goadsby
se concentrou no sistema do nervo trigêmeo, há muito
conhecido como o caminho da dor no cérebro. Era ali,
suspeitou, que a enxaqueca fazia seu trabalho sujo. Es-
tudos em animais indicaram que em ramos do nervo
que saem de trás do cérebro e se estendem por várias
partes da face e da cabeça, células superativas
respondem a luzes, sons e odores tipicamente
benignos liberando substâncias que transmitem
sinais de dor e causam enxaqueca. A sensibilidade
intensificada dessas células pode ser herdada; 80%
dos pacientes têm histórico familiar de enxaqueca.
Goadsby foi coautor do primeiro estudo sobre o tema em 1988.
Outros pesquisadores, inclusive Dodick, se uniram ao esforço. O
objetivo era encontrar uma forma de bloquear os sinais de dor.
Uma das substâncias encontradas em altos níveis no sangue de
pessoas com enxaqueca é o peptídeo relacionado ao gene da calci-
tonina (PRGC), um neurotransmissor que é liberado de uma célu-
la nervosa e ativa a próxima em um ataque. Mirar e interferir no
PRGC não foi fácil. Difícil foi encontrar uma molécula que funcio-
nasse nesse neurotransmissor e não tocasse em outras essenciais.
Com o avanço da capacidade de engenheiros de biotecnologia
controlarem e projetarem proteínas, várias empresas farmacêuti-
cas desenvolveram anticorpos monoclonais para combater a enxa-
queca. Essas proteínas criadas se ligam fortemente às moléculas
PRGC ou seus receptores nas células do nervo trigêmeo, evitando
a ativação celular. As novas drogas são “como mísseis guiados com
alta precisão”, compara Dodick. “Vão diretamente ao seu alvo.”
Essa especifi cidade e o fato de que os cientistas na verdade sa-
bem como as drogas funcionam animaram Dodick, Goadsby e ou-
tros. Em dois testes controlados com placebo com um total de 380
pessoas que sofriam de enxaqueca severa até 14 dias por mês, uma
única dose com um medicamento PRGC reduziu os dias de dor
mais de 60% (63% em um estudo e 66% no outro). Além disso, no
primeiro estudo, 16% dos pacientes continuaram livres da enxa-
queca por 12 semanas no teste de 24 semanas. Testes clínicos mais
amplos para confi rmar essas descobertas estão sendo feitos. Até
agora, as PRGC funcionam melhor na prevenção que qualquer
droga de doenças cardíacas ou epilepsia e têm menos efeitos cola-
terais, ministradas em uma única injeção mensal.
Especialistas também exploram outros tratamentos, inclusive
cirurgia da fronte e pálpebras para descomprimir ramos do nervo
trigêmeo, e estimulação magnética transcraniana (EMT), uma for-
ma não invasiva de alterar a atividade das células nervosas.
Lipton afi rma ter conseguido bons resultados com EMT. Ele
também encaminhou pacientes para cirurgias, mas conta que a
experiência “tem sido decepcionante”, e não as recomenda. Goads-
by, de seu lado, vê cirurgias e esforços de alta tecnologia como um
certo desespero. “Eles me soam como um grito de ajuda. Se enten-
dermos mais sobre a enxaqueca, saberemos melhor o que fazer.”
Embora a causa agora pareça estar enraizada no sistema do
nervo trigêmeo, a origem de suas células hiperativas ainda é um
mistério, diz Goadsby. “Qual é a natureza do que você herdou com
a enxaqueca?”, pergunta. “Por que você e por que não eu?”, prosse-
gue. Se desvendarem a genética da enxaqueca, a “dor de cabeça pe-
riódica” de Jeff erson pode aliviar sua dolorosa tenaz moderna.
TECNOLOGIA
18 Scientific American Brasil | Janeiro 2016
é colunista-âncora do Yahoo Tech e apresentador das minisséries NOVA na rede pública de tevê PBS.
Ilustração de Jori Bolton
A guerra digitalO que fazem as grandes companhias desse setor para atrair você para seus ecossistemasDavid Pogue
A pergunta não é mais “Que celular devo ter?”. Essa era uma
questão importante logo após a chegada do iPhone e seus concor-
rentes. Agora é hora de admitirmos que os smartphones (e tablets)
estão quase idênticos. Apple e Google (fabricante do sistema ope-
racional Android) se copiaram tão completamente que seus apare-
lhos têm incrível semelhança em aparên-
cia, preço, velocidade e funcionalidades.
Apples, Googles e Microsofts do mun-
do se enfrentam atualmente em outro
campo de batalha: a corrida para o
melhor e mais sedutor ecossistema. Cada
uma está montando um imenso arquipé-
lago de produtos e serviços interconecta-
dos. São algemas de veludo para fazê-lo
abraçar suas ofertas e difi cultar ao máxi-
mo a mudança para o concorrente. Um
ecossistema típico inclui hardware (celu-
lar, tablet, laptop, relógio inteligente,
televisão), lojas on-line (música, fi lmes,
tevê, livros eletrônicos), sincronização de
seus dados em aparelhos (calendário,
favoritos, notas, fotografi as), armazena-
mento em nuvem (discos on-line gratui-
tos para arquivos) e sistemas de paga-
mentos (acene com o relógio ou celular
em vez de passar o cartão de crédito).
Ao consumidor cabe escolher que
pacote de produtos ele prefere. Mas para
as companhias a decisão é difícil: elas
devem abrir seus serviços para usuários
de produtos de seus con cor ren tes? Dei-
xar, digamos, um usuário de iPhone car-
regar um calendário Outlook ou alguém com uma pulseira inteli-
gente Microsoft Band sincronizar dados com um tablet Android.
Tornar seu software acessível fora de seu ecossistema pode, por
um lado, mostrar ao resto do mundo a superioridade de seus pro-
dutos e atrair novos consumidores. Em contrapartida, pode-se
perder o atrativo da exclusividade desses serviços. Por que alguém
mudaria se já pode ter o melhor que um concorrente oferece?
Que postura as gigantes estão adotando em relação aos seus
ecossistemas? Trata-se de uma cesta variada.
A Apple é a mais fechada. Em geral, desenvolve aplicativos ape-
nas para iPhones e iPads. Você não pode fazer uma chamada Face-
Time para um Android ou Windows Phone, por exemplo, ou exe-
cutar o Apple Maps nesses aparelhos (não que você fosse querer).
E não se pode usar o Apple Watch com nada a não ser um iPhone.
Você pode, no entanto, usar o iCloud (serviço de armazenamento e
sincronização de arquivos on-line da Apple) em um dispositivo
Windows, mas não em um que use o Android, da Google.
A Google se esforça para tornar seus produtos acessíveis em
outras plataformas. Se você tem um iPhone, pode usar aplicativos
Google (Gmail, Chrome, Google Maps), serviços (Docs, Sheets, Sli-
des) e mesmo lojas digitais (Books, Music Newsstand). Os serviços
e lojas também estão disponíveis para usuários de Mac, Windows
e Linux. Você pode até ligar um relógio
inteligente Android Wear a um iPhone.
Por fi m, a Microsoft, cujo Offi ce é
acessível a tudo que tenha tela, assim
como muitos de seus aplicativos móveis.
Por que essa inconsistência?
Os motivos corporativos individuais
ajudam a entender. Embora essas três
companhias ofereçam tantos dispositi-
vos e serviços similares (OK, quase idên-
ticos), cada uma, de fato, usa um modelo
de negócios completamente diferente. A
Apple está sobretudo no negócio de ven-
der hardware; Microsoft, software; Gog-
gle, publicidade. Cada uma considera
diferentes fatores ao calcular o que abrir.
E Apple e Google continuam se rami-
fi cando; ambas oferecem agora, acredi-
te, software para painel de instrumentos
de carros e sistema de automação
doméstica projetados para seus respec-
tivos smartphones. Seguramente a
Microsoft não fi cará muito atrás. A Sam-
sung ostenta seu próprio grupo de pro-
dutos competitivos e serviços interliga-
dos. E a Amazon – que já foi uma livraria
– agora produz telefones, tablets e tevês.
O rumo das coisas deve deixar você, consumidor, satisfeito. Tal-
vez incomodado com toda a duplicação de esforços, mas feliz que
haja concorrência, que sempre gera inovação (e, com frequência,
preços menores). E você deve fi car contente que a tendência seja,
aparentemente, de essas companhias tornarem mais serviços
acessíveis, não importa que celular ou computador você tenha.
No fi m, os ecossistemas poderão bem ser quase idênticos,
também. Talvez nesse ponto a questão volte a ser: “Que celular
eu devo ter?”.
mestre e doutor em física pela Universidade de São Paulo, onde é professor, tem trabalhado em áreas que incluem problemas relacionados ao tratamento estatístico de dados experimentais. Mais recentemente, tem se dedicado
OBSERVATÓRIO
www.sciam.com.br 19
Pingue-pongue e raios cósmicosAo rebater e impulsionar partículas, campos magnéticos funcionam como raquetes Otaviano Helene
Se os choques entre raquetes e bolinhas de pingue-pon-
gue fossem totalmente elásticos e a massa da raquete fosse
muito, muito maior que a da bolinha, ao rebater uma delas,
mandando-a de volta exatamente na mesma direção da qual
ela veio, sua velocidade seria igual àquela com a qual ela
chegou à raquete mais duas vezes a da própria raquete.
Os choques entre bolinhas de pingue-pongue e raquetes
não são, de fato, totalmente elásticos. Há uma pequena per-
da de energia mecânica nesse choque, no qual o coefi ciente
de restituição é da ordem de 0,9.
A massa da raquete (e daquilo que a segura) também não
é infi nitamente maior que a massa da bolinha, embora seja
muito maior, pois bolinhas de pingue-pongue têm menos
que 3 g. Por causa desses dois fatores, o ganho pela raqueta-
da não chega a dobrar a velocidade da raquete, mas chega
bem perto disso.
Depois de uma raquetada, uma bolinha de pingue-pon-
gue pode atingir, segundo publicações especializadas nesse
esporte, de 30 m/s a 40 m/s. Com essas velocidades, ela pode-
ria chegar até o adversário em cerca de um décimo de segun-
do ou pouco mais.
Entretanto, por causa da resistência do ar, a velocidade
da bolinha é reduzida para a metade a cada cerca de meio
segundo. Assim, o tempo entre uma raquetada e a seguinte,
dada pelo adversário, varia de 0,5 s a 1,0 s, dependendo, cla-
ro, de quão afastados da mesa estão os jogadores.
No tênis, a situação é similar. A cada raquetada, supondo
um choque totalmente elástico entre a bolinha e a raquete e
que a massa da raquete (mais mão e braço do atleta) seja
bem maior que a da bola, esta adquire, após ser rebatida,
velocidade igual à sua inicial mais duas vezes a da raquete.
Como no pingue-pongue, a resistência do ar reduz a veloci-
dade da bolinha.
Se não houvesse o ar, as velocidades das bolinhas de tênis
e de pingue-pongue aumentariam indefi nidamente a cada
rebatida. Se as bolinhas e raquetes fossem infi nitamente
resistentes e os jogadores infi nitamente hábeis e rápidos, as
bolinhas atingiriam velocidades relativísticas e não conse-
guíramos analisar a situação usando apenas as equações de
Newton, precisando das equações relativísticas.
Vários esportes têm batidas de coisas contra bolas e pete-
cas, como o badminton, a pelota basca, o golfe, o beisebol,
entre outros. Em todos esses esportes, o efeito físico de
transferência de velocidade para a bola é similar à do tênis e
do tênis de mesa. E, claro, se a bola estiver parada, ela é lan-
çada com o dobro da velocidade daquilo que a atingiu – des-
de que sua massa seja bem pequena e o choque seja elástico.
Pancadas são formas efi cientes de transferir energia para
bolas, petecas e outras coisas. E é mais ou menos isso que,
possivelmente, também ocorre com alguns raios cósmicos
ultraenergéticos. Neste caso, as coisas rebatidas não são
bolinhas, mas, sim, núcleos atômicos, como núcleos de ferro
ou hidrogênio, e no lugar das raquetes, as coisas que batem
são campos magnéticos, como aqueles criados por explosões
de supernovas, por exemplo.
Esses campos magnéticos funcionam como raquetes ou,
no jargão dos físicos, como espelhos magnéticos, já que
“refl etem” as partículas: os raios cósmicos são rebatidos por
esses campos magnéticos, ganhando velocidade a cada vez
que isso ocorre.
Como os raios cósmicos viajam por regiões do Universo
onde não há nada que os possa frear, eles ganham energia a
cada encontro com os campos magnéticos, diferentemente
do que acontece nos esportes aqui na Terra, onde o ar freia
as bolas. Como essas raquetadas podem se repetir inúmeras
vezes durante as longuíssimas viagens que essas partículas
fazem, elas acabam por atingir velocidades e energias
altíssimas.
A energia cinética de algumas dessas partículas, apesar
de suas massas extremamente pequenas, pode ser compará-
vel à de uma bolinha de pingue-pongue. (Para somar uma
massa equivalente àquela de uma bolinha de pingue-pongue
seriam necessários núcleos de ferro em quantidade de apro-
ximadamente dez elevado à vigésima terceira potência.)
Sabemos bem de onde vêm as bolinhas de tênis ou de pin-
gue-pongue (embora vez ou outra não saibamos bem para
onde elas foram).
Quanto aos raios cósmicos, uma questão é saber de onde
eles vêm. Outra questão é saber, detalhadamente, o processo
pelo qual ganham tanta energia, inclusive porque algumas
partículas têm energias mais elevadas do que o processo de
raquetadas por campos magnéticos permite estimar.
Para responder a essas e outras questões, vários grupos
de pesquisa pelo mundo afora estudam os raios cósmicos
ultraenergéticos. A maior instalação construída com esse
propósito, o Observatório de Raios Cósmicos Pierre Auger,
está instalado em Mendoza, na Argentina. Essa colaboração
conta com a participação de pesquisadores de vários países,
inclusive do Brasil.
DESAFIOS DO COSMOS
20 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016
é jornalista de ciência especializado em astronomia e astronáutica. É autor de oito livros, dentre eles Rumo ao
e .
Civilizações superdiscretasSe houver vida inteligente fora da Terra, talvez seus sinais sejam muito recatados Salvador Nogueira
Os últimos meses foram tomados por um frisson quando pes-
quisadores envolvidos com o projeto de ciência-cidadã Planet
Hunters encontraram, em meio aos dados do satélite Kepler, uma
estrela que sofre apagões signifi cativos sem periodicidade defi ni-
da. Em certos momentos, o brilho dela chega a cair para menos de
80% do normal.
Ordinariamente, o Kepler detecta planetas em torno de estre-
las quando eles passam à frente delas, obstruindo parcialmente
sua luz. Mas nenhum planeta seria capaz de bloquear um quinto
do total da luz de sua estrela-mãe. Algo muito estranho estava
acontecendo no jovem astro conhecido como KIC 8462852.
A astrônoma Tabetha Boyajian, da Universidade Yale, nos
Estados Unidos, coordenou a primeira análise do fenômeno e
aventou, em artigo publicado nos Monthly Notices of the Royal
Astronomical Society, que a explicação mais provável para o
apagão fosse a passagem de uma família de cometas destroça-
dos pela frente da estrela. Isso, contudo, não impediu que seu
colega Jason Wright, da Universidade Estadual da Pensilvânia,
sugerisse uma explicação mais arrojada – uma gigante obra de
engenharia espacial conduzida por uma civilização alienígena.
Wright estava se referindo a uma ideia proposta pela pri-
meira vez nos círculos científi cos pelo físico britânico Freeman
Dyson, em 1960. Ele
indicou que uma civi-
lização avançada com
muita “fome” de ener-
gia poderia construir
uma efetiva cápsula
em torno de sua estre-
la — de forma a colher
100% da radiação emi-
tida por ela.
No caso de KIC
8462852, como ora
vemos a estrela, é
fortemente bloqueada,
poderíamos imaginar
uma esfera parcial.
Mas observações pos-
teriores conduzidas pelo Instituto SETI com o Allen Telescope
Array não detectaram nenhuma transmissão artifi cial, e um
estudo subsequente coordenado por Massimo Marengo, da Uni-
versidade Estadual de Iowa, com o telescópio espacial Spitzer,
confi rmou que a obstrução da luz pela destruição de uma família
de cometas era mesmo a explicação mais razoável. Nada de
supercivilização alienígena em ação.
Mais do que falar algo sobre a existência de vida inteligente no
Universo, o episódio realça como cultivamos ideias retrógradas
sobre o que signifi ca ser uma civilização avançada. Em 1964, o
astrônomo soviético Nikolai Kardashev imaginou que pudés-
semos classifi car a evolução de sociedades cósmicas com base no
seu consumo de energia. Aquelas capazes de usar o equivalente ao
total de radiação incidente em seu planeta seriam do tipo I. Já as
que lançassem mão da energia total produzida por sua estrela (as
potenciais construtoras de esferas Dyson) seriam de tipo II. Indo
mais longe, civilizações capazes de consumir uma fração signifi ca-
tiva do total de energia de uma galáxia inteira seriam do tipo III.
A premissa é que civilizações progridem necessariamente para
consumir cada vez mais energia. Afi nal de contas, foi exatamente
isso que aconteceu com a humanidade até agora. Contudo, ainda
que a passo de tartaruga, a mentalidade por essas bandas parece
estar mudando. A noção de um futuro recheado de energia abun-
dante está sendo gradualmente trocada por um amanhã de sus-
tentabilidade e efi ciência energética, onde se faz mais com menos.
Convenhamos, nossa progressão rumo ao tipo I na escala Kar-
dashev (seríamos no momento algo como tipo 0,7) veio à custa da
mudança climática e da degradação do ambiente. Seria uma péssi-
ma ideia continuar nessa trajetória de consumo desmedido.
Um caminho alternativo que parece mais razoável, diante do
que estamos fazendo com a Terra, é o aventado por Amâncio Fria-
ça, astrônomo da Universidade de São Paulo. Ele aposta que o con-
sumo energético das
civilizações atinja um
pico e depois comece a
cair, conforme elas
apren dem as limitações
ambientais dos planetas
que ocupam e avançam
na direção da sustenta-
bilidade. Ao fi m das
contas, civilizações mui-
to avançadas seriam
ainda mais discretas do
que nós mesmos – o que
pode ajudar a explicar
por que é tão difícil
encontrar qualquer
si nal delas por aí. NAS
A/JP
L-CA
LTEC
H
Concepção artística do sistema KIC 8462852. Apagão da estrela foi associado a possível
CÉU DO MÊSJANEIRO
www.sciam.com.br 21
Cometa vem comchuva de meteorosCatalina atinge brilho máximo e se exibe naconstelação do Boieiro, antes de se esconder
O mês de janeiro marca o momento de máxima aproximação
do cometa Catalina (2013 US10), mas em posição desfavorável
para observadores do Hemisfério Sul. Ainda assim, é possível
tentar vê-lo se você estiver disposto a madrugar. O pico de brilho
deve ser atingido no dia 4, quando o cometa terá magnitude 4,8,
ou seja, visível a olho nu – mas apenas em céus livres de poluição
luminosa. Cruzando acima do horizonte depois das 3h, na cons-
telação do Boieiro (Boötes), na direção norte, ele permanecerá
visível, mas nunca muito alto no céu, até o amanhecer.
No mesmo dia, teremos o máximo da chuva de meteoros
Quadrantídeos, que também tem seu radiante na mesma região
do céu. O nome é derivado de uma antiga constelação criada
em 1795 pelo astrônomo francês Jérôme Lalande, o Quadrante,
depois descartada pela União Astronômica Internacional. Hoje,
no mapa das constelações, aquela região pertence à do Boieiro.
A origem das Quadrantídeas foi atribuída pelo astrônomo
Peter Jenniskens ao asteroide 2003 EH1, que completa uma volta
em torno do Sol a cada 5,5 anos e provavelmente é um cometa
extinto – um astro que já esgotou seu material volátil após múlti-
plas passagens pelas redondezas do Sol. Uma peculiaridade dessa
chuva é que seu pico de atividade é bem rápido: se dá em apenas
algumas horas, durante as quais o número de meteoros rivaliza
com o de chuvas famosas, como as Perseidas e os Geminídeos.
Agora, quem não pode madrugar e procura atrações celestes
nas primeiras horas da noite poderá se deleitar em janeiro com
um passeio pela constelação de Órion, que estará no alto do céu
logo após o pôr do sol durante o mês. Trata-se de um dos mais
famosos conjuntos de estrelas, facilmente reconhecível pelas
“Três Marias”, que compõem o cinturão do caçador Órion.
Aliás, a estrela mais a oeste desse trio, Delta Orionis, na ver-
dade é ela mesma um grupo estelar, com cinco membros – duas
estrelas solitárias e um astro trinário composto por outras três
estrelas. Um estudo recente feito com obser-
vações do Telescópio Espacial Chandra de
Raios X, da Nasa, revelou detalhes da
dinâmica desse sistema complexo.
Ao norte das Três Marias, você há de
notar uma estrela brilhante e avermelhada –
Alfa Orionis, ou, como é mais conhecida,
Betelgeuse. Trata-se de uma supergigante
vermelha, um astro muito mais massivo que
o Sol e no fi m de sua vida útil. Localizada a
640 anos-luz daqui, ela deve detonar como
uma supernova em breve – mas esse “em
breve” é na escala astronômica, ou seja, em
algum ponto do próximo milhão de anos.
Por fi m, ao sul das Três Marias, você pode
encontrar uma suave mancha difusa, visível
a olho nu – a famosa nebulosa de Órion, um
berçário estelar a 1.500 anos-luz da Terra.
Com telescópios amadores, trata-se de uma
das mais magnífi cas visões que se pode ter.
Bons céus a todos! (S.N.)NEW
TON
CESA
RFL
ORÊ
NCI
OQUER VER SUA ASTROFOTOGRAFIA NA SCIAM? ESCREVA PARA
[email protected] fotos precisam ser em alta resolução, com no mínimo 300 dpi, para serem publicadas.
ASTROFOTOGRAFIA
Newton Cesar Florêncio, astrofotógrafo de Londrina (PR), registra a nebulosa escura Cabeça de Cavalo (Barnard 33) e sua vizinha mais famosa, a nebulosa de Órion (M42). Imagem é
Passagem da Terra pelo Periélio
Máximo da chuva de meteoros quadrantídeos (Böotes - Boie
Máxima brilho do Cometa C/2013 US10 (Catalina) com a Terr
Conjunção inferior de Mercúrio.
Máxima aproximação do Cometa C/2013 US10 (Catalina) com
DESTAQUES DO MÊS
VISIBILIDADE DOS PLANETAS
Em Capricórnio e depois Sagitário. Visível ao anoitecer, cada dia mais baixo, na direção do por do Sol. Em conjunção inferior com o Sol em 14. Volta a ser visível pela
Visível ao amanhecer na direção do nascer do Sol. Primeiro
Vênus em 9.
Visível na madrugada, a leste do meridiano, primeiramente na direção da constelação de Virgem e depois Libra. Próximo da Lua em 3.
Visível durante toda a noite entre as estrelas da constelação de Leão. Perto da Lua em 27.
em 7. Em conjunção com Vênus em 9.
Em Peixes. Visível no início da noite, logo após o por do Sol, a oeste do meridiano.
Visível ao por do Sol, a oeste, em Aquário. Próximo da Lua em 13.
N
O
22 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016
Sagitário de 18/12/2015 à 20/01/2016
Capricórnio de 20/01/2016 à 16/02/2016
* O limite das constelações foi estabelecido pela União AstronômicaInternacional em 1930, o que permite estabelecer, com grande precisão, oinstante de entrada e saída do Sol de cada uma das 13 constelações que sãoatravessadas pela trajetória anual aparente do Sol, a eclíptica.
A carta celeste anexa corresponde à projeção das estrelasvisíveis na latitude de 23°27’ Sul (Trópico de Capricórnio) às21h do dia 15 de JANEIRO. Exceto pela posição dos planetas,
a mesma também corresponde à projeção do céuaproximadamente às 22h no início do mês e às 20
vigorando o Horário de Verão.
DIA HORA* EVENTO
2 02h31 Lua quarto minguante.
2 08h46 Lua no apogeu, maior distância à Terra. Dis-tância 404.302 km. Diâmetro aparente 29,9’.
2 17h24 Terra passa pelo periélio, menor distância ao Sol - 147,1 milhões de quilômetros.
2 22h57 Lua passa a 5,3°N a estrela Spica (Alfa de Virgem).
3 16h43 Lua passa a 1,8°N de Marte.
4 --- Máximo da chuva de meteoros quadrantídeos (Böotes)
4 17h51 Cometa C/2013 US10 (Catalina) exibe seu brilho máximo, 4,8 magnitudes.
6 02h15 Melhor ocasião para visualizar o brilho da
falcada (luz cinérea). O horário refere-se ao nascer da Lua em São Paulo, sem contar o horário de verão.
7 00h28 Lua passa a 3,9°N de Saturno (conjunção).
9 00h59 Vênus a 0,1°N de Saturno.
9 22h31 Lua nova.
12 18h40 Melhor ocasião para visualizar o brilho da Terra
(luz cinérea). O horário refere-se ao por do Sol em São Paulo, sem contar o horário de verão.
13 10h12 Lua passa por Netuno.
14 10h59 Mercúrio em conjunção inferior com o Sol – planeta entre o Sol e a Terra.
14 21h11 Lua no perigeu, menor distância à Terra. Dis-tância 369.656 km. Diâmetro aparente 32,4’.
16 03h52 Lua passa por Urano.
16 20h27 Lua quarto crescente.
17 02h09 Cometa C/2013 US10 (Catalina) mais próximo da Terra. 108,44 milhões de quilômetros.
19 04h01 Lua a 8,6°S do aglomerado estelar de Plêiades (Messier 45).
20 00h44 Lua passa a 1,1°N da estrela Aldebaran (Alfa de Touro).
23 22h46 Lua cheia.
24 09h16 Lua passa a 4,9°S do aglomerado estelar de Praesepe (Messier 44).
26 02h36 Lua passa a 2,1°S da estrela Regulus (Alfa de Leão).
27 20h34 Lua passa a 0,8°S de Júpiter (conjunção).
30 06h03 Lua no apogeu, maior distância à Terra. Dis-tância 404.583 km. Diâmetro aparente 29,9’.
30 10h20 Lua passa a 5,0°N a estrela Spica (Alfa de Virgem).(*) No horário de verão some uma hora
www.sciam.com.br 23
QUE MUDARÃOOMUNDO
IDEIAS
201510 grandes avanços que irão melhorar a vida, transformar a computação e talvez até salvar o planeta
Em 1878, Thomas Edison recorreu às páginas de Scientifi c American para esclarecer
algumas concepções equivocadas sobre uma nova invenção sua: o fonógrafo. Setenta anos
mais tarde, um de nossos correspondentes escreveu sobre um substituto para o tubo a
vácuo, um dispositivo que poderia resultar em “aparelhos auditivos menores, rádios por-
táteis realmente pequenos [e] componentes eletrônicos mais compactos para aeronaves”.
A nova invenção chamava-se transístor. Para comemorar seu aniversário de 170 anos, a
Scientifi c American selecionou 10 dos maiores avanços de 2015. Talvez alguns deles entrem
na coletânea dos maiores sucessos daqui a 170 anos. – Os editores
I N OVA Ç Ã O
Ilustrações de Tavis Coburn www.sciam.com.br 25
26 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016
Máquinas controladas pelos olhos
No início deste ano, Erik Sorto, um tetra-plégico, usou seus pensamentos para guiar um braço robótico a levar uma cerveja até seus lábios. O problema dessa façanha impressionante é que sua tecnologia, um chip repleto de eletrodos implantado no cérebro, é cara e invasiva, e muitas vezes requer meses de treinamento. Pior, poucas
e físico exigido pela técnica.Em vez de criar uma ligação direta entre
a atividade elétrica do cérebro e máquinas, Aldo Faisal, professor associado de neuro-tecnologia no Imperial College de Londres, quer usar movimentos oculares para contro-lar cadeiras de rodas, computadores e jogos de videogame. Ele e seus colegas construí-ram óculos especiais que registram os movi-mentos dos olhos do usuário e transmitem
esses dados para um computador. Em seguida, um software traduz essas informa-ções em comandos para máquinas. Quase qualquer pessoa pode usar a tecnologia, inclusive amputados, tetraplégicos e aqueles que sofrem de Parkinson, esclerose múltipla
menos de US$ 50. Em uma exposição de ciências, a maioria de milhares de voluntá-
bem após 15 segundos para jogar o video-game Pong, sem necessidade de instruções.
Baseando-se em 70 anos de pesquisas sobre a neurociência de movimentos ocula-res, Faisal e seus colegas escreveram algorit-mos que transformam um olhar em um comando para uma cadeira de rodas, uma piscada em um clique do mouse, ou o movi-mento rápido de uma pupila [contração ou
dilatação] em uma guinada de um game paddle, ou joystick, o dispositivo de controle de jogos. Para prever intenção, os algorit-mos dependem de treinamento com dados do mundo real, adquiridos através do regis-tro dos movimentos oculares de voluntários enquanto eles dirigiam uma cadeira de rodas com um joystick ou operavam um braço robótico. Gradativamente, o software aprendeu a diferenciar entre, por exemplo, o jeito como as pessoas olham para um copo quando estão avaliando seu conteúdo e quando querem pegá-lo para dar um gole.
Antes que Faisal possa comercializar quaisquer dispositivos médicos baseados na
para ensaios clínicos. Enquanto isso, um sub-sídio de 4 milhões de euros da União Euro-peia apoiará seu grupo enquanto este desenvolve exoesqueletos robóticos que pessoas paraplégicas poderiam controlar utilizando o software de monitoramento ocular que criou. —Rachel Nuwer
IDEIAS QUE MUDARÃO O MUNDO
www.sciam.com.br 27Ilustração de Don Foley
downrange
Foguetes a micro-ondas Modelo de baixo custo pode impulsionar exploração espacial
Há mais de 50 anos, cerca de 90% do peso dos foguetes usados para atingir a órbita terrestre é constituído de combustível e material de propulsão, deixando pouco espaço para cargas. Se fosse possível dimi-nuir esse peso, se reduziriam também os custos de programas espaciais.
Em 1924, o cientista russo Konstantin Tsiolkovsky expôs um jeito para fazer isso acontecer ao sugerir que raios de micro-on-das disparados por transmissores baseados em terra poderiam fornecer a energia necessária para a subida de um foguete. Tsiolkovsky propôs usar espelhos parabóli-cos para apontar “um feixe paralelo de raios eletromagnéticos de curto comprimento de onda” para a “barriga”, ou parte de baixo, de um foguete, aquecendo o material de pro-pulsão para produzir empuxo sem a neces-sidade de grandes quantidades de combus-
mente alcançou a visão de Tsiolkovsky. Os
de micro-ondas por emissão estimulada de radiação) foram inventados na década de 1950, mas foi só após surgirem geradores melhores e mais acessíveis, chamados giro-trons, eles conseguiram atingir níveis de energia em escala megawatt necessários para lançamentos espaciais. Recentes avan-ços em baterias e outros sistemas de arma-zenamento de energia também possibilita-
grandes sem sobrecarregar a rede elétrica.Kevin Parkin comandou um estudo pio-
neiro sobre esse conceito em 2012, no Insti-tuto de Tecnologia da Califórnia (Caltech). Baseada em parte no trabalho de Parkin, a empresa Escape Dynamics está realizando testes para desenvolver um sistema reutili-zável, acionado por micro-ondas, que pode-ria levar satélites, e, futuramente talvez até humanos ao espaço. Em julho a Nasa adi-cionou a tecnologia de foguetes impulsio-nados por radiação ao seu roteiro para o desenvolvimento de tecnologia futura.
— Lee Billings
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downrange
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Cerca de 90% do peso de foguetes é formado por combustível e materiais de propulsão
28 Scientific American Brasil | Janeiro 2016
SCIE
NCE
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(víru
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Arrasto de víruscom quase 100% de precisão
infecção, médicos geralmente usam a rea-ção em cadeia da polimerase (PCR), que“amplia” fragmentos de DNA em uma
dada. Mas a técnica exige do médico teralguma previsão de quais vírus procurar.
Em setembro passado, uma equipe da Universidade Columbia, em Nova York, criou um método para eliminar essas suposições, detectando todos os vírus em
nal com precisão de quase 100%. O méto-do permite fazer 21 análises simultâneas em menos de 48 horas a um custo esti-mado de apenas US$ 200 por amostra. Além disso, a técnica também detecta
sejam pelo menos 40% idênticos aos conhecidos. “Quando alguém vai a um pronto-socorro e é submetido a todos os tipos de exames, isso custa milhares de dólares”, observa W. Ian Lipkin, professor de epidemiologia na Escola Mailman de Saúde Pública da universidade. “Esse método é muito barato e nos permite per-sonalizar a medicina ao lhe dizer exata-mente o que você tem.”
Lipkin e seus colegas criaram primeira-mente um banco de dados de mais de mil
vírus de vertebrados. Em seguida, sinteti-zaram sondas genéticas para combinar com todas as cepas de todos os vírus —
to DNA de 25 a 50 nanômetros. Quando uma sonda encontra um vírus correspon-dente, ela se liga a ele. Para extrair esses vírus, técnicos adicionam “pérolas” mag-néticas que medem de um a três mícrons de diâmetro à mistura; um ligante quími-co então liga essas “pérolas” ou grânulos às sondas genéticas e vírus que captura-
ram. Depois disso, os pesquisadores põem tubo com a mistura em um suporte mag-nético, que atrai as sondas para as paredes do tubo. Depois de isolar e lavar os con-juntos sonda-pérola-vírus, eles sequen-ciam geneticamente os vírus, eliminando o risco de falsos positivos. Lipkin e seu grupo agora procuram formar uma parce-ria comercial para distribuir a tecnologia a hospitais e clínicas. Eles também planejam adicionar sondas para todas as bactérias e fungos infecciosos conhecidos. — R.N.
Ilustração de Don Foley
O H1N1 INFLUENZA é um de muitos vírus detectados por um único novo teste inédito.
Sondas cerebraisDispositivos eletrônicos macios podem impulsionar a neurociência
Para desvendar os mistérios do cérebro, cientistas precisam monitorar neurônios delica-da e em objetos de estudos vivos. Mas, em termos gerais, sondas cerebrais têm sido ins-trumentos de força bruta. Uma equipe na Universidade Harvard, liderada pelo químico
Charles Lieber, espera que implantes de malhas de polímeros, macias como seda e
cheia de sensores eletrônicos incrustados, em camundongos vivos. Uma vez que tenha provado ser segura, ela poderia ser utilizada em pessoas para estudar como
a cognição brota da ação de neurônios individuais e para tratar de doenças como Parkinson. —Seth Fletcher
amarelo
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IDEIAS QUE MUDARÃO O MUNDO
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Fusão encolhe para crescerApós décadas de lento progresso e investimentos pesados, alguns grupos de pesquisa de energia estão mudando sua estratégia
Defensores da energia de fusão podem ser acusados de serem excessivamente oti-mistas, mas jamais de pensar “pequeno”. A fusão ocorre quando dois átomos se fundem para, juntos, formarem um terceiro, conver-tendo matéria em energia. Esse é o processo que alimenta o Sol, e os principais projetos do mundo da fusão são igualmente grandes e grandiosos. Um consórcio de sete países está construindo na França o Reator Termo-nuclear Experimental Internacional (ITER, na sigla em inglês). Seu reator de US$ 21 bilhões em forma de “rosquinha” usará mag-netos supercondutores para criar plasma
a fusão. Quando concluído, o ITER pesará 23 mil toneladas, três vezes o peso da Torre Eif-fel, em Paris. Seu principal concorrente, a National Ignition Facility (NIF), do Laborató-rio Nacional Lawrence Livermore, na Cali-fórnia, é igualmente complexo: ele dispara
192 lasers contra uma pequena “bola” de combustível, até esta ser submetida a tem-peraturas de 50 milhões de graus Celsius e pressões de 150 bilhões de atmosferas.
Apesar de tudo isso, uma usina de ener-gia por fusão operacional, baseada nas tec-nologias do ITER ou da NIF, continua a décadas de distância. Uma nova safra de pesquisadores está seguindo uma estratégia diferente: encolher em vez de expandir. Em 2015, a ARPA-E, a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada–Energia dos EUA, inves-tiu quase US$ 30 milhões em nove projetos menores visando uma fusão acessível atra-vés do programa Aceleração de Plasma com Aquecimento e Montagem de Baixo Custo (Alpha, na sigla em inglês). Um proje-to representativo, executado pela empresa Magneto-Inertial Fusion Technologies, de Tustin, na Califórnia, está sendo concebido para atingir um plasma com uma corrente
para induzir a fusão. A abordagem tem pedi-gree: cientistas do Laboratório Nacional de Los Alamos empregaram esse efeito em 1958 para criar a primeira reação de fusão sustentada em um laboratório.
Empresas não afiliadas ao projeto Alpha também estão nessa corrida. A General Fusion, no Canadá, construiu um dispositivo que usa ondas de choque que se propagam por metal líquido para induzir fusão. A Tri Alpha Energy está construindo um reator de 23 metros de comprimento que dispara par-tículas carregadas umas contra as outras. E a gigante da defesa Lockheed Martin diz que terá um reator de fusão magnética do tama-nho de um contêiner de transporte que será comercialmente disponível em uma década.
O histórico da fusão sugere que esses projetos devem ser vistos com ceticismo. Mas, se qualquer uma dessas abordagens conseguir produzir energia limpa e abun-dante, sem resíduos radioativos, ela poderia resolver males que vão da pobreza energéti-ca a mudanças climáticas com uma única inovação. —David Biello
PROTÓTIPOem uma esfera central.
30 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016
Segurança para transgênicosInterruptor genético pode evitar contaminação ambiental
Números incalculáveis de bactérias Escherichia coliproduzem pelo mundo coisas úteis como insulina medicinal, polímeros sintéticos e suplementos alimentares. Após cumprirem seus papéis, elas são descartadas como resí-duo industrial ou reusadas como fertilizante.
Esse descarte atualmente constitui pou-co risco ambiental, pois a E. coli transgênica é fraca comparada a suas primas selvagens e não sobreviveria por muito tempo fora do laboratório. Mas e se no futuro bactérias transgênicas mais resistentes forem libera-das por acidente? Ou se elas compartilha-
tência a antibióticos, por trans ferência horizontal de genes? Ou se uma empresa
dos no DNA de uma bactéria patenteada?
temas de segurança à prova de falhas.Em 2009, Brian Caliando, bioengenheiro
à época na Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF), começou a trabalhar em uma forma de garantir a destruição do
bactéria antes de ela escapar ou ser rouba-da. Ele havia lido recentemente sobre o método CRISPR [sigla, em inglês, de repeti-ções palindrômicas curtas agrupadas e regularmente interespaçadas], uma defesa que bactérias usam para picotar e destruir o DNA de vírus invasores, e percebeu que poderia usá-lo como um “interruptor assas-sino” embutido em bactérias transgênicas.
Primeiro na UCSF e depois no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Caliando desenvolveu o DNAi, um sistema
baseado em CRISPR que leva bactérias a
programou plasmídeos, pequenos círculos de DNA que se replicam autonomamente
formam o interruptor. Em seguida, ele inse-riu esses plasmídeos em E. coli genetica-
e infectaram as bactérias com seus progra-mas mortais. A adição do açúcar chamado arabinose à cuba de cultura aciona o inter-
ruptor matador, e o dispositivo DNAi come-
O trabalho de Caliando foi publicado em Nature Communications, em 2015. Os mes-mos princípios poderiam ser adaptados para funcionar em diversos organismos e condi-ções. O DNAi poderia, por exemplo, impe-dir a polinização cruzada entre organismos
lavouras, ou campos próximos, sugere Caliando. — Jennifer Abbasi
ainda não inventados, podem ir parar onde são indesejados. Cientistas desenvolvem sistemas para evitar contingências desse tipo
IDEIAS QUE MUDARÃO O MUNDO
www.sciam.com.br 31Ilustração de Don Foley
(acima)
(à direita):
Termoaspirador Espelho versátil absorve calor e o irradia para o espaço exterior
Aparelhos de ar-condicionado respon-dem por quase 15% do consumo energético de edifícios nos EUA. O número de dias com calor recorde pode aumentar muito nas próximas décadas. Como arrefecer nossas casas e locais de trabalho e, ao mesmo tem-po, reduzir o consumo de energia?
Para pesquisadores da Universidade de Stanford, parte da solução é um espelho que absorve o calor de edifícios banhados pelo Sol e o irradia para o espaço sideral. O con-ceito básico, conhecido como resfriamento radiativo, se originou na década de 1980, quando engenheiros descobriram que cer-tos tipos de coberturas de metal pintado “extraíam” calor de edifícios e o irradiavam
em comprimentos de onda que passam livres pela atmosfera. Mas o processo nunca funcionou durante o dia, pois ninguém tinha feito um material que irradiasse energia tér-
Em ensaios sobre o telhado de seu labo-ratório, a equipe de Stanford testou seu dis-positivo, feito de camadas de dióxido de háf-nio e dióxido de silício sobre uma base de
solar. Os átomos de dióxido de silício se comportam como pequenas antenas que absorvem calor do ar de um lado do painel e emitem radiação térmica do outro. O mate-rial irradia principalmente em comprimen-tos de onda entre oito e 13 nanômetros. Como a atmosfera da Terra é transparente a esses comprimentos de onda, em vez de aquecer o ar ao redor do prédio, o calor escapa para o espaço. Mesmo exposto à luz solar direta, a temperatura da “bolacha” de 20 centímetros de diâmetro do grupo é cer-
ca de 5oC mais baixa que a do ar.Shanhui Fan, engenheiro elétrico de
Stanford e autor sênior de um artigo de 2014, publicado em Nature, descrevendo o trabalho, imagina que painéis desse material poderiam cobrir edifícios. Com seu telhado expelindo continuamente calor, o ar-condi-cionado de um prédio poderia funcionar a uma taxa mais módica e consumir menos energia. Outras aplicações também seriam possíveis. Remover o componente espelho e combinar o material com células solares, por exemplo, poderia arrefecer as células foto-voltaicas, permitindo, ao mesmo tempo, que
cientes. “É muito interessante pensar sobre como seria possível acessar esse enorme recurso termodinâmico que o Universo representa como um sumidouro de calor”, comenta Fan. “Realmente só estamos muito no começo do reconhecimento dessa fonte de energia renovável subexplorada.” — R.N.
(cinza)(preto)
32 Scientific American Brasil | Janeiro 2016
Máquinas autodidatasTecnologia de aprendizado profundo ajuda inteligência
A Google, o Facebook e outros gigantes corporativos estão dando importantes pas-sos na construção de tecnologia capaz de aprender por conta própria. Seus esforços dependem fortemente de algo conhecido como aprendizado profundo.
Enraizadas na ideia existente há décadas de que computadores seriam mais inteli-gentes se operassem mais como o cérebro humano, as redes de aprendizado profundo consistem em camadas sobrepostas de uni-dades de processamento conectadas, cada uma das quais executa uma operação dife-
As redes de aprendizado profundo têm mui-to mais camadas que as neurais convencio-nais. Quanto mais profunda é a rede, mais camadas ela tem e mais elevado é o nível de abstração em que ela é capaz de operar.
O aprendizado profundo ganhou impul-so em meados dos anos 2000 com o traba-
Toronto, Yoshua Bengio, da Universidade de Montreal, e Yann LeCun, da Universidade de Nova York. Mas só recentemente a tecnolo-gia começou a fazer incursões comerciais. Um exemplo disso é o Google Fotos, lança-do em maio. O software é capaz de carregar
minimizadas. Ele consegue fazer isso porque aprendeu a reconhecer rostos com a exposi-
ção a milhões de imagens analisadas pelo sistema. Uma vez que tenha treinado em
narizes e as bocas de pessoas individuais em imagens que nunca viu antes.
O aprendizado profundo pode fazer mui-to mais que organizar fotos. Ele pode mar-
que exibe comportamentos praticamente indistinguíveis dos de humanos. Em feverei-ro, a DeepMind (comprada pela Google em 2014 por US$ 617 milhões), sediada em Lon-dres, informou ter usado o aprendizado pro-fundo para construir um computador auto-didata, capaz de ensinar a si mesmo a jogar dezenas devideogames da empresa Atari. Após muita prática, o software teria vencido humanos peritos nesses jogos. O passo é pequeno, mas a era das máquinas tem de começar em algum lugar. — Gary Stix
IDEIAS QUE MUDARÃO O MUNDO
www.sciam.com.br 33Ilustração de Don Foley
Câmera
Visão em curvaFótons ajudam a captar imagens além do campo visual
Se câmeras“enxergassem”em ângulo, elas poderiam alertar motoristas paraperigos após uma curva, ajudar bombeiros a vasculhar prédios em chamas e permitira cirurgiões visualizar áreas de difícil alcance no interior do corpo. Há alguns anos,pesquisadores do Media Lab, no MIT, construíram um protótipo precoce e caro, que
software memorizava o tempo de chegada de cada fóton, calculava distâncias e
tecnologia.Agora ela consegue registrar objetos em movimento. Um LED e um sen-— Larry Greenemeier
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Química em câmera lentaSimulações computadorizadas e espectroscopia no infravermelho revelam o mundo oculto das reações em líquidos
As ligações de hidrogênio de nosso DNA
parte da química ambiental de nosso plane-ta ocorre nas águas. A maioria das drogas é sintetizada em solventes. No entanto, quí-micos em geral só estudam a mecânica liga-ção a ligação na fase gasosa, em que as moléculas são relativamente esparsas e fáceis de rastrear. Em um líquido há mais moléculas e mais colisões entre elas, com reações rápidas, confusas e complicadas. O processo a ser observado parecerá um bor-rão indistinto, a menos que se possam tirar fotos instantâneas da reação em poucos tri-lionésimos de um segundo.
Andrew Orr-Ewing, da Universidade de Bristol, na Inglaterra, usa lasers para estudar reações químicas. Ele sabia que reações em líquido catalisadas por calor criam vibrações que podem ser observadas no espectro infravermelho. Em experimentos conduzi-dos de 2012 a 2014, ele e o então estudante de doutorado Greg Dunning dispararam um pulso ultravioleta ultrarrápido contra molé-
vente chamado acetonitrila, ou cianeto de metila. O pulso de laser desbastou, como um bisturi, átomos de flúor altamente reati-vos que, por sua vez, roubaram átomos de deutério das moléculas do solvente, forman-
que as reveladoras vibrações de infraverme-lho apareceram e sumiram após o primeiro pulso de laser, revelou a rapidez com que as ligações entre átomos se formavam e com que velocidade a reação atingia equilíbrio.
Os experimentos foram uma prova de conceito para observar os detalhes, em fra-ções de segundo, de reações em líquidos.
cas, a maioria dos químicos usa simulações computadorizadas em vez de detectores e lasers caros. Para eles, David Glowacki e Jeremy Harvey, também de Bristol, dese-nharam um software de simulação que pre-
viu os resultados dos experimentos com um nível extraordinário de precisão.
“Podemos usar essas simulações para investigar mais profundamente o que está acontecendo, pois elas nos dão informações mais precisas do que as que podemos obter dos experimentos”, explica Orr-Ewing.
Em conjunto, os experimentos e as simu-lações fornecem os melhores insights até
agora de como uma reação química realmente acontece em um líquido. Desen-volvedores de novas tecnologias já estão começando a incorporar métodos da equipe em simulações computadorizadas para uso acadêmico e industrial, que poderiam bene-
de doenças, desenvolvimento de medica-mentos e estudos ecológicos. — J. A.
Microscopia Eletrônica de Varredura/CBEI
M E I O A M B I E N T E
O invasor
Arthur C. Almeida, Newton P. U. Barbosa, Fabiano A. Silva,
Jacqueline A. Ferreira, Vinicius de Abreu e Carvalho,
Marcela D. Carvalho, Antônio V. Cardoso
Originário da Ásia, o mexilhão-dourado (Limnoperna fortunei) foi detectado na América do Sul em 1991 na foz do Rio da Prata, na Argentina.
Nas décadas seguintes ele se dispersou pelas bacias do Sul e Sudeste do Brasil, prejudicando a fauna e fl ora aquáticas e instalações de captação de água e
geração de energia. Em 2015 foi confi rmada sua presença no Rio São Francisco, trazendo o risco de
a invasão se alastrar para a Amazônia.
DOURADO
36 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016
38 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016
A primeira ocorrência ofi cial do mexilhão-dourado (Limnoper-
na fortunei, Mitilidae) na América do Sul foi registrada em 1991,
na foz do Rio da Prata, Argentina. Desde então, a espécie tem se
alastrado por diversos rios do continente. Os primeiros registros
no Brasil aconteceram por volta do ano de 1998, no Rio Grande do
Sul e no Mato Grosso do Sul. A principal hipótese acerca da inva-
são dessa espécie em nosso continente é de que ela teria chegado
por meio da água de lastro de navios mercantes, que é devolvida
ao ambiente enquanto o navio é abastecido com mercadorias.
Após se estabelecerem, as minúsculas larvas do mexilhão-dou-
rado se dispersam rapidamente pela água e a sua invasão também
é potencializada por atividades humanas, tais como a pesca e o
transporte fl uvial, que transportam ativamente essas larvas e tam-
bém as colônias incrustantes de mexilhões adultos. Além disso,
algumas espécies de peixes nativos já incluíram o mexilhão-doura-
do em suas dietas, intensifi cando ainda mais a dispersão do inva-
sor. Já existem, por exemplo, relatos de indivíduos de mexilhão-
-dourado consumidos e excretados vivos nas fezes de abotoados
(Pterodoras granulosus) na bacia do Rio Paraná.
Por esses e outros motivos, as populações de mexilhão-dourado
se dispersaram a uma velocidade de aproximadamente 240 quilô-
metros anuais continente adentro, apenas entre os anos de 1991 e
1998, até chegar ao Brasil. São inúmeros os impactos ecológicos
resultantes do seu estabelecimento nos rios sul-americanos. A
ausência de grandes predadores e
parasitas, por exemplo, oferece uma
vantagem considerável ao mexilhão-
-dourado, em comparação com as espé-
cies nativas de moluscos e crustáceos.
As densas populações de mexilhões-
-dourados aderem a esses organismos,
prejudicando a captação de alimentos
e provocando a morte de um grande
número de indivíduos.
Devido à grande densidade das
populações estabelecidas e à sua efi ciência na fi ltração de água,
os agrupamentos de mexilhões-dourados podem também inter-
ferir no equilíbrio fi sico-químico local dos corpos d’água, reti-
rando grande quantidade de partículas em suspensão, alteran-
do a zona fótica (a que recebe luz sufi ciente para haver
fotossíntese) e as populações planctônicas que dela dependem
diretamente. O resultado é a completa alteração da cadeia ali-
mentar nesses locais, que muitas vezes pode resultar na extin-
ção de diversas espécies nativas de moluscos, peixes, micro-
crustáceos, dentre outros organismos.
PREJUÍZOS DA INVASÃO
Acredita-se que populações densas de mexilhões-dourados pos-
sam também favorecer a proliferação de cianobactérias tóxicas.
Similarmente, diversos trabalhos têm demonstrado que outro
molusco invasor, o Dreissena polimorpha, conhecido como mexi-
lhão-zebra (causador de problemas similares aos do mexilhão-dou-
rado, em diversas regiões da América do Norte), tem provocado o
aumento das fl orações de cianobactérias tóxicas em grandes lagos e
reservatórios. Na baía de Saginaw e no lago Erie, na região dos
Grandes Lagos, na América do Norte, ocorrências de fl orações de
Microcystis aeruginosa, que não eram mais registrados após o con-
trole da entrada de fósforo no sistema, voltaram a ocorrer após o
estabelecimento do mexilhão-zebra.
Arthur C. Almeida, , , ,
são pesquisadores do Centro de Bioengenharia de Espécies Invasoras (CBEI) em Belo Horizonte, MG.. Marcela D.
é analista de meio ambiente da Companhia Energéticade Minas Gerais (CEMIG) em Belo Horizonte, MG.
O MEXILHÃO-DOURADO É UM PEQUENO MOLUSCO DE COLO-
ração dourada do Sudeste Asiático. Em seu hábitat
de origem, a bacia do Rio Yang Tsé, na China, essa
espécie aquática compete por nutrientes com
outros organismos e ainda sofre predação e ação de parasitas.
Assim, as suas populações se encontram relativamente controla-
das nessa região. Entretanto, ao ser inserido em outras bacias
hidrográfi cas, a sua elevada capacidade de reprodução faz desse
organismo um excelente invasor. Na década de 1960, o pequeno
molusco já havia se estabelecido em diversas regiões do Japão,
Taiwan e Hong Kong, causando vários prejuízos ambientais e eco-
nômicos, entre eles a introdução de parasitas de peixes.
www.sciam.com.br 39
FABI
ANO
SIL
VA
Trabalhos recentes têm demonstrado que o mexi-
lhão-dourado filtra as células individuais de Microcys-
tis sp. tóxicas, excretando-as através das suas pseudofe-
zes. Entretanto, na presença de um outro alimento
disponível, o mexilhão-dourado funciona como um
agente seletivo, reduzindo a abundância dos organis-
mos competidores e também favorecendo a ocorrência
de florações tóxicas da cianobactéria Microcystis aeru-
ginosa nos ambientes invadidos. Estas florações podem
potencializar ainda mais os efeitos negativos do proces-
so de invasão, tais como a mortalidade de peixes e de
outros organismos aquáticos, e ainda inviabilizam a
utilização dessas águas para o abastecimento humano.
O mexilhão-dourado possui uma concha nacarada,
composta por aproximadamente 95% de matriz mine-
ral. Os indivíduos podem chegar a 5 centímetros de
comprimento, mas já são capazes de se reproduzir
com apenas 0,5 centímetro, atingindo populações
extremamente densas de até 200 mil indivíduos por
metro quadrado, aderidos ao substrato e também uns
sobre os outros, em gerações consecutivas.
Esse pequeno molusco adere a praticamente qual-
quer substrato sólido, inclusive vidros, PET e teflon. O
pé, órgão com funções táteis e locomotoras, é coberto
por cílios que podem atuar temporariamente como
estruturas de adesão. O mexilhão se fixa de forma
definitiva por meio do bisso, que é composto por um
conjunto de polímeros secretados pelas glândulas do
pé. Do bisso um conjunto de emaranhados fibrosos se
projeta individualmente de cada bainha, em forma de
fios. Estes são compostos por um eixo interior flexível
de colágeno revestido por uma proteína polifenólica
curada e endurecida, que compõe a cutícula bissal.
Para diversas atividades humanas, a presença do mexilhão-dou-
rado é sinônimo de prejuízos financeiros. Eles podem, por exemplo,
se incrustar nos tanques-rede utilizados na piscicultura, prejudican-
do o fluxo de água entre os tanques e o rio, provocando acúmulo de
metabólitos dentro dos tanques e eventualmente causando um
aumento na mortalidade dos peixes. Os mexilhões-dourados podem
também invadir estruturas industriais de captação de água, inter-
rompendo atividades de irrigação e fornecimento de água, como já
foi observado em Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, e em Presidente
Epitácio, em São Paulo. Esses moluscos invasores também se acu-
mulam nos encanamentos das usinas hidrelétricas, causando o
entupimento dos trocadores de calor, provocando a parada das
máquinas para manutenção e limpeza. Além disso, a decomposição
de mexilhões mortos dentro de câmaras de passagem de água de
uma usina hidrelétrica provoca a liberação de gases que oferecem
risco aos trabalhadores envolvidos com a limpeza das estruturas.
O acúmulo de mexilhões nos cascos dos veículos aquáticos
aumenta a força de arrasto na água resultando em maior consumo
de combustível, que também pode ser afetado com incrustações no
interior dos motores. Somados, os prejuízos causados por esse inva-
sor nos últimos anos já somam centenas de milhões de dólares ape-
nas no Brasil.
O SALTO DO SUDESTE AO NORDESTE
Nos últimos anos as áreas invadidas se expandiram do sul do
país até o Pantanal Mato-grossense e também o Triângulo Minei-
ro, regiões limítrofes da bacia do Paraná. Até então a maior preo-
cupação dos pesquisadores envolvidos com esse tema era como
fazer para impedir o mexilhão de se dispersar para as bacias do
São Francisco, Amazonas e Tocantins, regiões de enorme diversi-
dade biológica e cultural, a partir das áreas infestadas ao sul.
Entretanto, assim como os alemães se desviaram da linha Magi-
not para invadir a França, em 1940, o mexilhão, de alguma forma,
teria circundado o que chamávamos de linha do Cone Sul, e che-
gou à Caatinga, a 1.500 km da área infestada mais próxima.
Em junho deste ano foi relatada a presença do mexilhão-dou-
rado no reservatório de Sobradinho, no submédio São Francisco.
Em outubro, uma equipe do Centro de Bioengenharia de Espécies
Invasoras (CBEI), sediado em Belo Horizonte (MG), foi à região
para confirmar. Foram encontradas larvas e adultos no reservató-
rio, indicando que o mexilhão já estava bem estabelecido.
Ainda é cedo para se mensurar os impactos da chegada do
mexilhão-dourado na bacia do Rio São Francisco. Entretanto,
diversos impactos ambientais e sociais devem se intensificar no
médio e longo prazo nessa região.
40 Scientific American Brasil | Janeiro 2016
FABI
ANO
SIL
VA
reservatório de Sobradinho. Infelizmente, a equipe do Centro de
CBEI também coletou indivíduos e larvas de mexilhão-dourado na
entrada do eixo norte do canal de transposição do São Francisco. O
eixo norte do canal de transposição do rio irá levar água para
diversos açudes do Nordeste, tais como o de Entremontes a alguns
quilômetros dali, no estado de Pernambuco.
RISCO DE NOVAS INVASÕES
A presença do molusco invasor nessas localidades é altamente
prejudicial, pois afetará a captação de água pelas comunidades
adjacentes, agravando o que já é grave: a falta de água. Por essa
razão, é extremamente urgente que essas localidades comecem a
ser monitoradas desde já. A identificação da presença do mexilhão-
dourado na fase de estabelecimento é de suma importância para
serem tomadas medidas de controle.
Um organismo invasor geralmente só é identificado quando as
suas populações já estão bem estabelecidas e podem ser
visualizadas com facilidade. Entretanto, após o estabelecimento, o
controle se torna muito mais custoso e difícil. Por isso, técnicas de
detecção rápida devem começar a ser utilizadas imediatamente
nessas regiões e em outras localidades do país, assim como já é
realizado na América do Norte, por exemplo, e também já utiliza-
da pela Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG), por
meio do CBEI.
Somando a isso, torna-se real a possibilidade de o mexilhão-
-dourado subir o São Francisco até a região central de Minas
Gerais, de onde poderia se alastrar para diversas sub-bacias. Uma
destas é a do Rio das Velhas, que é de extrema importância para o
fornecimento de água para a região metropolitana de Belo Hori-
zonte, com cerca de seis milhões de habitantes.
Além disso, a nova ocorrência fez soar o “alerta vermelho”, pois
foi observado que o molusco asiático pode entrar no Brasil por
novas rotas. Os portos do Norte e Nordeste, por exemplo, conti-
nuam sendo uma provável via de entrada para o mexilhão-doura-
do. Nos últimos anos o fluxo de navios mercantes nessas regiões
aumentou consideravelmente, o que pode resultar em uma nova
onda de invasões do mexilhão-dourado e de outros organismos
aquáticos invasores. Por essas razões, é imprescindível que medi-
das emergenciais sejam tomadas para o controle dessa espécie,
que é extremamente nociva para os ecossistemas e para a econo-
mia de nosso país.
Os episódios de invasão pelo mexilhão-dourado podem ser
identificados de diversas maneiras. Geralmente, o problema é
identificado quando as populações já se encontram grandes e
bem estabelecidas. A observação de larvas ou indivíduos isolados
é extremamente difícil, e é um problema comum para o manejo
de diversas espécies invasoras. Além disso, muitas vezes os orga-
nismos vindos de outras regiões se mantêm em um determinado
lugar por anos antes de se tornarem invasores. Dessa forma, a
detecção rápida destes organismos na fase de preestabelecimento
é de extrema importância para o controle das populações invaso-
ras. A utilização de um protocolo de detecção rápida periódico em
regiões não afetadas assegura que um episódio de invasão seja
controlado em suas fases iniciais, o que potencializa as chances
de sucesso no controle populacional da espécie.
Larvas pegam caronaA piscicultura em tanques rede, localizados em rios e reser-
vatórios, assim como as atividades de peixamento, que consistem no povoamento ou repovoamento de um rio ou reservatório por
rior à pós-larval), são atividades de alto risco à introdução de espé-cies exóticas invasoras. O risco de invasão pelo mexilhão-dourado é altamente potencializado já que durante o processo de introdução de alevinos, águas contaminadas com larvas microscópicas do mexilhão servem de propágulos que podem cul-minar na invasão do organismo. Na fase larval, o mexilhão é microscópico e, por isso, mesmo uma água cristalina pode conter larvas que permitam a invasão pelo molusco. Assim, as larvas de mexilhões podem pegar carona na água utilizada para o trans-porte de alevinos. Por isso, é de suma importância que as empre-sas responsáveis por estas atividades estejam bem informadas e adotem medidas de biossegurança que garantam a ausência de espécies invasoras nas águas que transportam alevinos. Além dis-
garantir que a origem dos alevinos para estas atividades sejam de áreas livres, não infestadas pelo mexilhão-dourado.
AQ U I C U L T U R A
A presença de populações de mexilhões-dourados no Rio São
Francisco pode causar a alteração da cadeia alimentar das áreas
afetadas, podendo também desencadear florações de cianobacté-
rias e o deslocamento de espécies nativas de peixes e outros orga-
nismos. As comunidades de pescadores serão impactadas e a cap-
tação de água em pequenas comunidades e em pivôs de irrigação
poderá ser seriamente afetada devido à presença de incrustações
de mexilhões que poderão entupir as tubulações.
Para uma região já gravemente afetada pela falta de água, esses
problemas terão um peso ainda maior. A Caatinga é uma região
extremamente seca, e por isso, grandes projetos de captação de
água estão em andamento, tais como o eixo norte do canal de
transposição do São Francisco, a aproximadamente 150 km do
www.sciam.com.br 41
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Diversas técnicas de identifi cação podem ser empregadas,
como a microscopia óptica. Também pode ser usada a amplifi ca-
ção do DNA do mexilhão em amostras de água por reação da
cadeia da polimerase (PCR), além de equipamentos de identifi ca-
ção de larvas por reconhecimento automático de imagens.
É de extrema importância a fi scalização de embarcações, pois
o mexilhão-dourado se dispersa com relativa facilidade através
das incrustações. Por isso, é sugerida a limpeza frequente dos cas-
cos com o uso de jatos de água, água sanitária, além de tintas anti-
-incrustantes, nas embarcações que frequentam áreas infestadas.
Restos de plantas e outros organismos, como moluscos e peixes,
não podem ser descartados nos rios e reservatórios – devem ser
descartados fora dos cursos d’água, enterrados ou incinerados.
Na piscicultura os cuidados devem ser redobrados. Telas e
outros equipamentos usados nessa atividade muitas vezes são
levados a regiões diferentes. E muitas vezes a água usada para
transportar alevinos carrega larvas de mexi lhões -dou ra dos.
Do ponto de vista estratégico, é necessário que os órgãos públi-
cos fi scalizem o trânsito de embarcações e de turistas. O turismo
de pesca pode ser um vetor de alastramento importante, uma vez
que as iscas artifi ciais, boias e outros equipamentos podem carre-
gar larvas de mexilhão-dourado entre regiões distintas. Nesse
contexto, a educação ambiental tem um papel primordial. É
importante que as populações dos locais invadidos e daqueles
que apresentam risco de invasão conheçam o organismo invasor
e os impactos decorrentes de seu estabelecimento.
Em novembro passado, em Belo Horizonte, o 2º Fórum de
Debates sobre os Problemas Ambientais e Econômicos das Espé-
cies Invasoras (http://www.cbeih.org/forum) discutiu a articula-
ção do setor de geração de energia hidrelétrica para enfrentar o
problema das espécies invasoras aquáticas, com atenção especial
ao mexilhão-dourado. Organizado em parceria entre o CBEI e a
CEMIG, o evento teve participação de representantes da indús-
tria, do meio acadêmico e do poder público. Ficou claro para
todos os participantes que só a ação coordenada das empresas e
órgãos públicos será efetiva para controlar as espécies invasoras.
Além disso, torna-se indispensável uma aliança com instituições
ambientais e de pesquisa, inclusive com o acompanhamento pelo
Ministério Público, para esse problema deixar de ser visto de for-
ma isolada e ser colocado na agenda ambiental brasileira .
PARA CONHECER MAIS
Centro de Bioengenharia de Espécies Invasoras (CBEI) –
Andrade et al., em Materials Science and Engineering 54, págs. 32-42; 2015.
Riera et al., em Revista de Pesquisa e Desenvolvimento da ANEEL no 6 ; 2015.
3Limnoperna fortunei Nakamura et al., em Materials Research 17, págs. 15-22; 2014.
M. D. Oliveira, D. M. R. Ayroza, D. Castellani, M. C. S. Campos e M. C. D. Man-sur, em Panorama da Aquicultura 24, vol. 145; págs. 22-29; 2014.
O mexilhão-dourado foi detectado na América do Sul pela primeira vez em 1991 na foz do Rio da Prata, na Argentina, pro-vavelmente por meio da água de lastro despejada por navios mercantes vindos da Ásia. Nas duas décadas seguintes ele se alastrou pela região Sul, chegando à divisa de São Paulo com Minas Gerais e ao sul de Mato Grosso do Sul.
A regulação da água de lastro e os protocolos internaciona-is para reduzir o potencial de transporte de espécies potencial-mente invasoras são relativamente recentes. O Brasil participa do “Programa Global de Gerenciamento de Água de Lastro” (GLOBALLAST), criado pela Organização Marítima Internacio-nal (IMO) para evitar invasões como a do mexilhão-dourado.
Da Ásia ao São FranciscoO C A M I N H O DA I N VA S ÃO
42 Scientific American Brasil | Janeiro 2016 Ilustração de Jon Foster
PA L EO N TO LO G I A
O impacto do asteroide foi ruim,
O quematouos
Stephen Brusatte
mas o momento foi pior
E M S Í N T E S E
dos dinossauros é um dos maiores mistériosda ciência. proposta há algumasdécadas sugere que o impacto de um asteroide foi a cau-sa do desaparecimento desses animais. es-
peculam se outros fatores podem ter contribuído parasua destruição. sugere que na épocaem que a gigantesca rocha espacial atingiu o planeta, ascomunidades de dinossauros já estavam vulneráveis.
44 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016
IGREJA DO SANGUE DERRAMADO, EM SÃO PETERSBURGO, NA RÚSSIA, PARECE TER SAÍ-
do de um conto de fadas. Situada às margens de um canal gelado, de uma
fl oresta de cúpulas em forma de cebola que se elevam na direção do céu, ela
é revestida com mosaicos coloridos que cobrem cada centímetro quadrado
de seu interior. Esse não é o tipo de lugar que paleontólogos costumam visi-
tar, mas eu estava na cidade para estudar um novo dinossauro, e insisti em
conhecer o lugar. A visita tinha caráter pessoal. A igreja foi construída no
local onde o czar Alexandre 2º foi assassinado pelos revolucionários em 1881, dando início a uma série de
eventos que acabaram chegando até mim. A morte do czar foi o estopim para um frenético extermínio
antissemita. Judeus em situação de risco no império russo estavam muito assustados, e uma família na
Lituânia entrou em pânico e enviou o fi lho mais jovem para a América, que era mais segura. Esse homem
foi meu bisavô. Se não fosse essa sucessão de fatos que começou há mais de 100 anos em São Petersburgo,
hoje eu não estaria aqui.
Todas as famílias têm histórias como essa para contar —
estranhas guinadas do destino num passado distante. Sem elas
o presente seria muito diferente. A evolução também funciona
assim. As histórias de vida são contos inesperados, sujeitos a
serem redirecionados a qualquer momento. Na verdade, foi
exatamente isso o que aconteceu há 66 milhões de anos, no
fi nal do período Cretáceo. Nos 150 milhões de anos anteriores,
os dinossauros dominaram o planeta, atingindo dimensões
gigantescas e prosperando em praticamente todos os ambien-
tes terrestres imagináveis. Mas então alguma coisa mudou, e
tiranossauros, triceratopes e seus parentes desapareceram.
A extinção dos dinossauros é um dos maiores mistérios da
ciência e foi o que me entusiasmou na adolescência. Na década
passada, enquanto ou coletava fósseis de dinossauros pelo
mundo, isso fi cou martelando na minha cabeça: como criaturas
tão bem-sucedidas simplesmente desapareceram? Uma teoria
popular que se desenvolveu nos anos 1980 defende que um
asteroide foi a causa. Mas os céticos especulam que outras for-
ças podem ter contribuído para seu desaparecimento. À medi-
da que os pesquisadores descobrem novos espécimes e apren-
dem mais sobre a evolução desses animais, se aproximam mais
de uma resposta conclusiva.
Recentemente, organizei um grande encontro internacional
de paleontólogos para reunir exatamente todo o conhecimento
disponível e chegar a um acordo sobre a extinção dos dinossau-
ros. Utilizamos os inventários de diversidade mais atualizados
sobre esses répteis para examinar tendências evolucionárias ao
longo do tempo, revisamos as últimas informações sobre o
momento da extinção e analisamos atentamente as várias
mudanças ambientais que ocorreram na época em que eles
desapareceram. Para nossa surpresa, nossa equipe de quase
uma dezena de especialistas em dinossauros — um grupo bas-
tante inquisidor — chegou a um claro consenso: como era do
conhecimento geral, a extinção foi um processo abrupto, e um
asteroide foi o principal causador. Mas isso não é tudo: o aste-
roide atingiu a Terra num momento que já era desfavorável
para os dinossauros, quando os ecossistemas estavam vulnerá-
veis devido a uma mudança ambiental anterior.
é paleontólogo da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Ele pesquisa evolução e anatomia de dinossauros. No artigo anterior que escreveu para a American ele analisou o ascensão dos tiranossauros.
www.sciam.com.br 45Gráfico de 5W Infographics
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Essa é uma nova e inesperada guinada da antiga narrativa,
extremamente relevante para o mundo moderno e para nossa
própria descrição evolucionária.
O MISTÉRIO CONTINUA
Como a maioria dos adolescentes, eu fi z coisas impetuosas
na época da escola. Talvez nada tenha sido mais atrevido que
apanhar o telefone, num dia na primavera de 1999, e ligar sem
nenhum constrangimento para Walter Alvarez, geólogo da Uni-
versidade da Califórnia em Berkeley. Eu era um garoto de 15
anos obcecado por dinossauros. Ele era um eminente membro
da Academia Nacional de Ciências que, cerca de 20 anos antes,
tinha proposto a ideia de que o impacto de um enorme asteroi-
de havia acabado com os dinossauros.
A hipótese de Alvarez começava com uma observação curio-
sa. O registro geológico preserva uma fi na faixa de lama que
marca o limite entre os sedimentos propícios para o desenvolvi-
mento de dinossauros do período Cretáceo, que se estende
entre 145 milhões e 66 milhões de anos atrás, e sedimentos
impróprios para a proliferação de dinossauros do período
Paleogêneo, entre 66 milhões e 23 milhões de anos. Alvarez des-
cobriu que a faixa de lama estava saturada de irídio, elemento
raro na Terra, mas comum em objetos extraterrestres como
cometas e asteroides. Ele observou essa anomalia, pela primei-
ra vez, num desfi ladeiro rochoso perto do vilarejo medieval de
Gubbio, na região da Úmbria, Itália. Por coincidência, minha
família estava se preparando para viajar para a Itália para
comemorar o aniversário de 20 anos de casamento de meus
pais. Eu atormentei meus pais para fazerem uma pausa nas
visitas a basílicas e museus de arte e ir para Gubbio por um dia
para ver os aspectos geológicos que criaram o famoso cenário
destruidor de dinossauros de Alvarez. Mas eu precisava de indi-
cações, por isso decidi ir diretamente à fonte.
O fato de Alvarez não só ter respondido ao meu telefonema,
mas também de ter me fornecido as indicações detalhadas
sobre o local exato do desfi ladeiro onde ele detectou os picos de
irídio ainda me intrigam. Eu não esperava que aquele gênio da
ciência fosse tão gentil e generoso com o tempo que me dedi-
cou. Publicada na revista Science, em 1980, com Luis, seu pai,
físico, ganhador do Nobel, e dois colegas de Berkeley, sua teoria
do asteroide desencadeou uma década de debates acalorados.
Dinossauros e extinções em massa estavam constantemente
nos noticiários. A ideia do impacto aparecia em vários livros e
nos documentários da televisão. E centenas de artigos científi -
cos discutiam o que realmente tinha matado os dinossauros,
com paleontólogos, geólogos, químicos, ecólogos e astrônomos,
todos discutindo o tema científi co mais quente do dia.
No fi nal dos anos 1980 era incontestável que um asteroide
ou cometa tinha se chocado contra o planeta há 66 milhões
de anos. A mesma camada de irídio tinha sido observada no
mundo todo. E outros aspectos geológicos formados durante
impactos extraterrestres, como pequenas pedras de vidro,
chamadas tectitos, e grânulos deformados de quartzo,
conhecidos como quartzo de impacto, apareciam junto com
o irídio.
Variação porcentual
Terópodes
Terópodes
0%
0%
20%
20%
-40%
-60%
0%20%
-80%
0%-20%
20%
0%20%
-100%
0%-20%
40%
Todos os dinossauros
Dinossaurosbico de pato
Dinossaurosde chifre
Todos osornitísquios(incluindo dinossaurosde chifre, bico depato, entre outrasespécies)
Impacto do asteroideMilhões de anos
70 69 68 67 66717273
Campaniano
7475
C R E T Á C E O T A R D I OMaastrichtiniano
-15,1%
-36,9% -34,0%
-3,3%
+12,6
-23,3%
-47,2%
+2,3%
-100%
+1,4%
-61,3%
+20,0
Ornitísquios (herbívoros)
Diversidade(linhas azuis)
Disparidade(linhas verdes)
Terópodes (carnívoros)
Herbívoros em dificuldadesAnálises de dinossauros da América do Norte mostram que, no geral, eles estavam prosperando em termos do número total de espécies – uma métrica conhecida como diversidade – quando o asteroide atingiu a Terra há 66 milhões de anos (acima). Mas uma análise mais apurada revela tendências veladas de redução. Um grupo maior, os terópodes, estava se desenvolvendo bem (abaixo). Mas outro grande grupo, formado pelos ornitísquios, estava diminuindo tanto em diversidade como em disparidade, métrica que mede a variação da anatomia e tamanho das espécies presentes (meio). Dois subgrupos de ornitísquios – os dinossauros de chifre e os dinossauros bico de pato – foram duramente atingidos. É quase certo que seu declínio teve consequências para outras espécies de dinossauros.
U M A T E N D Ê N C I A V E L A DA
46 Scientific American Brasil | Janeiro 2016
Além disso, geólogos até localizaram a cratera que data
da mesma época da extinção dos dinossauros — cratera Chi-
cxulub, com 180 quilômetros de diâmetro, no México. Algu-
ma coisa imensa e inesperada com cerca de 10 quilômetros
de extensão veio do espaço e desencadeou um cataclismo de
erupções vulcânicas, incêndios em florestas, tsunamis, chu-
va ácida e poeira que bloqueou a luz solar, selando o destino
dos dinossauros.
No entanto, os cientistas tinham pouquíssimas informa-
ções sobre como os dinossauros estavam evoluindo no perío-
do anterior ao impacto repentino, e exatamente como eles e
o ecossistema responderam a esse extraordinário desastre
ambiental. O debate continuou acirrado para descobrir se o
asteroide destruiu os dinossauros de repente, enquanto eles
ainda estavam na sua melhor fase, ou se foi o golpe de mise-
ricórdia para um grupo moribundo que estava sendo dizima-
do aos poucos e que acabaria se extinguindo de qualquer
maneira. Afinal, o asteroide não atingiu um planeta estático,
mas um mundo que estava passando por terríveis flutuações
no nível dos oceanos, mudanças de temperatura e vulcanis-
mo extremo. Alguns desses fenômenos podem ter contribuí-
do para a extinção?
NOVAS DESCOBERTAS
Eu não consegui ir para Gubbio naquela viagem para a
Itália com a família. Inundações fecharam a principal estra-
da de ferro de Roma, e eu fiquei desolado. O destino pode ser
cruel (pergunte aos dinossauros), mas ele também pode ser
promissor. Imagine então minha surpresa quando, cinco
anos depois, eu voltei à Itália para um curso de geologia de
campo da universidade. Nós estávamos alojados num peque-
no observatório nos montes Apeninos, dirigido por Alessan-
dro Montanari, um dos vários cientistas que se promoveram
nos anos 1980 estudando a extinção do fim do Cretáceo. No
primeiro dia de nossa permanência, passamos pela bibliote-
ca, onde uma figura solitária examinava um mapa geológico
sob uma luz bruxuleante. “Eu quero que todos vocês conhe-
çam meu amigo e orientador, Walter Alvarez”, disse Monta-
nari com seu carregado sotaque italiano. “Alguns de vocês
devem ter ouvido falar dele.”
Alguns dias depois estávamos no desfiladeiro de Gubbio,
sob o escaldante sol do Mediterrâneo e carros velozes zunindo
ao redor. Alvarez estava diante de uma turma de alunos univer-
sitários, apontando para o exato lugar onde a teoria do asteroi-
de foi concebida. Meus colegas começaram a zombar de mim,
porque, depois que me apresentei a Alvarez, e ele se lembrou de
nossa discussão cinco anos antes, eu não parava de sorrir.
Aquele dia ficou gravado na minha memória como um dos
momentos mais importantes do início de minha carreira. Eu
soube então que o mistério da extinção dos dinossauros tinha
tomado conta de mim.
Talvez paradoxalmente, como aluno de pós-graduação
minha pesquisa focaliza principalmente a ascensão dos dinos-
sauros até o ápice, e a origem e início da evolução das aves
(que se originaram desses répteis e, portanto, são o único gru-
po originado deles
que não foi extinto).
Mas finalmente tive a
oportunidade de con-
tribuir para o debate
sobre a extinção dos
dinossauros em 2012,
quando estava termi-
nando a pós-gradua-
ção. Meu colega
Richard Butler, da
Universidade de Bir-
mingham, na Ingla-
terra, que usava esta-
tística para estudar
tendências evolucio-
nárias, teve uma ideia
brilhante: que tal se
nós concentrássemos
nosso conhecimento
de diferentes grupos
de dinossauros e dife-
rentes técnicas de
análise para obter
uma visão atualizada
das mudanças que os
dinossauros sofreram durante os 15 milhões a 10 milhões de
anos antes da extinção?
Decidimos examinar as tendências de diversidade de
dinossauros usando uma métrica chamada disparidade mor-
fológica. A disparidade é, essencialmente, uma medida anatô-
mica da biodiversidade — ela quantifica a variabilidade de
dimensões, forma e anatomia do corpo de um grupo ao longo
do tempo ou em seus ecossistemas. Imagine dois ecossiste-
mas, um com 15 espécies de pequenos roedores e outro com
um morcego, uma gazela e um elefante. O primeiro pode ter
mais espécies, mas o segundo tem um conjunto de espécies
com diversidade de tamanho, forma e comportamento muito
maior. A disparidade geralmente fornece um quadro mais
completo da vitalidade e biodiversidade de grupos que a sim-
ples contagem de uma espécie, e queríamos descobrir se havia
quaisquer tendências óbvias nos dinossauros. Disparidade
estável ou crescente durante o Cretáceo tardio indicaria que
os dinossauros estavam vivenciando um período de prosperi-
dade, quando o asteroide brutalmente interrompeu seus dias
de glória, enquanto uma disparidade decrescente sugeria que
eles estavam enfrentando problemas, antes do impacto.
Encontramos alguns resultados intrigantes. A maioria dos
dinossauros mostrou disparidade relativamente estável duran-
te os 15 milhões a 10 milhões de anos anteriores ao impacto,
inclusive os carnívoros terópodes (como o tiranossauro e o
velociraptor), os saurópodes de pescoço longo, e os herbívoros
de médio e pequeno porte (o cefalossauro com cabeça em for-
ma de domo coriáceo, por exemplo). Mas dois subgrupos apre-
sentavam disparidade decrescente quando o asteroide atingiu
O declínio de toda a cadeia alimentar Modelagens por computador das cadeias alimentares de dinossauros do Cretáceo tardio, de Careless Creek Quarry, no estado de Mon-tana, e o mais jovem Lull 2 Quarry, no Wyoming, sugerem que a grande redução de dinossauros de chifre teria afetado drasticamente outras espécies. Por serem herbívoros de corpos avantajados, eles eram espé-cies chave, que serviam de presas para dinossauros carnívoros. Seu desaparecimento desestabilizou as cadeias alimentares, deixando todos os dinossauros mais vulneráveis aos efeitos devastadores do impacto do asteroide.
I M PAC T O M A I O R
www.sciam.com.br 47
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Gráficos de Daisy Chung
a Terra: o dinossauro de chifre (triceratopes e seus parentes) e o
de bico de pato. Os dois grupos eram herbívoros de grande por-
te que consumiam enormes quantidades de vegetação. Se vivês-
semos na Terra há 66 milhões de anos, rapidamente teríamos
notado que esses dinossauros eram os mais abundantes. Eles
eram o gado do Cretáceo — os herbívoros mais importantes de
cadeia alimentar.
Praticamente na mesma época em que publicamos nossos
resultados, outros pesquisadores estavam examinando a
extinção dos dinossauros sob outros ângulos. Equipes lide-
radas por Paul Upchurch, da Universidade College de Lon-
dres, e Paul Barrett, do Museu de História Natural de Lon-
dres, realizaram um censo da diversidade de espécies de
dinossauros ao longo do tempo e descobriram que esses ani-
mais, em geral, ainda eram muito diversificados na época do
impacto do asteroide, mas que estava minguando o grupo
que incluía aqueles que tinham chifre e os de bico de pato.
Essas descobertas concordavam claramente com nossos cál-
culos de disparidade.
Como o declínio da riqueza de espécies e a disparidade de
grandes dinossauros herbívoros afetou o resto do grupo? Os
insigths surgiram de estudos inovadores de modelagem por
computador, realizados por Jonathan Mitchell, na época alu-
no de pós-graduação da Universidade de Chicago. Mitchell e
sua equipe criaram cadeias alimentares para vários ecossiste-
mas de dinossauros do Cretáceo e simularam o que acontece-
ria se algumas espécies fossem eliminadas. O resultado foi
surpreendente: as cadeias alimentares que existiam quando o
asteroide se chocou com a Terra, que continham menor quan-
tidade de grandes herbívoros por causa da diminuição da
diversidade, colapsaram mais facilmente que cadeias alimen-
tares mais diversificadas a partir de alguns milhões de anos
antes do impacto.
MOMENTO ERRADO
Com a publicação de todas essas novas ideias sobre a extin-
ção dos dinossauros nos periódicos científicos, Butler e eu
tivemos uma ideia um tanto perigosa: talvez pudéssemos reu-
nir um grupo de elite de especialistas em dinossauros dispos-
tos a sentar, discutir todo o conhecimento acumulado até o
momento sobre a extinção dos dinossauros e tentar chegar a
um consenso sobre por que desapareceram. No início foi qua-
se que por brincadeira. Os paleontólogos discutiram esse pro-
blema por décadas. Quem éramos nós para pensar que podía-
mos resolvê-lo? Provavelmente nosso pequeno gráfico
subversivo acabaria em um beco sem saída, ou pior, em uma
gritaria. Na verdade, aconteceu exatamente o oposto. Nosso
grupo, que incluía 11 cientistas dos Estados Unidos, Canadá e
Reino Unido, na verdade chegou a um acordo. Publicamos
nosso estudo em maio passado na revista Biological Reviews.
Ao reanalisar todas as evidências, descobrimos que os
dinossauros pareciam estar prosperando muito bem na parte
final do Cretáceo. Não há sinais de que sua diversidade geral
(tanto em número de espécies como em disparidade) tenha
diminuído gradualmente ao longo de milhões de anos. Todos
os grandes grupos de dinossauros subsistiram até o fim do
Cretáceo e, pelo menos na América do Norte, onde os regis-
tros fósseis de dinossauros da fase tardia desse período são
Careless Creek QuarryCampaniano78 milhões – 75 milhõesde anos
Tiranossauro
Troodonte
RichardoestesiaOrnitomimossauro
Hipsilofodonte
EuoplocéfaloCoritossauro*
Hadrossauro*
Centrossauro†
Avaceratopo†
Insetos
Parassaurolofo*
Estegoceratopes
Dromeossauro
Vegetais Vegetais
Tiranossauro
Troodonte
RichardoestesiaOrnitomimossauro
Tescelossauro
Mamíferos
LagartosAnfíbios
Insetos
Mamíferos
LagartosAnfíbios
Paquicefalossauro
Dromeossauro
Anquilossauro
Edmontossauro*
Triceratopes†Carnívoro topo de cadeiaCarnívoro médioPequeno predador/insetívoroMédio onívoro Médio herbívoro Grande herbívoro
Cadeia alimentar forteLull 2 QuarryMaastrichtiniano71,6 milhões – 66 milhões de anos
Cadeia alimentar fraca
*Dinossauro bico de pato†Dinossauro de chifre
48 Scientific American Brasil | Janeiro 2016
mais completos, sabemos que
tiranossauros, triceratopes e
seus clãs estavam todos lá para
testemunhar o impacto do aste-
roide. Essa descoberta descarta
a hipótese, antes bem difundi-
da, de que os dinossauros desa-
pareceram aos poucos, em eta-
pas, provavelmente por causa
das flutuações de longo período
do nível dos oceanos, da tempe-
ratura que alterou as massas
continentais e dos tipos de ali-
mento a que tinham acesso.
Mas ao contrário, a extinção dos
dinossauros foi abrupta em ter-
mos geológicos. Então é razoá-
vel pensar que o impacto do
asteroide – um evento súbito e
inesperado – causou a extinção.
Mas, como suspeitávamos
com base em estudos anterio-
res, o impacto do asteroide não
explica toda a história. Os gran-
des herbívoros sofreram um
certo declínio bem no fim do
Cretáceo. A razão exata desse
decaimento não é conhecida,
mas pode estar relacionada a
uma queda do nível dos oceanos
de período mais curto, que alterou significativamente a área
continental disponível para os dinossauros durante seus últi-
mos milhões de anos — pelo menos na América do Norte, que,
sem dúvida, preserva os melhores registros fósseis desse
período. Por serem os herbívoros mais abundantes, os dinos-
sauros de chifre e os de bico de pato seriam os primeiros a
sentir os efeitos das mudanças na extensão territorial e na
vegetação. Seu declínio aparentemente teve consequências:
tornou os hábitats mais vulneráveis ao colapso, desestabili-
zando a base da cadeia alimentar e aumentando a probabili-
dade de que a extinção de apenas algumas espécies desenca-
dearia um efeito cascata no ecossistema.
Considerando tudo isso, parece que o impacto do asteroide
ocorreu num momento crítico para os dinossauros. Se tivesse
ocorrido alguns milhões de anos antes – antes da queda da
diversidade de grandes herbívoros – os ecossistemas de dinos-
sauros teriam sido mais robustos e mais capazes de resistir ao
impacto. Se tivesse ocorrido alguns milhões de anos depois, a
diversidade de herbívoros talvez tivesse se recuperado, como
aconteceu inúmeras outras vezes ao longo dos primeiros 150
milhões de anos de evolução dos dinossauros. Nunca é uma boa
hora para um asteroide de dez quilômetros de extensão cair do
céu. Mas, para os dinossauros, há 66 milhões de anos, pode ter
sido o pior momento. Apenas um ligeiro desvio na cronologia e
os dinossauros ainda poderiam estar por aqui.
O que aconteceu há 66
milhões de anos, quando um
bloco de rocha e gelo vindo do
espaço colidiu com a Terra no
momento mais inoportuno para
os dinossauros, ecoa até nossos
dias. Extinções em massa são
trágicas, mas elas também
abrem espaço para novos vege-
tais e animais evoluírem e se
tornarem dominantes. A morte
dos dinossauros abriu as possi-
bilidades para os mamíferos,
que viveram nas sombras por
mais de 100 milhões de anos,
mas passaram a ter a chance de
evoluir livremente. Os mamífe-
ros prosperaram quase que ime-
diatamente após a extinção dos
dinossauros, evoluindo em
tamanho, variedade de novos
hábitos alimentares e compor-
tamentos, e se espalharam pelo
mundo todo. Esse florescimento
acabou levando ao surgimento
dos primatas, chegando até nós.
Se qualquer elo dessa reação em
cadeia histórica tivesse sido eli-
minado, provavelmente não
haveria seres humanos.
Mas podemos tirar uma grande lição da extinção dos dinos-
sauros. Não é apenas uma questão de mudança de rumo da
contingência evolucionária – mais um daqueles eventos no pas-
sado distante que nos permitem fazer conjecturas do tipo “e se”.
De forma simples, o que aconteceu no fim do Cretáceo nos ensi-
na que mesmo grupos de animais dominantes podem ser extin-
tos e muito rapidamente. Os dinossauros dominaram por mais
de 150 milhões de anos até chegar sua hora decisiva – uma coli-
são de segundos entre a Terra e um objeto do espaço. E sua
extinção foi facilitada, talvez até possibilitada, pela perda da
biodiversidade que precedeu o impacto do asteroide.
Os seres humanos modernos têm vagado por aí, no máximo,
há algumas centenas de milhares de anos. E estamos alterando
o ambiente a uma velocidade tão grande que, com o rápido
declínio da biodiversidade global, a chamada sexta extinção já
está ocorrendo. Como saber o quanto estamos nos tornando
vulneráveis nesse processo?
PARA CONHECER MAIS
Stephen L. Brusatte et al., em Biological Reviews,vol. 90, no 2, págs. 628-642; maio de 2015.
David E. Fastovsky e Peter M.Sheehan, em GSA Today, vol. 15, no 3, págs. 4-10; março de 2005.
Walter Alvarez. Princeton University Press, 1997.
Nunca é uma boa hora para
um asteroide de dez quilômetros
de extensão cair do céu. Mas, para os dinossauros,
há 66 milhões de anos, pode ter sido o pior
momento.
www.sciam.com.br 49Ilustração de Alex Nabaum
DE TELESCÓPIOS
Antigos rancores entre três equipes de astrônomos têm ameaçado a sobrevivência do maior e mais ousado projeto de astronomia em solo
Katie Worth
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50 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016
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Katie Worth é repórter do Frontline, produção televisiva da WGBH, em Bos ton. Ela passa seu tempo pensandoem política, ciência e suas interseções.
Por 15 anos, três grupos concorrentes de astrônomos têm
perseguido um único sonho: construir o maior telescópio do pla-
neta. Esses gigantescos dispositivos seriam três vezes maiores
que o maior telescópio óptico do mundo, e seriam poderosos o
sufi ciente para tirar fotos de planetas em órbita de outras estre-
las e espreitar toda a amplitude do Universo, olhando para o pas-
sado, quase até o Big Bang.
Esse observatório dos sonhos viria
em três versões: o Giant Magellan Te-
lescope (GMT), desenvolvido por um
consórcio que inclui a Carnegie Institu-
tion for Science; o Thirty Meter Telesco-
pe (TMT), desenvolvido pelo Instituto
de Tecnologia da Califórnia (Caltech, na
sigla em inglês), pelo sistema da Uni-
versidade da Califórnia e outras insti-
tuições; e o European Extremely Large
Telescope (E-ELT), desenvolvido pelo
European Southern Observatory (ESO).
A construção dos três custaria cerca de
US$ 4 bilhões, mas até agora o mundo
tem frustrado os projetos, deixando
cada um com pouco dinheiro e desespe-
rados por mais. Não fosse isso, pelo
menos um telescópio gigante já estaria
olhando para os céus; em vez disso,
existem apenas hardwares parcialmen-
te construídos, aguardando a entrega
em canteiros de obras estéreis.
Os três telescópios têm grande
probabilidade de falhar até a linha de chegada dessa corrida
tecnológica e começar a operar apenas em algum momento da
década de 2020, com atraso e acima do orçamento.
Como isso aconteceu? Como três projetos s eparados, mas
com objetivos comuns, competem entre si por fi nanciamento?
E o que os impediu de unir forças para minimizar a chance de
um fracasso coletivo?
Essas perguntas vêm sendo feitas repetidamente, inclusive por
um perplexo painel de âmbito nacional dos EUA que está conside-
rando dois dos telescópios para receber fi nanciamento federal. De-
zenas de cientistas entrevistados para este artigo ponderaram o
que poderia ter sido se, em vez de três empreendimentos, fossem
apenas um ou dois. Quase todos concordaram que a humanidade
estaria muito mais perto de construir a próxima e maior geração de
observatórios se grupos concorrentes de astrônomos não tivessem
repetidamente desdenhado das chances de colaborar. Essa compe-
tição começou nas primeiras décadas do século 20 e se mantém ao
longo dos anos por confl itos pessoais, falhas de comunicação, tec-
nologias concorrentes e um universo de amargura em expansão.
E M S Í N T E S E
estão atualmente em cons trução e com previsão para iniciar suas ope rações na década de 2020.
terá um espe lho primário de cerca de 30 m de diâmetro, que permitirá aos astrônomos estudar o Cosmos com uma clareza sem precedentes.
ciamento. Críticos perguntam por que es-tão sendo construídos simultaneamente
três telescópios gigantes em vez de ape-nas um ou dois. A resposta está em uma rivalidade desde os primeiros grandes telescópios do início do século 20.
www.sciam.com.br 51
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O NEGÓCIO
A história começa em 1917, quando George Ellery Hale, um
ambicioso astrônomo e diretor de observatório, revelou algo in-
teiramente novo para a ciência, um telescópio óptico de 100 po-
legadas (2,54 metros).
No mundo da construção de telescópios, o tamanho importa:
quanto maior for o espelho deles, mais longe se vê. O novo teles-
cópio, alocado em Mount Wilson, naquela época ainda conside-
rado um “céu escuro” na região de Los Angeles, ofuscava todos
os outros na Terra. Seu tamanho revolucionário rapidamente
produziu resultados revolucionários. Edwin Hubble utilizou-o
para descobrir que nossa galáxia é apenas uma entre muitas e,
em seguida, para reunir provas de que o Universo está se
expandindo.
Mas Hale não estava satisfeito. Ele queria um telescópio de
5 metros. O telescópio de 2,5 metros estava construído e sen-
do gerenciado pela então denominada Carnegie Institution de
Washington, uma entidade filantrópica criada pelo barão do
aço Andrew Carnegie, que não estava preparado para gastar
milhões a mais em um novo telescópio. Desse modo, Hale ma-
liciosamente sugeriu o projeto para uma organização finan-
ciada pelo rival de Carnegie, o magnata do petróleo John D.
Rockefeller. Em 1928, Rockefeller pessoalmente aprovou o te-
lescópio de 5 metros de Hale, fornecendo, por fim, US$ 6 mi-
lhões em financiamento – na época, a maior soma até então
doada para um projeto científico.
Houve um problema: os astrônomos da Carnegie Institution
eram os únicos no mundo com a experiência necessária para
construir o novo telescópio, mas Rockefeller não financiaria o
seu velho rival de ações beneficentes. “Isso certamente não
aconteceria”, diz o historiador Ronald Florence, que escreveu A
máquina perfeita, um livro sobre o telescópio de 5 metros. “Foi
assim que os problemas chagaram a uma sinuca de bico.”
Hale veio com uma solução: Rockefeller daria o dinheiro do
telescópio como um presente para o Caltech, que acabara de ser
instalado a apenas duas milhas (cerca de três quilômetros) do
observatório de Carnegie, sediado em Pasadena, Califórnia. O
Caltech era ainda tão embrionário que não empregava um único
astrônomo sequer, e muito menos um departamento de astrofí-
sica. No entanto, a Fundação Rockefeller financiou para o Cal-
tech a construção do novo telescópio de Hale no novo Observa-
tório Palomar, no Condado de San Diego. Hale acreditava que os
líderes da Carnegie achariam irresistível trabalhar nessa magní-
fica ferramenta para esquadrinhar os céus e emprestariam sua
expertise para projetar e construir o novo telescópio.
Hale estava enganado. Segundo Florence, o negócio enfure-
ceu John Merriam, o presidente da Carnegie Institution, que en-
xergou essa situação como um dolo imperdoável. Ele trabalhou
para sabotar o projeto, não permitindo que os cientistas da Car-
negie ajudassem e pressionando a Fundação Rockefeller a ir
embora. Desesperado, Hale recorreu ao diplomata Elihu Root,
um velho amigo de Rockefeller e de Carnegie. Root sensibilizou
Merriam, que finalmente assinou contrato para o projeto.
Mas a discórdia estava apenas começando: Merriam ainda
estava com raiva e tentou por anos assumir o controle do teles-
cópio do Caltech, diz Florence, até que a desconfiança institu-
cional tornou-se mútua e profunda.
Depois que Merriam se aposentou, as instituições de carida-
de que viviam em guerra finalmente acordaram uma trégua. A
Fundação Rockefeller se aproximou de seus adversários com
um acordo: o Caltech possuiria o telescópio, quando ele abrisse
seu olho de 5 metros em 1949, mas Carnegie iria operá-lo.
GIGANTES DE VIDRO: O Telescópio de Trinta Metros (TMT, acima à esquerda) e o Telescópio Gigante de Magalhães (GMT, acima à direita) serão aproxim-
52 Scientific American Brasil | Janeiro 2016 Gráfico por Daisy Chung
European ExtremelyLarge Telescope
ChileChile HavaíHavaíChile
TelescópioThirty Meter
TelescópioGiant Magellan
39,3 m30 m24,5 m
TelescópioKeck
10 m
TelescópioMagellan
6,5 m
Califórnia
Telescópio de2,5 m de Hale
2,5 m Escala humana
492 hexágonos,com 1,44 m dediâmetro cad
36 hexágonos,com 1,8 m de diâmetro cada
Cada com8,4 m de diâmetro
798 hexágonos,cada um com 1,44 m de diâmetro
O frágil relacionamento entre as instituições inevitavelmente
contaminou a ciência, especialmente após a identifi cação dos “ob-
jetos quase estelares” – quasares – no início dos anos 1960 pelo as-
trônomo holandês-americano Maarten Schmidt. Embora esses
objetos parecessem, a princípio, estrelas fracas no céu, outros es-
tudos mostraram que quasares tinham um brilho quase impensá-
vel, vindo do Universo distante. Os objetos misteriosos rapida-
mente se tornaram o assunto mais apelativo da astronomia, e os
pesquisadores do Caltech e da Carnegie disputavam tempo no
maior telescópio do mundo para estudá-los, às vezes, recorrendo à
“mesquinhez infantiloide de alto nível”, diz Florence.
Em 1979, após meio século de tensões, o Caltech fi nalmente
procurou acabar com a tensa guarda compartilhada de Palomar. A
separação não correu bem e se provou intensamente pessoal. O fa-
lecido Allan Sandage, lendário astrônomo da Carnegie, que havia
alcançado o trabalho de sua vida em Palomar, se recusou a pôr o
pé no observatório outra vez. “Foi o tipo de divórcio em que você
tem de escolher o marido ou a esposa”, diz Florence. “Não houve
aquele negócio de manter a amizade com ambos.”
CONFLITO DE PROJETOS
Durante as duas décadas seguintes, as instituições trilharam
caminhos separados. Nos anos noventa, o Caltech criou uma par-
ceria com a Universidade da Califórnia para desenvolver os teles-
cópios gêmeos de 10 metros Keck em Maun a Kea, no Havaí, usan-
do o que era então um novo projeto de espelho segmentado no
qual muitos espelhos pequenos criavam um maior. O risco valeu a
pena: o projeto funcionou perfeitamente, e seus astrônomos des-
frutaram anos de proeminência científi ca antes que alguém mais
construísse algo competitivo. Enquanto isso, Carnegie ainda usava
a velha tecnologia de espelho único, mas se aventurou no Hemis-
fério Sul, construindo os telescópios gêmeos de 6,5 metros Ma-
gellan no deserto de Atacama no norte do Chile.
A Carnegie completou esses telescópios apenas em 1999, quan-
do o Caltech e a Universidade da Califórnia anunciaram a sua in-
tenção de construir um telescópio de 30 metros. O ESO, uma orga-
nização intergovernamental de astrônomos europeus, já falava de
algo ainda mais ambicioso, um telescópio de 100 metros, apro-
priadamente chamado OverWhelmingly Large Telescope.
Para a maioria dos astrônomos, saltar de um telescópio de 10
metros para um de 100 metros era absurdamente ambicioso.
Mas um telescópio de 30 metros parecia viável, para a conster-
nação de Gus Oemler, então diretor dos observatórios de Carne-
gie. Ele se lembra de acordar se sentindo doente com o anúncio
do Caltech. “Estávamos lutando para terminar os telescópios
Magellan, que fi nalmente nos dariam algum tipo de paridade
com o Caltech depois de muitos anos e, de repente, eles estavam
começando a próxima fase.”
Depois de muito debate, Carnegie e Caltech acordaram uma
colaboração. Ambos os lados estavam hesitantes, mas os comi-
tês de cada instituição pensaram que era hora de superar o anti-
go rancor que os separava e trilhar novos caminhos. “Reconhe-
cemos que seria uma espécie de loucura ter dois telescópios gi-
gantes centrados em duas instituições a três quilômetros uma
da outra”, diz o astrônomo da Carnegie Alan Dressler.
Então, em 21 de junho de 2000, dois cientistas do Caltech –
os falecidos Wal Sargent, astrônomo, e Tom Tombrello, chefe da
cadeira de física – e dois de Carnegie – Oemler e Dressler – se
reuniram para discutir a parceria.
Por todos os lados, a discussão foi terrível. A reunião foi tensa,
desarticulada e cheia de mal-entendidos. Ambos, Wendy Freed-
man, que mais tarde se tornaria diretor dos observatórios Carne-
gie, e Richard Ellis, agora um cientista sênior no ESO, que estava
então prestes a substituir Sargent como diretor do Observatório
Grande, maior e gigantescoTelescópios cresceram em tamanho desde 1917, quando debutou o primeiro gigante, o telescópio de 2,5 metros de George Ellery Hale. Atualmente, ele está ofuscado pelos grandes observatórios modernos, como os telescópios gêmeos Keck, de 10 metros, e os mais modestos telescópios Magellan, de 6,5 metros. Os gigantes de amanhã (em azul, abaixo) serão ainda maiores, utilizando arranjos de espelhos para se aproximar de 40 me tros de tamanho total. Embora esses gigantes não sejam construídos até a década de 2020, os astrônomos já estão discutindo seus sucessores: telescópios de 100 metros.
T E L E S C Ó P I O S G I G A N T E S
www.sciam.com.br 53
Palomar do Caltech, falaram com os quatro homens imediata-
mente após a reunião e ouviram uma história diferente cada um:
Dressler sentiu que os homens do Caltech não estavam levando a
proposta da Carnegie a sério, enquanto Tombrello acreditou
equivocadamente que Carnegie não tinha realmente dinheiro a
contribuir. Oemler disse que Sargent ficou em um silêncio gelado
durante a maior parte da reunião. Sargent disse, mais tarde, que
estava preocupado em perturbar o delicado relacionamento do
Caltech com a Universidade da Califórnia. Mas Sargent não ha-
via explicado a preocupação durante a reunião, diz Ellis. Assim,
“claro que o pessoal da Carnegie ficou ofendido”.
No dia seguinte, Tombrello enviou um e-mail “para resumir
nossa desmedida discussão”. O Caltech não estava interessado
em trabalhar com a Carnegie no telescópio naquele momento,
escreveu Tombrello, embora ele não tenha excluído a possibili-
dade no caso de o trabalho ficar caro demais. Os astrônomos da
Carnegie sentiram-se inferiorizados e insultados. A colaboração
nascente morreu, e a longa tradição de relacionamento áspero
entre as instituições cresceu por mais tempo.
Essa reunião é, agora, parte do folclore do telescópio gigante.
Ellis é um dos muitos astrônomos que se perguntam o que po-
deria ter acontecido se a reunião corresse de forma diferente.
“Quando você revê esse momento, que tragédia!”, diz. “Com
alguns telefonemas e um pouco de diplomacia, poderíamos ter
trazido Carnegie. E se tivéssemos trazido, provavelmente tería-
mos um telescópio agora.”
Garth Illingworth, astrônomo da Universidade da Califórnia
em Santa Cruz, diz que ainda permanece “apenas ressentimento
e infelicidade residuais” da velha rivalidade para descarrilar
uma conversa construtiva. “Você pensa: nossa, por que não hou-
ve supervisão de um adulto na sala para ajudar essas pessoas a
superar isso?”, acrescenta.
DIVIDIDOS, TODOS PERDEM
Após essa fracassada reaproximação, a rivalidade só aumen-
tou. O Caltech e o sistema da Universidade da Califórnia desen-
volveram o TMT, a ser construído próximo dos telescópios Keck,
no Havaí. Enquanto isso, a Carnegie projetou o GMT, um teles-
cópio de 24,5 metros, para coroar o seu Observatório Las Cam-
panas, no Chile. Na mesma época, os europeus reduziram seus
sonhos em relação ao “esmagadoramente grande” para apenas
“extremamente grande” e planejaram a construção do E-ELT, te-
lescópio de 39 metros, no Chile.
Os três projetos vasculharam o mundo procurando por finan-
ciamento, por vezes, pesquisando nos mesmos lugares. Desem-
bolse dinheiro e, como consequência, aos seus astrônomos será
garantido tempo de telescópio. Astrônomos canadenses, por
exemplo, foram cortejados tanto pelo grupo da Carnegie como
do Caltech-UC, e escolheram a segunda opção. A Universidade
Harvard também foi cortejada por ambos, mas se comprometeu
com Carnegie. Pelo menos uma vez, as duas equipes dos EUA
desconfortavelmente se cruzaram em aeroportos em suas via-
gens para reuniões com os mesmos parceiros em potencial. E os
europeus não estavam acima da briga: inicialmente garantiram
o apoio do Brasil, cujo presidente concordou em participar do
ESO e subscrever uma grande fatia do E-ELT. Mas a confusa e di-
vidida política brasileira paralisou o acordo. A Carnegie se apro-
veitou dos problemas do ELT: em julho de 2014, a Universidade
de São Paulo (USP) se juntou ao projeto GMT, e de acordo com
Dressler, as lideranças do GMT esperavam que o governo brasi-
leiro logo seguisse, embora esse não tenha sido o caso.
O segundo mais procurado parceiro de todos tem sido o go-
verno dos EUA, que poderia abrir seu cofre de financiamento fe-
deral para financiar um telescópio gigante e fornecer acesso
para todos os astrônomos americanos. Em 2000, a Astronomy
and Astrophysics Decadal Survey (a Avaliação Decenal sobre
Astronomia e Astrofísica), um painel nacional que orienta fi-
nanciamentos federais dos EUA, havia declarado um telescópio
gigante da próxima geração como a prioridade mais alta do país
em astronomia óptica terrestre.
Com esse apoio, a Fundação Nacional da Ciência (NSF) co-
meçou, em 2003, a discutir uma parceria com o Caltech-U.C.
para o projeto TMT. Mas, poucos meses depois, os astrônomos
do GMT escreveram uma carta dizendo que o acordo injusta-
mente favoreceria o TMT. A carta foi eficaz: a NSF empacou, não
estando disposta a tomar partido na cada vez mais divisiva polí-
tica de astronomia óptica de alto nível.
Na realidade, de qualquer maneira não havia muito dinheiro
federal a ser fornecido, segundo Wayne Van Citters, conselheiro
sênior da NSF. Mas a rixa não ajudou, diz ele: “Precisávamos
que a comunidade viesse junta para decidir qual deles ela que-
ria fazer. Não podíamos fazer ambos, afinal”.
A comunidade, por sua vez, tentou várias vezes fazer exata-
mente isso, mas os esforços foram infrutíferos. Astrônomos
europeus discutiram colaborações com ambos os rivais, mas
finalmente só concordaram em compartilhar insights tecnoló-
gicos. E, em 2007, por insistência de seus comitês, os líderes
do TMT e do GMT realizaram várias reuniões com frieza cor-
dial para discutir caminhos em que poderiam trabalhar jun-
tos. Não deu em nada.
A situação confundiu os membros do comitê da avaliação de-
cenal de 2010, que questionou por que a comunidade astronô-
mica dos EUA estava sendo convidada a apoiar dois projetos de
grandes telescópios ópticos separados, ambos liderados por
americanos. No final, a NSF não tomou lados, chutando os pro-
jetos para o fim da lista de prioridades, efetivamente anulando
financiamentos federais por mais 10 anos.
Rivalidade não é algo raro na ciência: mentes brilhantes são
frequentemente acompanhadas por grandes egos com uma pro-
pensão para o confronto. Às vezes, a discórdia pode produzir
inovações; outras vezes ela pode transformar a mais iluminada
busca pela descoberta em uma série de conflitos pessoais mes-
quinhos. Algumas disciplinas convenceram, com sucesso, po-
tenciais rivais a unir forças: físicos de alta energia trabalham
em grandes grupos internacionais em aceleradores de partícu-
las. Radioastrônomos têm colaborado na maior ferramenta de
próxima geração da sua área, o Atacama Large Millimeter/Sub-
millimeter Array, de US$ 1,4 bilhão.
Em contraste, a astronomia óptica nos EUA ficou dividida pela
rivalidade. O astrônomo ítalo-americano e Prêmio Nobel Riccardo
54 Scientific American Brasil | Janeiro 2016
Giacconi descreveu a situação como um problema sociológico em
um discurso na Academia Nacional de Ciências em julho de 2001.
Para o historiador W. Patrick McCray, da Universidade da Ca-
lifórnia em Santa Barbara – que escreveu Giant Telescopes, livro
sobre a comunidade de astronomia óptica dos EUA –, o que é
impressionante com relação à inimizade entre o Caltech e a Car-
negie é a sua longevidade: eles disputam grandes telescópios
desde 1928. “Você pensa: ‘não aprenderam nada?’”, diz McCray.
Mas a rivalidade sozinha não explica o estado de coisas. Exis-
tiram motivos racionais para trabalhar em telescópios separa-
dos, observa o astrônomo Ray Carlberg, da Universidade de To-
ronto, que faz parte de uma associação envolvida com o projeto
TMT. Inicialmente, os astrônomos acreditavam que haveria di-
nheiro para os três, e telescópios gigantes em ambos os hemisfé-
rios garantiriam a cobertura integral de todo o céu. “O mundo
tinha acabado de construir um punhado de telescópios de oito e
10 metros, e não parecia absurdo ter alguns desses grandes tam-
bém”, diz Carlberg. Naquela época, estava claro que o Caltech
poderia usar a ajuda da Carnegie, mas a Carnegie tinha investi-
do pesadamente em seu próprio projeto para abandoná-lo.
TELESCÓPIOS DEMAIS
Na ilha maior do Havaí, um pedaço do imenso pico de Mauna
Kea foi aplainado para abrir caminho para o TMT. O espelho de
30 metros do telescópio, com o diâmetro do domo do capitólio
dos EUA, será composto por 492 segmentos hexagonais de 1,44
metro em forma de favo de mel, todos alojados em uma estrutura
de 18 andares sobre o vulcão adormecido. Ao projeto foram con-
cedidas licenças de uso da terra, embora ainda enfrentem a opo-
sição vocal e desafios legais de nativos havaianos e ambientalis-
tas. Para ajudar a pagar por esse esforço de US$ 1,5 bilhão, o Cal-
tech e a UC asseguram parcerias internacionais com a Índia,
China, Japão e Canadá. Eles ainda estão à procura de um adicio-
nal de US$ 270 milhões; o atual melhor palpite para a estreia do
telescópio está em algum momento no início dos anos 2020.
A onze quarteirões da sede do TMT em Pasadena, Carnegie e
seus parceiros estão trazendo o GMT, de 24,5 metros, à vida. Ele
será composto de sete espelhos de 8,4 metros, com seis espelhos
dispostos como pétalas de flor ao redor de um espelho central –
uma abordagem muito diferente e incompatível com a do TMT
com seus numerosos espelhos hexagonais. Quatro espelhos já
foram projetados em um laboratório na Universidade de Arizo-
na. O tamanho menor e design um pouco mais simples vêm com
um custo mais modesto: pouco abaixo de US$ 1 bilhão. A Carne-
gie obteve o apoio de universidades da Coreia do Sul, Austrália e
Brasil, bem como de várias universidades nacionais. Elas levan-
taram cerca de metade do dinheiro necessário para a constru-
ção do telescópio no seu canteiro de obras no âmbito do Obser-
vatório Las Campanas. E se tudo correr como planejado, o GMT
começará a coletar luz até 2022.
A 12 horas de carro pela Rodovia Pan-americana a partir de
Las Campanas está Cerro Armazones, a montanha deserta onde
o E-ELT um dia estará. O site foi inicialmente estudado por as-
trônomos do TMT, que passaram anos monitorando a atmosfera
acima de Cerro Armazones em transparência e turbulência an-
tes de concluírem que preferiam construir o TMT no Hemisfério
Norte; os europeus se aproveitaram disso e reivindicaram Ar-
mazones para seu próprio projeto. Hoje, uma recém-pavimenta-
da estrada leva ao cume da montanha, que foi raspado com di-
namite e maquinaria pesada em uma planície do tamanho de
um campo futebol. Visível a leste da montanha, o firmamento se
encontra com o vulcão andino Llullaillaco, com 6.723 metros,
onde os incas sacrificavam crianças aos deuses. Ele e o resto do
panorama árido desvanecem-se ao cair da noite, abrindo cami-
nho para um grande campo de estrelas acima.
Com um espelho de 39 metros de largura, o E-ELT será o te-
lescópio mais grandioso de próxima geração. Como o TMT, o
E-ELT terá um design segmentado, mas em vez de 492 espelhos
hexagonais, ele contará com 798. Em dezembro de 2014, o ESO
votou para avançar com a construção da primeira fase. Uma se-
gunda fase ainda não foi financiada. As lideranças do E-ELT pla-
nejam que o telescópio comece a olhar para o céu em 2024, com
um custo total de construção de 1,1 bilhão de euros.
Uma vez construídos, os três telescópios terão forças sinérgi-
cas, diz Roberto Gilmozzi, do E-ELT. O E-ELT será especializado
em zooming para fornecer imagens de alta resolução de peque-
nas regiões do céu; o GMT vai sobressair em astronomia de
campo largo. E o TMT se localizará em um hemisfério diferente,
observando um céu diferente.
Gilmozzi, como a maioria dos astrônomos entrevistados para
esta matéria, acha que se fossem dois telescópios, em vez de três,
ambos estariam em fase de conclusão atualmente, a um custo de
centenas de milhões de dólares a menos. “Se você não conside-
rar o problema de encontrar o dinheiro, é maravilhoso ter mais
de um”, ele diz. “Cientificamente falando, eu poderia usar 100 te-
lescópios, se eu tivesse recursos para construí-los.”
Infelizmente, a construção de telescópios é apenas o primei-
ro passo. Nem o GMT nem o TMT têm, atualmente, dinheiro su-
ficiente para sustentar sua operação, uma vez construídos. Am-
bos esperam que o governo federal acabe por entrar em cena
para ajudar, mas Van Citters diz que não está claro com quanto
dinheiro o governo será capaz de contribuir. Estima-se que os
telescópios custarão dezenas de milhões de dólares por ano para
manter a operação. “Isso é o suficiente para dar às pessoas pesa-
delos”, McCray diz.
Mesmo assim, o problema de muitos telescópios tem uma
fresta de esperança: o mundo poderia, um dia, ter três olhos gi-
gantes olhando para o Cosmos. Esta seria uma grande vitória
para a ciência, diz McCray. “E se esta situação é uma tragédia, é
uma tragédia com um ‘t’ minúsculo.”
PARA CONHECER MAIS
W.Patrick McCray. Harvard University Press, 2004.
DOS NOSSOS ARQUIVOS
Michael West, agosto de 2015.Robert Irion, novembro de 2010.
Roberto Gilmozzi, junho de 2006.
www.sciam.com.br 55Fotografias de Grant Delin
Levi e Emma Kinsinger administram uma
pequena estufa no sul da Pensilvânia. Em 6 de
novembro de 2002, viajaram 720 km de táxi, ida e
volta, a uma taxa de cerca de R$ 2,5 por
quilômetro, para levar seu filho mais velho –
Mark – até a Clínica para Crianças Especiais, em
Strasburg, na Pensilvânia. Com quatro anos, Mark
era frágil e deslocado socialmente. Ele ficava
deitado no chão em constante movimento e
agitação. Seus olhos vagavam, mas não se fixavam
em nada, e ele não reagia a sons. De tempos em
tempos, um som gutural escapava de sua
garganta e ele se chacoalhava de forma violenta.
A pergunta dos Kinsinger, pergunta que ouvi
inúmeras vezes em meu trabalho como pediatra,
exprimia seu calmo desespero:
“O que podemos fazer para ajudar nosso filho?”
GENÔMICA
PESSOASPARA AS
M E D I C I N A
Clínica infantil fundada e financiada por amish e menonitas mostra que a
pesquisa genética de alta tecnologia pode ser canalizada, mesmo agora, para
prevenir doenças
Kevin A. Strauss
56 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016
Nossa clínica é um lar médico para crianças como Mark.
(Por questões de privacidade, mudei os nomes de todos os pa-
cientes e de suas famílias.) Sua estrutura robusta de madeira,
erguida por mãos amish e menonitas, abriga consultórios pe-
diá tricos modernos, equipados com um arsenal de ferramentas
de sequenciamento de genes de alta tecnologia. Atendemos às
chamadas comunidades Simples, descendentes dos anabatistas
europeus que fugiram para o Novo Mundo entre 1600 e 1800
em busca de asilo religioso. Os Simples hoje vivem pela Améri-
ca do Norte em povoados cristãos pequenos e isolados e evitam
os meios modernos. Eletricidade e telefone são comumente
proibidos nas casas. O código de vestimenta e de conduta enfa-
tiza a coesão do grupo. Seguros privado ou do governo são rejei-
tados. E os membros dessas comunidades desconfi am de tecno-
logias que minam a interdependência social.
Os Simples escolhem viver de modo diferente no mundo
moderno, mas cada pai sabe o que signifi ca temer por um fi -
lho doente: “Minha fi lha algum dia vai andar?” “É possível
acabar com as convulsões?” “É autismo?”. Essas são as pergun-
tas que nos fazem traduzir a linguagem complexa da bioquí-
mica e da genética modernas para dar respostas signifi cativas
para as crianças e suas famílias. Até agora, nosso laboratório
já identifi cou mais de 170 diferentes mutações genéticas que
causam doenças desproporcionalmente representadas entre
os Simples. Quase metade delas coloca em perigo o cérebro
em desenvolvimento e, caso não sejam tratadas, levam à mor-
te ou causam defi ciências nas crianças. Testes moleculares rá-
pidos, acessíveis monetariamente e feitos no local abrem um
caminho precioso; permitem que possamos descobrir futuras
ameaças à saúde, elaborar terapias mais precisas e prevenir as
doenças antes que se instalem.
Nosso relacionamento de colaboração com os Simples tam-
bém oferece um vislumbre de como a pesquisa genômica vai
transformar nossa compreensão sobre doenças mais comuns.
Com a cooperação de algumas famílias amish dedicadas, recen-
temente descobrimos uma variação genética específi ca que pa-
rece estar ligada ao transtorno bipolar (maníaco-depressivo),
que afeta entre 2% e 4% das pessoas no mundo inteiro e, de ma-
neira lamentável, permanece não diagnosticada e não tratada.
Ligar uma variação genética ao transtorno bipolar aproxima
um pouco a genômica da medicina convencional; desafi a a co-
munidade de pesquisa médica a fechar a lacuna entre o que sa-
bemos sobre as causas do sofrimento humano e o que podemos
fazer para as pessoas que precisam de nossa ajuda.
PROGRESSO, UMA CRIANÇA POR VEZ
Os Kinsinger precisavam de clareza. Em poucos dias, detec-
tamos uma constelação de anormalidades químicas no sangue
de Mark, que implicavam como a causa de sua defi ciência a de-
fi ciência de uma enzima – 5.10-metilenotetra-hidrofolato redu-
tase (MTHFR). O diretor do laboratório, Erik Puff enberger, tra-
balhou rapidamente a fi m de descobrir um erro em ambos os
genes de codifi cação da MTHFR de Mark. Esse conhecimento
permitiu que diagnosticássemos outras três crianças que so-
friam do mesmo mal no povoado dos Kinsinger.
Pesquisei a literatura médica e encontrei a primeira descri-
ção acerca da defi ciência de MTHFR, publicada 30 anos antes
por S. Harvey Mudd e colegas. Mudd era lendário no pequeno
E M S Í N T E S E
emStrasburg, Pensilvânia, em colaboraçãocom as famílias amish e menonitas queserve, aproxima o conhecimento da gené-tica e sua tradução em cuidados médicos.
, colhida por meiosde alta tecnologia e baixo custo, permite à
dezenas de condições genéticas com po-
com a colaboração das famílias de pacien-tes é considerada um modelo para melho-rar os cuidados médicos em comunidadescarentes em todo o mundo.
liderado pela clínicaliga uma mutação genética à desordem bi-polar e mostra como a pesquisa em comu-nidades isoladas pode enriquecer a com-preensão e o tratamento de doenças.
doutor pela Faculdade de Medicina de Harvard, é diretor médico da Clínicpara Crianças Especiais em Strasburg, Pensilvân
www.sciam.com.br 57
MARK KINSINGER (esquerda) e sua irmã mais nova, Ruth (direita, não são seus nomes verdadeiros), nasceram com a mesma
doença genética. Mark, que não foi diagnosticado até fazer quatro anos, sofre
danos cerebrais irreversíveis. Desde então, um programa
piloto de avaliação e intervenção precoce evitou
totalmente que outras crianças com a mesma
condição, inclusive Ruth, desenvolvessem
58 Scientific American Brasil | Janeiro 2016
mundo de pesquisa dedicada ao metabolismo intermediário,
que envolve os processos coletivos que convertem alimentos
em energia e componentes essenciais das células. Ele elucidou
o que veio a ser conhecido como via de transulfuração – uma
rede complexa de reações químicas que recicla um aminoácido
essencial, metionina, enquanto simultaneamente fornece gru-
pos metila (CH3) para moléculas em todo o organismo. A me-
tionina é indispensável para o crescimento do cérebro e de ou-
tros tecidos, e os marcadores de metila afetam profundamente
o modo como esses tecidos funcionam. A MTHFR é um elo vital
na cadeia de fornecimento químico: sem essa enzima, Mark so-
fre as consequências neurológicas devastadoras da carência de
metionina e CH3 no cérebro.
Telefonei para Mudd, então com 75 anos e pesquisador emé-
rito no Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA. Generosa-
mente ele me orientou através das complexidades das transul-
furação e sugeriu um tratamento: um composto encontrado em
farmácias, sem necessidade de prescrição médica, chamado be-
taína, que fornece metionina e CH3 para o cérebro, por uma via
metabólica alternativa, e pode ser administrado como pó ali-
mentar por apenas US$ 0,60 por dia. Nos meses seguintes,
muitas vezes fi z a viagem de quatro horas até o povoado dos
Kinsinger com a enfermeira Christine Hendrickson. Íamos de
fazenda em fazenda, analisando com cuidado os efeitos da be-
taína em nossos jovens pacientes. De posse de uma geladeira
com gelo seco, uma centrífuga portátil e um conversor de po-
tência no acendedor de cigarros do carro, centrifugamos e con-
gelamos amostras de sangue no campo. Elas foram enviadas
para Mudd, que pediu que sua rede de colegas analisasse a me-
tionina, a betaína e uma gama de outros componentes quími-
cos na via de transulfuração. Essa parceria permitiu que fi zés-
semos uma correlação entre a dose de betaína a sua ações tera-
pêuticas específi cas, e assim estabelecêssemos um protocolo de
tratamento que publicamos em conjunto em 2007.
Semanas após ter iniciado o tratamento com betaína, Mark
deu os primeiros passos e começou a reagir à luz e a sons. Ou-
tros pacientes também fi zeram progressos rápidos e decisivos,
mas aprendemos uma lição comovente sobre a curva do tempo
Como as mutações genéticas levam à doençaMutações genéticas podem perturbar a biologia em vários níveis(moléculas, células, tecidos e órgãos) e causar doenças. Certasmutações têm prevalência especialmente nas populações amishe menonita. Em cada paciente que vai à clínica são usadas tecno-
duais, compreender suas ligações causais com doenças e elabo-rar modos de aliviar ou prevenir os efeitos danosos da mutação.
Em um trabalho relacionado a essa atividade, a clínica e seus
ca ligada à desordem bipolar entre os amish, e agora constroemum quadro de como pode prejudicar a regulação emocional(abaixo). Esse conhecimento poderia levar a uma compreensãomais profunda acerca do distúrbio bipolar na população emgeral e a novas estratégias de prevenção e tratamento.
FUNDAMENTOS
Gene
KCNH7
Proteína Célula
KCNH7
Tecido Órgão
KCNH7
Comportamento
KCMH7
Ilustrações de Amanda Montañez
www.sciam.com.br 59
biológico. Mark e outras crianças que começa-
ram o tratamento com betaína mais tarde na
vida ficaram com deficiências permanentes,
resultado do crescimento cerebral estagnado
durante a infância. A matriz densa de cone-
xões neurais que se forma dentro dessa janela
estreita se torna um substrato duradouro em
nossa vida mental. Quando essa janela se fe-
cha, o dano está feito. O caso de Mark fez com
que a tragédia de uma comunidade inteira en-
trasse em forte evidência. Durante as três décadas seguintes à
publicação de Mudd acerca da deficiência de MTHFR, crianças
como Mark viviam e morriam na obscuridade, envoltas em
confusão e dor.
Enquanto acertávamos os detalhes da terapia, desenvolve-
mos um teste para avaliar jovens casais em relação ao defeito
genético, e ficamos alarmados ao descobrir que 30% de pessoas
amish saudáveis do povoado dos Kinsinger tinham uma cópia
mutante do MTHFR. A partir desse dado, pudemos deduzir que
um em cada 50 de seus bebês nasceria com a doença. Em 2003,
reconhecendo o papel crítico da terapia preventiva, procura-
mos o bioquímico Edwin Naylor em seu laboratório de análises
recém aberto e pioneiro em Pittsburgh. Juntos conseguimos
desenvolver e implementar um método para identificar a muta-
ção de MTHFR a partir dos coágulos de sangue secos em papel
filtro, coletados de cada recém-nascido, como parte de uma
triagem estadual obrigatória para detectar vários distúrbios.
Para nosso espanto, a primeira criança diagnosticada por este
método novo de papel filtro foi a irmã de Mark, Ruth, nascida em
setembro de 2003, apenas dez meses depois que os Kinsinger ha-
viam levado Mark pela primeira vez à nossa clí-
nica. Ruth começou a terapia com betaína du-
rante sua segunda semana de vida e floresceu
durante os doze anos seguintes de acompanha-
mento. Atualmente ela é aluna talentosa, filha
carinhosa e jogadora formidável de taco.
Em 2009, Mudd e sua esposa tiveram a
oportunidade de conhecer os Kinsinger duran-
te a comemoração de 20 anos da Clínica para
Crianças Especiais. Enquanto os Mudd conver-
savam com os pais de Ruth, calmamente ela subiu no colo de
Mudd. Mais tarde ele me contou que aquele foi o melhor mo-
mento de sua carreira científica.
Mudd morreu em janeiro de 2014, aos 86 anos de idade. Vá-
rias semanas depois, sua viúva recebeu um cartão feito à mão
que dizia: “Querida Sra. Mudd, saudações de amor estão sendo
enviadas a você. Como está a senhora? Eu estou bem. É uma
manhã enevoada, e parece que vai ficar ensolarada. Estou ani-
mada para sair descalça. Com amor, Ruth.”
MEDICINA GENÔMICA DE BASE
A alta incidência, incomum, de deficiência de MTHFR e de
outras desordens genéticas entre pessoas das comunidades
Simples tem raízes em sua história social e cultural única. Pe-
quenos grupos de anabatistas que sobreviveram à migração
transatlântica compuseram um patrimônio genético escasso.
Como todos nós, esses indivíduos, sem saber, cultivaram dano-
sas variantes de sequências (mais comumente chamadas de
mutações) em seu código genético. Em populações isoladas, es-
sas variações podem se propagar silenciosamente durante ge-
O MENINO MENONITA à esquerda tem a doença da
bordo (veja quadro na página 61) e vive a cerca de 39 km
da clínica. O menino à direita tem aciduria
se mudou para que ele pudesse receber
tratamento na clínica.
60 Scientific American Brasil | Janeiro 2016
rações por portadores, indo para baixo ou
para cima fortuitamente em prevalência,
até que uma criança herde cópias da mu-
dança genética danosa de pais que têm
ancestrais em comum. Esse padrão reces-
sivo de herança é um mecanismo impor-
tante da doença genética em comunida-
des isoladas em todo o mundo. Entre os
anabatistas modernos, a constelação an-
cestral de versões genéticas causa muito
sofrimento individual e comunitário,
um problema agravado por sua educa-
ção científica limitada e pelo pouco
acesso que têm ao sistema de saúde dos
Estados Unidos.
No começo da década de 1960, o agora
falecido Victor McKusick, pioneiro da ge-
nética médica moderna, reconheceu pela
primeira vez o potencial de estudar pa-
drões de doenças hereditárias entre os
amish e lançou um amplo estudo de cam-
po com esse fim. Apesar de cientes sobre o
poder da tecnologia para minar relaciona-
mentos sociais, as pessoas Simples abriram suas casas para
McKusick e seus colegas, na esperança de que futuras gerações
pudessem se beneficiar disso. Esse trabalho culminou na publi-
cação, em 1978, do Medical Genetic Studies of the Amish (Estu-
dos médicos genéticos dos amish), que catalogou 18 desordens
genéticas previamente reconhecidas e 16 outras recentemente
diagnosticadas entre os amish da América do Norte. Esses pri-
meiros empenhos de pesquisa estabeleceram vários princípios
fundamentais acerca das desordens genéticas humanas, mas fi-
zeram pouco para auxiliar a população em estudo. Muitos
amish se tornaram desconfiados de médicos interessados em
investigar seus padrões de doença, mas incapazes ou pouco dis-
postos a cuidar deles.
Uma década depois, um jovem cientista chamado D. Holmes
Morton fez uma abordagem diferente. Em 1988, enquanto ele
trabalhava em genética bioquímica no Hospital Infantil de Fila-
délfia, um colega lhe pediu que analisasse uma mostra de urina
de um menino amish de seis anos de idade chamado Danny
(nome verdadeiro), que havia sofrido uma regressão abrupta e
inexplicada em sua capacidade motora aos 14 meses de idade.
Os médicos locais acharam que a doença fosse paralisia cere-
bral, mas Morton, usando uma técnica chamada cromatografia
gasosa/espectrometria de massa, detectou uma substância de-
nominada ácido 3-hidroxiglutárico na urina do menino. O ras-
tro químico distinto indicava uma doença genética rara, cha-
mada acidúria glutárica tipo 1 (GA1) — e não paralisia cerebral
– como a causa do dano causado ao cérebro de Danny.
Morton fez uma visita a Danny em sua casa no condado de
Lancaster, onde ficou sabendo das muitas famílias que se co-
municavam, por carta, sobre seus filhos que tinham a assim
chamada paralisia cerebral amish. Em 1991, ele e seus colegas
publicaram um estudo sobre dez casos definitivos de GA1 entre
os amish, duplicando o número de casos
descritos no mundo inteiro. Ele ouviu as
histórias angustiantes de pais que haviam
caído em um tipo de “desamparo aprendi-
do”; geração após geração, viam seus fi-
lhos atingidos por uma misteriosa doença
cerebral apenas para ficarem, então, irri-
tados com um sistema médico muito dis-
tante, muito fragmentado e muito caro
para ajudá-los. Esse ciclo de angústia con-
venceu Holmes e sua esposa, Caroline, so-
bre a necessidade de haver uma clínica lo-
cal – um lar médico – onde famílias Sim-
ples, sem seguro saúde, poderiam levar
suas crianças especiais para serem cuida-
das de forma acessível e solidária.
Assim começou uma experiência de cui-
dados com a saúde fundamentalmente di-
ferente do sistema de saúde dos Estados
Unidos, guiado pelo lucro: uma colabora-
ção de base entre os Morton e um punhado
de pais comprometidos, que conheciam na
pele as dores infligidas pela doença genéti-
ca. Um fazendeiro amish que tinha dois netos com GA1 ofereceu
dois acres e meio de seus campos para abrigar a clínica. Outros
membros das comunidades Simples providenciaram madeira e
mão de obra para levantar sua estrutura de encaixes. De lá para
cá, as comunidades Simples continuaram a apoiar o projeto
como um investimento valioso para seus filhos. Quase 75% do or-
çamento operacional anual de hoje em dia, de US$ 2,6 milhões,
vem de fontes de caridade, inclusive mais de US$ 850 mil levan-
tados pelos Simples em leilões beneficentes que oferecem man-
tas, móveis, plantas, cavalos, frango assado, pretzels feitos a mão
e tortas, entre outros. Esse apoio limita o desembolso por taxas
clínicas e de laboratório a valores entre US$ 50 e US$ 150 por vi-
sita, entre 70% e 90% abaixo do custo de serviços comparáveis
em centros de saúde acadêmicos.
Os Morton reconheceram, desde o início, que a abordagem
mais eficaz para tratar a desordem de GA1, assim como outras,
era começar com recém-nascidos saudáveis, detectando riscos
genéticos antes que a doença tivesse início, e providenciar ser-
viços abalizados, no local, durante a juventude dos pacientes.
No entanto, estratégias de prevenção são mais fáceis de contex-
tualizar do que de implementar. E os detalhes importam: um
diagnóstico genético preciso não faz sentido se chega muito
tarde, e uma terapia molecular inteligente é inútil se é cara. A
clínica é um local onde a ciência é canalizada para fins práticos,
dando poder às comunidades para que possam oferecer cuida-
dos melhores para os seus, enquanto ficam protegidas contra a
falência médica.
O andar térreo da clínica está equipado com uma diversidade
de ferramentas avançadas de sequenciamento genético. A equipe
do laboratório local, dirigida por Puffenberger, trabalhou de per-
to com médicos clínicos, e vem descobrindo entre cinco e 15 va-
riações genéticas danosas específicas da população a cada ano,
Os detalhes
importam: um
diagnóstico
genético preciso
não faz sentido
se chega tarde, e
uma terapia
molecular
inteligente é
inútil se é cara.
www.sciam.com.br 61
desde 1998. Estratégias moleculares focadas permitem que a
equipe diagnostique, com precisão, a maioria das desordens ge-
néticas em menos de 24 horas, por um custo de US$ 50. O conhe-
cimento genético preciso permite que olhemos para o futuro,
compreendamos quando e como a doença deve se revelar e to-
mar atitudes para manter as crianças fora de perigo.
No caso do GA1, Morton trabalhou de perto com Naylor a
fim de implementar a triagem eletiva de recém-nascidos no es-
tado todo, a partir de 1994. Alguns anos depois, Stephen I.
Goodman, da Faculdade de Medicina da Universidade do Colo-
rado, decifrou a mudança genética específica inerente ao GA1
“amish”, o que possibilitou que Puffenberger realizasse testes
moleculares rápidos e baratos. Ao identificar crianças acometi-
das antes do início da doença e intensificar os cuidados médi-
cos para elas, conseguimos reduzir o risco de deficiência de
94% para 36%, mas ainda sofríamos toda vez que um bebê afe-
tado sucumbia à lesão cerebral.
Então, em 2006, colaborei com Richard Finkel, um dos fun-
dadores da empresa de suplementos nutricionais Applied Nu-
trition, a fim de projetar o que chamamos de uma “fórmula mé-
dica” – uma dieta sob prescrição – para bebês e crianças com
GA1. Sabíamos que a mutação responsável pelo GA1 fazia com
que se acumulassem no cérebro o ácido glutárico e outras toxi-
nas – produzidas a partir do aminoácido lisina – e que a presen-
ça de um aminoácido diferente, arginina, poderia limitar a en-
trada da lisina no cérebro. Ao manipular judiciosamente as
proporções relativas de dieta desses dois aminoácidos (com a
ajuda de um modelo de computador), achamos que podería-
mos reduzir a captação de lisina pelo cérebro e assim limitar a
produção de neurotoxina por ele.
Testei a nova abordagem em 12 bebês afetados em um en-
saio clínico feito entre 2006 e 2011. Correspondendo a um terço
das hospitalizações, os bebês tratados tinham metade da excre-
ção de toxina e tiveram proteção completa contra danos ao cé-
rebro. Publicamos nossas descobertas em 2011 e até agora trata-
mos um total de 215 recém-nascidos com a fórmula médica
customizada. Os resultados têm sido duradouros; a taxa de
dano cerebral permanece menor do que 5%, e quase todas as
crianças nascidas atualmente com GA1 crescem com saúde.
Para muitas outras desordens genéticas que tratamos, inova-
ções graduais simples em diagnóstico e tratamento possibilita-
ram que reduzíssemos as taxas de deficiência, hospitalização e
morte entre 50% e 95% – um testemunho poderoso da ideia de
que a ciência guiada pela consciência pode fazer muito para
prevenir a miséria humana.
MUITAS POPULAÇÕES, UMA BIOLOGIA
O estudo sobre desordens genéticas tem um papel especial na
ampliação da ciência biológica. Somente ao observar com cuida-
do as consequências médicas de uma mutação genética podemos
A economia da prevenção
O progresso da Clínica para Crianças Especiais para lidar com um distúrbio cha-mado doença da urina em xarope de ácer, ou boldo, (MSUD, na sigla em inglês) ilus-tra os benefícios econômicos funcionais da integração entre a ciência genética e a bioquímica com a prática cotidiana da medicina. A MSUD é rara no mundo, mas comum entre povoados de menonitas da
recém-nascidos. Trata-se de um distúrbio perigoso; antes que a clínica fosse aberta em 1989, 39% das vítimas de MSUD mor-riam durante a infância, e a maioria dos
-ências mentais e físicas.
Nas crianças com MSUD, há falta de uma enzima necessária para degradar três aminoácidos vindos dos alimentos. Conse-quentemente, certos componentes che-gam a concentrações que envenenam o cérebro. Em excesso, essas substâncias vazam para a urina, dando a ela o odor característico do xarope de boldo. Crian-
ças com a doença parecem normais ao nascer, mas em três a cinco dias se tornam inconsoláveis e depois desenvolvem espasmos involuntários e vigorosos. Caso não sejam tratadas, o acúmulo de toxinas leva ao inchaço do cérebro, coma e morte.
Antes da inauguração da clínica, cuida-dos de saúde para crianças com distúrbios genéticos raros e complexos eram lamen-tavelmente inadequados em comunidades rurais. O cuidado médico para crianças com doenças com a MSUD era fragmen-
as famílias eram forçadas a viajar 160 km ou mais até chegar ao centro médico aca-
semanas e pagavam taxas, em dinheiro vivo, de US$ 50 mil a US$ 100 mil por ser-viços de emergência. Esse ciclo vicioso sobrecarregava o povo menonita com dívidas médicas, mas não aliviava o fardo da doença.
Desde 1989, nossa clínica tratou 80 pacientes menonitas com MSUD desde que nasceram. Metade deles foi diagnos-ticada no local quando tinha entre 12 e 24 horas de vida, e foram em segurança para casa. Os restantes foram diagnosticados
pela avaliação de recém-nascidos estadu-al obrigatória, e dispensados com segu-rança para casa após uma estadia média de cinco dias no hospital. Durante 25
-toramento e no tratamento da MSUD,
barato em casa, misturas intravenosas nutricionais usadas para reduzir os níveis de toxina, e novas fórmulas dietéticas projetadas para otimizar o ambiente quí-mico do cérebro. Essas inovações reduzi-ram as hospitalizações de 7,0 para 0,1 dias por paciente por ano. Um decréscimo de 98% nos custos hospitalares, aplicado a todos os pacientes com MSUD sob nos-sos cuidados, resulta em economia de pelo menos US$ 4,8 milhões por ano para a comunidade – quase o dobro do orça-mento operacional da clínica.
Tecnologias de ponta têm a reputação de serem proibitivamente caras, mas o cus-to depende em grande parte de como elas são empregadas. Investir recursos em diag-nósticos preventivos, assim como na pre-venção de doenças, pode ser fundamental para que se reduzam gastos médicos des-necessários. – K.A.S.
E S T U D O D E C A S O
62 Scientific American Brasil | Janeiro 2016
CRIANÇASarritmias do coração (fotos de cima) (abaixo à esquerda),
(todos os três, abaixo à direita).
www.sciam.com.br 63
compreender totalmente como o gene
normal contribui para a biologia humana.
William Harvey previu isso em 1657, quan-
do sugeriu que a análise de desordens ra-
ras é o melhor modo de revelar os “misté-
rios secretos” da natureza, e assim fazer
avanços na prática médica convencional.
Três séculos e meio depois compreende-
mos o axioma de Harvey em termos mo-
dernos. Ao assistir de perto à interação di-
nâmica entre uma variação genética rara e
a saúde mental, recentemente ganhamos
uma percepção-chave acerca de umas das
aflições humanas mais comuns.
Era uma manhã límpida de outono
quando encontrei pela primeira vez Katie,
uma mulher de cerca de 40 anos que ha-
via concordado em participar de nosso es-
tudo de pesquisa sobre desordem bipolar
entre os amish da Pensilvânia. Ela prefe-
riu que nos encontrássemos no celeiro
onde seu marido, David, estava conser-
tando pequenas máquinas. Partes das má-
quinas estavam jogadas sem cuidado por
ali, de maneira inusitada para uma ofici-
na amish. Na maioria dos dias, David fa-
zia o trabalho de dois – a doença bipolar de Katie havia domi-
nado sua vida em comum por mais de uma década, e David com
frequência batalhava sozinho para criar seus cinco filhos.
A primeira vez em que a desordem bipolar cobrou seu preço
de Katie foi depois do nascimento de seu segundo filho. Ela co-
meçou a falar rápido, às vezes muito rápido, e com frequência
seguia linhas de pensamento aleatórias até não fazer mais sen-
tido. De vez em quando passava a noite inteira acordada, lim-
pando e relimpando a casa. “Esse chão está nojento. Nojento.
Nojento.” Durante os períodos sombrios que se seguiram, Katie
ficava ruminando na cama, desesperançada e atormentada pela
culpa. Vozes conhecidas – o marido, os filhos, os pais – sussur-
ravam sem parar por trás dela: “Você é imprestável”. Mas sua
maior preocupação, transmitida repetidamente quando nos
encontramos pela primeira vez, era uma massa que enchia seu
abdômen e a atormentava sem cessar, uma alucinação de per-
cepção crônica que ela chamava de “miserável”.
Problemas mentais – inclusive a desordem bipolar – são co-
muns no mundo inteiro, e afetam de 12% a 47% de pessoas em di-
ferentes populações. Nos Estados Unidos, a doença psiquiátrica
corresponde a 40% das deficiências médicas entre jovens adul-
tos, e os suicídios excedem os homicídios em dois por um. Gru-
pos isolados como os amish fornecem vantagens especiais para
investigar a hereditariedade de doenças psiquiátricas e outras
condições médicas comuns. Um empenho como esse, o Amish
Study of Major Affective Disorders (estudo amish sobre as prin-
cipais desordens afetivas) começou em 1976 e seguiu várias li-
nhagens grandes e de gerações múltiplas de amish com alta pre-
valência de desordem bipolar. Durante três décadas, o estudo
ampliou-se e incluiu mais de 400 indivídu-
os, e continua sendo um dos analisados
com maior intensidade na história da ge-
nética médica.
Em 31 de outubro de 2011, Puffenber-
ger e eu participamos de uma reunião de
família organizada por Alan Shuldiner e
pela Clínica de Pesquisa Amish (Amish
Research Clinic) da Universidade de
Maryland. Destacados pesquisadores psi-
quiátricos discursaram para um grupo de
pessoas das comunidades Simples, preo-
cupadas com a doença mental em suas fa-
mílias e comunidades. Quando a reunião
estava no fim, os pesquisadores resumi-
ram 35 anos de pesquisa bipolar entre os
amish com uma mensagem desalentado-
ra: “Não há muito o que dizer para vocês”.
No caminho até o estacionamento, fui pa-
rado por três irmãs amish cuja família ha-
via participado da pesquisa bipolar fami-
liar por mais de duas décadas. Nove entre
11 irmãos da geração delas haviam passa-
do grande parte de suas vidas debilitados
por manias ou depressões. Elas se pergun-
tavam se nossa clínica, que tinha a repu-
tação de lidar com problemas intratáveis, poderia ajudá-las a
entender se “algum gene estava envolvido”.
O momento era correto. Recentemente havíamos começado
e colaborar com o Instituto Broad, em Cambridge, Massachu-
setts, para explorar a utilidade do sequenciamento completo do
exoma, a fim de investigar desordens genéticas raras em crian-
ças. O exoma consiste de todas as letras de codificação, ou nu-
cleotídeos, que são “lidas” para que as 19 mil proteínas do cor-
po sejam construídas.
Apesar de o exoma representar somente 1% do genoma hu-
mano, ele contém a grande maioria de mutações genéticas que
podem causar doenças, e o sequenciamento completo do exo-
ma é, atualmente, o método mais eficaz e de menor custo para a
descoberta de genes de doenças.
Apesar de historicamente nossa clínica ter se concentrado
em saúde pediátrica, desordens psiquiátricas permeiam todos
os aspectos da vida familiar e da comunidade, e nossos colabo-
radores em Cambridge permitiram que reservássemos sete
amostras de exoma de adultos amish com distúrbio bipolar.
Surpreendentemente, todas as sete pessoas compartilhavam
uma variante extremamente rara em um gene que decodifica a
proteína KCNH7. Essa substituição de apenas uma letra, cha-
mada de mutação missense, altera a estrutura do KCNH7 em
um aminoácido conservado durante a evolução de muitas espé-
cies diferentes de animais; mudanças em regiões conservadas
dessa maneira com frequência alteram de forma crítica o modo
como a proteína funciona.
Nos dois anos seguintes, Sander Markx e Michael First, do de-
partamento de psiquiatria da Universidade Colúmbia, nos ajuda-
Grupos
isolados como os
amish fornecem
vantagens
especiais para
investigar a
hereditariedade
de doenças
psiquiátricas e
outras condições
médicas comuns.
64 Scientific American Brasil | Janeiro 2016
ram a expandir o estudo para englobar mais indivíduos e imple-
mentar um método de classificação rigorosa dos sintomas. Final-
mente tivemos o privilégio de colaborar com pesquisadores da
Faculdade de Medicina Weill Cornell, da Universidade da Pensil-
vânia, da Faculdade Franklin & Marshall e do Instituto de Medi-
cina Genética McKusick-Nathans. A abordagem dessa equipe
também permitiu que rastreássemos o movimento da proteína
KCNH7 nas células, demonstrássemos como sua forma mutante
altera o disparo elétrico nos neurônios e estabelecêssemos uma
fundação estatística para nossa descoberta. Pela primeira vez,
identificamos uma mudança genética específica, que sinaliza
uma forte predisposição para a doença bipolar entre os amish.
Publicamos nossas descobertas em 2014; agora elas permitem
que pesquisadores em todo o mundo explorem as conexões entre
o KCNH7 e doenças mentais em outras populações.
O KCNH7 é especialmente abundante em regiões cerebrais
que afetam o humor e a cognição, onde formam canais que fa-
zem a mediação do movimento do potássio pelas membranas
celulares. Essas ondas efêmeras de íons, saindo e entrando de
membranas muito finas para serem vistas, estão diretamente li-
gadas ao que pensamos e sentimos. Nossa experiência cotidia-
na contradiz esse fato; é difícil imaginar sinais eletroquímicos
na raiz da violência, do vício, da psicose e de suicídio. Mas nos-
sa pesquisa sugere que uma mudança sutil no limiar e na sin-
cronização de correntes de íon pode lançar uma pessoa em ci-
clos repetitivos de loucura e desespero.
Perceber, no plano genético, que a mente está inserida desse
modo permite que compreendamos o sofrimento mental em
termos concretos. A descoberta sobre a variante do KCNH7 é
importante porque fornece uma base para discussões racionais
entre cientistas e pacientes, e ajuda a eliminar as camadas de
culpa e vergonha que cercam a doença mental.
A curto prazo, o conhecimento que conecta a variante gené-
tica à doença bipolar pode levar a cuidados médicos mais opor-
tunos e eficazes para pessoas como Katie. Em um prazo mais
longo, pode ser que seja possível projetar drogas que modulem
o canal de íon do KCNH7 – uma forma de medicina de precisão
que poderia abrir uma nova classe completa de terapias para o
tratamento da desordem bipolar em todas as populações.
TEMPO E OPORTUNIDADE
O estudo da genética bipolar nos amish é uma parábola sobre
o futuro da medicina – sobre como a informação genética pode
ser usada para predizer seu futuro. Na clínica, agora temos um
teste sanguíneo simples e barato que pode ser coletado do san-
gue do cordão umbilical no nascimento, a fim de nos informar
sobre o risco de a criança desenvolver o distúrbio bipolar nos 30
anos seguintes.
Como as desordens psiquiátricas que surgem na idade adul-
ta frequentemente são precedidas por pensamentos e compor-
tamentos erráticos durante a juventude, a detecção precoce de
um fator genético de risco poderia possibilitar o cuidado com a
saúde mental com prazo maior e mais eficiência durante a
vida. Mas será que deveríamos começar a triar recém-nasci-
dos amish à procura da variante danosa do KCNH7?
Tais perguntas vêm se acumulando com rapidez e dizem res-
peito a todos nós. Dê uma olhadinha em seu exoma e encontra-
rá entre 20 mil e 40 mil anomalias da assim chamada sequên-
cia humana normal de letras do nucleotídeo. Vinte por cento
das variações no código de DNA têm o potencial de alterar a
função das proteínas, e cerca de 1 mil são extremamente raras,
possivelmente só de você. Quantas dessas mutações são capazes
de prever seu futuro? E, se isso for possível, o que pode ou
deveria ser feito a esse respeito? A resposta depende, em parte,
de qual conhecimento consideramos útil para cada pessoa em
particular e em uma época específica. Talvez esse seja um dos
fatores do sucesso de nossa clínica: o conhecimento cumulativo
sobre a população – meticulosamente adquirido nos últimos 25
anos – funciona como uma Pedra de Rosetta. Permite que deci-
fremos o significado dos dados genômicos em um contexto so-
cial específico e, a partir daí, projetemos um atendimento mé-
dico para o indivíduo sob medida: o tratamento certo para a
pessoa certa na hora certa.
Em todas as populações, esse tipo de conhecimento profun-
do sobre a ação genética permitirá que os cientistas visualizem
o equipamento celular em requintado detalhe e compreendam
como as diversas partes moleculares interagem na saúde e na
doença. Mas são as pessoas – e não as partes que as compõem –
que sofrem. Biólogos moleculares e clínicos que trabalham lado
a lado em uma escala apropriada, um paciente por vez, podem
tecer a genômica no ofício do médicos, produzindo estratégias
que são preventivas e não reativas.
A prática pediátrica é um bom local para colocar essa ideia
em teste. Em nossa clínica, o conhecimento e o tratamento
crescem no mesmo ritmo, enquanto exploramos as complexas
interações, entre variação genética e o ambiente, que têm papel
fundamental durante o estágio de formação da pessoa.
Cuidar de crianças nos coloca desafios para alavancar o po-
der de previsão do conhecimento genético, concentrando-nos
nos resultados de maior importância. Continuamos a fechar a
lacuna, uma criança por vez, entre a pesquisa genômica e a prá-
tica cotidiana da medicina, que na nossa clínica é um esforço
pragmático, direcionado para aquilo que essa criança precisa
agora mesmo.
PARA CONHECER MAIS
Kevin A. Strauss et al., em Human Molecular Genetics, vol. 23, no 23, págs. 6395–6406;1o de dezembro de 2014.
e D. Holmes Morton, em American Journal of Public Health, vol. 102, no 7, págs. 1300–1306; julho de 2012.
Annual Review of Genomics and Human Genetics, vol. 10, págs. 513–536; setembro de 2009.
Kevin A. Strauss et al., em Molecular Genetics and Metabolism, vol. 91, no 2,págs. 165–175; junho de 2007.
DOS NOSSOS ARQUIVOS
Dina Fine Maron, Ciência da Saúde,fevereiro de 2015.
CIÊNCIA EM GRÁFICO
66 Scientifi c American Brasil | Janeiro 2016
FON
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DE
2015
Gráfi co de Martin Krzywinski e B. Jeannie Hunnicutt
Corynebacterium
Lactobacillus
Porphyromonas
Moraxella
Jeotgalicoccus
Sporosarcina
Roseburia
Collinsella
Megamonas
Pasteurella
Helicobacter
Catenibacterium
Mai
sabu
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enos
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dant
e
Dermabacter
Treponema
Base
Chave
2x–2x–4x–8x–16x–32x
Resultado forte (p < 0,01) Resultado fraco (p < 0,05)
4x 8x 16x 32x
Diferença da base de referência*
SIMNÃO
Você tem um cão?
Você tem um gato?
Você temum gato?
Na sua casa vivem mais homens que
mulheres?
Na sua casa vivem mais homens que
mulheres?
Na sua casavivem maishomens que
mulheres?
Na sua casavivem maishomens que
mulheres?
Na sua casavivem maishomens que
mulheres?
Na sua casavivem maishomens que
mulheres?
Na sua casavivem maishomens que
mulheres?
Na sua casavivem maishomens que
mulheres?
Como jogar
(círculos)
(pontos)
*mostrada. Por exemplo, os pontos para uma residência com maioria de
RESIDÊNCIAS INDIVÍDUOS
O jogo da bactéria Análise do pó revela como a presença de homens, mulheres, cães e gatos afeta a
variedade de microrganismos domésticos
Estudos mostraram que homens lançam mais bactérias em
seu ambiente que mulheres. Cientistas descobriram agora que
homens e mulheres também têm diferentes efeitos sobre os tipos
de bactérias dentro de uma casa. A variação está relacionada à
biologia da pele e “talvez ao tamanho do corpo e práticas de hi-
giene”, segundo pesquisadores que sequenciaram os genes na
poeira acumulada no alto de portas em 1.200 residências nos
EUA. Cães aparentemente alteram as bactérias no lar de forma
mais ampla que humanos ou gatos. A identifi cação bacteriana de
cada um desses seres é tão diferente que, pelo simples exame do
pó de uma residência, os investigadores podem dizer com preci-
são se ali há mais mulheres ou homens, ou cães e gatos.
– Mark Fischetti