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Trabalho cooperativo e coordenado “Minha trajetória profissional e investigativa é marcada pela tentativa de compreender por que os alunos não conseguem achar interessante e apaixonante sua passagem pelas salas de aula”, diz o professor Jurjo Torres Santomé, catedrático de Didática e Organização Escolar na Universidade da Corunha. “É essa indagação que me leva a experimentar e propor alternativas para o trabalho curricular em sala de aula”, explica o espanhol. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele aborda a articulação entre disciplinas como uma dessas alternativas. “Estou iniciando um novo projeto de pesquisa, centrado em coligir as vozes dos alunos de educação secundária obrigatória (12 a 16 anos de idade), opinando sobre e valorizando o trabalho que fazem em sala de aula nas diferentes matérias”, conta. “Tenho interesse em ouvir suas vozes e, obviamente, suas sugestões e propostas. Creio que podemos aprender muito com eles, como, por exemplo, a trabalhar respeitando-os mais, algo que me parece muito necessário, urgente e justo”, diz. Há muitos nomes para designar a integração das diversas áreas do conhecimento na escola, como transdisciplinaridade, multidisciplinaridade, interdisciplinaridade. O senhor considera que existe diferença entre elas? Esses três nomes referem-se ao tipo de relações de colaboração que as disciplinas ou corpus especializados do conhecimento estabelecem entre si. A mais elementar seria a multidisciplinaridade, uma colaboração entre especialidades, por exemplo, para enfrentar um problema, mas mantendo, cada uma delas, sua idiossincrasia, sua estrutura conceitual, metodológica, avaliativa, etc. Essa é a relação mais comum; supõe, em um primeiro momento, admitir que outras disciplinas também têm algo a dizer sobre um tema que se considera que seja competência de sua disciplina. A interdisciplinaridade já implica maior integração das disciplinas, que passam a compartilhar e intercambiar conceitos, terminologias, metodologias, com um claro propósito de colaborar, participar e trabalhar de igual para igual. A transdisciplinaridade supõe maior nível de integração de várias disciplinas. Seria como criar um modelo onicompreensivo no qual não haveria fronteiras nem disputas entre as especialidades disciplinares. É ir além das disciplinas e das disputas entre elas. Qual a opção que melhor define a ideia de base para um currículo integrado? Um currículo integrado apoia-se claramente em uma interdisciplinaridade do conhecimento. Admite-se, como ponto de partida, que tudo está interconectado. Por isso, propomos processos de ensino e aprendizagem nos quais os alunos visualizem e construam significados, conhecimentos significativos em que fiquem claras essas conexões entre diferentes disciplinas. Quais os benefícios de um currículo integrado? Um currículo integrado permite-nos introduzir temas novos e mais interessantes na sala de aula, Grupo A » Revista Pátio » Entrevista » Trabalho cooper... http://www.grupoa.com.br/revista-patio/artigo/8459/trab... 1 de 5 20/03/13 17:39

Trabalho cooperativo e coordenado. Entrevista com Jurjo Torres Santomé

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Trabalho cooperativo e coordenado. Entrevista com Jurjo Torres Santomé Pátio. Ensino Médio, Profissional e Tecnológico. Nº: 16. Ano: 2013. Janeiro 2013

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Trabalho cooperativo e coordenado“Minha trajetória profissional e investigativa é marcadapela tentativa de compreender por que os alunos nãoconseguem achar interessante e apaixonante suapassagem pelas salas de aula”, diz o professor JurjoTorres Santomé, catedrático de Didática e OrganizaçãoEscolar na Universidade da Corunha. “É essa indagaçãoque me leva a experimentar e propor alternativas para otrabalho curricular em sala de aula”, explica o espanhol.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele aborda a articulação entre disciplinas como

uma dessas alternativas. “Estou iniciando um novo projeto de pesquisa, centrado em coligir as

vozes dos alunos de educação secundária obrigatória (12 a 16 anos de idade), opinando sobre e

valorizando o trabalho que fazem em sala de aula nas diferentes matérias”, conta. “Tenho

interesse em ouvir suas vozes e, obviamente, suas sugestões e propostas. Creio que podemos

aprender muito com eles, como, por exemplo, a trabalhar respeitando-os mais, algo que me

parece muito necessário, urgente e justo”, diz.

Há muitos nomes para designar a integração das diversas áreas do conhecimento na escola,

como transdisciplinaridade, multidisciplinaridade, interdisciplinaridade. O senhor considera que

existe diferença entre elas?

Esses três nomes referem-se ao tipo de relações de colaboração que as disciplinas ou corpus

especializados do conhecimento estabelecem entre si. A mais elementar seria a

multidisciplinaridade, uma colaboração entre especialidades, por exemplo, para enfrentar um

problema, mas mantendo, cada uma delas, sua idiossincrasia, sua estrutura conceitual,

metodológica, avaliativa, etc. Essa é a relação mais comum; supõe, em um primeiro momento,

admitir que outras disciplinas também têm algo a dizer sobre um tema que se considera que

seja competência de sua disciplina. A interdisciplinaridade já implica maior integração das

disciplinas, que passam a compartilhar e intercambiar conceitos, terminologias, metodologias,

com um claro propósito de colaborar, participar e trabalhar de igual para igual. A

transdisciplinaridade supõe maior nível de integração de várias disciplinas. Seria como criar um

modelo onicompreensivo no qual não haveria fronteiras nem disputas entre as especialidades

disciplinares. É ir além das disciplinas e das disputas entre elas.

Qual a opção que melhor define a ideia de base para um currículo integrado?Um currículo integrado apoia-se claramente em uma interdisciplinaridade do conhecimento.

Admite-se, como ponto de partida, que tudo está interconectado. Por isso, propomos processos

de ensino e aprendizagem nos quais os alunos visualizem e construam significados,

conhecimentos significativos em que fiquem claras essas conexões entre diferentes disciplinas.

Quais os benefícios de um currículo integrado?Um currículo integrado permite-nos introduzir temas novos e mais interessantes na sala de aula,

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cruzá-los com conceitos, saberes e procedimentos de diversas disciplinas, estimular uma maior

curiosidade e espírito de exploração, investigação e inovação nos alunos; ajudá-los a captar e a

considerar o maior número possível de pontos de vista para tomar decisões, para fazer

julgamentos mais equilibrados acerca da importância e da necessidade de dominar

determinados saberes que até então não viam como necessários. Essa aposta na

interdisciplinaridade do conhecimento será de enorme utilidade para estimularmos os alunos a

compreender a necessidade de colaborar, de trabalhar em equipe com outras pessoas, de

entender as necessidades de outros povos, de manter um compromisso e um trabalho em favor

da sustentabilidade do planeta.

Por que a concepção disciplinar foi dominante na escola do passado? No passado, havia alguma razão para que a concepção disciplinar fosse dominante: não

precisávamos do controle de outras disciplinas para evitar consequências imprevistas ao pôr em

prática o saber disciplinar. As disciplinas “disciplinam” a mente para selecionar, interessar-se,

interpretar e valorizar unicamente aquela realidade ou aquelas questões que fazem parte de

seus referenciais conceituais e metodológicos. A disciplinaridade das mentes funciona também

para confrontar as disciplinas entre si, para convertê-las em rivais. Cada um de nós, como

especialista, sempre pensa que tem muitas necessidades, que precisa de muito mais recursos

que os outros, que é mais importante e indispensável para a formação dos alunos que as demais

especialidades.

E por que essa concepção continua sendo dominante no presente?Na última década, os obstáculos a um currículo integrado vêm aumentando de maneira bastante

significativa, à medida que se consolidam políticas comparativistas para avaliar a qualidade dos

sistemas educacionais dos diferentes países. Um exemplo é o que ocorre com provas como o

PISA, promovido pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). A

obsessão dos países é ter êxito nessas provas e, com isso, essas disciplinas submetidas à

avaliação internacional são as que recebem cada vez mais atenção e recursos humanos e

econômicos. O resultado dessas políticas comparativistas é que acabam convencendo a maioria

dos professores — e, inclusive, as famílias — de que seu trabalho consiste em treinar os alunos

para que tenham êxito nesses testes e alcancem as melhores posições possíveis nos rankings

produzidos. É evidente que treinar os alunos para fazer avaliações é algo radicalmente distinto

de educar cidadãs e cidadãos para entender, participar de e viver em sociedades mais

democráticas, justas e solidárias.

Com a complexidade crescente do conhecimento nas diferentes áreas, é possível promover ainterdisciplinaridade na escola?É evidente que sim. Essa complexidade é o que está fazendo com que as universidades apostem

em modelos de ensino mais interdisciplinares, com que todos os grupos de pesquisa sejam

realmente interdisciplinares. Por isso, não é lógico pensar que nas etapas educativas anteriores

não se trabalhe com essa mesma filosofia educativa capaz de confrontar os alunos com um

conhecimento verdadeiramente relevante e significativo. É muito difícil que o currículo

disciplinar ajude a responder às necessidades dos alunos de hoje, sobretudo se nos confrontamos

com perguntas-chave que nos fazemos explicitamente há décadas, mas que incomodam a

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maioria dos governos que, por isso, tratam de silenciá-las: de que conhecimentos necessitam as

novas gerações; quem deve participar da seleção; a que objetivos devem atender os

conhecimentos selecionados; que metodologias são apropriadas para capacitar a uma cidadania

verdadeiramente informada, comprometida e responsável com os assuntos públicos.

No ensino médio, etapa conclusiva da educação básica, o diálogo entre saberes éimprescindível. Na realidade, porém, isso não acontece. Quais os principais entraves a essaconexão entre as disciplinas?Basicamente os medos e a falta de confiança em nós mesmos. Temos medo de nos equivocar ou

de que os outros descubram lacunas em nossos saberes, pois nos ensinaram que erros, dúvidas e

falhas, medos e dificuldades são algo que merece punição ou castigo. Somos extremamente

inseguros, o que em princípio é bom, se utilizamos isso para trabalhar com outras pessoas e

somar saberes, indagar e arriscarmo-nos a inovar de maneira colaborativa. Se você é educado

disciplinarmente, fica mais difícil atrever-se a uma inovação tão complexa como é o caso do

currículo integrado.

O que é preciso para que haja uma mudança efetiva rumo à educação interdisciplinar?Estimular uma mudança nessa direção implica convencer as instituições universitárias de

formação e atualização dos professores de que o mundo atual requer que formemos professores

comprometidos ativa e reflexivamente com o trabalho interdisciplinar. Mediante uma formação

coerente com essa filosofia, promoveremos docentes comprometidos com princípios éticos como

generosidade intelectual (reconhecimento do trabalho das demais especialidades e profissões);

confiança intelectual (crença no fato de que todos os especialistas podem dar contribuições

importantes e, mais do que isso, disposição a submeter o próprio trabalho à avaliação de

“estranhos”); humildade intelectual (reconhecimento da parcialidade e da incompletude do

conhecimento em que somos especialistas e, portanto, disposição para pôr em risco nossa

autoestima e assumir que outras disciplinas o revisem criticamente e tentem completá-lo);

flexibilidade intelectual (aceitação da mudança de nossas perspectivas e de nossos pontos de

vista por sugestão e convencimento por outras disciplinas e áreas do conhecimento); integridade

intelectual (desenvolvimento do seu trabalho de maneira responsável e séria, tentando sempre

buscar a verdade e dando o melhor de si, sem medo das pressões de poderes autoritários).

Como um professor pode trabalhar de forma interdisciplinar e, ao mesmo tempo, aprofundaro conteúdo de sua disciplina específica?Essa é uma questão essencial. O currículo interdisciplinar destina-se a promover uma forma mais

completa de pensar, aprender e utilizar o conhecimento; implica ver além das barreiras mentais

criadas pelas disciplinas; obriga-nos a enxergar os efeitos colaterais aos quais raramente

prestamos atenção, já que nossas disciplinas também nos disciplinam a olhares mais seletivos e

parciais. Cada disciplina realmente tem sua lógica interna, uma epistemologia dominante que

revela seus frutos no constante avanço do conhecimento construído e reconstruído por seus

pesquisadores. Em muitas disciplinas, existe uma hierarquia conceitual e/ou procedimental que

obriga a organizar a aprendizagem dos alunos de determinado modo, respeitando essa estrutura

interna. Entre os dilemas e prioridades a que o currículo escolar deve fazer frente, podemos

citar: ou educar exclusivamente especialistas que dominem bem essas disciplinas históricas, um

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modelo claramente reprodutor, ou buscar uma melhor compreensão da realidade, desse mundo

mais integrado e interdependente, apostando em uma maior socialização das novas gerações,

como cidadãos que precisam ser conscientes e aprender a se mover nesses espaços “inter”;

pessoas que devem ver-se como interdependentes, assumindo que têm obrigações, direitos e

responsabilidades para com os demais.

Na escola, os saberes específicos contidos nas diversas disciplinas continuam estanques eincomunicáveis. O que é necessário para a construção de um currículo interdisciplinar?Além de uma boa formação cultural e científica, precisamos de docentes com boa formação

didática, sociológica e psicopedagógica. Contudo, também precisamos de uma administração

educacional que compreenda essa necessidade e, por conseguinte, promova normas, incentivos

e dotações apropriadas para realizar esse tipo de inovação educativa. Precisamos de docentes

que aceitem que é preciso trabalhar colaborativamente com os colegas, de diretoras e diretores

de escolas que promovam esse tipo de trabalho mais integrado. As velhas tradições e rotinas do

professor sozinho em sua classe, decidindo e planejando sem nenhuma coordenação com os

colegas, são um lastro do qual precisamos urgentemente nos libertar. Um currículo mais

integrado requer uma política educacional claramente decidida a convencer a uns e outros de

que todos somos imprescindíveis, embora trabalhemos de forma cooperativa e coordenada.

Qual é o caminho para alcançar tal objetivo?A escola deve garantir o acesso ao conhecimento, mas a um conhecimento que sempre comporta

níveis de aprofundamento. Esse conhecimento costuma ter uma organização disciplinar que nos

possibilitou historicamente maiores avanços à medida que compreendíamos seus conceitos-

chave, suas estruturas conceituais, procedimentos, metodologias de pesquisa e avaliação do

novo conhecimento. Um conhecimento relevante para os alunos não pode prescindir dessas

chaves, mas também precisa completá-lo com outros saberes que lhes permitam percebê-lo

como significativo, útil, válido para entender o mundo com mais rigor e objetividade. Não

podemos negar aos alunos as chaves que permitem ter acesso a esse conhecimento organizado

de maneira disciplinar e às novas disciplinas que emergem constantemente de dinâmicas

interdisciplinares, como bioquímica, eletroquímica, sociolinguística, bioética, biogeoquímica e

etnomusicologia, entre outras.

A interdisciplinaridade é uma utopia na escola?É uma meta, sempre aperfeiçoável, a se alcançar. São sempre possíveis maiores níveis de

interdisciplinaridade. No entanto, é preciso estar consciente dos obstáculos. É preciso aprender

a elaborar currículos mais equilibrados, nos quais as disciplinas não sejam definitivamente

esquecidas, e sim coordenadas com propostas mais integradas, assim como tentamos integrar o

global e o local.

Créditos das imagens:Foto: Eduardo Castro Bal/divulgação

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