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24 2 CIDADE E URBANISMO A formação do urbanismo moderno no Brasil: as concepções urbanísticas do engenheiro Saturnino de Brito Fernando Diniz Moreira O trabalho pretende contribuir para a história da formação do planejamento urbano moderno no Brasil através do resgate da obra teórica do engenheiro Saturnino de Brito. Os planos urbanísticos deste engenheiro sanitarista, apesar de receberem pouca atenção da historiografia, são um marco fundamental na estruturação do urbanismo moderno no país, na medida em que constituem, ao nosso ver, suas primeiras manifestações antecipando, inclusive, as experiências de Lúcio Costa, Attílio Corrêa Lima e Ulhôa Cintra nos anos 30 e 40. A análise das concepções urbanísticas de Brito se restringiu a alguns pontos, que reputamos como fundamentais e que caracterizam sua obra como eminentemente moderna e pioneira. Em primeiro lugar, a visão globalizante do espaço urbano que colocava a necessidade de existir um plano geral centralizado no sentido de prever e gerenciar a expansão da cidade. Em segundo lugar, suas preferências no que se referem às formas ideais de traçado urbano. A terceira parte aprofunda esta questão, procurando resgatar os métodos do urbanismo sanitarista, cerne da obra do engenheiro. Em uma quarta etapa, são analisadas suas preocupações em relação à legislação e à regulamentação urbanística, entre outros instrumentos normativos que constituem, na sua opinião, elementos primordiais do processo de planejamento urbano. Na quinta parte, extrapolando a dimensão urbana, são abordadas as contribuições de Brito no âmbito da arquitetura: a disposição das plantas, a implantação do edifício no lote, entre outras. Por fim, suas considerações sobre as diversas competências e saberes que procuravam se justapor na cidade, identificando e criticando as concepções de outros corpos profissionais que atuavam no urbano, O espaço aqui disponível impossibilita maiores

Moreira, a formação do urbanismo moderno no brasil

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A formação do urbanismo moderno no Brasil: as concepções urbanísticas do

engenheiro Saturnino de BritoFernando Diniz Moreira

O trabalho pretende contribuir para a história da formação do planejamento urbano moderno no Brasil através do resgate da obra teórica do engenheiro Saturnino de Brito. Os planos urbanísticos deste engenheiro sanitarista, apesar de receberem pouca atenção da historiografia, são um marco fundamental na estruturação do urbanismo moderno no país, na medida em que constituem, ao nosso ver, suas primeiras manifestações antecipando, inclusive, as experiências de Lúcio Costa, Attílio Corrêa Lima e Ulhôa Cintra nos anos 30 e 40.

A análise das concepções urbanísticas de Brito se restringiu a alguns pontos, que reputamos como fundamentais e que caracterizam sua obra como eminentemente moderna e pioneira. Em primeiro lugar, a visão globalizante do espaço urbano que colocava a necessidade de existir um plano geral centralizado no sentido de prever e gerenciar a expansão da cidade. Em segundo lugar, suas preferências no que se referem às formas ideais de traçado urbano. A terceira parte aprofunda esta questão, procurando resgatar os métodos do urbanismo sanitarista, cerne da obra do engenheiro. Em uma quarta etapa, são analisadas suas preocupações em relação à legislação e à regulamentação urbanística, entre outros instrumentos normativos que constituem, na sua opinião, elementos primordiais do processo de planejamento urbano. Na quinta parte, extrapolando a dimensão urbana, são abordadas as contribuições de Brito no âmbito da arquitetura: a disposição das plantas, a implantação do edifício no lote, entre outras. Por fim, suas considerações sobre as diversas competências e saberes que procuravam se justapor na cidade, identificando e criticando as concepções de outros corpos profissionais que atuavam no urbano,

O espaço aqui disponível impossibilita maiores explanações iniciais sobre a cultura urbanística do final do século XIX, sobre a teoria urbanística de um dos autores que mais influenciou Brito, Camillo Sitte, sobre a própria trajetória profissional de Saturnino de Brito e sobre alguns de seus principais planos urbanísticos como Santos, Vitória e Recife, que, evidentemente, iriam enriquecer bastante a compreensão deste texto. Portanto será feito um esforço para ficarmos apenas nos princípios teóricos inseridos em sua obra escrita.Planos gerais e racionalidade administrativa

Na concepção de Brito, existem fases no desenvolvimento das cidades em relação ao planejamento. Na primeira fase, estão as cidades formadas ao acaso, pelas conveniências do momento, ao longo dos rios, ao lado de castelos, morros,

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nas quais inexiste a menor preocupação quanto à sua ocupação. Em uma segunda, as cidades ganham certa importância, porém se desenvolvem ainda sem um plano geral, utilizando planos parciais para algumas áreas da cidade. Os terrenos valorizam-se, e surge a especulação imobiliária que produz a divisão dos lotes em regime de “laissez-fatre", de maneira mais favorável aos interesses dos especuladores. Por fim, chega-se à1 terceira fase, na qual se presencia à elaboração sistemática de planos de conjunto, que teriam como objetivo a coordenação do remanejamento dos quarteirões existentes, a extensão futura e a formação de novas cidades (Brito, 1944a:41-43).

Neste terceiro momento pode-se encontrar em Saturnino de Brito uma visão globalizanfe do espaço urbano que repudiava operações de redesenho estético urbano em escala pontual. Procurava, sim, planejar o conjunto da cidade adotando o planejamento como meio de garantir o desenvolvimento harmônico desta. Em seus projetos de saneamento sempre ressaltava a necessidade da previsão do crescimento das cidades através do que denominava de “planos gerais” em prazos suficientemente dilatados (Brito, 1944d: 15).

Neste sentido, encontramos uma importante contribuição de Brito para o planejamento urbano que é sua visão holística do espaço urbano que procurava imprimir às administrações municipais. Assim, Brito, em sua luta contra os interesses particulares e contra a expansão imprevista da cidade, preconiza, de forma centralizadora e pouco democrática, a intervenção estatal como a única capaz de deter os interesses particulares e mesquinhos dos proprietários de terras, dos promotores imobiliários, das companhias de serviços públicos e o favoritismo, clientelismo e incompetência das administrações locais, estas últimas incapazes de implementar planos de conjunto (Brito, 1944a:64-66,1944b: 161). Esta intervenção deveria consubstanciar-se nos plans d’ensemble que dividiam a cidade em diferentes zonas para facilitar a implantação do plano por partes, evidentemente sugerindo a continuidade administrativa.

Brito defendia como inadiável a obrigação de prever a expansão da rede sanitária e dos armamentos, tanto no caso das cidades planas, como no caso das cidades acidentadas (Brito, 1944a:29). Segundo Andrade (1991), Brito afirmava que a necessidade da elaboração de planos gerais de extensão se deve a três fatores: evitar que o crescimento ocorra ao acaso; extinguir os embates entre os interesses privados e públicos e conceder maior longevidade às obras de saneamento, evitando que sejam comprometidas posteriormente:

"A tarefa da atualidade consistirá essencialmente em levantar as plantas das cidades existentes e dos terrenos adjacentes, para estudar os melhoramentos da parte construída e os planos de saneamento e de expansão; este trabalho metódico deve ser regulamentado por lei e exigido também para os pequenos núcleos populosos que progridem. (Brito, I944d:18.)

Este plano geral, que seria formulado obrigatoriamente pelo Estado, deveria

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ser completado pelos planos de conjunto relativos aos grupos de serviços distintos (iluminação, construção de edifícios públicos, transporte, arborização). O plano de saneamento, segundo Brito, assumiria papel preponderante na elaboração do plano geral, determinando os arruamentos futuros. O traçado urbano deveria ter suas principais linhas subordinadas ao traçado sanitário (Brito,1944d:18, 1943:101).

Dentro desta ótica, era necessário o levantamento prévio da cidade existente. Brito estabelece então uma metodologia completa para levantamentos e diagnósticos da área a ser estudada, necessários para a organização dos projetos: levantamento topográfico preciso, ruas e becos a serem alargados, locais pitorescos a serem preservados, áreas para jardins e parques, áreas para uma futura expansão da cidade, levantamentos cadastrais, características econômicas da cidade, planos e posturas municipais anteriores, população, vegetação, clima, salubridade e causas da insalubridade, situação atual dos serviços urbanos, condições sanitárias, mananciais a serem reservados, natureza das águas, medição do volume de água requisitado, indicações precisas das condições de descarga dos despejos, atitudes da população do ponto de vista higiênico, condições habitacionais, tipos de instalações domiciliares, etc. Enfim, muitas destas propostas se incorporariam, embora algumas com outra denominação, na metodologia de planejamento urbano por todo o século XX. Assim, a proposta dos planos gerais caracteriza a obra de Brito como inovadora no Brasil por se inserir no movimento, típico do urbanismo moderno, de passagem da concepção da cidade por fragmentos para a concepção da cidade como totalidade e como organismo vivo (Brito, 1943:103-105,1944a:98-104, 1944b: 161-163).Traçados “artísticos” ou em “xadrez”?

A constatação de que as necessidades da vida moderna não podiam mais se adaptar aos antigos traçados medievais e coloniais conduziram Brito à concepção de que não se poderia mais abandonar ao acaso o desenvolvimento das cidades, pois, posteriormente, a resolução dos problemas sanitários e de circulação seria dispendiosa.

Os traçados geométricos, os damiers, tornar-se-iam, previamente, a solução mais prática a ser adotada. Entretanto Brito reconhece que estes foram ampla e desmedidamente utilizados na criação de cidades e intervenções urbanas na Europa e nos EUA:

”... surgiu a pretensão de substituir a “desordem" do acaso pela “ordem" geométrica dos desenhos dos planos de expansão, ou dos planos de novas cidades. A formação “xadrez” representa a solução geométrica mais acessível sob o aspecto da simplicidade ou do menor esforço e da inflexibilidade ou da despreocupação das condições topográficas locais." (Brito, 1944d: 18-19.)

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No entanto condenava este traçado “xadrez” por muitas vezes não considerar as condições locais. Esta crítica é reforçada sobretudo nos casos dos terrenos de topografia acidentada. Neste caso, um traçado não reticulado é o mais apropriado:

"Mas as aplicações do “xadrez” desenvolveram-se de um modo inconveniente, constituindo a solução genérica dada ao problema da criação dos novos arrabaldes e de novas cidades, na planície e na montanha. As reguadas â esquadro não consultavam a topografia local, desprezavam as construções existentes, condenavam as linhas sinuosas de ruas e estradas já traçadas e edificadas, subiam e desciam outeiros pitorescos, cortavam bosques a aproveitarem-se [...]; em suma, a geometria da linha reta inflexível não consultava os caprichos da natureza; alguns tão belamente apreciáveis, nem os caprichos das construções humanas, " [grifo nosso] (Brito, 1944a:20.) Nos pontos de vista estético e técnico as ruas sinuosas são efetivamente as mais indicadas para os terrenos acidentados, porque se adaptam à topografia, permitem o desenvolvimento favorável ao trânsito e aos belos efeitos perspectivas" [grifo nosso], (Brito, 1944d: 19.)

Brito defendia ainda a necessidade de romper com a ortodoxia dos tecidos reticulados através da interceptação dos horizontes das vias maiores e da criação de avenidas diagonais em direções convenientes que facilitariam ainda o trânsito e as comunicações. Nesta perspectiva, exaltava o exemplo de Washington, planejada pelo Major L’Enfant em 1791, considerado por Saturnino como um damier bem estruturado e não monótono e, segundo Brito, muito belo. Por outro lado, um exemplo não tão bem-sucedido é o de Belo Horizonte, pois considera condenável a aplicação de uma grelha tão reticulada em um terreno acidentado (Brito, 1944a:51). Esta tentativa de conciliar as necessidades da engenharia sanitária com certas preocupações estéticas em relação ao traçado é o que marca positivamente a obra do nosso engenheiro.

Esta concepção teórica pode ser creditada, sem dúvida, à influência da obra de Camillo Sitte, da qual era profundo conhecedor. A obra de Camillo Sitte constitui um marco nas teorias urbanísticas do final do século XIX. Seu livro intitulado A construção das cidades segundo seus princípios artísticos condensa suas idéias pioneiras; no sentido de resgatar a dimensão estética da cidade, estudando exemplos de cidades medievais, verificando quais os princípios que regem a construção daqueles espaços e consubstanciando, desta forma, uma voraz crítica aos tabuleiros reticulados que então grassavam nas cidades. O espaço aqui disponível impossibilita qualquer maior regressão para explicar as teorias deste famoso urbanista austríaco.

Brito procurou não se integrar às polarizadas interpretações correntes da obra de Sitte. Este era, por um lado, duramente criticado pelos modernistas adeptos dos traçados geométricos e, por outro, defendido pelos apologistas da cidade medieval, contrários à destruição alcançada pela cidade moderna. Brito desarticulou estes discursos e desmistificou estas concepções utilizando os próprios argumentos do famoso urbanista.

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Em um primeiro momento, a conhecida obra de Sitte, que condena veementemente a ruptura das formas da cidade antiga e de seus monumentos pelas reformas urbanas e pela utilização indiscriminada do rígido tabuleiro de xadrez, foi utilizada para demonstrar que os traçados geométricos faziam tabula rasa da cidade antiga (Brito, 1944a;33-40). Por outro lado, Brito critica os autores que se entregam desmedidamente a divagações sobre o belo e não se preocupam com o problema funcional. Em outra oportunidade critica severamente os town planners ingleses:

"Os novos e burocráticos 7im7i Planners, esses que nada construíram praticamente, arvoraram- se em juízes dos trabalhos alheios c trovejam heresias contra os traçados retilíneos, sem atender às variadas circunstâncias locais e às decorrentes do meio sociai. (Brito, I944d:20.)Brito empreende uma leitura específica da obra de Sitte, na medida em que

várias propostas sitteanas não se adequam ao traçado sanitário de Brito. Por exemplo, a feroz crítica sitteana em relação aos monótonos traçados reticulados não recebe a menor citação por parte de Brito (Andrade, 1992:206). Ao nosso ver, Brito, de certo modo, interpreta mal Sitte quando este insiste nos princípios artísticos a serem aplicados nas praças. Brito, erroneamente, acredita que seu colega austríaco rejeita qualquer plano de previsão e que procura abandonar o crescimento da cidade ao acaso. Na realidade, o fato de Sitte criticar os rígidos e monótonos tabuleiros não significa que ele não defenda um plano geral para a cidade (Andrade, op. cit.: 184; Brito, 1944a:33). Inclusive, o próprio Brito cita um trecho em que mostra a descrença de Sitte em relação à preservação do sentimento artístico que, no passado, gerou aquelas praças de forte sentido estético nos tecidos urbanos antigos. Assim, é preciso intervir na cidade, pois devemos ter a convicção de que “ainda hoje se pode criar obras de beleza” (Sitte, 1992:15; Brito, op. cit,:3Q), Além do mais, o sentimento artístico não terá que necessariamente originar bons exemplos, pois existem praças e mas antigas desprovidas de qualquer valor artístico. Portanto é preciso não abandonar a cidade ao “laissez-faire” e criar planos de conjunto:

"Sem planos, sem regras, cada particular construirá diferentemente de seu vizinho porque as tradições da arte não são mais solidamente enraizadas nas massas. Resultará, portanto, cm uma desordem geral. Veremos surgir por toda a parte os blocos de casas isoladas e edifícios locados aqui ou ali sem ligação nenhuma com as outras construções," (Sitte, op. cri.:I297: Brito, op. cií.:36.)Brito envereda ainda mais pela teoria sitteana ao analisar exemplos europeus

de traçados irregulares e compará-los com exemplos de desenho urbano colonial de Recife e de Santos, mostrando, ao nosso ver erroneamente, a ausência de uma tradição artística nas cidades coloniais brasileiras, o que tornaria nossos exemplos inferiores aos europeus (Brito, op. c//.:37-38),

O que importa reter das influências de Sitte em Brito é a noção de pitoresco

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na cidade. A própria tentativa, por parte de Saturnino, de adaptar o traçado das ruas às linhas de nível de um terreno acidentado contribui significativamente para um traçado sinuoso e de efeito pitoresco. Ainda por cima, Brito procura conhecer e considerar o existente, tentando tirar partido das belezas locais (Andrade, op. cit.\201). “A arte moderna de construir as cidades ensina a aproveitar grande número destas irregularidades para obter belos efeitos de perspectiva" (Brito, 1944b: 166).

Estes princípios são claramente reconhecíveis no plano que elaborou para o Novo Arrabalde de Vitória em 1896: aproveita a existência de pequenos morros, dispõe as principais avenidas de forma não paralela e institui bosques de eucaliptos e alamedas. A Avenida da Barra em Santos também é exemplar desta visão.

Quando passa a argumentar sobre o alargamento das ruas e becos, Brito fornece outros exemplos bastante ilustrativos destes elementos pinturescos. Esses alargamentos, que devem provir das necessidades do trânsito, da salubridade e também da estética, não precisam ser organizados com a preocupação de dotá-los de uma rígida direção retilínea:

"Estes alargamentos podem ser feitos ora de um lado, ora de outro, conforme as facilidades de desapropriação, sem prejuízo do trânsito e do efeito estético; não é preciso que a rua conserve seus alinhamentos paralelos; as larguras de uma rua podem ser diferentes em um mesmo trecho de um quarteirão e em trechos sucessivos; os acidentes planimétricos existentes podem ser geralmente conservados." (Brito, op. eií.:166.)

Outro plano de Brito, considerado exemplar desta aplicação, é o traçado urbano de um bairro em Passo Fundo (RS), realizado em 1919:

"Sem dúvida, seu traçado, além de dar conta racionalmente das necessidades sanitárias, [...] constroe unt espaço urbanístico bastante rico, pela diversidade de linhas de visão que oferece e através da criação de pequenas praças e vielas sanitárias, que multiplicam as possibilidades de circulação dos pedestres, a salvo dos veículos, e os lugares de convívio social [grifo nosso]". (Andrade, 1990:4.)

A observância de certos conceitos sitteanos em consonância com o traçado sanitário, ou seja, garantir o funcionamento do sistema sanitário sem declinar da dimensão estética da cidade, é, sem dúvida, a contribuição mais importante de Brito e lhe confere um lugar de destaque na nossa historiografia.

Finalmente, pode-se concluir que, para Brito, os traçados reticulados ou artísticos não devem ser adotados ou recusados a priori. O traçado em linha reta, proveniente do esquema sanitário, deve ser aplicado na planície, enquanto o traçado irregular de curvas sinuosas deve-se restringir às áreas acidentadas. Porém o que importa é a salvaguarda do traçado sanitário, embora também abra concessões à questão estética (Brito, 1943:13-14, 1944a:50-51, 1944b:165- 167,1944d:222-224).

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O urbanismo sanitarista

A grande preocupação de Brito quanto ao espaço urbano e que define o cerne de sua obra é a importância que confere ao traçado sanitário como determinante do traçado urbano. Brito assinala as grandes dificuldades por que passam as cidades em que o traçado das ruas não está de acordo com a topografia do terreno. Propõe o princípio no qual as linhas mestras do plano de extensão ou criação de cidades novas devam ser traçadas conforme as necessidades sanitárias (Brito, 1944a:90-105). Seus principais planos, Santos e Vitória, evidenciam claramente estes princípios, na medida em que suas avenidas principais se adequam perfeitamente às linhas de escoamento e de relevo.

Uma vez estabelecido este esquema, deve-se, justamente para se lançarem as linhas definitivas do plano urbanístico, atentar para uma série de considerações pertinentes que exigem definições claras e precisas: local para a usina terminal de tratamento dos esgotos, locais para as estações distritais, indicação dos terrenos a serem regularizados, identificação das superfícies pantanosas, previsão de avenidas com canais a céu aberto para a drenagem dos baixios, previsão dos bosques e parques, que funcionariam como “filtros para os ventos mal- sãos” (Brito, 1896:27, 1944a: 16).

Brito apresenta regras precisas para a indicação e alargamento de becos e ruas, para a divisão de terrenos em lotes, para a edificação de casas salubres e para a criação de áreas para jardins e parques (Brito, 1944a:l 16, 1944b: 164- 166). Da maneira como articula estas vias em uma estrutura urbana, surge uma forma de pensamento muito próxima à futura concepção modernista de unidades de vizinhança e de estruturação de vias (Brito, 1944b: 164-167).

Entretanto a maior contribuição do desenho urbano sanitarista de Brito certamente consistiu na idéia das ilviellas sanitárias”, muito discutidas em Le Tracé Sanitaire des Villes. O autor critica os quarteirões longos e as vias estreitas resultantes da implantação colonial, onde inexistia acesso ao fundo dos lotes. Estes fundos, que se tornavam insalubres, concorriam tremendamente para a propagação de doenças. Propõe que sejam traçadas “viellas sanitárias”, que se constituíam aberturas no interior dos lotes para sanear os fundos dos quintais e que, ao atravessarem os quarteirões, também receberiam os coletores de esgotos, o que proporcionaria uma grande economia de meios (Brito, 1944a: 118-119). Essas vielas, se compreendidas dentro de um plano sistemático, propiciariam grandes contribuições estéticas e sanitárias à cidade (Figura 1).

A implementação de tais vielas pelo tecido urbano deveria ser efetuada inclusive nas áreas de expansão. Os lotes seriam subdivididos de acordo com as necessidades, jardins seriam dispostos no interior das quadras, ruas seriam interrompidas, enquanto outras seriam criadas nos interiores dos quarteirões.

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Figura 1 - Quarteirões salubres e vielas sanitárias. In Brito, Saneamento de Recife: Descrip- ção e Relatórios Recife: Typo- graphia da Imprensa Official, 1917: Estampas II e III.

Tudo isto romperia com a monotonia do traçado reticulado, pro-duzindo um resultado inusitado e de grande

interesse estético, para os padrões da época (Figura 2). Brito estabelece alguns tipos básicos de quarteirões, chegando a criticar algumas das disposições por terem um traçado demasiadamente artístico (como a número 5) e afirmando que os tipos mais tradicionais (números 7 a 11) são, na realidade, os que melhor atendem às necessidades do esgotamento sanitário, embora reconheça sua monotonia. Para o futuro, Brito considerou a liberdade dos urbanistas de agirem segundo as novas necessidades modificando estes desenhos, desde que não alterem as linhas gerais do conjunto e nem o traçado sanitário (Brito, op. cit. A 27).

Um aspecto preocupante nos rígidos tabuleiros era o elevado número de cruzamentos, que poderiam ser diminuídos ou reestruturados. Brito, evidenciando forte influência de Sitte, organizou sugestões que rompem com a monotonia e o rigor e evitam longas retas, como as modificações de cruzamentos (Brito, op. cit.:52-53) (Figura 3).

Outra contribuição importante de Brito são as avenidas de fundo de vale, ou avenidas-parque, que, de acordo com seus princípios sanitários, iriam drenar áreas baixas. Nestas avenidas seriam dispostos canteiros generosos, onde seriam locados edifícios públicos, escolas, bosques e equipamentos esportivos, com nítida influência das cidades-jardins inglesas, como o exemplo da Avenida da Barra de Santos (Figura 4). Outra preocupação constante em Brito, contrariando as intervenções da Rélle Époque, era cortar as grandes perspectivas das avenidas muito longas em linhas retas através de vários artifícios, embora pudesse ocorrer em vias de menor importância:

"Não nos esqueçamos iguahnente que para interceptar o horizonte das ruas, os meios mais simples consistem em colocar praças nos cruzamentos das ruas, ou então gramar e plantar árvores em uma metade da rua, e isto será assimetricamente disposto em vários locais do plano geral." (Brito, 1944a: 127.)

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Figura 2 - Vielas sanitárias em áreas de expansão. In Brito, Obras completas, vol . XX: Urbanismo Estudos diversos. Kio de Janeiro: INL/lmprensa Nacional, 1944:52-53, 59-61.

Figura 3 - Tratamento dos cruzamentos e mterceptação de retas longas In Brito, Obras completas, vol. XX: Urbanismo — Estudos diversos. Rio de Janeiro: 1NL7 Imprensa Nacional, 1944:52-53, 59-61.

Tais recursos também po-deriam ser posteriormente utilizados em planos já efetiva-dos por outros town planners, concedendo modificações interessantes no desenho urbano, em que algumas ruas seriam fechadas, outras abertas e outras ainda arborizadas (Figura 5). Da mesma maneira, esses elementos poderiam ser adaptados, dentro de um traçado sinuoso, aos planos em terrenos acidentados nos quais, no entanto, fazia-se necessário uma

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Figura 5 Traçado reticulado em terrenos planos para áreas de expansão. In Brito. Obras completas vol XX: Urbanismo — Estudos diversos. Rio de Janeiro: INL/Imprensa Nacional. 1944 131

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cautela maior com as inclinações e o esgotamento, apesar de garantirem resultado bem mais dinâmico (Figura 6).

Figura 4 - Avenida da Barra em Santos. In Brito, Obras completas, vol. XX: Urbanismo — Estudos diversos. Rio de Janeiro: INL/Imprensa Nacional,1944:55-56.

As contribuições de Brito para o espaço urbano foram muito ricas e anteciparam muitas propostas posteriores. No lugar da cidade colonial com seus lotes estreitos e compridos Brito propõe uma nova imagem urbana, uma imagem efetivamente moderna. Além disso, esta imagem moderna desviava-se do modelo racionalista aportado no Brasil alguns anos mais tarde.

E importante frisar, mais uma vez, que todas estas intervenções, para Brito, não poderiam estar de forma alguma desligadas do esquema sanitário.

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A legislação enquanto instrumento normativo

A legislação, para Brito, configurava-se como um instrumento para facilitar aos governos a realização das obras e garantir o êxito do plano urbanístico, desde pequenos detalhes de saneamento até grandes ordenações sobre os planos de conjunto. Hste assunto, bastante amplo, terá análise superficial devido à impossibilidade de ser completamente abordado em tão pouco espaço. Os procedimentos legislativos por si só merecem estudo bem mais aprofundado em outra oportunidade.

Figura 6 - Traçado irregular em terrenos acidentados para áreas de expansão. In Brito, Obras completas. vol. XX: Urbanismo — Estudos diversos. Rio de Janeiro: INL/Imprensa Nacional. 1944:134.

É necessário criar leis que tornem os planos “d'cu- semble” um dever obriga-tório, regulando seu ritmo e execução. Devem ainda indicar definições precisas entre os diferentes órgãos e instâncias públicas, de pre-ferência atribuindo, na medida do possível, maiores poderes ao governo em detrimento das administrações municipais que, segundo Brito, sofrem interferências de grupos políticos locais com interesses especulativos (Brito, 1944a:77). Assim, era preciso criar uma legislação especial para o desenvolvimento das cidades antigas e para a formação de novas que deveria:

"1) estabelecer um programa de estudos dos planos de conjunto. 2) tornar obrigatório estes estudos e a execução progressiva dos planos aprovados, 3) designar poderes competentes para fazer realizar estes estudos, para aprovar ou modificar e para executar os projetos 4) garantir a execução dos projetos, conciliando os interesses de proprietários e os interesses públicos." (Brito, op cit :72.)

Hssas leis consubstanciaram todo um aparato jurídico para a confecção dos planos, inclusive criando comissões responsáveis pela implantação do plano. A legislação, neste sentido, assumia um papel fundamental no que se refere a inibir a ambição de proprietários de ocupar áreas públicas:

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"Erguer um plano para a extensão de uma cidade e não ter os meios de impedir os proprietários de construir precisamente nos terrenos destinados às ruas, parques e praças, é fazer um projeto inútil que não poderá ser realizado, visto que cada um poderá modificar â sua guisa." (íbidem.)

Brito possuía, para a época, impressionante compreensão da dinâmica da produção do espaço urbano: ação dos agentes, processo de valorização da terra urbana, especulação imobiliária, etc. Tal compreensão lhe conferia o entendimento das amplas possibilidades do processo legislativo para a resolução dos problemas urbanos, o que o conduz a buscar, inclusive, a colaboração dos proprietários em prol de interesses coletivos:

"Para remover as dificuldades de várias ordens[...] serão precisas leis razoáveis, claras e de pronta execução; para conseguir a'colaboração dos proprietários, serão precisas outras leis, igualmente razoáveis e eqiiitativas, além de acordos, no ponto de vista do interesse público, entre os interessados e os chefes de serviço, ou os governos municipais." (Brito, 1943:114.)

Brito propôs mecanismos mais aperfeiçoados de desapropriação, isenção de impostos para certas ações profiláticas dos proprietários e contribuição de melhoria (Brito, op. cit.: 128-129). Brito estava sempre atento ao desenvolvimento das legislações urbanísticas européias, principalmente a francesa, estatista e intervencionista, porém sempre procurando adaptá-las às especificidades brasileiras.

Esse aparato legislativo desenvolveu-se também para pequenas questões, como detalhes da manutenção da salubridade na casa. Aqui, desaparece o teor conciliatório, e o poder da engenharia sanitária mostra sua outra face, assumindo contornos mais amplos. No Plano de Saneamento do Recife, por exemplo, é proposto o Cadastro Sanitário Municipal, que consistia na seguinte idéia: todos os proprietários de imóveis que fossem construir ou reformar seriam obrigados a apresentar a planta na seção de esgotos da Repartição de Saneamento. Este órgão julgava o projeto, indicando modificações necessárias para satisfazer o número e a disposição correta dos aparelhos sanitários, as condições de iluminação e ventilação dos compartimentos.

O regulamento proposto para a Repartição de Saneamento (Brito, 1917:121- 206) é pródigo em normas disciplinadoras: disposições das instalações sanitárias, das plantas dos edifícios, das especificações técnicas sobre o número de latrinas necessárias, tipo de material a serutilizado, características da ligação dos esgotos domiciliares com a rua, etc.

E impossível não mencionar aqui o caráter autoritário que a repartição assumira. As obras ainda teriam de ser por funcionários da repartição executadas à custa dos proprietários. Até pequenos serviços, como limpeza e substituição de sifões, consertos de bóias e descargas, só seriam permitidos com autorização da repartição e deveriam ser efetuados por funcionários ou por técnicos credenciados. O regulamento evidencia um marco no processo de regulamentação e controle do poder local sobre o espaço urbano e pode ser

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visto como um instrumento efetivamente de planejamento urbanístico.Sanear as casas e os quarteirões

Com o objetivo de contribuir para a salubridade da cidade, Brito extrapola a dimensão urbana e passa a intervir no âmbito da arquitetura, na disposição das plantas e da implantação do edifício no interior dos lotes, pois não adiantava nada, segundo ele, fazer magníficos planos de saneamento se as casas e os edifícios continuavam insalubres, “se a casa doentia faz os moradores doentes, e não há drogas que curem estes sem que seja aquela previamente curada, isto é, saneada” (Brito, op. cit.:46).

Para sanear um prédio não basta apenas que sejam fornecidos água e esgoto. É preciso atentar para a planta e sua disposição no lote para se conseguir boa iluminação e ventilação natural, principalmente no caso dos quartos e dos banheiros. Se o edifício não obedece a esses preceitos, deve ser derrubado:

"Se isto não se puder conscpuir nos estreitos e compridos prédios antigos, de vários pavimentos, infestados de alcovas — esses prédios devem ser condenados por insalubridade — são casas assassinas ” (Brito, op. cit/Al).É necessário, portanto, reverter tal quadro, abrindo a casa à luz do sol

vivificadora:"É preciso melhor dispor as construções, de modo que o efeito benéfico do sol e dos ventos se exerça no interior de todos os compartimentos, principalmente dos quartos" (Brito, op. 45).Os instrumentos primordiais para garantir níveis de salubridade aceitáveis na

cidade são, como foi visto, os instrumentos legislativos. Na prática, nas cidades brasileiras, argumenta Brito, as posturas geralmente não dispõem satisfatoriamente sobre o problema da habitação insalubre e, quando o abordam, são constantemente desrespeitadas (ibidem). É preciso reorganizar o sistema legislativo neste aspecto, considerando-se leis que favoreçam a construção de prédios novos em detrimento do aproveitamento dos antigos, após serem dotados de fachadas novas (ibidem, 1943:122; 1944a:77). Neste sentido, as novas leis devem prescrever a determinação de certas relações: entre a largura do prédio e a sua capacidade para habitação, entre a área edificada e a área livre, entre áreas e pátios internos. Devem regular também as dimensões mínimas obrigatórias dos compartimentos e as posições dos quartos de dormir nos pavimentos inferiores dos sobrados (Brito, 1917:45-48).

O problema básico detectado em todos esses casos é a necessidade de a luz do sol penetrar no aposento. Esta, aliada à ventilação, foi a preocupação principal de Saturnino. Neste sentido, ele propôs posturas que regulamentem e revertam tal tipo de ordenação espacial:

"Os pátios devem ser abertos, denteando a fachada da ma ou a dos fundos; os prédios devem ser pouco extensos e suficientemente largos; os novos lotes de terreno edificável devem ter a largura mínima cie 8 metros, na cidade e 10 metros nos arrabaldes; ficará sempre um espaço livre

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de 2 meiros a um lado do prédio a edificar fora do perímetro central da cidade; assim, todos os compartimentos, especialmente os de dormida, receberão luz direta e ar puro." (Brito, op: ní.:51)

Além destas modernas concepções de urbanismo, Brito lançou ainda a proposta dos afastamentos progressivos do edifício em relação à rua, à medida que se elevam os pavimentos, proposta esta que se efetivou posteriormente em algumas cidades dos EUA (Brito, 1944a:82-84). Desta forma, procurou garantir iluminação para os andares mais baixos do edifício. As opiniões se tomaram mais interessantes na medida em que ele as ampliou em relação ao quarteirão e ao bairro:

"Os pátios seriam realmente úteis se todas as casas do quarteirão obedecessem a um plano harmônico, de modo que se estabelecesse a continuidade do espaço livre, transversal mente aos prédios contíguos, sem embaraço à livre circulação do ar, de rua a rua," (Brito, 1917:50.)A vontade de colaborar para aumentar o nível de salubridade das cidades e o

seu ímpeto de classificar, organizar e ensinar conduziram Brito a elaborar tipos de projetos modernos de habitações, constituindo modelos a serem copiados. Observa-se, portanto, que as propostas de Brito estão inseridas no movimento geral que rompia a relação entre o edifício e o lote existente desde os tempos coloniais. As novas exigências higiênicas levariam à adoção dos recuos, que proporcionariam o isolamento das moradias no terreno e a ruptura da continuidade do tecido colonial, impondo uma nova imagem urbana (Andrade, 1991:7).Competências sobre a cidade e o novo profissional do urbano

Brito não poderia deixar de tecer considerações sobre os diversos saberes que procuravam justapor-se na cidade. As grandes operações de redesenho urbano da época, as reformas urbanas ao modelo Pereira Passos eram criticadas por Brito, que sustentava que de nada adiantava intervir com obras pontuais, superficiais, externas, pois “os alargamentos das ruas[...] conservam os imundos fundos das casas anti-higiênicas" (Brito, 1944a:42; 1943:105).

Entretanto suas críticas mais pesadas voltaram-se para os higienistas. Saturnino criticava duramente esta forma de atuação, alegando que a matança de mosquitos e ratos e as “aparatosas e terroristas práticas de doutrinas” apenas criavam a ilusão de a cidade estar saneada:

"No Rio dc Janeiro não tem-se hesitado invadir os lares, contra as vontade dos chefes das famílias, para desinfecções e fumigações, sacrificando algumas vidas doentes; não se hesitou impor pela força, à bala, a lei iníqua da vacinação obrigatória. Era o império da higiene agressiva.” (Brito, 1943:107.)Para Brito, partidário do positivismo do Apostolado, que combatia

incondicionalmente tais práticas, a situação só seria resolvida com o correto

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saneamento das casas e das ruas, implantado através de plano criterioso, bem definido e sensato.

As críticas ultrapassaram este nível e passaram a remeter-se ao campo profissional. Observamos em Brito uma notável autovalorização profissional que absolutizava a importância do saber do engenheiro sanitário frente às outras profissões que também tinham como campo de ação o espaço urbano. Os médicos, por exemplo, autores das intervenções acima citadas que Brito execrava, são duramente criticados por não perceberem que de nada adianta combater as moléstias através de práticas profiláticas policiais se não há o menor cuidado com o ambiente insalubre e com as instalações domiciliares. Brito defende contra este higienismo despótico um higienismo pedagógico, educativo e moderado (Brito, 1944e:43-44; Andrade, 1992:238).

Quanto aos arquitetos, Brito endossa a opinião de um sanitarista inglês que colocava que o defeito principal do arquiteto era é colocar a arte em primeiro plano, ocupando-se mais da fachada do que da utilidade e da salubridade do edifício. A critica de Brito embasava-se no fato de não considerar este corpo profissional capacitado para atuar com a questão sanitária e, consequentemente, urbana:

"... nas cidades eüropéias geralmente se pensa que compete ao arquiteio projetar as instalações de águas e esgotos nos prédios. Atribui-se-lhe uma competência que de fato ainda não tem [grifo nosso], O arquiteto preocupado com a estética das fachadas e com a satisfação às tnjuçõcs dos proprietários julga de somenos a importância à questão sanitária." (Brito, 1917:320.)Na realidade, a discussão se remete à questão de se a cidade deveria ser

objeto de atuação do técnico ou do artista. Enquanto Camillo Sitte entendia o plano de uma cidade como concepção do artista, um indivíduo isolado, Brito, em vista das considerações aqui efetuadas, apenas admitia o plano efetuado por um corpo de técnicos especializados. As preferências de Brito recaem claramente sobre o técnico, julgado mais apto, justamente por ser a questão sanitária o eixo do plano urbanístico:

“O L'homme de Cart raramente será competente para agir, estando sempre preso sob a dependência direta ou indireta da influência pessoal do governo locai e de seus eleitores" (Brito, 1944a:66).No entanto, como já foi observado neste texto, com a sua preocupação em

preservar locais pinturescos e de evitar a monotonia do plano em “xadrez”, Brito nunca abandona a dimensão estética da cidade. Ao contrário, ele procura resgatá-la sem, contudo, perder em termos de funcionalidade. Assim, o “artista” não seria completamente renegado, pois desempenharia o papel, ainda que acessório, de “consultor” do aspecto estético da cidade, um aspecto menor frente à cidade como “mecanismo funcionante”, chamado a intervir sempre que necessário (Brito, op. cit.\70).

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Observa-se, portanto, no decorrer da obra de Brito, um processo de elevação da auto-estima profissional que procura evidenciar a importância do saber do engenheiro sanitário em detrimento dos outros profissionais. O seu papel é essencial na elaboração dos planos, pois ele utiliza os aperfeiçoamentos técnicos modernos:

"É necessário que o público se convença do fato que o engenheiro tem, nos planos de conjunto de nossa vida moderna um papel infiniiamente vasto e crescente, e que, nos estudos dos planos de cidades, ele ocupa uma posição indispensável." (tbidem.)Em certos momentos permite entrever que apenas o seu corpo profissional é

o único apto a intervir na cidade, pois desempenha a “missão superior de dirigir e aproveitar os recursos da natureza para o uso e as conveniências do homem" (Brito, 1943:113).

Mas Brito reconhece que a técnica do engenheiro apenas é insuficiente para desenhar o profissional que vai planejar a cidade. Brito renega a ideologia positivista de subordinar a arte à técnica e reconhece que é preciso uma conciliação entre o técnico e o artista, que desenharia o novo profissional, o town planner, um engenheiro com sentimento artístico.

H*

A concepção globalizante de cidade, a sólida formação científica, a metodologia de planejamento, a fundamentação e organização para efetuar planos de extensão, a busca da conciliação entre a arte e a técnica, a importância que confere ao traçado sanitário como determinante das linhas mestras do plano urbanístico são elementos constantes na obra de Brito, os quais são pioneiros no sentido de consubstanciarem uma metodologia de planejamento urbano como técnica especializada e apoiada em preceitos científicos.

A obra do engenheiro Francisco Rodrigues Saturnino de Brito constitui efetivamente um marco na estruturação do urbanismo moderno brasileiro. Saturnino de Brito propôs uma nova estética urbana para as cidades brasileiras, saneando-as, embelezando-as e modemizando-as, sem recorrer aos moldes haussmannianos e pensando a cidade em sua totalidade e em sua expansão. Brito esteve sempre atento ao debate do nascente urbanismo que se desenrolava na Europa e pode ser considerado um precursor no que se refere à recepção, introdução e difusão dessas idéias no Brasil. Suas concepções, claramente modernas, porém, não iriam se filiar ao urbanismo racionalista corbusiano que aqui viria a se desenvolver alguns anos mais tarde, justamente por comportar uma visão peculiar que não se amoldava aos rígidos quadros daquele movimento.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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