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1 Ana Cristina Rodrigues

Anacrônicas - Contos mágicos & trágicos

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os© Ana Cristina Rodrigues© Estevão Ribeiro© Aquário Editorial

Autora: Ana Cristina RodriguesProjeto gráfico e ilustrações: Estevão Ribeiro

Aquário Produções Editoriais EIRELI – MERua Antônio Cordeiro, nº 492 – JacarepaguáCEP 22750-310 – Rio de Janeiro/RJTel.: 021 2610-8043contato@aquarioeditorial.com.brwww.aquarioeditorial.com.br

R696a

Rodrigues, Ana CristinaAnacrônicas – Contos mágicos & Trágicos / Ana Cristina Rodrigues; ilustrado por Estevão Ribeiro. – Rio de Janeiro: Aquário, 2014.

ISBN: 978-85-68766-01-9

1. Literatura brasileira – Contos. 2. Literatura fantástica – Contos. I. Ribeiro, Estevão. II. Título.

CDD-869.93

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“Histórias até podem ser mentiras, mas são mentiras boas, que dizem coisas verdadeiras.”

Neil Gaiman

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Apresentação

O livro que você agora tem nas mãos reúne uma parte da minha produção entre 2009 e 2014 – além de trazer alguns antigos favoritos. Minha primeira intenção era colocar tudo, mas fiquei surpresa com o tanto que produzi nesse período. Então, antes de mais nada, defini que aqui estariam apenas os contos de fantasia. A minha ficção científica ficou de fora, quem sabe para um próximo volume.

Escolhi histórias que acho representativas do meu estilo, dos meus gostos e dos temas que curto. Há pequenas crônicas que misturam o real e o fantástico, como “O mapa para a Terra das Fadas”, “Campeonato de beijar sapos” e “Sono de beleza”. Trouxe de volta as histórias que resgatam outros textos, como “A dama de Shalott”, herdado de um poema de Tennyson, e “É tarde!”, uma lembrança de Lewis Carroll. Há exemplos do meu trabalho com mitologia, como “Queda e Paz”, em que brinco com a mitologia cristã; “A princesa de toda a dor”, no qual me arrisquei nos nossos mitos indígenas; “Como nos tornamos fogo”, que usa elementos da alquimia, e “Lenda do deserto”, onde resgatei elementos da Arábia pré-islâmica.

Pequenas alegorias também estão presentes como “Deus embaralha, o Destino corta”, “Vida na estante”,

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os“A casa do Escudo Azul” e “Viagem à terra das ilusões perdidas” – todos resgatados do primeiro Anacrônicas.

Você, querido leitor, vai reparar no meu gosto por fantasia histórica de diferentes formas, tipos e tamanhos. Sou historiadora de formação e completamente apaixonada pelo passado, esse país estrangeiro. “Mudanças”, “A morte do Temerário”, “A vila na areia”, “Maria e a fada”, “Carta a monsenhor”, “A menina do Val de Grifos” e “Os olhos de Joana” são os que eu escolhi para estarem aqui, entre os muitos contos que escrevi usando a História como matéria-prima.

“O ensurdecedor silêncio dos deuses”, “O longo caminho de volta” e “O Ladrão-de-Sonhos” são, por incrível que pareça, parte do mesmo universo ficcional. Por enquanto, fica assim, mas espero que um dia você descubra mais sobre ele.

Sinceramente, espero que você goste. Sempre gostei de escrever e é muito bom poder compartilhar isso.

Se não gostar, a culpa é toda do meu marido, Estevão Ribeiro, que me apoiou desde sempre, que me incentivou a publicar este segundo volume de contos, do jeito que fez com o primeiro.

E é por isso que o dedico a ele.

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Apresentação

O mapa para a Terra das FadasAnacrônicas, 2009

Campeonato de beijar saposCrônicas da Fantasia, 2012

Deus embaralha, o Destino cortaAnacrônicas, 2009

Queda e paz

A Casa do Escudo AzulAnacrônicas, 2009

A morte do TemerárioEspelhos Irreais, 2009

Lenda do DesertoAnacrônicas, 2009

Mudanças

A princesa de toda a dorAnacrônicas, 2009

Sumário7

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A vila na areia

Como nos tornamos fogoAnacrônicas, 2009

Viagem à terra das ilusões perdidasAnacrônicas, 2009

Maria e a fadaImaginários 3, 2010

O Ladrão-de-SonhosFábrica dos Sonhos, 2014

Sono de belezaQuotidianos, 2014

O eremitaAnacrônicas, 2009

Carta a monsenhorParadigmas 2, 2009

O longo caminho de voltaCidades Indizíveis, 2011

Vida na estanteAnacrônicas, 2009

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A menina do Val de GrifosBestiário, 2012

Os olhos de JoanaAnacrônicas, 2009

O ensurdecedor silêncio dos deusesArte e Letra, 2014

“É tarde!”Anacrônicas, 2009

A dama de ShalottAnacrônicas, 2009

Reflexões e agradecimentos

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O mapa da Terra das Fadas

Para Nugu, o Selvagem

Março-novembro/2006.Uma vida curta, mas plena

O menino chorava, desconsolado com a morte do coelhinho. O corpo, coberto com o pelo branco macio, estava ali, no lugar em que encerrara a sua curta vida de roedor despreocupado. Morrera de nada, de mansinho. Até mesmo a vira-lata, inimiga ferrenha e perseguidora implacável, parecia entristecida. Deitada, o nariz entre as patas, de vez em quando soltava um bufar, como se suspirasse.

A mãe fez eco com a cachorrinha. Estava cansada da cena. Compreendia a tristeza do menino, mas o que podia fazer?

- Anda, Miguel. É assim que a vida é... Os bichinhos morrem. Mamãe vai arranjar outro pra você.

Os olhos baixos, Miguel respondeu.- Você não entende, mãe... O Nugu era o mais especial

dos coelhos. Ele era...

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osA mãe ajoelhou-se pra ficar perto do rosto do menino.- Ele era o que, amor?Ergueu a cabeça, os olhos brilhando, das lágrimas e

pelas lembranças.- Era mágico! Esqueceu? Era amigo das fadas, você

mesma contou...A mãe deu um sorriso breve e afagou os cabelos

castanhos.- Então, ele deve estar bem... Provavelmente, está indo

para a Terra das Fadas...As lágrimas voltaram a brilhar.- E se ele não souber o caminho? Ele pode se perder...

Mãe...Ela respondeu distraída, já pensando no que fazer com

fazer com o corpo do animal.- O quê?- Você não é bruxa? Poderia ajudar o Nugu... Fazer

um mapa.A proposta a pegou de surpresa. Sim, ela era “bruxa”,

no sentido que adorava antigos deuses, fazia rituais para celebrar a mudança nas estações do ano e buscava conhecimentos mágicos. Mas tinha pouca, senão nenhuma, familiaridade com fadas.

- Mas como eu vou fazer isso, Guel?Um sorriso brilhou, com a confiança que as crianças

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ristina Rodriguesmais pequenas tem na infalibilidade dos pais.

- Fazendo, ué. Você é a mãe bruxa mais poderosa de todo o Universo...

Tentando acalmar o filho – e diminuir a própria tristeza, afinal ela própria iria sentir falta do coelho – sentou-se no chão.

- Vem aqui, querido – ela observou Nugu, que estava deitado. Parecia estar fingindo, como tantas vezes fizera para enganar Phoebe, a cachorra malhada. Ela aproximava-se, confiante de que finalmente o pegaria, para ganhar uma patada no focinho quando ele se erguia correndo para se esconder. Parecendo lembrar disso, a vira-lata levantou os olhos. Quem sabe não era mais um truque?

Ana sorriu, pois descobrira uma maneira de ajudar o filho a passar pela dor do luto.

- Vamos lá... Do que é feita a Terra das Fadas?Ele nem piscou para responder.- De coisas doces!- E que coisas doces temos aqui?Dessa vez, ele precisou de um tempo para responder.- As goiabas, mãe?Sorriso aberto, ela assentiu, concordando. Miguel

disparou pelo quintal, na direção da árvore mirrada. Eles tinham sorte por conseguirem morar em um lugar onde pudessem ter uma árvore, bem no meio da cidade. O

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osmenino esticou os braços sob o olhar atento da mãe.

- Isso mesmo, filhote. Pegue aquela que está no galho mais baixo... Assim... Agora, traga aqui.

Ele voltou sorridente, a blusa coberta de poeira e folhas que caíram quando puxou a goiaba. A fruta foi colocada bem defronte ao focinho do coelho.

- Muito bem, e sabe o que mais tem na Terra das Fadas?

- Cores!!! Muitas cores! – ele não hesitou, cada vez mais confiante. A mãe não precisou dizer mais nada, pois o pequeno correu para colher algumas flores, acompanhado por Phoebe. Nugu, o Selvagem – como a mãe o chamava – devastara o pequeno quintal com seu apetite insaciável. Sobraram a goiabeira, a videira, um pé de acerola, muitas marias-sem-vergonha e flores rasteiras. Miguel voltou com as mãozinhas cheias de cores: vermelhas, amarelas, brancas, roxas, azuis. Uma boa coleção para indicar o caminho. Sem esperar ordem posterior, arrumou-as ao redor do bichinho com cuidado.

- Falta alguma coisa?A mãe sorriu.- Falta um pouco de esperança. Sem isso, como o Nugu

vai achar o caminho?Miguel baixou os olhos e encolheu os ombros, desolado.- Mas mãe... Como a gente vai arrumar esperança?Ela pareceu ficar pensativa.

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ristina Rodrigues- Bom, a cor que representa a esperança é verde...Ela nem precisou terminar, pois ele deu um salto

imediatamente.- E as folhas são verdes! Eu vou usar as do pé-de-uva,

porque eram as que o Nugu mais gostava e não conseguia alcançar.

A mãe conteve um arrepio ao vê-lo subir no banquinho de concreto para pegar folhas de parreira. Ele voltou com um punhado nas mãos, que entregou muito sério.

- Eu vou arrumá-las na direção da Terra das Fadas. Você sabe onde fica?

O menino apontou para o sol poente. Ela colocou-as em fila, saindo das patinhas da frente até quase a escada que descia para a casa onde moravam.

- Agora, vamos fechar os olhos e pensar em coisas boas...

- Eu já sei no que eu vou pensar, mãe. Vou imaginar o Nugu correndo na Terra das Fadas!

Os dois deram-se as mãos. Ana começou a pensar também, desejando que o bichinho estivesse bem, onde quer que fosse.

Um vento frio bateu, vindo do nascente para o poente. Ela abriu os olhos. Viu que Miguel batia palmas e sorria, enquanto Phoebe latia alucinada.

Um pequeno rodamoinho erguera as flores e folhas, que agora agitavam-se no ar.

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os- Olha, mãe, as fadas, elas vieram buscar o Nugu!A cachorra parecia concordar, latindo e correndo,

como se acenasse um adeus. Ana olhou para a mistura de cores a sua frente. Não tinha a pureza de seu filho ou da vira-lata, mas via borboletas no meio das pétalas.

E tufos de algodão, brancos e macios como pelo de coelho, também giravam alegremente. O rodamoinho avançou, envolvendo-a. Ela ouviu o som de gargalhadas alegres e pareceu sentir, pela última vez, o calor do coelho, que tantas vezes aninhara no colo.

Uma lufada mais forte e o pequeno tufão continuou sua jornada para o sol que terminava de se pôr. Phoebe deitou-se, quase tão esbaforida e exausta quanto Miguel, sentado ao seu lado.

Ana deu uma última olhada no corpo e de repente ele não parecia mais tão vivo quanto antes.

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Campeonato de beijar sapos

Toda mulher tem aquela amiga insuporta-velmente carente, que, se ficar duas semanas solteira arranca cabelos, se desespera e fica convencida de que jamais achará aquele Alguém Especial. No meu caso, ela se chama Dani e sempre foi uma das minhas melhores amigas. Pelo menos, enquanto eu era uma mulher solteira e disponível para acompanhá-la na caça ao namorido ideal – ou na deprê de não tê-lo conseguido.

Só que eu me formei, casei e tive um filho (não necessariamente nessa ordem, mas foi). Ou seja, eu tenho uma vida. A Dani, obcecada com a ideia de que mulheres só são felizes com uma contraparte masculina do lado, ainda não tinha conseguido a sua. Sim, milhares de sutiãs queimados e ainda temos mulheres pensando assim.

Claro que nos afastamos, não por escolha dela – que

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osme ligava todo final de semana e xingava o coitado do meu marido sempre que eu recusava seus convites para a ‘balada’. Ele nunca me proibiu de sair ou coisa do tipo, mas era usado como desculpa. Sério, depois que você se forma, passa a cuidar de uma casa e de uma família, trabalhando fora ainda por cima, o final de semana se torna o repouso sagrado semanal pelo qual se espera durante cinco dias.

Só que em um sábado, até mesmo o Estevão se irritou e me pediu para aceitar o convite. A ideia dele era que saindo com ela uma vez, teríamos sossego por uns meses. Resignada, aceitei o pedido e atendi o telefone com a voz mais animada que consegui fingir.

Como resultado, passei três horas sentada em uma cadeira desconfortável, tentando não morrer de alergia no meio da nuvem de cigarro ao meu redor. Enquanto isso, Dani usava incessantemente o garçom para levar torpedinhos aos rapazes promissores do bar. Em todo aquele tempo, ela recebeu três respostas, nenhuma positiva. Eu já estava tendo dificuldades para manter a animação fingida quando alguém sentou do meu lado, na frente da Dani.

- Olá, meninas, buscando diversão?Olha, não sou de me interessar pelo meu próprio

gênero mas por aquela mulher poderia até considerar a possibilidade. Seriamente. Ela era alta, ruiva natural com olhos verdes e com a pele muito branca, um corpão de pin up. A presença dela fazia Dani, magrinha, morena de olhos e cabelos castanhos, sumir. E eu só tinha a agradecer o fato de estar casada – e o meu marido longe dali!

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ristina Rodrigues- Moça, desculpa...Antes que conseguisse completar a frase e dispensar a

aparição, Dani gritou.- Mas é claro! Esse lugar está muito parado, os homens

não se mexem!As pessoas ao redor – na maioria, homens que tinham

recebido bilhetinhos da minha amiga – nos olharam feio. Dani não se importou, a mulher misteriosa fez que não viu. Eu fiz cara de paisagem e fiquei olhando para o teto.

Quando Dani se acalmou, a moça terminou de falar.- Meu nome é Iara e conheço um lugar perto daqui

que é sensacional. Só tem gato, a música é boa e bebidas são em dose dupla.

Dani já estava se levantando quando eu fiz cara de ‘não’. As duas me olharam, Dani furiosa e a tal Iara sorrindo. Que bom que ela estava achando a situação divertida...

- Ana, você prometeu que ia sair comigo!- E já sai, né? Passei um tempão contigo aqui nesse bar

enfumaçado! Passou da minha hora de ir pra casa.Ela só ficou mais furiosa e a desconhecida estava quase

soltando uma gargalhada. Resignada, peguei o celular e mandei um torpedo pro Estevão. No carro de Dani, as duas novas amigas foram na frente, trocando ideias animadíssimas sobre o lugar que iriamos conhecer. No banco de trás, eu praticamente morria de tédio.

- Ei, mulher-emburrada, chegamos!A voz, bastante musical, da Iara me tirou de um devaneio

sobre estar em casa assistindo TV. Olhei pela janela do

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oscarro e vi um barracão de madeira iluminadíssimo, com luzes de cores diferentes por todos os lados. Um letreiro em néon rosa berrante dizia FrogPond.

- Nossa, adorei a atmosfera do lugar! – Dani já tinha saído do carro, sem sequer esperar pela Iara, que estava parada do lado do veículo, esperando por mim. Com um suspiro, me conformei em me juntar a elas.

Se eu estava achando o bar enfumaçado, o FrogPond era mil vezes pior. Era uma neblina de gelo seco e fumaça de cigarro que mal deixava ver os demais ocupantes do lugar. Tossindo, segui as duas sombras na minha frente e quase as derrubei quando pararam de repente.

- Vamos ficar por aqui, é bem perto do palco.- Palco? Tem... música ao vivo? – meu coração quase

parou de bater.- Não! É para o campeonato! – O meu alívio só não

superou a curiosidade da minha amiga.- Campeonato? De que?- De beijar sapos! O organizador escolhe os caras mais

gatos daqui e uma voluntária sobe lá. Ela tem que beijar tooooodos e decidir qual deles é o príncipe.

Eu revirei os olhos, Dani deu um gritinho.- Ai, que máximo. Qual o prêmio?- Ora, o príncipe!- Adorei! Vou fazer de tudo para ser a escolhida – Iara

colocou a mão sobre a dela e deu uma piscada.- O gerente é meu amigo, vou ver o que consigo fazer

por você.

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ristina RodriguesDito e feito, meia hora depois, minha amiga estava lá

em cima, radiante. Ventiladores gigantescos expulsaram a fumaça do ambiente que era bem maior do que eu esperava. A luz estava toda concentrada no palco que exibia uma variedade de belezas masculinas para todos os gostos.

Gritos e assovios vinham da plateia enquanto o apresentador falava as regras.

- Legal isso, de darem o nome do lugar por causa do campeonato...

- Não, não é por isso. O nome veio do laguinho que tem aqui do lado de fora, que é cheio de sapos...

- Ah... escuta, o que acontece se a Dani escolher o cara errado?

A gargalhada dela foi um bocado estranha.- Nada demais, afinal o que pode acontecer se você

beijar um sapo no lugar de um príncipe?Eu ri, meio sem graça, e passei a acompanhar os

acontecimentos do concurso. Para minha consternação, Dani beijava cada candidato longamente, com língua e amasso e o que mais você possa imaginar. Bom, se ela não acertasse o príncipe, tinha grandes chances de conquistar um sapo, o que era melhor que nada.

Quando a degustação dos dez candidatos acabou, o apresentador – vestido com um macacão verde – trouxe Dani até a frente do palco e perguntou:

- Agora, querida, nos responda, qual dos dez rapazes é o príncipe?

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os- Fácil, só pode ser o no. 4!O silêncio foi completo depois disso. O apresentador

estalou os dedos e uma pequena explosão ressoou no palco. A fumaça baixou e nem minha amiga nem seu escolhido estavam lá!

- Infelizmente, a voluntária errou! Quem sabe amanhã tenhamos mais sorte!

Antes que eu pudesse reagir, Iara levantou com um suspiro e me puxou pela mão.

- Mais uma noite perdida. Eu achava que dessa vez ia dar certo.

- Como assim? Cadê a Dani?- Estamos a 50 anos tentando achar nosso príncipe,

que foi transformado em sapo e jogado nesse brejo, no meio dos outros. A sua amiga escolheu errado, mas vai viver feliz para sempre com o sapo que escolheu para si.

Virei-me para ir até o palco e resolver isso de alguma forma, mas de repente estava de volta ao bar enfumaçado. Não tinha sinal da Iara ou da Dani em lugar nenhum. Cheguei em casa de táxi e em choque, passei duas semanas encafifada. Aí, ontem, Estevão trouxe da caixa de correio um envelope minúsculo endereçado a mim.

Era da minha amiga, que me mandava um beijo, dizia estar ótima...

E pedia desculpas, mas teríamos que parar de sair aos sábados, pois ela estaria muito ocupada com seus novos girininhos.

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Deus embaralha, o Destino corta.

Sinceramente?Eu duvido que Deus jogue dados com o Universo.Mas sério, ao pensar na minha vida, dá a impressão

que pelo menos um poquerzinho aos sábados à noite rola.Sabe aquele carteado entre amigos, valendo uma caixa

de cerveja barata? Pois é, nem vale doze das mais caras...Só que tudo bem, nem é isso o que mais me irrita.O pior de tudo? Quando finalmente estou feliz,

vem o Destino – jogador viciado, viciante e um bocado trapaceiro – com aquela maldita proposta.

- O dobro ou nada.E é aí que percebo... Além de não saber quando parar,

Deus tem um azar danado com cartas.

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Queda e paz

“E o abismo olhou de volta. Sorriu e te chamou. O que fazer, senão abrir os braços e lançar-se na escuridão que sussurra teu nome? A sensação de frio percorreu os teus membros, quase congelando o corpo inerte, entregue às forças da gravidade. A tudo esquecias, enquanto a vertigem escura te envolvia em braços de sombra gélida.

De quase tudo. Pois ainda havia lembranças.As serpentes dos braços dela, que procuraste em tua

paixão insana, nunca te pareceram tão acolhedoras. O castanho da cor de folhas caídas no chão outonal, que surgia em pequenas poças de claridade nas paredes abissais, só trazia os olhos dela à tua lembrança.

Não é possível para um anjo apaixonar-se. Disseram.Erraram.Mesmo que te apaixones, a escolhida jamais poderá te

ver. Explicaram.Mentiram para ti.E se te vir, serás tão estranho que nunca conseguirá

deixar os preconceitos de lado e amar-te de volta. Justificaram.

Tentaram demover-te.

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osFascinado pela mulher-serpente, aceitaste o banimento

eterno.E pela noite única em que finalmente adquiristes

carne e espírito, unidos em um só, o preço a pagar era este: tornar-se mais uma das estrelas cadentes a adentrar os domínios do Primogênito.

O Abismo cantou maldição, tu olhaste de volta. Foi o prenúncio da tua queda.

O pacto feito, a dor que selava a consumação da carne. Tua. Matéria. A alma que era somente luz e essência transfigurou-se. E seguindo o exemplo do Segundo Filho, que encarnou por amor aos pequenos seres de matéria, tu deixaste de ser fogo, água, ar e terra. Abandonou a casa dos elementos, o lar das hostes angélicas.

Tudo por ter vislumbrado um sorriso, um pequeno momento congelado de alegria. A energia concentrada que eras contraiu-se, em um espasmo mistura de dor e prazer. Era como se o calor daqueles olhos derretesse a parte de ti que era feita de gelo.

E de fogo, viraste carne e sangue, pronto a consumar teu amor absurdo. Sentiste o impacto do teu corpo no ar, a sensação de teu peso, de estar preso, de pisar o solo e ao mesmo tempo perder o chão.

De todas as direções possíveis, conseguiste escolher a única certa para seguir. E assim tu, um dos filhos diletos, parte dos exércitos divinos, rumou feliz em direção à própria ruína.