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Literaturas sobre realismo (4)

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A CONCEPÇÃO DE REALISMO EM GEORGES-HENRI LUQUET1

Maria Lúcia Batezat Duarte2 CAPES/ UDESC

Vários foram os teóricos que no decorrer desses quase cem anos utilizaram

abundantemente os estudos de Luquet referentes ao desenho infantil, mas

igualmente criticaram sua concepção de realismo. Entre eles Rudolf Arnheim

(1954-74), Maurice Merlau-Ponty (1949-52), Florence de Mèredieu (1974) e, no

Brasil, Mário de Andrade (1938). Neste texto não se pretende discutir a

pertinência ou não das críticas realizadas. Importa rever e apresentar a palavra

de Luquet conforme ela é formulada, rever a construção dessa concepção a

partir dos textos reencontrados e lidos. Pretende-se compor assim uma espécie

de mosaico que permita uma aproximação ao seu pensamento, uma vez que

ele é construído metodologicamente, evitando equívocos, enfrentando os

desvios e as contradições.

Entre os anos de 1910 e 1930, Luquet dedica-se especialmente ao estudo

da arte primitiva e pré-histórica, e ao estudo do desenho infantil. Ele constrói o

seu pensamento entretecendo diferentes domínios do conhecimento: a

filosofia, a lógica e a matemática; a psicologia, a antropologia e a educação. Se

os estudos da arte primitiva e pré-histórica permanecem necessariamente

restritos a análise de obras encontradas em museus, coleções particulares ou

reproduções fornecidas em publicações anteriores, o estudo do desenho

infantil é realizado em ato, a partir da observação sistemática do desenhar de

seus filhos, Simonne e Jean Luquet. Não raro, os estudos se entrecruzam

produzindo uma reflexão muito própria a sua época: uma relação entre a

filogenia, o desenvolvimento do ser humano, e a ontogenia, o desenvolvimento

do sujeito. A aprendizagem da criança, o seu debut na cultura e seu

desenvolvimento, são comparados à aprendizagem dos povos compreendidos 1 Texto publicado nos Anais do 16° Encontro Nacional da ANPAP, Florianópolis, UDESC:ANPAP, 2008. p.412-420. 2 Maria Lúcia Batezat Duarte é professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC.

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como primitivos, vistos à época como um testemunho vivo dos primeiros

passos da nossa humanidade e da cultura ocidental. O estudo dos povos

primitivos era o centro de interesse de inúmeros teóricos franceses, fazendo da

antropologia uma área de destaque na pesquisa e nas publicações teóricas.

São especialmente essas fontes que constroem o pensamento de Luquet sobre

a arte e sobre o desenhar infantil.

Entretanto, quando estuda o desenho infantil Luquet o faz elaborando

um método que denomina “método microscópico”:

“ Cette méthode, (...) consiste à mettre en évidence un certain caractère

dans un cas où il est particulièrement net ou comme on dit, un « cas

privilégié » ; puis, ce caractère étant ainsi établi, à le retrouver dans d’autres

cas où il eut échappé si l’attention n’avait été attirée sur lui par sa constatation

dans le cas privilégié. “ (Luquet, 1913, p. XXII). Luquet defende o seu método

de estudo do desenho infantil a partir do desenhar de uma criança (sua filha

Simonne) apontando as lacunas que um método estatístico, apesar de usual

em sua época, necessariamente comporta. Reafirma a importância de fazer um

estudo “monográfico” acompanhando e registrando todas as ações e

verbalizações produzidas pela criança antes, durante e após o ato de

desenhar, mesmo que em um primeiro momento essas observações e

anotações não pareçam propiciar qualquer sentido (Luquet, 1910, p.2).

Analisando a produção de desenhos pré-históricos, primitivos e de

crianças, neste caso especialmente os desenhos de seus dois filhos, Luquet

percebe o desenhar como um ato de representação da realidade. O “realismo”

do desenho é, portanto, uma concepção chave em sua teoria. Importa, então,

tentar precisar qual o sentido do termo “realismo” para Luquet e sob que

oposição ele é construído.

Os realismos em Luquet:

Já em 1910, em seu primeiro texto sobre desenho infantil “Sur les

debuts du dessin enfantin” (Sobre os primórdios do desenho infantil), Luquet

elabora o seu pensamento distinguindo no desenhar infantil um primeiro

momento em que a criança traça linhas no papel meio por imitação à escrita,

um segundo momento no qual ela passa a estabelecer analogias visuais entre

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as linhas grafadas e determinados objetos, e um terceiro momento, em que o

desenhar parece mesmo definido, no qual a criança se esforça para

estabelecer semelhanças entre o seu desenho e um objeto qualquer do seu

cotidiano. Rapidamente, no último parágrafo do texto, ele classifica o desenho

infantil nomeando-o “realismo lógico” em oposição ao termo “realismo visual”

que utiliza para nomear o desenho dos adultos. Ainda que a concepção de

realismo não seja apresentada nesse primeiro texto, a maneira como as idéias

vão sendo formuladas já explicita que Luquet está se referindo à qualidade do

desenho de ser análogo a um objeto do cotidiano, isto é, apresentar os objetos

que o desenhista conhece.

A concepção de realismo começa a ser delineada por oposição a

“idealismo” e “decorativo” na sua tese de doutoramento publicada com o título

“Les dessins d’un enfant” (Os desenhos de uma criança) em 1913. Ao opor

realismo a idealismo, Luquet segue a filosofia da época, mas constrói extensa

e propriamente essas concepções. Penso que busca referências

especialmente em Henri Bergson, seu antigo professor, sutilmente citado em

sua tese de 1913 quanto ao método de pesquisa que ambos empregam.

Diz Luquet sobre o realismo no desenho infantil:

“Tout dessin est la traduction graphique de l’image visuelle que fournirait le motif représenté et même, croyons-nous, d’une image visuelle plus ou moins nette réellement présente dans l’esprit du dessinateur au moment où il dessine, à savoir ce que nous avons appelé le modèle interne. Quoi qu’il en soit au point de vue subjectif, au point de vue objectif le dessin est incontestablement la traduction graphique des caractères visuels de l’objet représenté ; autrement dit, en empruntant aux logiciens le terme de compréhension par lequel ils désignent l’ensemble des caractères d’un objet, le dessin d’un motif peut se définir la traduction graphique de la compréhension visuelle de ce motif. (...) Nous croyons que le souci de l’enfant dans chacun de ses dessins est de lui faire exprimer d’une façon aussi exacte, aussi complète, on pourrait dire aussi littérale que possible la compréhension visuelle de l’objet qu’il représente. Aucun nom ne nous semble mieux exprimer ce caractère que celui de réalisme, et nous dirons que le dessin enfantin est essentiellement et volontairement réaliste.” (Luquet, 1913, p.145.)

A concepção geral de realismo que Luquet apresenta, atrelada ao

conceito de “compreensão” das características gerais do objeto distancia-se

claramente do realismo visual, termo este que o teórico vai utilizar para

nomear, diferenciando especial e exclusivamente, apenas a última fase do

desenho infantil. Quando Luquet utiliza o termo “objeto” refere-se a uma

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categoria mais ou menos geral, como diríamos “mesa” para indicar os móveis

de apoio com quatro pernas e um tampo (e não aquela mesa da minha sala de

jantar). Ele constrói o seu texto atento ao processo do desenhar, diríamos hoje,

atendo aos processos cognitivos que permitem transformar as imagens visuais,

percebidas e memorizadas como categorias de objetos, em um registro gráfico

que as representem como as palavras o fazem. Importa recordar que na base

do pensamento de Luquet encontram-se, também, as suas pesquisas sobre os

grafismos primitivos e suas possíveis relações com a escrita. A citação abaixo

exemplifica o cuidado de Luquet em trabalhar visando à generalidade e/ou à

especificidade da representação gráfica.

“ Comme les représentations en général, le images visuelles dont les dessins sont la traduction graphique sont d’autant plus abstraites qu’elles sont plus générales, puisque la généralisation implique l’élimination ou la neutralisation des caractères distinctifs des individus analogues. Par suite, bien que les dessins correspondant aux images génériques par opposition aux images individuelles consevent des traces saisissables de l’intention réaliste, c’est dans la représentation graphique des images les plus individuelles, les plus spéciales, que le souci du détail aussi fidèle et minutieux que possible sera le plus marqué et le plus manifeste, puisque c’est par ces détails que se caracterise et s’individualise le motif représenté. ”(Luquet, 1913, p.147) Uma concepção de desenho no qual, abstrações, isto é, simplificações,

permitem que a imagem visual possa “corresponder a um número sempre

crescente de objetos concretos” é determinante na tese de Luquet e marca

definitiva das exaustivas observações que ele realiza durante o

acompanhamento das sessões de desenho de seus filhos. A noção de “modelo

interno” é resultado dessas observações, fundamento de sua tese, e das

etapas de desenvolvimento proposta.

Nas palavras de Luquet sua concepção de “modelo interno”:

“A representação do objeto a desenhar, devendo ser traduzida no desenho por linhas que se dirigem à vista, toma necessariamente a forma de uma imagem visual; mas esta imagem nunca é a reprodução servil de qualquer das percepções fornecidas ao desenhista pela observação do objeto ou de um desenho correspondente. É uma refração do objeto a desenhar através do espírito da criança, uma reconstrução original que resulta de uma elaboração muito complicada apesar da sua espontaneidade. O nome modelo interno é destinado a distinguir claramente do objeto ou modelo propriamente dito esta representação mental que traduz o desenho.” (Luquet, 1927-1969, p. 81.)

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O “modelo interno” é, na concepção de Luquet, o exemplar mental que a

criança “copia” quando realiza um desenho de memória, e também aquele que

“copia” mesmo tendo “diante dos olhos” o objeto a ser desenhado. A

característica principal do “modelo interno” é ser conforme “não ao realismo

visual, mas ao realismo intelectual”. (Luquet, 1927-1969, p.82) O modelo

interno apresenta também as características de ser um exemplar típico de uma

categoria de objetos. Nesse processo os aspectos mais típicos do objeto são

registrados graficamente, quer do ponto de vista de seu conjunto ou de seus

pormenores.

Ao elaborar a concepção de “modelo interno”, Luquet descreve um

processo de desenho precedente à construção desse “modelo” e um processo

posterior, de alteração do modelo, que denomina “modificação do tipo” (Luquet,

1927-1969, p.57 e ss). Ele compreende essa imagem que se inscreve na

mente, como resultado de várias tentativas concretas, nas quais a criança

altera e aprimora o seu desenho de determinado objeto até considerá-lo bom e

suficiente. Uma vez satisfeito e estabilizado esse modelo, ele responde por

duas imagens semelhantes: aquela do desenho propriamente dito; e aquela

que se inscreve na mente e sofrerá um processo de “cópia” nos próximos

desenhos a serem realizados do mesmo objeto3. O “modelo interno” é uma

imagem mental intermediária entre o objeto e o desenho. Isto é, o desenho

realizado pela criança passa a ter como recurso básico de execução o “modelo

interno” que lhe apresenta um modo de desenhar esse ou aquele objeto.

Compreende-se, assim, o fato de Luquet afirmar que a criança desenha “o que

sabe” dos objetos, trata-se do resumo mental modelado entre o ver e o

desenhar.

Na concepção de Luquet a representação do objeto único e

determinado, que ele denomina “histórico”, cede lugar, no desenho infantil, a

3 Em outro texto, “A imitação sensório-motora como uma possibilidade de aprendizagem de desenho por crianças cegas” (DUARTE, 2006-B, Relatório CAPES de Estágio de Pós-doutoramento), indico, a partir da psicologia cognitiva e dos estudos de neurologia, que o desenhar envolve também uma imagem motora, memorizada, dos procedimentos (movimentos) necessários à fatura do desenho.

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uma representação gráfica geral de uma categoria de objetos similares

marcada pela abstração4:

“...le dessin ne représentatera plus telle petite fille, mais une petite fille quelconque, ou même um bonhomme sans distinction de sexe ni d’âge;il ne représentera plus notre maison, mais une maison ; plus une marguerite ou un rosier, mais une fleur, etc. ” (Luquet, 1913, p. 148)

Luquet chama atenção para o fato de que essas distinções podem surgir

de modo bem atenuado nos desenhos e que é mesmo impossível de posse

apenas do desenho determinar se a criança realmente viu a cena desenhada

no momento mesmo que a desenhou. Essa observação reafirma a importância

dos registros realizados durante o ato de desenhar das crianças, único modo

de poder precisar suas intenções e o momento vivenciado.

O entrelaçamento entre desenho e relato verbal que caracteriza a

pesquisa de Luquet assim como a faixa etária na qual ele centraliza a sua

etapa de obtenção de dados (entre os três e os oito anos de idade) fez com

que ele desacreditasse no caráter “esquemático” do desenho infantil ainda que

identificasse a generalização do traçado como característica central. Se para

Luquet a configuração do desenho é realizada a partir das características

formais gerais de uma categoria, esse fato não impede que o objeto seja

considerado “real” à experiência vivenciada pela criança. Deste modo, sua

concepção de realismo opõe-se às concepções de esquematismo e idealismo.

“Mais si le dessin enfantin est imprégné de réalisme en tan qu’on oppose ce terme à celui de schématisme, si en d’autres termes l’enfant ne vise pas à simplifier le objets dans la représentation qu’il en donne, il serait exagéré d’en conclure que l’idéalisme est complètement absent de l’art enfantin. Dans la plupart de ses dessins l’enfant se contente de reproduire la nature ; quand Simonne signale comme joli ou beau l’ensemble ou tel élément d’un dessin, elle veut presque toujours dire ressemblant ou complet. Mais dans certains cas elle tend à embellir la nature, à la faire, si l’on peut dire, plus belle que nature, ce qui nous semble la caractéristique essentielle de l’idéalisme artistique, quelques formes particulières que puisse prendre cette tendance. L’enfant a d’ailleurs conscience de ce rudiment d’idéalisme qu’il surajoute au réalisme, et il a soin de l’en distinguer expressément. Simonne a pour désigner les traits idéalistes de ses dessins une formule constante : elle le appelle des ‘pour faire joli’ ” (Luquet, 1913, p.166)

4 Contém compreender aqui, que o termo “abstração” não possui no começo do século XX o sentido vulgarizado pela eclosão do abstracionismo artístico. A construção total do texto permite compreender que o termo é empregado por Luquet para significar aquilo que é “mental”, o que é “conceitual”.

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Na obra de 1927, Luquet trabalha à luz da escola froebeliana a

oposição entre as atividades artísticas cuja finalidade seria produzir uma “forma

de vida” ou uma “forma de beleza”. Atrelando a idéia do belo aos aspectos

formais, geométricos e abstratos em relevância na produção artística da época,

o autor reconhece que a criança não é insensível a uma estética formal, mas

acentua como determinante o interesse infantil pela representação dos objetos

de seu cotidiano. Citando vários exemplos observados nos quais aparentes

exercícios com linhas e figuras geométricas foram rapidamente transformados

em representações de objetos concretos pelas crianças, Luquet afirma: “O

desenho infantil é realista pela escolha de seus motivos e também pelo seu

fim.” (Luquet, 1927-1969, p.124).

Enfatizando a contraposição entre idealismo e realismo, Luquet

argumenta que mesmo realizando uma cena imaginária com personagens e

cenários jamais vistos, ainda assim a criança desenha realisticamente, no

sentido em que se propõe a dotar esses elementos imaginários de

características correlatas a uma possível realidade. Para o autor, o idealismo

consiste no movimento contrário que requer atribuir aos objetos representados

características estranhas a sua natureza, fato esse pouco observado nos

desenhos infantis (Luquet, 1927-1969, p.133).

Igualmente Luquet atrela o conceito de esquematismo compreendido

como “simplificação do objeto representado, que se traduz por uma redução do

número de pormenores reproduzidos” às dificuldades de ordem motora e

psíquica da primeira infância, argumentando que esse esquematismo não é

voluntário, mas fruto do próprio estágio de desenvolvimento infantil como um

todo. Para o autor, o esquematismo (aparente) é traduzido como um período,

uma fase do desenho infantil que ele denomina “réalisme manqué”, realismo

falhado ou malogrado (Luquet, 1927-1969, p.131 e ss).

Quando nega a característica de “esquematização” ao desenho infantil,

Luquet argumenta contra uma esquematização “voluntária”. Distingue assim o

desenho infantil da simplificação esquemática do adulto que, nos povos

primitivos, conduziu aos elementos decorativos (idealismo) e à própria escrita.

Por outro lado, ao estabelecer uma ligação de interdependência entre

esquematismo e idealismo parece evitar o primeiro termo para escapar a uma

falsa interpretação da sua concepção de realismo. Entretanto, a concepção de

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“modelo interno” deixa entrever uma esquematização “involuntária”, presente

no desenvolvimento do desenho infantil até a fase denominada pelo próprio

pesquisador “realismo visual”. Nessa etapa de desenvolvimento a realidade

passa a ser apresentada no desenho sem qualquer síntese como resultado não

apenas do interesse da criança, já quase adolescente, mas também como

produto de uma prática e de uma aprendizagem dos recursos gráficos

necessários a esse tipo de representação.

Em 1923, Luquet já abordava as dificuldades a serem enfrentadas pela

criança antes de ser capaz de desenhar de acordo com um “realismo visual”.

Por meio do binômio sucessividade/simultaneidade explicitou o caráter distinto

entre o objeto concreto (e sua representação tridimensional na escultura) e o

desenho de caráter bidimensional. Se no primeiro caso a configuração

tridimensional permite perceber o objeto visualmente por meio do recurso de

movimentar-se “em torno de” extraindo desse movimento uma visão

“sucessiva”, no segundo o caráter bidimensional do desenho permite apenas a

representação “simultânea” das propriedades dos objetos.

“Il y a là une différence essentielle entre l’image dessinée d’une part, l’image sculptée et le modèle d’autre part, dans lesquels tel caractére invisible à un moment donné deviendra apparent à un autre et inversement. Par suite, tandis que dans le modèle ou l’image esculptée tout ce qui s’y trouve est visible successivement, mais n’est pas visible simultanément, dans le dessin ce qui s’y trouve est visible simultanément, mais rien de ce qui n’y est pas n’est jamais visible. (...) c’est pour cette raison que les artistes primitifs des milieux les plus variés adoptent spontanément pour leurs dessins d’animaux la vue de profil, pour leurs figures humaines, quoiqu’avec un certain nombre d’exceptions, la vue de face. ” (Luquet, 1923, p.20)

No desenho das crianças as dificuldades de representação inerentes à

simultaneidade são, não raro, solucionadas por meio de sínteses e

deslocamentos com a finalidade de apresentar todas as características

compreendidas como essenciais aos objetos. Luquet remarca esse movimento

no desenho infantil, especialmente na etapa de desenvolvimento que denomina

em 1910 “realismo lógico” e, a partir de 1913, “realismo intelectual”. Trata-se

de diferenciar uma realidade visual de uma realidade que se poderia, talvez,

denominar também “conceitual”. Luquet conclui:

“En définitive il y a deux grandes sortes de ressemblance et par

suite deux grandes sortes de réalisme, puisque le réalisme cherche à faire

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des images ressemblantes : un réalisme visuel, qui consiste à figurer dans le dessin les seuls caractères du modèle qu’on en peut apercevoir du point de vue choisi, et un réalisme intellectuel, qui consiste à figurer dans le dessin tous les caractères que le modèle possède effectivement, qui « y sont » ; le dessin est, dans le premier cas, une impression visuelle fixée, dans le second, une définition exprimée par des traits au lieu de l’être par des mots.” (Luquet, 1923, p.20.)

A prerrogativa conferida por Luquet aos artistas primitivos e às crianças

entre “desenhar o que sabe ou desenhar o que vê”, tem sido citada ao longo

desses anos como um equívoco em sua própria concepção de realismo. Seus

críticos só admitem um tipo de realismo, aquele visual, indicado por Luquet

como a última etapa do desenho infantil. Porém, mais uma vez, em texto de

1947 publicado nos “Cahiers de pedagogie moderne pour l’enseignement du

premier degré – Le dessin” (Cadernos de pedagogia moderna para o ensino do

primeiro grau – O desenho), Luquet inicia sua argumentação afirmando:

“Pour l’enfant, un beau dessin veut dire un dessin ressemblant et, par suite, la tendance fondamentale de son dessin est le réalisme.(...) Tandis que le réalisme de l’adulte est un réalisme visuel, le réalisme de l’enfant est un réalisme intellectuel. Pour lui, un dessin n’est pas un tableau, mais une définition ; il a pour rôle d’exprimer avec des traits l’essence de l’objet représenté, comme le langage l’exprime avec des mots.” (Luquet in: Huisman et Landowski (org), 1947, p.7)

Considerações Finais:

As críticas e incompreensões sobre o conceito de realismo

adotado por Luquet foram bastante contundentes mesmo frente as suas

primeiras publicações. Talvez por isso, quando da publicação do livro “Le

dessin enfantin” (O desenho Infantil) de 1927, ele já tenha tentado evitar o

termo “realismo visual” em um esforço para driblar controvérsias. Nessa

publicação, diferente da tese de 1913 “Les dessins d’un enfant” (Os desenhos

de uma criança), Luquet nomeia “A narração gráfica” o capítulo dedicado a

última fase do desenho infantil que anteriormente nomeara “Realismo Visual”.

Entretanto, as discórdias e críticas se mantiveram ao longo dos anos.

Seus críticos mesmo os mais recentes como Bideaud, Houdé e Pedinielli

(1993) mantêm a relação univalente entre o realismo do objeto (sempre um

realismo visual) e o realismo intelectual ou lógico, isto é, o realismo que permite

à criança estabelecer analogias mentais entre o objeto experimentado e seu

desenho. Quando Luquet nomeia as primeiras fases do desenho infantil como

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“réalisme fortuit” e “réalisme manqué” (realismo fortuito e realismo falhado)

estes termos são compreendidos como um fator ocasional ou uma falha

verificada e lastimada pela criança quando, na verdade, os termos são

utilizados por Luquet na perspectiva do adulto que vê, que acompanha o

desenhar infantil e percebe, ele sim, a partir de seus critérios de visualidade, a

eventualidade e as falhas desse desenhar.

Definitivamente, para Luquet o critério de visualidade, o desenhar a

partir de um comprometimento com a percepção visual surge apenas ao final

da infância e início da adolescência. Antes de construir a sua seqüência de

fases do desenho infantil, Luquet apresenta os elementos deste desenhar tanto

na tese de 1913 quando na publicação e 1927. Estes elementos são essenciais

na construção das fases: intenção, interpretação, tipo, modelo interno e cor.

Ora, se “modelo interno” é um elemento fundamental do desenho infantil, é o

caráter mental da imagem gráfica que está em jogo e não a sua visualidade

externa. É ainda, nos ensaios entre “intenção” e “interpretação”, que o desenho

é considerado, ou não, pela criança, um representante satisfatório dos objetos

do seu cotidiano, justamente aqueles objetos que ela necessita cognitivamente

compreender e categorizar.

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