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MUMM-RÁ JUAREZ FRAGATA Cultura Popular

Mumm rá

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MUMM-RÁ JUAREZ FRAGATA

Cultura Popular

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MUMM-RÁ

As Pedras Grandes ficavam numa rua não calçada, em nossa

favela, na zona sul da cidade. Era ali que nos encontrávamos toda tarde para fazer passar o tempo jogando conversa fora. Aos sábados e domingos varávamos a manhã e a tarde no maior palavrório vão. As Pedras Grandes eram como que o nosso segundo lar (para alguns até mais importante). No inverno o nosso lugar favorito era o primeiro a receber os raios de sol, e tínhamos que dividi-lo com muitas mães que, colocavam suas filhas acocoradas entre suas pernas, e faziam uma limpeza geral em suas cabeças. Os garotos não tinham cabelos; suas cabeças eram lisas como bolas de sinuca, por isso, não precisavam desse tipo de cuidado. É claro que eu era a exceção. Nos meses de inverno o ataque às lêndeas e piolhos costumava ocorrer com mais intensidade.

Logo que a minha família se mudou para o morro, todos me

olhavam com certa animosidade. Tempo depois fiquei sabendo por meio de Mumm-Rá, que aquela animosidade, era por eu ser branco, e isso foi para mim algo inusitado. Quando morávamos numa região de italianos, os imigrantes nos chamavam de negros. Contudo, agora eu estava sendo chamado de branco, e me senti um pobre infeliz sem raça. Talvez até mais contristado que o vira lata Epitáfio, que costumava vaguear pelas vielas do morro procurando alimento, e que tinha todo o corpo coberto de sarna. Na verdade Epitáfio mais parecia um gato pelado gigante. Mas com o decorrer do tempo de tudo me esqueci, e passei a me sentir até feliz, em ser fruto de um cruzamento de raças.

Mumm-Rá, um pretinho franzino, que tentava compensar a

falta de robustez com a inteligência, embora não gostasse muito de futebol, foi o primeiro a me convidar para bater uma bolinha na rua empoeirada. Depois disso foi só mais um passo para me familiarizar

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com os demais garotos, e os adultos passaram a brincar dizendo, que eu parecia um grão de arroz, perdido num prato cheio de feijões pretos.

Além de Mumm-Rá (que desenhava e pintava como ninguém, e andava sempre com um lápis e um pedaço de papel nas mãos), tinha o Xereta, que de tão escuro, muitas vezes parecia azul. O mesmo era pau-para-toda-obra, por isso, as mulheres o adoravam. As mesmas precisavam de algo do boteco, Xereta, com a maior boa vontade para com elas, estava apto a ir comprar o que queriam. É claro que o mesmo era recompensado pela boa ação: seus bolsos estavam sempre cheios de moedas, e mais pareciam cofres ambulantes.

Com a morte de seu pai (que tirava duma modesta banca de

revistas, no centro da cidade, o ganha-pão de toda a família), sua mãe tentou educá-los da melhor maneira possível. Porém, não obteve bons resultados. A filha mais velha foi mãe aos quinze anos de idade. Contudo, essa trabalhava arduamente para sustentar o filho. Já outra se tornou prostituta, e como não era lá estas coisas, se prostituía numa casa cheia de ratos e baratas. Dois dos filhos foram surpreendidos pela polícia no momento em que praticavam um roubo em uma farmácia, e levados à FEBEM. Contudo, Xereta, o mais novo, seguia os conselhos da mãe. Além de se dedicar aos estudos fazia muitos cursos, e foi assim, que se tornou um mestre-cuca infanto-juvenil, e o rei dos bordados. Somente havia um, porém: aonde tinha aglomeração de pessoas ele chegava. Se tivesse uma festinha de aniversário no pé do morro, Xereta estava lá de penetra. Se no final da linha do ônibus, os fiéis estivessem orando na igreja evangélica, com prazer fazia parte da reunião de fiéis. Se ao sair da igreja evangélica, encontrasse o padre rezando missa na igreja católica da esquina, ali chegava. Meu pai dizia que ele tinha tudo para ser um grande homem, pois, além de ser um bom observador, havia nele o poder para cativar as pessoas.

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Certa vez Xereta foi ter conosco nas Pedras Grandes, e orgulhoso tirou de dentro de uma sacolinha plástica, uma toalha com seus bordados, e nos mostrou.

Mumm-Rá ficou sabendo por meio de um livro, e nos contou de que a flor do abacateiro se apresentava como feminina pela manhã e masculina à tarde, por isso, quando alguém fazia algo que aos nossos olhos era meio delicado, logo vinha o bordão “florzinha de abacateiro”, e naquele dia, Xereta não escapou. O gigante Zere, com o olhar cheio de malícia disse:

-Quê que é isso, Xereta. Agora é florzinha de abacateiro? Todos nós fizemos o mesmo, exceto Mumm-Rá, que acabou com

a chacota ao perguntar: -Quem bordou essa toalha? -Fui, eu – respondeu Xereta, um tanto tímido. Mumm-Rá deu-lhe os parabéns, e foi além: disse que o bordado

também poderia ser inserido na categoria de arte, e nossa implicância com os bordados de Xereta começou e acabou naquele mesmo dia.

Além de mim, e dos já citados Mumm-Rá, Xereta, e do crioulo grandalhão Zere, tinha o Bira, que estava sempre tirando meleca do nariz, o Bedeu, e o Silva.

Lembro-me da primeira vez que fumei maconha. Eu já tinha

quinze anos, e com o intento de chegar mais rápido as Pedras Grandes, comecei costear o esgoto a céu aberto que corria entre os barracos, quando ouvi Bedeu, no linguajar do morro me chamar:

-Chega aí, meu. Vamos dar uns pegas! Recém essa gíria havia chegado ao morro, e confesso que soava

mal aos meus ouvidos, assim como tantas outras palavras usadas de forma informal.

Bira era filho único, e seus pais trabalhavam fora, por isso, ele ficava sozinho no barraco durante o dia, e ali foi a minha primeira experiência com a maconha. Pra dizer a verdade, eu não estava querendo provar. Contudo, para não ser chamado de florzinha de abacateiro, achei melhor topar. Nem bem um dava uma tragada, ou

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duas, outro dizia: -Lança na minha esse bagulho, meu!... E aquele cigarro rústico e fétido dava voltas em nossas mãos. Quando a erva começou manifestar seus efeitos mudei meus

planos, e retornei para casa, uma vez que o sono havia chegado, e eu mal podia me manter em pé. Mumm-Rá tinha dito que o fumo nos deixaria ligado, mas, na verdade o bagulho me deixou foi quase desligado.

Em virtude do meu organismo, um mês depois resolvi sustar a maconha, pois, ao invés dela me deixar ligado, me deixava desligado. E assim minha vida de maconheiro foi algo efêmero. Certa vez o dono do boteco da esquina dissera que um bom comerciante não pode consumir o produto que vende, e como Silva, contra a vontade de Xereta e minha, tinha feito das Pedras Grandes, um pequeno ponto de venda de drogas, também fizera o mesmo que eu. Já Xereta provou uma única vez, e não gostou. Bordão “florzinha de abacateiro” pegou, no entanto, o mesmo não ligou.

-Por que vou me ofender se sei que não sou afeminado? – retrucava o mesmo.

A atitude dele fez com que eu tomasse coragem para segregar uma coisa que não me fazia bem.

O pai de Mumm-Rá era catador de papel, e muitas vezes lhe

obrigava ir junto para ajudá-lo. Numa dessas vezes ele encontrou no lixo Vidas Secas de Graciliano Ramos, com a capa toda rabiscada a caneta, e uma revista de mulheres nuas, disfarçada numa capa de revista de culinária, e para nós, garotos de quinze, dezesseis anos, aquilo foi algo de outro mundo. As fotos daquelas beldades nuas fora a coisa mais fascinante que tínhamos visto até então, e com exceção do dono da revista, é claro, nós contávamos moedinhas para pagar o aluguel da revista.

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Como todo o comerciante é movido pela ganância, o danado arrancou os dois grampos que mantinham unidas às folhas, e passou alugá-las de modo separadas. Mas com o pão-duro do Xereta a coisa tomou outro rumo. Vidas Secas fizera nascer em Mumm-Rá, o desejo de se deixar levar pela leitura, e Xereta não queria mexer em suas economias. Por isso chegaram a um denominador comum: como forma de pagamento do aluguel das folhas, Xereta emprestava os livros do seu falecido pai.

Além do pequeno ponto de drogas, Silva também queria atuar na

área de roubos e assaltos, e para esse fim economizou e comprou um revólver calibre 38, e sua primeira vítima foi o vira-lata Epitáfio. Na teoria o pobre cão deveria se sentir feliz quando se deparasse com a morte, pois a sarna muito lhe fazia sofrer, e só o seu fim poderia aliviar esse sofrimento. Contudo, na prática a coisa mostrou-se diferente. Adivinhando o que estava prestes a acontecer consigo, o pobre Epitáfio olhava para o seu futuro assassino (que lentamente apontava o revólver para sua cabeça), com os olhos arregalados. Se falasse certamente pediria, por favor, que o deixasse viver. Apesar de todo o sofrimento, aquele olhar significava que o sarnento queria continuar vivendo. A fome, a doença, e o abandono, não lhes havia tirado o entusiasmo pela vida. Mas logo veio o primeiro disparo, e em seguida o segundo e o terceiro. O impacto foi tão forte que, além de abrir a cabeça do pobre vira-lata, fizera com que saltasse longe aqueles olhos, antes arregalados de pavor.

Silva tinha três irmãos mais velhos, e de tanto perseverar,

conseguiu persuadi-los: assaltos e furtos são um bom meio de se ganhar dinheiro fácil.

No início Bedeu e Bira, só vez por outra atuavam nos crimes. Mas com o decorrer dos dias, o poder atrativo do dinheiro fizera com que os mesmos passassem a atuar ativamente.

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Há tempo Mumm-Rá e eu estávamos paquerando Ritinha, uma branquinha das coxas grossas, rosto redondo, cabelos compridos e um olhar penetrante, porém, negro Silva entrou na jogada e a conquistou. Para nós, os primeiros pretendentes, maledicência e desolação total. Não que fosse racista, mas na minha cabeça Ritinha tinha que ser minha. Afinal, tínhamos quase a mesma cor de pele, e eu era o único que tinha cabelo, bom. Os outros tinham tanta vergonha de seus pixains que não os deixavam crescerem. E havia um fator a mais: modéstia a parte, me julgava o garoto mais bonito do morro.

Na desolação Mumm-Rá e eu, nos afastamos por um curto espaço de tempo dos outros. Enquanto pegava uma seda e fechava um cigarro de maconha, ele disse:

-Se a Ritinha ficasse com um mano que tivesse futuro na vida, tá ligado, eu não diria nada. Mas ficar com um preto feio que logo, logo estará no presídio central, tá ligado, é o fim!

Como estava muito deprimido, optei por manter-me calado, e só balancei a cabeça concordando com ele.

Tempo depois Ritinha avançou em sua mãe com uma faca (porque a mesma era contra o namoro), colocou suas roupas numa sacola, e se mudou para o barraco da família de Silva.

Exceto o gigante Zere, que não participava dos assaltos, mas

andava sempre bem vestido, e até com uns trocados no bolso, nós morríamos de inveja de Silva. Afinal, enquanto nós éramos obrigados a nos contentar com fotos de mulheres nuas, ele tinha uma de carne e osso dentro do barraco.

Já Zere, um dia exagerou na caipirinha, fumou uns bagulhos a

mais, e resolveu abrir o bico. Ele estava sendo pago para apagar o fogo no rabo de um gay cheio da grana, que tinha esposa e filhos. Também foi o mesmo quem frouxou as pregas do gayzinho Lili (que morava entre uma igreja evangélica e a igreja católica que ficava na esquina).

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Ainda pequeno Lili já mostrava o seu lado afeminado no exagerado movimento de quadris, e no falar delicado. Não brincava com os garotos, só com garotas. Com o passar do tempo ele assumiu de vez sua condição de gay, no entanto, continuava virgem. Um dia Zere mandou fumaça pra cabeça viu Lili passando em frente o seu barraco, e o inevitável aconteceu. Lili saiu com as pernas moles, mas sem perder o rebolado.

Bira, Bedeu, Xereta, Mumm-Rá e eu estávamos cansados de

prazeres venéreos solitários, e desejávamos ardentemente possuir uma mulher fisicamente. Numa segunda-feira à tarde, em que não havia água ao ver-me zanzar pela rua, Mônica, a irmã prostituta de Xereta, com um balde na mão, chamou-me, e perguntou-me quanto eu cobraria para ir à fonte d'água, perto do pé de figueira, na rua debaixo, e lhe trazer um pouco de água. Como pensava em sexo vinte e quatro horas por dia, entre dentes murmurei:

-Eu somente vou se você me der aquilo! -O quê que você disse, hein garoto? -Eu somente vou se você me der aquilo – repeti timidamente. Após esboçar um leve sorriso a mesma olhou-me de cima abaixo,

e mostrando certo desdém disse: -É, até que você dá para o gasto! E depois de ir e vir quatro, cinco vezes a fonte da figueira, lá

estava eu: o aluno, com o corpo todo tremendo de ansiedade, sentado aos pés da cama, olhando a professora se despir lentamente.

Ao ver-me daquele jeito, sorridente, e já completamente nua ela perguntou:

-Está com medo de quê, hein garoto? Como todo o garoto é estúpido, mas se julga esperto, contei a

Mumm-Rá que Mônica havia tirado a minha virgindade. Além de espalhar para todos, ele bolou um plano para também ter relações sexuais com ela. Como não sabia quando novamente faltaria água, e queria perder a virgindade o quanto antes, leu uma revista sobre

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massagens orientais, que tinha encontrado no lixo, assim como tantas outras, e pôs em prática seu novo conhecimento. Mônica gostou tanto que pediu para o mesmo lhe fazer massagem, toda a manhã, assim que chegasse do trabalho.

Atrás de Mumm-Rá foram Bedeu e Bira, com dinheiro para

pagar. O dinheiro que Zere ganhava para apagar o fogo no rabo dos gays, repassava a Mônica. Até Silva pagava para ter relações sexuais com ela. Como Xereta era irmão (e fingia não ver nada), e eu não tinha nada de especial para dar a ela, fomos lançados ao ostracismo. Mas logo veio a minha mente uma brilhante ideia: decorei uns poemas românticos, e saí à procura de mulheres separadas dos maridos. Primeiro agradava as crianças, e através delas chegava até as mães que não queriam ouvir poemas, mas sim que eu fosse direto ao ponto. Assim eu tinha três, quatro mulheres, e descobri que a fidelidade é algo tênue, que se quebra com um simples sussurro ao pé do ouvido. Eu concluí esta tese com a colaboração de Tanara, uma morena mãe de três filhos, mas que ainda estava com tudo em cima. Uma simples discussão fizera com que seu marido ficasse fora de casa uma semana. Nesse interim sussurrei ao seu ouvido, e a tênue fidelidade se quebrou.

Xereta seguiu o meu exemplo, e também se deu bem. Quando meu pai ficou sabendo dos assaltos, imediatamente me

chamou. -Você está envolvido nas sujeiras do negrinho Silva, do Bedeu e

do Bira, filho? -Não, pai! -Acho bom. Se eu descobrir que você anda participando dos

assaltos e dos roubos lhe dou uma sova, e depois pessoalmente o levarei a FEBEM!

-Eu só fico ali nas Pedras Grandes, pai – respondi receoso. – Quando saio, saio na companhia de Mumm-Rá e Xereta.

-Vou acreditar em você – disse ele -, mas se ficar sabendo que você está fazendo coisa errada, já sabe!

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À preocupação de meu pai não tinha fundamento, uma vez que me considerava um covarde. É bem verdade que o fato de ver Bedeu e Bira, sempre com uma soma razoável de dinheiro no bolso despertava em mim o desejo de participar dos assaltos e roubos. Silva até já tinha comprado um fusca velho. No entanto, quando imaginava a cara, e o olhar das vítimas, via nelas os olhos arregalados do vira-lata Epitáfio, e aquela imagem era o suficiente para me causar pavor. Mais tarde cheguei à conclusão de que ser mau não é para quem quer, mas sim para quem pode.

Nosso grupo não mais era coeso. Embora dividíssemos as Pedras

Grandes, não mais dividíamos a mesma forma de pensar. Silva, Bedeu e Bira, ficavam num lado com os seus companheiros de crimes, enquanto Xereta e eu, e muitas vezes o gigante Zere, que transitava nas duas facções, mais MummRá (que estava entusiasmado com o romance que tinha começado a escrever), no outro.

Quando ouviu falar em escrever livro, Silva voltou-se para nós, olhou nos olhos de Mumm-Rá e disse:

-Mumm-Rá, você sempre será preto, tá ligado. Preto só ganha oportunidade de usar os dedos para puxar o gatilho do três oitão, não para pegar em caneta ou datilografar. Portanto esqueça essa história de escrever livro, tá ligado, e volte a nossa realidade. Somos excluídos, como todo o negro, e sempre seremos tá ligado!

-Se liga Silva – respondeu Mumm-Rá -, a arte não usa conceito antecipado e sem fundamento razoável, tá ligado. Por isso a arte sempre é favorável ao talento, e não a cor da pele do artista!

-Você é um veado sonhador, tá ligado, florzinha de abacateiro – disse Silva.

Mumm-Rá não ligou a mínima para as palavras dele, e mesmo com muitas crianças brincando na rua empoeirada, e mães sentadas junto à sombra do guabijueiro (que ficava no outro lado da rua), fechou uma bomba, acendera-a, dera uma boa tragada e passara adiante.

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Certa feita Mumm-Rá viu uma cena, em frente à praça da matriz que mudou à sua forma de pensar. Banhado em suor seu pai puxava a carreta carregada de papelão. Um homem branco que, aparentava ter condições financeiras, passara por ele, e fizera cara de nojo, como se estivesse olhando algo pútrido. Aquela cena foi como uma facada em seu âmago. Desde então o mesmo passou a alimentar o desejo de calçar um branco metido a riquinho num revólver e chegar ao orgasmo com o seu pavor. Porém, apesar do ódio que havia obscurecido um pouco o seu raciocínio, ele compreendia a animosidade entre pobres e ricos, pretos e brancos.

Num final de tarde de sexta-feira, estávamos todos reunidos nas

Pedras Grandes. Os riquinhos subiam o morro, depois desciam uma pequena ladeira em seus carrões do ano, davam a volta colocavam o cotovelo fora da janela, Silva entregava a maconha, ou cocaína, e guardava o dinheiro no bolso.

Mumm-Rá, chapado (coisa rotineira nos últimos tempos), nos relatou o fato ocorrido na praça da matriz, e uma vez findado o relato acrescentou:

-Quando vejo esses riquinhos, filhos de umas vacas, tá ligado, me dá vontade de matá-los!

Silva aproveitou o ensejo, e fazendo menção de lhe entregar o revólver, disse:

-Não seja por isso, mano. Exploda os miolos do primeiro riquinho desgraçado que aparecer, tá ligado!

Porém, Xereta não o deixara pegar a arma. -A sensação de ver um rico nojento se molhar todo com a própria

urina, e pedir, por favor, que não lhe mate, tá ligado, é maravilhosa – acrescentou Silva.

Xereta era um altruísta nato, e achando aquilo indecoroso disse: -Para mim, isso que você faz com as suas vítimas, é a maior

covardia, já que as deixa completamente sem ação. O ser humano deve se sentir importante por meio de seu conhecimento e sabedoria, e não pelo medo que impõe as pessoas, tá ligado!

Após o riso de escárnio, Silva levou à mão as partes genitais e

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disse: -Pegue aqui em minha banana, macaco sentimental, mas é só

para chupar; não morder! Xereta ignorou aquelas palavras de baixo escalão. Por mais incrível que isso pudesse parecer negro Silva conseguia

atrair um bando de garotinhas, e isso causava inveja até mesmo nos adultos que o apelidaram de pau de ouro. Talvez o que causava satisfação às garotas, fosse o seu lado perverso, uma vez que a perversidade oferece uma falsa liberdade, e uma visão de que tudo é certo e permitido, no entanto, isso só elas poderiam responder.

Na verdade eu não tinha inveja dele, uma vez que gostava de mulheres maduras. Mas é claro que queria ser o primeiro homem de uma colegial, e para isso resolvi procurar uma garotinha e ficar enamorado.

DJ Brown havia recém-chegado do Rio de Janeiro, com muitas

novidades na bagagem, e para mostrá-las aos jovens do morro, alugou o pequeno salão do Bezerra e organizou um evento. A ideia era trazer o Charme dos calorentos morros cariocas para os morros porto-alegrenses.

-O Charme é música e cultura negra que, já deixou os morros cariocas para ganhar a galerinha da zona sul do Rio – afirmava ele.

É claro que vi naquele evento o lugar perfeito para encontrar uma linda garota, e ficar enamorado.

O Charme do DJ Brown, era a blak music americana, coisa que o

Cabeleira conhecia muito bem, e já tinha nos mostrado. Só que os ídolos de Cabeleira (que recebera este apelido por causa do cabelo, é claro), eram: James Brown, B.B.King e San Cooke. Já entre os ídolos de Brown, estavam Boy II Men, Montell Jordam, R.Kelly, e Rubem Hopkins, todos astros da nova geração.

No sábado DJ Brown largou o som e aquela música fascinante me fizera entrar numa espécie de transe, e me senti num daqueles filmes americanos, sobre negros e suas festas. Eu fiquei tão

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envolvido pelo ritmo, que até me esqueci de que estava ali para encontrar uma bela garota e ficar enamorado. Mas com o passar das horas, a galera começou a pedir pagode, e o batuque me fez voltar à realidade, e lembrar-me de meu pai.

Numa véspera de natal, perto da meia-noite, Robertinho (um perigoso bandido que morava ao lado de nosso barraco, e que mais tarde foi morto numa troca de tiros com a polícia), estava comemorando um assalto que teve bom êxito. Enquanto assava o churrasco o mesmo ouvia cantores de samba no volume máximo. Meu pai olhava para meus irmãos e eu, via que estávamos com vontade de comer carne assada, mas não podia fazer nada, já que estava sem dinheiro e desempregado. Aquele foi o pior natal de nossas vidas. Desde então, se uma pessoa quisesse ficar inimiga de meu pai, bastava dizer que gostava de samba.

Depois de um tempo corri a sala com o olhar, e lá estava Cláudia, linda como uma rosa, e assim que ela me disse seu nome afirmei:

-Ao invés de Cláudia seu nome deveria ser Rosa! A mesma tinha a pele morena, cabelos longos de forma anelada,

e um olhar cativante. Ademais o seu nível cultural era elevado, e me deixou sem ação. No início bem que tentei, mas logo desisti, e passei a desejar que Mumm-Rá estivesse ao meu lado para me ajudar. Porém, percebendo a minha dificuldade, ela tomou a iniciativa, mas só depois de três meses é que consegui levá-la para cama.

Eu tinha profundo respeito por Mumm-Rá, pois o mesmo era

craque em conhecimentos gerais, costumava ler muitos livros e fazer um resumo preciso de um texto, além de dar o devido valor a uma obra literária. Talvez por respeitá-lo tanto, é que nunca havia lhe chamado à atenção, e encarei a sua ligação com as drogas, como uma coisa normal.

Num início de noite Xereta me chamou, e deixando transparecer certa preocupação disse:

-Precisamos fazer alguma coisa para ajudar, Mumm-Rá, tá ligado. Ele já é um viciado, e Silva vai arrastá-lo para o mau

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caminho, já, já! -Mas o que poderemos fazer para ajudá-lo? -Primeiro vamos pagar o que ele deve ao Silva, tá ligado. Depois

vamos tentar livrá-lo das drogas! E com a ajuda de meu pai, e Zere, nós pagamos o que ele devia ao

fornecedor. Quanto a largar as drogas, Mumm-Rá foi taxativo: não sou um

viciado. Mas é claro que pensávamos diferente. Silva guardou o dinheiro, e dirigindo-se ao seu fusca velho, onde

já estavam lhe esperando os seus irmãos, mais Bira e Bedeu, disse: -Acho bom amanhã ou depois alguém pagar a nova conta de

Mumm-Rá, tá ligado? Xereta e eu o olhamos de cima a baixo com esperança de

encontrar alguma coisa do velho Silva nosso amigo, mas aquele Silva não mais existia, e naquela mesma noite ele arranjou sarna para se coçar. Não só para ele se coçar, mas sim para todos, ao achar jocoso mexer com Branco, marginal do morro vizinho.

Era uma tarde ensolarada de sábado. Estávamos todos sentados

nas Pedras Grandes, quando apareceram três motos, e a nossa salvação foi que os sujeitos que estavam nas garupas das motos começaram a atirar, lá da esquina, e assim deu tempo do gigante Zere, Mumm-Rá, Xereta, e eu fugirmos. Desesperado, Bedeu, seguido por dois, desceu correndo até a rua debaixo, invadiu a casa do policial Paulão, fez sua esposa e sua mãe de reféns, e exigiu delas a arma do mesmo. Mas como ele estava de serviço (portanto estava com o revólver), Bedeu deixou-as, e com um espeto de assar carne, saiu pela porta dos fundos, surpreendeu um, e feriu-o mortalmente. O espeto entrou no olho esquerdo e saiu na nuca da vítima.

O dono de um dos tantos botecos que existia no morro, chamou a brigada, e horas mais tarde Bedeu estava preso. Mas pouco tempo depois ele novamente estava em liberdade.

Segundo observações de Mumm-Rá, bandidos somente ficam presos se assassinar um membro de um órgão da imprensa escrita,

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falada ou televisionada etc... Os demais assassinatos (principalmente os que acontecem no morro) são cobertos com uma pá de cal.

A cada dia nós percebíamos que o gigante Zere ficava mais

magro. Contudo, para Mumm-Rá e eu aquilo era normal. Afinal, hoje uma pessoa pode estar gorda e amanhã, não. E o mesmo pode acontecer com o magro: num dia é só osso, e no outro é um obeso. Já Xereta dizia que o mesmo estava com anemia, e que deveria consultar um médico.

E foi isso que o mesmo fez. Levantou-se às quatro horas da

manhã de uma quinta-feira, e ficou das cinco as oito, numa fila para marcar uma consulta para a segunda-feira. O médico lhe examinou, lhe fez uma série de perguntas, e em seguida lhe mandou fazer um teste de HIV.

-É só um teste – disse o médico. E Zere entrou em pânico. A primeira imagem que veio à sua

cabeça foi a do vira-lata Epitáfio, com o corpo todo tomado pela sarna.

-O vira-lata voltou para se vingar – disse para consigo -, e parece que a primeira vítima sou eu!

E por um momento pareceu ver aquela sarna que habitava o corpo do cão, avançar, penetrar em seu corpo, e começar a devorar seus órgãos internos.

Mumm-Rá, Xereta e eu esperávamos na porta do posto de saúde, e ele furioso avançou ao pescoço de Xereta e disse:

-Você é o culpado de tudo isso, tá ligado! -Se liga, Zere. Culpado de que, e culpado por quê? -Foi você, quem me obrigou a procurar um médico, tá ligado.

Agora serei obrigado a fazer um teste de HIV! Após o fazer largar o pescoço de Xereta, num tom ingênuo

perguntei: -HIV? - Sim - respondeu Mumm-Rá -, um teste para saber se ele

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contraiu, ou não o vírus da Aids! -É só um teste - disse Xereta. Zere avançou novamente nele e gritou: -É só um teste, filho da puta; é só um teste por que não é contigo,

tá ligado? Irritado Xereta tirou as mãos dele do seu pescoço e respondeu: -Você mesmo é o culpado, tá ligado. Quem mandou ser

apaixonado por bunda de afeminados! O gigante ficou imóvel, com os olhos arregalados, sem nada

dizer. -Não se preocupe, Zere – disse eu -, nós somos fogo do morro, tá

ligado. Vírus algum nos causa dano. É mais fácil nós causarmos danos aos vírus do que os vírus nos causar danos!

Ninguém achou graça em minhas palavras, por isso, me calei. Já um pouco mais calmo Xereta pediu desculpas e disse: -Como você é um cara sexualmente promíscuo, pensei que se

cuidasse. Mas é só um teste, tá ligado! Completamente alterado Zere afirmou: -O próximo que dizer que é só um teste, eu vou quebrar a cara! E o teste deu resultado positivo. Tentando inutilmente, segurar

nos ombros o seu mundo caído, que cada vez mais o empurrava para baixo, o mesmo foi ter com Mumm-Rá e perguntou:

-Tem um lugarzinho para mim, naquele livro que você está escrevendo, Mumm-Rá?

-Como assim, um lugarzinho? -É que o resultado do teste deu positivo. Eu estou com o vírus

HIV, tá ligado. Logo, logo passarei dessa para outra. Por isso estou lhe pedindo um favor: coloque-me no seu livro, tá ligado!

-Você quer que, eu conte à sua história, é isso? -Sim, é isso, mesmo! E o gigante se tornou uma personagem do livro de Mumm-Rá. Para nós a doença dele foi um tremendo choque. É claro que no

morro muitos haviam contraído Aids, e morrido, mas nunca havia acontecido com alguém do nosso convívio. Por isso o choque. Nós

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queríamos saber mais sobre o vírus HIV, porém não tínhamos a quem recorrer e coletar informações a este respeito.

Numa noite de sexta-feira, Silva e sua turma foram dar umas

voltas, e desta vez um humilde frentista, pai de dois filhos menores, foi à sua vítima. Segundo Silva, o funcionário do posto de gasolina tinha a cara do Branco (bandido do morro vizinho, e que era o seu maior inimigo). Por isso puxou o gatilho três vezes. Isso foi o que ele afirmou, mas o que importava mesmo era que um humilde trabalhador, pai de família agonizava, ali no chão, perto das bombas de combustível. Tempo depois a Brigada Militar chegou ao local, e acionou o serviço de Atendimento Médico de Urgência, no entanto, o frentista morreu antes de ser atendido.

No dia seguinte os jornais anunciavam que a polícia trabalhava com a hipótese de latrocínio (roubo com morte), já que, conforme o proprietário do posto bebidas, cigarros e doces haviam sumido.

O dia das crianças foi antecipado para a garotada do morro. Sem

imaginar que aqueles doces haviam custado à vida de um pai de família, elas sorridentes os devoravam, enquanto os adultos compravam pacotes de cigarros pela metade do preço. O difícil era saber, e não poder denunciar quem havia assassinado o frentista. Muitos dizem que todo o cidadão de boa índole é covarde. Na verdade todo o cidadão de boa índole é ajuizado. Sabe muito bem que, se denunciar um bandido, a polícia prende-o num dia, e o solta no outro, e quem é obrigado a abandonar casa, amigos, emprego, e ir embora, é o cidadão de bem, uma vez que o mesmo passa a correr risco de vida.

A justiça é cúmplice do bandido. Ambos parecem ser fragmentos do velho império romano, assim como as pessoas de boa índole. Os marginais são leões, a justiça o imperador, e as pessoas de bem os cristãos jogados a arena para serem devorados. Essa é a verdade.

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Mais uma vez Mumm-Rá estava devendo a Silva, e Xereta e eu, fomos quem arcamos com a dívida. Nessa época o pai de Cláudia havia me arranjado um emprego numa loja de móveis usados, e a metade do meu primeiro ordenado, foi para pagar a conta dele, que havia mudado completamente: dormia e acordava drogado, e só falava coisas desconexas. Quando perguntávamos sobre o livro que estava escrevendo, dizia que tudo estava correndo bem, e que seria o novo Machado de Assis.

Como ele, nem nós tínhamos dinheiro suficiente para sustentar seu vício, o mesmo resolveu roubar. Um garoto negro de quinze anos deixava a escola, e voltava para casa, quando Mumm-Rá (após consumir uma grande quantidade de coca), gostou do seu boné, e o abordou. É claro que a vítima não quis entregar o boné, e lutou bravamente para defender o que era seu, mas ao fugir, MummRá (com uma das armas de Silva), efetuou um disparo atingindo-o na cabeça. Muitas pessoas compareceram ao seu velório. Seus pais, professores e amigos, emocionados disseram estar revoltados, e exigiram justiça. Dois dias depois ele tentou assaltar uma jovem de vinte anos, e como a mesma reagira, acabou agredindo-a com uma barra de ferro até a morte.

A polícia suspeitava de que outras pessoas estivessem envolvidas

no crime. Mas Mumm-Rá acabou confessando a Xereta, a mim, e a Zere (que já mostrando os sinais clássicos de debilitação física), foi ter com ele para saber como estava sua biografia, que havia assassinado a moça, assim como o garoto, sem ajuda de ninguém. A princípio pensamos que ele estivesse brincando. Mas em seguida chegou Silva e lhe convidou para assaltar um ônibus.

Com ódio no olhar Mumm-Rá disse: -Eu somente vou se você me deixar explodir os miolos de um

branquelo, tá ligado! Após entregar o revólver a ele, Silva olhou para mim e

respondeu: -Exploda os miolos do Arroz, aqui, tá ligado. Ele é branco, tá

ligado!

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-Se liga mano. Eu quero explodir os miolos de um branquelo, que estiver passando por mim, num daqueles carrões, tá ligado!

-Se liga Mumm-Rá, se você atirar num bacana, a polícia chega a você rapidinho, rapidinho, tá ligado!

Calou-se um instante e acrescentou: -Se você está com vontade de abrir a cabeça de um branco, abra a

do Arroz. Certamente a polícia não abrirá inquérito; não investigará a morte de um garoto de morro, tá ligado!

Após encostar o revólver em minha cabeça, Mumm-Rá gritou: -Se borra branco miserável. Eu quero ver você se borrar todo, tá

ligado. Tá ligado, meu! Meu corpo todo gelou, e fiquei imóvel. Um imenso pavor me

cegou, e só o que ouvia era a voz de Xereta e Zere gritando: -Se liga Mumm-Rá. Não faça isso, meu. Arroz é seu amigo, tá

ligado. Não faça isso, meu! -É brincadeirinha, tá ligado - disse ele, assim que baixou a arma. É claro que ninguém gostou. Principalmente eu, que quase morri

de medo e pavor. Após recuperar o fôlego declarei: -Você está doente, Mumm-Rá, e precisa se tratar, tá ligado! -Ou se entregar a polícia - acrescentou Xereta parecendo ainda

não acreditar no que havia acontecido. -Você não pode sair pelas ruas matando pessoas, como se as

mesmas fossem formigas, tá ligado - disse Zere. Adivinhando nossos pensamentos, Silva virou-se para nós e

ordenou: -Vocês não vão denunciá-lo a polícia, tá ligado. Se fizerem isso,

serei obrigado a tomar providência, e certamente vocês não gostaram nada, nada. Portanto, bicos calados!

E foi isso o que fizemos. Mesmo cientes duma grande injustiça, nós nos calamos. Zere que julgava ter pouco tempo de vida, estava disposto a desacatar a ordem de Silva, porém, depois pensou em sua família e recuou. Era óbvio que Silva se vingaria nela, e não nele, que tristonho estava morrendo aos poucos. O que mais me deixou aborrecido, foi que eu tinha Mumm-Rá como um grande

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amigo, no entanto, ele colocou um revólver na minha cabeça, coisa que não se faz com um amigo nem de brincadeira.

E assim, Xereta, Zere e eu, passamos a evitar ele, que dias depois

foi preso por furto. Mas logo estava perambulando pelas ruas ao lado de Silva e seus parceiros de crimes, como espinheiras ambulantes, ferindo, e muitas vezes matando pessoas inocentes, como foi o caso do dono de um pequeno estabelecimento, que eles assaltaram. Enquanto sua mulher abria o caixa, a vítima tentou acionar o alarme, e Silva disparou quatro vezes contra o seu peito, e em seguida fugiram num carro roubado.

Na madrugada do dia seguinte, Mumm-Rá realizou um de seus maiores desejos: calçar um branco riquinho num revólver, e chegar ao orgasmo com o seu pavor. Um jovem de vinte e dois anos foi abordado por eles (que estavam completamente embriagados), quando estacionava o seu carro do ano, perto de uma casa noturna. Após espezinhar o jovem, Mumm-Rá puxou o gatilho, e baleou-o no pescoço e no peito.

Um garoto foi preso, e o delegado encarregado do caso, pediu a

custódia ao juizado da criança e do adolescente para que o jovem fosse acareado. Mas logo o mesmo foi solto, já que era inocente. Naquele mesmo dia, eles atacaram um mercado, mandaram os clientes se abaixarem, avisando que o estabelecimento estava sendo assaltado, e que poderia haver tiroteio. Quando tentavam sair com uma grande quantia em moedas, a Brigada Militar chegou e gerou pânico entre os clientes. Entre o pânico, Mumm-Rá e Bira acabaram largando os revólveres. Após serem levados à área Judiciária, e identificados, foram encaminhados a FEBEM, mas um mês depois, após uma rebelião, eles fugiram.

Eu descia a escada da casa dos pais de Cláudia, quando ouvi

alguém me chamar. Depois de andar poucos metros, e entrar numa viela sem saída, e com a iluminação precária, me deparei com MummRá: não o perverso, mas sim o velho Mumm-Rá, que

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sonhava ser escritor, e que vivia mergulhado nos livros. De um jeito inocente ele pediu a minha ajuda, já que agora, era um foragido, e não poderia voltar para o barraco de seus velhos. E foi além: disse que só ficara violento depois que passara a usar crak.

-Você sabe muito bem que a maconha dá uma tremenda bobeira, fome e sono, tá ligado - começou ele -, já o crak dá aquela fissura de você roubar e matar. O crak deixa o mano ligado nas tretas, tá sabendo. Faz um mês que não fumo, e não tenho vontade de furtar, tá ligado. Agora, se eu fumar, certamente ficarei fissurado para furtar, e poder fumar mais, e até atirar e matar, sem pensar nas consequências, tá sabendo!

Parecia que o mesmo realmente estava arrependido, contudo, o mestre nesses assuntos de arrependimento, era o Xereta, que frequentava igrejas evangélicas. Por isso após receber o consentimento dos pais de Cláudia para passar à noite na casa deles, levei Mumm-Rá ao barraco dos meus velhos, deixei o mesmo no meu quarto, e saí procurando Xereta.

-Seu delito é muito grave, tá sabendo, Mumm-Rá - começou Xereta. - Se você fosse só um ladrão, tudo bem. Mas você é um assassino perverso, tá ligado...

-Eu estou arrependido, tá ligado – interrompeu Mumm-Rá. – Eu não quero mais essas tretas, tá sabendo!

-Seu arrependimento não trás de volta quem você assassinou tá ligado - disse Xereta, tristonho.

Calou-se um instante e informou: -Vou falar com o pastor Nestor. Ele saberá o que fazer tá

sabendo! -Isso não, - protestou Mumm-Rá, apavorado. - Na certa esse

pastor vai me denunciar, tá sabendo. Na certa! -O que vamos fazer então? - perguntei. Após pensar um pouco, Xereta disse: -Vou falar com a minha irmã, tá ligado. Talvez ela possa escondê-

lo em seu quarto! No dia seguinte ele falou com Mônica, que antes de enxotá-lo

disse:

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-É só o que me falta, dar abrigo a um fugitivo da justiça! A saída foi procurar o gigante Zere que pouco estava saindo de

casa, por causa da debilidade física. E ele adorou a ideia de Mumm-Rá viver um tempo em seu barraco, pois assim ele teria companhia o tempo todo.

Xereta e eu compramos três cadernos, e cinco canetas para ele, e Zere exigiu que o mesmo reescrevesse sua biografia. O gigante sabia que não tinha muita coisa a contar, e que nenhum editor publicaria uma história vazia. Mas queria que à sua vida ficasse num caderno qualquer, e que alguém um dia pudesse encontrá-lo, ler, e dele se lembrar. Isso era para ele uma forma de continuar vivendo.

Durante o dia, Silva, Bedeu e Bira traficavam nas Pedras

Grandes, ou ajudavam os demais comparsas, no desmanche de carros, no final da rua. Agora eles estavam investindo no roubo de automóveis, pois diziam não ser tão complicado, e os riscos de serem pegos eram menores.

Numa segunda-feira, na parte da tarde, Silva fora chamado às pressas, e quando entrou no barraco de sua mãe (que ficava em frente às Pedras Grandes), encontrou Ritinha toda coberta de sangue, e um revólver calibre 38 ao seu lado. Ela havia tentado tirar sua própria vida, assim que ficou sabendo que, sua prima de treze anos, estava esperando um filho de Silva. E após passar um tempo no hospital, a mesma voltou ao subúrbio, e foi presa logo em seguida, junto com sua sogra. A polícia deu uma batida no morro, e no barraco, onde elas estavam, encontrou certa quantia em drogas, e como não conseguiram levar Silva preso, levaram as duas. Sua sogra ficou quatro dias, e Ritinha vinte: enjaulada igual bicho.

É claro que, quando Ritinha abandonou a razão e seguiu a

paixão, não imaginou que à sua vida se tornaria um inferno. Jamais passou pela sua cabeça que veria seu amado sair com outras, e ser obrigada a ficar quieta, pois se reclamasse apanhava, coisa que ocorria seguidamente. Inúmeras vezes ela havia tentado largá-lo, mas ao receber ameaças, voltava atrás. Marginal é igual a vampiro;

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se alguém deixar o mesmo entrar em sua vida, ele passa a sugá-la, e foi isso o que aconteceu com ela. Sua vida, mesmo a contragosto, agora pertencia a Silva. Em muitos casos é bom seguir a voz da razão, e não se deixar levar pela paixão.

Como queriam fazer uma festa, e não tinham dinheiro

suficiente para isso, Bira, Bedeu e um dos irmãos de Silva, resolveram atacar um ônibus. Por volta das 18 horas, eles armados, entraram num ônibus, e anunciaram o assalto. Um rendeu o motorista, outro o cobrador, enquanto o terceiro passou a recolher os pertences dos passageiros, mas como num passe de mágica, quatro policiais entraram pela porta dianteira e deram voz de prisão. Ninguém teve tempo de reagir, e foram conduzidos à delegacia.

Quando soube do acontecido, Silva ficou furioso. Em primeiro

lugar porque os mesmos não haviam lhe consultado. Em segundo, porque teria que mexer no cofrinho, e por causa de uma estupidez de três membros de sua quadrilha, já que assaltos a ônibus não mais rendia lucro, segundo o mesmo.

Um pouco dos lucros dos assaltos, dos roubos de carros, e do

tráfico de drogas ele guardava num pequeno cofre, para uma só finalidade: pagar advogados para liberá-los quando eram presos. Mas não em situação como a de um de seus irmãos, mais Bira e Bedeu?

-Tentar assaltar um ônibus, e sem me consultar, foi uma falta de inteligência total, tá sabendo - disse ele para consigo.

Mas após se acalmar, chamou um advogado para colocá-los novamente em liberdade, e quinze dias depois, por volta das treze horas, Bedeu e Bira invadiram uma farmácia, renderam os funcionários, e saíram com cerca de 500$ reais. O guarda da escola próxima viu-os saindo, e correu em direção à farmácia. Ao vê-lo, Bedeu sacou o revólver e começou a atirar. Um dos tiros atingiu a cabeça de uma garotinha de oito anos, que morreu a caminho do

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hospital. Durante um tempo o gigante Zere conseguiu manter Mumm-Rá

na linha, permitindo que o mesmo fumasse apenas um baseado por dia. Mas desde que sua mãe foi visitá-lo, e lhe contou o constrangimento que havia passado por causa de sua patroa, ele (contra a vontade de Zere), deixou de lado a maconha, e começou novamente fumar crak em uma espécie de cachimbo onde a droga era aquecida, e arquitetar uma vingança.

Sua mãe trabalhava para uma senhora que, já passava dos cinquenta anos, e que tinha o costume de esconder as coisas, e acusar a empregada de roubo. Ninguém permanecia muito tempo trabalhando para ela, mas como a mãe de Mumm-Rá dependia muito daquele emprego, e não queria perdê-lo, muitas vezes suportava as acusações. Um dia a senhora encaixotou um jogo de xícaras de porcelana, o guardou, e depois acusou a mesma de ter roubado. A madame chamou a polícia, que encontrou as xícaras trancadas num armário de vidro.

Depois de fazê-la passar um tremendo vexame, a madame se

recusou a pedir desculpas, dizendo que patroa jamais pede desculpas a empregada. Que ao receber o ordenado no final do mês, ela iria engolir o ressentimento, porém, mesmo precisando do emprego, a mãe de Mumm-Rá pediu demissão naquele mesmo dia, foi ter com o filho, e sem desconfiar que o mesmo, quando estava sobre o efeito do crak, era um assassino perverso, lhe contou o que havia acontecido.

Após consumir inúmeras pedras de crak, MummRá, numa

grande euforia, e possuído por uma sensação de maior competência e habilidade, invadiu a casa da ex-patroa de sua mãe. Trancou o seu marido no banheiro, amarrou a madame numa cadeira, e cada corte que fazia na pele da mesma (com uma faca bem afiada, feita de um pedaço de uma serra de cortar ferro), dizia:

-A senhora feriu a alma da minha mãe, e eu estou ferindo só o

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seu corpo, tá sabendo? Eu estou sendo bonzinho, tá ligado! Assim que a dor começara a intensificar, a madame pediu, por

favor, que Mumm-Rá parasse, mas ele continuou cortando sua pele. O mesmo manuseava a faca como se estivesse manuseando um lápis, e depois de incontáveis cortes no corpo da senhora, e de colocar numa sacola, tudo o que encontrou de valor, pôs fogo na casa, e saiu correndo.

Na segunda-feira de manhã, a polícia já sabia quem tinha

amarrado, torturado a senhora, trancado o seu marido no banheiro, e ateado fogo na casa. Contudo, os policiais chegaram ao morro para prender Mumm-Rá tarde demais.

O casal foi morto na sexta-feira, e no sábado à noite, como não mais encontrou crak no nosso morro, ele resolveu ir ao morro Graciliano Ramos (morro controlado por Branco) comprar umas pedras, e insistiu para que Zere fosse junto.

-Não podemos ir ao morro do Branco, Mumm-Rá – disse o gigante -, na certa a turma dele nos matará, tá sabendo?

Mas Mumm-Rá lhe convenceu assegurando que a turma do Branco não ficaria sabendo que eles eram do morro Jardim Cascata.

Zere colocou uma toca preta, e por causa da sua debilidade física,

desceram lentamente a trilha no meio dos eucaliptos, subiram até a boca, compraram as pedras de crak, sem nada lhes acontecer, no entanto, quando novamente entravam na trilha, no meio dos eucaliptos, foram surpreendidos pelos homens de Branco, que atiraram contra eles.

Quando foram encontrados, o gigante Zere estava sobre Mumm-Rá, como se estivesse tentando protegê-lo das balas. Zere foi enterrado no final da tarde de domingo. Já o corpo de Mumm-Rá permaneceu quatro dias no necrotério, pois seus pais não tinham dinheiro para pagar o enterro, e por isso tiveram que esperar a ajuda da prefeitura.

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Um mês depois, Bedeu também foi assassinado pela turma de Branco, em frente uma funerária. E como diz o adágio que tudo que aqui se faz aqui se paga, testemunhas afirmaram que a bala do primeiro disparo, lhe atingiu o olho esquerdo, e saíra na nuca.

Agora, só ladrões, traficantes, e drogados frequentavam as

Pedras Grandes. Xereta e eu ficamos contentes quando as máquinas e operários da prefeitura invadiram o morro, e quebraram todas elas em incontáveis pedaços. A que dera mais trabalho, fora a Mãe de Todas (que tinha uns cinco metros de comprimento, e cinco de largura). Já as pedras menores foram demolidas fácil, fácil, e pouco tempo depois, ali se ergueu um muro, e a rua recebeu calçamento. Contudo, Silva e seus comparsas, continuaram naquele mesmo lugar, traficando, e planejando roubos de carros e assaltos: só que agora, ao invés de se sentarem nas Pedras Grandes, se sentavam no muro.

É claro que a morte de Mumm-Rá, foi a que mais me abalou. Eu

sabia que ele era um assassino frio, e até certo ponto calculista, porém, o mesmo também tinha lá suas qualidades.

Eu gostaria de tê-lo visto como um grande escritor (como era o seu sonho inicial), ao invés de um bandido. Mas como isso não foi possível, com a permissão de seus pais, resolvi procurar o material que o mesmo tinha escrito, e começar donde ele havia parado.

De fato Mumm-Rá tinha escrito um romance, no entanto, num lugar onde o que mais havia era papel, seu pai, numa manhã fria pegou justo o caderno onde estava escrito o romance, e arrancou os primeiros e os últimos capítulos para iniciar o fogo no fogão a lenha.

Como nada consegui fazer com o pouco que sobrou da sua obra, e também não consegui encontrar a biografia do gigante Zere, resolvi escrever um livro sobre eles e as Pedras Grandes.

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