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1 O fim e o início um conto por Ana Reis Créditos da imagem: George Lu O acordar foi violento. Quando voltei a mim uma torrente de água gelada e escura lançava-se contra a minha face. E apenas os faróis do carro, que continuavam acesos, me deixavam antever o mundo que me rodeava. Um arrepio molhado percorreu a minha espinha e por momentos esqueci-me de respirar. Não me lembrava do que tinha acontecido, mas se não encontrasse forma de sair dali para fora não iria ter tempo para descobrir. A água continuava a entrar pelo pára-brisas. Levei as mãos ao cinto e tentei soltar-me. Estava preso, tentei forçá-lo mas não cedeu. O pânico reclamou os meus sentidos. Comecei a bater no vidro ao meu lado com toda a força que conseguia. Gritei até esvaziar os meus pulmões de qualquer ar. Não veio ninguém. Estava perdida. Mas o meu corpo continuava a lutar sem descanso contra aquela prisão de metal que se afundava lentamente. Observei com horror enquanto a superfície do lago desaparecia. E em todo esse tempo não deixei de esbracejar como uma louca. Sentia-me desligada do meu corpo. A minha mente estava já resignada mas o meu corpo não estava disposto a desistir. Via agora com clareza o destino que me aguardava. Ia morrer de uma morte horrível e não havia nada que eu pudesse fazer para me salvar. Finalmente a água ocupou tudo, não deixando mais espaço para o ar entrar. Foi então que me lembrei. A faca, eu tinha trazido a faca no banco da frente. Num segundo despertei, ignorando a imensa escuridão que se agigantava à minha volta. Virei-me em todas as direcções e finalmente encontrei a mochila. Estava a flutuar na parte de trás do carro.

O fim e o início

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O fim e o início um conto por Ana Reis

Créditos da imagem: George Lu

O acordar foi violento. Quando voltei a mim uma torrente de água gelada e escura lançava-se contra a minha face. E apenas os faróis do carro, que continuavam acesos, me deixavam antever o mundo que me rodeava. Um arrepio molhado percorreu a minha espinha e por momentos esqueci-me de respirar. Não me lembrava do que tinha acontecido, mas se não encontrasse forma de sair dali para fora não iria ter tempo para descobrir. A água continuava a entrar pelo pára-brisas. Levei as mãos ao cinto e tentei soltar-me. Estava preso, tentei forçá-lo mas não cedeu. O pânico reclamou os meus sentidos. Comecei a bater no vidro ao meu lado com toda a força que conseguia. Gritei até esvaziar os meus pulmões de qualquer ar. Não veio ninguém. Estava perdida. Mas o meu corpo continuava a lutar sem descanso contra aquela prisão de metal que se afundava lentamente. Observei com horror enquanto a superfície do lago desaparecia. E em todo esse tempo não deixei de esbracejar como uma louca. Sentia-me desligada do meu corpo. A minha mente estava já resignada mas o meu corpo não estava disposto a desistir. Via agora com clareza o destino que me aguardava. Ia morrer de uma morte horrível e não havia nada que eu pudesse fazer para me salvar. Finalmente a água ocupou tudo, não deixando mais espaço para o ar entrar. Foi então que me lembrei. A faca, eu tinha trazido a faca no banco da frente. Num segundo despertei, ignorando a imensa escuridão que se agigantava à minha volta. Virei-me em todas as direcções e finalmente encontrei a mochila. Estava a flutuar na parte de trás do carro.

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Ignorei a dor no meu ombro direito e estiquei-me o máximo que consegui até agarrar uma das alças. Puxei a mochila para perto de mim e tacteei o seu interior numa escuridão cada vez mais intensa. Quando a minha mão encontrou o cabo da faca, lágrimas de alegria saíram dos meus olhos para se unirem à água do lago. Encostei a lâmina brilhante ao cinto e comecei a cortar. O meu braço movia-se o mais rápido possível, mas cedo a falta de ar e a água gelada reclamaram as minhas últimas forças. Senti a minha consciência escoar de forma alarmante enquanto as minhas mãos afrouxavam o aperto que sustinha a faca, a minha única salvação. E em poucos segundos tudo ficou escuro. Quando voltei a mim alguém me arrastava para fora da água. E senti que arrancavam partes da minha alma. Voltei a respirar por um momento. E uma dor intensa encheu o meu peito. O ar estava gelado. Tão gelado que me fez querer voltar a enfrentar a escuridão do lago. Nos meus ouvidos soava uma música infernal de ventos, vozes e tempestades. Os meus olhos apenas distinguiam sombras que se apinhavam ao longe. Naquele momento eu era apenas um emaranhado de dor, sangue e confusão. Senti o meu corpo a ser arrastado pelo chão. A terra grossa raspando a minha pele. Pensei que ia morrer ali, dilacerada por aquelas minúsculas pedras que se cravavam na minha pele a ferro e fogo. A música era agora mais intensa. Como se estivéssemos prestes a chegar ao clímax daquela diabólica composição. Instintivamente encolhi-me. Tentei falar com os demónios que me cercavam, mas o ruído que saiu da minha boca nada tinha de humano. O frio era agora demasiado intenso para ignorar. Gelava-me a pele e as roupas molhadas. “Que forma horrível de morrer” pensei. Mas quem quer que me contemplasse não pareceu ouvir os meus pensamentos. Num segundo o arrastar parou. Deixei-me ficar ali como se fosse o lugar mais confortável do mundo, enquanto no meu coração a vontade de desistir tentava destruir às dentadas o meu instinto de sobrevivência. Abri os olhos para ver se havia alterações no cenário que me rodeava. E naquele momento pude ver uma face. Era a Morte quem me contemplava. Nunca saberei como foi que o soube. Mas aquele rosto que transmitia uma compaixão infinita parecia falar por si só. Não pude aguentar o seu olhar.

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Tentei desviar-me, ignorar a sua presença. Mas a Morte não aliviou o seu abraço gelado. E esperou paciente ao meu lado, enquanto a minha resistência e lamento foram dando espaço a uma doce resignação. Não podia afastá-la mais. Olhei a Morte nos olhos mais uma vez, só porque não podia suportar a sua presença silenciosa. E o seu olhar parecia querer dizer que tudo ia ficar bem. Naquele momento teria dito que sim a qualquer coisa só para acabar com aquela dor. Quando finalmente aceitei o meu destino a minha alma começou a escorregar para fora de mim. Por momentos estava a voar para longe do meu corpo, para longe de toda aquela dor e confusão. A alegria que me invadiu era imensa. Estava livre, livre, livre... Mas tudo voltou a ficar escuro. Senti uma dor aguda no peito. E acordei de novo para aquela realidade assustadora da qual pensava ter escapado. Estamos a perdê-la... Disse uma voz rebentando os meus ouvidos. Sentia-me traída. Só queria que parassem. Que me deixassem voar para longe dali. A voz pareceu ignorar os meus pedidos e senti outro golpe no meu peito. 1,2,3... Fica comigo. Senti outra vez a dor do despertar. A dor duma alma a preencher um corpo vazio. Estamos a perdê-la outra vez... Acabei por perder de novo a consciência. Mas desta vez não voltei a sentir aquela incrível sensação de liberdade, de poder voar para longe de mim. Quando acordei de novo fui inundada por uma luz imensa que me cegou por uns instantes. Tive que esperar que os meus olhos se habituassem à claridade depois de ter experimentado a escuridão do inferno gelado. Depois de me adaptar comecei a explorar com cautela aquela nova realidade. A dor ainda lá estava, mas pelo menos tinha sobrevivido. E já não me sentia como um emaranhado de sangue e confusão. Lágrimas de alívio voltaram a invadir os meus olhos. E naquele momento senti a necessidade de experimentar a força das minhas pernas. Nunca pensei que fosse tão importante para mim voltar a sentir os meus pés no chão. Voltar a sentir-me livre, apesar das fronteiras do meu corpo.

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Quando me tentei mover todo o meu corpo rangeu num agudo protesto. Tive que me controlar para não gritar, mas no final a minha vontade venceu e consegui arrastar as minhas pernas para fora da cama. O chão estava gelado, mas não me importei. E embora as minhas articulações continuassem o seu silencioso protesto, decidi avançar. Após dois passos sentia-me já estafada e pronta para desistir. Mas ao parar pude ouvir com clareza a minha respiração rasgada e o bater do meu coração. Nunca me senti tão sortuda por poder apreciar algo tão simples. Naquele momento aquela melodia parecia-me a mais bela do mundo. A minha boca rasgou-se num sorriso involuntário. Decidi continuar a avançar. E quando dei por mim estava a encarar uma porta branca. Abri-a de rompante, na emoção da descoberta. Do outro lado encontrei aquilo que parecia ser uma casa de banho. Em louça branca e brilhante que me cegou por um pequeno instante. Estava prestes a voltar para a cama quando algo prendeu a minha atenção. Do outro lado do espelho uma jovem mulher devolvia o meu olhar. Uma cicatriz feia a romper a têmpora direita. Os lábios rasgados pelo frio. As faces descoradas e o nariz vermelho. E dei por mim a sentir-me irresistivelmente atraída pelo seu olhar. Destemido, brilhante, selvagem. Aquele olhar eclipsava todos os cortes feios que rompiam a pele daquela face. Possuía um brilho que eu nunca antes tinha visto. Quase não me reconheci, mas percebi de imediato o significado daquele olhar. Uma parte de mim morrera de verdade no acidente, morrera aquela parte que tinha contido aquele olhar apaixonado e feroz durante tantos anos. E agora eu estava livre.

FIM … ou o início

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