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Apelação Cível n. 2012.011520-5, de Lages Relator: Desembargador Ricardo Roesler APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PEDIDO DE REGIONALIZAÇÃO DO ATENDIMENTO DE INTERNAÇÕES IMPOSTAS AOS MENORES EM CONFLITO COM A LEI PENAL. ALEGAÇÃO, PELO ESTADO, DE INGERÊNCIA DO JUDICIÁRIO. IMPROPRIEDADE. DEDUÇÃO INCIDENTAL DE INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO DA ORIGEM, TENDO EM CONTA A DISCIPLINA DOS ARTS. 308 A 310 DO CÓDIGO DE NORMAS DA CGJ. INAPLICABILIDADE. SENTENÇA QUE DETERMINA O ATENDIMENTO REGIONALIZADO DOS MENORES SUJEITOS À INTERNAÇÃO NA COMARCA DE LAGES, ALÉM DE IMPOR A SEPARAÇÃO DO ATENDIMENTO DE INFRATORAS (SEXO FEMININO), E A IMPLEMENTAÇÃO DE MAIS DEZ VAGAS. PRETENSÕES QUE SE DESTINAM A GARANTIR O CUMPRIMENTO DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS PELO MENOR EM CONFLITO COM A LEI PENAL PRÓXIMO DE FAMILIARES E DE SUA COMUNIDADE. OBSERVAÇÃO DO PRIMADO DA PROTEÇÃO INTEGRAL (ART. 124, VI, DO ECA E ART. 227 DA CR). DEDUÇÃO DE IMPOSSIBILIDADE EM FACE DA NECESSIDADE DE PLANEJAMENTO E DE ORÇAMENTO QUE CONFLITA COM O ACORDO, FIRMADO EM JUÍZO (E NÃO CUMPRIDO), PARA IMPLEMENTAÇÃO DAQUELAS MEDIDAS. SENTENÇA MANTIDA, INCLUSIVE EM RELAÇÃO À MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA, AMPLIANDO-SE UNICAMENTE O PRAZO (FIXANDO-SE 60 DIAS) ÀQUELAS MEDIDAS QUE POR SENTENÇA SE IMPÔS O CUMPRIMENTO IMEDIATO. Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2012.011520-5, da comarca de Lages (Vara da Infância e Juventude), em que é apelante Estado de Santa Catarina, e apelado Ministério Público do Estado de Santa Catarina: A Quarta Câmara de Direito Público decidiu, por votação unânime, negar provimento ao recurso e, em sede de remessa, alterar parcialmente a sentença. Custas legais.

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Apelação Cível n. 2012.011520-5, de LagesRelator: Desembargador Ricardo Roesler

APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PEDIDO DEREGIONALIZAÇÃO DO ATENDIMENTO DE INTERNAÇÕESIMPOSTAS AOS MENORES EM CONFLITO COM A LEI PENAL.ALEGAÇÃO, PELO ESTADO, DE INGERÊNCIA DOJUDICIÁRIO. IMPROPRIEDADE. DEDUÇÃO INCIDENTAL DEINCOMPETÊNCIA DO JUÍZO DA ORIGEM, TENDO EM CONTAA DISCIPLINA DOS ARTS. 308 A 310 DO CÓDIGO DENORMAS DA CGJ. INAPLICABILIDADE.

SENTENÇA QUE DETERMINA O ATENDIMENTOREGIONALIZADO DOS MENORES SUJEITOS À INTERNAÇÃONA COMARCA DE LAGES, ALÉM DE IMPOR A SEPARAÇÃODO ATENDIMENTO DE INFRATORAS (SEXO FEMININO), E AIMPLEMENTAÇÃO DE MAIS DEZ VAGAS. PRETENSÕES QUESE DESTINAM A GARANTIR O CUMPRIMENTO DAS MEDIDASSOCIOEDUCATIVAS PELO MENOR EM CONFLITO COM A LEIPENAL PRÓXIMO DE FAMILIARES E DE SUA COMUNIDADE.OBSERVAÇÃO DO PRIMADO DA PROTEÇÃO INTEGRAL(ART. 124, VI, DO ECA E ART. 227 DA CR). DEDUÇÃO DEIMPOSSIBILIDADE EM FACE DA NECESSIDADE DEPLANEJAMENTO E DE ORÇAMENTO QUE CONFLITA COM OACORDO, FIRMADO EM JUÍZO (E NÃO CUMPRIDO), PARAIMPLEMENTAÇÃO DAQUELAS MEDIDAS. SENTENÇAMANTIDA, INCLUSIVE EM RELAÇÃO À MANUTENÇÃO DOSEFEITOS DA TUTELA, AMPLIANDO-SE UNICAMENTE OPRAZO (FIXANDO-SE 60 DIAS) ÀQUELAS MEDIDAS QUE PORSENTENÇA SE IMPÔS O CUMPRIMENTO IMEDIATO.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n.2012.011520-5, da comarca de Lages (Vara da Infância e Juventude), em que éapelante Estado de Santa Catarina, e apelado Ministério Público do Estado de SantaCatarina:

A Quarta Câmara de Direito Público decidiu, por votação unânime, negarprovimento ao recurso e, em sede de remessa, alterar parcialmente a sentença.Custas legais.

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Participaram do julgamento, realizado nesta data, os Exmos. Srs.Desembargadores Rodrigo Cunha (Presidente com voto) e Júlio César Knoll.

Florianópolis, 27 de novembro de 2014.

Ricardo RoeslerRELATOR

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RELATÓRIO

O Ministério Público propôs ação civil pública em face do Estado deSanta Catarina, postulando a regularização dos atendimentos de internação demenores em conflito com a lei penal na cidade de Lages. Da inicial consta o seguinterelatório:

Trata-se de ação civil pública promovida pelo Ministério Público, por suaPromotora, contra o ESTADO DE SANTA CATARINA, qualificado, em que postula,via liminar, a ser confirmada na sentença, a obrigação de não fazer, consistente narestrição de vagas, através de internação no CASE – Centro de AtendimentoSocioeducativo de Lages, anteriormente denominado CER – Centro de EducaçãoRegional de Lages, bem como o CASEP – Centro de Atendimento SocieducativoProvisório de Lages, antes chamado CIP – Centro de Internação Provisória, isto é,em relação aos adolescentes procedentes de outras regiões do Estado de SantaCatarina, sob pena de multa diária no valor de um salário-mínimo por adolescenteencaminhado. Finalmente, postula a remoção dos adolescentes proveniente deoutras regiões do Estado, no prazo de 30 dias, igualmente sob pena de multa.Requer, também, a imposição da obrigação de fazer, consistente na disponibilizaçãode vagas no sistema socioeducativo estadual, especificamente nos estabelecimentossituados em Lages, junto ao CASE e CASEP, para adolescentes infratoras, assimcomo o programa para execução da medida socioeducativa de semiliberdade. Juntao procedimento administrativo preliminar.

Disserta sobre a capacidade do CASE e CASEP de Lages, para 38 e 10pessoas, respectivamente, bem como sobre o histórico e quadro funcional. Aduz quesão recebidos adolescentes de todas as regiões do Estado e não existe adequadaseparação, sendo a formação cultural distinta. Sustenta que os adolescentes sãoafastados do município de origem e, consequentemente, da sua família, o quecompromete o direito previsto na legislação. Aduz que também a segurança dacomunidade e de outros monitores, atualmente denominados agentessocieducativos, está comprometida. Informa que o Estado não demonstrou interessena resolução extrajudicial do problema. Finalmente, argumenta que não existia, àépoca do ajuizamento, instituição adequada para o cumprimento da medidasocioeducativa de semiliberdade, motivo pelo qual não havia como implementá-lanesta região do Estado, inobstante a previsão legal.

Realizada audiência preliminar de conciliação, restou acordada a suspensãoda ação pelo prazo de 06 meses, a contar de 25/06/2009, elaborando-se projeto parareadequação do espaço físico do CER (atual CASE), inclusive espaço paraadolescentes infratoras; concluída a obra do "CIP e CER" de Itajaí, os adolescentesdaquela região deviam ser transferidos; quanto aos adolescentes da regiãometropolitana da Capital, deviam ser "permutados" com outros que já estavam aqui;qualquer internação de adolescentes fora da região devia ser comunicada ao Juízo,com certidão de antecedentes; finalmente, fixou-se o prazo de 90 dias para o iníciodo programa de semiliberdade (fl. 479).

À fl. 486 consta ofício subscrito pelo então diretor do departamento de justiça ecidadania, datado de 08/12/2009, em que informa o início das atividades da casa desemilliberdade de Lages, bem como o início das obras de "reforma, ampliação eadequação do espaço físico, bem como a construção da ala feminina", prevista para

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o início de 2010.O Ministério Público manifestou-se nos autos, insistindo no deferimento da

liminar.O Estado foi citado (fl. 500v), mas não há notícia de resposta em tempo hábil.

(fls. 524-525)Acolheu-se em parte os pedidos formulados, nestes termos:Pelo exposto, JULGO procedente, em parte, o pedido formulado pelo

MINISTÉRIO PÚBLICO contra o ESTADO DE SANTA CATARINA, para condenar orequerido ao cumprimento da obrigação de fazer, consistente na reserva de vagas noCASE/Lages do mínimo de metade para condenados ao cumprimento de medidasocieducativa de internação por este Juízo. O restante deve ser destinado,prioritariamente, às demais Comarcas integrantes da região Serrana (municípiosintegrantes da AMURES) e, sucessivamente, às demais Comarcas do Estado,respeitada a proximidade da residência do infrator. As vagas do CASEP devem serdestinadas somente aos adolescentes cuja intervenção provisória foi determinadapelo Juízo da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Lages e das outrasComarcas da região Serrana (municípios integrantes da AMURES). Surgindo novasvagas no CASE, mediante análise de substituição da medida socioeducativa por esteJuízo, devem ser imediatamente transferidos do CASEP os que lá se encontram emcumprimento de medida socieducativa de internação (não provisória),independentemente da reserva mínima de vagas da CASEMI – casa desemiliberdade também devem ser destinadas com exclusividade aos adolescentesda região serrana (municípios integrantes da AMURES), priorizando-se a concessãode vaga aos procedentes do CASE (P). Qualquer transferência de internos deve serprecedida de comunicação ao Juízo, em cumprimento desta decisão. E, ainda,condenar o requerido ao cumprimento da obrigação de não fazer, consistente navedação da internação CASEP de Lages de infratores procedentes de outrasComarcas que não as da região Serrana (municípios integrantes da AMURES), bemcomo, vedar a internação no CASE, em relação à metade das vagas reservadas, deinfratores procedentes de outras regiões do Estado de Santa Catarina.Excepcionalmente, admitir-se-á a internação provisória de adolescentes provenientesde outros Estados, mas o DEASE deve proceder o imediato encaminhamento aomunicípio de origem, mediante requisição de vaga, sob determinação judicial. E,finalmente, para condenar o réu ao cumprimento da obrigação de fazer, consistentena implementação do número mínimo de 10 (dez) vagas, em local distinto do prédiodo CASE/CASEP, destinadas ao cumprimento da medida socieducativa deinternação pro infratoras (sexo feminino).

Presentes os requisitos legais, ANTECIPO A TUTELA, determinando oimediato cumprimento dos dispositivos da sentença, sob pena de multa diária novalor de R$ 1.000,00 nos termos do art. 461, § 4.º, do CPC, exceto quanto àimplementação de vagas para infratoras, em relação ao qual fixo o prazo de 06 (seis)meses, a partir desta data.

Em consequência, JULGO extinta a ação 039.09.005255-0, com fulcro no art.269, I, do CPC. (...). (fls. 531-533)

Houve pedido de suspensão da tutela concedida, em parte acolhido –em termos práticos suspendeu-se a antecipação, em toda sua extensão (fls.581-587).

Sobreveio recurso do Estado, em que deduziu, inicialmente, a

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impossibilidade do Judiciário intervir no âmbito de gerência do Executivo, concluindopela carência da ação. Ademais, mencionou que a intervenção nos centros deinternação somente poderiam ser opostas pelo juízo de correição, nos termos dosarts. 308 a 310 do Código de Normas; logo, o juízo sentenciante seria incompetente.Em relação ao mérito, afirmou observar a legislação de proteção da criança e doadolescente, e que a sentença, tal qual firmada, impõe o tratamento desigual entre osinternados. Disse que não se poderia, ademais, dispor de medidas regionalizadas,considerando que o serviço é uno em todo o Estado. Asseverou, ainda, atenderminimamente as exigências legais, informando também que estão em andamentoestudo de políticas de melhoria do sistema, mas que demandam certa logística e,principalmente, o aporte de receitas. Prequestionou, por fim, os dispositivosinvocados.

Houve contrarrazões (fls. 590-602).Nessa instância, o Ministério Público opinou pelo conhecimento e

desprovimento do apelo (fls. 610-616). Lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geralde Justiça o Exmo. Sr. Dr. Sandro José Neis.

É o relatório.

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VOTO

Trato de recurso interposto contra sentença que, acolhendo em parte apretensão ministerial, determinou o implemento de medidas a fim de regularizar otrânsito de menores em conflito com a lei penal na cidade de Lages, sobretudo pararegionalizar o atendimento dos menores naquela comarca.

A temática inicial de defesa é recorrente; num primeiro momento oEstado deduziu a impossibilidade jurídica do pedido em face do primado daseparação dos poderes. Não é o caso.

É fácil notar que cada vez mais há a necessidade de intervenção judicialpara a solução de políticas públicas mínimas. Daí tanto se questionar, de um lado, oque se rotula desavisadamente como certo ativismo judiciário indevido, e de outro aeventual limitação do Poder Público de fazer frente àquelas exigências por vezesmais elementares.

Tenho que o Poder Judiciário está legitimado para controlar, determinare formular as atividades desenvolvidas pelo Estado quando sua omissão, além deevidente, revela-se perniciosa. O princípio da separação dos poderes, corretamenteinterpretado no Estado Democrático de direito (que incide sobre a realidade social,para modificá-la), significa que o Estado, único, atribui constitucionalmente o exercíciode suas funções a determinados órgãos, que as exercem primariamente, seminterferência dos outros em suas atividades, mas sobre essas atividades paira ocontrole dos atos dos demais "poderes" pelo Judiciário. Por outro lado, admite-se hojeo controle do Judiciário sobre o mérito de determinados atos administrativos. Não hámais atos discricionários que escapem do controle do Judiciário (ao menosformalmente).

Essa intervenção, evidentemente, não é deliberada. E quais são essascircunstâncias- Em tema de políticas públicas, o Poder Judiciário pode interferir paraimplementá-las, na omissão do poder público, ou para corrigi-las, se não seadequarem aos objetivos constitucionais. Trata-se em última análise, de controle deconstitucionalidade. O sistema brasileiro herdou a tendência – hoje realidade – dejudicialização da política diretamente da judicial review norte-americana, introduzidaem 1891 pela decisão do juiz Marshall no caso de Malbury x Madison (1803, quandoa Suprema Corte dos EUA instituiu o controle judicial de constitucionalidade das leis –controle de constitucionalidade difuso – marca do constitucionalismo ocidental). E éoportuno lembrar que o modelo constitucional brasileiro, desde a ConstituiçãoRepublicana inspira-se no sistema norte-americano.

No que se refere a eventual intervenção judicial, o Supremo TribunalFederal tem fixado as seguintes balizas: 1 - a o mínimo existencial (núcleo duro dosdireitos sociais, essencial à dignidade humana), também pressuposto de sua imediatajudicialização.; 2 – a razoabilidade do pedido (individual ou coletivo) em contraposiçãoà irrazoabilidade da atuação do poder público; 3 – a reserva do possível (existênciade verba orçamentária). O Supremo Tribunal também tem afirmado que, tratando-sedo mínimo existencial, ele deve ser imediatamente satisfeito, independentemente da

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existência da reserva do possível. E assim deverá ser com a educação.Maurice Merleau-Ponty, em preciosa monografia sobre o exercício

dialético, lembra que o discurso político não raras vezes orienta-se por meio dealguma filosofia naturalista, bastante adequada, em face de sua generalidade, paraconter elementos morais (As aventuras da dialética, Martins Fontes, 2006, p. 91 esegs.). Na prática, anota o autor, há alguma tentativa de propor uma retórica subjetivapara permitir a isenção de determinados deveres e a indulgência gratuita do cidadão,sem efetiva demonstração de que há direcionamento da atividade pública aos finspróprios ao alcance do bem comum.

Bem porque esse tipo de retórica confere na maiora das vezes o tom dodiscurso político é que se tem admitido a intervenção do Judiciário. Nesse passo,embora não se possa de modo generalizado impor encargos à Administração Pública,é possível a intervenção de modo a assegurar a implementação sobretudo de direitosfundamentais. Sobre o tema, cito:

"RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE -ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - EDUCAÇÃO INFANTIL -DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART.208, IV) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL ÀEDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODERPÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - RECURSOIMPROVIDO. - A educação infantil representa prerrogativa constitucionalindisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seudesenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, oatendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essaprerrogativa jurídica, em consequência, impõe, ao Estado, por efeito da altasignificação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucionalde criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das'crianças de zero a seis anos de idade' (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso eatendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-seinaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, ointegral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs opróprio texto da Constituição Federal. - A educação infantil, por qualificar-se comodireito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo deconcretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública,nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. - Os Municípios -que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art.211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamentevinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental daRepública, e que representa fator de limitação da discricionariedadepolítico-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se doatendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas demodo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de meraoportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. - Embora resida,primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular eexecutar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário,determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses depolíticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas

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pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimentodos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório -mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais eculturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à 'reserva dopossível'. Doutrina" (RE 410.715-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello,publicado em 03.02.06).

Não conheço, por isso, da dedução de suposta ofensa ao art. 2.º da CRe do art. 32 da CE.

O pedido, portanto, é viável, ao menos hipoteticamente. No mais édisciplina afeita ao mérito, e a apropriação há de ser feita em tempo e modo.

Com relação à dedução incidental de incompetência do juízo, fundadanos arts. 308 a 310 do Código de Normas da CGJ, observo que, não bastasse ser eletardio, é evidentemente sem propósito. O fato de se atribuir, no âmbito administrativo,a competência de intervenção imediata em presídios ao juiz-corregedor (é disso quetratam aqueles dispositivos) não justifica que se fixe a competência no âmbito judicial,sobretudo porque aqui nem mesmo se trata de matéria afim. Soa, bem a propósito, decerto modo leviano comparar instituições de recuperação de menores com presídios– ainda que o descaso público seja notável, reflexamente, em relação às duasinstituições.

Quanto ao mérito, suponho, não há retoques a serem feitos.O Ministério Público oficiante na comarca de Lages postulou, em suma,

a melhoria do atendimento prestado aos menores conduzidos aos centros deinternação daquela comarca, apontando a necessidade atendimento regionalizado, afim de evitar o indiscriminado encaminhamento de menores de outras localidades;postulou-se, ainda, a criação de 10 novas vagas em face da demanda e oatendimento especializado às menores (adolescentes do sexo feminino).

Há, na proposição, não só a expectativa de algum atendimento comqualidade, mas sobretudo observar com maior efetividade a vocação desses centros– em tese propiciar a recuperação e reinserção dos menores internados –permitindo que permaneçam próximo do convívio comunitário e do familiar.

É fato bem conhecido da comunidade catarinense a carência da vagastambém para internamento de menores em conflito com a lei penal, bem porquerecorrentemente é noticiada na imprensa. Trata-se de um quadro bastantesintomático, tanto da falta de investimentos na estrutura quanto, e principalmente, napreocupação com políticas de prevenção. O pedido do Ministério Público, afinal, é aevidência desse notório desarranjo, pois na prática se propõe alguma expansão doatendimento – algo que a rigor deveria compor a pauta de políticas mínimas deinvestimento.

A descortinada urgência de adequação, contudo, deve ser (sempre)medida com certa cautela; a necessidade de melhor adequação sobretudo doatendimento prestado nestes centros, creio, certamente fosse mais efetiva seimplementada sistematicamente; o ajuste regionalizado e isolado de atendimentopode redundar eventualmente, inclusive, algum desajuste ainda maior, tendo emconta que o sistema é visivelmente disfuncional. Medidas dessa natureza são porisso, em regra, pouco eficazes, e sempre dependentes de algum arrojo, de certo jogo

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de malabares que, quando mais, são apenas o exercício do possível.Por outro lado, penso que não se possa – não se deva – lançar mão

de especulações como justificativa para que se evite, ou mesmo iniba, medidas maisincisivas de correção. Do contrário se notará, logo adiante, a inversão de valores, talcomo a que propõe o próprio Estado, chegando ao ponto de afirmar que "a decisãorecorrida, é certo, confere tratamento privilegiado aos menores infratores de Lages eRegião Serrana em detrimento daqueles que terão que ser removidos para outraslocalidades, em condições desfavoráveis ou serão impedidos de serem aquiinternados" (fl. 549). Francamente, suponho que a dedução do Estado por siesclareça a falta de compreensão (preocupante!) das autoridades com os menoresque conflitam com a lei penal, pois se referir a "privilégio" em meio às deficiências jáinstaladas, e ao caos que se avizinha, releva muito mais que o simples desapego e afalta de sentimento de humanidade; é o retrato do completo descaso, a fina flor dodescompromisso público. Justificar-se a manutenção das condições atuais de modo anão prejudicar ainda mais os menores internados é no mínimo ultrajante do ponto devista humano.

Assim, embora não se possa deliberadamente apostar em adequaçõessetorizadas como forma de resolver desarranjos tão delicados, não é a partir daapatia e da lenidade, ou mesmo do discurso naturalista e protocolar da AdministraçãoPúblico que se justificará a inviabilidade de algum ajuste; bem porque, no caso, aadequação proposta não tem a amplitude que se brada e a temeridade que sepretende incutir.

No mais, o próprio Estado justifica a necessidade de melhorias: em seurecurso é afirmado que atualmente estão disponíveis 58 vagas em todo o Estado, dasquais 38 em Lages e 20 na regional de Chapecó (fl. 551) – isso porque à época dorecurso um terceiro centro de internação, situado em São José, estava, veja-se,interditado.

Atualmente, segundo noticia a imprensa local, o Estado conta com umnovo centro, também em São José, que veio a suceder o antigo centro educacionalSão Lucas (interditado e adiante implodido), com capacidade, ao menos inicial, paraabrigar 90 jovens (até o fim desse ano), ainda que a demanda inicial fosse, em junhopassado, de mais de 160 vagas(http://ndonline.com.br/florianopolis/noticias/171613-amparo-social.html). Daí sepercebe que aparentemente qualquer iniciativa administrativa tem invariavelmentedemandado a prévia intervenção judicial, tal como se percebe na implementação donovo centro em São José.

Remanesce, assim, considerável déficit de vagas. O Estado afirmou quehá a pretensão de estabelecer atendimento regionalizado, com divisão doatendimento em 5 (cinco) macro-regiões (fl. 551). Mas ainda se transita muito planodas intenções; a justificativa da mora vem apoiada num surrado e bem conhecidodiscurso: falta tempo, falta planejamento e, sobretudo, orçamento. Ainda que sejamuito difícil dialogar diante dessas proposições, no caso particular não se podeignorar que o Estado chegou a formular acordo em juízo com o Ministério Público,ainda em junho de 2009, nos seguintes termos:

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CLÁUSULA PRIMEIRA – os litigantes resolvem: suspender o andamento dapresente lide pelo prazo de 06 (seis) meses, dentro do qual será elaborado umprojeto visando à readequação do espaço físico do Centro Educacional Regional(CER), buscando uma solução definitiva para alojamentos coletivos, assim como aeventual ocupação de espaço para a ala feminina; o Estado se compromete quedentro do referido prazo, uma vez concluídas as obras do CIP e CER de Itajaí,efetuará o remanejamento dos adolescentes internos pertencentes àquela região; noque diz respeito aos adolescentes oriundos da região Metropolitana da Capital,sempre que houver a necessidade internamento, a mesma será efetuada mediantepermuta com outro adolescente interno da mesma região; fica estabelecido aindaque qualquer internação de adolescentes fora da região de abrangência do CIP eCER – Lages será comunicada ao Juízo com a respectiva certidão deantecedentes; fica estabelecido o prazo de até noventa dias para início do programade semiliberdade (fl. 479)

O que formalmente passou a compor um acordo quando mais foiinterpretado pelo Estado como uma carta de intenções, pois não chegou a sercumprido, conforme viria adiante o Ministério Público a relatar (fls. 488-490). Eis emsíntese a solução dada pelo primeiro grau no julgamento da ação, onde cada umcumpriu seu papel, numa liturgia que se segue tanto odiosa quanto cotidiana: aAdministração, com as promessas (aqui formais), e o Judiciário, com o encargo defazê-las cumprir.

Daí porque não há mais escusas, e tampouco de alguma retórica demaior persuasão; afinal, ainda em 2009 o Estado propôs-se a implementar o quepedia o Ministério Público. A supor que não se tratava de um engodo, de umapromessa vã, já dispunha, àquela época, de condições para implementá-las, já queassim declarou, voluntariamente – inclusive abstendo-se, adiante, de contestar opedido inicial.

Penso, ainda, que a tutela deva ser resguardada. Lembro que a açãooriginalmente data de 2009, ano em que se firmou o acordo adiante descumprido; asentença, a seu turno, data de dezembro de 2011 (fl. 534). Houve tempo bastanterazoável até aqui para que se cumprisse obrigações visivelmente singelas. Aantecipação, portanto, é exigível, considerando, todavia, a suspensão incialdeterminada neste Tribunal (fl. 587), o prazo de cumprimento inicia-se com apublicação desta decisão, aguardando-se até 6 (seis) meses para o implemento dasvagas, e até 60 (sessenta) dias para as demais medidas, contados da publicação.

Isso posto, nego provimento ao recurso e, em sede de remessa oficial,altero a sentença tão somente para dilatar em 60 (sessenta) dias o prazo decumprimento das medidas, as quais foi imposto o cumprimento imediato.

É como voto.

Gabinete Des. Ricardo Roesler