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389 Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 33(4):389-400, jul-ago, 2000. ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO Diagnóstico e tratamento da hepatite B Diagnosis and treatment of hepatitis B Marcelo Simão Ferreira Resumo A hepatite B constitui grave problema de saúde pública. Estima-se que 350 milhões de pessoas, ou seja, 5% da população mundial sejam portadores dessa virose. Admite-se que a infecção evolui para a cura em 90% a 95% dos casos e para o estado de portador crônico nos restantes 5% a 10%; a infecção persistente pode resultar também em cirrose, insuficiência hepática e carcinoma hepatocelular. O diagnóstico de qualquer das formas clínicas da hepatite B realiza- se através de técnicas sorológicas. Os médicos, hoje, possuem acesso a modernas técnicas laboratoriais capazes de avaliar a carga viral, o índice de replicação do agente infeccioso e a eficácia das novas medicações utilizadas. Vários agentes antivirais têm sido usados no tratamento dos indivíduos com hepatite crônica, como o intérferon alfa, a lamivudina, o famciclovir, e o adefovir dipivoxil, entre outros. A imunização ativa utilizando as modernas vacinas recombinantes constitui, na atualidade, a arma mais importante no combate à infecção pelo vírus da hepatite B. Palavras-chaves: Hepatite viral. Hepatite B. Interferon. Lamivudina. Vacinas. Abstract Hepatitis B constitutes a serious public health problem. It has been estimated that 350 million people - approximately 5% of the world population - have been infected by this virus. Of the people infected, in 90% to 95% of them there will be a spontaneous resolution of the disease. In 5% to 10% of the cases, though, the infection will persist and a chronic hepatitis will develop that may evolve leading, in the end, to liver cirrhosis, liver failure and/or carcinoma of the liver. The diagnosis of the different stages of the disease (i.e., acute, chronic infection) is performed using modern serologic techniques. Physicians, more recently, are having access to a series of laboratory tests which permit them to evaluate the viral load, replication of the virus and to testing of the efficacy of new anti-viral drugs. For the treatment of chronic hepatitis B new agents have been tested and some are being used with different degrees of success, such as, alfa-interferon, lamivudine, famciclovir, and adefovir dipivoxil, among others. Active immunization, using modern recombinant vaccines, are lately, the most important instrument of control of the infection caused by the hepatitis B virus. Key-words: Hepatitis. Hepatitis B. Interferon. Lamivudine. Vaccine. Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Universidade Federal de Uberlândia, MG Endereço para correspondência: Dr. Marcelo Simão Ferreira. R. Goiás 480/500, 38400-027 Uberlândia, MG, Brasil. Telefax: 55 34 236-3151. Recebido para publicação em 19/5/2000. A hepatite B continua sendo um dos mais importantes problemas de saúde pública em todo o mundo. Cerca de 350 milhões de pessoas, ou seja, 5% da população do planeta, são portadores dessa virose 22 . A maioria dos indivíduos infectados concentra-se em determinadas áreas geográficas, tais como, o Sudeste Asiático, a África Central e a região Amazônica, onde a prevalência de marcadores sorológicos do vírus B (VHB) varia de 10% a 95% 22 . Um elevado percentual das pessoas que portam cronicamente esse patógeno não apresentam doença hepática ativa (portador são), mas a infecção persistente pode resultar também em cirrose, insuficiência hepática e carcinoma hepatocelular 1 31 (Figura 1). Durante as últimas décadas, estudos clínicos e experimentais desenvolvidos em todo mundo expandiram os conhecimentos sobre a hepatite

Diagnóstico e tratamento da hepatite b marcelo simão ferreira 2000

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Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical

33(4):389-400, jul-ago, 2000.

ARTIGO DE ATUALIZAÇÃO

Diagnóstico e tratamento da hepatite B

Diagnosis and treatment of hepatitis B

Marcelo Simão Ferreira

Resumo A hepatite B constitui grave problema de saúde pública. Estima-se que 350 milhões depessoas, ou seja, 5% da população mundial sejam portadores dessa virose. Admite-se que ainfecção evolui para a cura em 90% a 95% dos casos e para o estado de portador crônico nosrestantes 5% a 10%; a infecção persistente pode resultar também em cirrose, insuficiência hepáticae carcinoma hepatocelular. O diagnóstico de qualquer das formas clínicas da hepatite B realiza-se através de técnicas sorológicas. Os médicos, hoje, possuem acesso a modernas técnicaslaboratoriais capazes de avaliar a carga viral, o índice de replicação do agente infeccioso e aeficácia das novas medicações utilizadas. Vários agentes antivirais têm sido usados no tratamentodos indivíduos com hepatite crônica, como o intérferon alfa, a lamivudina, o famciclovir, e oadefovir dipivoxil, entre outros. A imunização ativa utilizando as modernas vacinas recombinantesconstitui, na atualidade, a arma mais importante no combate à infecção pelo vírus da hepatite B.Palavras-chaves : Hepatite viral. Hepatite B. Interferon. Lamivudina. Vacinas.

Abstract Hepatitis B constitutes a serious public health problem. It has been estimated that 350million people - approximately 5% of the world population - have been infected by this virus. Ofthe people infected, in 90% to 95% of them there will be a spontaneous resolution of the disease.In 5% to 10% of the cases, though, the infection will persist and a chronic hepatitis will developthat may evolve leading, in the end, to liver cirrhosis, liver failure and/or carcinoma of the liver.The diagnosis of the different stages of the disease (i.e., acute, chronic infection) is performedusing modern serologic techniques. Physicians, more recently, are having access to a series oflaboratory tests which permit them to evaluate the viral load, replication of the virus and to testingof the efficacy of new anti-viral drugs. For the treatment of chronic hepatitis B new agents havebeen tested and some are being used with different degrees of success, such as, alfa-interferon,lamivudine, famciclovir, and adefovir dipivoxil, among others. Active immunization, using modernrecombinant vaccines, are lately, the most important instrument of control of the infection causedby the hepatitis B virus.Key-words : Hepatitis. Hepatitis B. Interferon. Lamivudine. Vaccine.

Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Universidade Federal de Uberlândia, MGEndereço para correspondência: Dr. Marcelo Simão Ferreira. R. Goiás 480/500, 38400-027 Uberlândia, MG, Brasil.Telefax: 55 34 236-3151.Recebido para publicação em 19/5/2000.

A hepatite B continua sendo um dos maisimportantes problemas de saúde pública em todoo mundo. Cerca de 350 milhões de pessoas, ouseja, 5% da população do planeta, são portadoresdessa virose22. A maioria dos indivíduosinfectados concentra-se em determinadas áreasgeográficas, tais como, o Sudeste Asiático, aÁfrica Central e a região Amazônica, onde aprevalência de marcadores sorológicos do vírus

B (VHB) varia de 10% a 95%22. Um elevadopercentual das pessoas que portam cronicamenteesse patógeno não apresentam doença hepáticaativa (portador são), mas a infecção persistentepode resultar também em cirrose, insuficiênciahepática e carcinoma hepatocelular1 31 (Figura 1).Durante as últimas décadas, estudos clínicos eexperimentais desenvolvidos em todo mundoexpandiram os conhecimentos sobre a hepatite

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B em seus diferentes aspectos e, hoje, dispõem-se de sofisticadas técnicas para o seu diagnósticoe de drogas sabidamente eficazes para o seutratamento25 31. A aplicação de técnicas debiologia molecular permitiu também notáveisavanços no conhecimento do próprio VHB e nademonstração da sua importância como fatoretiológico de hepatopatias crônicas e dohepatocarcinoma25. A imunização ativa utilizandoas modernas vacinas recombinantes constitui, naatualidade, a arma mais importante no combatea essa virose37 38.

HISTÓRIA NATURAL DA HEPATITE B

A transmissão do VHB se faz fundamentalmenteatravés das vias parenteral e sexual46. O rigorosocontrole, hoje realizado, em grande parte dosbancos de sangue, praticamente eliminou dealgumas áreas geográficas, a transmissãotransfusional e na atualidade, a aquisição parenteralocorre, com poucas exceções, apenas em viciadosem drogas injetáveis, em inoculações acidentaiscom quantidades mínimas de sangue ou maisraramente, através da realização de acupunturae tatuagens17. Em regiões de prevalência alta, atransmissão perinatal adquire grande importância,

como ocorre, por exemplo, nos países do SudesteAsiático e na África Equatorial. A presença doVHB no sêmen e nas secreções vaginais facilitaa passagem de partículas infectantes através dassuperfícies mucosas, durante a relação sexual.A hepatite B pode ser considerada uma das maisimportantes doenças sexualmente transmissíveisdo homem46.

Certos grupos populacionais são consideradosde alto risco para aquisição do VHB; entre eles,incluem-se, profissionais de saúde das áreasmédico-odontológicas, hemodial isados,homossexuais masculinos, hemofílicos, prostitutas,toxicômanos, imunossuprimidos e deficientesmentais. A infecção também mostra-se altamenteprevalente em familiares de portadores crônicose em tribos indígenas da Região Amazônica12 13.

O VHB pode causar doença hepática agudae crônica. Após um período de incubação decerca de 45 a 180 dias, os indivíduos infectadosdesenvolvem quadro de hepatite aguda, namaioria das vezes subclínica e anictérica. Apenas20% evoluem com icterícia e em cerca de 0,2%dos pacientes, a doença assume caráterfulminante com alta letalidade38. Classicamente,admite-se que a infecção aguda pelo VHB evolui

Figura 1 - Estimativa da prevalência de portadores (AgHBs+) do vírus da hepatite B no mundo.

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para a cura em 90% a 95% dos casos, e para oestado de portador crônico nos restantes 5% a10%. Metade desses portadores não apresentamdoença hepática (portadores sãos), mas a outrametade mostra sinais de atividade inflamatóriano fígado, de variada intensidade, por muitosanos, podendo desenvolver cirrose hepática e/ou hepatocarcinoma nas fases mais tardias daenfermidade11 29 42. Nos recém-nascidos de mãesportadoras do VHB, a cronicidade da infecção éa regra e cerca de 98% das crianças persistemcom marcadores sorológicos de infecção ativapelo VHB, durante várias décadas da vida42.

Nos pacientes com hepatite crônica B(definida sorologicamente como persistência doantígeno de superfície do VHB-AgHbs por maisde 6 meses) pode-se observar, durante a sualonga evolução, a presença de duas fases bemdistintas e de duração variável43; na primeira, emgeral, correspondendo à períodos mais precocesda doença, o VHB demonstra intensa replicação,comprovada pela presença no soro do AgHbs,do antígeno “e” (AgHbe), do próprio DNA viral(DNA-VHB), detectado por técnica de reação emcadeia da polimerase (PCR), além dos anticorposcontra o core viral (anti-Hbc) da classe IgG e,ocasionalmente, da classe IgM; a biópsiahepática nesses indivíduos mostra atividadeinflamatória portal e periportal que pode variarde leve a intensa, na dependência do grauimunitário do indivíduo. O VHB, nessa fase, aindanão se encontra integrado ao genoma dohepatócito, existindo sob forma epissomal; aexpressão de antígenos virais na membrana dohepatócito é abundante, facilitando a ação delinfócitos T citotóxicos. Esse período podepersistir por vários anos. Ao longo do tempo,entretanto, esses pacientes tendem a permanecerpositivos para o anti-Hbe (15% a 20% ao ano),indicando que o grau de replicação reduziu,trazendo como conseqüência a diminuição dareação inflamatória no fígado43. Vale salientar,contudo, que, a replicação viral não encontra-setotalmente abolida, uma vez que técnicas maissensíveis (PCR) podem comprovar a presençado DNA viral no soro e tecido hepático32.Infelizmente, a soroconversão Hbe/anti-Hbeocorre em fases avançadas da hepatopatiacrônica em um substancial número de doentes,e os benefícios que dela advém pouco alteram oprognóstico desses indivíduos. A soroconversãoHbe/anti-Hbe, em geral é precedida por elevaçãoabrupta das aminotransferases e exacerbaçãodos fenômenos histológicos de inflamação

indicando que está havendo clareamento imunedas partículas virais no fígado6; esse fenômenopode ter intensidade variável, podendo adquirircarácter fulminante em alguns casos7. É possívelque essa soroconversão se antecipe com o empregode drogas tais como, intérferon e lamivudina,trazendo benefícios aos pacientes, antes que adoença evolua para a cirrose hepática32.

Nesse período de brusca elevação dasaminotransferases torna-se necessário afastar apossibilidade de que outros agentes (drogas,vírus delta, A, C) possam estar exacerbando aslesões inflamatórias preexistentes no fígado.

Após a soroconversão, podem surgir fenômenosde reativação, caracterizados pelo reaparecimentodos marcadores de replicação e exacerbaçãodas atividades bioquímica e histológica6 7. Essareativação pode ocorrer de forma espontânea ouapós o emprego de drogas imunossupressoras(corticóides, quimioterápicos antineoplásicos,etc), podendo adquirir carácter fulminante emalguns casos6. Diversos fatores podem modificara história natural da infecção pelo VHB.Coinfecções com outros vírus como o vírus daimunodeficiência humana (VIH), vírus dahepatite C (VHC) e vírus da hepatite delta (VHD),alcoolismo crônico, uso concomitante de drogashepatotóxicas e imunossupressão são condiçõesque podem alterar o curso clínico da doença e/ou exacerbar a replicação do VHB5; nos estadosde imunossupressão, por exemplo, apesar doaumento da carga viral do hospedeiro, observa-se uma menor agressão do sistema imune aoshepatócitos infectados pelo vírus, resultando emníveis de aminotransferases séricos poucoexpressivos e ausência de inflamação e fibroseà biópsia hepática; também, o percentual deportadores crônicos do vírus se torna maior apósa infecção primária pelo VHB, devido àincapacidade desses indivíduos com déficitimunitário em clarear esse patógeno5.

Em determinadas regiões do mundo, comopor exemplo, na região do Mediterrâneo, cepasmutantes do VHB podem infectar um percentualelevado dos portadores. A mutação mais conhecidaé a que ocorre no segmento pré-core do genomado VHB gerando um códon que indica paradade transcrição (stop codon). Nessa situação oAgHbe não é mais produzido, embora a replicaçãoviral continue inalterada. A infecção humana poressa mutante parece associar-se a formasgraves de hepatopatias, inclusive fulminantes39.

A cirrose hepática se instala progressivamentena hepatite crônica B, muitas vezes de forma

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oligo ou assintomática; a replicação pode estarpresente nessa fase, embora seja maisfreqüente o encontro do anti-Hbe42. Períodos deexacerbação da doença nesses doentes podemdeteriorar substancialmente a função hepáticaremanescente11. O risco do surgimento dehepatocarcinoma é grande e os pacientes devemse submeter a um protocolo de vigilância a cada3 ou 4 meses, com dosagem da alfafetoproteínasérica e realização de ultra-sonografia de altaresolução, objetivando detectar precocemente apresença de lesões neoplásicas de pequenotamanho (< 2cm), passíveis de tratamentocirúrgico ou por alcoolização. Há evidências deque a terapia antiviral com intérferon podeprevenir o surgimento do hepatocarcinoma empacientes com cirrose pelo HBV26.

DIAGNÓSTICO DA HEPATITE B

O diagnóstico de qualquer das formas clínicasda hepatite B realiza-se através de técnicassorológicas. Tais técnicas revelam-se fundamentaisnão apenas para o diagnóstico, mas tambémmostram-se muito úteis no seguimento dainfecção viral, na avaliação do estado clínico dopaciente e na monitorização da terapêuticaespecífica18 19. As importantes descobertasrealizadas nas áreas da virologia e da biologiamolecular desses vírus, nos últimos anos, foramprogressivamente sendo incorporados à rotina

diária dos laboratórios de patologia clínica,permitindo aos médicos acesso às modernastécnicas capazes de avaliar a carga viral presenteno indivíduo, o índice de replicação do agenteinfeccioso e a eficácia de novas medicaçõesutilizadas no tratamento dessa virose25. Serãoanalisados de forma sumária, os padrões deresposta sorológica observados nas váriasformas clínicas da hepatite B.

Hepatite aguda. A fase aguda da hepatite Bcaracteriza-se pela intensa replicação viral,que ocorre tanto nas formas sintomáticas,ictéricas da doença, quanto nas anictéricas eoligossintomáticas. O período de incubação variade 2 a 6 meses. Cerca de 6 semanas após acontaminação, o AgHbs já encontra-se presenteno soro, podendo permanecer positivo nos casosagudos por até 180 dias quando então desaparecee dá lugar ao surgimento do anticorpo anti-Hbs,algumas semanas ou meses depois, períodoesse denominado de janela imunológica. Osurgimento do anticorpo anti-HBs indica sempreresolução do processo, conferindo imunidadeduradoura à infecção pelo VHB. Cerca de 5% a10% dos pacientes persistem com o AgHbs nosoro além de 6 meses, tornando-se, portanto,portadores crônicos do vírus19. Nas Figuras 2 e3 estão demonstrados os marcadores da hepatiteB no sangue dos indivíduos com uma infecçãoprimária típica com evolução para cura (Figura2) e para hepatite crônica (Figura 3).

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Figura 2 - Os marcadores da hepatite B no sangue dos indivíduos com a infecçãoprimária típica (positivos para o HBsAg) pelo vírus da hepatite B.

semanas anos

Tempo após a infecção pelo VHB

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Durante o período de incubação detectam-se, poucos dias após o surgimento do AgHbs,anticorpos dirigidos contra o AgHbc (antígenocore do vírus B); inicialmente surge a fração IgM(anti HbcIgM), marcador considerado diagnósticopara a fase aguda da hepatite B, embora estejapresente também em alguns indivíduos comforma crônica da doença, particularmente nosperíodos de reativação. O anticorpo IgG contrao AgHbc também encontra-se presente navigência da infecção aguda, quando aumentaprogressivamente seus t í tu los no soro,permanecendo positivo em valores mais baixos,na maioria dos indivíduos, pelo resto da vida,mesmo após a cura da virose. O anti-HbcIgGconstitui o marcador clínico e epidemiológicomais importante da infecção pelo VHB. Detecta-se o antígeno Hbe (AgHbe) na fase inicial dainfecção, pouco antes do surgimento do quadroclínico da doença aguda. Constitui um marcadorindicativo de alta replicação viral. Sua duraçãonessa fase revela-se efêmera, desaparecendoem poucas semanas, dando lugar ao aparecimentodo anti-Hbe. Sua persistência, além de 3 mesesno sangue, pode indicar evolução para acronicidade. Embora, obviamente estejampresentes na vigência da fase aguda, o DNA do

VHB e a atividade da DNA polimerase não sãomarcadores utilizados nessa fase. A detecção doAgHbs, anti-Hbc (IgM e IgG) e AgHbe/anti-Hbese faz na atualidade, utilizando-se técnicasimunoenzimáticas (ELISA) e, mais raramente,radioimunoensaio. Detecta-se o DNA-viral porPCR e a atividade da DNA polimerase, hojepouco utilizada, através da incorporação de ATPmarcado com 3 H18 19 23 50.

Hepatite fulminante. Nas formas graves,fulminantes da hepatite B, o AgHbs desaparecerapidamente, em geral, dentro de 4 semanas apóso surgimento do quadro clínico. Nessa modalidadeda doença, o diagnóstico baseia-se no encontrodo anti HbcIgM, que indica infecção aguda peloVHB; o DNA viral mostra-se sempre presente nafase inicial do processo e deve ser solicitadorotineiramente nesses doentes. Se o indivíduosobrevive ou é submetido ao transplantehepático, o anti-Hbs pode surgir precocemente,denotando resolução da virose19 41.

Hepatite crônica. O perfil sorológico nahepatite crônica B já foi praticamente discutidona história natural do VHB, descrita nessarevisão. Resta, como foi salientado, documentarnesses indivíduos se a replicação viral mostra-

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Figura 3 - Os marcadores da hepatite B no sangue dos indivíduos com a infecção típicapelo vírus da hepatite B que se torna persistente.

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Tempo após a infecção pelo VHB

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se [AgHbe(+); DNA-VHB(+)] ou não [anti Hbe (+);DNA-VHB (-)] presente. A demonstração dainfecção pela mutante pré-core - anti Hbe (+);DNA-VHB (+) revela-se de grande importânciana indicação terapêutica, uma vez que essavariante do vírus costuma responder mal à terapiacom intérferon39. Co-infecções com outros víruspodem ser documentados sorologicamente;na associação com o vírus delta, o antidelta (anti-HD) total encontra-se presente, conjuntamentecom o RNA do vírus detectado por PCR; na co-infecção com o vírus C, o anti-VHC (ELISA de 3a

geração), com confirmação da positividade doresultado pelo immunoblot (RIBA) ou PCR paradetecção do RNA do VHC, constitui o método deeleição para o diagnóstico26. A biópsia hepáticaencontra a sua indicação na avaliação dospacientes cronicamente infectados pelo VHB. Nelapode-se graduar a magnitude do processoinflamatório e da fibrose e ainda, através detécnicas de imunohistoquímica, documentar apresença de antígenos S e Core do VHB notecido. Também na co-infecção pelo vírus delta,a imunohistoquímica pode revelar o antígeno dahepatite delta (AgHD) no núcleo dos hepatócitos.

Cirrose hepática. Na cirrose pelo VHB, podehaver ou não evidências de replicação viral. Apresença do AgHbe e do DNA-VHB deve serutilizada para distinguir as duas formas. Nos casoscom replicação, a atividade necroinflamatóriarevela-se maior e pode levar mais rapidamente àdescompensação da doença. Como já mencionado,a maioria dos doentes cirróticos exibe a presençado anti-Hbe. A infecção pela mutante pré-coreparece condicionar a uma evolução mais rápidapara cirrose hepática e portanto deve serdetectada precocemente26.

Hepatocarcinoma. Nos hepatocarcinomasrelacionados ao VHB, o AgHbs e o anti-Hbcencontram-se, em geral, presentes no soro,embora em alguns pacientes, o AgHbs séricopossa apresentar-se negativo ou em baixostítulos, porém, mantendo-se a positividade do antiHbc. A integração do DNA viral ao DNA dohospedeiro parece ser o evento inicial, que induzalterações celulares e no genoma do VHB, gerandoprocessos de mutagênese e carcinogênese.As seqüências do DNA do VHB podem seridentificadas por PCR em tecidos tumorais depacientes AgHbs negativos, mas com anti-Hbc,e, mesmo, anti-Hbs séricos positivos.

Portador são crônico do VHB. Portadoressãos do VHB mostram, em geral, a presença do

AgHbs no soro por mais de 6 meses e dosagensdas aminotransferases séricas persistentementenormais. Em geral, não há sintoma ou sinalrelacionado à infecção crônica viral relatado pelopaciente. Os marcadores de replicação do VHBpodem estar presentes embora a maioria doscasos demonstra ser HbeAg negativo e anti-Hbepositivo. Quando biopsiados, a histologia hepáticanão revela sinais de atividade inflamatória nagrande maioria dos casos. Não há indicação deterapia antiviral para esses indivíduos, poisraramente apresentam resposta às medicações(< 10%), devido a imunotolerância secundária àexposição precoce ao vírus20 26.

TERAPIA DA HEPATITE B

Nenhuma forma de tratamento específicoencontra-se indicada nas formas agudassintomáticas da hepatite B. Como já referido,cerca de 95% dos pacientes evoluem para a curaespontânea da infecção com aparecimento deanticorpos anti-Hbs, indicativos da resolução doprocesso. Aproximadamente, 2 a 3 pacientes por1.000 infectados desenvolvem hepatite fulminantea subfulminante, formas com elevada mortalidade(> 80%) e que necessitam ser tratadas emunidades de terapia intensiva, devido às múltiplascomplicações decorrentes da insuficiênciahepática aguda26. A melhor forma de tratamentodesses doentes é através do transplantehepático, que tem sido realizado em várioscentros do mundo, com grande sucesso. Emalgumas casuísticas, a sobrevida após cincoanos de transplante nesses pacientes encontra-se em torno de 80%. A recorrência da infecção,nesses casos, revela-se improvável, uma vez quea replicação cessa rapidamente, inclusive comdesaparecimento do AgHbs e surgimentoprecoce do anti-Hbs19 41.

O grande contingente de indivíduosinfectados pelo VHB com indicações paratratamento específico é representado principalmentepelos doentes com hepatite crônica e cirrosehepática. Muitas drogas têm sido avaliadas notratamento dessa virose nos últimos 10 anos, ea eficácia de cada uma delas em estudoscontrolados apresenta resultados bastantevariáveis. O principal objetivo no tratamento dainfecção crônica pelo HBV é o de suprimir areplicação viral antes que ocorra dano irreversívelao fígado. Detalhadamente, podemos dividir osobjetivos a serem alcançados com a terapêuticaantiviral em três tópicos33 34: a) supressão

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sustentada da replicação do VHB que pode serdemonstrada por: (1) DNA-VHB indetectável nosoro (PCR-aninhado negativo); (2) soroconversãoHbeAg/anti-Hbe; (3) soroconversão HbsAg/anti-Hbs; b) remissão total ou parcial da doençahepática: (1) normalização das aminotransferasesséricas; (2) supressão da atividade necroinflamatóriaà biópsia hepática; c) diminuição do risco dedesenvolvimento tardio de cirrose hepática ehepatocarcinoma, com conseqüente aumento dasobrevida.

O intérferon α (IFNα) foi a primeira drogaaprovada para tratamento da infecção crônicapelo VHB. O IFNα possui atividade antiviral eimunomoduladora e ambas as ações mostram-se importantes no tratamento dessa virose.Realizou-se a maioria dos estudos clínicos comessa medicação, embora o IFNβ, que possuiefeito antiviral predominante, também seja ativo.A terapia com IFNα deve ser considerada empacientes com hepatite crônica B, com evidênciasde replicação viral (HbeAg e VHB-DNA positivos)e doença hepática ativa, (aminotranferaseselevadas e atividade necroinflamatória à biópsiado fígado)31 32. Os cirróticos compensados comevidências de replicação viral, devem tambémser considerados candidatos ao tratamento. Aocontrário, hepatopatas crônicos com icterícia,ascite ou sinais de encefalopatia não devemser tratados com IFNα, devido ao risco dedesencadeamento de insuficiência hepática e deinfecções bacterianas graves. A dose comumenteadministrada de IFNα para pacientes comhepatite crônica B é de 5 milhões de unidadesdiárias ou 10 milhões de unidades três vezespor semana, por via subcutânea, durante 4 a 8meses21 31 32.

Uma metanálise dos estudos controlados,randomizados, mostrou que, essa citocina ébenéfica para esses indivíduos e observou-seuma diferença significativa entre pacientestratados e controles, quando avaliados após 6-

12 meses de seguimento pós-tratamento; oclareamento do HbeAg ocorreu em 33% dostratados, comparado com 12% dos não tratados;o VHB-DNA desapareceu em 37% dos tratadose em 17% dos não tratados; e o AgHbs em 8%dos que receberam a droga contra 1,8% dos quenão a receberam49. Os pacientes que responderamà medicação desenvolveram anti-Hbe, normalizaramas aminotransferases e mostraram sensíveldiminuição da atividade inflamatória à biópsiahepática49. Cerca de 70% dos doentes que sebeneficiaram com o tratamento, mostraramexacerbação da atividade necroinflamatóriahepát ica precedendo a soroconversão;aumentos, por vezes consideráveis dasaminotransferases séricas foram documentadosnesse período. Esse fato, provavelmente decorrede uma lise imunomediada dos hepatócitosinfectados, ressaltando-se, entretanto, que, empacientes cirróticos, esses fenômenos dereativação enzimática podem precipitar adescompensação clínica26 36 49. Em algunsindivíduos, a soroconversão Hbe/anti-Hbe, podeocorrer tardiamente, cerca de 3 a 6 meses, apóso término da terapia. A vasta maioria (80-90%)dos respondedores costuma manter a respostaà terapia muitos meses depois de tratados30. Aerradicação completa da infecção pelo VHB temsido raramente documentada, embora umclareamento tardio do AgHbs encontra-sereportado em 25% a 65% dos respondedoresapós vários anos de seguimento26 30 33 40. Ospacientes que não responderam a um primeirocurso de tratamento com IFNα, podem serretratados com o mesmo esquema terapêuticodurante 6 meses; um estudo recente mostrou queum terço desses doentes apresentaram remissãoda doença após o novo tratamento3.

Vários fatores têm sido identificados comopreditivos de boa resposta ao tratamento comIFNa30 34 36 49. Na Tabela 1, alinham-se algunsfatores preditivos.

Tabela 1 - Fatores preditivos de resposta favorável ao tratamento da hepatite B crônica com interferon a.a) altos níveis de aminotransferases (> 100UI) séricos pré-tratamento

b) baixos níveis do DNA-VHB, pré-tratamento, no soro (< 200 pg/ml)

c) sexo feminino

d) histologia hepática com atividade necroinflamatória moderada a grave

e) infecção pelo VHB adquirida na fase adulta

f) ausência de co-infecções com outros vírus (VIH, VHC, VHD)

g) comportamento heterossexual.

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A resposta ao tratamento da infecção crônicapelo VHB com IFNα não se mostra uniforme emtodos os grupos de doentes infectados. Naquelesque são AgHbe (+) e DNA-VHB (+), mas comaminotransferases normais a resposta à terapiarevela-se ruim (< 10%), provavelmente, porquehá tolerância imunológica ao microorganismo,secundária à exposição precoce (neonatal) aoVHB34. Nos portadores da mutante pré-core - Hbe( - ) , a n t i H b e ( + ) , D N A - V H B ( + ) - c o maminotransferases elevadas, o tratamento comIFNα mostra-se eficaz inicialmente, mas asrecidivas tornam-se muito comuns após asuspensão da medicação2. Às vezes essesindivíduos se beneficiem com uma duração maiorda terapia (18 a 24 meses)2 21. A eficácia e atolerância ao tratamento com IFNα em criançascom infecção pelo VHB replicativa revelaram-sesimilares às observadas em adultos36.

Vários efeitos adversos encontram-seassociados ao uso prolongado do IFNα; os maiscomuns são os relacionados à chamadasíndrome flu-like, em que febre, mialgias, malestar e cefaléia estão presentes. Outros efeitoscolaterais incluem perda de peso, alopécia,distúrbios neuropsiquiátricos (incluindo depressãoprofunda e suicídio) e queda no número deleucócitos e plaquetas. Os portadores deafecções autoimunes não devem fazer uso dessamedicação, devido ao risco de exacerbação dadoença durante a terapêutica21 30 36 49.

Diversos medicamentos têm sido, recentemente,utilizados no tratamento da infecção crônica peloVHB. A descoberta de que esse vírus utiliza aenzima transcriptase reversa no seu ciclo dereplicação celular, motivou vários autores aempregar medicações inibidoras dessa enzima,habitualmente indicadas para o tratamento dainfecção pelo HIV, na terapêutica da hepatitecrônica B. A lamivudina (3-thiacytidina - 3TC),um análogo de nucleosídeo, de potente açãocontra a transcriptase reversa, mostrou ser adroga mais promissora desse grupo notratamento da hepatite B8 10 24. Ela inibe a síntesedo DNA-VHB, a partir do RNA pré-genômico,bloqueando portanto a síntese de novaspartículas virais. Na maioria dos estudos atéagora realizados, a dose utilizada foi de 100mgdiária, por via oral, por no mínimo 12 meses. Adroga mostrou-se bem tolerada e produziu rápidodecréscimo dos níveis do DNA-VHB no soro quepersistiu durante toda terapia, mas após o seutérmino houve reaparecimento do ácido nucléico

viral em níveis similares aos observados antesdo tratamento8 10. A soroconversão Hbe/anti-Hbeocorreu em 15% a 20% dos pacientes tratados,percentuais esses similares aos documentadosapós um curso de 4 meses de monoterapia comIFNα. Constatou-se a melhora bioquímica ehistológica em aproximadamente 50% dosdoentes, incluindo alguns que não haviam alcançadoa soroconversão. A progressão da fibrose hepáticafoi retardada significativamente em todos osindivíduos tratados com lamivudina comparadoscom o placebo, independentemente da respostasorológica8 10 24.

O alto índice de recidivas observado após otérmino da terapêutica com lamivudina podeestar relacionado à persistência do DNA-VHBcircular (cccDNA) no núcleo do hepatócito31 32.Esses ácidos nucléicos servem de molde paratranscrição do RNA pré-genômico. A maioria dosantivirais ativos sobre o VHB possui pouco ounenhum efeito sobre o DNA-VHB circular donúcleo hepatocítico, e isso parece ser a causado rápido reaparecimento do ácido nucleico viralno soro após o término da terapia. Teoricamente,o clareamento viral poderia ser alcançado se asdrogas fossem utilizadas por tempo prolongado,até que se esgotasse o pool do cccDNA, cuja meia-vida revela-se muito longa e, o seu desaparecimentoparece ser dependente da eliminação progressivados hepatócitos infectados31 32. Um estudorecente demonstrou que o prolongamento daterapia com lamivudina para 18 meses levou àperda do AgHbe em 38%, desaparecimento doDNA-VHB em 100% dos casos, além denormalização das aminotransferases séricas em43% dos pacientes tratados; a perda do AgHbemanteve-se sustentada após a retirada da droga,o que sugere que a medicação possa ser suspensaapós o desaparecimento desse marcadorsorológico9.

A lamivudina também encontra-se indicadana terapia de pacientes portadores de hepatitecrônica pela mutante pré-core do VHB. Comoesses indivíduos não possuem AgHbe, o objetivofinal da terapêutica recai sobre o desaparecimentodo DNA-VHB, além da melhora bioquímica ehistológica. Dois estudos demonstraram aeficácia virológica, bioquímica e histológica dessadroga nesses pacientes, comparada ao placebo,embora em um deles o índice de recidiva pósterapêutico tenha sido elevado27 44 47.

Os pacientes com cirrose hepática pelo VHB,em fase replicativa, também demonstraram

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melhora significativa nos seus parâmetrosbioquímicos e virológicos, quando tratados coma lamivudina. A evolução e a sobrevida nessescasos aparentemente foram melhores nosdoentes submetidos à terapêutica com esseantiviral8 10 27 31 32 48.

Ao contrário do IFNα, poucas variáveis temdemonstrado valor preditivo na resposta aotratamento com lamivudina. Um trabalhoconduzido no Sudeste Asiático demonstrou quealtos níveis de alanina aminotransferase pré-terapia constituem fortes determinantes para asoroconversão Hbe/anti-Hbe durante a terapia eesse parâmetro, portanto, deve ser consideradona seleção dos pacientes que irão ser tratados.Os níveis de DNA-VHB séricos e a presença defibrose à biópsia correlacionaram-se menos coma perda do AgHbe nesse estudo4.

A eficácia da lamivudina no tratamento depacientes que não responderam à terapêuticacom IFNα foi recentemente avaliado em estudomulticêntrico que envolveu 238 pacientes. Nessetrabalho, avaliou-se também se a terapiacombinada (IFNα + lamivudina) era mais eficazdo que a droga utilizada isoladamente. Namonoterapia com lamivudina (100mg, VO, por 1ano) observou-se soroconversão Hbe antiHbeem 18%, normalização das aminotransferasesem 44% e melhora histológica em 52% dos casostratados; curiosamente, a combinação de drogasIFNα e lamivudina por 16 semanas, não mostroueficácia superior à da monoterapia (soroconversão:12%; aminotransferases normais: 18% e melhorahistológica: 32%)16 45. Novos estudos mostram-senecessários para avaliar o efeito da combinaçãode drogas no tratamento da hepatite B.

O maior problema resultante do tratamentoprolongado com lamivudina é o desenvolvimentode resistência por mutação na polimerase doVHB. A mais importante delas resulta em umasubstituição de metionina por valina ou isoleucinano locus YMDD da molécula de DNA-polimerase.Essa substituição de aminoácidos confereresistência de magnitude de cerca de 10.000vezes, sugerindo que a resposta antiviral nãopode ser restabelecida aumentando-se a doseda medicação. A incidência dessa mutação temsido reportada em cerca de 15% a 25% dospacientes tratados por um ano e de 40% nos quereceberam a droga por dois anos. O índice demutações parece ser maior e mais precoce nospacientes por tadores do HIV, uma vez quepraticamente 100% deles desenvolvem mutantes

após 3-4 meses de tratamento. O desenvolvimentode resistência deve ser suspeitado quando,durante o período de administração da droga, oDNA-VHB reaparece e as aminotransferasesvoltam a se elevar. Raras vezes, hepatite graveou descompensação da cirrose hepática já foramdocumentadas em indivíduos que desenvolverammutações28. Em algumas publicações, os efeitosbenéficos da administração continuada delamivudina em pacientes que já desenvolverammutações foram demonstrados e esse fatoprovavelmente deve-se à baixa capacidade dereplicação das cepas mutantes. A retirada damedicação leva ao rápido desaparecimentodessas cepas e ao ressurgimento da cepaprimitiva, existente antes do tratamento8 10 28 31 32.

Poucos efeitos colaterais têm sido observadosdurante a terapia com lamivudina, mesmoquando administrada em doses maiores (300mg/dia). A diarréia pode eventualmente surgirdurante o uso da medicação. A redução da dosemostrou-se necessária em pacientes cominsuficiência renal (clearence de creatinina< 50ml/minuto)8 10 27 31 32.

Ou t ros agen tes an t i v i ra i s j á f o ramempregados no tratamento da hepatite crônicaB. O famciclovir, um análogo de nucleosídeo,muito utilizado na terapêutica de infecçõesherpéticas, mostrou-se muito ativo em inibir areplicação do VHB, embora seu efeito sobre osníveis do DNA-VHB tenha sido menos potente ede caráter transitório. Sua ação, entretanto, jáfoi comprovada em doentes com cirrose hepáticadescompensada e na hepatite B recidivante apóso transplante hepático. A dose regularmenteempregada é de 500mg, por via oral, a cada 8horas durante 4 a 6 meses. As mutantes resistentesjá foram identificadas em pacientes submetidosa longos cursos de tratamento. Essas mutantespodem demonstrar resistência cruzada com alamivudina. Menos de 2% dos pacientes tratadosmostram efeitos colaterais ao famciclovir; entreos mais comuns, citam-se as náuseas, a dorabdominal, a diarréia, a cefaléia, a fadiga e asonolência35.

Outros análogos de nucleosídeos encontram-se em avaliação no tratamento da hepatitecrônica B. O adefovir dipivoxil, em estudospreliminares, mostrou-se potente inibidor dareplicação do VHB, reduzindo significativamenteos níveis de DNA-VHB séricos e promovendosoroconversão Hbe/anti-Hbe em larga proporçãodos pacientes tratados. Existem evidências da

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ação dessa droga em cepas do VHB mutantesresistentes à lamivudina14.

Novas abordagens terapêuticas têm sidoensaiadas na terapia da hepatite crônica B.Moléculas anti-sense ou ribozymes que impedema transcrição do DNA-VHB e do RNA-VHB,interleucina 2, interleucina 12, intérferon gama,levamisol, timosina e terapêutica imunomoduladorautilizando vacinas (vacinas de DNA, vacinas decélulas T) já foram utilizados em trabalhoscontrolados ou em casos isolados de hepatitecrônica B, com resultados promissores, masestudos adicionais mostram-se necessários paradeterminar o verdadeiro papel dessas abordagensna infecção crônica pelo VHB15.

Infelizmente, muitos pacientes infectados como VHB, evoluirão com ou sem tratamento, paraa cirrose hepática e o hepatocarcinoma. Oscirróticos descompensados, com icterícia, ascitee encefalopatia hepática, possuem poucaschances de resposta a qualquer terapia antivirale, portanto, devem ser encaminhados para otransplante hepático. O maior problema observado

nos transplantados VHB positivos é a reinfecçãodo enxerto com desenvolvimento de hepatitecrônica, que pode ser grave em alguns casos,levando o paciente ao óbito31. Essa forma dedoença hepática no transplantado é chamada dehepatite colestática fibrosante e parece dependerde injúria hepatocítica decorrente de efeitocitopático do vírus, quando a carga viral encontra-se muito alta. O famciclovir e a lamivudina têmsido utilizados com algum sucesso para trataras recorrências do VHB em pacientessubmetidos à transplante31 48. Essas drogaspodem inclusive prevenir a reinfecção do fígadose forem administradas, pelo menos um mêsantes do transplante e por, no mínimo, um anoapós a cirurgia. Altas doses de imunoglobulinaanti-hepatite B também têm sido usadas paraprevenir a reinfecção, mas infelizmente, algunsestudos demonstraram que esses anticorposretardam, mas não evitam a infecção posteriordo enxerto.

A Tabela 2 resume as principais estratégiashoje utilizadas no tratamento da infecção crônicapelo VHB.

Tabela 2 - Estratégias utilizadas no tratamento da infecção crônica pelo vírus da hepatite B.AgHbs AgHbe/anti Hbe DNA-VHB ALT/AST Histologia Conduta

+ +/- + normais normal IFNα ineficaz; lamivudina pode ser benéfica?

Vigilância para hepatocarcinoma necessária.

+ -/+ - normais normal expectante; vigilância para hepatocarcinoma necessária.

+ +/- + elevadas HC IFNα por 4 a 8 meses; lamivudina por 1 ano (mínimo)

+ -/+ + elevadas HC IFNα ou lamivudina; elevado índice de recidivas.

(mutante pré-core)

+ +/- + elevadas cirrose Lamivudina; vigilância para

compensada hepatocarcinoma; duração da terapia desconhecida

+ +/- / -/+ +/- normais ou cirrose Lamivudina nos AgHbe/DNA positivos(?);

elevadas descompensada vigilância para hepatocarcinoma; transplante hepático.

VHB = vírus da hepatite B; HC + hepatite crônica; ALT/AST + aminotransferases; IFNα - intérferon α

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