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ESTADO DE SANTA CATARINA PROCURADORIA GERAL DO ESTADO GABINETE DO PROCURADOR-GERAL DO ESTADO Página 1 de 64 Av. Osmar Cunha, 220, Ed. J.J.Cupertino, Centro, Florianópolis – SC – CEP 88015-100 – Fone: (48) 3216-5500 - www. pge.sc.gov.br EXCELENTÍSSIMOS SENHORES MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ESTADO DE SANTA CATARINA, pessoa jurídica de direito público interno, inscrita no CNPJ sob o n. 82.951.310/0001-56, com sede na Rod. SC 401, km 5, n. 4600, CEP 88032-900, Saco Grande, Florianópolis/SC, pelo Procurador do Estado abaixo assinado, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, nos termos do art. 12, I, do Código de Processo Civil, art. 132 da Constituição Federal e art. 69, I, da Lei Complementar Estadual 317/05, com endereço profissional na Procuradoria Geral do Estado, localizada na Av. Osmar Cunha, 220, CEP 88015-100, Florianópolis/SC, vem, perante Vossas Excelências, propor a presente AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA em face da UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público, com sede na Capital Federal, podendo ser citada no endereço da Advocacia Geral da União, Ed. Sede I - Setor de Autarquias Sul - Quadra 3 - Lote 5/6, Ed. Multi Brasil Corporate - Brasília-DF - CEP 70.070-030 - Fones: (61) 2026-9202 / 2026-9712; e da FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI, fundação pública pertencente à Administração Federal Indireta, com sede na Capital Federal, podendo ser citada no endereço SBS Quadra 02, Lote 14, Ed. Cleto Meireles, CEP 70.070-120 - Brasília/DF - Telefone: (61) 3247-6000, pelos fundamentos de fato e de direito que passa a expor: 1. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL O art. 102, I, "f", da Constituição Federal de 1988 estabelece uma das hipóteses de competência originária do Supremo Tribunal Federal, verbis: Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: [...] f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta; (grifou-se) Trata-se de competência criada para conferir foro especial a conflitos judiciais federativos, cujo conteúdo seja passível de demonstrar uma animosidade considerável entre os entes da Federação mencionados. Nessa hipótese funciona o STF como um Tribunal da Federação,

Ação Civil sobre demarcação de terras no Morro dos Cavalos

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Ação Civil sobre demarcação da terra indígena no Morro dos Cavalos, em Palhoça

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EXCELENTÍSSIMOS SENHORES MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

ESTADO DE SANTA CATARINA, pessoa jurídica de direito público interno, inscrita no CNPJ sob o n. 82.951.310/0001-56, com sede na Rod. SC 401, km 5, n. 4600, CEP 88032-900, Saco Grande, Florianópolis/SC, pelo Procurador do Estado abaixo assinado, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, nos termos do art. 12, I, do Código de Processo Civil, art. 132 da Constituição Federal e art. 69, I, da Lei Complementar Estadual 317/05, com endereço profissional na Procuradoria Geral do Estado, localizada na Av. Osmar Cunha, 220, CEP 88015-100, Florianópolis/SC, vem, perante Vossas Excelências, propor a presente

AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA em face da UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público, com sede na Capital

Federal, podendo ser citada no endereço da Advocacia Geral da União, Ed. Sede I - Setor de Autarquias Sul - Quadra 3 - Lote 5/6, Ed. Multi Brasil Corporate - Brasília-DF - CEP 70.070-030 - Fones: (61) 2026-9202 / 2026-9712;

e da FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI, fundação pública pertencente à

Administração Federal Indireta, com sede na Capital Federal, podendo ser citada no endereço SBS Quadra 02, Lote 14, Ed. Cleto Meireles, CEP 70.070-120 - Brasília/DF - Telefone: (61) 3247-6000, pelos fundamentos de fato e de direito que passa a expor:

1. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL O art. 102, I, "f", da Constituição Federal de 1988 estabelece uma das hipóteses de

competência originária do Supremo Tribunal Federal, verbis:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: [...] f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta; (grifou-se)

Trata-se de competência criada para conferir foro especial a conflitos judiciais

federativos, cujo conteúdo seja passível de demonstrar uma animosidade considerável entre os entes da Federação mencionados. Nessa hipótese funciona o STF como um Tribunal da Federação,

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conforme denomina o professor José Afonso da Silva1. Registre-se aqui a proteção especialíssima depositada pela Constituição na forma federativa de Estado, prevendo-a no art. 60, §4º, I, como cláusula pétrea.

Desse modo, a causa ora posta sob exame do Poder Judiciário se dá entre o Estado de

Santa Catarina e a União, inclusive em face da FUNAI, ente da administração indireta federal, atraindo, por assim dizer, a aplicação do art. 102, I, "f", da CRFB/1988.

Na Reclamação n. 2833, de Roraima, que versava sobre a competência para processar

e julgar litígio sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o STF foi claro ao fixar sua competência para julgamento da matéria. Transcreve-se a ementa do julgado:

EMENTA: RECLAMAÇÃO. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA. PROCESSOS JUDICIAIS QUE IMPUGNAM A PORTARIA Nº 820/98, DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. ATO NORMATIVO QUE DEMARCOU A RESERVA INDÍGENA DENOMINADA RAPOSA SERRA DO SOL, NO ESTADO DE RORAIMA. - Caso em que resta evidenciada a existência de litígio federativo em gravidade suficiente para atrair a competência desta Corte de Justiça (alínea "f" do inciso I do art. 102 da Lei Maior). - Cabe ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar ação popular em que os respectivos autores, com pretensão de resguardar o patrimônio público roraimense, postulam a declaração da invalidade da Portaria nº 820/98, do Ministério da Justiça. Também incumbe a esta Casa de Justiça apreciar todos os feitos processuais intimamente relacionados com a demarcação da referida reserva indígena. - Reclamação procedente. (Rcl 2833, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 14/04/2005, DJ 05-08-2005 PP-00007 EMENT VOL-02199-01 PP-00117 LEXSTF v. 27, n. 322, 2005, p. 262-275 RTJ VOL-00195-01 PP-00024)

Oportuno registrar que no referido precedente a demanda foi proposta por autores

populares, sendo que o Estado de Roraima interveio no feito durante o trâmite do processo. No mesmo sentido foi o precedente do Plenário do STF na Reclamação n. 3.205,

relativo à usurpação de competência do STF no caso de conflito entre entes da Federação na demarcação da Terra Indígena Ibirama Lá-Klanô, situada em Santa Catarina:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECLAMAÇÃO. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ART. 102, I, F, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RECLAMAÇÃO JULGADA PROCEDENTE. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. I - Ação que contesta a Portaria 1.128/2003, do Ministério da Justiça, que demarcou terras indígenas. II - Configuração do conflito entre entes da Federação, prevista no art. 102, I, f, da CF. III - Usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal reconhecida. Precedentes. IV - Agravo regimental improvido. (Rcl 3205 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 22/11/2007, DJe-157 DIVULG 06-12-2007 PUBLIC 07-12-2007 DJ 07-12-2007 PP-00018 EMENT VOL-02302-01 PP-00115)

1 DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª ed., rev. e atual. até a EC n. 68/2011. São Paulo: Malheiros Editores, 2012. p. 562.

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Em decorrência da procedência da referida Reclamação, está tramitando no STF a Ação Cível Originária n. 1.100, que discute a validade da demarcação de terra indígena no Município de Ibirama/SC.

Excelências, aqui não se trata de conflito de cunho patrimonial, mas sim de interesse

manifesto do Estado no cumprimento do dever-poder de zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público, conforme prescreve o art. 23, I, da Constituição Federal.

Ademais, a "Terra Indígena Morro dos Cavalos" está cravada no Parque Estadual da

Serra do Tabuleiro, que é uma unidade de conservação ambiental estadual. Portanto, a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar o

presente litígio federativo é manifesta, sendo corolário direto da Constituição de 1988. 2. INFORMAÇÕES PRELIMINARES 2.1. CASO CONCRETO - BREVE HISTÓRICO Imprescindível para o perfeito entendimento da questão a narrativa dos acontecimentos

mais importantes e a indicação dos personagens decisivos que atuaram no processo administrativo de demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalo" até o presente momento.

O processo administrativo n. 08620.002359/93-62 (íntegra em anexo) foi inaugurado

em 19.03.1992, no âmbito da FUNAI, por provocação de uma ONG denominada “Centro de Trabalho Indigenista – CTI”, representada por Maria Inês Martins Ladeira, antropóloga de formação.

Na missiva endereçada à Diretora Geral de Assuntos Fundiários da FUNAI (fl. 02 do

PA) a interessada relata que “a comunidade Guarani de Morro dos Cavalos procurou-nos, informando-nos que estão sendo ameaçados de expulsão por pretensos proprietários de área que é ocupada pela comunidade há muito tempo”. Pede, ao final, a indicação de um técnico para fazer os encaminhamentos necessários, dentre eles a demarcação da terra indígena.

Registre-se, por oportuno, que a documentação anexada à missiva inaugural do

processo demarcatório traz trabalho desenvolvido em 1975 no âmbito da Universidade Federal de Santa Catarina que descreve a existência, na década de 1970, de uma única família de índios de origem paraguaia da etnia Guarani Nhandéva, cujo patriarca era Júlio Moreira. Juntou, ainda, relatório técnico de 1986 (fls. 41-47 do PA) que descreve a existência da mesma família, sendo um grupo de "treze pessoas, sendo oito Guarani, um branco e quatro mestiças". Além disso, colacionou levantamento topográfico realizado pela “ONG CTI” juntamente com a comunidade indígena (fl. 38-40 do PA), cujo conteúdo atestaria que a área da comunidade indígena em 21.10.1991 é de 16,40 hectares.

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Autuado o processo demarcatório, por meio da Portaria n. 973/93 (fl. 52 do PA), foi constituído grupo técnico coordenado pelo Antropólogo Wagner Antônio de Oliveira, o qual, após a realização dos trabalhos de campo, apresentou, em outubro de 1995, relatório (fls. 57-106 do PA) propondo a demarcação de uma área como terra indígena de 121,8 hectares.

No relatório, confirma-se, novamente, que a localidade fora habitada por uma única

família indígena, os Moreira, da etnia Guarani Nhandéva, sendo que afirma que somente uma indígena descendente do patriarca inicial vivia no local, Rosalina Moreira, casada com um não índio de nome Luiz Carlos Machado, que trabalhava na empresa de limpeza urbana da Prefeitura de Palhoça e seu salário era o único rendimento da família, "que se compunha do casal, os filhos pequenos e dois filhos de uma de suas filhas, mãe-solteira de 14 anos, teúda e manteúda de um "branco" do bairro de Campinas, município de São José, na Grande Florianópolis". Por outro lado, o relatório é categórico ao afirmar que, “recentemente”, ou seja, pouco antes de 1995, chegaram ao local índios da etnia Guarani Mbyá. Posteriormente, em 1996, produziu-se relatório complementar (fls. 108-155 do PA) no escopo de adequar o trabalho à Portaria MJ n. 14/1996.

Em 12.06.2000 e 17.07.2000, missivas de líderes de comunidades indígenas (fls. 364-

367 do PA) são endereçadas à FUNAI requerendo, dentre outros, a desconsideração do laudo antropológico que delimitou a área de 121,8 ha e a formação de novo grupo de trabalho que atenda as necessidades dos indígenas do Morro dos Cavalos.

Mediante o MEMO n. 397/DEID/DAF, de 18 de agosto de 2000 (fls. 372-377 do PA), o

Chefe do DEID, Walter Coutinho Jr., apesar de relatar que “de 1975 até 1993, esta terra indígena foi ocupada por cerca de uma dezena de índios Nhandéva. A partir de 1994, teve início a ocupação dos Mbyá, que hoje somam mais de uma centena. Claro está que a área identificada e delimitada pelo GT da Portaria n. 973/93 não poderia contemplar a situação atualmente verificada naquela terra indígena”, sugeriu que a indicação de antropólogo para coordenar novos trabalhos de delimitação e identificação seja feita pela própria comunidade indígena ou pelas organizações não governamentais que lhe tem assessorado. Registre-se, por justiça, que a referida autoridade expressamente consignou que as necessidades dos índios à época (18 de agosto de 2000) deveriam “ser supridas com propriedade, em nosso entender, fazendo uso do disposto no art. 26 da Lei n. 6.0001, de 19.12.73” e não com o art. 231 da CF/88.

Por conseguinte, o Presidente da FUNAI emitiu a Portaria n. 838, de 16 de outubro de

2001 (fls. 390-391 do PA), que constituiu Grupo Técnico para realizar novos estudos e levantamentos de identificação e delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, de ocupação dos índios Guarani Mbyá. Registre-se que a Portaria sequer se refere aos índios Guarani Nhandéva.

O Grupo Técnico foi composto por Maria Inês Ladeira, antropóloga-coordenadora;

Dafran Gomes Macário, biólogo; Antônio Alves de Santana Sobrinho, técnico em agronomia, todos consultores privados, e, ainda, Flávio Luiz Corne, engenheiro agrimensor, da FUNAI/ERA/Bauru; Luiz Omar Correia, administrador de empresas, FUNAI/ERA/Curitiba; Técnico do Estado de Santa Catarina, SEAGRI/SC, a designar; Técnico do INCRA, a designar.

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Em 15.07.2002 (fl. 559 do PA), o relatório circunstanciado de identificação e delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, juntado às fls. 396-557 do P.A., fruto de supostos trabalhos de levantamento de dados e informações em campo ocorridos entre 19.11.2001 à 11.12.2001, foi encaminhado à FUNAI pela antropóloga-coordenadora Maria Inês Ladeira.

Registre-se que consta na documentação apenas a participação da antropóloga-

coordenadora, do biólogo Dafran Gomes Macário e do técnico em agronomia Antônio Alves de Santana Sobrinho, todos consultores privados, sendo que não há nos autos do processo demarcatório qualquer assinatura ou notícia de participação efetiva dos demais integrantes do Grupo de Trabalho da Portaria mencionada.

Ademais, essencial consignar que o relatório da antropóloga Maria Inês Ladeira,

entregue em 2002 à FUNAI, considerou as necessidades da comunidade indígena que vivia em 2002 na localidade do Morro dos Cavalos, como se vê dos seguintes trechos do laudo antropológico:

Os estudos e o presente relatório, embora considerando aspectos relevantes de documentos já existentes sobre esta Terra Indígena, procuraram, dentro dos limites temporais e circunstanciais em que são desenvolvidos os trabalhos técnicos de um GT de identificação e delimitação, contemplar e fundamentar os critérios e a proposta de limites da comunidade Guarani que vive atualmente na TI Morro dos Cavalos. (p. 402 do PA) Considerando os critérios dos Guarani, e tendo como base a realidade atual da comunidade indígena de Morro dos Cavalos, toda a Terra Indígena proposta para regularização deve ser considerada como tradicionalmente ocupada. (p. 504 do PA) A área proposta de cerca de 1988 ha, conforme mapa e memorial descritivo da Terra Indígena Morro dos Cavalos a seguir, é tradicionalmente ocupada pela população local, nos termos da legislação vigente (parágrafo 1 do art. 231 da Constituição Federal, Lei 6001/73, decreto 1775/96 e portarias: n. 239-FUNAI/91 e 14-MJ/96). Procuramos atender as reivindicações atuais da população indígena local e sugerimos a continuidade dos procedimentos de regularização fundiária desta Terra Indígena, de acordo com a planta e memorial descritivo. (p. 506 do PA)

A título de registro, o MEMO n. 013/DEID, de 13 de janeiro de 2003, da FUNAI (p. 574

do PA), solicita o pagamento de honorários para a antropóloga Maria Inês Ladeira pelos serviços prestados como coordenadora do Grupo Técnico que realizou os estudos e levantamentos de identificação e delimitação da TI Morro dos Cavalos/SC. Conforme o referido memorando, tais serviços foram objeto do Contrato SA 9794/2002, vigente desde 26 de novembro de 2002, ou seja, em total contrariedade às normais relativas aos contratos administrativos, pois primeiro foram prestados os serviços e somente depois foi assinado o contrato.

O relatório de identificação e delimitação do Grupo Técnico coordenado pela

antropóloga Maria Inês Ladeira foi aprovado pelo Presidente da FUNAI e publicado no Diário Oficial da União em 18.12.2002 (fls. 566-570 do PA) e no Diário Oficial do Estado de Santa Catarina em 04.02.2003 (fls. 580-584 do PA), bem como foi encaminhado ofício ao Prefeito de Palhoça para afixá-lo na sede da Prefeitura (fls. 573-A e 573-B).

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Em que pese a forma draconiana de publicação do relatório desenvolvido, foram

apresentadas contestações por supostos interessados. Há menção no processo administrativo de que tais contestações foram apreciadas em procedimentos apartados, sendo julgadas improcedentes. Não há comprovação nos autos de intimação dos interessados, tampouco da própria decisão administrativa fundamentada que negou as pretensões.

Frise-se que a FUNAI não permitiu ao Estado de Santa Catarina acesso aos autos

das contestações administrativas, conforme se verifica no ofício n. 448/DPT/2012, de 07 de maio de 2013 (anexo), sob o argumento de que tais processos conteriam informações que atraem sigilo.

Posteriormente, em 25.10.2005, o Estado de Santa Catarina, por meio do Procurador

do Estado Loreno Weissheimer, protocolou no Ministério da Justiça memoriais (fls. 909-928 do PA) requerendo a improcedência da pretensão de se declarar como Terra Indígena a localidade de Morro dos Cavalos, no Município de Palhoça-SC.

Além disso, colacionou-se aos memoriais do Estado o Acórdão n. 533/2005, do TCU-

Plenário (fls. 929-968 do PA), que discutiu denúncia sobre possíveis irregularidades na escolha de projeto de travessia do Morro dos Cavalos, trecho que faz parte da duplicação da rodovia BR-101/Sul, haja vista que a existência de comunidades indígenas teria direcionado a escolha de projeto de construção antieconômico, além de determinar que eventual laudo antropológico seja realizado por profissionais isentos e não ligados à defesa dos interesses daquelas comunidades.

Por conta da intervenção do Estado de Santa Catarina, em 02 de fevereiro de 2006, a

Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça determinou que o processo de identificação e delimitação da terra indígena retornasse à presidência da FUNAI, sugerindo que o parecer fosse reavaliado (fl. 898-899 do PA).

O Presidente da FUNAI Mércio Pereira Gomes, em 18 de julho de 2006, autorizou o

deslocamento da antropóloga e funcionária da FUNAI Blanca Guilhermina Rojas, para realizar diligências quanto ao relatório de identificação da Terra Indígena Morro dos Cavalos (fl. 998 do PA).

As diligências da antropóloga Blanca Guilhermina Rojas, consubstanciadas no Parecer

n. 002/CGID-2007, de 31 de maio de 2007 (fls. 1004-1024 do PA) resumiram-se a analisar os memoriais do Estado de Santa Catarina e o Acórdão do TCU, relatando, ainda, as pressões que sofreu por parte de Organização Não Governamental ligada à causa indígena, sendo que não houve nova análise aprofundada do relatório de identificação e delimitação do Grupo Técnico coordenado pela antropológa Maria Inês Ladeira. Na verdade, o parecer foi inconclusivo, alertando a FUNAI para a necessidade de se escolher entre as fundamentações antropológica ou de ordem legal.

Por meio do MEMO n. 034/DAF/08, de 11 de fevereiro de 2008 (fls. 1047-1061 do PA),

a Diretora de Assuntos Fundiários da FUNAI, Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão, afirmou não caber à FUNAI adotar qualquer definição “quanto às escolhas de fundamentação antropológica ou de ordem legal”, no caso da identificação das Terras Guarani, concluindo pela continuidade do processo administrativo em decorrência da consistência antropológica do Relatório Circunstanciado

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de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos elaborado pelo grupo técnico coordenado pela antropóloga Maria Inês Ladeira.

Após manifestação da Procuradoria da FUNAI pelo encaminhamento do processo

administrativo ao Ministério da Justiça (fls. 1062-1064 do PA), o Presidente da FUNAI remeteu os autos à referida autoridade em 22.02.2008 (fl. 1066 do PA) sem qualquer intimação do Estado de Santa Catarina quanto à decisão de não acolher seus memoriais.

Finalmente, nas fls. 1086-1087 do PA, foi editada a Portaria MJ n. 771, de 18 de abril

de 2008, que declarou como “de posse permanente dos grupos indígenas Guarani Mbyá e Nhandéva a Terra Indígena MORRO DOS CAVALOS, com superfície aproximada de 1.988 ha (mil, novecentos e oitenta e oito hectares) e perímetro também aproximado de 31 Km (trinta e um quilômetros), assim delimitada [...]”.

No seu art. 2º a referida Portaria determinou que a FUNAI promova a demarcação

administrativa da Terra Indígena para posterior homologação pela Presidência da República, nos termos do art. 19, §1º, da Lei n. 6.001/73 e do art. 5º do Decreto n. 1.775/96.

Posteriormente, foi juntado ao PA (fl. 1104) o ofício n. 1387/2009/CGMAB/DPP, do

Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), requerendo que a homologação pelo Presidente da República exclua dos limites da Terra Indígena a BR-101 Sul, no escopo de garantir maior segurança operacional aos trabalhadores e usuários da Rodovia BR-101 Sul, trecho Florianópolis/SC - Osório/RS. A FUNAI respondeu ao DNIT informando a impossibilidade de acatar tal pretensão (fl. 1115 do PA).

Seguindo o iter procedimental, foi constituída Comissão responsável pela avaliação das

benfeitorias dos ocupantes não índios da "Terra Indígena Morro dos Cavalos". Como se observa nas fls. 1126-1133 do PA, em 19 de outubro de 2012, foram registradas 78 ocupações de não indígenas, sendo 69 de boa-fé e 05 de má-fé. Para 03 ocupantes foi solicitada a apresentação de documentação comprobatória e 01 ocupação não foi possível identificar o ocupante.

Novamente, a FUNAI não permitiu ao Estado de Santa Catarina acesso aos autos

que tratam do Levantamento Fundiário da Terra Indígena Morro dos Cavalos, conforme se verifica no ofício n. 1104/DPT/2013, de 08 de novembro de 2013 (anexo), sob o argumento de que esse processo conteria informações de terceiros, sendo permitido acesso somente por meio de procuração da parte interessada.

Registre-se que, recentemente, editou-se a Portaria n. 272, de 22 de março de 2013, da

Presidência da FUNAI (em anexo), publicada no Diário Oficial da União em 25.03.2013, constituindo “Comissão de pagamento para realizar a indenização de benfeitorias consideradas de boa-fé implantadas por ocupantes não índios na Terra Indígena Morro dos Cavalos [...]”.

No mesmo ato foi autorizado o deslocamento da Comissão de pagamento à Terra

Indígena Morro dos Cavalos, concedendo prazo de 30 dias para realização dos trabalhos a contar de 1º de abril de 2013.

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Por fim, até o presente momento não foi homologada pela Presidência da República a

demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, ato administrativo necessário para finalizar o ato decisório complexo do processo demarcatório.

Esses são, portanto, os atos e fatos relacionados ao processo administrativo de

identificação e demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" e necessários para o entendimento da matéria.

2.2. DO PEDIDO DE REVISÃO ADMINISTRATIVA AO MINISTRO DA JUSTIÇA

AINDA NÃO ANALISADO Pontua-se de início que o Estado de Santa Catarina protocolou junto ao Ministério da

Justiça pedido de revisão administrativa nos autos do processo administrativo n. 08620.002359/93-62-FUNAI.

A petição em anexo foi protocolada em 16 de abril de 2013 e, diante das ilegalidades

registradas no processo administrativo de demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos", bem como em virtude do precedente do Supremo Tribunal Federal no caso da Terra Indígena de Raposa Serra do Sol, requereu-se a declaração de nulidade da Portaria MJ n. 771/2008, bem como a garantia de participação efetiva do Estado de Santa Catarina em todas as etapas do processo administrativo demarcatório, com a intimação pessoal do Procurador-Geral do Estado.

No mês de dezembro de 2013, o Ministério da Justiça contatou o Estado de Santa

Catarina e realizou reunião sobre a questão das terras indígenas no Estado. Em relação ao Morro dos Cavalos, a proposta do Ministro da Justiça foi de realização de um acordo entre os índios e o não índios ocupantes. Não houve entendimento entre as partes.

Diante da ausência de qualquer demonstração do Ministério da Justiça em apreciar o

pedido de revisão do Estado, não há outra alternativa senão a propositura da presente ação judicial. 3. DAS QUESTÕES DE FATO E DE DIREITO PROPOSTAS NESTA AÇÃO Senhores Ministros do STF, o Estado de Santa Catarina propõe a presente ação no

escopo de impedir a demarcação definitiva da suposta "Terra Indígena Morro dos Cavalos" com fulcro no art. 231 da Constituição Federal.

As alegações que doravante se expõem dividem-se basicamente em duas grandes

vertentes: 1) Invalidades insanáveis no processo administrativo demarcatório; e, sucessivamente, 2) Impossibilidade de aplicação do art. 231 da Constituição Federal, por total ausência fática e jurídica de seus pressupostos e pela preponderância no caso concreto de outros direitos fundamentais igualmente relevantes.

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Ao final, a título de reforço argumentativo, na linha de uma aproximação entre o Direito e a realidade, evidenciam-se uma série de prognoses a respeito dos efeitos fáticos da perpetuação da demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos".

O caso, muito pelo tempo decorrido e também pela complexidade da questão relativa

às terras indígenas no Brasil, possui uma quantidade considerável de alegações que devem ser enfrentadas pelo Poder Judiciário, o que explica a extensão dessa petição.

Dito isto, passa-se, de pronto, a apresentar cada uma das alegações do Estado de

Santa Catarina, lembrando que não há compromisso do ente da federação em defender índios ou não índios, mas sim o dever-poder de zelar pelo fiel cumprimento do art. 231 da Constituição Federal de 1988 e das demais normas constitucionais.

3.1. PROCESSO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO A Constituição de 1988 prescreve no art. 231 que compete à União demarcar as terras

tradicionalmente ocupadas pelos índios, verbis:

CAPÍTULO VIII DOS ÍNDIOS Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Inclusive, o art. 20, XI, da CRFB/1988 impõe a titularidade da União sobre as terras

tradicionalmente ocupadas pelos índios, verbis:

Art. 20. São bens da União: [...] XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

No art. 67 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, houve previsão expressa de prazo para finalização pela União das demarcações de terras indígenas:

Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.

Já o Estatuto do Índio (lei federal n. 6.001/1973) estabeleceu no art. 19 a competência

para o processamento administrativo de demarcação de terras indígenas:

Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo.

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O Decreto Federal n. 1.775/1996 é o instrumento normativo que regula, atualmente, o processo administrativo de demarcação de terras indígenas. Estabelece no seu art. 1º a competência do órgão federal de assistência ao índio para a demarcação administrativa:

Art. 1º As terras indígenas, de que tratam o art. 17, I, da Lei n° 6001, de 19 de dezembro de 1973, e o art. 231 da Constituição, serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, de acordo com o disposto neste Decreto.

O órgão federal de assistência ao índio é a FUNAI, cuja lei autorizativa de criação

remonta o ano de 1967. O art. 1º da lei n. 5.371/1967 estabelece as finalidades da FUNAI, verbis:

Art. 1º Fica o Govêrno Federal autorizado a instituir uma fundação, com patrimônio próprio e personalidade jurídica de direito privado, nos têrmos da lei civil, denominada "Fundação Nacional do Índio", com as seguintes finalidades: I - estabelecer as diretrizes e garantir o cumprimento da política indigenista, baseada nos princípios a seguir enumerados: a) respeito à pessoa do índio e as instituições e comunidades tribais; b) garantia à posse permanente das terras que habitam e ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de tôdas as utilidades nela existentes; c) preservação do equilíbrio biológico e cultural do índio, no seu contacto com a sociedade nacional; d) resguardo à aculturação espontânea do índio, de forma a que sua evolução sócio-econômica se processe a salvo de mudanças bruscas; II - gerir o Patrimônio Indígena, no sentido de sua conservação, ampliação e valorização; III - promover levantamentos, análises, estudos e pesquisas científicas sôbre o índio e os grupos sociais indígenas; IV - promover a prestação da assistência médico-sanitária aos índios; V - promover a educação de base apropriada do índio visando à sua progressiva integração na sociedade nacional; VI - despertar, pelos instrumentos de divulgação, o interêsse coletivo para a causa indigenista; VII - exercitar o poder de polícia nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à proteção do índio. (grifou-se)

Já o Decreto Federal n. 7.778/2012 aprova o Estatuto da FUNAI, cujo teor dos arts. 2º a

4º afirma:

Art. 2o A FUNAI tem por finalidade: I – proteger e promover os direitos dos povos indígenas, em nome da União; II - formular, coordenar, articular, monitorar e garantir o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro, baseada nos seguintes princípios: a) reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas; b) respeito ao cidadão indígena, suas comunidades e organizações; c) garantia ao direito originário, à inalienabilidade e à indisponibilidade das terras que tradicionalmente ocupam e ao usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes; d) garantia aos povos indígenas isolados do exercício de sua liberdade e de suas atividades tradicionais sem a obrigatoriedade de contatá-los; e) garantia da proteção e conservação do meio ambiente nas terras indígenas;

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f) garantia de promoção de direitos sociais, econômicos e culturais aos povos indígenas; g) garantia de participação dos povos indígenas e suas organizações em instâncias do Estado que definam políticas públicas que lhes digam respeito; III - administrar os bens do patrimônio indígena, exceto aqueles cuja gestão tenha sido atribuída aos indígenas ou às suas comunidades, conforme o disposto no art. 29, podendo também administrá-los por expressa delegação dos interessados; IV - promover e apoiar levantamentos, censos, análises, estudos e pesquisas científicas sobre os povos indígenas visando à valorização e à divulgação de suas culturas; V - monitorar as ações e serviços de atenção à saúde dos povos indígenas; VI - monitorar as ações e serviços de educação diferenciada para os povos indígenas; VII - promover e apoiar o desenvolvimento sustentável nas terras indígenas, conforme a realidade de cada povo indígena; VIII - despertar, por meio de instrumentos de divulgação, o interesse coletivo para a causa indígena; e IX - exercer o poder de polícia em defesa e proteção dos povos indígenas. Art. 3o Compete à FUNAI exercer os poderes de assistência jurídica aos povos indígenas. Art. 4o A FUNAI promoverá estudos de identificação e delimitação, demarcação, regularização fundiária e registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. (grifou-se)

O Ministério da Justiça exarou a Portaria n. 14/1996, que estabelece regras sobre a

elaboração do Relatório circunstanciado de identificação e delimitação de Terras Indígenas a que se refere o parágrafo 6º do artigo 2º, do Decreto n. 1.775, de 08 de janeiro de 1996.

Já por meio da Portaria n. 2.498/2011, o Ministério da Justiça determinou nos

processos demarcatórios a intimação dos entes federados cujos territórios se localizam nas áreas em estudo para identificação e delimitação de terras indígenas, por via postal com aviso de recebimento.

A FUNAI editou, por sua vez, a Portaria n. 116/2012, que estabelece diretrizes e

critérios a serem observados na concepção e execução das ações de demarcação de terras indígenas.

A FUNAI normatizou, também, por meio da Instrução Normativa n. 02/2012, as

instruções para o pagamento de indenização pelas benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé em terras indígenas que, doravante, serão de aplicação obrigatória, sob pena de responsabilidade.

Em resumo, é esse o plexo de normas que regulam a demarcação de terras indígenas

no Brasil. 3.1.1. INCONSTITUCIONALIDADES DAS NORMAS QUE REGULAM A

DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS NO BRASIL Passar-se-á a demonstrar as inconstitucionalidades do Estatuto do Índio e do Decreto

n. 1.775/1996 e, por conseguinte, a imprestabilidade dos demais atos normativos que regulam a matéria de demarcação de terras indígenas no Brasil, o que torna o processo demarcatório da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" nulo.

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3.1.1.1. IMPOSSIBILIDADE DE A FUNAI SER O ÓRGÃO EXCLUSIVAMENTE

RESPONSÁVEL PELO PROCESSO DEMARCATÓRIO O art. 231 da Constituição Federal definiu que cabe à União demarcar as terras

tradicionalmente ocupadas pelos índios. Já se afigura que a Carga Magna em nenhum instante inferiu ser a FUNAI o órgão

responsável pela citada demarcação. O Estatuto do Índio, lei n. 6.001/1973, no seu art. 19, estabelece que o órgão federal de

assistência ao índio demarcará administrativamente as terras indígenas. Aqui deve ficar claro a maior abrangência conferida ao termo "terra indígena", pois o referido Estatuto estabeleceu três modalidades de terras indígenas:

Art. 17. Reputam-se terras indígenas: I - as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os artigos 4º, IV, e 198, da Constituição; II - as áreas reservadas de que trata o Capítulo III deste Título; III - as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas.

O Decreto n. 1.775/1996, no seu art. 1º, praticamente repetiu a redação do Estatuto do

Índio. Portanto, é a lei produzida em tempos de regime de exceção que fixa a competência da

FUNAI para demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Trata-se, então, de averiguar se o art. 19 do Estatuto do Índio foi recepcionado pela ordem constitucional de 1988.

As normas que regem a FUNAI deixam explícito o dever de tal entidade em defender

os interesses indígenas. Além disso, cabe à FUNAI gerir o patrimônio indígena e exercer o poder de polícia nas áreas reservadas aos índios.

Excelências, diante desse rol de competências fica a pergunta: a FUNAI poderá exercer

plenamente suas finalidades institucionais sem a existência de terras indígenas? É de interesse direto da FUNAI, e natural que assim seja, a demarcação de terras indígenas, e na maior extensão possível, a fim de desenvolver seus escopos institucionais.

É aceitável que o órgão responsável pelo processamento da demarcação administrativa

de terras indígenas seja o mesmo que irá proteger, gerir e exercer o poder de polícia sobre tais terras?

O bom senso e a razoabilidade afirmam que não. Mas e o ordenamento jurídico? Vai na

mesma direção. O art. 37 da Constituição exemplarmente demarca os princípios da Administração

Pública:

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Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

A impessoalidade é respeitada quando a FUNAI exerce tal atribuição delegada pelo

Estatuto do Índio? Permitir que a FUNAI demarque terras indígenas é violar frontalmente a impessoalidade inerente à Administração Pública.

Por analogia com as suspeições e impedimentos dos processos judiciais e

administrativos, pode-se afirmar que a FUNAI possui impedimento de atuar como ente responsável pela demarcação, pois além de ter interesse direto na causa, é representante legal dos índios, interessados diretos na demarcação.

Vê-se, desse modo, a atuação ofensiva ao princípio da moralidade administrativa.

Inclusive, pode-se concluir que os atos da FUNAI relativos à demarcação de terras indígenas são de improbidade administrativa, conforme previsão do art. 11 da lei n. 8.429/1992:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

A FUNAI não é imparcial, pois ela tem um lado, a defesa dos direitos dos índios. E vejam Senhores Ministros que a correção do ato de improbidade dos agentes da FUNAI encontra um vácuo de legitimidade ativa, pois o ente responsável pela propositura de ação de improbidade, no caso, é o Ministério Público Federal, órgão que possui a função constitucional, dentre outras, de "defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas", na forma do art. 129, V, da Constituição de 1988.

A argumentação exposta demonstra a total contradição em depositar na mesma pessoa

administrativa duas funções incompatíveis. Repita-se que a Constituição não quis que a FUNAI, exclusivamente, fizesse a

demarcação das terras indígenas. O Poder Constituinte Originário disse que compete à União e não à FUNAI demarcar terras indígenas.

Aqui não se está a dizer que a FUNAI estaria proibida de participar de processo

administrativo demarcatório como interessada. O que se afirma, isso sim, é o total descompasso entre a formatação constitucional dos

princípios da Administração Pública e a atribuição da FUNAI de processar exclusivamente a demarcação de terras indígenas.

A sociedade brasileira não pode mais conviver com esse tipo de violação ao devido

processo legal administrativo. Como se demonstrará mais a frente, as conseqüências da demarcação de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, atualmente, são, na maioria dos

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casos, um convite ao confronto de índios e não índios e entre o Estado Brasileiro (União) e os não índios ocupantes de terras demarcadas, além de significar um acirramento entre a sociedade civilizada e as comunidades indígenas, contrapondo-se ao princípio da fraternidade e aos objetivos da Constituição de 1988 insculpidos no seu art. 3º.

Nesse sentido, o art. 19 do Estatuto do Índio não foi recepcionado pela ordem

constitucional inaugurada em 1988, acarretando na invalidação de todos os atos normativos decorrentes, bem como na nulidade absoluta do processo demarcatório da "Terra Indígena Morro dos Cavalos".

3.1.1.2. DÉFICIT DEMOCRÁTICO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO

DEMARCATÓRIO As regras específicas do processo demarcatório são dispostas no Decreto n.

1.775/1996. Transcrevem-se seus artigos relevantes:

Art. 1º As terras indígenas, de que tratam o art. 17, I, da Lei n° 6001, de 19 de dezembro de 1973, e o art. 231 da Constituição, serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, de acordo com o disposto neste Decreto. Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação. § 1° O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação. § 2º O levantamento fundiário de que trata o parágrafo anterior, será realizado, quando necessário, conjuntamente com o órgão federal ou estadual específico, cujos técnicos serão designados no prazo de vinte dias contados da data do recebimento da solicitação do órgão federal de assistência ao índio. § 3° O grupo indígena envolvido, representado segundo suas formas próprias, participará do procedimento em todas as suas fases. § 4° O grupo técnico solicitará, quando for o caso, a colaboração de membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos de que trata este artigo. § 5º No prazo de trinta dias contados da data da publicação do ato que constituir o grupo técnico, os órgãos públicos devem, no âmbito de suas competências, e às entidades civis é facultado, prestar-lhe informações sobre a área objeto da identificação. § 6° Concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada. § 7° Aprovado o relatório pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, este fará publicar, no prazo de quinze dias contados da data que o receber, resumo do mesmo no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação, acompanhado de memorial descritivo e mapa da área, devendo a publicação ser afixada na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel. § 8° Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localize a área

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sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior. § 9° Nos sessenta dias subseqüentes ao encerramento do prazo de que trata o parágrafo anterior, o órgão federal de assistência ao índio encaminhará o respectivo procedimento ao Ministro de Estado da Justiça, juntamente com pareceres relativos às razões e provas apresentadas. § 10. Em até trinta dias após o recebimento do procedimento, o Ministro de Estado da Justiça decidirá: I - declarando, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação; II - prescrevendo todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser cumpridas no prazo de noventa dias; III - desaprovando a identificação e retornando os autos ao órgão federal de assistência ao índio, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto no § 1º do art. 231 da Constituição e demais disposições pertinentes. Art. 3° Os trabalhos de identificação e delimitação de terras indígenas realizados anteriormente poderão ser considerados pelo órgão federal de assistência ao índio para efeito de demarcação, desde que compatíveis com os princípios estabelecidos neste Decreto. Art. 4° Verificada a presença de ocupantes não índios na área sob demarcação, o órgão fundiário federal dará prioridade ao respectivo reassentamento, segundo o levantamento efetuado pelo grupo técnico, observada a legislação pertinente. Art. 5° A demarcação das terras indígenas, obedecido o procedimento administrativo deste Decreto, será homologada mediante decreto. Art. 6° Em até trinta dias após a publicação do decreto de homologação, o órgão federal de assistência ao índio promoverá o respectivo registro em cartório imobiliário da comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda. Art. 7° O órgão federal de assistência ao índio poderá, no exercício do poder de polícia previsto no inciso VII do art. 1° da Lei n° 5.371, de 5 de dezembro de 1967, disciplinar o ingresso e trânsito de terceiros em áreas em que se constate a presença de índios isolados, bem como tomar as providências necessárias à proteção aos índios.

Passa-se a apontar objetivamente a inconsistência do processo administrativo

demarcatório previsto no referido Decreto Federal, especialmente pelo fato de que tal Decreto foi a referência dos trabalhos da FUNAI na demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos".

3.1.1.2.1. VIOLAÇÃO AO PACTO FEDERATIVO Sem olvidar que por expressa disposição constitucional cabe à União demarcar as

terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, percebe-se nos artigos do referido Decreto uma clara violação à forma federativa de Estado.

O art. 1º da Constituição Federal estatui a Federação Brasileira:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

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As pessoas políticas, União, Estados, Municípios e Distrito Federal, devem guardar entre si um dever de fidelidade, de lealdade recíproca, no escopo de garantir a indissolubilidade da Federação.

A demarcação de terras indígenas significa a apropriação pela União de porções do

território estadual. Nesse sentido, a União tem o compromisso federativo de não prejudicar as demais pessoas federativas. Trata-se do dever-poder de prestigiar o federalismo de equilíbrio, escopo do Estado Federal, além de evidenciar um federalismo cooperativo entre a União e os Estados-membros.

Desse modo, as competências estabelecidas na Constituição, sejam da União, dos

Estados ou dos Municípios, devem ser exercidas em conformidade ao princípio da lealdade à federação, decorrência lógica do princípio federativo.

O princípio da lealdade à Federação foi construído pela doutrina e jurisprudência

constitucional alemã. O Ministro Gilmar Mendes, no julgamento da Petição n. 3.388, atribui função a esse princípio:

O princípio da lealdade à Federação atua como um dos mecanismos de correção, de alívio das tensões inerentes ao Estado Federal, junto aos que já se encontram expressamente previstos na própria Constituição. Sua presença silenciosa, não escrita, obriga cada parte a considerar o interesse das demais e o do conjunto. Transcende o mero respeito formal das regras constitucionais sobre a federação, porque fomenta uma relação construtiva, amistosa e de colaboração. Torna-se, assim, o espírito informador das relações entre os entes da federação, dando lugar a uma ética institucional objetiva de caráter jurídico, não apenas político e moral. (STF, 2009, p. 597-598 do Acórdão)

O Supremo Tribunal Federal no julgamento da Petição n. 3.388, que versou sobre a

demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, consignou a necessidade de ampla e efetiva participação dos entes federados interessados, quais sejam, aqueles em cujo território estejam encravadas as terras indígenas a serem demarcadas.

Inclusive, estabeleceu como salvaguarda o item “t” da parte dispositiva do Acórdão,

cujo teor afirma que “é assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, situadas em seus territórios, observada a fase em que se encontrar o procedimento”.

E essa participação é muito mais ampla do que aquela conferida pelo Decreto n.

1.775/1996. O Ministro Menezes Direito afirma em seu voto no referido julgamento sobre a

obrigatoriedade de manifestação dos entes federados:

A manifestação dos entes federativos cujos territórios forem abrangidos pela terra indígena não pode ser meramente facultativa, porém obrigatória, e deve ocorrer sobre o estudo de identificação, sobre a conclusão da comissão de antropólogos e sobre o relatório circunstanciado do grupo técnico (art. 2º, §6º), sem prejuízo do disposto no §8º do art. 2º do Decreto n. 1.775/96. (p. 187 do Acórdão)

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O Ministro Celso de Mello, por sua vez, alerta para a necessidade de realização até

mesmo de audiência pública para se resguardar a autonomia institucional do Estado-membro em face de substancial redução de sua base física, verbis:

O Poder Executivo da União, na realidade, pode, Senhor Presidente, mediante utilização abusiva da demarcação administrativa de terras indígenas, comprometer, gravemente, a incolumidade jurídica do Estado Federal brasileiro, promovendo dramática redução da base geográfico-territorial de certa unidade federada, fazendo-o mediante reconhecimento, como terras indígenas – pertencentes, em conseqüência, ao patrimônio da União Federal -, de extensas áreas localizadas no Estado-membro. Daí a necessidade, Senhor Presidente, de rígido controle jurisdicional, quando regularmente provocado por quem se julgue injustamente lesado, do procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas – sem prejuízo da possibilidade, na fase administrativa do procedimento demarcatório, de prévia audiência pública, com ampla participação das unidades federadas interessadas -, em ordem a impedir que a autonomia institucional do Estado-membro venha a ser afetada em decorrência de substancial redução de sua base física, causada pelo arbitrário reconhecimento, como área indígena, de terras cuja ocupação não se ajuste aos parâmetros definidos no art. 231 da Constituição e, também, no Estatuto do Índio”. (p. 506-507 do Acórdão)

O Decreto n. 1.775/1996 não permite a ampla e efetiva participação dos Estados e

Municípios diretamente afetados pela demarcação de terras indígenas. O parágrafo 8º do art. 2º do Decreto n. 1.775/1996 faculta aos Estados e Municípios

afetados manifestação em relação à demarcação proposta até 90 dias após a publicação no Diário Oficial da União e no Diário Oficial do Estado afetado do resumo do relatório circunstanciado demarcatório da terra indígena.

Ora, é uma ficção concluir que tal regramento permite o efetivo conhecimento dos

órgãos estaduais ou municipais da demarcação da terra indígena. Notificação de entes federativos para, querendo, manifestarem-se em processo demarcatório por publicação no Diário Oficial? Absolutamente inadequado.

As unidades federadas interessadas devem ser notificadas por meio que garanta a

efetiva ciência de seu representante legal. É esse o regramento da lei n. 9.784/1999, que regula o processo administrativo federal:

Art. 26. O órgão competente perante o qual tramita o processo administrativo determinará a intimação do interessado para ciência de decisão ou a efetivação de diligências. [...] § 3o A intimação pode ser efetuada por ciência no processo, por via postal com aviso de recebimento, por telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado. § 4o No caso de interessados indeterminados, desconhecidos ou com domicílio indefinido, a intimação deve ser efetuada por meio de publicação oficial. § 5o As intimações serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais, mas o comparecimento do administrado supre sua falta ou irregularidade. [...]

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Art. 28. Devem ser objeto de intimação os atos do processo que resultem para o interessado em imposição de deveres, ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos e atividades e os atos de outra natureza, de seu interesse.

A lei n. 9.784/1999 regula no seu Capítulo IX a comunicação dos atos do processo

administrativo. Antes disso, o art. 3º da referida lei prevê dentre os direitos dos administrados:

Art. 3o O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados: [...] II - ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas; [...]

Tal previsão retrata que “o processo administrativo aberto, visível, participativo, é instrumento seguro de prevenção à arbitrariedade”2.

A busca pela participação efetiva de todos os interessados no processo administrativo

está vinculada ao dever de a Administração Pública respeitar o devido processo, o contraditório e a ampla defesa, com matriz no art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal. Nas palavras de Mônica Simões:

O processo administrativo é um dos mais efetivos instrumentos de resguardo dos direitos dos administrados, na medida em que obriga a Administração Pública a observar determinados trâmites antes de emitir seus atos, dificultando, com isso, a ocorrência de ampliação ou restrição injustificadas na esfera jurídica dos particulares. Torna-se necessário, para tanto, assegurar a participação dos administrados na formação da vontade estatal, razão pela qual a Lei n. 9.784/1999 congrega inúmeras forma de participação individual e coletiva dos interessados no processo administrativo. Por outro lado, o processo administrativo visa a auxiliar e sistematizar a atuação administrativa, imprimindo-lhe maior eficiência, acerto e correção.3

Nos processos administrativos de demarcação de terras indígenas os entes federativos devem ser comunicados da existência do processo desde o seu início, o que não é garantido pelo Decreto n. 1.775/1996, a fim de que possam participar ativamente dos estudos de identificação da terra indígena previsto no art. 2º do aludido Decreto.

Ocorre que o parágrafo 8º do art. 2º do Decreto n. 1.775/1996 prevê uma única

hipótese de comunicação, a publicação no Diário Oficial da União e no Diário Oficial do Estado do resumo do relatório circunstanciado demarcatório da terra indígena. Ora, “a intimação de particulares por edital publicado na imprensa oficial é ineficaz, o que se exige é uma conduta positiva, tanto para

2 FERRAZ, Sergio e DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 24. 3 SIMÕES, Mônica Martins Toscano. O processo administrativo e a invalidação de atos viciados. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 196.

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atender os pedidos da pessoa interessada, como para comunicação espontânea de todos os atos processuais”4.

No momento inicial de constituição do grupo técnico, coordenado por antropólogo, e de

elaboração dos estudos de identificação, aos interessados deve ser franqueada previamente a identificação dos integrantes do referido grupo, para que possam, inclusive, impugná-los. Outrossim, os interessados devem ter a oportunidade de participar dos atos materiais dos estudos, como as perícias e vistorias no local a ser demarcado.

Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da ampla instrução

probatório significa "não apenas o direito de oferecer e produzir provas, mas também o de, muitas vezes, fiscalizar a produção das provas da Administração, isto é, o de estar presente, se necessário, a fim de verificar se efetivamente se efetuaram com correção ou adequação técnica devidas"5.

Não é aceitável um processo administrativo em fase avançada sem a presença nas

fases iniciais dos elementos do processo, como as partes. As unidades federadas devem ser intimadas na forma do art. 26, §3º, da lei n.

9.784/1999, ou seja, por via postal com aviso de recebimento, por telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência. Essa intimação deve se dar no início do processo e se repetir nos atos cruciais do procedimento, tais como indicação dos integrantes do grupo técnico, informação sobre as datas dos atos materiais dos estudos, tais como perícias e vistorias, apresentação do relatório de identificação.

A não observância dessas regras de intimação leva à nulidade processual, pois assente

o prejuízo causado às unidades federadas. A lei 9.784/1999, no seu art. 26, §4º, é clara ao permitir a comunicação de atos por

publicação oficial somente no caso de interessados indeterminados, o que não é o caso dos entes federados.

Interessante notar que o art. 2º, §3°, do Decreto n. 1.775/1996, garante somente aos

grupos indígenas interessados a participação em todas as fases do processo administrativo. A mesma garantia deve ser aplicada também aos entes da federação envolvidos e às demais pessoas interessadas. A isonomia entre os interessados é afetada pelo procedimento previsto.

E não se diga que a lei n. 9.784/1999 não se aplica ao processo administrativo de

demarcação de terras indígenas por este ser especial. Há, na verdade, supremacia da lei n. 9.784/1999 sobre o Decreto n. 1.775/1996.

A lei n. 9.784/1999, como já dito, é decorrência dos mandamentos constitucionais por

devido processo legal, ampla defesa e contraditório, sendo compatível, portanto, com processos 4 FIGUEIREDO, Lúcia Valle (coord.). Comentários à lei federal de processo administrativo (9.784/1999). 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 52. 5 DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 471.

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administrativos externos, ampliativos e restritivos, como é o caso do processo demarcatório de terras indígenas.

O art. 1º da lei n. 9.784/1999 afirma sua aplicação no âmbito da Administração Federal

direta e indireta, verbis:

Art. 1º Esta Lei estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração.

Nesse sentido, como regra geral, são as normas da lei n. 9.784/1999 que regulam os processos administrativos dos diversos órgãos públicos federais6. O art. 69 dessa lei revela a hipótese de não aplicação de seus dispositivos nos casos de processos administrativos especiais, regidos por lei própria:

Art. 69. Os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei.

Não é sem razão que o referido dispositivo se referiu expressamente ao vocábulo “lei” e não “norma” própria.

O Decreto n. 1.775/1996, que dispõe sobre o procedimento administrativo de

demarcação das terras indígenas, não é lei. A suposta autorização do art. 19 do Estatuto do Índio, para que Decreto regulamente o processo demarcatório, não subsiste à exigência de lei para processo administrativo especial.

Além disso, a lei do processo administrativo federal é posterior ao Estatuto do Índio e

ao Decreto n. 1.775/1996, aplicando-se o critério cronológico previsto no art. 2º, § 1º, da lei de introdução ao direito brasileiro.

Não se está a dizer que o Decreto n. 1.775/1996 foi integralmente revogado ou não

pode ser aplicado aos processos demarcatórios. Na verdade, o que aqui se defende é a submissão da norma infralegal à lei que rege os processos administrativos federais e a imperativa necessidade de se observarem os dispositivos da lei n. 9.784/1999 nos processos demarcatórios de terras indígenas.

Vejam que a LEI que regula o processo administrativo é clara ao permitir a

comunicação de atos por publicação oficial somente no caso de interessados indeterminados. Os entes federados não são interessados indeterminados. A teoria das fontes ensina que DECRETO não pode inovar a ordem jurídica, muito menos contrariar LEI.

6 A título de registro, a jurisprudência do STJ, contra legem, já decidiu que a lei n. 9.784/1999 se aplica a processos administrativos no âmbito dos Estados e Municípios que não tenham lei própria.

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Tanto isso é verdade que o Ministério da Justiça editou a Portaria n. 2.498/2011, cujo conteúdo determina a intimação dos entes federados por via postal com aviso de recebimento em várias fases do processo:

Art. 1o A Fundação Nacional do Índio - FUNAI determinará a intimação dos entes federados cujos territórios se localizam nas áreas em estudo para identificação e delimitação de terras indígenas, por via postal com aviso de recebimento, no prazo de 5 (cinco) dias contados da data da publicação da designação do grupo técnico especializado, nos termos do art. 2o do Decreto no 1.775, de 1996. Parágrafo único. A intimação deverá conter: I - informação quanto à constituição do grupo técnico especializado e a natureza dos estudos de identificação e delimitação de terras indígenas; II - indicação do prazo de 20 (vinte) dias para designação de técnicos para participação no levantamento fundiário de caracterização da ocupação não indígena; III - informação da continuidade do processo independentemente da designação de representantes; e IV - outras informações consideradas pertinentes pela FUNAI. Art. 2o Concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, a FUNAI determinará nova intimação dos entes federados de que trata o art. 1o, por via postal com aviso de recebimento, para fins de contestação da área sob demarcação, sem prejuízo da publicação no Diário Oficial da União, no Diário Oficial do Estado e de sua afixação na sede da Prefeitura Municipal, em conformidade ao disposto no § 7o do art. 2o do Decreto no 1.775, de 1996. Parágrafo único. A intimação de que trata o caput deverá conter: I - cópia do relatório circunstanciado, acompanhado de memorial descritivo e mapa da área; e II - informação quanto à faculdade de pleitear indenização, prestar informações sobre a área objeto de delimitação, ou demonstrar vícios, totais ou parciais, no procedimento demarcatório, nos termos do § 8o do art. 2o do Decreto no 1.775, de 1996. [...]

Portanto, a lei n. 9.784/1999 deve ser aplicada nos processos administrativos de

demarcação de terras indígenas, ao menos, em relação ao atos de comunicação dos interessados, acarretando em nulidade sua inobservância.

Senhores Ministros, o ato demarcatório com fundamento no art. 231 da CF/88 é de

conseqüências drásticas, pois retira das terras os ocupantes não índios, na maioria das vezes proprietários de longos anos, e desvincula dos Estados e Municípios seus territórios, transferindo-os à União com afetação ao usufruto exclusivo pelas comunidades indígenas, e isso sem indenização integral aos prejudicados.

O Pacto Federativo se enfraquece com esse tipo de processo administrativo levado a

efeito pela FUNAI. O princípio da lealdade à Federação é ofendido quando os entes federados são alijados do processo administrativo demarcatório.

Nesse sentido, por violar o pacto federativo, o Decreto n. 1.775/1996 é imprestável

como modelo normativo de processo demarcatório de terras indígenas, o que leva à nulidade da demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos".

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3.1.1.2.2. EXCLUSIVIDADE DO PROFISSIONAL ANTROPÓLOGO COMO COORDENADOR DO PROCESSO DEMARCATÓRIO

O art. 2º do Decreto n. 1.775/1996 determina a participação imperial do profissional

antropólogo no processo demarcatório:

Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação. § 1° O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação.

É o antropólogo, exclusivamente, que identifica determinada terra como sendo

tradicionalmente ocupada pelos índios. Depois, grupo técnico coordenado por antropólogo realiza estudos complementares de

natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação.

Ocorre que o profissional antropólogo atua de modo parcial na análise do seu objeto de

observação, no caso as comunidades indígenas. A obra "A Perícia Antropológica em Processos Judiciais", apresentada em 1994 pela

editora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), demonstra claramente a incapacidade dos antropólogos de atuarem imparcialmente como peritos.

Já na apresentação do livro, a cargo do então Presidente da Associação Brasileira de

Antropologia, Sílvio Coelho dos Santos, afirma claramente que "o desafio posto aos antropólogos impunha maior compreensão da sistemática processual e da hermenêutica jurídica, pois era necessário produzir laudos que permitissem a tomada de decisão pelo julgador em favor dos indígenas"7.

Para os antropólogos seu compromisso ético é com os direitos dos indígenas, verbis:

Circunstância Atenuante ou Dirimente. Compromisso Ético do Antropólogo. - (...) Na condição de perito, o antropólogo tem compromisso fundamental com a verdade, que deverá ser aclarada ao juiz, para que ele possa fazer justiça. Porém, o antropólogo, face às questões em que estejam em jogo direitos de sociedade ou de pessoas individuais Indígenas, pode ser chamado a figurar como assistente técnico. Penso que, estando em jogo direitos de sociedades coletivamente ou de pessoas individuais Indígenas, o compromisso ético do antropólogo é com a defesa destes direitos,

7 SILVA, Orlando Sampaio. LUZ, Lídia e HELM, Cecília Maria Vieira (org.). A perícia antropológica em processos judiciais. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1994. p. 09.

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estudando, pesquisando, identificando e oferecendo razões para que estes direitos prevaleçam.8

Há, na verdade, uma disposição por ouvir somente um dos lados, o dos índios:

A possibilidade de ouvirmos várias vozes é, certamente um ponto positivo da análise antropológica mais contemporânea. Mas me pergunto se esta possibilidade do antropólogo ouvir estas diferentes vozes e permitir que elas se manifestem igualmente é desejável num laudo. Será que o laudo é um local adequado para a polifonia? Talvez nem sempre. Será que todas estas vozes que escutamos como antropólogos podem ser escutadas do mesmo modo pelo juiz?9

Evidencia-se, assim, a contradição entre a atividade científica para a produção de

laudos isentos e a atividade antropológica:

Temos por conseguinte, uma contradição profunda entre a profissão antropológica, que acontece na convivência e participação, e o distanciamento imposto aos peritos judiciais, que sublinha negativamente o envolvimento entre antropólogos e comunidades estudadas. Caberia perguntar: como indicar especialistas, estudiosos de uma comunidade Indígena específica se, a priori, os antropólogos são todos suspeitos?10

Nota-se, portanto, a incapacidade do antropólogo de atuar com imparcialidade, pois tem

compromisso com a garantia e a ampliação dos direitos indígenas. Excelências, a Constituição determinou esse poder excessivo ao profissional

antropólogo? A lei assim determinou? Como pode um Decreto restringir a um campo do conhecimento a competência para definir questão tão relevante?

Essa foi uma decisão arbitrária e exclusiva do Poder Executivo Federal, sem qualquer

participação dos demais entes federados ou dos representantes do povo, por meio do Congresso Nacional.

Entendeu a União que a tradicionalidade exigida pela Constituição na aplicação do seu

art. 231 somente pode ser aferida por antropólogo. Desse modo, seguindo a linha do Decreto Federal, somente o profissional antropólogo

tem o conhecimento científico para saber: 1) se as terras são habitadas em caráter permanente por indígenas; 2) se as terras são utilizadas para suas atividades produtivas; 3) se as terras são imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar; 4) e se as terras são necessárias para a reprodução física e cultural dos indígenas, segundo seus usos, costumes e tradições.

8 SILVA, Orlando Sampaio. LUZ e outros. Op. cit. p. 34-35. 9 SILVA, Orlando Sampaio. LUZ e outros. Op. cit. p. 70. 10 SILVA, Orlando Sampaio. LUZ e outros. Op. cit. p. 59.

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Esses são os 4 requisitos da tradicionalidade das terras indígenas previstos no art. 231 da Constituição de 1988. Pergunta-se: somente o antropólogo tem o conhecimento para verificar a ocorrência de tais requisitos?

A habitação permanente pode ser muito melhor respondida por um historiador, que irá

demonstrar o histórico de ocupação da região a ser demarcada. A utilização das terras em atividades produtivas e se são imprescindíveis para a

preservação de recursos ambientais necessários ao bem-estar dos índios podem ser respondidas por um engenheiro agrônomo e por um biólogo, respectivamente.

Somente o último requisito é que poderia ser de atribuição exclusiva de um

antropólogo, pois seria ele o profissional capacitado a dizer se as terras são necessárias para a reprodução física e cultural dos indígenas, segundo seus usos, costumes e tradições.

O fato é que não há justificativa técnica para se fazer uma verdadeira reserva de

mercado em favor dos profissionais antropólogos. Como bem afirma o Ministro Menezes Direito, no julgamento pelo STF da validade da

Terra Indígena Raposa Serra do Sol:

É precisamente em virtude da relevância constitucional e política do procedimento que resulta na homologação das terras indígenas que não se pode deixar de cuidar de sua forma e de suas etapas, para assegurar que todos os possíveis representantes dos diversos interesses de âmbito nacional possam se manifestar e assim contribuir para a legitimidade do processo, que não pode ficar, como tem ocorrido na prática, a cargo de uma única pessoa ou, na melhor das hipóteses, a cargo de umas poucas pessoas com formação antropológica. (pág. 186 do Acórdão)

Portanto, inaceitável o depósito exclusivo no profissional antropólogo da

responsabilidade de identificar terras tradicionalmente ocupadas por índios, bem como de dirigir o grupo técnico que deve fazer estudos complementares para a finalização da área a ser demarcada, pelo fato de que os requisitos constitucionais para caracterizar a tradicionalidade exigem outros profissionais com conhecimento científico e com poderes equivalentes ao do antropólogo no processo administrativo.

Nesse sentido, como o processo demarcatório da "Terra Indígena Morro dos Cavalos"

foi coordenado exclusivamente por profissional antropólogo, deve ser declarado nulo. 3.1.1.2.3. GARANTIA DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DOS CIDADÃOS

DIRETAMENTE LESADOS O processo demarcatório, tal como previsto no Decreto n. 1.775/1996, viola direitos

básicos de cidadãos brasileiros não índios.

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Assim como previsto para a participação dos entes federados interessados, os cidadãos que perderão definitivamente suas propriedades com a transferência das terras para a União, afetadas ao Patrimônio Indígena (art. 39 da lei n. 6.001/73 - Estatuto do Índio), são intimados por publicação oficial.

Registre-se que esses cidadãos, ocupantes da terra indígena a ser demarcada, não são

pessoas indeterminadas. É dever do Grupo Técnico constituído para delimitar a Terra Indígena efetuar o levantamento fundiário da área. O levantamento fundiário deve ser feito nos moldes da Sexta Parte da Portaria do Ministério da Justiça n. 14/1996, que estabelece regras sobre a elaboração do Relatório circunstanciado de identificação e delimitação de Terras Indígenas.

Nesse norte, o levantamento fundiário deve identificar os eventuais ocupantes não

índios; descrever a(s) área(s) por ele(s) ocupada(s), com a respectiva extensão, a(s) data(s) dessa(s) ocupação(ções) e a descrição da(s) benfeitoria(s) realizada(s); descrever informações sobre a natureza dessa ocupação, com a identificação dos títulos de posse e/ou domínio eventualmente existentes, com qualificação e origem.

Portanto, se é dever do Grupo Técnico verificar a existência de ocupantes não índios,

caso se confirme tal presença, há pessoas identificadas e diretamente interessadas na demarcação da terra indígena.

Como já dito, se há pessoas identificadas e diretamente interessadas, estas devem ser

comunicadas da existência do processo administrativo por meio que assegure a certeza da ciência pelo interessado. A publicação oficial não é meio adequado para assegurar a ciência da pessoa diretamente afetada pelo processo administrativo.

Dessa maneira, o Decreto n. 1.775/1996 viola o direito de participação efetiva no

processo administrativo demarcatório das pessoas diretamente afetadas pela demarcação de terras indígenas.

Os ocupantes não índios perderão suas propriedades, na maior parte das vezes sua

moradia, e sequer têm garantido o direito de serem comunicados da existência do processo administrativo no seu início. Na verdade, pela sistemática adotada no Decreto n. 1.775/1996, o ocupante não índio tomará ciência inequívoca da demarcação da terra indígena quando já for o momento de sua retirada das terras.

O agir da União, in casu, não se amolda ao devido processo legal administrativo, cujo

fundamento é garantir a participação efetiva em processo administrativo dos diretamente interessados no seu objeto.

3.1.1.2.4. (DES)PROPORCIONALIDADE ENTRE O PROCEDIMENTO PREVISTO E A

FINALIDADE DO PROCESSO DEMARCATÓRIO O procedimento previsto no Decreto n. 1.775/1996 para o processo demarcatório de

terras indígenas não é compatível com seu escopo.

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O princípio da proporcionalidade é totalmente desconsiderado pela normatização

federal. Notem, Senhores Ministros, que, de maneira exclusiva e injustificável, a FUNAI, órgão federal diretamente interessado na causa indígena, produz a instrução do processo demarcatório, cujo comando é conferido exclusivamente a profissional antropólogo. Ademais, o processo é instruído sem a garantia de participação efetiva dos demais entes federados e dos ocupantes não índios diretamente interessados.

A processualidade prevista no Decreto n. 1.775/1996 é precária, parcial e incapaz de

harmonizar os valores constitucionais em jogo. A eficácia do art. 231 da Constituição Federal não se dá por meio do processo demarcatório atualmente previsto na legislação.

O que se vê, atualmente, é o exercício abusivo e equivocado dos pressupostos e

finalidades do art. 231 da CF/88. O processo demarcatório atualmente previsto não consegue adequar os pressupostos

para a demarcação de terras indígenas do art. 231 com o nobre objetivo constitucional de garantir às comunidades indígenas a manutenção de seus usos, tradições e costumes nas terras tradicionalmente ocupadas em 05.10.1988.

É tão desproporcional e mal formulado que a União não conseguiu respeitar o

mandamento do art. 67 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias, cujo teor determina que "A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição".

O que era para ser respeitado se tornou letra morta, pois é quase impossível concluir

demarcações de terras indígenas no Brasil nos moldes previstos na legislação infraconstitucional, especialmente pelo caráter imperial, parcial e desproporcional do processo administrativo demarcatório.

3.1.2. PROCESSO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO DA TERRA INDÍGENA

MORRO DOS CAVALOS Doravante, passa-se a demonstrar as invalidades encontradas no processo

demarcatório n. 08620.002359/93-62, que trata da demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos".

3.1.2.1. PRESSUPOSTO DE FATO DA DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA

MORRO DOS CAVALOS É INCOMPATÍVEL COM AS EXIGÊNCIAS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

A Constituição Federal estabeleceu o Estatuto da Terra Indígena no Brasil, sendo

delimitado fundamentalmente no art. 231, verbis:

CAPÍTULO VIII

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DOS ÍNDIOS Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. § 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.

Já o Estatuto do Índio (lei federal n. 6.001/1973) estabeleceu três modalidades de terras

indígenas:

Art. 17. Reputam-se terras indígenas: I - as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os artigos 4º, IV, e 198, da Constituição; II - as áreas reservadas de que trata o Capítulo III deste Título; III - as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas.

Desse modo, a aplicação do art. 231 da CF/88 (na CF/67, com a EC/69, tal questão era

regulada pelo art. 198) é uma das modalidades de Terra Indígena e é a que possui conseqüências mais drásticas aos eventuais não índios ocupantes da região demarcada, pois determina a remoção dos não índios da área apenas com indenização de eventuais benfeitorias existentes em ocupações de boa-fé.

Devido a isso é que a análise para a demarcação de uma terra indígena deve ser

criteriosa, a fim de se verificar a presença dos pressupostos constitucionais para aplicação do art. 231 da CF/88. No caso de ausência dos pressupostos constitucionais resta à União estabelecer, nos termos do art. 26 do Estatuto do Índio, em qualquer parte do território nacional, áreas destinadas à posse e ocupação pelos índios, onde possam viver e obter meios de subsistência, com direito ao

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usufruto e utilização das riquezas naturais e dos bens nelas existentes, todavia respeitando a propriedade privada e os direitos dos ocupantes da área eleita, especialmente o dever de indenizar justa e previamente o titular da propriedade.

Na verdade, como é fato notório, a União, por meio da FUNAI, não direciona recursos

orçamentários suficientes à solução das questões indígenas. Devido a isso, não causa espécie a utilização pelos profissionais/militantes da causa indígena de argumentação antropológica elástica e desprovida de cientificidade, especialmente em relação aos estritos requisitos da Constituição Federal, a fim de garantir a ocupação de terras pelos índios de maneira a não necessitar de volumosos recursos orçamentários da União, o que, provavelmente, impossibilitaria o ingresso regular dos indígenas nas terras.

Isso sem contar em todas as questões sub-reptícias que permeiam a causa indígena no

Brasil, especialmente notícias de interesses internacionais relacionadas ao financiamento de organizações não governamentais, que, por sua vez, aparelhariam ideologicamente órgão de Estado como a FUNAI.

De toda sorte, a Portaria MJ n. 771/2008 utilizou como pressuposto de fato para

declarar a posse permanente de 1988 ha da Terra Indígena MORRO DOS CAVALOS, em favor dos grupos indígenas Guarani Mbyá e Guarani Nhandéva, o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos elaborado pelo Grupo Técnico coordenado pela antropóloga Maria Inês Ladeira.

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal julgou em 19.03.2009 a Petição n. 3.388,

cujo objeto versa sobre a validade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. No Acórdão publicado em 25.09.2009 e republicado em 01.07.2010, o STF, além de

resolver o caso concreto, por entender a “superlativa importância histórico-cultural” das questões relativas à demarcação de terras indígenas, expressamente consignou que o julgado delimita os parâmetros de interpretação constitucional quanto à demarcação de Terras Indígenas no Brasil, inclusive estabelecendo salvaguardas institucionais. Transcreve-se a ementa do julgado:

AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6.001/73 E SEUS DECRETOS REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMOLOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA, EM SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONALIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IMPORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PARTIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES

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DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE DISPOSITIVA DA DECISÃO. [...] 4. O SIGNIFICADO DO SUBSTANTIVO "ÍNDIOS" NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. O substantivo "índios" é usado pela Constituição Federal de 1988 por um modo invariavelmente plural, para exprimir a diferenciação dos aborígenes por numerosas etnias. Propósito constitucional de retratar uma diversidade indígena tanto interétnica quanto intra-étnica. Índios em processo de aculturação permanecem índios para o fim de proteção constitucional. Proteção constitucional que não se limita aos silvícolas, estes, sim, índios ainda em primitivo estádio de habitantes da selva. [...] 8. A DEMARCAÇÃO COMO COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO DA UNIÃO. Somente à União, por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo, compete instaurar, sequenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das terras indígenas, tanto quanto efetivá-lo materialmente, nada impedindo que o Presidente da República venha a consultar o Conselho de Defesa Nacional (inciso III do § 1º do art. 91 da CF), especialmente se as terras indígenas a demarcar coincidirem com faixa de fronteira. As competências deferidas ao Congresso Nacional, com efeito concreto ou sem densidade normativa, exaurem-se nos fazeres a que se referem o inciso XVI do art. 49 e o § 5º do art. 231, ambos da Constituição Federal. 9. A DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica. 10. O FALSO ANTAGONISMO ENTRE A QUESTÃO INDÍGENA E O DESENVOLVIMENTO. Ao Poder Público de todas as dimensões federativas o que incumbe não é subestimar, e muito menos hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federativos). O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art. 3º da Constituição Federal, assecuratório de um tipo de "desenvolvimento nacional" tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indígena. 11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa -- a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) -- como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das "fazendas" situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da "Raposa Serra do

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Sol". 11.3. O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as "imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar" e ainda aquelas que se revelarem "necessárias à reprodução física e cultural" de cada qual das comunidades étnico-indígenas, "segundo seus usos, costumes e tradições" (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras "são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis" (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. 11.4. O marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado "princípio da proporcionalidade". A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias nativas. O próprio conceito do chamado "princípio da proporcionalidade", quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo peculiarmente extensivo. 12. DIREITOS "ORIGINÁRIOS". Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente "reconhecidos", e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de "originários", a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como "nulos e extintos" (§ 6º do art. 231 da CF). [...] 14. A CONCILIAÇÃO ENTRE TERRAS INDÍGENAS E A VISITA DE NÃO-ÍNDIOS, TANTO QUANTO COM A ABERTURA DE VIAS DE COMUNICAÇÃO E A MONTAGEM DE BASES FÍSICAS PARA A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS OU DE RELEVÂNCIA PÚBLICA. A exclusividade de usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nas terras indígenas é conciliável com a eventual presença de não-índios, bem assim com a instalação de equipamentos públicos, a abertura de estradas e outras vias de comunicação, a montagem ou construção de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de relevância pública, desde que tudo se processe sob a liderança institucional da União, controle do Ministério Público e atuação coadjuvante de entidades tanto da Administração Federal quanto representativas dos próprios indígenas. O que já impede os próprios índios e suas comunidades, por exemplo, de interditar ou bloquear estradas, cobrar pedágio pelo uso delas e inibir o regular funcionamento das repartições públicas. 15. A RELAÇÃO DE PERTINÊNCIA ENTRE TERRAS INDÍGENAS E MEIO AMBIENTE. Há perfeita compatibilidade entre meio ambiente e terras indígenas, ainda que estas envolvam áreas de "conservação" e "preservação" ambiental. Essa compatibilidade é que autoriza a dupla afetação, sob a administração do competente órgão de defesa ambiental. 16. A DEMARCAÇÃO NECESSARIAMENTE ENDÓGENA OU INTRAÉTNICA. Cada etnia autóctone tem para si, com exclusividade, uma porção de terra compatível com sua peculiar forma de organização social. Daí o modelo contínuo de demarcação, que é monoétnico, excluindo-se os intervalados espaços fundiários entre uma etnia e outra. Modelo intraétnico que subsiste mesmo nos casos de etnias lindeiras, salvo se as

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prolongadas relações amistosas entre etnias aborígines venham a gerar, como no caso da Raposa Serra do Sol, uma condivisão empírica de espaços que impossibilite uma precisa fixação de fronteiras interétnicas. Sendo assim, se essa mais entranhada aproximação física ocorrer no plano dos fatos, como efetivamente se deu na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, não há como falar de demarcação intraétnica, menos ainda de espaços intervalados para legítima ocupação por não-índios, caracterização de terras estaduais devolutas, ou implantação de Municípios. [...] 18. FUNDAMENTOS JURÍDICOS E SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS QUE SE COMPLEMENTAM. Voto do relator que faz agregar aos respectivos fundamentos salvaguardas institucionais ditadas pela superlativa importância histórico-cultural da causa. Salvaguardas ampliadas a partir de voto-vista do Ministro Menezes Direito e deslocadas, por iniciativa deste, para a parte dispositiva da decisão. Técnica de decidibilidade que se adota para conferir maior teor de operacionalidade ao acórdão. (Pet 3388, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 REPUBLICAÇÃO: DJe-120 DIVULG 30-06-2010 PUBLIC 01-07-2010 EMENT VOL-02408-02 PP-00229 RTJ VOL-00212- PP-00049)11

Trecho do voto do Ministro-Relator Carlos Ayres Britto ressalta o fato de o julgamento

do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol ser um marco para a demarcação de terras indígenas no Brasil, verbis:

Uma decidida postura de auto-imposição de carga ao mar com tudo que signifique pré-compreensão intelectual de um tema – esse da área indígena Raposa Serra do Sol – sobre o qual profundamente divergem cientistas políticos, antropólogos, sociólogos, juristas, indigenistas, oficiais das Forças Armadas, ministros de Estado, pessoas federadas, ONG´s e igrejas. Razão de sobra para que busquemos na própria Constituição, e com o máximo de objetividade que nos for possível, as próprias coordenadas da demarcação de toda e qualquer terra indígena em nosso País. (p. 33-34 do Acórdão)

Nesse sentido, os parâmetros estabelecidos no referido julgamento devem ser

considerados no presente caso, a fim de se conferir operabilidade constitucional à pretensão de demarcação da "Terra Indígena do Morro dos Cavalos".

O primeiro grande requisito apontado no julgamento é o marco temporal da ocupação

indígena. Nos dizeres do voto do Ministro Carlos Britto:

“I – o marco temporal da ocupação. Aqui, é preciso ver que o a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar um pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação

11 O inteiro teor do Acórdão do STF pode ser visualizado na página oficial da Corte Suprema na internet, no seguinte endereço: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612760.

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de área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro. Com o que se evita, a um só tempo: a) a fraude da subitânea proliferação de aldeias, inclusive mediante recrutamento de índios de outras regiões do Brasil, quando não de outros países vizinhos, sob o único propósito de artificializar a expansão dos lindes da demarcação; b) a violência da expulsão de índios para descaracterizar a tradicionalidade da posse das suas terras, à data da vigente Constituição. Numa palavra, o entrar em vigor da nova Lei Fundamental Brasileira é a chapa radiográfica da questão indígena nesse delicado tema da ocupação das terras a demarcar pela União para a posse permanente e usufruto exclusivo dessa ou daquela etnia aborígine. Exclusivo uso e fruição (usufruto é isso, conforme Pontes de Miranda) quanto às “riquezas do solo, dos rios e dos lagos” existentes na área objeto de precisa demarcação (§ 2º do art. 231), devido a que “os recursos minerais, inclusive os do subsolo”, já fazem parte de uma outra categoria de “bens da União” (inciso IX do art. 20 da CF)”. (p. 67-68 do Acórdão)

Fica clara a necessidade de se comprovar no processo administrativo demarcatório que

em 05.10.1988 havia ocupação indígena, bem como que se retrate a denominada “chapa radiográfica” das terras a demarcar. Inclusive, o Ministro Carlos Ayres Britto ressalta a exigência constitucional de data certa, a fim de evitar a migração posterior de índios de outras regiões do Brasil ou de outros países, como é o caso do Morro dos Cavalos, no único propósito de artificializar a expansão dos lindes da demarcação.

O estudo antropológico da antropóloga Maria Inês Ladeira, que é o único

pressuposto fático da Portaria MJ n. 771/2008, evidenciou a situação encontrada na comunidade indígena do Morro dos Cavalos no ano de 2002, estabelecendo suas conclusões, especialmente quanto à extensão da demarcação, por influência de uma situação atual, e não pela situação existente em 05.10.1988, data da promulgação da Constituição Federal de 1988.

Nesse intervalo de tempo, entre 05.10.1988 e o ano de 2002, houve a chegada na

localidade de índios Guarani Mbyá, no ano de 1994, que transformaram consideravelmente o status fático da comunidade indígena.

Essa é a única explicação plausível para o acréscimo abusivo na extensão da proposta

de demarcação, pois no requerimento inicial que provocou a abertura do procedimento administrativo se falava em 16,40 hectares, retratando situação em 21.10.1991. Posteriormente, o grupo técnico coordenado pelo antropólogo Wagner Antônio de Oliveira apresentou, em outubro de 1995, relatório propondo a demarcação de uma área como terra indígena de 121,8 hectares. Por fim, o grupo técnico coordenado pela antropóloga Maria Inês Ladeira aumentou a demarcação para 1.988 hectares, considerando o ano de 2002.

Nesse momento, não se quer adentrar no fato de não existir, em 05.10.1988, a

ocupação tradicional indígena na região do Morro dos Cavalos. Tal alegação específica será retratada nos itens 3.2.1 e 3.2.2 desta peça.

O voto do Ministro Menezes Direito também corroborou com a necessidade de

verificação do marco temporal estabelecido pela Constituição, transcreve-se:

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Em primeiro lugar, as terras indígenas são terras ocupadas pelos índios. Não terras que ocuparam em tempos idos e não mais ocupam; não são terras que ocupavam até certa data e não ocupam mais. São terras ocupadas pelos índios quando da promulgação da Constituição de 1988. [...] A ocupação é, portanto, um fato a ser verificado. (p. 150-151 do Acórdão)

E não basta somente a ocupação de determinada terra por indígenas. Necessário é, nos estritos termos da Constituição, que tal ocupação seja tradicional em consonância aos usos, tradições e costumes indígenas. Os votos dos Ministros Carlos Ayres Britto e Menezes Direito elucidam o tema:

II – o marco da tradicionalidade da ocupação. Não basta, porém, constatar uma ocupação fundiária coincidente com o dia e ano da promulgação do nosso Texto Magno. É preciso ainda que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário se revista do caráter da perdurabilidade. Mas um tipo qualificadamente tradicional de perdurabilidade da ocupação indígena, no sentido entre anímico e psíquico de que viver em determinadas terras é tanto pertencer a elas quanto elas pertencerem a eles, os índios (“Anna Pata, Anna Yan”: “Nossa Terra, Nossa Mãe”). (Voto do Ministro Carlos Ayres Britto, p. 69 do Acórdão) Terras que os índios tradicionalmente ocupam” são, desde logo, terras já ocupadas há algum tempo pelos índios no momento da promulgação da Constituição. Cuida-se ao mesmo tempo de uma presença constante e de uma persistência nessas terras. Terras eventualmente abandonadas não se prestam à qualificação de terras indígenas, como já afirmado na Súmula n. 650 deste Supremo Tribunal Federal. Uma presença bem definida no espaço ao longo de certo tempo e uma persistência dessa presença, o que torna a habitação permanente outro fato a ser verificado. (Voto do Ministro Menezes Direito. p. 152 do Acórdão)

Aqui também fica clara a ausência de comprovação no processo administrativo

demarcatório de ocupação tradicional, pois, como descrito nos relatórios antropológicos, supostamente, vivia na região em 05.10.1988 somente a família de Rosalina Moreira, descendente de Júlio Moreira, patriarca dos índios paraguaios Guarani Nhandéva que ocuparam a região desde 1960.

Está registrado nos autos administrativos que Rosalina Moreira era casada com um não

índio e que logo em seguida se mudou da região. Na página 42 do processo administrativo demarcatório, no trabalho de 1986 da ONG CTI, há expressa menção ao "marido de Rosalina, o branco Luiz Carlos, contribui com seu salário semanal de mecânico [...]". Já no trabalho do antropólogo Wagner Oliveira, pág. 88 do P.A., afirma-se que "quando dos trabalhos de identificação/delimitação do Morro dos Cavalos, apenas a família-nuclear de dona Rosalina Moreira habitava o Tekohá. Seu marido, um "branco" de nome Luís Carlos Machado, trabalhava na empresa de limpeza urbana da Prefeitura de Palhoça, e seu salário era de apenas dois salários mínimos, único rendimento com que sustentava a família [...]".

Consigne-se que a ocupação posterior à 1988 foi efetivada no início dos anos 90 do

século passado por outro grupo indígena, os Guarani Mbyá, o que descaracteriza de plano qualquer ocupação tradicional com caráter de perdurabilidade.

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Nesse sentido, somente quando comprovada a ocupação tradicional indígena em 05.10.1988 e a extensão de tal ocupação nessa data é que se pode admitir a validade da demarcação de determinada Terra Indígena com os efeitos definidos pelo art. 231 da CF/88. De clareza solar é o voto do Ministro Menezes Direito:

Conclui-se que uma vez demonstrada a presença dos índios em determinada área na data da promulgação da Constituição (5/10/1988) e estabelecida a extensão geográfica dessa presença, constatado o fato indígena por detrás das demais expressões de ocupação tradicional da terra, nenhum direito de cunho privado poderá prevalecer sobre os direitos dos índios. (p. 156 do Acórdão)

Por razões ocultas, o estudo antropológico que fundamentou a Portaria MJ n. 771/2008,

cujo conteúdo declarou a posse permanente de 1988 ha no Município de Palhoça em favor dos índios Guarani Nhandéva e Mbyá, considerou, para estabelecer a extensão geográfica da presença indígena, a realidade do ano de 2002 e não a data de promulgação da Constituição de 1988, como exigido pelo art. 231 da Constituição Federal, na forma da interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal.

A finalidade constitucional do ato declaratório do Ministério da Justiça, que é

garantir a posse permanente de todas as terras indígenas ocupadas tradicionalmente em 05.10.1988 pelos Guarani Nhandéva e Mbyá no Morro dos Cavalos, não guarda congruência com seu motivo, que é o estudo antropológico coordenado pela antropóloga Maria Inês Ladeira, cujo conteúdo delimitou todas as terras indígenas necessárias à ocupação tradicional pelos índios Guarani Mbyá no Morro dos Cavalos no ano de 2002.

E que fique registrado que o Grupo Técnico coordenado pela antropóloga Maria Inês

Ladeira foi constituído por Portaria da FUNAI para realizar estudos de identificação e delimitação da ocupação dos índios Guarani Mbyá, havendo a inclusão dos índios Guarani Nhandéva na Portaria n. 771/2008, do Ministério da Justiça, de modo equivocado.

Ofende-se, portanto, a congruência entre o motivo e o resultado do ato administrativo.

José dos Santos Carvalho Filho leciona sobre o assunto:

Sendo um elemento calcado em situação anterior à prática do ato, o motivo deve sempre ser ajustado ao resultado do ato, ou seja, aos fins a que se destina. Impõe-se, desse modo, uma relação de congruência entre o motivo, de um lado, e o objeto e a finalidade, de outro12.

A própria lei de ação popular (lei 4.717/1965), funcionando como conceituação legal,

estabelece os casos de nulidade de atos administrativos, especificando a hipótese de inexistência de motivos quando a matéria de fato em que se fundamenta o ato é juridicamente inadequada ao resultado obtido, verbis:

12 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª ed. rev., ampl. e atual. até a Lei n. 12.587, de 3-1-2012. São Paulo: Atlas, 2012. p. 117.

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Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: a) incompetência; b) vício de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e) desvio de finalidade. Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas: [...] d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido;

Inolvidável, também, o art. 2º, parágrafo único, inciso VI, da lei n. 9.784/1999 (lei do

processo administrativo federal), que exige nos processos administrativos adequação entre meios e fins.

Dessa maneira, por estar caracterizada a total incongruência entre o motivo e a

finalidade da declaração de posse da Terra Indígena Morro dos Cavalos, mostra-se imperativa a declaração de nulidade do processo administrativo demarcatório, devendo haver a produção de processo administrativo que guarde compatibilidade com o art. 231 da Constituição Federal, à luz da interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal às demarcações de terras indígenas no Brasil, evidenciando-se a existência de ocupação tradicional indígena em 05.10.1988, bem como delimitando-se a extensão das terras a demarcar conforme a ocupação na referida data.

3.1.2.2. CONFUSÃO ENTRE PETICIONANTE E PROFISSIONAL RESPONSÁVEL

PELO LAUDO ANTROPOLÓGICO UTILIZADO COMO FUNDAMENTO DA DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA MORRO DOS CAVALOS

A lei do processo administrativo federal (lei n. 9.784/1999) dispõe sobre o dever de se

observar nos processos administrativos o critério de atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé, verbis:

Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: [...] IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé;

Em seguida, a mesma lei estabelece os casos em que há impedimento de atuação nos

processos administrativos:

Art. 18. É impedido de atuar em processo administrativo o servidor ou autoridade que: I - tenha interesse direto ou indireto na matéria;

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II - tenha participado ou venha a participar como perito, testemunha ou representante, ou se tais situações ocorrem quanto ao cônjuge, companheiro ou parente e afins até o terceiro grau; III - esteja litigando judicial ou administrativamente com o interessado ou respectivo cônjuge ou companheiro. Art. 19. A autoridade ou servidor que incorrer em impedimento deve comunicar o fato à autoridade competente, abstendo-se de atuar. Parágrafo único. A omissão do dever de comunicar o impedimento constitui falta grave, para efeitos disciplinares.

No processo administrativo demarcatório da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" a

pessoa que requereu a atuação estatal em prol da demarcação é a mesma que atuou como servidora da FUNAI na coordenação do Grupo Técnico que elaborou o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos", que, como já é notório, fundamentou a demarcação da Terra Indígena.

Trata-se da antropóloga Maria Inês Ladeira. É inadmissível juridicamente, ofendendo todos os princípios constitucionais relativos à

Administração Pública, bem como os artigos de lei acima referidos, que pessoa diretamente interessada, parcialmente comprometida, seja responsável por elaborar o estudo técnico oficial que fundamentou o ato declaratório do Ministério da Justiça.

Importante assentar que a antropóloga Maria Inês Ladeira atuou como servidora

pública enquanto praticou atos inerentes à função pública, mesmo que contratada temporariamente pela Administração.

Seria um reducionismo inadmissível considerar servidor público somente aqueles que

guardam vínculo estatutário com a Administração Pública. A referida antropóloga, representando o Centro de Trabalho Indigenista – CTI, foi quem

deu início ao processo demarcatório, ainda em 1992, quando requereu providências à FUNAI, apresentando, inclusive, estudos relativos aos índios Guarani, evidenciando a ocupação tradicional sobre as terras de Morro dos Cavalos.

A mesma antropóloga, no ano de 2002, agora na qualidade de coordenadora do Grupo

Técnico responsável por identificar e delimitar a Terra Indígena Morro dos Cavalos, constituído por indicação da Presidência da FUNAI, capitaneou os trabalhos que atestaram a ocupação tradicional atual (em 2002) dos índios Guarani Mbyá nas terras de Morro dos Cavalos.

Há evidente conflito de interesses, o que resulta na absoluta invalidade dos trabalhos

técnicos coordenados pela antropóloga Maria Inês Ladeira. A Portaria MJ n. 771/2008 se fundamentou exclusivamente em tais estudos, sendo corolário lógico a invalidade da referida Portaria e de todo o processo administrativo demarcatório.

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Comete-se um atentado aos princípios da Administração Pública quando pessoa comprometida com uma visão específica e ideológica da causa indígena é responsável por subsidiar tecnicamente o órgão responsável por executar a política indígena no Brasil.

O Ministro Menezes Direito, no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, explicita sua

preocupação com o poder quase absoluto conferido à FUNAI para definir a área a ser ocupada, verbis:

Os mapas indicativos de ocupação constituem um bom exemplo de que não pode deixar de haver a oportunidade para manifestações de interesses contrários que podem, eventualmente, contestar as indicações feitas pelos grupos da FUNAI. A estes, por certo, não pode ser dado o poder absoluto de definir a área a ser ocupada com exclusividade pelos índios. Há que se respeitada a disciplina constitucional sobre o contraditório e a ampla defesa. (p. 161 do Acórdão)

Ora, se a própria disciplina exercida pela FUNAI nos casos de demarcação já é terreno

fértil para abusos quanto à área a ser demarcada, o que se dirá quando a antropóloga coordenadora do estudo que demarcou a área indígena é a mesma que requereu o início do procedimento administrativo demarcatório.

Portanto, o processo demarcatório da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" também por

esse motivo, o evidente conflito de interesses e a parcialidade notória da coordenadora do laudo antropológico, deve ser descartado, sendo considerados nulos todos os atos praticados.

3.1.2.3. AUSÊNCIA DE EFETIVA PARTICIPAÇÃO DO ESTADO DE SANTA

CATARINA NO PROCESSO DEMARCATÓRIO DA TERRA INDÍGENA MORRO DOS CAVALOS

O Supremo Tribunal Federal no julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol consignou a necessidade de ampla e efetiva participação dos entes federados interessados, quais sejam, aqueles em cujo território estejam encravadas as terras indígenas a serem demarcadas.

As publicações dos atos do processo administrativo, quando ocorreram, foram

efetuadas por meio de Diário Oficial, não havendo intimação pessoal ou por carta do representante legal do Estado de Santa Catarina.

Registre-se que o Estado de Santa Catarina interveio nos autos do processo

demarcatório em 2005, por meio dos memoriais de fls. 909-928 do PA, requerendo a improcedência da demarcação da Terra Indígena. Note-se que os trabalhos de identificação e delimitação já estavam todos realizados.

O Estado de Santa Catarina não foi intimado de qualquer decisão referente aos

requerimentos insertos nos memoriais referidos. O Ministro Gilmar Mendes vaticinou em seu voto:

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O direito dos Estados e Municípios de participar do processo demarcatório abrange o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão federal responsável pela demarcação, órgão que tem o dever de lhes conferir atenção, considerando, séria e detidamente, as razões apresentadas ao fundamentar sua decisão. (p. 595-596 do Acórdão)

Nesse sentido, por absoluta ausência de participação efetiva do Estado de Santa

Catarina em todas as fases do procedimento de demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos", a demarcação da Terra Indígena deve ser anulada.

3.2. DIREITOS ORIGINÁRIOS DOS ÍNDIOS E A TERRA INDÍGENA MORRO DOS

CAVALOS No tópico anterior foram tratadas as questões relativas ao processo administrativo

demarcatório e todas as suas insubsistências, o que já é motivo suficiente para anular a demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos".

Doravante e sucessivamente, as alegações do Estado de Santa Catarina versarão

sobre a (in)existência do direito originário dos índios Guarani Mbyá e Guarani Nhandéva sobre as terras demarcadas no Morro dos Cavalos.

Apesar de a Portaria MJ n. 771/2008 fazer menção aos índios Guarani Nhandéva e

Mbyá, a ocupação indígena no "Morro dos Cavalos" se deu somente por índios Guarani Mbyá, que chegaram nas terras a partir dos anos 90 do século passado, ou seja, posteriormente ao marco temporal constitucional.

3.2.1. AUSÊNCIA DE COMUNIDADE INDÍGENA NO MORRO DOS CAVALOS EM

05.10.1988 Como já demonstrado, o art. 231 da Constituição Federal garante o direito originário

dos índios sobre as terras que ocupavam tradicionalmente em 05.10.1988. Ocorre que jamais houve qualquer comunidade indígena ocupando tradicionalmente

terras no Morro dos Cavalos em 05.10.1988. Preliminarmente, registre-se que há notícia nos estudos apresentados no processo

administrativo demarcatório da existência de somente uma família indígena, de origem paraguaia, da etnia Guarani Nhandéva, que se fixou na região na década de 60 do século passado, cujo patriarca era Júlio Moreira. Este faleceu em 1980 e os seus filhos, paulatinamente, abandonaram o Morro dos Cavalos, havendo notícia de que Milton Moreira foi para a aldeia Mbiguaçu em 1987 e que Rosalina Moreira, casada com um homem branco, deixou a região no início dos anos 90 do século passado. Por outro lado, os Guarani Mbyá somente chegaram à região a partir dos anos 90 e ali se consolidaram.

Os estudos do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFSC, datados de

1976, referentes ao Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, unidade de conservação ambiental

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criada em 1975, que se sobrepõe à delimitação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos", colacionados em anexo junto à Informação Técnica n. 30/2013, da FATMA (Fundação Estadual de Meio Ambiente), afirmam a existência de uma única família Guarani vivendo no alto do Morro dos Cavalos em 1976, transcreve-se:

No alto do morro dos Cavalos, na BR 101, entre Palhoça e Paulo Lopes, vive uma família de índios Guarani há vários anos. Essa família é originária do Paraguai e atravessou todo o Estado de Santa Catarina, numa lenta migração. O processo é típico dos Guarani que, acreditando no mito de uma terra sem males para o leste do Atlântico, há séculos vem migrando para o litoral. Júlio Moreira o chefe dessa família, é um índio Guarani do grupo Nandéva. Conta com aproximadamente 60 anos. É viúvo a cerca de 15 anos. Do seu casamento resultaram cinco filhos, dos quais quatro são mulheres. O único filho homem Júlio Moreira doou a uma família que reside no Estreito, Florianópolis, e o garoto está sendo educado regularmente nos colégios da capital. As mulheres tiveram várias ligações maritais mais ou menos duradouras, resultando em diversos filhos. A época do levantamento residiam no local treze pessoas. Uma única das mulheres presentes mantinha uma ligação mais, demorada de três anos, com um civilizado, também residente no local. A prostituição dessas mulheres é meio de assegurar recursos para a sobrevivência. É comum a parada de camioneiros no local.

E o estudo continua descrevendo as condições de vida da família Moreira no Morro dos

Cavalos em 1976:

As condições vividas por essa família de indígena são extremamente precárias. Júlio Moreira é avêsso a qualquer referência de residir num Pôsto Indígena, alegando que não gosta de ser mandado. Ele possui, segundo informa, várias experiências de trabalho com civilizados. No presente, contudo, e tudo indica que isso ocorre há muito tempo, vive do fabrico de alguns instrumentos tradicionais (arcos, flechas e cestas) que são comercializados à beira da BR. É importante ressaltar que o civilizado que vive maritalmente com uma das filhas de Júlio Moreira também fabrica tais artefatos e é ele que orienta um garoto de cerca de 12 anos, neto de Júlio Moreira e com um fenótipo bem nítido, para realizar as vendas. O meninote serve de atração para os viajantes, especialmente turistas, e assim a produção artezanal, embora pobre quanto a sua confecção, tem saida garantida.

Portanto, pelos estudos realizados já se verifica a inexistência de ocupação de

comunidade indígena em 05.10.1988. Por outro lado, pelos relatos de moradores antigos, do próprio Milton Moreira,

descendente do patriarca da família Moreira, e, também, de bibliografia histórica da região, não se conhece qualquer ocupação indígena no Morro dos Cavalos em 05.10.1988.

Os próprios estudos do processo demarcatório apontam que houve ocupação indígena

de índios Guarani na região Sul do Brasil nos séculos XVII e XVIII e que tais ocupações deixaram de existir pelo próprio processo civilizatório da região Sul do Brasil.

Repisa-se aqui a Súmula n. 650 do STF:

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STF Súmula nº 650 - 24/09/2003 - DJ de 9/10/2003, p. 3; DJ de 10/10/2003, p. 3; DJ de 13/10/2003, p. 3. Republicação: DJ de 29/10/2003, p. 1; DJ de 30/10/2003, p. 1; DJ de 31/10/2003, p. 1.Bens da União Bens Públicos ou Particulares - Aldeamentos Extintos ou Terras Ocupadas por Indígenas em Passado Remoto Os incisos I e XI do art. 20 da CF não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto.

Além disso, no relatório de identificação (pág. 413 do P.A.) confessa-se a inexistência

de registros sobre a presença Guarani na costa Atlântica:

(...) A ausência ou insuficiência de registros sistemáticos sobre a presença contínua dos Guarani na costa Atlântica não deve se constituir em prova de negação dessa presença Indígena.

Em seguida, pág. 414 do P.A., fica clara a tentativa de se reescrever a história dos

Guarani em Santa Catarina:

Levantamentos recentes reunindo fontes escritas e registros arqueológicos procuram reconstruir ou reinterpretar a história da presença Guarani no litoral catarinense. Estudos pontuais sobre a ocupação territorial Guarani em Santa Catarina, fundamentados em dados históricos, arqueológicos e etnográficos foram intensificados a partir da década de 1990, em razão do início dos procedimentos de demarcação de áreas para os Guarani no litoral catarinense, provocado inicialmente por relatório do CTI – Centro de Trabalhos Indigenista, datado de 1991.

Se de fato houve ocupação tradicional e permanente de comunidades indígenas

Guarani na região do Morro dos Cavalos, esta se deu em passado remoto. O fato é que a família de origem paraguaia da etnia Guarani Nhandéva, que se fixou na

região nos anos 1960/70, já não mais se encontrava ocupando as terras do Morro dos Cavalos em 05.10.1988.

Na escritura pública declaratória anexa, produzida em 30.04.2004, José Neto declarou

perante Tabelião que foi servidor do DNER nas décadas de 60 e 70 do século passado, onde exercia a função de topógrafo, sendo responsável pela definição do traçado da BR-101, inclusive da transposição do Morro dos Cavalos. Afirmou o declarante que "não havia indígenas isolados ou em forma de aldeia naquela região, afirma que especificamente no Morro dos Cavalos não havia índios ou sequer sinais de presença de povos indígenas". Interessante ainda transcrever a declaração referente à chegada da família Moreira:

[...] informa que após a terraplanagem ter sido concluída, uma família de índios que residia em Biguaçu/São Miguel, mudou-se para a região da Enseada do Brito vindo a se instalar na faixa de domínio da recente BR-101 terraplanada e que os funcionários do DNER davam comida e roupas para esta família, que por sua vez mudava-se constantemente de local por orientação dos funcionários do DNER, informa que o nome do chefe da família era Moreira, e que quando a família Moreira mudou-se para a região da Enseada do Brito em 1970, seus filhos eram pequenos, portanto, não nasceram na Enseada do Brito [...]

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Senhores Ministros, o Ministério Público Estadual de Santa Catarina, por meio do então

Promotor de Justiça Antônio Carlos Brasil Pinto, ajuizou, em 1990, Ação Civil Pública contra Puolo Scarpa, pretendendo impedir o desmatamento no Morro dos Cavalos, na altura do Km 234 da BR-101.

Nessa ação foram produzidos laudos periciais (doc. anexo), a fim de verificar a situação

do local onde supostamente ocorriam os danos ambientais. No primeiro laudo pericial, de 09 de outubro de 1993, juntados àqueles autos nas fls.

78-107, o Geólogo Victor Hugo Teixeira fez as avaliações requisitadas pelo juízo e pelas partes na "área situada à margem esquerda, ou seja, leste da BR-101, entre o Km 233+800m e 234+250m, no lugar denominado Morro dos Cavalos, Município de Palhoça, Estado de Santa Catarina".

Os documentos juntados ao laudo pericial, especialmente fotografias da região,

demonstram inequivocamente não haver qualquer indício de índios ou comunidade indígena ocupando o Morro dos Cavalos.

Posteriormente, foi produzido um segundo laudo pericial, juntado às fls. 146-159 dos

autos da referida Ação Civil Pública. Este laudo, datado de junho de 1999, foi elaborado pelo Engenheiro Civil Miguel Daux Neto e pelo Engenheiro Agrônomo Aleksander Westphal Muniz, cujo teor afirmou a existência de índios Guarani próximo ao lado direito da área objeto da perícia.

Na comparação de fotografias, fl. 153 da ACP, fica claro que em 1993 não havia casas

ou qualquer intervenção do lado direito da área desmatada, sendo que em 1999 há algumas casas, ou seja, os indígenas passaram a ocupar a região.

Portanto, houve na região do Morro dos Cavalos ocupação artificial de índios Guarani

Mbyá posteriormente a 1993, patrocinada por organizações não governamentais da causa indígena, especialmente interessadas na duplicação da BR-101.

Já os estudos do Grupo Técnico constituído para eleição de área a ser adquirida em

favor das comunidades indígenas do Morro dos Cavalos e Massiambu, fls. 166-271 do processo administrativo demarcatório, são mais uma clara demonstração dos equívocos cometidos no reconhecimento dos direitos dos Guarani Mbyá no Morro dos Cavalos.

Registre-se que tal estudo tinha como objetivo "localizar e descrever uma nova área

destinada aos índios Mbya-guarani, como ficou estabelecido pela Portaria/PRES n. 290, de 06 de maio de 1999, em conformidade com o disposto na Cláusula sétima do Convênio n. 04/98 estabelecido pela FUNAI e a TGB" (fl. 168 do P.A.).

A área escolhida foi a denominada "Cachoeira dos Inácios", de propriedade de José

Martins, com 70 (setenta) hectares, situada em Imaruí/SC. Excelências, tais terras foram adquiridas em 1999 pela FUNAI como medida compensatória da implantação do Gasoduto Brasil-Bolívia e eram destinadas à fixação dos índios Guarani Mbyá do Morro dos Cavalos e de Massiambu.

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Inclusive, na relação de Terras Indígenas de Santa Catarina apresentada pela FUNAI

consta a "Terra Indígena Cachoeira dos Inácios". Ou seja, os índios do Morro dos Cavalos deveriam estar nessas terras, porém, posteriormente, a FUNAI reabriu o processo demarcatório do Morro dos Cavalos.

No estudo de 1999, o Grupo Técnico mencionado afirmou que "a área de Massiambu

possui menos de 4,9 ha e a do Morro dos Cavalos deverá ser demarcada com 121,8 ha" (fl. 188), o que evidencia que, mesmo tendo ciência do aumento populacional da aldeia de Morro dos Cavalos, a área deveria ser demarcada conforme a proposta apresentada pelo antropólogo Wagner Antônio de Oliveira.

Outrossim, o estudo atesta a chegada dos índios Mbyá somente em 1994:

Os grupos familiares que "entraram" nas terras de Massiambu e Morro dos Cavalos em 1994, viveram anteriormente na localidade denominada Terra Fraca. Essas famílias e outras mais que no decurso de cinco anos habitaram e habitam as aldeias, são provenientes de diversas comunidades localizadas no interior de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, sendo que alguns indivíduos vieram de aldeias de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. (fl. 187 do PA)

No mesmo sentido, outra passagem do estudo:

Mas é na década de 90 que se apresenta como incisiva na questão relativa à presença de índios Guarani e à consecução de atitudes específicas para a garantia de terras para os índios Guarani. Firme e decididamente, mas sem alardes, pressões ou notificações, como é totalmente característico dos índios Guarani, famílias extensas ou nucleares passam a habitar locais de domínio público ou particular, neste caso sempre com consentimento do proprietário. (p. 220 do PA)

Além disso, a notícia colacionada na fl. 267 do processo demarcatório menciona

expressamente que em 05 de janeiro de 1995 ocorreu o primeiro assentamento Guarani Mbyá em Santa Catarina. Afirma-se na notícia que "todos os Estados do Sul, Sudeste e Mato Grosso do Sul que compreendem o território guarani possuem reservas específicas para esta etnia, sendo, até então, a única exceção o Estado de Santa Catarina".

Portanto, por absoluta ausência de índios no Morro dos Cavalos em 05.10.1988, o art.

231 da Constituição Federal não pode ser aplicado no Morro dos Cavalos, o que deve ser reconhecido pelo este Colendo Tribunal.

3.2.2. AUSÊNCIA DE OCUPAÇÃO TRADICIONAL DOS ÍNDIOS OCUPANTES DO

MORRO DOS CAVALOS EM 05.10.1988

Na hipótese remotíssima deste Tribunal considerar a existência de ocupação indígena no Morro dos Cavalos em 05.10.1988, indelével registrar o fato de que nesta data não havia qualquer traço de tradicionalidade na ocupação.

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Excelências, a única família que residiu na região do Morro dos Cavalos antes de 05.10.1988 veio do Paraguai, são índios paraguaios! Por óbvio que não tinham uma relação anímica com a terra do Morro dos Cavalos conforme seus usos, tradições e costumes.

O Morro dos Cavalos está localizado no Município de Palhoça, na região metropolitana

de Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina. Desarrazoado supor que índios paraguaios se fixaram em região metropolitana e ali

mantinham seus usos, tradições e costumes de modo permanente. Há relatos de que os filhos do índio Júlio Moreira, falecido em 1980, se relacionavam com pessoas não índias, inclusive tendo filhos e constituindo família.

O estudo da antropóloga Maria Inês Ladeira retrata situações obscuras. Há, inclusive,

uma suposta entrevista com a irmã e a esposa de Milton Moreira, com afirmações inverossímeis, transcreve-se:

Os depoimento das irmãs e da esposa de Milton Moreira confirmam e esclarecem, um pouco, a origem e os laços de suas famílias. Segundo Nadir (irmã de Milton) sua mãe, Isolina, e seus avós maternos e demais antepassados (que consideram ser "Guarani/Karijós) eram dessa região de Santa Catarina (da "grande Florianópolis"). A família de seu pai, Júlio Moreira, teria vindo do Paraguai "por volta da década de 1930". Parte das famílias de Isolina e de Júlio viveram na região do Morro dos Cavalos mas por pressões diversas (que relacionam à "guerras") foram para oeste de Santa Catarina, morando entre outros locais, na aldeia de Xapecó onde se encontravam parentes que compunham a família de Alcindo Moreira. Julio e Isolina casaram-se e retornaram à região litorânea, sendo que os seus seis filhos nasceram na aldeia conhecida como Morro dos Cavalos. Julio Moreira ficou viúvo em 1960, criando sozinho todos os filhos. Morreu em 1980. (p. 430-431 do P.A)

No próprio estudo colacionado aos autos do processo administrativo demarcatório, pág.

41, afirma-se que:

Um grupo formado por treze pessoas, sendo oito Guarani, um branco e quatro mestiças vive na localidade conhecida como Morro dos Cavalos, junto à BR 101, a aproximadamente 35 km ao sul de Florianópolis, e situada no município de Palhoça, SC. Esta população se constitui basicamente por parte da descedência do casal Guarani (Mbyá) Júlio Moreira e Isolina Moreira, ambos provenientes do Paraguai, mas com experiência de vida pelo interior do sul do Brasil.

Ora, as afirmações constantes do estudo antropológico caracterizam verdadeira fraude

histórica e antropológica, pois não há notícia de que as famílias de Júlio e Isolina Moreira tenham habitado a região do Morro dos Cavalos, tampouco que os seis filhos do casal tenham nascido na aldeia.

Senhores Ministros, se havia alguma ocupação de índios na região do Morro dos

Cavalos, esta não tinha caráter tradicional, o que afasta a aplicação do art. 231 da CF/88.

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3.2.3. IMPOSSIBILIDADE DE DEMARCAÇÃO PARA ETNIAS DIFERENTES A demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" se deu em favor dos índios

Guarani Nhandéva e dos índios Guarani Mbyá, conforme se denota da Portaria MJ n. 771, de 18 de abril de 2008, que declarou como “de posse permanente dos grupos indígenas Guarani Mbyá e Nhandéva a Terra Indígena MORRO DOS CAVALOS [...]".

Note-se que o Grupo Técnico coordenado pela antropóloga Maria Inês Ladeira foi

constituído, fl. 390-391 do P.A, para realizar novos estudos sobre a Terra Indígena Morro dos Cavalos, de ocupação dos índios Guarani Mbyá. Não houve menção aos índios Guarani Nhandevá, até porque estes, por meio da família Moreira, haviam deixado as terras antes de 1988, como já relatado.

Ocorre que diante do fato de os Guarani Mbyá chegarem as terras no Morro dos

Cavalos posteriormente ao ano de 1993, houve a tentativa no processo administrativo de asseverar a equivalência entre diferentes etnias, a fim de conferir suposta continuidade da ocupação indígena.

O fato é que a utilização comum do termo Guarani, em uma análise superficial da

questão, leva a crer que são todos iguais, porém os Guarani Mbyá e Guarani Nhandéva não são iguais e não possuem os mesmos usos, tradições e costumes.

Atribui-se a denominação Guarani aos diversos e distintos grupos indígenas falantes de

dialetos semelhantes, pertencentes à língua Guarani. O mesmo seria afirmar que franceses, angolanos ou timorenses são povos latinos. Nos exemplos citados, guarani ou latino, cada um forma um grupo lingüístico específico, porém estes grupos lingüísticos são constituídos de povos diferentes fisicamente, culturalmente e, principalmente, habitantes de regiões distintas.

As variadas tribos ou grupos pertencentes à classificação lingüística denominada

Guarani diferenciam-se por características marcantes nos hábitos culturais, na complexidade física, nos dialetos falados, e, sobretudo com marcantes diferenciações no tocante as distribuições territoriais e geográficas, definindo por isso, as terras que tradicionalmente ocupam.

Os componentes do grupo Nhandéva não são os mesmos do grupo Mbyá. Os próprios

estudos apresentados no processo demarcatório da FUNAI deixam claras as diferenças entres tais grupos, transcreve-se:

Embora prevaleça essa aparente desigualdade de condições materiais e físicas entre os Nhandeva e os Mbya do litoral catarinense, o preconceito entre uns e outros é mútuo e igualmente consistente. Ao contrário dos Mbya, entretanto, os Nhandeva manifestam claramente aos brancos suas objeções ao comportamento dos Mbya. As pequena roças dos Mbya que perdem em porte ao artesanato bem desenvolvido e produzido em grande escala, a não fixação num único ponto, a chegada constante dos Mbya do Rio Grande do Sul e Argentina às aldeias do litoral implicam num movimento e trânsito inaceitável pelos Nhandeva pois, de certa forma, parece-lhes perturbador. Além disso, para eles, os Mbya que pouco falam o português e são pouco receptivos aos brancos, são considerados atrasados e num estágio inferior. (p. 28-29 do P.A.)

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Os Guarani que vivem atualmente no Brasil são classificados pela literatura etnográfica em três grupos - Kaiova, Mbya, Xiripa (ou Nhandéva) - segundo diferenças de costumes, de práticas rituais e dialetais. (p. 416 do P.A) (grifou-se)

Nos estudos do Componente Indígena do licenciamento ambiental da duplicação da

BR-101 Sul, explica-se os diferentes grupos Guarani (p. 49 do documento anexo):

A partir de meados do século XX os Guarani foram classificados pela literatura etnográfica em três subgrupos: Mbya, Nhandéva e Kaiova com seus respectivos etnônimos no Paraguai. Essa classificação baseia-se nas variações lingüísticas, de práticas rituais e em particularidades da “cultura material e não material”1. De acordo com o lingüista Aryon Dall'Igna Rodrigues2, Mbya, Nhandéva e Kaiova são “dialetos” do idioma Guarani que pertence à família Tupi-Guarani do tronco lingüístico Tupi. (grifou-se)

No mesmo sentido, o Censo Demográfico do IBGE de 2010, relativo às características

gerais dos indígenas, demonstra claramente as diferenças consideradas na pesquisa demográfica entre os índios Guarani Kaiowá, Mbyá e Nhandéva, componentes de grupos indígenas distintos. O Anexo I do referido trabalho (p. 210-211 do Censo em anexo) demonstra que Guarani Kaiowá, Mbyá e Nhandéva são distintas etnias que têm o mesmo tronco e família lingüística.

No Acórdão do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, voto do Ministro Carlos

Ayres Britto, delineia-se a impossibilidade de demarcação entre diferentes etnias, verbis:

Esse modelo peculiar ou restritamente contínuo de demarcação é monoétnico (não pluriétnico). Formato que deve atentar para a vontade fundiariamente generosa da Constituição, é lógico, mas ainda assim balizado pela realidade de cada etnia. Logo, interditado fica todo impulso, tentação ou veleidade antropológica de conectar, mais que os tradicionais espaços de ocupação fundiária por uma destacada etnia, aqueles que também englobam diferenciados grupos étnicos no interior de um só Estado-membro, inclusive os espaços que por acaso sejam de outra ou de outras etnias igualmente aborígines. Sem o que resulta inconstitucionalmente desconsiderada a própria interculturalidade étnico-nativa, com a circunstância agravante de acarretar movimento de incorporações e fusões que são próprias de Municípios (§ 4º do art. 18 da CF), mas não de etnias indígenas. (p. 87 do Acórdão)

Portanto, pelo fato de que a demarcação declarada é em favor de etnias indígenas

distintas e, ainda, que os Guarani Mbyá só chegaram no Morro dos Cavalos posteriormente a 1988, não pode haver o reconhecimento dos direitos originários desses índios às terras demarcadas pela União.

3.2.4. ÍNDIOS ESTRANGEIROS - NÃO APLICAÇÃO DA NORMA CONSTITUCIONAL Os índios Guarani Nhandéva da família Moreira são de origem paraguaia e os Guarani

Mbyá têm, também, origem estrangeira. Há relatos de que índios estão sendo expulsos paulatinamente do Paraguai, bem como, pela promessa de "terra fácil" no Brasil, passaram a fazer ocupações, principalmente, na região Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil. É o propalado "Projeto Guarani".

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Ocorre que o art. 231 da Constituição Federal de 1988 não tem por objetivo garantir

direitos originários a índios estrangeiros, mas sim busca tutelar os índios brasileiros. Não se pode conceder a estrangeiros direitos superlativos em detrimento do povo

brasileiro, "é dizer, povo brasileiro como um só continente humano de hoje, de ontem e de amanhã, a abarcar principalmente os três elementares grupos étnicos dos indígenas, do colonizador branco e da população negra”13.

Excelências, no documento exarado pela ONG CTI, datado de 1986, há expressa

menção de que a única família de índios que se fixou na região do Morro dos Cavalos a partir dos anos 1960 tem origem paraguaia, afirmando-se que "segundo informação de Rosalina Moreira seus pais saíram do Paraguai "porque estavam destruindo tudo por lá" (página 41 do P.A.).

Nesse sentido, transcreve-se trecho do voto do Ministro Carlos Ayres Britto, que expressamente consigna a necessidade de serem os índios brasileiros:

[...] são as âncoras normativas de que nos valemos para adjetivar de brasileiros os índios a que se reportam os arts. 231 e 232 da Constituição. Não índios estrangeiros, “residentes no País”, porque para todo e qualquer estrangeiro residente no Brasil já existe a genérica proteção da cabeça do art. 5º da nossa Lei Maior [...]. Assumindo tal qualificação de pessoas naturais brasileiras, ressalte-se, decisivas conseqüências hermenêuticas para a compreensão do tema da demarcação das terras indígenas, pois as “organizações”, “comunidades” e “populações” a que se refere o inciso V do art. 129 da Magna Carta Federal são constituídas de coletividades humanas genuinamente nacionais, todas alocadas em solo pátrio. (p. 41 do Acórdão da Petição STF 3.388)

Portanto, por se tratarem de índios de origem paraguaia, a quem não foi conferida a especial tutela do art. 231 do CF/88, o reconhecimento do direito originário à terras do "Morro dos Cavalos" deve ser retificado.

3.2.5. EXISTÊNCIA DE UNIDADE DE CONSERVAÇÃO AMBIENTAL ESTADUAL -

PARQUE ESTADUAL DA SERRA DO TABULEIRO

É dever do intérprete da Constituição harmonizar os valores constitucionais em jogo nos mais variados litígios.

A "Terra Indígena Morro dos Cavalos" está encravada no Parque Estadual da Serra do

Tabuleiro, unidade de conservação ambiental estadual criada pelo Decreto Estadual n. 1.260/1975, com área atualizada pela Lei Estadual n. 14.661/2009.

O Parque Estadual da Serra do Tabuleiro é a maior unidade de conservação de

proteção integral do Estado de Santa Catarina, ocupando cerca de 1% do território catarinense. Foi criado com base nos estudos dos botânicos Pe. Raulino Reitz e Roberto Miguel Klein, com o objetivo

13 Trecho do voto do Ministro Carlos Ayres Britto, encontrado na página 40 do Acórdão da Petição n. 3.388, relativo à Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

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de proteger a rica biodiversidade da região e os mananciais hídricos que abastecem as cidades da Grande Florianópolis e do sul do Estado.

A informação técnica n. 30/2013, da FATMA (Fundação do Meio Ambiente/SC),

contendo mapas referentes ao Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, demonstra a sobreposição da Terra Indígena na referida unidade de conservação.

O meio ambiente é valor fundamental na atual quadra da história. Os Poderes Públicos

e a Sociedade Civil vem dando a este tema cada vez maior importância. O art. 225 da Constituição Federal prescreve:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...] III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; [...] VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. [...] § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. § 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

Por outro lado, o parágrafo 2º do art. 231 da CF/88 permite aos índios o "usufruto

exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos..." existentes nas terras tradicionalmente ocupadas.

Ora, aos índios é garantido o usufruto exclusivo das riquezas naturais de suas terras, o

que é totalmente incompatível com a especial proteção ambiental conferida pelo Poder Público a determinadas áreas.

Como bem afirma o Ministro Menezes Direito no seu voto no caso da Terra Indígena

Raposa Serra do Sol:

Ao contrário do que sustentam alguns defensores de um caráter absoluto dos direitos indígenas, estes são, em verdade, uma das diversas expressões do interesse público de âmbito nacional. À nação brasileira interessa, sem dúvida, a proteção e a preservação dos interesses indígenas, mas interessa também a preservação do meio ambiente e da

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segurança de nossas fronteiras além de outros interesses públicos representados pela União, como prevê literalmente o art. 231 da Constituição da República. É importante identificar tais interesses para que o estatuto jurídico das comunidades indígenas possa ser de uma vez por todas definido considerando a disciplina constitucional. A identificação dos demais interesses públicos que poderão condicionar os direitos dos índios passa, em muitos casos pela edição de lei, ordinária ou complementar, ou pela autorização do Congresso Nacional. E em nossos dias é necessário ter presente que a preservação do meio ambiente é imperativa para a humanidade e não apenas para as nações ou comunidades individualmente consideradas. (pág. 176-177 do Acórdão do STF)

Se as unidades de conservação ambiental possuem fundamento constitucional e têm

possibilidades restritas de utilização, por óbvio que não se pode conferir a determinado grupo social, no caso os índios, usufruto exclusivo de suas riquezas naturais.

O direito ao meio ambiente equilibrado é um direito fundamental de todos, já os direitos

originários a terras tradicionalmente ocupadas são somente dos índios. Parece razoável supor que no caso de sobreposição de áreas de unidades de

conservação ambiental e terras indígenas prepondera a finalidade de proteção ambiental à finalidade de proteção indígena.

Ainda mais no caso concreto, pois a região do Morro dos Cavalos é unidade de

conservação ambiental desde 1975 e a ocupação tradicional indígena é, no mínimo, extremamente duvidosa.

Por óbvio que no caso concreto deve prevalecer a unidade de conservação ambiental,

sob pena de a área ambiental já delimitada correr o risco de descaracterização pela ocupação indígena que possui usufruto exclusivo sobre as riquezas naturais da região, sem oposição do Poder Público.

Senhores Ministros, não existem direitos fundamentais absolutos. Conferir aos índios

Guarani Mbyá o usufruto exclusivo das riquezas naturais do Parque Estadual Serra do Tabuleiro é suprimir integralmente o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e maximizar desproporcionalmente o direito originário a terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.

Na verdade, o presente caso não confere certeza de identidade entre a referida etnia e

a terra do Morro dos Cavalos, o que culmina na necessária rejeição da demarcação pretendida, verbis:

Exige-se, então, não somente uma mera afirmação por parte de uma etnia indígena, mas, uma comprovação da existência da identidade para com a terra que pretendem como sua. Logo, caso não se façam presentes essas evidências, não há que se falar em prioridade de ocupação para os índios, e sim na sua ilegitimidade para obter o domínio e

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a propriedade de dada terra. Na falta de elementos que denotem a certeza, cabe ao Estado cumprir sua função primordial de proteção ao meio ambiente.14

Portanto, pela impossibilidade de descaracterização do Parque Estadual da Serra do

Tabuleiro, a demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" deve ser descartada.

3.2.6. RODOVIA FEDERAL - BR-101 - OBRAS DE DUPLICAÇÃO

A sociedade catarinense reclama do Governo Federal há muitos anos a conclusão das obras de duplicação da rodovia federal BR-101. Provavelmente quando a obra for concluída, ante a demora injustificável, já haverá necessidade de mais pistas.

O fato é que a rodovia federal BR-101 tem seu traçado cortando o Morro dos Cavalos, o

que traz a tona diversas discussões jurídicas sobre a possibilidade da duplicação do trecho, haja vista o processo demarcatório.

Até o momento não há qualquer notícia de definição quanto a esse assunto. Na

verdade, a demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" impediu a normal execução da obra de duplicação, conforme se infere do Estudo de Impacto Ambiental - Componente Indígena, em anexo.

Tanto é assim que se tem notícia do Acórdão n. 533/2005 TCU-Plenário (pág. 929-968

do Processo Administrativo Demarcatório), cujo objeto foram denúncias de irregularidades na escolha do projeto de travessia do Morro dos Cavalos nas obras de duplicação da BR-101.

Discutiu-se no Acórdão três tipos de travessia do Morro dos Cavalos: 1) viadutos; 2) um

túnel e manutenção da pista atual; 3) dois túneis e desativação da pista atual. Muito embora a travessia por túnel seja a melhor opção econômica e ambiental, o Ministério Público Federal entendia que o subsolo também faz parte da Terra Indígena e seria, por assim dizer, de usufruto exclusivo dos índios.

No relatório do Acórdão expressamente se consigna que dentre todas as

condicionantes para a escolha do melhor projeto de travessia do Morro dos Cavalos "a questão indígena mostrou-se mais complicada" (pág. 949 do P.A).

Já na parte dispositiva, além de determinar que o DNIT aprofunde os estudos para a

escolha do melhor projeto, determinou que "no caso de necessitar de laudo pericial de natureza antropológica para mais bem analisar a questão indígena, sirva-se de profissionais ou expertos isentos e não ligados à defesa dos interesses daquelas comunidades" (pág. 967 do P.A.).

Ora, a determinação do TCU acima citada foi desconsiderada pelo DNIT e pela FUNAI,

pois como se verifica no documento anexo, o estudo antropológico, produzido em 2010 para o

14 SANTOS, Priscilla Silva. Conservação do Meio Ambiente ou Proteção das Comunidades Tradicionais Indígenas: o Dilema entre Direitos Fundamentais no Direito Ambiental Brasileiro. Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico. Porto Alegre, v. 41 (abr./mai 2012). p. 80.

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Estudo de Impacto Ambiental da obra de duplicação da BR-101 - trecho Morro dos Cavalos, teve como responsável a antropóloga Maria Inês Ladeira, ou seja, profissional parcial e ligada à defesa dos interesses das comunidades indígenas.

Verifica-se, ainda, no referido Componente Indígena do EIA da duplicação da BR-101,

pág. 152-154, um rol de propostas abusivas, transcreve-se:

10 PROPOSTAS PREVENTIVAS, MITIGADORAS E ELEMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DE PROGRAMAS Durante reunião de trabalho para o fechamento das discussões quanto aos impactos, medidas e programas, chegou-se a conclusão de que alguns pontos necessitam de acompanhamento e assessoria jurídica da FUNAI e do MPF. São eles: Transferência opcional de famílias Guarani para outras áreas da TI Morro dos Cavalos durante o período das obras de construção dos túneis. Nas apresentações públicas acerca do empreendimento na TI Morro dos Cavalos para a comunidade Guarani, para o Ministério Público e para a FUNAI, o DNIT, mesmo que através de empresas por ele contratadas, sempre enfatizou a questão da segurança dos índios com relação às obras, garantindo assim a permanência da comunidade nos espaços atuais de uso e moradia. Entretanto, devido aos temores manifestados pelos Guarani com relação aos impactos das obras (uso de explosivos, incremento do tráfego na BR 101, presença dos operários etc) e sua proximidade com o núcleo habitacional, a MPB Engenharia propôs aos índios, com consentimento do DNIT (reunião ocorrida entre as partes em Brasília, segundo os índios), promover a mudança opcional e voluntária das famílias interessadas para uma outra área, no interior da TI, próxima do rio Massiambu Pequeno, local densamente ocupado por terceiros que ainda não foram indenizados, tendo em vista a finalização recente da demarcação física. Propôs-se, segundo os índios, a implantação de infra-estrutura – moradias, saneamento, escola, posto de saúde – nos moldes de uma “vila” provisória e extensiva ao período das obras. Entendendo que toda a superfície da TI é uma terra de ocupação permanente indígena, a comunidade da TI Morro dos Cavalos reivindica a desintrusão da TI principalmente nas áreas ocupadas por não índios que serão afetadas durante a fase de construção das obras. Também reivindica a desintrusão da área situada às margens do rio Massiambu Pequeno para que eles, os Guarani, possam viver com liberdade, sem serem cerceados e impedidos de realizar sua ocupação de acordo com seus usos, costumes e tradições. Isso implica em espaços, para roças, coleta, plantio de frutíferas, realização de rituais, entre outras atividades. Nesse sentido, tanto os índios como as antropólogas deste estudo entendem que a viabilidade da transferência de famílias para a área indicada, está vinculada tanto no suporte financeiro para a infra-estrutura necessária nos parâmetros Guarani, como no pagamento de indenização dos particulares. Cabe ressaltar que a construção de uma vila e transferência da população indígena para um local dentro da TI sem realizar a desintrusão com o pagamento das devidas indenizações aos de boa fé poderá causar conflitos entre eles e os não-índios, impacto esse ainda maior. Para tanto, solicita-se a pronta atualização, por equipe da FUNAI, do levantamento fundiário realizado em 2001/2002 durante os estudos de Identificação e Delimitação da TI Morro dos Cavalos, para pagamento das benfeitorias de boa fé e retirada dos ocupantes não índios. Aponta-se a regularização fundiária da TI, de responsabilidade do Estado brasileiro, como sendo uma premissa para realização do empreendimento. A comunidade entende que todos os custos com pagamento de indenizações de terceiros, na área de influência das obras em Terra Indígena, de responsabilidade da FUNAI, mesmo se efetuados em parceria com DNIT, também uma instituição federal, responsável pela duplicação e conservação da BR 101, não sejam contabilizados no

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âmbito dos Programas e Medidas Compensatórias a serem realizadas nas Terras Indígenas. Perda de área da TI previamente estimada em 4 hectares, nas embocaduras dos túneis norte e sul e nas áreas do viaduto e do túnel falso. Compensação com área de terra de igual proporção e condições apropriadas a ser eleita com os Guarani. Processo a ser discutido entre as partes com a FUNAI. Direitos sobre o material – rochas, britas e saibros – que serão retirados das áreas de implantação dos túneis no solo e sub solo da TI e reutilizado na obra ou em outro trecho da duplicação da BR 101 ou comercializado. Vale ressaltar que o empreendedor fará o uso comercial da rocha (brita, saibro) que será extraída do solo e subsolo da TI Morro dos Cavalos, por ocasião da abertura dos túneis. O devido pagamento indenizatório aos índios pela extração mineral, em solo e subsolo da TI, e seu uso pelo empreendedor ou empresas terceirizadas (utilização e/ou comercialização), requer um parecer específico sobre a matéria e que poderá ser solicitado à Procuradoria da União ou ao Ministério Público Federal - MPF. (p. 152-154 Componente Indígena)

Percebe-se claramente os prejuízos causados pela entrega de questão tão relevante a

profissionais comprometidos com um dos lados. O estudo condiciona a possibilidade de execução das obras de duplicação à retirada dos ocupantes não índios de suas moradias. Além desse absurdo, tergiversa sobre eventuais direitos patrimoniais dos índios sobre o uso dos materiais retirados da áreas dos túneis.

Registre-se, por outro lado, que o DNIT requereu à FUNAI a exclusão do leito da BR-

101 Sul e sua faixa de servidão administrativa e a área do túnel dos limites da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" (fl. 1104 do P.A.).

A FUNAI não acatou o requerimento do DNIT, sendo que no Parecer n. 271/PGF/PFE-

FUNAI-CAF/09 (pág. 1109-1113 do PA), quanto ao túnel, afirmou-se a possibilidade de construção, desde que respeitados alguns requisitos. Por outro lado, quanto ao leito da BR-101 Sul, entendeu-se descabida a exclusão, pois a Constituição garantiria posse permanente e usufruto exclusivo das terras que tradicionalmente ocupam.

Supor que índios ocupariam tradicionalmente o leito de uma rodovia federal é algo

extremamente sem nexo. É mais razoável supor que os índios foram implantados na região por grupos interessados justamente em criar dificuldades para as obras e, consequentemente, obter vantagens financeiras daí decorrentes.

A situação é sui generis, pois milhares de catarinenses estão reféns de interesses de

grupos da causa indígena. Como explicar para as mães, pais, esposas, maridos e filhos dos milhares de motoristas que todos os anos perdem a vida no trecho ainda não duplicado da BR-101 que a implantação de índios estrangeiros impede o término das obras no Morro dos Cavalos?

Senhores Ministros, a demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" deve entrar

para a história como a tentativa mais esdrúxula de grupos de interesses definirem as políticas públicas no Brasil e de impedirem o pleno desenvolvimento nacional.

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Dessa maneira, por se tratar de área cujo traçado é necessário para a duplicação da BR-101, a demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" deve ser anulada.

Na pior das hipóteses, deve ser colocada a efeito a proposta do DNIT referida, a fim de

que se excluam dos limites da Terra Indígena o leito da BR-101 Sul e sua faixa de servidão administrativa e a área dos túneis.

3.2.7. DAS COMPRAS DE TERRAS JÁ REALIZADAS - PREJUÍZOS AO ERÁRIO

FEDERAL

Excelências, os documentos anexos comprovam que a comunidade indígena do Morro dos Cavalos já foi beneficiária de aquisição de terras para sua realocação. Trata-se de recursos oriundos de convênio entre a FUNAI e o DNIT, em virtude das obras de duplicação da BR-101 Sul.

No mês de dezembro de 2002 foi assinado o Convênio PP 0025/2002-00, entre a

FUNAI e o DNIT, com a finalidade de implementar o programa de compensação ambiental de apoio às comunidades indígenas Guarani, residentes na área de influência da BR-101, trecho Florianópolis/SC - Osório/RS, em decorrência das obras de duplicação.

O PACIG (Programa de Apoio às Comunidades Indígenas Guarani) tem como

destinatários as comunidades indígenas do Cambirela, Praia de Fora, Morro dos Cavalos, Massiambu, Cachoeira dos Inácios, Campo Bonito, Barra do Ouro, Varzinha e Riozinho.

O Convênio previu o desembolso de R$ 11.000.000,00 (onze milhões de reais) para o

cumprimento do referido Programa. Tendo em vista o suposto não cumprimento das disposições do referido Convênio, o

Ministério Público Federal ajuizou a ação civil pública n. 2005.72.00.011231-1 (atualmente, n. 5010487-74.2010.404.7200), Subseção Judiciária de Florianópolis, que ainda tramita na Justiça Federal, haja vista que após a sentença que extinguiu o processo sem julgamento de mérito, o TRF 4ª Região anulou-a, determinando o retorno dos autos para prosseguimento do primeiro grau.

De toda sorte, no que interessa à presente ação, extrai-se do citado processo judicial o

ofício n. 62/GAB, de 03 de junho de 2009 (fl. 1309 do processo), em que se atesta a aquisição de "área de terra para assentamento de grupo guarani proveniente da aldeia Morro dos Cavalos". As escrituras públicas de n. 1921 e 1922, relativas ao terreno rural situado na localidade Águas Claras, Município de Major Gercino-SC, foram adquiridos em virtude do Convênio já citado.

O imóvel da escritura de n. 1921 tem 838.700,00 m² e custou R$ 900.000,00

(novecentos mil reais). Já o imóvel da escritura de n. 1922 tem 256.680,00 m² e custou R$ 250.000,00 (duzentos e cinqüenta mil reais).

Corroborando com tal informação, o Relatório de Gestão de 2009 da FUNAI,

encontrado no site do Ministério da Justiça, expressamente consigna:

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25. A AER de Curitiba (PR) por meio do Parecer n.º 048/PFE-FUNAI/CWB/2008, de 21.11.2008 (Vol-II, fls.448/453) – Processo n.º 08756.000.0822/2008-DV, fez aquisição de 02 (duas) terras rurais contíguas para as Comunidades Indígenas Guarani, habitantes da Aldeia Itaty da Terra Indígena Morro dos Cavalos, Palhoça (SC), atingidas pela duplicação da BR-101, na localidade de Águas Claras, Município de Major Gercino (SC) – Programa de Apoio às Comunidades Indígenas Guarani – PACIG, referente ao Convênio PP n.º 0025/2002-00 entre FUNAI e DNIT, no montante de R$ 1.150.000,00 (Hum milhão, cento e cinqüenta mil reais) – 2009OB800038/37, de 15.04.2009 – R$ 900.000,00 e R$ 250.000,00; respectivamente. 26. O mencionado Processo, item precedente, foi por Dispensa de Licitação com fulcro no Art. 24, Inciso X, da Lei n.º 8.666/93 (Vol - II, fls.452), “com valor compatível preço médio de mercado”, avaliação patrimonial elaborada por técnicos da ELETROSUL. RECOMENDAÇÃO: Entendemos, que a avaliação de imóvel seja de preferência por órgão oficial competente, isto é, a Caixa Econômica Federal – CEF, e que as Unidades Administrativas da FUNAI se abstenham de efetuar avaliação patrimonial que não seja pela CEF, sendo assim, por analogia, quando a União também vende (Leilão em hasta pública) seus Imóveis. (pág. 498 do Relatório anexo15)

Verifica-se que 02 terras rurais com mais de 1 milhão de metros quadrados (100 hectares), que custaram R$ 1.150.000,00, foram adquiridas em favor dos índios da "Terra Indígena Morro dos Cavalos".

Não se esqueça, ainda, da já citada aquisição de terras no Município de Imaruí, na

reserva indígena denominada "Cachoeira dos Inácios", com 70 (setenta) hectares. Tais terras foram adquiridas em 1999 pela FUNAI como medida compensatória da implantação do Gasoduto Brasil-Bolívia e eram destinadas à fixação dos índios Guarani Mbyá do Morro dos Cavalos e de Massiambu.

Mesmo sem a realização das obras no Morro dos Cavalos, paralisadas em decorrência

da ocupação indígena na região, os índios Guarani Mbyá do Morro dos Cavalos foram beneficiados por vultosas quantias, bem como com terras em outros locais, a fim de que lá se instalem e pratiquem seus usos, tradições e costumes.

A ocupação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" e sua demarcação, além de ser

manifestamente inconstitucional, vem permitindo a utilização de vultosas somas de recursos públicos com finalidade duvidosa, pois a aquisição de outras terras em Município distante do Morro dos Cavalos deve ter o escopo de alojar os indígenas, transferindo-os.

Em um cenário de normalidade e de veracidade, seria inadmissível supor que os índios

Mbyá, supostamente tão identificados com as terras do Morro dos Cavalos, iriam aceitar a aquisição de outras terras. Porém, senhores Ministros, como demonstram os comprovantes anexos, a terras foram adquiridas em favor de tais índios e estes continuam ocupando o Morro dos Cavalos.

Há muita obscuridade em tudo isso, mas o fato é que não se pode admitir que, diante

de todas as evidências, seja mantida a demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos. 15 O relatório foi acessado em 21.01.2014 no site do MJ: http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={32448761-0608-4170-B057-D29F8F0A5EB9}&BrowserType=IE&LangID=pt-br&params=itemID%3D%7B92D79D17-4E59-40CF-B4CA-D682E8CC5507%7D%3B&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D.

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Inclusive, fica claro que a comunidade indígena que ocupa atualmente o Morro dos

Cavalos, diferentemente dos ocupantes não índios, tem para onde ir no caso de ser reverter a demarcação declarada na Portaria n. 771/2008, do Ministério da Justiça: Terras Indígenas de "Cachoeira dos Inácios", em Imaruí/SC, e "Águas Claras", Major Gercino/SC, ambas adquiridas em favor dos índios Guarani Mbyá do Morro dos Cavalos.

3.2.8. EXISTÊNCIA DO PROGRAMA GUARANI

Há hoje no Brasil diversos processos demarcatórios de Terras Indígenas, em especial

de índios Guarani. Inclusive, conforme documento oficial da FUNAI, em anexo, há várias Terras Indígenas

processadas ou em processamento no Estado de Santa Catarina. Muitos desses processos, tal qual o da "Terra Indígena Morro dos Cavalos", não são

fruto da ocupação tradicional indígena, mas sim da existência de um "Programa Guarani", patrocinado por organizações não governamentais da causa indígena, cujo escopo sub-reptício é garantir terras brasileiras para índios Guarani de origem estrangeira, sob o pretexto de uma ocupação imemorial.

A ONG CTI (Centro de Trabalho Indigenista) é a fomentadora deste Projeto. Verifica-se

no site da referida organização diversas informações sobre o tema, inclusive que a Coordenadora do "Programa Guarani" é a antropóloga Maria Inês Ladeira.

O Programa Guarani tem como principal eixo de atuação a luta pela regularização

fundiária das Terras Indígenas Guarani, assessorando diretamente os índios para o fortalecimento de suas formas de organização e mobilização e da atuação direta e indireta nos processos de regularização fundiária.

Atesta-se a influência de governos estrangeiros nesse Programa, como exemplo a

Embaixada da Noruega, que atua como financiadora de determinados projetos. Inclusive, confirma-se que o financiamento da ONG advém de várias entidades estrangeiras (como exemplo, GTZ - Agência Alemã de Cooperação Técnica; USAID - Agência Estadunidente para o Desenvolvimento Internacional).

Portanto, pessoas diretamente interessadas na causa indígena, financiadas por

instituições e governos estrangeiros e responsáveis por programa específico direcionado à regularização de terras indígenas Guarani, são as mesmas que inauguraram o processo demarcatório e que elaboraram o relatório de identificação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos".

Excelências, tais fatos incontroversos só levam à total impossibilidade de manutenção

da demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos".

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3.2.9. SITUAÇÕES CONSOLIDADAS PELO DECURSO DO TEMPO - DIREITOS DE PROPRIEDADE VIOLADOS INCONSTITUCIONALMENTE

Muitas vezes esquecido, o direito de propriedade ainda é valor fundamental do nosso

Estado Democrático de Direito. E o que ocorre na demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos"? Moradores de

décadas serão obrigados a deixar suas casas, suas propriedades. Um completo absurdo. Há nos autos administrativos 02 (dois) levantamentos que identificam os ocupantes não

índios da "Terra Indígena Morro dos Cavalos". O primeiro levantamento fez parte do relatório de identificação e delimitação do Grupo

Técnico coordenado pela antropóloga Maria Inês Ladeira. Trata-se de relatório fundiário de autoria do técnico em agropecuária Antônio Alves de Santana Sobrinho, que pode ser encontrado nas fls. 513-525 do P.A.

Esse relatório retrata a existência de 102 ocupantes não índios nos limites da "Terra

Indígenas Morro dos Cavalos" identificados no período de 19 de novembro a 11 de dezembro de 2001, sendo 54 proprietários com ocupação e 58 proprietários sem ocupação. Afirma, ainda, que "com relação aos posseiros, principalmente os da localidade Araçatuba, são maricultores e vivem basicamente do cultivo de mariscos na costa sul do Estado de Santa Catarina, e são possuidores de pequenas áreas, praticamente as da construção de suas casas".

Isso já evidencia a existência de cidadãos que residem e retiram seu sustento

diretamente da região, o que será diretamente afetado pela retirada forçada da terra indígena. No quadro demonstrativo de fls. 518-520 informou-se a identificação dos 102 ocupantes

e o tempo de ocupação dos imóveis em 2001. A título de exemplo, consta que Antonia S. da Silveira e Manoel Ambrosio da Silveira são proprietários e residem no imóvel há 55 anos. Já Amilton Manoel da Silveira ocupava há 40 anos o local. No mesmo sentido, Vilmar Joaquim de Souza residia há 36 anos na localidade.

Registre-se que no Diário Oficial da União de 18.12.2002 foi publicado o resumo do

relatório circunstanciado, memorial descritivo, mapa e despacho (fls. 566-570 do P.A.), cujo conteúdo atesta a existência de 103 ocupantes não índios. Ou seja, houve modificação do número de ocupantes sem qualquer menção anterior no processo administrativo.

O segundo levantamento (fls. 1121-1133 do P.A.) foi realizado no ano de 2010, a partir

da publicação da Portaria n. 1.372/PRES/2010, em 21 de setembro daquele ano, concluindo os trabalhos em 30 de novembro de 2010.

No quadro demonstrativo de fls. 1127-1129 do P.A. verifica-se 78 ocupantes não

indígenas e se aponta o tempo de ocupação em 2010. A título de exemplo, registra-se que Maria

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Bernadete da Silveira ocupa há 43 anos a localidade; Pedro José Koehler há 37 anos e Laura Germana Dutra há 50 anos.

Além disso, não se explicam os motivos da redução de ocupantes entre 2001 e 2010,

de 102 (ou 103) para 78 ocupantes. Não há, também, a indicação dos valores arbitrados para as benfeitorias dos ocupantes de boa-fé.

Inclusive, apenas para que fique registrado, há contradições escandalosas entre os dois

levantamentos. Por exemplo, no relatório de 2001 Valmor Libertino Ventura ocupava imóvel há 40 anos, ou seja, em 2010 deveria ocupar há 49 anos. Porém, no relatório de 2010 consta que o tempo de ocupação é de 17 anos. Amilton Manoel da Silveira, no relatório de 2001, ocupava o imóvel há 40 anos. Em 2010, consta no relatório ocupação há 40 anos. Já Manoel Leovigildo Apolinário era ocupante em 2001 há 25 anos. No relatório de 2010 constou como ocupante há 26 anos.

De toda sorte, os próprios estudos fundiários apresentados no processo demarcatório

demonstram a ocupação antiga da região por não índios, alguns deles até antes da família Moreira, os índios paraguaios que habitaram a região entre os anos 60 e 80 do século passado, pois os Guarani Mbyà que hoje lá vivem só chegaram depois de 1993.

Registre-se que a FUNAI não permitiu ao Estado o acesso ao processo administrativo

específico do levantamento fundiário da área demarcada, o que será requerido em tópico subseqüente.

Excelências, não se desconhece o parágrafo 6º do art. 231 da CF/88, porém os

registros apontados só reforçam o fato de que não há/houve ocupação tradicional de índios na região do Morro dos Cavalos.

A retirada de proprietários de terras no presente caso é uma afronta à ordem jurídica e

uma violação à dignidade da pessoa humana. Ser retirado de suas terras sem indenização prévia, justa e integral é uma aberração inconstitucional, que deve ser retificada por este Tribunal.

3.2.10. VINCULAÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - DIREITO SOCIAL À

MORADIA Os proprietários das glebas que estão inseridas nos limites da "Terra Indígena Morro

dos Cavalos", em sua maioria, residem na localidade. A própria nomenclatura utilizada pela FUNAI chamando-os de "ocupantes" mostra-se

imprópria e ofensiva à dignidade dos moradores da região. Excelências, o direito social à moradia não pode ser esquecido no caso, pois a retirada

forçada de moradores históricos da comunidade, além de significar ofensa social e econômica, viola a dignidade de cada um dos prejudicados pelo processo demarcatório levado a termo pela FUNAI.

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A dignidade da pessoa humana é fundamento do Estado brasileiro, conforme a CRFB/1988:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana;

O direito social à moradia está previsto no art. 6º da Carga Magna:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 64, de 2010)

Portanto, não se mostra adequada a demarcação da Terra Indígena que alija de suas

moradias vários proprietários/moradores de muitos anos, consolidados na região, aqui sim, de modo permanente.

3.2.11. DESPROPORCIONALIDADE ENTRE A COMUNIDADE INDÍGENA

TRADICIONAL E A ÁREA DEMARCADA DE 1988 HA Se ao final, este Tribunal firmar como verdade o fato de haver comunidade indígena

tradicional no Morro dos Cavalos em 05.10.1988, importante desnaturar a extensa área demarcada. Uma simples análise já leva a conclusão de ser muita terra para pouco índio. Os registros apontam para algo em torno de 100 índios atualmente. As ocupações de

não índios são em torno de 78 (setenta e oito). Sabe-se que a relação do índio com a terra é diferente do "homem branco", que os

índios necessitam de maior extensão de terras para exercer plenamente seus usos, tradições e costumes.

Contudo, os primeiros estudos dão conta da necessidade de 16,40 ha. Posteriormente,

estudo feito por antropólogo da FUNAI apontou a necessidade de 121,8 ha. Disso se conclui que a aplicação do art. 231 da CF/88 no Morro dos Cavalos não

comporta os 1988 ha demarcados. Se são necessários mais que os 121,8 ha reconhecidos originalmente para a população indígena atual do Morro dos Cavalos, a União que adquira as terras por meio de desapropriação e não, abusivamente, pelo art. 231 da CF/88.

Interessante passagem do estudo "Componente Indígena - Estudo de Impacto

Ambiental da duplicação da BR-101", realizado pela antropóloga Maria Inês Ladeira, a mesma que produziu o relatório de identificação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, confessa o objetivo do Grupo Técnico de considerar a melhor proposta de limites para a comunidade Guarani:

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Por estar situada na área de impacto das obras de duplicação da BR 101, que atravessa a Terra Indígena, por ser alvo de pressões por parte de particulares e do órgão ambiental estadual - FATMA, pela insatisfação da comunidade em relação ao não atendimento às suas demandas para regularização da TI, o Grupo Técnico procurou envolver todos os parceiros da Comunidade Guarani (incluindo a UFSC e ONGS) para considerarem a melhor proposta de limites a partir das justificativas e indicações da comunidade Guarani. Representantes de outras aldeias Guarani próximas da TI Morro dos Cavalos participaram das reuniões. (p. 75 do estudo)

Outrossim, os mapas anexos, alguns produzidos no licenciamento ambiental da

duplicação da BR-101, demonstram inequivocamente a desproporcionalidade entre a aldeia atualmente ocupada e a extensão de terras colocadas ao usufruto exclusivo dos índios.

Portanto, inaceitável a extensão demarcada no processo administrativo demarcatório,

devendo ser readequado para extensão menor ou, ainda, para a área inicialmente proposta de 121,8 ha.

3.3. DAS CONSEQUÊNCIAS DA DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA MORRO

DOS CAVALOS

Demonstradas as impropriedades formais e materiais da demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos", imprescindível trazer à baila a questão das nefastas conseqüências sociais, econômicas e ambientais da demarcação.

3.3.1. INDENIZAÇÕES INSUFICIENTES - CRIAÇÃO DE COMUNIDADES DE SEM-

TETO

Os ocupantes não índios da área da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" estão na iminência de serem retirados de suas propriedades, sendo indenizadas somente as benfeitorias.

Há milhares de pessoas que perderão seu teto e não têm para onde ir. A indenização

das benfeitorias das propriedades, além de ser inadvertidamente insuficientes, não permitem a aquisição de imóvel em outro local.

Em sua maioria, os moradores não índios da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" terão

negado, além do direito à propriedade, o direito social à moradia, garantido no art. 6º da CF/88. Do dia para a noite, famílias inteiras, moradores de décadas, passarão a ser os novos

sem-teto da região metropolitana de Florianópolis. Registre-se, novamente, que os índios não sofrem do mesmo problema, pois há duas

terras já adquiridas pela FUNAI especialmente destinadas aos índios Guarani do Morro dos Cavalos, uma em Imaruí/SC e outra em Major Gercino/SC.

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Pede, portanto, o Estado de Santa Catarina que este Tribunal Constitucional leve em consideração esse ponto, a fim de que não se criem injustiças insanáveis.

3.3.2. BOLSÃO DE POBREZA INDÍGENA - AUSÊNCIA DE QUALQUER POLÍTICA

INDÍGENA NO BRASIL

Os índios da "Terra Indígena Morro dos Cavalos", no caso de manutenção definitiva da demarcação, ganharão sim sua terra, mas continuarão abandonados pela FUNAI, por total ausência de política pública para índios no Brasil.

O protagonismo da FUNAI vai até o momento de demarcar e transferir as terras

indígenas. Após isso, as comunidades indígenas são deixadas à própria sorte. Esquece o órgão federal que os índios da atualidade não são mais aqueles do imaginário popular, que caçam, pescam, enfim, o índio não integrado ao processo civilizatório. Ou seja, em sua maioria, as comunidades indígenas são retrato de indignas condições de vida e de pobreza.

Importante trazer à tona notícias referentes à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. O

que fica claro é a criação de verdadeiro bolsão de pobreza indígena, por ausência de qualquer política pública em favor dos índios daquela região. E isso, Excelências, ocorre por todo o Brasil.

A verdade é que os índios só ganham importância durante o processo demarcatório.

Após, pobreza e esquecimento. Por isso, acabam os índios com terras demarcadas migrando para outras regiões, a fim de constituir nova demanda por demarcações de terras.

Esse é, Senhores Ministros, o triste fim da política indígena no Brasil, voltada não para

seus destinatários constitucionais, mas sim para os grupos de interesses da causa indígena. Os estudos antropológicos juntados no processo demarcatório demonstram as

condições precárias dos índios do Morro dos Cavalos. Fica clara também a impossibilidade de obtenção de alimentos nas terras demarcadas, que são impróprias para a agricultura.

Enfim, os índios da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" estão fadados à pobreza e à

dependência exclusiva de ações estatais gerais, como Bolsa Família e demais programas sociais. É inadmissível que se crie tal situação no Estado de Santa Catarina, sendo necessária

a anulação da demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos". 3.3.3. PREJUÍZO EVIDENTE AO MEIO AMBIENTE

Apenas como reforço argumentativo, por óbvio que a destinação exclusiva de ampla

área de terras aos índios do Morro dos Cavalos levará à degradação ambiental. Os mapas da região demonstram se tratar a área da Terra Indígena de vastas áreas

verdes, inclusive sobreposta ao Parque Estadual da Serra do Tabuleiro.

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Não há garantias de que índios "civilizados" tenham a mesma relação com a terra e com a natureza que os autóctones dos tempos do Descobrimento do Brasil.

Nem mesmo o mais exagerado defensor da causa indígena pode afirmar que índios

que vivem na região metropolitana de Florianópolis, capital urbanizada de um dos Estados mais avançados/civilizados do país, e que têm intensa relação com não índios, são integrados misticamente à natureza da localidade.

Desse modo, deve haver a ponderação dos valores envolvidos e a garantia de que as

gerações futuras não paguem pelos erros de nossa geração. 3.3.4. PERIGO DE CONTAMINAÇÃO DAS ÁGUAS QUE ABASTECEM AS

COMUNIDADES DA REGIÃO

As comunidades adjacentes são abastecidas pelas águas de rios que cortam a "Terra Indígena Morro dos Cavalos".

Se os índios possuem usufruto exclusivo das riquezas dos rios de suas terras, por óbvio

que não há garantias de que cuidarão desse importante recurso hídrico de toda a comunidade. Não se pode aceitar tal situação. O perigo é real. O princípio da precaução deve ser

avaliado por este Tribunal. 3.3.5. DEMARCAÇÃO DE TERRA INDÍGENA NA REGIÃO METROPOLITANA DE

FLORIANÓPOLIS/SC

A "Terra Indígena Morro dos Cavalos" está encravada no Município de Palhoça, pertencente à região metropolitana de Florianópolis, capital do Estado.

É uma situação peculiar criar Terra Indígena a poucos quilômetros de região

densamente povoada e que possui problemas sociais inerentes às grandes aglomerações urbanas. A demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" em região tão povoada é um

perigo para os próprios índios, pois pode gerar conflitos de proporções incontroláveis, transformando a região metropolitana de Florianópolis em verdadeiro campo de batalha entre índios e não índios.

4. EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS - PROCESSOS ADMINISTRATIVOS DAS

CONTESTAÇÕES ADMINISTRATIVAS Como já referido, a FUNAI impediu o acesso do Estado de Santa Catarina aos

processos das contestações administrativas de alguns interessados alegando sigilo. No ofício n. 448/DPT/2012, de 07 de maio de 2013, a FUNAI não permitiu ao Estado o

amplo acesso aos processos de contestações administrativas sob o fundamento de que estes

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contêm informações de cunho pessoal, só podendo ser disponibilizado com a apresentação de procuração assinada pelos legítimos interessados.

Trata-se dos seguintes processos de contestação administrativa:

- FUNAI/BSB/0486-03 - contestante: Hélio Freitas, Branca Eladi Freitas, Amilcar Scherer e Lélia Maria Mezzomo Scherer; - FUNAI/BSB/0546-03 - contestante: Aurea Maria Dutra e outros; - FUNAI/BSB/0588-03 - contestante: Walter Alberto Sá Bensousan e outros; - FUNAI/BSB/0624-03 - contestante: Município de Palhoça; - FUNAI/BSB/0629-03 - contestante: Fundação do Meio Ambiente - FATMA.

Já pelo ofício n. 1.104/DPT/2013, de 08 de novembro de 2013, a FUNAI não franqueou

ao Estado acesso ao processo administrativo n. 08620.001617/2002-27, que trata do levantamento fundiário da "Terra Indígena Morro dos Cavalos", pos supostamente conter informações pessoais de terceiros, o que atrairia sigilo.

Excelências, a ordem constitucional evidencia a publicidade como regra e o sigilo como

exceção. A Constituição expressamente aponta as diretrizes quanto ao amplo acesso a informações:

Art. 5º - [...] XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado; Art. 37. [...] § 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) [...] II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

A lei de acesso à informação (lei n. 12.527/2011) estabelece o dever do órgão público

de conceder acesso imediato à informação disponível:

Art. 10. Qualquer interessado poderá apresentar pedido de acesso a informações aos órgãos e entidades referidos no art. 1o desta Lei, por qualquer meio legítimo, devendo o pedido conter a identificação do requerente e a especificação da informação requerida. [...] Art. 11. O órgão ou entidade pública deverá autorizar ou conceder o acesso imediato à informação disponível.

A alegação genérica da FUNAI de que as contestações administrativas e o processo de

levantamento fundiário contêm informações de caráter pessoal não se coaduna com a arcabouço normativo apresentado. Ora, trata-se, na verdade, da aplicação enviesada da nova legislação, a fim

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de continuar a velha prática administrativa de negar às pessoas o amplo acesso às informações públicas.

O art. 31 da lei n. 12.527/2011 disciplina a questão das informações pessoais, verbis:

Art. 31. O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais. § 1o As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem: I - terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e II - poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem. § 2o Aquele que obtiver acesso às informações de que trata este artigo será responsabilizado por seu uso indevido. § 3o O consentimento referido no inciso II do § 1o não será exigido quando as informações forem necessárias: I - à prevenção e diagnóstico médico, quando a pessoa estiver física ou legalmente incapaz, e para utilização única e exclusivamente para o tratamento médico; II - à realização de estatísticas e pesquisas científicas de evidente interesse público ou geral, previstos em lei, sendo vedada a identificação da pessoa a que as informações se referirem; III - ao cumprimento de ordem judicial; IV - à defesa de direitos humanos; ou V - à proteção do interesse público e geral preponderante. § 4o A restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância.

Verifica-se, assim, que a informação pessoal é aquela relacionada com à intimidade, vida privada, honra e imagem.

As contestações administrativas e o levantamento fundiário são processos

administrativos públicos que têm objetivos definidos no Decreto n. 1.775/1996, verbis:

Art. 2º - [...] § 8° Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localize a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior.

Assim, a contestação dos interessados na demarcação se trata de manifestação

instruída com todas as provas pertinentes à pretensão de indenização ou para demonstrar vícios totais ou parciais do relatório de identificação da Terra Indígena. Não há, a priori, informações que possam ofender a intimidade, vida privada, honra e imagem dos contestantes.

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E se houvesse em algum dos processos administrativos de contestação tais

informações pessoais, seria dever da FUNAI indicar que tipo de informação seria essa, no escopo, inclusive, de permitir o controle administrativo e judicial de tal decisão.

Nada disso fez o órgão de assistência ao índio. Preferiu apoiar-se em fundamentação

genérica e manifestamente inconstitucional. Os processos das contestações administrativas são relevantes para comprovar,

primeiro, a existência de análise deficiente pela FUNAI, além de permitir acesso integral ao processo administrativo de demarcação de terras indígenas. No mesmo sentido, em relação ao processo do levantamento fundiário.

Dessa maneira, por força do art. 356 do CPC, requer-se sejam os réus obrigados a

colacionar aos autos os processos administrativos das contestações referentes à demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, bem como o processo administrativo relativo ao levantamento fundiário do Morro dos Cavalos.

5. REQUERIMENTO Diante de todo o exposto e considerando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,

guardião máximo da Constituição da República, requer o Estado de Santa Catarina: a) a citação dos réus para, querendo, contestarem a presente ação; b) seja determinada à FUNAI e/ou UNIÃO a exibição dos processos administrativos

indicados no item 4 da exordial; c) seja julgada procedente a ação para: - declarar a nulidade do processo administrativo de demarcação da "Terra Indígena

Morro dos Cavalos", em decorrência das invalidades insanáveis encontradas; - sucessivamente, declarar a inexistência do direito originário dos índios Guarani

Nhandéva e Guarani Mbyá às terras demarcadas nos Morro dos Cavalos, por total ausência dos requisitos do art. 231 da CRFB/1988, desconstituindo-se os efeitos do processo demarcatório;

- condenar a União e a FUNAI a pagar honorários de sucumbência ao Estado de Santa

Catarina; d) ainda sucessivamente, seja julgada parcialmente procedente a ação para declarar

como Terra Indígena os 121,8 ha indicados no primeiro estudo apresentado pela FUNAI no processo administrativo demarcatório;

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d.1) No caso de manutenção da demarcação, sejam, ao menos, excluídos dos limites da Terra Indígena o leito da BR-101 Sul e sua faixa de servidão administrativa e a área dos túneis.

e) a produção de todas as provas admitidas em direito. Valor da Causa: R$ 5.000,00. Florianópolis, p/ Brasília – DF, 24 de janeiro de 2014.

JOÃO DOS PASSOS MARTINS NETO ALISSON DE BOM DE SOUZA Procurador-Geral do Estado Procurador do Estado

OAB/SC n. 5.959 OAB/SC n. 26.157

LISTA DE DOCUMENTOS ANEXOS: Doc. 1 - Processo demarcatório - Vol. 1 - 4 partes; Doc. 2 - Processo demarcatório - Vol. 2 - 6 partes; Doc. 3 - Processo demarcatório - Vol. 3 - 3 partes; Doc. 4 - Ofícios FUNAI negando acesso a processos administrativos; Doc. 5 - Normas do Ministério da Justiça e da FUNAI; Doc. 6 - Pedido de revisão administrativa ao Ministério da Justiça; Doc. 7 - Lista de Terras Indígenas do Estado de Santa Catarina; Doc. 8 - Informação Técnica n. 30-2013, da FATMA; Doc. 9 - Mapas e informações do Morro dos Cavalos; Doc. 10 - Escritura pública declaratório - declarações de José Neto; Doc. 11 - Ação Civil Pública Ambiental - Perícias; Doc. 12 - Componente Indígena do Estudo de Impacto Ambiental da obra do Morro dos Cavalos; Doc. 13 - Censo Indígena IBGE - 2 partes; Doc. 14 - Parque Estadual da Serra do Tabuleiro; Doc. 15 - Compra de Terras - convênio FUNAI-DNIT, escrituras e relatório da FUNAI; Doc. 16 - Ong Centro de Trabalho Indigenista - CTI; Doc. 17 - Notícias da Terra Indígena Raposa Serra do Sol; Doc. 18 - Notícias sobre a BR-101 trecho sul Morro dos Cavalos.