Direitos Territoriais Indígenas - Diálogo Entre o Direito e a Antropologia -– o Caso Da Terra Guarani - Morro Dos Cavalos

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    ADRIANA BILLER APARICIO

    DIREITOS TERRITORIAIS INDGENAS: DILOGO ENTRE O DIREITO E A

    ANTROPOLOGIA O CASO DA TERRA GUARANI "MORRO DOS CAVALOS"

    Florianpolis

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    ADRIANA BILLER APARICIO

    DIREITOS TERRITORIAIS INDGENAS: DILOGO ENTRE O DIREITO E A

    ANTROPOLOGIA O CASO DA TERRA GUARANI MORRO DOS CAVALOS

    Dissertao submetida UniversidadeFederal de Santa Catarina para aobteno do ttulo de Mestre em Direito.

    Orientadora: Professora Doutora Thais Luzia Colao

    Florianpolis

    2008

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    ADRIANA BILLER APARICIO

    DIREITOS TERRITORIAIS INDGENAS: DILOGO ENTRE O DIREITO E A

    ANTROPOLOGIA O CASO DA TERRA GUARANI MORRO DOS CAVALOS

    Esta dissertao foi julgada adequada para a obteno do ttulo de Mestre em

    Direito e aprovada em sua forma final pela Coordenao do Curso de Ps-

    Graduao em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, na rea de

    Direito, Estado e Sociedade.

    Florianpolis, 27 de maro de 2008.

    Banca Examinadora:

    Presidente: Professora Doutora Thais Luzia Colao

    Membro: Professor Doutor Antonio Carlos de Souza Lima

    Membro: Doutora Maria Dorothea Post Darella

    Membro e Coordenador do Curso: Professor Doutor Antonio Carlos Wolkmer

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    Dedico este trabalho minha avRosalina Biller Brando, que tem muito

    de Guarani, muito de Caiara, e muito demim.

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    AGRADECIMENTOS

    Os Agradecimentos so muitos, e feitos cotidianamente; mas seguindo a praxe

    acadmica e correndo o risco de imperdoveis esquecimentos, devo inici-los, por

    aqueles que me colocaram nesta louca e apaixonante nave: Roseli Biller Aparicio e

    Justo Aparicio Canelas (Tito). Pais apaixonantes e apaixonados, nunca foram

    capazes de negar meu acesso ao conhecimento, ainda que isto implicasse em mais

    gastos, e menos ganho material.

    Agradeo minha irm, Sheila Biller Aparicio, pelo incentivo nas horas difceis e poramar-me como sou. Tambm por trazer para ns o furaco do oriente, amado Kau.

    A meus tios e tias, primos e primas, que sempre torceram por mim. Ao av Gerson

    (In memoriam) e abuela Maria (In memoriam), pelo afeto, meu saudoso

    agradecimento.

    Agradeo minha orientadora Thais Luzia Colao, pela percepo intuitiva de

    minhas fraquezas e necessidades, por acreditar no meu trabalho, por colocar-mesempre em boas mos. Agradeo, principalmente, sua generosidade na caminhada.

    Ao mestre Antonio Chaves de Camargo (In memoriam), professor da carrancuda

    Faculdade de Direito do Largo So Francisco, pelas conversas simples e divertidas

    em qualquer ocasio. Ao Professor Antonio Carlos Wolkmer, por nunca esquecer de

    brindar seus alunos com os frutos de suas experincias na Amrica Latina. Ao

    Professor Jesus Antonio de La Torre Rangel, pela ateno na leitura do primeiroprojeto de pesquisa.

    Maria Dorothea Post Darella, antroploga do Museu Universitrio da UFSC e

    Analcia Hartman, procuradora do Ministrio Pblico Federal em Florianpolis, pela

    disposio em ajudar no entendimento do caso Morro dos Cavalos. Aos servidores

    do Ministrio Pblico Federal de Florianpolis e da UFSC, pela facilitao de nossa

    pesquisa.

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    comunidade Guarani do Morro dos Cavalos, pela disposio em receber-nos, e ao

    Nuno (Orivaldo Nunes Jr.), pela ponte estabelecida. Rosana Bond pelas

    conversas amigas na Ponta do Sambaqui.

    Aos companheiros das Arcadas, ainda muito presentes: Ricardo Stanziola Vieira,

    Aline Sueli de Salles Santos, Manoel Fernando (Man), Milton Ohata (Miltinho),

    Dairson Mendes (Dad), Erich Castilhos, Jos Fbio Maciel, Ilka Yoko-Veltman,

    Priscila Akemi, Fbio Cesnik e Daniela Skromov de Albuquerque.

    Aos amigos de Porto Belo: Geraldo, Adriana, Dona Maria, Seu Ari, Gabriel e Daniel.

    Aos amigos de navegao: Denise e Capitn Jorge. Vera Regina e sua filha Carol.Aos conterrneos Evandro Brito e Erick Casarin Sciasi. famlia Costa. s

    companheiras do Mestrado: Marina, Clarissa Dri, Lgia e Melissa. Naiara, pela

    parceria e sugesto do tema.

    Ao meu amor Alexandre da Silva (In memorian), seu fiel escudeiro Evandro (In

    memorian), e a todos rapazes que partiram no Catarina, pelos momentos da alegria

    marinheira.

    Ao meu amor Nino (Amilton dos Santos), presente da vida que se renova.

    CAPES, pelo fomento desta pesquisa, sem o qual no teria sido possvel.

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    RESUMO

    O trabalho trata dos direitos territoriais indgenas. Aborda-se o tema a partir dosnovos direitos indgenas e do pluralismo jurdico, que traz tona o paradigma daalteridade e da participao dos novos atores na produo de juridicidade. Parte-seda hiptese de que a falta de dilogo interdisciplinar entre o Direito e a Antropologiaconstitui-se em bice realizao dos direitos territoriais indgenas. A anlise feitaa partir de uma abordagem dedutiva, com ampla reviso bibliogrfica e estudo decaso. Inicialmente desenvolve-se o estudo do percurso histrico e legislativo dosdireitos indgenas, com ateno especial s conseqncias derivadas da perspectivaassimilacionista com relao aos direitos territoriais. Com a mudana para oparadigma da alteridade, a partir da atuao dos novos atores, verifica-se anecessidade do dilogo com a Antropologia, que faz a traduo do que pensam ospovos indgenas sobre seu territrio. Na segunda seo desenvolve-se a anlise doregime jurdico das terras indgenas e o do fundamento dos direitos territoriais, aoriginariedade dos povos indgenas. Do ponto de vista antropolgico desenvolve-seas categorias das identidades tnicas e dos processos de territorializao e busca-se estabelecer uma ponte para uma fundamentao dos direitos indgenas combase no pluralismo jurdico e fundirio existente no Brasil. Ao final, empreende-se oestudo da demarcao da terra Guarani do Morro dos Cavalos, em Santa Catarina,analisando a concepo de direitos territoriais em diversos atores, com o intuito deverificar se a falta de viso interdisciplinar tambm ocorre no plano ftico da

    demarcao. Ao final, reconhece-se que o isolamento do Direito na definio deterras indgenas o primeiro obstculo a ser superado para a realizao dos direitosterritoriais indgenas.

    Palavras-chave: Direitos territoriais indgenas. Demarcao. Pluralismo Jurdico.Novos Atores.

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    ABSTRACT

    This work focuses on indigenous territorial rights. The theme is based on the vision ofthe new indigenous rights and the legal pluralism that highlights the paradigm ofotherness and the participation of the new actors in the production of legality. Thehypotheses is that the lack of communication between Law and Anthropologyconstitutes an obstacle to the realization of indigenous territorial rights. Usingliterature and a case study, a deductive analysis has been formed. Firstly, thehistorical and legislative study is developed about the indigenous rights in order toseek the consequences of the integrationist perspective related to the indigenousterritorial rights. As the paradigm of otherness has gained force, due to the newactors participation, the communication with Anthropology is necessary to translate

    how the indigenous people think their territory. At second session, the analysis of thelaw regime of indigenous territorial is developed and forms the foundation ofindigenous territorial rights: originality of indigenous people. From the anthropologicalperspective the categories of ethnic identities and processes of territorialization aredeveloped. In this way, a password key based on legal and fundiary pluralism inBrasil is established. At the end, the study case of regularization of Guarani landMorro dos Cavalos in Santa Catarina is developed in order to analyze the conceptionof indigenous territorial rights in several actors and verify if the lack of interdisciplinaryalso happens in the regularization land process. In conclusion the research realizesthat the isolation of Law in the definition of indigenous lands is the first obstacle toovercome in order to bring indigenous territorial rights to reality.

    Keywords: Indigenous territorial rights. Land regularization. Legal Pluralism. Newactors.

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    LISTA DE SIGLAS

    ABA Associao Brasileira de Antropologia

    CEPIN Conselho Estadual dos Povos Indgenas de Santa Catarina

    CIMI Conselho Indigenista Missionrio

    FATMA Fundao do Meio Ambiente

    FUNAI Fundao Nacional do ndio

    GT Grupo Tcnico

    INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    OIT Organizao Internacional do Trabalho

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    SUMRIO

    INTRODUO..........................................................................................................10

    1 DIREITOS TERRITORIAIS INDGENAS..............................................................15

    1.1 Jusnaturalismo e poltica colonial de aldeamento.............................................. 15

    1.2 Dos ideais liberais de "civilizao" restrio do acesso terra...................... 24

    1.3 Positivismo e proteo fraternal aos povos indgenas......................................30

    1.4 Novos direitos indgenas e a perspectiva do direito diferena.......................39

    2 TERRA INDGENA: O DIREITO E A ANTROPOLOGIA.......................................48

    2.1 Originariedade: fundamentao jurdica.........................................................48

    2.1.1 Regime jurdico: breves consideraes dogmticas.........................................48

    2.1.2 Fundamentao das terras tradicionais no contexto monista..........................52

    2.1.3 Pluralismo jurdico e fundirio..........................................................................57

    2.2 Tradicionalidade: a viso antropolgica.........................................................62

    2.2.1 Identidade tnica e afirmao territorial............................................................62

    2.2.3 Territrio e processos de territorializao....................................................... .67

    2.3 Posse permanente e cosmoviso guarani..................................................... 712.3.1 A permanncia como garantia...........................................................................71

    2.3.2 Os Guarani e seu territrio................................................................................74

    3 "MORRO DOS CAVALOS": CONCEPES DE DIREITOS TERRITORIAIS

    INDGENAS NO PROCEDIMENTO DEMARCATRIO............................................80

    3.1 Histrico da demarcao......................................................................................81

    3.2 Argumento antropolgico: relatrio de identificao......................................... ..92

    3.3 Argumentos jurdicos: diversos atores...............................................................1003.3.1 Comunidade Guarani......................................................................................101

    3.3.2 Ministrio Pblico Federal...............................................................................106

    3.3.3 O Governo do Estado de Santa Catarina e rgos

    ambientais................................................................................................................111

    3.4 Direito e Antropologia na demarcao de terras indgenas...............................115

    CONSIDERAES FINAIS.....................................................................................120

    REFERNCIAS........................................................................................................124ANEXOS..................................................................................................................134

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    INTRODUO

    O discurso em defesa dos povos indgenas e a previso

    normativa de direitos para os nativos fizeram-se presentes em todos os momentos

    da histria do Brasil. A defesa genrica dos direitos indgenas destacada nas

    obras de Souza Lima foi construda, durante sculos, por atores no-ndios que,

    bem intencionados ou no, deixavam a participao e os interesses indgenas em

    segundo plano.

    A questo indgena ganha a fora enquanto movimento social a

    partir da dcada de 1990, com o levante das etnias pelo direito diferena e

    autodeterminao dos povos. O reconhecimento do pluralismo tnico e cultural feito

    por diversos Estados em razo da atuao do movimento indgena, trouxe um novo

    paradigma para os direitos destes povos. Atualmente, os direitos indgenas devem

    ser pensados e desenvolvidos com a participao dos prprios atores indgenas.

    Com o reconhecimento do pluralismo tnico e cultural e a garantia

    do direito diferena, conquista feita a partir da ao coletiva dos novos atores

    sociais, os direitos indgenas na atualidade esto inseridos no quadro do novos

    direitos.

    Trata-se, na verdade, de velhas demandas, mas que neste

    momento histrico ganham a fora do reconhecimento das identidades culturais, do

    direito de ser e permanecer ndio e da atuao de sujeitos historicamente excludos

    da cena pblica.

    Os direitos territoriais configuram a mais antiga demanda dos

    povos indgenas. Ainda assim, esta necessidade fundamental precisa ser pensada e

    garantida dentro do novo marco da alteridade.

    A efetividade dos novos direitos indgenas depende da

    superao da cultura jurdica da Modernidade, que opera com a fico monista, pela

    qual o Estado o nico produtor de juridicidade.

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    Os povos indgenas devem ter participao na construo e

    efetivao de seus direitos pelo Estado, sendo-lhes tambm resguardo o direito a

    sua juridicidade prpria, bem como cultura e instituies.

    Alm da participao dos povos indgenas na efetividade dos

    direitos territoriais, o novo marco de respeito identidade clama pelo dilogo

    interdisciplinar entre o Direito e a Antropologia.

    Assim sendo, a dissertao parte do seguinte questionamento: a

    ausncia de uma viso interdisciplinar entre o Direito e Antropologia pode se

    constituir em bice realizao dos direitos territoriais indgenas? Em que medida a

    falta da construo partilhada sobre seu conceito conduz ineficcia da

    demarcao?

    Os questionamentos levantados sero tratados luz do

    referencial terico do pluralismo jurdico comunitrio-participativo apresentado nas

    obras de Antonio Carlos Wolkmer. Trazido como novo marco para cultura jurdica, o

    pluralismo jurdico possibilita caminhos para o desenvolvimento de novos

    fundamentos aos direitos territoriais indgenas, que no se resuma viso

    construda a partir da produo estatal.O referencial escolhido por atribuir a centralidade da produo

    normativa na atuao dos novos atores sociais, dentre eles, os povos indgenas, e

    ainda, por tomar a interdisciplinaridade como base de construo terica do Direito.

    A Antropologia, conhecida como a cincia que estuda o homem e

    sua cultura, tem superado o estigma de abordar o extico para assumir cada vez

    mais o papel de traduo da alteridade.

    A abordagem antropolgica do trabalho ser feita com base nos

    estudos de etnicidade e territorializao desenvolvidos por Joo Pacheco de Oliveira

    Filho, inserido no que se denomina Antropologia da Ao, por buscar contribuir

    com solues para os problemas mais urgentes dos povos indgenas, como a

    questo da demarcao.

    Historicamente expropriados de suas terras desde a Conquista

    at a atualidade, essa ao sempre foi justificada em funo de alguma misso

    redentora.

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    Busca-se traar, inicialmente, o percurso histrico da construo

    dos direitos territoriais indgenas, tradicionalmente voltados sua assimilao. Fruto

    de uma viso etnocntrica, o direito dos povos indgenas s suas terras sempre foi

    aclamado, porm com a finalidade de inseri-los dentre dos padres ocidentais.

    Neste sentido, a primeira seo do trabalho faz uma abordagem

    histrico-evolutiva dos direitos territoriais indgenas. Inicia com construo terica

    dos telogos-juristas, influenciados pelo jusnaturalismo cristo, que questionava a

    legitimidade da anexao das terras Americanas pelos povos ibricos.

    Ser analisada a legislao indigenista colonial lusa, influenciada

    por esta base crist, que em meio poltica de ocupao de terras, guerra justa e

    aldeamentos, buscava resguardar, retoricamente, o direito originrio dos povos

    nativos.

    Com a independncia poltica do Brasil, passa-se a vislumbrar os

    povos indgenas na tica da formao da nova nao brasileira, inspirada nos ideais

    revolucionrios liberais. Na prtica, os povos indgenas eram expulsos de suas

    terras, com a expanso territorial do Imprio e a consolidao da Lei 601 de 18 de

    setembro de 1850 que buscou adaptar o sistema fundirio produo capitalista.No perodo republicano, cuidar-se- da apresentao dos direitos

    indgenas no contexto do positivismo e na busca da transformao do ndio em

    trabalhador nacional, com a incorporao de suas terras para agricultura. O discurso

    em defesa dos direitos indgenas laiciza-se, mas prossegue a tentativa de

    incorporao mediante a argumentao da atuao fraternal do Estado.

    Ao final do estudo histrico-evolutivo, os direitos territoriais

    indgenas sero tratados dentro do seu novo paradigma, o direito diferena,

    derivado da atuao do movimento indgena. Apresenta-se, assim, as principais

    alteraes normativas sobre o tema.

    A segunda seo ter o objetivo de estabelecer o dilogo entre a

    perspectiva jurdica e antropolgica na fundamentao e concepo dos direitos

    territoriais indgenas.

    Para tanto, ser trabalhado o regime e o fundamento jurdico dos

    direitos territoriais indgenas. A historicidade dos direitos originrios ser

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    desenvolvida mediante a contextualizao da tese defendida por Mendes Junior,

    que at hoje operacionaliza os juristas na defesa dos direitos territoriais indgenas.

    O pluralismo jurdico e fundirio ser trazido com objetivo de

    apresentar caminhos para se pensar novos fundamentos para os direitos territoriais

    indgenas, com a superao da construo monista de direitos.

    A tradicionalidade das terras indgenas ser analisada com base

    na construo antropolgica. Ser desenvolvida a categoria da identidade tnica e

    sua relao com a demanda por terras. Na seqncia, apresenta-se a perspectiva

    antropolgica dos processos de territorializao e a dimenso poltica que envolve a

    definio do territrio indgena.

    Completando a base terica que servir de aporte para a anlise

    do caso, enfoca-se o elemento permanncia enquanto uma garantia das terras

    indgenas. A permanncia ser contrastada com a importncia cultural, religiosa e

    poltica do fator da mobilidade na territorialidade e no modo de ser Guarani.

    Aps o tratamento dos conceitos que envolvem a questo dos

    direitos territoriais indgenas, com a escolha do referencial terico do pluralismo

    jurdico e das categorias antropolgicas estratgicas, passa-se ao estudo de caso.Neste sentido, a pesquisa vale-se da abordagem dedutiva, com a utilizao da

    reviso bibliogrfica, permeada por algumas visitas de campo.

    Toma-se como fonte principal o Procedimento Administrativo do

    Ministrio Pblico Federal, tambm denominado por Dossi Morro dos Cavalos,

    que acompanha a demarcao desta terra, bem como outras fontes

    complementares. O estudo de caso na ltima seo, feito no sentido de verificar

    se a hiptese de que a falta de dilogo interdisciplinar entre o Direito e a

    Antropologia configurou bice na realizao dos direitos territoriais indgenas no

    plano ftico da demarcao.

    Inicialmente ser feita a descrio do histrico da demarcao da

    terra Guarani do "Morro dos Cavalos", para, em seguida, analisar, de forma

    pormenorizada, o relatrio de identificao e delimitao a fim de aprofundar os

    argumentos antropolgicos que sustentam os direitos territoriais indgenas na rea

    reivindicada.

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    Em atendimento ao referencial terico do pluralismo jurdico e da

    centralidade que imprime aos novos atores, a anlise jurdica sobre direitos

    territoriais indgenas ser iniciada pela argumentao da comunidade Guarani.

    A seguir, coloca-se o foco na atuao e a percepo dos direitos

    territoriais a partir da viso do Ministrio Pblico Federal. Busca-se verificar em que

    medida a concepo deste rgo coaduna com a construo antropolgica, emitida

    no relatrio, e, ainda, com a territorialidade exposta pelos Guarani ao longo do

    procedimento.

    O posicionamento do Governo do Estado de Santa Catarina e dos

    rgos estaduais ligados defesa do meio ambiente encerram a anlise dos atores.

    Ao final ser possvel estabelecer a relao entre o Direito e a

    Antropologia no procedimento demarcatrio de terras indgenas e verificar em que

    medida a falta de viso interdisciplinar interfere na realizao dos direitos territoriais

    indgenas.

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    1 DIREITOS TERRITORIAIS INDGENAS

    1.1 Jusnaturalismo e poltica colonial de aldeamento

    A construo terica dos direitos territoriais indgenas tem sua

    gnese na discusso sobre a legitimidade da incorporao da Amrica pelos reinos

    ibricos, num contexto de transio para a Modernidade, no qual se destaca a

    finalidade mercantil das conquistas, sua inspirao religiosa e a centralizao do

    poder no Estado soberano.

    A condio jurdica e poltica dos indgenas e a validade da

    apropriao de seus territrios foi levantada por telogos-juristas da Escola Clssica

    do Direito Natural1, ou Segunda Escolstica, que se desenvolveu na Pennsula

    Ibrica e representou a "intermediao e a passagem do Direito natural teolgico

    para a doutrina do jusnaturalismo racionalista2 (WOLKMER, 2006, p.124).

    Os representantes do jusnaturalismo cristo partiam da

    pressuposta ordem sobrenatural para a resoluo das questes polticas e jurdicas,

    mas tambm recebiam influncias do pensamento humanista, reconhecendo o

    homem como sujeito de sua histria (RANGEL, 2005, p.51).

    Em funo da influncia ainda exercida pela Igreja no mundo

    cristo, era comum aos reinos ibricos buscarem legitimidade de suas conquistas

    em sua autoridade, como ocorreu no caso das terras americanas concedidas aos

    espanhis pelas Bulas Alexandrinas.3

    1 Antonio Manuel Hespanha (2005) leciona que a idia de direito natural existia desde os gregos,passando por toda a Idade Mdia, at a Idade Moderna, com diferentes significados. A Escola Ibricade Direito Natural desenvolveu as teorias escolsticas de Santo Toms de Aquino, que acreditava naexistncia de uma ordem natural das coisas e que o justo poderia ser alcanado com uso da razohumana.

    2Ao tratar da crise da cultura jurdica da modernidade, Wolkmer (2001,p.66-67) tece sua crtica aosdois paradigmas poltico-ideolgicos do direito monista: o jusnaturalismo e o positivismo. Sobre aconcepo jusnaturalista pondera que suas pretenses de universalidade ocultou os verdadeirosbeneficiados das transformaes sociais, polticas e econmicas por ela legitimados.

    3Bula Inter Caetera, de Alexandre VI (1492-1513) que "concede aos reis da Espanha as ilhas e terrasdescobertas ou a descobrir para a propagao da f crist". Para este e outros documentos daConquista ver SUESS, Paulo.(Org.). A conquista espiritual da Amrica Espanhola: 200documentos Petrpolis: Vozes 1992

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    As concesses feitas pela Santa S aos espanhis provocou

    reaes em Portugal, o que levou assinatura da Capitulao da Partio do Mar

    Oceano, ou Tratado de Tordesilhas, em 1494, pelo qual "as terras existentes a at

    370 lguas a oeste do arquiplago de Cabo Verde pertenceriam a Portugal e as

    demais Espanha" (WEHLING, 1994, p.41).

    Muito embora a Igreja Catlica tivesse proporcionado uma

    uniformidade cultural aceita pelos reis e senhores da Europa ocidental, neste

    perodo j no ocupava o mesmo espao hegemnico alcanado durante a Idade

    Mdia (CROSSMAN,1980, p.20).

    A tese dos poderes temporais do Papa foi contestada pelos

    telogos-juristas da Escola Clssica do Direito Natural, especialmente no seu centro

    irradiador dos debates, a Universidade de Salamanca. Com base na escolstica

    aquiniana e tambm no pensamento humanista, seus pensadores contriburam com

    a laicizao do direito e sua radicao na razo individual (HESPANHA, 2005,

    p.291).

    Segundo Zavala (1971, p.20), a partir do pensamento de

    Francisco de Vitoria (1483-1546), a discusso sobre a legitimidade da concessodas terras americanas pelo Papa ficou praticamente fixada. Assim manifestou-se o

    catedrtico em Releitura4denominada Sobre los ndios:

    O Papa no senhor civil nem temporal de todo o orbe, se entendemos odomnio e a jurisdio civil em sentido prprio.[..]. E se Cristo no teve odomnio temporal, como antes defendemos como o mais provvel, etambm de acordo com a sentena de Santo Toms, muito menos o ter oPapa, que seu vicrio5(VITORIA,1998, p.98-99, traduo nossa).

    Rompendo com a dualidade do poder medieval estabelecido entre

    a Igreja e Imprio, o dominicano Francisco de Vitoria considerado o fundador do

    4 Releitura era uma exposio solene sobre um tema monogrfico para a comunidade universitria.As Releituras de Francisco de Vitoria foram obtidas por apontamentos de seus alunos. Tratam datemtica da incorporao da Amrica a Releitura De indis, pronunciada perto do Natal de 1538 ejaneiro de 1539 e De iure belli, expressamente pronunciada em 19 de junho de 1939, segundo LuisFrayle Delgado (VITORIA, 2002, p. XXI).

    5El Papa no es seor civil ni temporal de todo el orbe, si entendemos el dominio y la potestad civil ensentido propio.[..].Y si Cristo no tuvo el dominio temporal, como antes hemos defendido como lo msprobable y tambin de acuerdo con la sentencia de Santo Toms mucho menos lo tendr el Papa

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    direito internacional. O telogo lanou bases para a construo do conceito de

    soberania sustentando a tese pela qual nem o Papa, tampouco o Imperador, seriam

    senhores de todo o orbe, pois ningum deteria o imprio da terra por direito natural.

    A ordem internacional preconizada por Vitoria (1998, p.96) baseia-

    se numa sociedade de povos que no se submetem ao poder de um s senhor, o

    que o leva a argumentar em favor da autonomia e dos direitos territoriais dos povos

    americanos: mesmo admitindo que o Imperador fosse senhor do mundo, nem por

    isso poderia ocupar os territrios dos brbaros nem estabelecer ali novos senhores,

    depor antigos e cobrar tributos.

    Apesar da modernidade do pensamento de Vitoria no sentido de

    reconhecer os direitos indgenas com base no direito natural, sua argumentao

    ainda deitava razes na universalizao da f crist, o que possibilitava a submisso

    dos povos nativos mediante a catequizao, ou por meio de violncia aberta da

    guerra justa:

    Se os brbaros, tantos seus senhores, como o povo, impedirem osespanhis de anunciar livremente o Evangelho, estes podem predicarmesmo contra a vontade daqueles, sendo a razo disto evitar o escndalo,e podem procurar a converso daquelas gentes, e se for necessrio aceitar

    a guerra ou declar-la por este motivo, at que dem oportunidade esegurana para a prdica do Evangelho6 (1998, p.141-142, traduonossa).

    (1993, p.7-8) denomina por "mito da modernidade" .

    A aparente ambigidade da defesa dos direitos indgenas durante

    a Conquista, na qual se reconhece a soberania do conquistado para posteriormente

    negar sua alteridade em razo dos valores cristos, corresponde ao que Dussel7

    6Si los brbaros, tanto los seores mismos, como el pueblo, impidieran a los espaoles anunciarlibremente el Evangelio, stos pueden predicar aun contra la voluntad de aquellos, dando antes raznde ello para evitar el escndalo, y pueden procurar la conversin de aquellas gentes, y si fueranecesario aceptar la guerra o declararla por este motivo, hasta que den oportunidad y seguridadespara predicar el Evangelio (1998, p.141-142).7 Dussel (1994, p.175-176) apresenta dois contedos semnticos para o paradigma da Modernidade.Em sentido positivo, a Modernidade definida como proposta de emancipao, com base no esforoda razo. No seu sentido mtico a Modernidade seria a justificativa da prtica irracional da violncia.Nesta segunda acepo, a civilizao moderna se compreende como a mais desenvolvida, tendo a

    obrigao de promover o desenvolvimento dos povos brbaros. Na medida em que estes se opemao processo civilizatrio, a violncia contra eles justificvel, transformando as vtimas emculpados.

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    O filsofo Enrique Dussel reflete que a irracionalidade da violncia

    da guerra ou submisso dos povos apregoada em funo de um ato racional, a

    emancipao dos gentios.

    Apesar do debate sobre a legitimidade da incorporao das terras

    americanas e dos direitos dos povos indgenas ter se desenvolvido principalmente

    na Espanha, com destaque para as Juntas de Valladolid,8 o imaginrio cristo e a

    racionalidade mercantil esto igualmente presentes na poltica colonial portuguesa

    (PERRONE-MOISS, 1998, p.115).

    Seguindo a tradio jusnaturalista apontada no pensamento

    vitoriano, Portugal tambm reconhece, de forma esparsa e casustica, ao longo do

    perodo colonial, direitos territoriais aos povos indgenas.

    A antroploga Manuela Carneiro da Cunha (1987b, p.53-54)

    elucida que a tese da autonomia dos povos indgenas prevaleceu em ambos pases

    ibricos. Segundo a autora, a doutrina que negava o poder temporal do Papa sobre

    os infiis firmou-se tanto na Espanha como em Portugal.

    O pensamento espanhol ressoou em Portugal na segunda metade

    do sculo XVI por meio do intercmbio na vida cultural, uma vez que seus telogostambm lecionavam no Colgio de Artes em Coimbra e na universidade jesutica de

    vora (THOMAS, 1982, p.69).

    Apesar da construo jusnaturalista dos direitos indgenas, o que

    se pratica ao longo do perodo colonial no Brasil a expropriao de suas terras, a

    submisso de seu direito (WOLKMER, 2000, p.33) e de sua cultura, segundo os

    interesses da metrpole lusitana.

    A possibilidade da guerra justa9 para a prdica do evangelho

    tornou-se um meio de submisso dos povos indgenas ao domnio de seus

    conquistadores. Este conceito medieval foi amplamente utilizado pela legislao

    8 Debate jusfilosfico entre Bartolomeu de Las Casas e Gines Seplveda, entre 1550 e 1551, queversou sobre a condio dos ndios, no qual o primeiro defendia sua igualdade e segundo legitimavaa servido natural.

    9 Conceito desenvolvido por Santo Agostinho que a caracteriza por ser emanada por uma autoridadeconstituda, declarada por um motivo justo (para reparar uma injria ou recuperar algo arrebatado) eter uma inteno justa (fazer o bem ou evitar o mal). Foi a base da legitimao da luta contra os infiisdurante a Idade Mdia

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    colonial portuguesa. Segundo Beozzo (1983, p.15) o princpio da guerra justa abriu

    caminho para legitimao da escravizao dos ndios, debaixo da aprovao real e

    sob a beno da religio.

    Os direitos territoriais dos povos nativos eram pensados a partir

    dos interesses da metrpole e legislados com a finalidade de assegurar a Conquista,

    operacionalizando-a por meio de violncia aberta, ou mediante a poltica de

    aldeamento.

    Perrone-Moiss (2000, p.114) destaca que a legislao colonial

    portuguesa para os povos indgenas foi feita num contexto no qual a converso era

    um valor supremo do colonizador. Segundo Wolkmer, (2000, p.42) os valores do

    colonizador portugus eram condicionados pelo mercantilismo econmico e pela

    administrao centralizadora burocrtica, prevalecendo a racionalidade escolstico-

    tomista e teses absolutistas.

    A catequese da Companhia de Jesus e o humanismo escolstico

    propagado no Brasil foi a base da formao cultural colonial, inspirando os

    contornos da sociedade (WOLKMER, 2000, p.43). As prticas coloniais, segundo

    Joo Pacheco de Oliveira, persistem ainda hoje na poltica para os povos indgenas.(OLIVEIRA, 1998).

    A guerra de conquista, segundo Souza Lima, envolve um exrcito

    organizado, um povo que se quer dominar e a posterior administrao de seus bens.

    O autor considera que "a conquista implica em fixao de parte do povo

    conquistador nos territrios adquiridos pela guerra" e a subseqente "administrao

    do butim" (SOUZA LIMA, 1995, p.49).

    Aps um perodo em que o Brasil ficou relegado a mero

    entreposto comercial, estabeleceu-se um primeiro regime de ocupao das terras

    brasileiras mediante a concesso de sesmarias:

    A ocupao de nosso solo pelos capites descobridores, em nome daCoroa portuguesa, transportou, inteira, como num grande vo de guias apropriedade de todo o nosso imensurvel territrio para alm mar - para oalto senhorio do rei e para a jurisdio da Ordem de Cristo (LIMA, 1990,p.15).

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    A legitimidade para conceder as sesmarias foi, a princpio,

    atribuda a Martim Afonso de Souza em sua primeira expedio colonizadora, em

    1530. Reconhecido como capito-mor do Brasil, deveria tomar posse, organizar o

    governo e conceder terras (LIMA, 1990,p.36).

    Em fevereiro de 1532, D.Joo III resolve dividir o Brasil em

    Capitanias Hereditrias, sem deixar de contemplar Martim Afonso e seu irmo Pero

    Lopes.

    Nesta segunda fase, a instituio de sesmarias poderiam ser

    feitas pelos donatrios das Capitanias. Posteriormente, com a revogao dos

    poderes destes, passou a ser atribuio exclusiva do Governador Geral e por fim, a

    Coroa reservou para si este direito10(COSTA, 1999,p.16).

    Ruy Cirne Lima (1990, p.40) ensina que para receber terras em

    sesmarias era necessrio dispor de posses para a construo de engenhos de

    acar e de fortificaes para defesa contra o gentio. Assim, aponta este instituto

    como o germe dos futuros latifndios e da aristocracia econmica no Brasil colonial.

    Diante da pouca eficincia do regime de capitanias hereditrias11

    para a colonizao, houve ento a implementao do primeiro Governo Geral doBrasil.

    Ao considerar colonizao toda a ao que visou assegurar a

    posse e a expanso das terras do Brasil, entre a descoberta emancipao poltica,

    o Regimento do primeiro Governador Geral do Brasil, de 17 de dezembro de 1548

    apontado por Rita Helosa de Almeida (1997, p.53-88) como um roteiro de

    procedimentos aps a Conquista.

    A nova situao administrativa no mudava a situao dos povos

    originrios, tentava to somente frear a escravizao indiscriminada que impedia os

    objetivos da colonizao, que eram a converso do gentio, o aumento da populao

    e do comrcio12(BEOZZO,1983, p.21).

    10A Resoluo de 17 de julho de 1822 pe fim ao regime de sesmarias no Brasil.

    11 Wehling entende que no h elementos para afirmar que houve um fracasso no projeto de

    Capitanias Hereditrias. Segundo o autor (1994, p.69), o governo geral pretendeu melhorar acoordenao da colonizao.

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    Com a finalidade de colonizar, o Regimento do Primeiro

    Governador Geral do Brasil, de 17 de dezembro de 1548, determinava a formao

    de aldeamento de ndios convertidos perto das povoaes das capitanias e operava

    com a idia de estabelecimento de relaes de aliana ou de guerra com os povos

    nativos, conforme aceitassem ou no o jugo do colonizador.

    A converso dos indgenas mediante os descimentos foi atribuda

    pela Coroa Companhia de Jesus. A Lei de 26 de julho de 1596 estabelece que os

    religiosos deveriam convencer os ndios pelos "bons meios", declarando aos gentios

    que seriam livres e senhores de sua fazenda como o so na serra (BEOZZO, 1983,

    p.100).

    Paralelamente ocupao de terras mediante o regime de

    sesmarias, havia, de acordo com a tradio jusnaturalista, o reconhecimento de

    direitos territoriais indgenas pela metrpole.

    As Cartas Rgias de 30 de julho de 1609 e 10 de setembro de

    1611 so apontadas como marcos dos direitos territoriais dos povos originrios

    (CUNHA, 1987b, p.58).

    Assim dispe a primeira Carta Rgia, o que se repete nasegunda13:

    Hei por bem que os ditos gentios sejam senhores de suas fazendas naspovoaes em que morarem, como o so na serra, sem que lhe possam sertomadas, nem sobre elas se lhe possa fazer molstia [...] e o Governadorcom o parecer dos ditos religiosos, aos que vierem da serra, assinalarlugares para neles lavrarem e cultivarem [...] como por suas doaes soobrigados e das capitanias e lugares que lhe forem ordenados no poderoser mudados por outros contra sua vontade (THOMAS, 1982, p.227-228).

    No entanto, sobre o Alvar Rgio de 1 de abril de 1680 que o

    jurista Joo Mendes Junior, no incio do sculo XX, construiria a tese do

    reconhecimento dos direitos originrios que se apresenta como fundamento jurdico

    dos direitos territoriais indgenas ainda hoje, tema a ser abordado na prxima seo.

    Considerada de fundamental importncia no reconhecimento dos

    direitos territoriais indgenas, por meio desta lei, a Coroa Portuguesa esclarece que

    as sesmarias concedidas no atingem os direitos originrios dos povos indgenas

    sobre suas terras (CUNHA, 1987b, p.59).

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    Gassen (1994, p.131) assinala que o direito de propriedade na

    poca colonial encontrava limites nas reas indgenas, que no podiam ser

    distribudas a particulares pelo sistema sesmarial.

    No sentido de reafirmar a autonomia dos povos indgenas, este

    Alvar probe o cativeiro dos ndios, determinando que os presos em guerra justa

    fossem tratados com prisioneiros e no como escravos:

    [...] e sucedendo mover-se guerra defensiva ou ofensiva a alguma nao dendios do dito Estado, nos casos e termos em que por minhas leis e ordens permitido: os ndios que na tal guerra forem tomados, ficaro somenteprisioneiros como ficam as pessoas que se tomam nas guerras de Europa

    [...] (BEOZZO,1983, p.107).

    Apesar da legislao colonial portuguesa ter reconhecido os

    direitos territoriais indgenas, a territorialidade imposta pelos colonizadores buscava

    viabilizar a converso, "esse pilar da colonizao, justificativa primeira de toda a

    empresa colonial"(PERRONE-MOISS,2000, p.113).

    Segundo Oliveira Filho (1999b, p.23), as misses religiosas,

    produto da poltica estatal, constituam unidades de ocupao territorial, produoeconmica, com a inteno explcita de homogeneizao, por meio da catequese e

    pelo disciplinamento do trabalho.

    Colao (1999, p.118) reflete em sua obra Incapacidade Indgena

    [...] que a evangelizao dos ndios foi um projeto poltico de integrao ao sistema

    colonial. O aldeamento significava a sedentarizao dos ndios num mesmo local

    para favorecer o trabalho de converso.

    O aldeamento dos povos indgenas garantia a ocupao do

    territrio, sua defesa e apresentava-se como uma reserva de mo-de-obra para os

    novos habitantes da Amrica (PERRONE-MOISS, 1998, p.120).

    Somente ao final do sculo XVIII que as idias iluministas 14

    iriam refletir na poltica indigenista com a influncia do Marqus de Pombal, por meio

    das leis de 6 de junho de 1755, que concedeu liberdade aos ndios, de 7 de junho do

    14 Arno Wehling elucida que at Pombal, o conhecimento filosfico colonial foi produzido dentro da

    "Segunda Escolstica portuguesa". A exemplo da produo hispnica, seguia tradio contra-reformista representada pelos telogos que revisitavam o pensamento tomista. V.referncias, p.289.Em razo da sistematizao deste trabalho a influncia iluminista sobre o discurso indigenista ser

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    mesmo ano, que dispunha sobre a secularizao das aldeias e o Diretrio de 3 de

    maio de 1757, com diretrizes aprovadas pelo Alvar de 17 de agosto de 1758, o

    Diretrio dos ndios.

    Este conjunto de leis inseria-se num projeto maior de

    desenvolvimento econmico, que visava tambm assegurar os limites territoriais

    portugueses sobre os espanhis e a afirmao estatal sobre as demais instituies,

    principalmente sobre a Companhia de Jesus (ALMEIDA, 1997).

    Com relao s terras indgenas, o Diretrio dos ndios reitera o

    Alvar Rgio de 1680, afastando porm os religiosos da administrao dos

    aldeamentos, com sua expulso em 1759. Apesar de sua revogao em 1798, deu

    incio a uma mentalidade desenvolvimentista segundo a qual o ndio deveria

    integrar-se, contribuindo com o ideal da nao:

    O Regimento pombalino, longe de introduzir a liberdade dos ndios [..]obriga os Principais das Povoaes a entregar quantos ndios foremrequisitados pelos moradores para servir aos seus interesses particulares,erigidos em interesse comum e do prprio Estado, mesmo em detrimentodas necessidades dos prprios ndios (BEOZZO, 1983, p.66)

    Com a influncia dos ideais iluministas passa-se a pensar o ndio

    como um selvagem que, muito alm de se cristianizar, faz-se necessrio "civilizar".

    Oliveira Filho (1999b, p.23) pondera que: se as misses [..] conjugavam aspectos

    que podemos chamar de assimilacionistas e preservacionistas, o seu sucedneo

    histrico o diretrio dos ndios pendeu decisivamente para a primeira direo.

    Neste sentido, o Diretrio prev uma srie de atos de assimilao

    indgena como a proibio do uso de suas lnguas, instruo primria nos moldesocidentais, atribuio de sobrenome portugus, disposies sobre moradia,

    vestimenta, atividades econmicas, tudo em funo de um "ajustamento s

    concepes europias de vida social" (ALMEIDA, 1997, p.130-131).

    Embora tenha reconhecido os direitos territoriais indgenas, com o

    afastamento das misses religiosas, durante o perodo pombalino, os direitos

    indgenas condicionavam-se aos ideais de desenvolvimento comercial da Coroa,

    buscando utilizao da mo-de-obra indgena na regio amaznica.

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    A chegada da famlia real no Brasil inaugura uma poltica de

    guerra ofensiva contra os ndios. Pela Carta Rgia de 13 de maio de 1808, D. Joo

    VI autoriza guerra aos Botocudos de Minas Gerais e pela Carta Rgia de 5 de

    novembro de 1808, guerra aos Bugres em So Paulo.

    Na reflexo de Manuela Carneiro da Cunha (1987b, p.63), mesmo

    D.Joo VI, considerado o mais "antiindgena dos legisladores", tambm reconheceu

    os direitos territoriais indgenas. Segundo a autora, na anlise da Carta Rgia de 2

    de dezembro de 1808, a Coroa reconhecia a titularidade das terras conquistadas

    dos ndios inimigos, uma vez que as declarava devoluta aps sua aquisio em

    guerra justa. Reconhecia, ainda, o direitos territoriais dos ndios pacficos (CUNHA,

    1987b, p.63).

    O governo luso, com suas caractersticas senhoriais, catlica e

    absolutista apontadas em Wolkmer (2000, p.43), adotava a guerra justa e o

    aldeamento como meios de dominao territorial e poltica na Amrica.

    A conquista espiritual dos gentios era a justificativa apresentada

    pela Coroa para submeter os povos indgenas ao regime colonial, o que no impedia

    que reconhecesse, retoricamente, e dentro da tradio jusnaturalista desenvolvidapelos telogos, a autonomia e os direitos territoriais dos povos conquistados.

    1.2 Dos ideais liberais de "civilizao" restrio do acesso terra

    A ascenso dos ideais iluministas que inspiraram a Revoluo

    Francesa e a formao do liberalismo15fizeram-se presentes no Brasil entre a elite

    nacional que desejava o fim dos vnculos coloniais, influenciando tambm o discurso

    indigenista.

    15 Segundo Sergio Paulo Rouanet o iluminismo foi a matriz do pensamento liberal. Cita, comoexemplos, a doutrina da tolerncia em Voltaire, das garantias contra o Estado de Montesquieu e aidia de progresso em Condorcet Conforme referncias p 200

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    A implantao do direito portugus no Brasil durante o perodo

    colonial consolidou os interesses da Coroa e proporcionou a formao de uma elite

    patrimonialista16 (WOLKMER, 2000, p.71). O liberalismo derivado desta elite

    apresenta contrastes, como aponta Wolkmer (2000, p.76):

    Eram profundamente contraditrias as aspiraes de liberdade entrediferentes setores da sociedade brasileira. Para a populao mestia, negra[...] o liberalismo,[...] significava a abolio dos preconceitos de cor, bemcomo a efetivao da igualdade econmica [..]. J para os estratos queparticiparam diretamente do movimento de 1822, o liberalismo representavainstrumento de luta visando eliminao dos vnculos coloniais.

    O liberalismo ptrio, em sua verso contraditria e conservadora,influenciou a formao da cultura jurdica brasileira, com as caractersticas do

    formalismo e da retrica, deixando at os dias atuais a herana do "bacharelismo".

    O fenmeno poltico-cultural assim denominado descrito como

    uma situao que se caracteriza pela predominncia de bacharis na vida poltica e

    cultural do pas. O bacharelismo apresenta em seu cerne uma cultura abstrata,

    erudita, literria. A ascenso dos bacharis e dos ideais iluministas por eles

    propagados espraiaram-se pelas instituies jurdico-polticas nacionais e emdemais campos de poder, como na produo literria e jornalstica (KOZIMA, 2002).

    Em razes do Brasil, Srgio Buarque de Holanda (1995, p.157)

    pondera sobre a cultura retrica do bacharelismo: [..] um amor impronunciado pelas

    formas fixas e pelas leis genricas que circunscrevem a realidade complexa e difcil

    dentro do mbito dos nossos desejos.

    Desta forma, possvel compreender como o discurso liberal

    incorpora-se ao Estado que se desenvolvia com base na mo-de-obra escrava, tanto

    indgena quanto negra.

    A marca do liberalismo retrico brasileiro visvel na Constituio

    de 1824, que no trouxe normativa sobre o direito dos povos indgenas, apesar das

    inmeras discusses que a precederam neste sentido.

    16 O patrimonialismo apontado como uma das "heranas coloniais" brasileiras, derivado do contextono qual a Coroa detinha o domnio das terras e monoplios comerciais, com conseqncias na ordemsocial de classes (FAORO,1977, p.222).

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    Dentre os projetos sobre os povos indgenas apresentados

    Assemblia Constituinte em 1823, destacam-se os Apontamentos para a civilizao

    dos ndios bravos17do Imprio do Brasil, de Jos Bonifcio de Andrada e Silva.

    Com a emancipao poltica surge a preocupao com o projeto

    poltico da nao independente, inspirado na viso iluminista18. Ao lado dos ideais

    de catequizao, esposados pelos jesutas, os ndios deveriam integrar-se, tomar

    parte na nao brasileira, neste sentido a exposio de Jos Bonifcio (2002,

    p.186):

    Reflitamos igualmente no que fizeram os jesutas nas suas misses doParaguai e do Brasil, e mais teriam feito se seu sistema no fora de separarda comunicao dos brancos, e de os governar por uma teocracia absurdae desinteressada .

    O autor sofrera influncias das reformas pombalinas,

    reconhecendo mritos no Diretrio de 1758. Atesta que esta lei nunca fora bem

    executada porque os ndios, apesar de gozar de privilgios da "raa" europia,

    continuavam em situao de misria e barbrie (ANDRADA E SILVA, 2002, p.188-

    189).

    Na esteira do Diretrio Pombalino, o "patriarca da independncia"

    insere a questo indgena dentre as preocupaes desenvolvimentistas,

    considerando que a civilizao dos ndios bravos objeto de sumo interesse e

    importncia para a nao(ANDRADA E SILVA ,2002, p.189).

    Expe sua preocupao com o crescimento das povoaes e a

    necessidade de incremento na agricultura e na criao de gado, equilibrando, assim,

    a produo aucareira (ANDRADA E SILVA ,2002).Os Apontamentos [...] de Jos Bonifcio visavam um projeto de

    nao, com a incorporao dos ndios mediante mtodos inspirados na brandura da

    ao missionria que deveria garantir a assimilao dos padres europeus.

    17 Sob influncia do evolucionismo os ndios eram categorizados em bravos ou domesticados,segundo seu grau de civilidade.

    18 Wehling (1994, p.292) aponta que o abandono da tradio tomista na histria cultural brasileira,com a adoo de mtodos e esprito tipicamente iluministas ser sentida na intelectualidade

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    Sem deixar de seguir a tradio jusnaturalista e a poltica

    indigenista lusitana, o autor considerava os ndios como "legtimos senhores" de

    suas terras. No entanto, dentro de uma perspectiva contratualista, propunha a

    compra das terras indgenas como soluo para sua incorporao, a exemplo do

    que ocorria nos Estados Unidos da Amrica (ANDRADA E SILVA, 2002, p.190).

    Apesar de ter sido recebido somente como uma proposta de

    instruo e coleta de informaes junto s Provncias, no projeto de Jos Bonifcio

    est contido o germe dos ideais da proteo fraternal a ser desenvolvida

    posteriormente no perodo republicano.

    A defesa dos direitos indgenas adotada por Bonifcio delineou a

    tendncia do discurso oficial de proteo indgena, visando a incluso do indgena

    na sociedade poltica, por meio brandos e pacficos, com base na "perfectibilidade"

    de sua razo. Para o autor, com a transformao das circunstncias colocadas aos

    povos indgenas, seria possvel modificar seus costumes considerados brbaros

    (ANDRADA E SILVA, 2002, p.186).

    No plano ftico ocorria o combate e a expropriao de terras

    indgenas medida que o Imprio avanava em suas fronteiras, como no rioAmazonas, Araguaia, Madeira e tambm no oeste paulista e na zona de colonizao

    nas provncias do Sul (CUNHA, 1998, p.136).

    O processo de expropriao das terras indgenas intensificou-se

    com o Ato Adicional de 1834 que atribuiu s Provncias a competncia de promover

    cumulativamente com os Governos Gerais a catequizao indgena e o

    estabelecimento de colnias.

    Com a descentralizao administrativa da poltica indigenista,

    vrias aldeias seriam extintas e expedies ofensivas expulsariam os ndios de seus

    territrios. Tratava-se da expanso das fronteiras do Imprio, que comea a

    restringir o acesso propriedade fundiria aos povos indgenas, negros, libertos e

    brancos pobres (CUNHA,1998,p.141).

    Seguindo a tendncia do Diretrio Pombalino e do Projeto de

    Jos Bonifcio, a presena de no-ndios era estimulada junto aos aldeamentos,

    objetivando sua civilizao, o que acaba por gerar, na prtica, a perda de seus

    territrios (CUNHA 1998 p 143)

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    Aps um longo vazio legislativo, o Decreto 426 de 24 de julho de

    1845 Regulamento das misses, entrega a administrao de aldeias aos

    Diretores, prolongando o sistema de aldeamentos, confinando os indgenas em

    pequenos espaos onde poderiam servir como mo-de-obra.

    A idia de que a civilizao dos ndios deveria ser atingida

    mediante sua sedentarizao em aldeamentos ainda aplicada no final do sculo

    XIX a diferentes etnias, ainda que se tratassem de grupos coletores ou caadores

    (CUNHA, 1998, p.136).

    A possibilidade de remoo, reunio, aforamento e arrendamento

    de aldeias, previstas pelo Regulamento das Misses, serviram ao processo de

    expropriao de terras indgenas.

    Alm de prosseguir na apropriao de espaos tradicionais

    indgenas com a expanso das fronteiras do Imprio passou, ainda, a incorporar as

    terras indgenas dos antigos aldeamentos.

    As terras das aldeias extintas foram objeto de disputa entre os

    diversos entes polticos at que a Lei 3348 de 20 de dezembro de 1887, em seu

    artigo 8, pargrafo 3, atribuiu-as ao domnio das Provncias e Cmaras Municipais,que passam a trat-las como se devolutas fossem.

    O final do sculo XIX marcado pela transformao do regime de

    terras, que deixa de ter o carter tradicional das sesmarias para assumir um valor de

    mercadoria. Manuela Carneiro da Cunha (1998, p.133) entende, neste perodo, a

    questo indgena passa a ser, por excelncia, uma questo de terras.

    Na esteira das diversas codificaes do perodo, a Lei 601 de 18

    de setembro de 1850, Lei de Terras, buscou regularizar a situao fundiria que

    fugia ao controle do rgo estatal, o que acabou por instalar uma poltica agressiva

    com relao s aldeias (CUNHA, 1998, p.145).

    Esta lei tentou colocar as terras dentro de um quadro normativo

    mais apropriado ao sistema capitalista, abolindo a posse e a ocupao como modos

    legtimos de aquisio da propriedade, instituindo a obrigatoriedade da obteno da

    titulao formal.

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    Alm de buscar a consolidao da propriedade no mercado

    fundirio, tratou de estabelecer normas sobre a mo-de-obra livre por meio da

    imigrao, para substituir o trabalho escravo (GASSEN, 1999, p.195).

    Silvio Coelho dos Santos (1973, p.58-59) aponta que o

    empreendimento de colonizao por meio da promoo da vinda de imigrantes

    europeus ganhou impulso com a Lei de Terras, a partir de 1850.

    O autor destaca que no sul do Brasil no perodo entre 1850 a

    1867 havia vinte e seis ncleos coloniais, tomando um carter de frente pioneira,

    que se expandiria sobre as terras indgenas:

    Frente baseada na explorao da pequena propriedade agrcola, que degerao em gerao deveria seguir adiante, em busca de novas terras.Nesse movimento, a frente tendia a eliminar o indgena dos territrios emque tinha interesse, pois, ele era obstculo sua expanso (SANTOS,1973,p.59).

    A Lei 601 de 18 de setembro de 1850, Lei de Terras exclua do

    conceito de terras devolutas os territrios indgenas, conforme a consagrada

    interpretao de Mendes Junior, que ser discutida no prxima seo.

    Contudo, a finalidade desta lei era de estabelecer uma

    normatizao sobre a propriedade privada, inserindo as terras na realidade

    capitalista e refletindo, segundo Gassen (1994, p.222), a ideologia do Cdigo de

    Napoleo de 1804.

    Manuela Carneiro (1998, p.145) destaca que aps a promulgao

    da Lei de Terras o Imprio determinou a incorporao de aldeias nas quais osindgenas j se encontrassem confundidos com a populao civilizada. Segundo a

    autora, era a primeira vez que a legislao utilizava o critrio de identidade tnica

    para promover a expropriao.

    Joo Pacheco de Oliveira Filho (1999b, p.24) destaca que a

    apropriao que decorre da Lei de Terras lembrada pelos Pankarudo Brejo dos

    Padres, na regio do Nordeste, como o tempo das linhas. Para o antroplogo este

    foi o momento mais radical da mistura, termo de fabricao ideolgica, mas quedemonstra a situao histrica do contato intertnico.

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    O liberalismo brasileiro manteve o discurso pelo qual os povos

    indgenas seriam os verdadeiros senhores de suas terras. Na prtica, o Imprio

    cuidou de consolidar os interesses da elite patrimonialista, com a regulamentao do

    mercado de terras e da mo-de-obra imigrante.

    Os direitos territoriais indgenas permaneciam reconhecidos no

    plano discursivo e legislativo, mas os povos indgenas continuavam sendo

    expropriados de suas terras, com a justificativa da integrao civilizatria.

    1.3 Positivismo e proteo fraternal aos povos indgenas

    No final do sculo XIX a repercusso do positivismo entre as

    elites brasileiras influenciaria os ideais polticos na formao da Repblica, bem

    como a poltica indigenista a ser desenvolvida posteriormente pelo Servio de

    Proteo ao ndio e Localizao de Trabalhadores Nacionais, criado pelo Decreto

    8072 de 20 de junho de 191019.

    O positivismo comea a ser divulgado no Brasil por meio de

    trabalhos apresentados na Escola Militar a partir de 1850, sendo esta instituio um

    de seus principais centros de propagao (GAGLIARDI, 1989, p.42-43).

    Trata-se de um conjunto de novas idias inspiradas na obra de

    Augusto Comte20, que tambm passar a influenciar o pensamento jurdico por todo

    o pas. Wolkmer (2000, p.130) d conta da adequao do positivismo jurdico

    21

    snovas condies econmicas que se iniciavam com a Repblica.

    19Regulamentado pelo Decreto n. 9214, de 15 de dezembro de 1911.

    20 O positivismo, em termos de concepo ideolgica, visa assegurar o equilbrio social e o progressoda humanidade rumo ao estgio positivo ou cientfico. Conforme Gagliardi, p.46, nas refernciasbibliogrficas.

    21 O positivismo jurdico, que surge com as grandes codificaes, principalmente a francesa, tambminspirou a doutrina do monismo jurdico, conforme ensina Wolkmer (2001, p.53-54). Em contraposioao jusnaturalismo a ideologia do positivismo afasta a metafsica do Direito pondo em evidncia a

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    A influncia positivista na poltica indgena republicana

    materializada no projeto de Constituio elaborado por Miguel Lemos e Teixeira

    Mendes. Apesar de no ter sido aprovada, a norma idealizada pelos positivistas

    esboava o discurso da proteo fraternal que ser reproduzido no perodo:

    Artigo 1 A Repblica dos Estados Unidos do Brasil constituda pela livrefederao dos povos circunscritos dentro dos limites do extinto imprio doBrasil. Compe-se de duas sortes de estados confederados, cujasautonomias so igualmente reconhecidas e respeitadas segundo as formasconvenientes a cada caso, a saber:

    I Os Estados Ocidentais Brasileiros sistematicamente confederados e queprovm da fuso do elemento europeu com o elemento africano e oamericano aborgine.

    II Os Estados Americanos Brasileiros empiricamente confederados,constitudos pelas hordas fetichistas esparsas pelo territrio de toda aRepblica. A federao deles limita-se manuteno das relaesamistosas hoje reconhecidas como um dever entre naes distintas esimpticas, por um lado: e por outro, em garantir-lhes a proteo doGoverno Federal contra qualquer violncia, quer em suas pessoas, quer emseus territrios. Estes no podero jamais ser atravessados sem o seuprvio conhecimento pacificamente solicitado e s pacificamente obtido(GAGLIARDI, 1989,p.56).

    Na viso dos positivistas o relacionamento do Estado com os

    povos indgenas deveria pautar-se em princpios de brandura, mediante atuao

    leiga de seus agentes, com a finalidade de sua proteo e integrao nao

    brasileira.

    A perspectiva integracionista iniciada pela poltica pombalina

    ganharia novos contornos com os ideais positivistas e com o evolucionismo social,

    propugnando que, pela educao, os povos indgenas rumariam a um estgio mais

    avanado da humanidade.O evolucionismo social, predominante nas cincias humanas no

    final do sculo XIX, presidiu a poltica indgena ao longo do sculo XX, no

    escapando desta viso a definio de seus direitos territoriais.

    O "progresso" expressado na bandeira positivista era a meta de

    todas as correntes que debatiam a questo indgena no comeo da Repblica.

    Tratava-se de valores fundamentais da poca, percebidos a partir de um modelo

    universal cultural, e no enquanto conceitos determinados por uma sociedadehegemnica (SCHWARCZ, 1993, p.57).

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    Ainda que se vislumbre uma mudana da retrica e estratgia

    poltica, o Estado prosseguiria com a prtica da eliminao cultural e apropriao

    das terras indgenas, pois seus direitos continuavam sendo idealizados com base na

    imposio de um paradigma etnocntrico e na crena da transitoriedade do ndio

    (SOUZA LIMA, 2005, p.33).

    A primeira Constituio republicana de 1891 no abordou a

    questo indgena, mas acabou por incidir sobre seus direitos territoriais ao transferir

    aos Estados as terras devolutas22existentes em seus territrios.

    A criao do Servio de Proteo ao ndio e Localizao de

    Trabalhadores Nacionais (SPILTN), rgo integrante do Ministrio da Agricultura,

    Indstria e Comrcio (MAIC), representou uma vitria dos ideais positivistas.

    Marechal Rondon, primeiro diretor da agncia, como os demais

    integrantes do Ministrio, eram membros do Apostolado Positivista do Brasil e

    representavam a fora do exrcito na dimenso geopoltica que envolvia a questo

    indgena:

    O tenente-coronel Cndido Mariano da Silva Rondon organizaria o aparelhoque fora convidado a criar a partir de uma rede de colaboradores extrada

    dos membros do Apostolado Positivista do Brasil, parcialmente identificadaaos integrantes da comisso telegrfica que ento dirigia (SOUZALIMA,1998,p.159).

    Neste perodo, o Estado nacional expandia-se como forma de

    organizao sobre o territrio nacional. O reconhecimento das terras indgenas,

    dentro da concepo positivista significa a territorializao do prprio Estado

    (SOUZA LIMA,1998, p.167).

    A ao do Estado, por meio do poder tutelar, analisada por

    Antonio Carlos de Souza Lima (1997, p.348) como forma reelaborada de Conquista,

    justificada pelo interesse nacional e exercida com base na estratgia de "pacificao

    dos povos nativos", pela qual se tornou clebre Cndido Rondon.

    O rgo oficial de proteo indigenista surge no contexto da

    necessidade de superao da crise agrcola ocorrida ps-abolio (SOUZA LIMA,

    22 A questo das terras devolutas sempre ensejou apropriao de terras indgenas, contra qual sedebateu Joo Mendes Junior em sua obra Os indgenas do Brazil: seus direitos individuaes e

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    1998, p.157). Desta forma, a redeno positivista do ndio implicaria na sua

    transformao em trabalhador nacional e na incorporao de suas terras para o

    desenvolvimento da agricultura.

    Conforme indicava o seu regulamento, um dos objetivos da

    assistncia oficial do Servio de Proteo era, nos termos do artigo 2, pargrafo 15:

    introduzir em territrios indgenas a indstria pecuria, quando as condies locais

    o permitirem.23

    A denominada "tarefa herica" atribuda ao SPI24ocultava a idia

    de que a salvao fsica dos povos indgenas implicava, na verdade, na supresso

    dos direitos tnicos, uma vez que sua finalidade era a assimilao (SOUZA LIMA,

    1987, p.161).

    Apesar dos princpios humanitrios tradicionalmente atribudos s

    construes positivistas, que dentro de um cenrio abertamente hostil aos ndios,

    defendiam sua proteo25, todos os projetos indigenistas visavam abrir terras

    colonizao e conferir-lhes um papel no desenvolvimento da nao (SOUZA LIMA,

    1987, p.174).

    Ao tratar dos agentes ligados ao debate indigenista, Souza Lima(1987, p.169) posiciona Rodolpho Miranda, Ministro da Agricultura Indstria e

    Comrcio poca da criao do SPI, dentre os polticos que buscavam

    compatibilizar a expanso agrcola com o lugar dos povos indgenas na nao que

    se constitua.

    Na viso de Souza Lima (1995), a proteo fraternal dos

    indgenas e de suas terras eleva-se ao patamar de interesse pblico, dentro de um

    discurso genrico de direitos indgenas, independentemente da viso desses povos

    sobre o seu destino.

    23BRASIL, Decreto n. 9214, de 15 de dezembro de 1911. Regulamenta o Servio de Proteo aosndios e proteo aos trabalhadores nacionais. Disponvel em . Acessoem: 23 de julho de 2007.

    24Em 1918, a lei oramentria 3454 transferiu a tarefa de localizao de trabalhadores nacionais parao Servio de Povoamento, segundo constata Souza Lima em O governo dos ndios sob a gesto doSPI. Conforme referncias ao final.

    25 Verifique-se as posies de aberto extermnio dos ndios, como esposada publicamente peloDiretor do Museu Paulista, Herman von Jhering, com relao aos Kaingang, em artigo publicado em1908 na revista desta instituio Maiores detalhes sobre a polmica em Gagliardi p 71-76 conforme

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    Segundo Gagliardi (1989, p.191), Cndido Rondon defendia a

    garantia efetiva da posse da terra aos indgenas, dentro do interesse nacional,

    aceitando mudanas de seu habitat para que pudessem viver em outras terras

    "ainda mais frteis".

    Assim, o Regulamento do Servio de Proteo aos ndios,

    Decreto 9214 de 15 de dezembro de 1911, em artigo 3, determinava a

    regularizao de terras que estivessem atualmente ocupadas", ou seja, seriam

    objeto de proteo na medida em que os povos indgenas tivessem alcanado a

    primeira fase de fixao, negando-lhes, assim, aspectos importantes de cultura na

    relao com seu territrio.

    Souza Lima (2005, p.32) esclarece sobre o conceito de ocupao:

    Para que, dentro dos marcos evolucionistas, se caracterize ocupao necessrio

    o grupo ter deixado de ser nmade, deixado de ser uma horda e se fixado num

    territrio. pois da que advm o atualmente da expresso.

    A sedentarizao dos povos indgenas era vista como um passo

    adiante no processo de civilizao. A tarefa de proteo implicava na

    descaracterizao progressiva de um ser original (SOUZA LIMA, 2005, p.32).Para esta finalidade, a atrao dos ndios era prevista pelo

    Regulamento do Servio de Proteo aos ndios mencionado, em artigo 14:

    A diretoria, por intermdio dos inspetores, procurar, por meios brandos,atrair os ndios que viverem em estado nmade e prestar aos que semantiverem em promiscuidade com civilizados a mesma assistncia que lhecabe dispensar aos mais ndios26.

    Durante os primeiros anos da Repblica o Cdigo Civil (Lei 3071,

    de 1 de janeiro de 1916) promulgado, definindo um regime de tutela aos ndios,

    pelo qual eram considerados relativamente capazes, e a sua proteo cessaria na

    medida em que se tornassem integrados.

    26BRASIL, Decreto n. 9214, de 15 de dezembro de 1911. Regulamenta o Servio de Proteo aosndios e proteo aos trabalhadores nacionais. Disponvel em . Acessoem: 23 de julho de 2007

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    A tutela seria regulamentada em detalhes no Decreto n. 5484 de

    27 de junho de 1928 que estabelece uma categorizao dos ndios27, segundo seu

    grau civilizatrio, traado em funo de sua relao com a terra, definindo assim o

    exerccio de seus direitos (SOUZA LIMA, 2005, p.32).

    Os direitos territoriais indgenas somente ganham status

    constitucional a partir da Carta de 1934, nos termos do artigo 129: "Ser respeitada

    a posse de terras de silvcolas que nelas se achem permanentemente localizados

    sendo-lhes, no entanto, vedado alien-las". 28

    A proteo constitucional dos direitos indgenas pautava-se na

    integrao dos ndios comunidade nacional29, prosseguindo na perspectiva

    etnocntrica de proteo de terras indgenas, desde que os indgenas estivessem

    sedentarizados.

    Ao longo da vigncia do SPI a demarcao de terras indgenas

    no foi estabelecida de acordo com a cosmoviso indgena. A regularizao de

    terras indgenas no era diferente daquela destinada as demais terras:

    [...] no se pressupunha a necessidade de levantamento de dados (semelhana de identificao) como condio para realizar umademarcao, passando provavelmente a escolha da terra a ser destinada aum grupo por critrios que no envolviam em absoluto qualquer idiarelativa a um territrio tribal originrio (SOUZA LIMA, 2005,p.34).

    Jurandyr Leite (1999, p.104-105) assevera que o paradigma

    assimilacionista influenciou diretamente no tamanho das terras demarcadas,

    exemplificando com a pequena dimenso destinada pelo SPI aos Terena e Guarani,

    no Mato Grosso do Sul. Dentro de uma perspectiva evolucionista, a demarcaovisava confinar os ndios em pequenos limites e compeli-los a uma relao produtiva

    com a terra.

    27 Numa viso evolucionista o decreto classifica os ndios como: i) nmades, ii) arranchados oualdeados, iii) pertencentes a povoaes indgenas ou iv) pertencentes a centros agrcolas ou quevivem promiscuamente com civilizados.

    28BRASIL. Constituio (1934). Disponvel em . Acesso em: 23 de julhode 2007.

    29 O artigo 5, inciso XIX da Constituio de 1934, estabelece competncia privativa da Unio paralegislar sobre este assunto

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    As terras atribudas pelo SPI para as populaes indgenas

    decorriam do processo de pacificao (sedentarizao e tutela), conforme

    esclarece Oliveira Filho (1999a, p.109). O autor indica que no havia preocupao

    da conexo entre cultura indgena e meio ambiente e, neste sentido, as terras eram

    muito menores do que aquelas nas quais vivia e transitava a populao indgena.

    O decreto n. 736 de 6 de abril de 1936 trouxe novo regulamento

    ao Servio de Proteo aos ndios30. Com relao s terras, em artigo 3,

    determinava demarcao de reas habitadas pelos ndios, buscando "legalizao da

    posse", impedindo, assim, "que sejam tratadas como se devolutas fossem".

    A Constituio Federal de 1937 tambm reconheceu o direito de

    posse das terras indgenas, em artigo 154. A Constituio Federal de 1946 no

    inova com relao s constituies anteriores.

    No final da dcada de 1940, aponta-se o surgimento de uma nova

    concepo de terras indgenas, que culminaria com a criao do Parque Nacional do

    Xingu, mediante o Decreto n. 50.455 de 14 de abri de 1961.

    Para Oliveira Filho (1999a, p.108-109) a noo de territrio

    indgena surge historicamente na ocasio dos debates relativos criao doParque Nacional do Xingu, nos quais foram apresentadas propostas de diversos

    antroplogos como Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira. A idia, pela

    primeira vez apresentada, era da demarcao de uma parcela extensa do territrio

    nacional para que, em funo dos recursos naturais existentes, os povos indgenas

    pudessem viver segundo seu modo de vida.

    A nova viso partia de segmentos cientficos que demonstravam

    preocupao com preservao do meio ambiente e a criao de um espao onde a

    aculturao ocorresse de forma paulatina (SOUZA LIMA, 1998, p.168).

    Apesar de encerrar um ideal que refletiria sobre a extenso das

    terras indgenas, ainda convivia-se com o padro de confinamento anterior,

    principalmente em locais onde a ao do SPI era implementada h muito tempo e

    tambm onde se fechavam as fronteiras agrcolas (SOUZA LIMA, 1998, p.169).

    30 BRASIL, Decreto n. O Decreto n. 736 de 6 de abril de 1936. Aprova, em carter provisrio, oRegulamento do Servio de Proteo aos ndios a que se refere a lei n. 24.700, de 12 de julho de1934 Disponvel em Acesso em: 23 de julho de 2007

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    A ratificao pelo Brasil da Conveno 107 da Organizao

    Internacional do Trabalho, mediante o Decreto n. 58.824 de 14 de julho de 1966,

    reconheceu o carter coletivo da terra indgena, no entanto, ainda operava com

    parmetros assimilacionistas.

    A normativa internacional determinava, em seu artigo 12, que os

    ndios no seriam deslocados de seus territrios sem seu consentimento, salvo por

    motivos de segurana nacional e no interesse do desenvolvimento econmico do

    pas (SUESS, 1980, p.109).

    A Lei 5.371, de 5 de dezembro de 1967 autorizou a instituio da

    Fundao Nacional do ndio (FUNAI) em substituio ao SPI, extinto em razo da

    crise gerada por inmeras denncias de corrupo e investigaes administrativas.

    Em 1967 a Constituio Federal outorgada durante o Regime

    Militar incluiu, dentre os bens da Unio, em seu artigo 4, inciso VI, as terras

    ocupadas por silvcolas. Em artigo 8, inciso XVII, alnea o, atribuiu Unio a

    competncia para legislar sobre a incorporao dos silvcolas comunho nacional.

    No artigo 168 assegura aos indgenas posse permanente das terras que habitam e o

    direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais.Estabelece, ainda, em pargrafos 1 e 2, a nulidade e extino

    dos atos jurdicos que tenham por objeto o domnio, a posse ou a ocupao de

    terras habitadas pelos indgenas, sem gerar direito indenizao contra a Unio ou

    FUNAI.

    Apesar da mudana na orientao com relao s constituies

    anteriores, pois as terras indgenas passavam a ser atribudas ao domnio

    patrimonial da Unio (SOUZA LIMA, 2005, p.50), ainda predominava a viso

    etnocntrica no que dizia respeito definio destas terras.

    Nos Comentrios Constituio de 1967 de Pontes de Miranda

    (1972, p.539) entende que a exigncia constitucional de permanncia para

    configurao da posse indgena envolve a "habitao", argumentando o autor: "Se l

    no habitam, no tm posse. Se l habitam, tm-na".

    A Constituio Federal de 1969 no traria modificaes com

    relao aos direitos anteriormente previstos.

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    A viso ocidental de territrio como lugar de moradia, habitao,

    no abrange a cosmoviso indgena, sua dimenso simblica e poltica, trazendo

    bices para a concretizao de direitos de vrias etnias, dentre elas, a Guarani, que

    ser objeto de estudo na prxima seo.

    A previso do procedimento demarcatrio previsto pelo Estatuto

    do ndio (Lei n. 6001, de19 de dezembro de 1973) inaugura a perspectiva dos

    estudos e levantamento de terras indgenas pelo Estado (SOUZA LIMA, 2005, p.51).

    O Estatuto do ndio ainda buscava a integrao dos ndios

    comunho nacional31. A perspectiva etnocntrica vigente poca no permitia

    analisar a reduo do tamanho das terras indgenas ou a transferncia de povos

    indgenas de um local para outro32 como uma interferncia no seu modo de vida

    (SOUZA LIMA, 1987, p.175-176).

    Os direitos territoriais indgenas estiveram garantidos no plano

    constitucional desde a segunda constituio republicana, porm sua efetivao

    sempre foi voltada aos interesses do Estado nacional, que assumia a tarefa de

    conduzir os povos indgenas civilizao: "Ora, se h um campo indigenista, ele se

    'funda' a partir da inexistncia [...] do direito autodeterminao dos povosindgenas" (SOUZA LIMA, 1987, p.197).

    Ao tomar a norma estatal como fonte exclusiva de regulao

    social, a cultura jurdica impunha aos povos indgenas a condio de realizao de

    seus direitos, a partir de sua prpria viso de mundo.

    Os ideais positivistas buscavam proteger os ndios do completo

    extermnio, mas ao operar de forma paternalista, no aceitava a viso do outro na

    definio e construo dos seus direitos. O panorama dos direitos indgenas sofreria

    alteraes significativas com a atuao do movimento indgena e seus apoiadores

    na dcada de 1980, conforme ser abordado na subseo seguinte.

    31 Assim sendo, foi parcialmente recepcionado pela Constituio vigente. No sentido de adequaoda legislao aos novos direitos indgenas, ainda tramita no legislativo o Projeto de Lei n. 2057, de1991, denominado Estatuto das Sociedades Indgenas. O acesso ao PL 2057/91 com seussubstitutivos pode ser feito pelo stio do Instituto Socioambiental. Disponvel em. Acesso: 29 de fev. 2008.

    32 Souza Filho (1987, p.120) informa que nos anos setenta houve vrias transferncias de povosindgenas para territrios diferentes

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    1.4 Novos direitos indgenas e a perspectiva do direito diferena

    O histrico do discurso dos direitos indgenas, que se inicia no

    protagonismo de atores no-ndios, ligados ao jusnaturalismo cristo, passando

    posteriormente pela influncia das doutrinas liberais, e no final do sculo XIX, pelo

    positivismo, tem base no monismo jurdico e na figura do Estado soberano.

    Em sua obra Pluralismo Jurdico, Wolkmer (2001) demonstra

    que o monismo o padro de juridicidade que reflete os ideais de certeza e

    racionalidade do projeto da modernidade burgus-capitalista. O autor entende que

    h um esgotamento deste modelo diante das transformaes advindas com a crise

    do capitalismo monopolista a partir dos anos sessenta e setenta (WOLKMER, 2001,

    p.58):

    [..] esta supremacia representada pelo estatismo jurdico moderno, quefuncionou corretamente com sua racionalidade formal [..] comea, com acrise de Capitalismo monopolista e a conseqente globalizao econcentrao do capital atual, bem como com o colapso da cultura liberal-

    individualista, a no mais atender o universo complexo dos sistemasorganizacionais e dos novos sujeitos sociais.

    Wolkmer (2001, p.90) destaca que o colapso desta ordenao de

    inspirao liberal-burguesa explica-se tambm pela falta de identificao do Direito

    com as prticas sociais comunitrias, operando com um sujeito de direito abstrato,

    que no acompanha o ritmo das novas demandas sociais.

    A privao de bens materiais e no materiais, gerados pelo

    modelo de desenvolvimento econmico e pelas transformaes na sociedade

    ensejam a reivindicao de novos direitos (WOLKMER,2001, p.90).

    Na tica do Pluralismo Jurdico, as manifestaes que objetivam

    conquistar novos direitos, constituem, por si, direitos que a prpria comunidade se

    outorga, independentemente da produo e distribuio legal, institucionalizada

    pelos canais oficiais do aparelho estatal (WOLKMER, 2001, p.91).

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    As novas demandas tambm surgem em funo de necessidades

    que so histricas e esto sujeitas a constante criao e redefinio (WOLKMER,

    2003, p.11-20).

    Neste sentido, os direitos indgenas podem ser denominados

    como novos. Conforme demonstra Thais Luzia Colao (2003, p.75-97) sempre

    houve previso legal sobre os povos indgenas ao longo da histria do Brasil, no

    entanto, buscava-se sua assimilao. Para a autora, os novos direitos envolvem a

    dimenso do reconhecimento dos direitos tnico-culturais.

    As demandas indgenas destacam-se na atualidade pela

    reivindicao do direito diferena, autodeterminao e reconhecimento da

    normatividade prpria. Os novos direitos indgenas, a partir das reivindicaes dos

    seus prprios atores, pautam-se no paradigma da alteridade.

    O ideal assimilacionista que vigorou na relao entre o Estado e

    os povos indgenas33foi duramente questionando pelo movimento indgena. Caleffi

    (2003, p.180) aponta a Primeira Reunio de Barbados de 1971, feita por

    antroplogos e indigenistas, e sua segunda verso, j com a participao de

    lideranas indgenas em 1977, como marcos na mudana do paradigma dadependncia dos povos indgenas com relao ao indigenismo oficial na tutela de

    seus direitos.

    Com o fortalecimento do movimento indgena no perodo de

    abertura democrtica na Amrica Latina34, foi que se obteve, o reconhecimento da

    formao multitnica e pluricultural do Estado-Nao em diversas constituies no

    33Carlos Frederico Mars de Souza Filho (1999, p.62-63) reflete que a cultura liberal-individualistaadotada na formao dos independentes Estados latino-americanos no reconheceu as diferenasdos povos indgenas, tratando-os como indivduos formalmente iguais. O autor aponta que osEstados nacionais surgidos no sculo XIX foram construdos imagem de seus colonizadores, comEstado nico e Direito nico, reprimindo violentamente as diferenas culturais, tnicas, raciais, degnero, dentre outras.

    34 Segundo Jos Bengoa, nos anos oitenta comeou o processo de organizao indgena e nadcada de 1990 j havia alcanado quase todos os pases da Amrica Latina. A emergncia da

    questo indgena para o autor apresenta-se, dentre outros, no sentido de que suas demandasreinventaram-se, tomando como central o componente identitrio, bem como pelo seu destaque nacena pblica a partir desta poca. V.referncias, p.23.

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    incio da dcada de 199035, trazendo cena pblica uma nova concepo de

    direitos indgenas:

    Ao propor uma sociedade multitnica e multicultural os indgenas nosomente questionaram sua prpria situao de pobreza e marginalidade,mas tambm questionaram as relaes de dominao da sociedade latino-americana baseadas na discriminao racial, na intolerncia tnica e nadominao de uma cultura sobre as outras36 (BENGOA, 2000, p.27,traduo nossa).

    Da atuao do movimento indgena e seus apoiadores consagrou-

    se, no cenrio internacional, a Conveno n. 169 da Organizao Internacional do

    Trabalho37 de 1989. Este instrumento jurdico fundamental porque revisou a

    Conveno n. 107 de 27 de junho de 1957, que ainda considerava os povos

    indgenas como atrasados.

    A Conveno n. 169 da OIT destaca a importncia do

    reconhecimento dos direitos tnico-culturais e da autodeterminao dos povos

    indgenas.

    Recentemente foi aprovada na Assemblia Geral da Organizao

    das Naes Unidas a Declarao das Naes Unidas sobre os Direitos dos Povos

    Indgenas38. Dispe a Declarao que os povos indgenas tm direito livre

    determinao, o direito de preservao de suas prprias instituies polticas,

    jurdicas, sociais, sem perderem o direito de participarem, da vida poltica, cultural,

    social do Estado ao qual pertencem.

    35 Dentre estas constituies encontram-se: A Constituio colombiana (1991), a Constituiomexicana, com as reformas de 1992, a Constituio paraguaia (1992), a Constituio reformada daBolvia de 1994 e a Constituio peruana (1993). Estas informaes constam da obra de JulianaSantilli (2005, p.83). A autora afirma que todas essas Cartas rompem com o paradigma doassimilacionismo cultural.

    36 Al proponer una sociedad multitnica y multicultural los indgenas no slo han cuestionado supropia situacin de pobreza y marginalidad, sino que han cuestionado tambin las relaciones dedominacin de la sociedad latinoamericana basadas en la discriminacin racial, la intolerancia tnicay en la dominacin de una cultura sobre las otras (BENGOA, 2000,p.27).

    37 Ratificada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 143 de 20 de junho em 2002.

    38 Aprovada em 13 de setembro de 2007. Disponvel em:Acesso:1 maro de 2008

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    Caleffi (2003, p.186-188) aborda que a formao do movimento

    indgena nacional deu-se com o suporte do Conselho Missionrio Indigenista (CIMI)

    na reunio desses povos em diversas assemblias ao longo dos anos setenta,

    culminando com a criao da entidade nacional, Unio das Naes Indgenas

    (UNI). Em conjunto com a Associao Brasileira de Antropologia (ABA), o

    movimento indgena influenciou decisivamente na elaborao do texto

    constitucional39.

    Juliana Santilli (2005, p. 80-81) considera que a Constituio

    Federal de 1988 "claramente segue o paradigma do multiculturalismo",

    reconhecendo direitos culturais aos povos indgenas, quilombolas e outras

    populaes tradicionais. Ao superar o modelo universal, assim como os demais

    campos do saber, a Constituio e passa a reconhecer o espao do outro

    (PEREIRA, 2002, p.43).

    O conceito de Estado-Nao, to caro modernidade tem sido

    desconstrudo no somente pela atuao do movimento indgena, como pelos

    estudos culturais que o identifica em termos de uma "metfora narrativa" pela qual

    forjado o esquecimento do passado (BHABHA,1990, p.310).

    O reconhecimento do pluralismo tnico brasileiro e a garantia de

    direitos culturais aos grupos diferenciados rompem com o passado assimilacionista

    que buscava a homogeneid