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Famílias e Prisões: (sobre)vivências de tratamento penal

Familias e prisoes indicação bibliografia

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Famílias e Prisões: (sobre)vivências

de tratamento penal

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www.lumenjuris.com.br

EditoresJoão de Almeida

João Luiz da Silva Almeida

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Ana Caroline Montezano Gonsales JardimMestre em Serviço Social (PUCRS);

Professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS);Assistente Social da Superintendência dos Serviços Penitenciários.

Famílias e Prisões: (sobre)vivências

de tratamento penal

CriminologiaS: Discursos para a Academia

Editora Lumen JurisRio de Janeiro

2011

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Copyright © 2011 Ana Caroline Montezano Gonsales Jardim

Categoria: Criminologia

CapaMartino Dornelles Piccinini

Produção EditorialLivraria e Editora Lumen Juris Ltda.

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.não se responsabiliza pela originalidade desta obra.

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou pro-cesso, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A

violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 10.695, de 1º/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e

indenizações diversas (Lei nº 9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados àLivraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

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Aos meus avós Omar e Maria (in memorian).

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Agradecimentos

Agradeço imensamente a presença de DEUS, me aco-lhendo e me envolvendo em seu AMOR infinito.

À minha MÃE Ana Maria, agradeço pelo que sou hoje, pela força e sensibilidade que me dedica a cada dia. À minha irmã Maria Leonor por me trazer a alegria e a leveza da infân-cia. Ao meu BOMdrasto Felipe, sou grata pela paciência e cari-nho que me dispensa. Aos meus tios Antônio Braz, Ricardo, Flor e Wilma.

Ao meu querido Luiz Antônio pelo AMOR comparti-lhado, por nossa cumplicidade, pelo incentivo carinhoso e nossas PAIXÕES ALEGRES!!!!

À Beatriz Aguinsky, não só pela competência profissio-nal, mas principalmente pelo teu lado mais humano, dema-siadamente humano. Posso dizer que tenho muito ORGU-LHO de ter sido tua orientada. Contigo pude vislumbrar um Serviço Social aberto às manifestações sensíveis da VIDA. “Hermano dame tu mano vamos juntos a buscar una cosa pequeñita que se llama libertad”. (Mercedes Sosa)

Aos meus amigos Raquel, Luciano, Anelise, Daniele, Juliana, Thais, Mariana, Bebel, Eliana e Consuelo.

Aos queridos enigmáticos (Juli, Iuscia, Espiga, Raquel, Alex, Marcelo e Luiz Antônio), pelos odores dos flatos, por nossas heterotopais e percursos abolicionistas.

À Nelma e demais integrantes do instituto de Psicologia Social Pichon Rivière, por fazerem parte do meu processo de auto-ecoorganização.

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Agradeço imensamente a CAPES (Coordenação de Aper-feiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e ao PPGSS (Pro-grama de Pós-Graduação em Serviço Social) pela oportunida-de de ser bolsista e ter acessado à construção do conhecimento.

Aos professores Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Dra. Maria Isabel Barros Bellini, sou grata pelas contribuições e questionamentos que possibilitaram ampliar minha proble-matização acerca do objeto de estudo.

Aos funcionários do estabelecimento pesquisado, não apenas pela autorização formal para a realização do estudo, como também, pela disponibilidade com que me receberam.

Aos familiares que participaram deste estudo, sou MUI-TO grata, pois sem vocês essa pesquisa não teria sentido. “Ma-ria, Maria É o som, é a cor, é o suor é a dose mais forte e lenta de uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas aguenta... Mas é preciso ter força é preciso ter raça é preciso ter gana sempre. Quem traz no corpo a marca Maria, Maria mis-tura a dor e a alegria” (Milton Nascimento).

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Uma história da prisão nos é contada numa escrita que estabelece relações pessoais em histórias coletivas, pois

a experiência subjetiva não é absolutamente privada. As palavras por mais desordenadas que se encontrem

colocadas, são mais importantes para quem somos do que nossas personalidades vagamente policiadas. Enfrentar o

dia nosso de cada vida é ter a capacidade de permanecer sujeito dotado de vontade. As experiências terríveis

deixam traços e essas histórias somam-se a outras inúmeras histórias que fazem a nossa identidade.

Heleusa Câmara

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Sumário

1. Introdução ................................................................................ 1

2. As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades entre crimes, punições e seletividades ............................................................................ 11

2.1 A origem das Prisões no Brasil: entre ímpetos civilizatórios e práticas de barbárie ...... 122.2 As tendências de tratamento penal na atualidade frente à complexidade penitenciária .... 25

3. Família e prisão: da sociedade disciplinar ao sistema penitenciário ........................................................... 39

3.1 Família: Rainha e Prisioneira do Social ................... 403.2 Inserções das Famílias nas dinâmicas prisionais ... 50

4. O percurso de pesquisa ........................................................ 694.1 Construindo um caminho: a aproximação com o Paradigma da Complexidade e as possibilidades de uma visão Transdisciplinar ........................................ 694.2 Tipo de Pesquisa ......................................................... 784.3 Etapas, técnicas e participantes da pesquisa .......... 794.4 Análise e tratamento dos achados da pesquisa ...... 874.5 Cuidados Éticos .......................................................... 91

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5. Sobre as vivências e sobrevivências: histórias contadas a partir da auto-ecoorganização das famílias ...................... 93

5.1 Textos e contextos que tecem as histórias ............... 945.1.1 O que se esconde atrás do que aparece, e o que é revelado através do que não é permitido? ......... 955.1.2 Quem são as pessoas que contam as histórias? O entre-lugares de reconhecimentos ...................... 975.1.3 O Tratamento Penal Jurídico-Formal e a recursividade das dinâmicas prisionais: que relação é essa? .................................................. 103

5.2 Entre as redes de apoio e o fundo da cadeia ........ 1105.3 Os dias de visitas: os ritos e seus significados ...... 1145.4 Relações familiares na prisão: ressignificação de vínculos ............................................. 123

6. Considerações Finais .......................................................... 127

7. Referências Bibliográficas ................................................. 133

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1. Introdução

Uma viagem para além da especialização de um saber. Viagem a um lugar (prisão) que abre

os seus mecanismos internos através de sucessivas aproximações. Uma viagem que exige paixão

do pesquisador e uma linguagem motivada mais do que uma linguagem que pretenda

apresentar uma nova verdade.

Miriam Guindani

Iniciar um processo de pesquisa não ocorre de modo linear, vai acontecendo em múltiplas dimensões e despertando diferentes sensações, que, por vezes, não são tranqüilas, reme-tem também a tempestades. (MORAES, 2007) Tempestades de escolhas e caminhos a serem trilhados, sobretudo, em uma área do conhecimento com todas as implicações de uma escolha.

Os caminhos que levam até as prisões são vários, sobre-tudo, até o que se produz e o que se reproduz acerca dessa temática. De um lado, uma visibilidade perversa, dando ênfase às situações limítrofes de um sistema em exaustão; de outro, uma cientificidade conformada com a literatura que se produz, repetindo dados de relatórios oficiais, na busca de demonstrar que a pena de prisão nasceu falida, ou que não recupera infra-tores e tão pouco inibe criminalidades. (GUINDANI, 2002)

Como aponta Foucault (2003, p. 160) “não teria sentido li-mitar-se aos discursos pronunciados sobre a prisão. Há igual-

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mente os que vêm da prisão”. Por esse enfoque, conhecer o que vêm das prisões, ao invés de reproduzir o que se fala so-bre elas, busquei através deste trabalho, conhecer as experi-ências sociais dos familiares de apenados, os quais resistem e sobrevivem cotidianamente a um tratamento que é penal.

A escolha por este objetivo remete à minha viagem/ cami-nho/ percurso por entre a realidade prisional e suas dinâmicas. E nesse sentido, não poderia refletir e problematizar o sistema penitenciário sem vivenciar alguns aspectos cotidianos deste processo social em curso. Por outro lado, minha conexão com este contexto assume uma perspectiva relacional, em movimento.

Ao acessar este processo de pesquisa, tinha como refe-rência a experiência do processo de formação profissional, incluindo atividades de estágio curricular em Serviço Social, realizado em um estabelecimento prisional, como também, ati-vidades de iniciação científica, ambas relacionadas ao GITEP (Grupo Interdisciplinar de Trabalhos e Estudos Criminais penitenciários), na UCPEL (Universidade Católica de Pelotas). Atividades pelas quais tive a oportunidade de compreender e problematizar alguns aspectos relacionados ao sistema prisio-nal, principalmente quanto à importância da manutenção de vínculos socioafetivos durante o período de aprisionamento.

A partir da minha inserção no mestrado em Serviço Social na PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), pude problematizar outras dimensões da execução penal as quais inserem as famílias, e por meio de uma compreensão dialógica, pensar os antagonismos e com-plementariedades destes mecanismos. Deste modo, ao iniciar a pesquisa de campo e o contato com os familiares que parti-ciparam deste estudo, pude me afectar (SPINOZA, 1983) com o modo de inserção das famílias no tratamento penal.

Por traz de uma visão idílica, de que os familiares são indispensáveis ao apoio de que o preso necessita, existe um

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recuo do estado em garantir as mínimas condições de cum-primento da pena, deslocando gradativamente estas respon-sabilidades aos familiares. Através da minha inserção no GEPEDH (Grupo de Pesquisas e Estudos em Ética e Direi-tos Humanos), vinculado à linha de pesquisa Serviço Social e Políticas Sociais, pude compreender a importância do tema sob a perspectiva do olhar para as famílias em termos da orga-nização de políticas e programas de tratamento penal, princi-palmente conhecendo a experiências sociais destas famílias.

Segundo Spinoza (1983) são as afecções pelo objeto que tocam o pesquisador e o colocam em movimento, podendo aumentar ou diminuir potências de agir. Nesse sentido, e rom-pendo com uma visão de pesquisa que englobe apenas o agir racional moderno, penso que em muitos momentos o contato com o universo de pesquisa, sobretudo, em suas dimensões de produção de dor, também me afectaram, diminuindo minha potência em pensar modos de enfrentamento a estas práticas.

É impossível passar por uma prisão e sair sem marcas e fe-ridas. Acontece com todos. Com os que para lá são manda-dos, para cumprir uma pena. Com funcionários e visitan-tes. E, por que não, com os pesquisadores. (LEMGRUBER, 1999, pg. 13)

Ainda refletindo sobre minha conexão relacional com o tema de pesquisa, no entremeio da qualificação deste trabalho até sua finalização, passei a trabalhar em um estabelecimento prisional, e desse modo, a realização da pesquisa assim como o referencial abordado neste trabalho, o Paradigma da Comple-xidade, constituíram-se como subsídios ao enfrentamento de práticas que hoje vivencio. “Creio profundamente que quanto menos um pensamento for mutilador, menos mutilará os humanos”. (MORIN, 2001, p. 122)

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Também sob a possibilidade de um olhar em movi-mento, pude compreender o meu lugar de sujeito na pesquisa que realizei, pois na complexidade existe um elo inseparável entre o sujeito e o objeto, ou seja, entre um sujeito pensante e o objeto pensado (MORIN, 2001). A problematização acerca da relação sujeito/objeto passou a me afectar a partir de minha inserção técnica no sistema prisional. Pois também eu passei a fazer parte dos mecanismos de controle penal (os quais foram pensados, analisados e questionados por mim), e nesse sen-tido, a reflexão cotidiana quanto a estas práticas é indispensá-vel ao enfrentamento das condições que as produzem.

Se parto do sistema auto-eco-organizador e remoto, de com-plexidade em complexidade, chego finalmente a um sujeito reflexivo que não é outro senão eu próprio que tento pen-sar a relação sujeito-objeto. E inversamente se parto deste sujeito reflexivo para encontrar o seu fundamento ou pelo menos a sua origem, encontro a minha sociedade, a história desta sociedade na evolução da humanidade, do homem auto-eco-organizador. (MORIN, 2001, p. 64)

A prisão tem sido objeto de estudos de diferentes autores e áreas diversas, transcendendo discussões outrora circunscri-tas apenas aos operadores do direito, haja vista a necessidade de uma visão multidimensional e transdisciplinar em rela-ção ao tema. A produção de conhecimento em Serviço Social nesta área manifesta-se de forma incipiente, ainda assim, os trabalhos e pesquisas realizados por assistentes sociais, carac-terizam-se pela visibilidade às dinâmicas e processos sociais vigentes no sistema penitenciário.

Enfatizo as produções do Serviço Social, pois também fui afectada pelo discurso que constitui o hábitus acadêmico (BOR-DIEU, 1989), de que os assistentes sociais apenas operacionali-

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zam intervenções, como se esta área não estivesse apta a pro-duções acadêmicas e pesquisas que apontem dados científicos da realidade social, contribuindo à produção de conhecimento.

Entre as pesquisas realizadas pelo Serviço Social e que demarcam o estado da arte na produção de conhecimento da profissão sobre o tema, destaca-se a obra de Maria Palma Wolf (2005), Antologia de vidas e Histórias na Prisão, pela qual a autora demonstra a realidade prisional em suas mais diversas dimensões, desde as expressões da Questão Social, perpas-sando também pelo contexto familiar dos apenados, suas his-tórias de vida e demais elementos que configuram o espaço penitenciário, como o trabalho prisional e a elaboração de lau-dos sociais. Outro trabalho com bastante relevância é a tese de Miriam Guindani (2002), Violência e Prisão: uma viagem na busca de um olhar complexo, onde a autora se propõe a dar visi-bilidade ao fenômeno da violência no sistema penitenciário e sua articulação com a sociedade, do qual é parte e expressão.

Também é significativa a contribuição da dissertação Mulher de preso, mulher de respeito: uma etnografia sobre as relações familiares entre as mulheres e seus homens presos no sistema prisio-nal do RS, na qual a autora, Simone Ritta dos Santos (2002) descreve como as mulheres (mães, esposas e irmãs) partici-pam das dinâmicas que se instituem através das visitas, como também, suas organizações externas em função do aprisiona-mento de seus parentes, de modo a lidar com os estigmas e as implicações de serem mulheres e parentes de sujeitos presos.

Entre outros trabalhos de pesquisa, desenvolvidos por assistentes sociais, tem-se os realizados por Andréa Torres: Direitos Humanos para presos? Desafios e compromisso ético e polí-tico do Serviço Social no sistema penitenciário; e Para além da pri-são: experiências significativas do Serviço Social na penitenciária feminina da capital/SP (1978 – 1983). Também por Rosângela

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Peixoto Santa Rita – Mães e crianças atrás das grades: em questão o princípio da dignidade da pessoa humana; por Maria Auxilia-dora Cesar – Exílio da Vida: O cotidiano de mulheres presidiárias; e o de Tânia Maria Dahmer Pereira: Um estudo dos valores do Assistente Social no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro.

Contudo, a problematização acerca da inserção dos familiares nos mecanismos de tratamento penal, tematizando a família como co-participante na execução da pena, mostra--se como um objeto de investigação até agora pouco explo-rado, em virtude de que os estudos e análises centram-se na importância de se manter vínculos durante o cumprimento da pena, como um meio de se acessar o próprio tratamento penal negligenciado pelo sistema, onde se consideram os familiares como indispensáveis para que os parentes presos possam suportar o ambiente de privações.

A discussão que se centra na família como “peça” impor-tante para se pensar no tratamento penal, e uma possível ressocialização dos apenados através da família (SCHMITD, 1984) reveste-se de um paradoxo apresentado por este fenô-meno, configurando-se pela possibilidade de que ao adentrar e participar do tratamento penal, as próprias famílias podem estar sendo penalizadas.

A obra de Dráuzio Varella, Estação Carandiru (2005), ape-sar de não ser considerada como um trabalho acadêmico, ou fruto de pesquisa social, apresenta um sensível relato de sua experiência como voluntário, o autor descreve o cotidiano pri-sional a partir das histórias contadas pelos apenados. Assim, contribui ao entendimento da realidade carcerária expres-sando falas e experiências de quem vive as dinâmicas produzi-das pela prisão. Entre várias expressões encontradas no livro, destaca-se a seguinte: “família puxando a pena” (VARELLA, 2005), ou seja, que cumpre a pena junto com o apenado, pas-sando também pelo seu próprio “tratamento penal”.

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Tendo por base este contexto, e o questionamento de que as famílias podem passar por processos de penalizações, é que cheguei até este percurso. “O meu percurso é um movi-mento em duas frentes, aparentemente divergentes, antagôni-cas, mas para mim inseparáveis”. (MORIN, 2001, pg. 25). Essa compreensão faz parte de minha trajetória com o sistema pri-sional, pelo qual, ao mesmo tempo em que pesquiso e aponto reflexões sobre o objeto, passei a ser desafiada cotidianamente, através de um movimento dialógico, a pensar em estratégias possíveis que reduzam as dores e perversidades prisionais.

Poucos são os trabalhos específicos sobre famílias e pri-sões, de modo geral, entre os autores que escrevem sobre o funcionamento das prisões, que desvelam as “regiões escondi-das de nosso sistema social” (FOUCAULT, 2003, p. 2), alguns apontam em seus trabalhos a família em um item ou subitem, como a importância de se manter vínculos, numa expectativa de apoio ao preso, ou então enquanto grupo de referência.

A família aparece como um elemento significativo no pro-cesso de penalização e de execução penal (...). Repercute no cumprimento da pena, pois sua presença representa a manutenção de vínculos sociais e é um recurso frente às limitações materiais, administrativas e jurídicas existentes na prisão. (WOLF, 2005, p. 34)

O termo Tratamento penal é utilizado neste trabalho não só sob o ponto de vista jurídico-formal, pela configuração do conjunto de serviços e atendimentos destinados aos sujeitos que estão cumprindo pena privativa de liberdade, tendo como marco legal a Lei de Execuções Penais de 1984 (LEP), como também, pela polissemia que envolve o termo tratamento, sobretudo, penal, cujo enfoque pode remeter às práticas que são penais e geram penalizações. Na delimitação do tema de

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pesquisa, utilizo o termo apenado (s) para explicitar que todos os familiares entrevistados, realizam visitas para sujeitos pri-vados de liberdade que já estão em cumprimento de pena. Durante o trabalho, a terminologia preso é utilizada no sentido de remeter aos sujeitos como aprisionados no sistema peniten-ciário e, não obstante, aprisionados/presos em suas dinâmicas.

Também foi neste percurso que me dei conta que sempre havia trabalhado com o termo família, embora tivesse escrito e problematizado bastante o modelo nuclear instituído. Passei então pensar em Famílias, e o que aparentemente parece um detalhe, ampliou bastante minha compreensão sobre o tema.

Impõe-se pontuar a utilização do termo “famílias”, uma vez que há uma diversidade de relações e formatações do núcleo familiar, que preconizam a abrangência da refle-xão quanto às configurações dos grupos familiares. (DE-BASTIANI, BELLINI, 2007, p. 78)

A partir destas reflexões e questionamentos, o objeto desta pesquisa, foi delimitado no seguinte tema: A inserção de familiares de apenados nos mecanismos de tratamento penal, em um estabelecimento prisional de Porto Alegre RS, compreendendo o período de maio à agosto de 2009.

O objetivo geral da pesquisa foi conhecer a experiência social vivenciada pelos familiares de apenados no decorrer da pena privativa de liberdade, em relação a sua inserção nos mecanismos de tratamento penal. O propósito da pesquisa situa-se na perspectiva de que seus resultados possam oferecer subsídios ao enfrentamento de práticas penais-punitivas que envolvem a família no sistema penitenciário.

Os objetivos específicos foram: 1) Analisar a produção bibliográfica acerca das tendências de tratamento penal na atualidade, sobretudo, os mecanismos que envolvem as famí-

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lias; 2) Identificar quais são os mecanismos de tratamento penal, previstos formalmente, que englobam a inserção das famílias no tratamento penal; 3) Conhecer a experiência social dos familiares de apenados em relação aos mecanismos de tratamento penal; 4) Conhecer as concepções dos profissio-nais integrantes das equipes de classificação (CTCS) em rela-ção à inserção das famílias no tratamento penal, a partir de critérios classificatórios pautados pelo principio de individu-alização da pena, os quais prevêem a inserção das famílias; 5) Analisar os procedimentos disciplinares no cotidiano das dinâmicas prisionais, dirigidos aos familiares.

O problema de pesquisa consistiu na seguinte ques-tão: Qual a experiência social vivenciada pelos familiares de apenados de um estabelecimento prisional de Porto Alegre/RS, em decorrência de sua inserção nos mecanismos de tra-tamento penal? Complementado-se através de outras cinco questões norteadoras: 1) Quais as principais tendências de tratamento penal na atualidade? 2) Quais são os mecanismos de tratamento penal, previstos formalmente, que englobam a inserção das famílias no tratamento penal? 3) Qual a experi-ência social dos familiares de apenados em relação aos meca-nismos de tratamento penal? 4) Quais as concepções dos pro-fissionais integrantes das equipes de classificação (CTCs) em relação à inserção das famílias no tratamento penal, a partir de critérios classificatórios pautados pelo principio de individua-lização o da pena, os quais prevêem a inserção das famílias? 5) Que procedimentos disciplinares, no cotidiano das dinâmicas prisionais, são destinados aos familiares?

Buscando responder a essas questões, bem como ao pro-blema de pesquisa, de acordo com o objetivo geral e com os objetivos específicos, a partir do tema escolhido, o trabalho está estruturado em cinco capítulos. Através desta apresentação,

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busquei não somente contextualizar o tema proposto, como tra-zer elementos de minha implicação e afecções pelo objeto, apon-tando alguns aspectos do processo de construção da pesquisa.

No segundo capítulo abordo reflexões sobre as configu-rações penais no Brasil, desde a origem da pena de prisão, perpassando por ímpetos civilizatórios e práticas de barbárie, até as tendências de tratamento penal na atualidade frente à complexidade penitenciária. Após esta problematização, no terceiro capítulo, apresento a análise teórica sobre a constru-ção social do sentido de família, alcançando não só as famílias em uma sociedade disciplinar, como também, nas dinâmicas prisionais, a partir dos modos de inserções das famílias no sistema penitenciário e as ambigüidades correspondentes.

O percurso metodológico, bem como, o paradigma epis-temológico que embasam este trabalho, são apresentados no quarto capítulo, seguidos dos demais elementos de pesquisa, como o tipo, técnicas, e sujeitos participantes. As histórias alcançadas que revelam as experiências sociais em relação à inserção das famílias no tratamento penal, bem como o fun-cionamento das dinâmicas prisionais enquanto um sistema social complexo estão presentes no capítulo cinco. Ao final são apresentadas algumas considerações sobre os achados da pes-quisa e necessidades de enfrentamento às práticas produzidas pelo sistema prisional.

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2. As configurações prisionais no Brasil: (des)proporcionalidades

entre crimes, punições e seletividades

Violento o pássaro que luta contra os arames da gaiola, ou violenta será

a imóvel gaiola que o prende?

Rubem Alves

O sentido atribuído a crime, bem como suas definições, vem perpassando diferentes contextos sociais, sendo acompa-nhado de respostas distintas baseadas nos códigos valorativos que cada sociedade opera diante de suas configurações eco-nômicas, políticas, culturais e punitivas. O que indica que o crime não é uma categoria natural ou atemporal, mas sim de caráter histórico, uma construção social (BERGMAN e LUCK-MANN, 1985) que acompanha as transformações societárias.

Nils Christie (1997) afirma que, ao invés de existirem em si mesmas, ações se tornam, pois só adquirem significados através de processos sociais. Do mesmo modo ocorre com o que se passa a denominar de crime, já que este só existe a partir do momento em que são acionados, através de proces-sos sociais, sentidos em tensão e construção que, assim, então, conferem significados específicos aos atos.

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Neste contexto, a(s) penalidade(s), os arranjos penais, surgem como um meio de responder aos crimes, acompa-nhando as necessidades de controle social punitivo a partir de cada configuração socio-histórica. Sob tal perspectiva, neste capítulo, tenho por objetivo abordar como se deu a construção social do(s) sentido(s) da punição no Brasil, bem como de suas configurações prisionais, não a partir de uma correlação linear entre crime e punição, mas percebendo a historicidade e o modo dialógico e complementar como essa relação produziu e produz sentidos, tanto no espaço prisional como extramuros.

2.1. A origem das Prisões no Brasil: entre ímpetos civilizatórios e práticas de barbárie

A existência das penas sob forma de suplícios corporais registra-se, no Brasil, a partir da colonização portuguesa, quando a concepção de um Direito Penal de base medieval ocorreu junto a outros meios de propagação de uma cultura advinda do modelo medieval europeu (SOARES; INGEN-FRITZ, 2002). Tal concepção, herdada de Portugal legalizou--se no Brasil através da instituição das ordenações Filipinas,1 que constituíram a base do Direito no país. Mesmo com o pro-cesso de independência brasileiro, algumas de suas disposi-ções vigoraram até meados do século XIX. Apenas em 1916 é que foi promulgado o primeiro código civil brasileiro.

A resolução dos conflitos sociais fundamentava-se larga-mente nos preceitos religiosos, sendo o crime confundido com

1 As ordenações Filipinas correspondiam ao ordenamento jurídico em vigor à época do Brasil Colônia, tendo sua origem em Portugal e no Brasil, a partir de decretos onde se afirmava uma concepção européia e, sobretudo, portu-guesa no que tange aos conflitos sociais (SOARES; INGENFRITZ, 2002).

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o pecado e com a ofensa moral,2 punindo-se severamente os hereges, apóstatas, feiticeiros e benzedores. Em consonância com a noção de proporcionalidade estabelecida nas sociedades típicas do antigo regime, Aguirre (2009) menciona que o castigo aplicava-se de fato, sob mecanismos específicos, como execu-ções públicas, açoites, trabalhos públicos, degredos e marcas no corpo, demonstrando, assim, tipos de penalidades corporais correspondentes às ofensas morais.

Neste contexto a punição tinha como foco reparar o mal cometido, objetivando uma relação de proporção ao delito, estabelecendo como elementos constitutivos da pena aspec-tos como a exclusão, a humilhação, o trabalho forçado e até o sacrifício do corpo como forma de expiação. Os suplícios caracterizavam-se como uma arte quantitativa do sofrimento, correlacionando os tipos de ferimentos físicos, sua qualidade e intensidade de acordo com a gravidade dos crimes cometi-dos, variando, também, conforme a pessoa do criminoso e o nível social de sua vítima, por vezes culminando com a própria morte do indivíduo (FOUCAULT, 2007).

Assim, a modalidade punitiva que se consolidava atra-vés das penas corporais objetivava uma relação de temor ao castigo, através de execuções como: açoites, mutilação, quei-maduras e degredo,3 bem como pena de morte, que era pra-ticada através de mecanismos como tortura e uso de fogo. Outro modo de aplicação do castigo ocorria através da cha-mada “morte para sempre”, em que o corpo do condenado

2 A moral é problematizada por Foucault (2005) como um conjunto de va-lores e regras de ação propostos aos sujeitos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos. Os aparelhos prescritivos são instituições, como a família, a escola, a prisão etc.

3 As formas de degredo utilizadas ocorriam tanto com europeus que come-tiam crimes e eram trazidos ao Brasil, quanto brasileiros que eram expulsos de sua terra de acordo com o crime cometido.

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ficava suspenso e, apodrecendo, vinha ao solo, conservando--se assim até que religiosos recolhessem seus restos.

Referindo-se à realidade da América Latina após os regi-mes coloniais, Aguirre (2009) demonstra como se deu a cons-trução de práticas sociais e jurídicas com forte correlação de forças entre si, durante os processos de formação de Estados--Nação. Em nome dos direitos individuais, calcados em uma ideologia liberal, legalizaram-se diferenças que já apontavam categorias a serem selecionadas para a (não) proteção do Estado e das normas jurídicas.

Depois da expulsão dos regimes coloniais espanhol e por-tuguês, os novos países independentes iniciaram um pro-longado e complicado processo de formação do Estado e da nação, que, na maioria dos casos, foi moldado pelo contínuo contraponto entre os ideais importados do re-publicanismo, liberalismo e o império da lei, e a realidade de estruturas sociais racistas, autoritárias e excludentes. Em nome dos direitos individuais promovidos pelo libe-ralismo, as elites crioulas que tomaram o poder do Estado privaram as populações indígenas e negras das pequenas, mas de modo algum insignificantes, vantagens que lhes ofereciam certas normas legais e práticas sociais protecio-nistas estabelecidas durante o período colonial. Detrás da fachada legal da república de cidadãos, o que existia eram sociedades profundamente hierárquicas e discriminató-rias (AGUIRRE, 2009, p. 37).

Após a proclamação da independência brasileira, em 1822, foi sancionado no ano de 1830 o denominado Código Criminal do Império, instituindo a pena de prisão como forma básica de punição, prevendo a existência de agravantes em seu cumpri-mento de acordo com a infração cometida (CORDEIRO, 2006). A relação entre Igreja e Estado fundamentava a teoria da pena,

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haja vista a conformação de um imaginário social4 em relação aos que cometiam crimes, ainda representados por ofensas morais e religiosas, bem como se admitindo a pena de morte para os crimes considerados mais graves.

Durante o século XIX a penitenciária foi adotada como um padrão institucional carcerário na Europa e nos Estados Uni-dos, configurando-se como um novo protótipo de penalidades. O modelo arquitetônico que embasava o projeto punitivo foi inspirado no panotico de Jeremy Bentham (FOUCAULT, 2007), cuja estrutura permitia um alcance de vigilância em relação ao todo. No que tange à estrutura normativa, ainda existia o predomínio da moral religiosa, conferindo a esses espaços um caráter de expiação, alternando ajuda humanitária e religiosa, com estrutura moderna e militar. Esse complexo de penalida-des chegou ao Brasil sob um projeto de imitação dos padrões civilizatórios europeus que, conforme Aguirre (2009), pode ser representado pelo desejo de alcance à “causa moderna”.

Desde meados do século XIX foram construídas algumas penitenciárias modernas na região [América Latina], bus-cando conseguir vários objetivos simultâneos: expandir a intervenção do Estado nos esforços de controle social; pro-jetar uma imagem de modernidade geralmente concebida como a adoção de modelos estrangeiros; eliminar algumas formas infames de castigo; oferecer às elites urbanas uma maior sensação de segurança e, ainda, possibilitar a trans-formação de delinqüentes em cidadãos obedientes da lei. Sem dúvida a fundação destas penitenciárias não signifi-cou, necessariamente, que tais objetivos tenham sido uma

4 Imaginário Social são sentidos organizadores (mitos) que sustentam a ins-tituição de normas, valores e linguagem, pelos quais uma sociedade pode ser visualizada como uma totalidade. A partir desta perspectiva, normas, valores e linguagem não são só ferramentas para fazer frente as coisas, mas também os instrumentos para fazer indivíduos. (FERNÁNDES, 1993)

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prioridade para as elites políticas e sociais. De fato a cons-trução de modernas penitenciárias foi a exceção, não a re-gra, e seu destino nos oferecerá evidências do lugar mais marginal que ocuparam dentro dos mecanismos gerais de controle e de castigo. (AGUIRRE, 2009, p. 41)

Havia, portanto, a coexistência entre um desejo civilizató-rio e a realização cotidiana de práticas de barbárie, pois, ainda que com influência de ideais reformadores, a realidade bra-sileira caracterizava-se por ser a de uma sociedade marcada pela desigualdade advinda, sobretudo, da divisão homem livre e branco versus homem negro e escravo. Em que pese à matéria penal do código de 1830, pode-se considerar um sen-tido de ruptura representado pelo embasamento jurídico-legal proposto à época, pois acompanhava as discussões iniciadas na Europa que já apontavam para a necessidade de reformas penais. No entanto, há que se considerar o descompasso entre a norma jurídica e as práticas aplicadas no período.

Um dos motivos para tal incompatibilidade pode estar referido ao fato de que se apostava em um modelo de justiça que não dava conta da diversidade regional brasileira, pois o paradigma civilizatório europeu procurava enquadrar juri-dicamente um modelo de homem branco médio numa socie-dade escravista como a brasileira, não havendo, neste ideário, lugar para homens negros e índios, desencadeando métodos desiguais de aplicação na norma jurídica. O modelo civiliza-tório que era propagado no continente europeu, através do grande encarceramento (FOUCAULT, 2007) – prendem-se lou-cos, vagabundos, prostitutas, limpando-se o espaço da rua – encontrava divergências políticas e ideológicas na sociedade escravocrata brasileira, onde, embora fosse instituído um lócus de punição e confinamento, ainda assim, “sobreviviam” os castigos públicos, sobretudo, destinados aos escravos e

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índios, deflagrando uma condição de subalternidade cultural, econômica e étnica.

Através da consolidação do período republicano brasi-leiro, alterou-se o Código Criminal do Império, sendo insti-tuído, em 1890, o Código Penal da República. Foram preconi-zadas, através deste, as modalidades para o cumprimento da pena de prisão, eliminando-se as penas perpétuas, corporais e coletivas, restringindo-a à privação da liberdade e normati-zando-a, de forma a fixar o tempo para sua execução e lugares específicos para sua aplicação. No entanto, a constituição legal do Código de 1890 não garantiu sua aplicabilidade imediata, pois, logo após a publicação, em face de uma realidade na qual ele não se operacionalizava de forma direta, houve a neces-sidade de submetê-lo a reformas (ZAFFARONI; PIERAN-GELI, 1997). Desse modo, destaca-se o decreto nº 22.213, de 14 de dezembro de 1932, denominado como consolidação das Leis Penais de Piragibe, pois foi criado pelo desembargador Vicente Piragibe, que, à época, vislumbrou um modo de redi-gir uma consolidação de leis penais para seu próprio uso, cir-cunstância que foi aprovada e vigorou até 1940 (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1997), quando um novo Código Penal surgiu.

O surgimento das prisões e a instituição de um estabe-lecimento prisional ocorreram no final do século XIX e início do século XX, período compreendido entre a instituição do código de 1890 e a do aparato legal que garantiu sua efetiva-ção. Desde então, foi implementada uma arquitetura própria para a pena de prisão (CORDEIRO, 2006), vigorando também a projeção de celas individuais e oficinas laborativas.

A pena privativa de liberdade, não obstante, conforme Fou-cault (2007), possuidora de gênese em práticas de enclausura-mento que se instituíram no exterior da teoria penal e por outras razões – como, por exemplo, as workhouses e as prisões eclesiás-

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ticas – foi assimilada, apropriada e fomentada a partir dos ideais iluministas,5 vinculando-se ao nascimento da burguesia indus-trial e do sistema de acumulação capitalista, quando a estru-turação de um modo de produção alterou também as relações sociais. “Para que a burguesia mantivesse a ordem estabelecida, era importante ter um instrumento capaz de proporcionar disci-plina e ordem, esse instrumento foi a prisão” (BARRETO, 2005, p. 18). A partir dessa concepção, pode-se perceber a relação de utilidade atribuída ao nascimento das prisões, rompendo-se com uma visão naturalista e de evolução do sistema de justiça criminal, superando a idéia de que, em detrimento dos suplí-cios, “nasceram” configurações penais humanitárias.

A prisão, como pena universal, no que tange ao princípio da igualdade promulgado pelos ideais advindos da revolu-ção burguesa, assume novamente o preceito de proporcio-nalidade, se não pelo sofrimento do corpo, pelo tempo de liberdade que será subtraído dos indivíduos. “A proporciona-lidade das penas para os delitos refletia e reflete ainda a nova ideologia capitalista da sociedade: para um trabalho, um salá-rio proporcional; para os delitos, penas proporcionais” (FOU-CAULT, 2007, p. 153). Este modelo prevê a liberdade como foco central, o individualismo para competir na livre concor-rência do mercado.6

A liberdade passa a ser o foco de sanção do Estado, de modo que ao romper o pacto social os indivíduos teriam seu maior bem confiscado: a própria liberdade. É nesse cenário

5 O termo Iluminismo indica um movimento intelectual que se desenvolveu no século XVIII, cujo objetivo era a difusão da razão, a “luz”, para dirigir o progresso da vida em todos os aspectos. Mais do que um conjunto de idéias, foi uma nova mentalidade que influenciou grande parte da sociedade da época, de modo particular os intelectuais e a burguesia nascente.

6 O Liberalismo, enquanto doutrina econômica e política, mantém seu foco no indivíduo e em liberdades individuais – cada um é responsável por sua situação e obtenção dos requisitos necessários ao convívio em sociedade.

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que se produz a categoria social do criminoso, que passa a ser concebido como um indivíduo que, de forma livre e cons-ciente, comete atos ilícitos – delitos e/ou crimes – e, por inter-médio deles, rompe de forma voluntária com a moral social garantida pelos pactos e acordos tácitos que regem e susten-tam a sociedade (FAUSTINO; PIRES, 2007).

No Brasil essa assimilação iluminista das práticas de enclausuramento correspondeu, desde a independência, ao desejo de se apresentar como uma nação civilizada transitando entre uma perspectiva de acumulação primitiva, ao modo de acumulação capitalista, e uma trajetória de projetos moderni-zadores da nação.

A publicação do Decreto Lei de nº 2.848 de 1940, no perí-odo do Governo Getúlio Vargas, instaurou o atual Código Penal (cuja parte geral foi alterada em 1984, através da Lei 7.209, coirmã da Lei de Execução Penal – a Lei 7.210/84), pre-vendo novas regras para o cumprimento da pena, iniciando a problematização em torno do sistema prisional.

O Código Penal brasileiro de 1940 é saudado como aquele que finalmente incorpora as inovações trazidas por esta jo-vem ciência, ainda que com atraso em relação aos grandes centros e mesmo em relação a outros países da América Latina. (RAUTER, 2003, p. 67)

Por volta de 1942 registram-se as primeiras estatísticas acerca da população presa, publicadas pelo serviço de Esta-tística Demográfica, Moral e Política do Ministério da Justiça (COELHO, 2006). Os resultados apontavam os selecionados pelo sistema de justiça criminal, de forma a serem os pretos e pardos de baixa renda a categoria que predominava no espaço prisional, por cometerem delitos como roubos e furtos.

Na época, esses dados eram interpretados sob forte cunho moralizante, haja vista a percepção que se construiu da

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pobreza. Ao invés de se pensar a organização da sociedade como excludente de negros e pobres do processo de acumula-ção, via-se nestes o estereótipo do criminoso. O que o próprio autor vai denominar como uma “profecia autorrealizável”.

Os legisladores criam o crime ao elaborar leis cuja infra-ção constituirá comportamento criminoso; e essas leis são elaboradas de tal forma que as probabilidades de serem violadas por certos tipos sociais coincidem com as pro-babilidades imputadas ao desempenho de certos roteiros típicos. Nesse sentido, a marginalização da criminalidade consiste em imputar a certas classes de comportamento probabilidades elevadas de que venham a ser realizadas pelo tipo de indivíduo socialmente marginalizado. Mais: a forma pela qual as leis são formuladas e implementadas introduz elementos de self-fulfilling prophecy. Isto é, são criados mecanismos e procedimentos pelos quais se tor-nam altas as probabilidades empíricas de que os margina-lizados cometam crimes (no sentido legal) e sejam penali-zados como conseqüência (ou, inversamente, reduzem-se as probabilidades de que os grupos de status socioeconô-mico mais alto cometam crimes ou que sejam penalizados por suas ações ilegais). Por essa forma, dá-se a criminali-zação da marginalidade. (COELHO, 2005, p.285-6)

O crime e a ruptura com o pacto social, por parte das categorias selecionadas, passaram a ser encarados como con-dições pessoais, ou seja, centrando-se na (não) adaptação do indivíduo à sociedade. Tal fator não significa que a pobreza seja a grande responsável pela criminalidade, ou que só os pobres e excluídos cometam delitos, mas sim que configuram categorias sociais vulneráveis ao processo de exclusão e à san-ção do Sistema Penal.7

7 Chamamos de “sistema penal” ao controle social punitivo institucionaliza-do, que na prática abarca desde que se detecta ou supõe detectar-se uma

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Um dos principais ângulos da funcionalidade do sistema penal, tornando invisíveis as fontes geradoras da crimina-lidade de qualquer natureza, permite e incentiva a crença em desvios pessoais a serem combinados, deixando enco-bertos e intocados os desvios estruturais que o alimentam. (KARAM, 2005, p.67)

A relação de dominação e desigualdade no sistema de jus-tiça criminal sustenta-se através do discurso de que a aplicação da pena seria uma forma de se fazer cumprir a justiça, silen-ciando, assim, as contradições sociais que estão presentes nesse processo, cuja seletividade penal8 é a principal característica.

Ao problematizar as relações entre o sistema judiciário e a sociedade, Sabadell (2005) situa a perspectiva crítica de que essa relação se transforma em imposição de interesses por parte dos grupos que exercem o poder, permitindo em nível normativo que as diferenças em termos de status social sejam perpetuadas também nessa esfera pública. As desigualdades se manifestam através dos “bens” jurídicos que se produzem no sistema de justiça, ao qual nem todos possuem as mesmas riquezas para acesso. Àqueles que já estão fora do esquema de trabalho-consumo são destinados os serviços de defenso-rias públicas, cuja característica se revela pela precariedade do atendimento.

suspeita de delito até que impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação. Esta é a idéia geral de “sistema penal” em sentido limitado, englobando a atividade do legislador, do público, da polícia, dos juízes e funcionários e da execução penal (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1997, p. 70).

8 Entende-se por “seletividade”, ou atuação seletiva do Sistema de Justiça Cri-minal, a incidência dos aparatos e controles deste com maior ênfase (quanti-tativa e qualitativa) em pessoas e grupos específicos, haja vista as caracterís-ticas e dinâmicas do sistema e do seu funcionamento (CHIES, Mimeo).

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Para a manutenção da funcionalidade das prisões no Brasil, e do aparato repressivo que sustenta o sistema de jus-tiça criminal, reiterando a idéia de um sistema penal, foram sendo (re)criadas categorias punitivas de modo a legitimar as ações desenvolvidas no ambiente prisional, sobretudo ações de contenção e segregação.

As fontes da mudança penal e os determinantes das for-mas penais devem ser localizados não só no raciocínio pe-nológico, ou no interesse econômico, senão nas configura-ções de valores, significados e emoções que denominamos “cultura”. (GARLAND, 193, p.249)

As categorias punitivas que convergem em uma cultura de controle valem-se da construção do conceito de periculosi-dade, uma categoria amplamente difundida a partir da década de 1950, quando foram criados os centros de diagnósticos para o tratamento individualizado dos que cometiam crimes. Nesse sentido, Rauter (2003, p. 27) aponta que: “O crime, que ante-riormente era definido como transgressão à lei penal, converte--se em indício, em manifestação superficial que aponta para a personalidade do criminoso”. A existência de uma fusão entre a medicina e a criminologia passa a configurar-se como uma prá-tica pautada em um referencial etiológico-positivista, desenca-deando a “era da penalogia científica” (AGUIRRE, 2009).

Coexistindo com esse período histórico, a sociedade brasi-leira foi marcada por ciclos de ditaduras, redefinindo o espaço prisional. Entre outros elementos (como desaparecimentos, tor-turas, mortes e exílio), a prisão política foi amplamente usada como um recurso de censura e enclausuramento do que era inconveniente, tornando-se um dos meios de eliminar diferen-ças políticas que pudessem ameaçar o ordenamento vigente.

O confinamento de presos políticos é apontado como um dos fatores que favoreceu a organização, no espaço prisional,

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entre os presos comuns e as formas de pressão e resistência para a melhoria nas condições de atendimento (PEREIRA, 1991). No entanto, esse processo não ocorreu de forma homo-gênea, pois o convívio dentro das prisões já sinalizava uma diferenciação entre ambos: desde o pavilhão que ocupavam até o tratamento que recebiam da administração penitenciária.

A convivência entre os presos comuns e políticos refletia processos distintos em relação ao ambiente prisional, pois, a partir da diferenciação que representou a entrada de presos políticos, pode-se pensar na categoria social que foi constru-ída, o que lhes inferia certa superioridade moral em relação aos demais. Ao mesmo tempo, geravam visibilidade sobre o cotidiano da prisão, até então pouco problematizado. Alguns presos comuns, como estratégia de sobrevivência, agiam como delatores, situação que gerava desconforto e os separava em grupos distintos.

Os presos políticos, em geral, revelavam certa animosida-de em relação a estes. Esta atitude baseava-se na degenera-ção moral e participação como informantes (delatores) da polícia política, mas também nos preconceitos raciais e de classe que os presos políticos traziam. Estes sempre trata-vam de ostentar uma superioridade moral em relação aos presos comuns e, diante de autoridades e guardas, bus-cavam aparecer como indivíduos de maior “qualidade” que o gatuno vulgar e o temível assassino. Exigiam, com energia, respeito a seus direitos e esperavam receber um tratamento adequado das autoridades o que, geralmente, significava não serem tratados “como delinqüentes” ou misturados fisicamente com estes. (AGUIRRE, 2009, p. 67)

Ainda assim, houve momentos em que, face às condi-ções de vida no cárcere, os grupos precisavam juntar-se para enfrentar o poder institucional e reivindicar melhorias que

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lhes eram comuns para a sobrevivência na prisão. Por parte dos presos políticos, estes passaram a vislumbrar nos presos comuns possibilidades de conhecer a realidade carcerária em suas minúcias, de outro lado, os presos comuns enxergavam nos presos políticos o conhecimento da realidade social e jurídica e seus níveis de organização, situações que se a priori pareciam antagônicas, foram, aos poucos, constituindo um processo de complementariedade.

Nesse contexto, o sistema prisional começou a redimen-sionar algumas de suas práticas. Tem-se como exemplo uma das primeiras portarias penitenciárias,9 que proporcionou a regulação das visitas e das formas de contato com o mundo externo, através das visitas periódicas ao lar, hoje transfor-madas em saídas temporárias10 (PEREIRA, 1991). Tais possi-bilidades caracterizavam-se por seu critério assistencial, haja vista a necessidade de se ter bom comportamento para obter tais vantagens em relação aos demais presos. Nos anos de 1975 e 1977 foram implantadas as primeiras experiências de regime semiaberto. O cumprimento da pena poderia ser con-vertido do regime fechado para o semiaberto, a partir de ava-liações sistemáticas que visavam à averiguação e vigilância necessárias, de forma a garantir que o preso depositário de tal confiança não cometeria novas infrações.

9 Portaria 278/JSP/GDG, publicada na revista penitenciária n° 1 – junho/77 – Impressa Oficial. (PEREIRA, 1991, p. 56)

10 As Saídas Temporárias, como direito/benefício legal, são reguladas na Sub-seção II da Seção III (Das Autorizações de Saída) do Capítulo I (Das Penas Privativas de Liberdade) do Título V (Da Execução das Penas em Espécie) da Lei de Execução Penal – Lei n.º 7.210/84 – compreendendo os artigos 122 a 125 deste diploma. Sob o ponto de vista legal, podemos considerar que as Saídas Temporárias têm por principal objetivo a gradativa reinserção do apenado no meio social, a partir do estímulo ao senso de responsabilidade e disciplina, o qual favorece seu convívio social; nesse sentido, é instituto que se compatibi-liza com a lógica do sistema progressivo da pena. (CHIES, et. al 2006, p. 138)

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2.2 As tendências de tratamento penal na atualidade frente à complexidade penitenciária

A Lei de Execução Penal (LEP) de 1984, em vigor até hoje, surgiu como um instrumento normativo que conduz direitos e obrigações na privação de liberdade. Sob o ponto de vista da retórica jurídica, pode-se pensar que se constituiu como avanço e marco no sistema prisional por introduzir juridicamente a noção de direitos. Outra característica da LEP configura-se pela ênfase de seu artigo 1°: o cumprimento dos mandados existen-tes na sentença judicial, como também a instrumentalização de condições que propiciem a reintegração social do apenado.

Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as dis-posições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condena-do e do internado.

No entanto, a LEP apresenta alguns paradoxos entre dis-curso e realidade, pois, como aponta CHIES (2009), ao men-cionar a legislação, houve na retórica político-criminal uma apropriação do modo de tratar o “desviante” pautando-se pela lógica da (re)integração harmonizada ao meio social. Outro ponto destacado pelo autor é a perspectiva de existên-cia de objetivos isolados e incompatíveis para execução das condições de reintegração social, esses condensam a busca pela “justa medida” entre punição e caráter pedagógico.

Pode-se identificar, sob esse prisma organizacional, a pro-blemática que envolve as instituições prisionais, nas quais a punição e a recuperação, como dimensões retributiva e socioadequadora (educativa e terapêutica) do castigo, apa-recem em igual importância como objetivos da organiza-ção – objetivos formais, legalmente estabelecidos e declara-dos pelo seu caráter racional moderno. (CHIES, 2008, p. 62)

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Como meio de operacionalização do padrão socioade-quador, são previstas, através do tratamento penal, as CTCs (Comissões Técnicas de Classificações), cujos laudos e exames criminológicos surgem como instrumentos norteadores do princípio da individualização da pena privativa de liberdade (PEREIRA, 2006), seus focos recaem sobre os comportamen-tos dos indivíduos, criando-se tratamentos diferenciados e deferências num mesmo espaço prisional. A classificação penal torna-se um elemento capaz de abordar a dimensão socioadequadora, contemplando ao mesmo tempo aspectos disciplinares cotidianos e um referencial positivista calcado na conduta do indivíduo de modo a analisar sua vida anterior à prisão a partir de critérios normalizantes, excluindo-se os contextos sociais e culturais, aos quais estão inseridos.

Nesse sentido, os princípios da execução penal corres-pondem aos motes correcionalistas constituídos no séc. XX, os quais são apontados por Garland (2008, pg. 93), por ações como: “reabilitação, tratamento individualizado, senten-ças indeterminadas, pesquisa criminológica”. A partir deste ideal pautado no individuo e na construção de uma identi-dade vinculada ao crime, cria-se um híbrido entre o que autor denomina como o liberalismo do processo legal e as práti-cas punitivas de caráter correcionalista, a partir de um saber especializado.

Condições pessoais de cada preso legalizam-se através das manifestações de poder por parte da instituição, que de forma maniqueísta divide a população carcerária entre bons e maus, os que merecem o tratamento penal e a atenção tute-lada do Estado, e tantos outros que são distanciados das con-dições mínimas de sobrevivência dentro do cárcere. Todos devem guiar sua conduta pelo chamado proceder carcerário, que, segundo CHIES (2008, p. 27):

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Pode-se entender tanto pelo conjunto de regras que regu-lam o comportamento e os valores do grupo de encarcera-dos, como, também, a própria adequação fática e subjetiva dos reclusos a esse conjunto de regras.

Esses critérios surgem e decorrem de vários fatores e assumem diversificados sentidos, tanto como um “prolonga-mento da lei formal”, como através de suas brechas para a criação de códigos paralelos e ainda em face da especificidade das configurações carcerárias. Atuam de modo complemen-tar e por vezes antagônico, pois podem ser pensados como estratégias de resistência e/ou sobrevivência no cárcere em suas múltiplas dimensões, desencadeando, entre outros efei-tos, o de prisionização. (CLEMMER, 1970)

Os efeitos de prisionização são problematizados por Clemmer (1970) a partir da entrada dos indivíduos no sis-tema prisional, onde terão de se adaptar, necessariamente, às formas de vida daquele ambiente social, incorporando hábitos de conduta, usos, vocabulário e os códigos existentes, engajando-se na estrutura social, identificando e assumindo papéis, usando os símbolos desses papéis, seja nas vestimen-tas ou na conquista de seu espaço físico, coexistindo com os diversos grupos e lideranças.

A individualização da pena, um dos princípios instituí-dos na atual configuração penal, prevê entrevistas e avaliações, através das quais possam ser apreendidas as particularidades do sujeito preso e, assim, ser aplicadas as intervenções (puniti-vas ou recompensatórias) correspondentes. Os princípios que pautam o tratamento penal hoje ainda são regidos por códigos valorativos. Os indivíduos são vistos como (não) merecedores de seus direitos, precisam conquistá-los através de seu compor-tamento. Mesmo que esses direitos tenham atingido notorie-dade através de um discurso de humanização das penas, não se

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efetivam na realidade prisional, onde outros códigos coexistem. “A prisão não é somente uma expressão passiva da violência e dos modelos culturais instituídos, mas uma geradora de rela-ções instituintes” (GUINDANI, 2001, p. 23). Por essa perspec-tiva, a existência de códigos é problematizada a partir da defa-sagem existente entre a proposta legal e a realidade intramuros.

O contexto intramuros é caracterizado em sua multidi-mensionalidade e recursividade,11 através de diversos proces-sos sociais que constituem a realidade prisional. Entre estes, existem práticas que correspondem ao que Goffman (1990)12 denomina como sistema de privilégios, próprio de instituições totais. As dinâmicas que constituem o sistema de privilégios podem ser analisadas, desde o que o autor enuncia como pro-cesso de admissão, através do qual são retirados os apoios anteriores à prisão, que cada sujeito possui, como modo de preparação para o convívio no ambiente de privações. Este por sua vez, gera um processo de mortificação, pelo qual são diri-gidos recursos ao controle diário. Como elo entre o eu mortifi-cado e o sistema institucional e organizacional são acionados privilégios atentando à reorganização pessoal.

Ao mesmo tempo em que o processo de mortificação se de-senvolve, o internado começa a receber instrução formal e

11 Através do processo recursivo (MORIN, 2001) presente em um sistema com-plexo como a prisão, tem-se uma ruptura com a ideia simplificadora e linear de causa/efeito, uma vez que tudo que é produzido retroage sobre o que produziu. Nesse sentido, o sistema prisional através de suas dinâmicas que são produzidas a partir das interações entre indivíduos, retroage com num ciclo autoprodutor.

12 O estudo feito Erving Goffman (1990) foi realizado em hospitais psiquiá-tricos, no entanto, o autor ressalta que qualquer grupo de pessoas, desde prisioneiros até pacientes desenvolvem um estilo de vida própria a partir do nível de institucionalização ao qual estão expostos. Ressalta também, que para conhecer estes mundos distintos é preciso submeter-se à companhia dos que participam destas conjunturas.

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informal a respeito do que aqui será denominado sistema de privilégios. Na medida em que a ligação do internado com seu eu civil foi abalada pelos processos de despoja-mento da instituição, é em grande parte o sistema de pri-vilégios que dá um esquema para a reorganização pessoal (GOFFMAN, 1990, pg. 49-50).

São processos de expressões das relações internas e práti-cas orientadas a um assujeitamento, entretanto, não é vivenciado passivamente sem reações. Pois coexistindo ao sistema de privi-légios, perpassando por processos como admissão e mortifica-ção, há resistência dos sujeitos encarcerados frente ao ambiente de privações. Entre estes, destaca-se o acesso (ou não) aos ser-viços de tratamento penal, incluindo assistência social, jurídica, médica, psicológica, educacional, etc. Bem como, o nível de pri-vações encontradas nos ambientes prisionais, que se configuram como motivadoras para a organização dos presos em grupos.

A presença de grupos e facções no sistema prisional gaú-cho é abordada de modo geral através de pesquisas produzi-das sobre a realidade do Presídio Central de Porto Alegre, ou em produções bibliográficas que demonstram a influência das facções no regime semiaberto. Ao ter como foco de análise as relações entre as facções do Presídio Central de Porto Alegre, (SALLIN, 2009) revela a priori a formação dos grupos, que não necessariamente desenvolvem relações de lealdade e cumpli-cidade entre si. No contexto exemplificado, os grupos mencio-nados são: os “Crentes” (que possuem em comum o fato de expressarem uma crença religiosa, em sua maioria católicos ou evangélicos), os “Duque” (presos que cometeram crimes sexuais, não sendo aceitos pelos demais, organizando seu pró-prio espaço) e mais um grupo formado por presos que pos-suem nível de escolaridade superior, policiais e funcionários da SUSEPE.

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Guindani (2002) ao referir os grupos prisionais, destaca o grupo dos trabalhadores, pois para os demais, independente do pertencimento às facções, a representação do preso trabalhador, significa aceitar o poder formal do sistema. Entretanto, através de um sistema recompensatório que legitima as ações de trata-mento penal, existe a possibilidade, por parte deste grupo, de maior acesso aos setores administrativos e técnicos, do mesmo modo que podem usufruir com mais facilidades do sistema progressivo da execução penal. Por outro lado, enfrentam pro-blemas quanto à sua própria segurança, sobretudo, quanto à progressão de regime. Nos contextos de regimes semiabertos existe maior vulnerabilidade ao comando das facções.

A Colônia Penal Agrícola está sob o comando dos “ma-nos”, o Instituto de Mariante e Casa Miguel Dario estão sob o comando dos “brasas”. Porém o regime semiaberto não está estruturado para atender a essa pseudo-indivi-dualização, o que se tornou um fator motivador dos al-tos índices de fuga que vêm acontecendo nesse regime. (GUINDANI, 2002, p. 110)

Quanto à presença das facções no regime fechado, dife-rem dos demais grupos pela sua constituição, caracterizando--se pelos laços de pertencimento, fidelidade ou submissão aos líderes (SALLIN, 2008), somando-se a estes aspectos, pode--se aferir a forte rivalidade entre os grupos, que muitas vezes derivam do contexto do tráfico de drogas, tanto intramuros, quanto extramuros.13

No Presídio Central, os grupos/facções são denominados “Os Manos”, “Os Unidos pela Paz” e “Os Aberto”. Esses

13 Além das facções identificadas no presídio central, existem outras no con-texto prisional gaúcho, os exemplos aqui citados correspondem às pesquisas encontradas que abordam essa temática.

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estão organizados em galerias, onde há, em média, tre-zentos presos e, entre esses, aproximadamente trinta esta-riam ligados diretamente ao comando das facções, sendo esse subgrupo composto pelo líder e seus auxiliares. O lí-der é chamado de “plantão”, “prefeito” ou “representante da galeria”, e é escolhido pelo grupo de presos que estão comprometidos com a facção, levando em consideração sua capacidade de liderança, negociação e autoridade. (SALLIM, 2008, p.18)

Referindo-se às rebeliões no estado de São Paulo, Salla (2001) menciona os arranjos e concessões cotidianos, per-tencentes à teia de relações prisionais, como motivadores de eventuais rebeliões, sobretudo, em momentos onde há enfraquecimento das interações entre os grupos prisionais. Por esse enfoque, a resistência dos apenados não são apenas motivadas pela falta de assistência aos mínimos sociais na prisão, mas fazem parte de uma rede complexa que perpassa também pelo poder formal exercido pelos demais grupos que fazem parte deste cotidiano.

A partir dos elementos citados, que envolvem tanto a relação de obediência ao poder formal quanto à resistência e reconhecimento de que existe um poder informal produ-zido pelas interações entre grupos prisionais, evidencia-se a dimensão dialógica da execução penal. Através da concepção dialógica, ou seja, da consideração de que existem diferen-tes lógicas em um mesmo processo, a noção de disciplina se interliga à de delinquência.

As organizações tem necessidade de ordem e necessidade de desordem. Num universo onde os sistemas sofrem o aumento da desordem e tendem a desintegrar-se, a sua or-ganização permite reprimir, captar e utilizar a desordem. (MORIN, 2001, pg. 129)

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No contexto de ordem/ desordem que permeia o intri-cado cotidiano prisional, o fator disciplina corresponde ao modo de se atingir o controle a partir das práticas correciona-listas que são alcançadas através dos parâmetros classificató-rios. Estes estão presentes por meio de avaliações e classifica-ções, que além da funcionalidade para obtenção de progres-sões, permeiam o próprio tratamento penal.

De outro lado a produção da delinquência (FOUCAULT, 2006) sobrepõe-se através da resistência, produzida pelo próprio sistema em suas interações. Morin (2001) considera o fator jogo como fator de desordem, mas também de maleabilidade. Desse modo, o jogo entre disciplina e delinquência constitui-se como balizador entre as práticas de execução penal, chegando ao limite de um controle perverso para manutenção da (des) ordem.

Por parte dos sujeitos aprisionados, têm-se os códigos do cárcere os quais são analisados por Barbato Junior (2007) como códigos prisionais extremamente rígidos. Nesse sen-tido, as condutas dos apenados passam a ser regidas por valo-res sociais, alheios ao poder formal, interagindo através de uma normatividade autônoma às leis jurídicas.

Vejamos como o código normativo do cárcere opera as re-lações políticas na prisão. Várias são as formas pelas quais se estrutura o poder nos presídios; de acordo com a facção à qual pertence o detento, há um padrão de comportamento a ser seguido. No mais das vezes, separados em pavilhões distintos, cada grupo estabelece a maneira de proceder em certas circunstâncias. Como em quase toda organização, é o líder quem define as sanções a serem imputadas aos infrato-res do código imperante. (BARBATO JUNIOR, 2007, p. 55)

O conjunto destes códigos e práticas convergem a formas de controle perverso que habitam as dinâmicas prisionais. Sobre o controle perverso, Chantraine (2006), menciona os

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mecanismos divisórios, cuja constituição produz uma divi-são maniqueísta entre os “homens de bem” e os “homens do mal”, o que na prisão se expressa através dos códigos morais, também exercidos pelos profissionais em suas atividades. Ao “bom bandido”, servil e obediente perante os mecanismos de controle do Estado, passam a ser ofertados seus direitos assegurados na LEP, de acordo com sua virtualidade (FOU-CAULT, 2005), já o “mau bandido”, que não submete seu corpo ao poder instituído, passa a ser visto como duplo trans-gressor, que, além de ter infringido as normas sociais através do cometimento do crime, é essencializado14 por não obedecer às regras de bom comportamento dentro da própria prisão.

As estratégias construídas pelos presos são normalmente interpretadas pelos profissionais de forma maniqueísta, a partir do referencial etiológico/positivista que reforça o olhar calcado na anormalidade e no diagnóstico de uma patologia. (WOLF, 2005, p. 176)

Nessa perspectiva, pode-se pensar na dimensão valorativa15 como uma prática recorrente, nos espaços prisionais, sendo a criação de estereótipos um meio de se obter subserviências entre a população carcerária com seus diferentes grupos e sistemas.

Compreende-se que, numa sociedade diferenciada, o efei-to de universalização é um dos mecanismos, sem dúvida

14 Segundo Young (2002) a essencialização ocorre a partir do distanciamento socialmente produzido e aplicado ao outro, de categorias sociais diferentes, de modo a naturalizar condutas a partir de ações individuais sem problema-tizar as circunstâncias sociais que as produzem.

15 Vários estudos que abordam as relações no interior das prisões revelam essa dimensão valorativa “bom preso x mau preso”. Entre estes, ver: HASSEN (1999), “O Trabalho e os dias”; COELHO (2005), “Oficina do Diabo e outros escritos prisionais; PEREIRA (1991), “Um estudo dos valores dos Assistentes Sociais no sistema penitenciário”.

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dos mais poderosos, por meio dos quais se exerce a do-minação simbólica ou, se prefere, a imposição da legiti-midade de uma ordem social. A norma jurídica , quando consagra em forma de um conjunto formalmente coeren-te regras oficiais e, por definição, sociais, ‘universais’, os princípios práticos do estilo de vida simbolicamente do-minante, tende a informar realmente as práticas do con-junto de agentes, para além das diferenças de condição e de estilo de vida: o efeito de universalização, a que se poderia também chamar efeito de normalização, vem au-mentar o efeito de autoridade social que a cultura legítima e os seus detentores já exercem para dar toda a sua eficá-cia prática à coerção jurídica (BORDIEU, 1989, p. 246).

O tratamento penal com base na individualização, ori-ginado a partir de uma lei que introduz a noção de direitos no espaço prisional, encobre ambiguidades, pois não propor-ciona as condições necessárias para o enfrentamento das vul-nerabilidades sociais e penais às quais os sujeitos são expos-tos. Trata-se de uma sistematização de mecanismos punitivos que não dão conta de atender às reais necessidades da popu-lação carcerária, que, não obstante, em sua grande maioria caracteriza-se por situações de desigualdade social.

Segundo Busso (2008, p. 8), a vulnerabilidade pode ser pensada como:

Un proceso multidimensional que confluye en el riesgo o probabilidad del individuo, hogar o comunidad de ser herido, lesionado o dañado ante cambios o permanencia de situaciones externas y/o internas. La vulnerabilidad social de sujetos y colectivos de población se expresa de varias formas, ya sea como fragilidad e indefensión ante cambios originados en el entorno, como desamparo ins-titucional desde el Estado que no contribuye a fortalecer ni cuida sistemáticamente de sus ciudadanos; como de-bilidad interna para afrontar concretamente los cambios

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necesarios del individuo u hogar para aprovechar el con-junto de oportunidades que se le presenta; como insegu-ridad permanente que paraliza, incapacita y desmotiva la posibilidad de pensar estrategias y actuar a futuro para lograr mejores niveles de bienestar.

As intervenções realizadas no interior das prisões, se pau-tadas por critérios individualizantes, recolocam no indivíduo a culpabilização por sua condição social, não possibilitando o questionamento e a reflexão sobre a sociedade excludente que produz as situações conflitivas bem como modos de resistência ao contexto social. Tais práticas têm como foco a reprodução da seletividade social e penal que há na sociedade extramuros, da qual são parte e expressão. Evidencia-se a particularização da Questão Social16 nos próprios indivíduos, e não o sistema penitenciário como expressão da Questão Social. As expres-sões que se manifestam no sistema penitenciário perpassam circunstâncias de pobreza, não acesso à proteção social, preca-rização das relações de trabalho, entre outras, configurando a realidade social dos sujeitos presos e seus familiares.

Questão social e penalidade são normalmente vistas como dois processos independentes; quando se estabelece uma relação entre ambas é para identificar, de forma simplista, pobreza e criminalidade. No entanto, esta relação é mais complexa, pois estes dois aspectos originam-se no mesmo contexto econômico e social e, por isto, possuem as mes-mas motivações e determinações. Faces da mesma moeda são também as políticas públicas que daí emergem: por

16 As principais manifestações da “questão social” – a pauperização, a exclu-são, as desigualdades sociais – são decorrências das contradições inerentes ao sistema capitalista, cujos traços particulares vão depender das caracterís-ticas históricas da formação econômica e política de cada país e/ou região. Diferentes estágios capitalistas produzem distintas expressões da “questão social” (PASTORINI, 2004, p. 97)

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um lado, a questão social e como sua decorrência as po-líticas sociais, e, por outro, a delinqüência e as políticas criminais. (WOLF, 2005, p. 1)

Young (2002) diferencia a sociedade atual por sua carac-terística excludente, sobrepondo-se às ações que outrora direcionavam as políticas penais no sentido de serem inclu-sivas com relação ao desvio, ou seja, através de uma série de aparatos que visavam incluir o que estava fora do esquema trabalho-consumo. Por essa linha de pensamento, sobretudo, no período posterior aos anos 1980, houve uma transforma-ção no modo de tratar a exclusão, atentando ao sentido de eliminação do que está fora do circuito social que engloba os consumidores falhos (BAUMAN, 1999).

Trata-se de um processo de duas partes, implicando em primeiro lugar a transformação e a separação dos mer-cados de trabalho e um aumento maciço do desemprego estrutural, e em segundo a exclusão decorrente das tenta-tivas de controlar a criminalidade resultante das circuns-tâncias transformadas e da natureza excludente do pró-prio comportamento anti-social (YOUNG, 2002, pg. 23).

Os efeitos da globalização17 e do neoliberalismo18 também se manifestam no sistema penitenciário, através de dispositi-

17 Em termos de globalização, pode-se pensar que há uma ampla mobilidade do capital e dos capitalistas, volatilidade dos investimentos e deslocamentos de capitais financeiros e bases industriais espalhadas em todos os países; co-existindo com este processo, as suas “conseqüências humanas”, os “párias” gerados pelo modo de produção capitalista, são cada vez mais abandonados à própria sorte, pois a globalização, ao mesmo tempo em que se utiliza de mão-de-obra barata, a descarta deixando grupos de seres humanos à mercê de seus efeitos voláteis (BAUMAN, 1999). Por Estado penalizador, procu-ram-se mostrar dimensões atuais dos efeitos da globalização nas segrega-ções, confinamentos e extermínios de populações pobres (PASSETI, 2003)

18 Neoliberalismo aqui entendido enquanto uma corrente de pensamento e também uma prática político-econômica baseada nas idéias dos pensadores

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vos de controle sobre a população encarcerada, os quais, cada vez mais, estabelecem uma relação de confinamento das cate-gorias indesejáveis ao processo de retroalimentação capitalista. (MÉSZÁROS, 2002)

A dialógica de formas sociais que marcam as origens da prisão com aparência de modernidade, encobrindo práticas de barbárie, não se encontra apenas no passado, pois se reapre-senta no curso da história através de renovados mecanismos de tratamento penal que configuram as desproporcionalida-des punitivas e excludentes. Desse modo, tem-se um percurso de modelos prisionais que aprimoram suas “técnicas” penais, mas, ainda assim, como em uma malha de subtrações, reti-ram dos indivíduos possibilidades, pois se antes tais técnicas foram marcadas pelos suplícios corporais, hoje deixam suas marcas através de uma rede complexa, culminando em uma configuração penal que perpassa subjetividades, vulnerabili-dades, seletividades e, até mesmo, o corpo dos aprisionados.

economicistas, defendendo uma redução da ação do Estado no social (AN-DERSON, 1995).

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3. Família e prisão: da sociedade disciplinar ao sistema penitenciário

A história recente estampa uma sociedade disciplinadora e punitiva na qual a vigilância, o controle e as medidas preventivas se superpõem às penas estabelecidas, em culpas assumidas ou

mascaradas, na rejeição ou complacência consigo mesmo, na admiração e/ou inveja pelo outro, na

sujeição e/ou dominação de si pelo outro. Uma visão confusa que mistura e alterna papéis nas

micro e macroinstâncias de poder (in) visível que estabelecem portas de acesso ao mundo social ou de exclusão dele. Vive-se sob um estado de suspeição e de prevenção, a fim de tornar (in)

visível aquilo que assusta, que incomoda, para a introjeção das separações, da impotência e da

pequenez do homem.

Heleusa Câmara

As formas de controle na sociedade disciplinar se dão em diferentes contextos e âmbitos da vida em sociedade. A orga-nização de instituições basilares para o disciplinamento dos indivíduos transfere às famílias um papel central na manuten-ção dos paradigmas sociais que a precedem e a constroem.

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A inserção das famílias nas dinâmicas prisionais reveste--se de mecanismos disciplinadores, antagônicos e complemen-tares, os quais serão apresentados neste capítulo, como base de compreensão para análise das histórias apresentadas no decor-rer da dissertação. Destaco, também, as previsões legais e as punições instituídas no interior dos estabelecimentos penais, através de uma rede de aspectos que envolvem as famílias em suas dinâmicas e as ambiguidades correspondentes.

3.1 Família: Rainha e Prisioneira do Social

Rainha e Prisioneira do Social é uma expressão utilizada pelo autor Jaques Donzelot (1986), em seu livro “A Polícia das Famílias”, ao tratar da complementariedade das configu-rações que as famílias assumem na sociedade em um mesmo processo. Coexistem diferentes lógicas ao se pensar a relação entre Família e Estado, pois esta se torna Rainha, sendo o foco de atenção, através de mecanismos coercitivos, pelos quais ela detém o controle de seus membros e, ao mesmo tempo, prisioneira, por ser o lócus onde todas as instituições1 se fazem presentes.

Nesse sentido, as famílias vivenciam um processo de auto-ecoorganização, que segundo Morin (2001) caracteriza--se pela autonomia/dependência em relação ao meio. Assim, a autonomia alimenta-se da dependência, esta compreendida a partir da educação, da linguagem, dos valores sociais de cada época e culturamente produzidos.

1 Instituições aqui pensadas como lógicas. São árvores de composições lógicas que, segundo a forma e o grau de formalização que adotem, podem ser leis, podem ser normas e, quando não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser hábitos ou regularidades de comportamentos. (BAREMBLIT, 2002, p. 15) Nesta perspectiva, pode se considerar a educação, a cultura, a política, a punição e a própria família.

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No período em que se edificam as prisões, a sociedade também se encontra vigiada e encarcerada, e é neste contexto que o disciplinamento social2 ganha espaço como forma de prevenção geral e controle do que os indivíduos podem vir a fazer ou não. O conjunto de instituições que regem a socie-dade disciplinar, para além do enclausuramento em estabe-lecimentos prisionais, ampliou-se no campo social, transfor-mando as situações conflitivas em objeto de investigação e vigilância, como aparelhos e técnicas para gestão das massas humanas. (RAUTER, 2003)

Para que ocorra a conformação do disciplinamento e da vigilância sociais, é necessária a formação de instituições capazes de assegurar a ordem vigente, de modo que os pro-cedimentos de controle e observação, presentes na prisão, transformam-se, também, em mecanismos policialescos para manutenção da sociedade como um todo.

“Ordem” permitam-me explicar, significa monotonia, re-gularidade, repetição e previsibilidade; dizemos que uma situação está – em ordem – se e somente se alguns eventos têm maior probabilidade de acontecer do que suas alter-nativas, enquanto outros eventos são altamente imprová-veis ou estão inteiramente fora de questão (BAUMAN, 1999, p. 66).

Nesse contexto, a instituição família torna-se um ele-mento fundamental para a estruturação da sociedade disci-plinar. Ao mesmo tempo em que família pode ser conside-

2 O disciplinamento social é uma modalidade de aplicação do poder que aparece no início do século XIX e expande-se ao social de forma a vigiar e controlar condutas e comportamentos. A disciplina não nasceu neste sé-culo, existia dentro de instituições, e neste período torna-se uma fórmula de dominação para toda sociedade, através da conduta dos corpos-dóceis. (FOUCAULT, 2005)

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rada como o termo que designa a relação entre indivíduos, também pode ser pensada como a instituição que rege esses laços. Enquanto instituição, está submersa em universos de significações totalizantes, normas que podem produzir com-portamentos em favor de subjetividades, as quais constroem jeitos de ser e estar no mundo.

A conexão que se estabelece entre famílias e mecanismos policialescos (DONZELOT, 1986) rege-se por linhas normati-vas do social, a fim de determinar e construir um sentimento de família, moldando, assim, estilos e condutas no que tange à organização e estruturação familiar. Não obstante, repre-senta a própria noção de sociedade que se constrói, na inter-secção histórica e social de paradigmas que estão em cons-tante mutação.

Tal é o fundamento da ontologia específica de grupos sociais (famílias, etnias, ou nações): inscritos, ao mesmo tempo, na objetividade das estruturas sociais e na subje-tividade das estruturas mentais objetivamente orquestra-das, eles se apresentam à experiência com a opacidade e resistência das coisas, ainda que sejam o produto de atos de construção que, como sugere certa crítica etnometo-dológica, aparentemente os remete à não existência das criaturas puras do pensamento. (BORDIEU, 1996, p. 128)

Vários são os estudos acerca das famílias, estes vão desde a sua origem até as tentativas de entender sua estrutura. Neste item, enfoco como se deu a construção de um modelo de família no imaginário social. Fonseca (2006) afirma que a família foi sendo reduzida a compartimentos, como forma de enclausuramento progressivo.

Tal realidade teve início no século XVIII, através da con-solidação do Estado e da propriedade. A partir da individuali-zação dos salários, as redes extensas de parentela foram redi-

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mensionadas, formando-se núcleos familiares geralmente compostos por um casal e seus filhos. Ao mesmo tempo em que esse ideal ampliou-se, só foi atingido plenamente nas famílias burguesas, quando as mulheres, ao abdicarem da parceria no comércio e demais atividades extradomésticas, foram confinadas ao espaço privado: a casa.

Frente a esse contexto, foram construídas categorias sociais a fim de propagar o modelo de estrutura familiar nuclear, sustentando-se no discurso científico e sanitário. O discurso masculino e moralizante dos médicos e sanitaristas procurava persuadir “cientificamente” a mulher, tanto das camadas altas como das baixas, à sua tarefa “natural” de cria-ção e educação dos filhos. Através do saber médico, foi disse-minada a valorização do desempenho da “boa mãe”, criando--se o mito do amor materno. Nessa perspectiva, foram reali-zados projetos para regulamentar o serviço das amas de leite, visando a eliminar as impurezas transmitidas de uma catego-ria social à outra através da amamentação. (RAGO, 1997)

Por esse estereótipo, a “nova” mãe passa a ser vista como a rainha do lar, criando-se uma oposição entre o espaço doméstico e o espaço da rua. O espaço privado (doméstico) é por conjectura associado ao lugar de formação do caráter das crianças, onde se adquirem os traços que definirão a conduta da nova força de trabalho.

Criam-se dois estereótipos da mulher: a dona de casa e a mulher da rua. A prostituição passa a ser objeto de investi-gação da ciência e é classificada pelo saber médico como um vício. Havia um controle rígido da vida cotidiana da prosti-tuta, de forma a se acumular conhecimento sobre a mulher “pública” e difundir-se o estereótipo da puta. (RAGO, 1997)

Às crianças, foram direcionadas medidas educacionais corretivas, geralmente com a ajuda de especialistas. A ade-

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quação a esse formato não se deu de forma homogênea entre aqueles que não possuíam os mesmos recursos das famílias burguesas. Assim, iniciaram-se as medidas coercitivas aos grupos que resistiam a esse modelo.

Em seu estudo antropológico, Fonseca (2006) problema-tiza a naturalização acerca das famílias, rompendo com esse mito, pois constata o enorme leque de organizações familiares na realidade brasileira, dando prova da criatividade humana para (re)inventar as relações domésticas e sociais, como, por exemplo, a prática de circulação de crianças entre as classes populares coexistindo com as práticas de disciplinamento.

No cenário social correspondente a esse período, regis-tra-se a construção acerca da família e da higienização da pobreza no Brasil (RAGO, 1997), de modo que a instituição do imaginário social em torno da família pudesse dar conta das novas configurações do capitalismo urbano-industrial, sendo as famílias, um meio de contenção do desvio, regulando, tam-bém, as relações entre os sujeitos.

Constitui-se na sociedade e, paralelamente, dentro das prisões um complexo tutelar (DONZELOT, 1986) por parte do Estado, com o intuito de eliminar diferenças, sendo as ins-tituições assistenciais e policiais as responsáveis pela propa-gação de uma identidade moralizada e tutelada. No entanto, a adaptação a esse modelo não se deu de modo uniforme, em vista dos diversos arranjos familiares e da predominância da família extensa entre os grupos populares. (FONSECA, 2006)

As medidas repressivas desencadeadas pela adequação a esse formato implicaram a atenção normatizante do Estado, visando ao saneamento social (RAGO, 1997). Dessa forma foram criadas as casas de correção, que tinham por objetivo “limpar” os espaços públicos, retirando da rua o que era inconveniente. As estratégias para a coação também contavam

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com a ajuda de tutores e voluntários de famílias “superiores”, que através de suas benesses cerceavam de perto as configu-rações do social, para que não ocorresse nenhum desajuste.

Inicia-se, assim, um modelo de família conjugal e nuclear que, por mais que seja debatido e contestado, naturalizou-se através do imaginário criado. Mead (1987) constata que pen-sar em família na modernidade é pensar em um número cada vez menor de pessoas, pois se antes o grupo familiar agre-gava, hoje, separa. Um exemplo é a exclusão gradativa que os avós vêm sofrendo, sendo expurgados do convívio familiar. A época de amor líquido, como aponta Bauman (2004), também é a época do convívio destruído.

Entretanto, não se trata aqui de fazer um juízo de valo-res, afirmando qual modelo de família é melhor, mas de pen-sar que o “exemplo” atual não é natural, é uma construção social que foi naturalizada e, por ser um modelo, jamais vai dar conta das plúrimas relações familiares. Os preconceitos em relação a outras formas de se vivenciar essas relações não isentam a família nuclear, pois há uma produção do papel de cada sujeito, uma padronização afetiva. Um exemplo é a situação de casais homossexuais e a luta que enfrentam para adotar uma criança.

A formação desse ideal de família acompanhou proces-sos históricos, sociais e políticos, pois sua implicação social também é elemento de disputas, embates e lutas. Portanto, ao mesmo tempo em que a família é atacada, também é defen-dida. De acordo com Donzelot (1986), os defensores da famí-lia são os conservadores e partidários de uma ordem esta-belecida centrada na hierarquia familiar, que manifesta um regime político liberal, por nela enxergarem a preservação da propriedade privada e uma barreira à intervenção do Estado, pois, se a família encaixa-se nesse modelo, não necessita de

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uma intervenção estatal que a reestruture. De outro lado estão os que atacam a família, socialistas utópicos ou científicos, que o fazem por enxergar na família as mesmas funções das classes dominantes, acreditando que o desaparecimento da instituição família pode se dar por um regime socialista; estes desconsideram a produção de subjetividades, como se um regime político pudesse propor o fim de uma verdade natu-ralizada no imaginário social.

No âmbito da Seguridade Social, que envolve Saúde, Pre-vidência e Assistência Social, no que se refere à última, tem-se na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), aprovada em 2004, um enfoque na família como elemento central; isso ocorre tanto através de programas direcionados, como por meio de responsabilidades que lhe vão sendo deslocadas gra-dualmente, pois o regime está pautado por uma orientação familista: a família como o centro de responsabilidades para que sejam efetuadas ações, por parte dos programas.

Família, independentemente dos formatos ou modelos que assume, é mediadora das relações entre os sujeitos e a coletividade, delimitando, continuamente, os desloca-mentos entre o público e o privado, bem como geradora de modalidades comunitárias de vida. (SUAS, 2004, p. 35)

No entanto, cabe questionar a centralidade da família nesse novo marco regulatório, pois vem sendo desencadeado um processo gradativo de familização social, através do qual, é de responsabilidade das famílias suprir não somente o “bem estar” de seus membros, como também os direitos que lhes vêm sendo negados pelo Estado. Mesmo com uma concep-ção mais aberta, a PNAS gera as mesmas expectativas sobre o papel das famílias e recoloca na figura materna seu prin-cipal elemento. Ou seja, ainda que avance na concepção de

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famílias, esbarra nos papéis familiares, pois, nesse sentido, as famílias transformam-se em um instrumental para a PNAS.

Os ordenamentos jurídicos, muitas vezes, não acompa-nham os novos desenhos dos grupos familiares, fato que, inclusive, compromete a ação governamental, dado que ao administrador público só é legítimo agir dentro do que a lei autoriza. Há, em curso, um descompasso entre o que “deve ou se supõe ser” e o que “está sendo”. Há um des-compasso entre o “vivido”, o “idealizado” e o “legislado”. (FONSECA, [A] 2006, p. 3)

O processo de familismo social é abordado por Sánchez Vera; Díaz (2009, pg. 122) ao citar o caso espanhol:

El familismo de la sociedades está frecuentemente ligado a las limitaciones que presentam lós Estados de Bienestar al hacer recaer sobre ellas um protagonismo excessivo. Referido a La sociedad española, lós câmbios sociales han sido importantes y rápidos, hasta el extremo que em algu-nos casos puedem transmitir la imagem de crisis familiar, pero sim embrago, la familia goza de uma gran salud y sigue siendo de manera constante la institución más valo-rada por lós españoles.

O exemplo espanhol, apesar de considerar as limitações do Estado de Bem-Estar, que não se emprega à realidade bra-sileira, pode ser considerado a partir da ideia de proteção social, e neste sentido, as limitações do Estado em fornecer tal proteção. Frente às limitações, o recurso estatal recai sobre a família como fonte de proteção e cuidado entre seus membros, desencadeando um processo excessivo de protagonismo, que muitas vezes distancia-se da realidade das famílias brasileiras.

Com relação à familização nas políticas de tratamento penal, este processo é abordado por Jardim; Santos; Aguinsky

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(2009) como uma tendência centrada nas responsabilidades deslocadas aos familiares, acionada como esteio para o recuo das responsabilidades do Estado em prover proteção social em um contexto de privações. No âmbito das prisões, a fami-lização das políticas públicas particulariza-se em mecanismos de controle penal dirigidos às famílias dos sujeitos presos.

Mioto (2006) define três grandes vertentes de interven-ção do Estado nas famílias, que oscilam entre uma relação de controle e repressão e também uma relação de apoio recur-sivo. Segundo a autora, elas condensam uma intervenção baseada no âmbito legal e regulatório – Direito de Família; no âmbito demográfico – formas de incentivo ao controle da natalidade; e no dos aparatos policialescos e assistenciais do Estado, consolidando uma cultura de especialistas em rela-ções familiares, aptos a uma integração da família ao modelo normalizado.

Considerando que esses modelos se sobrepõem ou se rela-cionam, não se deve perder de vista que um dos aspectos fun-damentais na proposição de políticas públicas consiste na polis-semia da noção família, pois ela assumirá diferentes significa-dos para os indivíduos em seus contextos sociais específicos.

Apesar de se constatar um avanço na compreensão teó-rica e legal dos conceitos de famílias, ainda assim se verifica que as políticas de proteção social estão centradas em uma visão idílica daquela, como um meio privado de proteção e cuidado. O paradoxo analisado por Mioto (2006) consiste na coexistência do reconhecimento da centralidade da família com práticas de sua negação no âmbito da vida social, o que pode incorrer em penalizações por parte das instituições que deveriam promovê-la.

A relação que se estabelece entre prisão e famílias, para além da estrutura social, atinge também o ordenamento jurí-dico, sobretudo, nos estabelecimentos penitenciários, cujo

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foco atenta também ao controle social. Entre tais dinâmicas, as famílias podem ser capturadas pelo sistema de penalidades como um dispositivo3 de controle em relação aos seus paren-tes presos.

Quando um aprisionado é considerado como o “bom bandido”, servil e obediente às normas prisionais, sua família também passa a ser valorada de forma positiva, projetando--se nela a viabilidade de uma futura “recuperação” do indiví-duo. Schmitd (1984) pontua a existência do apoio familiar e a vinculação dos presos aos familiares como um fator favorável para o retorno à liberdade.

Em situações inversas, quando o parente preso é visto como o “mau bandido”, que não submete seu corpo ao poder instituído no estabelecimento prisional, a família também passa a ser vista como ameaça à ordem vigente e identificada pelo possível abastecimento da chamada “economia delin-quente”, desestabilizando o poder repressivo. Nessa linha de pensamento, COELHO (2005) aponta a família como um tópico recorrente nas conversas da cadeia, sobretudo em dias de visi-tas, por serem as situações de manutenção dessa economia.

Embora os acontecimentos citados sejam diversos, as lógicas que produzem, ao se pensar em famílias no ambiente prisional, inscrevem-se em um mesmo processo, pois fazem parte das dinâmicas que se instituem no cárcere. O controle que se objetiva, através da sociedade disciplinar, pode trans-formar relações familiares em dispositivos para a normaliza-ção social dentro das prisões e na sociedade como um todo. Sendo a prisão caracterizada pelo extenso complexo tutelar

3 O termo dispositivo no vocabulário conceitual de Foucault designa técnicas, estratégias e formas de assujeitamento utilizadas pelo poder. Eles são, por definição, de natureza heterogênea: trata-se tanto de discursos quanto de práticas..(REVEL, 2005, p. 39)

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cujo propósito de vigilância se sobrepõe às vivências familia-res dos sujeitos presos, suas histórias de vida e referências de família são fonte de inferências para critérios classificatórios. Soma-se a esse aspecto a burocracia inerente ao ambiente pri-sional e dirigida aos grupos que ali vivem e sobrevivem.

A categoria família é constantemente transformada em lócus de crise liberal, sendo culpabilizada pela (in)gerência de seus membros dentro da prisão e por eventuais desagrega-ções, como fator que pode aumentar e/ou diminuir crimina-lidades e violências. Assim, não é a pretensão deste trabalho evocar uma dimensão de entidade familiar, mas, sim, pensar nas famílias como movimento e intersecção com o contexto externo, neste caso, o sistema social complexo que é a prisão.

Gomes (2006, p. 73) problematiza a família como: “uma instituição bastante abrangente que envolve um olhar ampliado do pesquisador, pois pela multidimensionalidade reflete, como em um caleidoscópio, várias formas e organiza-ções, bem como a interação que estabelece com seus membros e com o contexto na qual está inserida”. Nesse sentido, busco construir um olhar sobre as famílias que possa levar em conta seus diferentes formatos e organizações e, ao mesmo tempo, os contextos diferenciados em que estão inseridas, como tam-bém o contexto específico que é a prisão. Para tanto, a com-preensão histórica e o aporte transdisciplinar constituiu-se como um recurso auto-ecoorganizativo para avançar em uma leitura de realidade que me aproxime das vivências dos sujei-tos e de seus referenciais de famílias.

3.2 Inserções das Famílias nas dinâmicas prisionais

Na atual configuração do sistema prisional brasileiro, as primeiras inserções formais das famílias nos ambientes car-cerários remontam à já mencionada portaria (278/JSP/GDG),

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segundo Pereira (1991, p. 56), “publicada na revista peniten-ciária nº 1 – junho/77 – Impressa Oficial”, que regularizou a situação das visitas. Desde então, os presos passaram a rece-ber visitas e, em casos extremos, a realizar visitas a parentes que estivessem doentes ou em estágio terminal, bem como a ter direito de comparecimento a cerimônias fúnebres de seus familiares mais próximos. Tais possibilidades caracteri-zavam-se por seu critério assistencial, em vista do qual era necessário que o apenado obtivesse bom comportamento em relação aos demais, para alcançar o tratamento diferenciado.

Nessa situação específica, cabia aos assistentes sociais averiguar as condições de realização das visitas. Através da “mistura de brutalização com assistência humanitária” (BATISTA, 2007), passaram a ser acionados profissionais com uma missão de ajuda aos apenados, a qual tencionava, atra-vés da negociação de “benesses”, uma conversão de valores e de mundos distintos. Desse modo, os sujeitos privados de liberdade passaram a ser alvo de todo um complexo tute-lar (DONZELOT, 1986), que objetivava sua adaptação aos padrões civilizatórios socialmente aceitáveis.

É nesse contexto que se insere o Serviço Social no sistema penitenciário Brasileiro, através da funcionalidade e manu-tenção de atividades repressivas. Pereira (1991) afirma que, no estado do Rio de Janeiro, a inserção ocorreu no ano de 1952. Guindani (2001) aponta que no Rio Grande do Sul as atividades tiveram início em 1944 de forma voluntária, e somente no ano de 1951 o exercício profissional foi regulamentado através de uma lei estadual, nº 1651. As duas autoras relatam que o início desse processo se deu de forma assistencialista e paliativa, legi-timando o poder repressivo do Estado, como forma de adaptar os sujeitos presos e seus familiares a uma conduta normativa, não questionando os processos sociais vigentes à época.

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As dinâmicas para manutenção do espaço prisional foram desencadeando processos sociais repressivos, que fun-daram necessidades de controle. Sendo assim, a função de controle para a execução das primeiras portarias “ressocia-lizadoras” passou a ser de atribuição dos assistentes sociais, para os quais o acompanhamento dos sujeitos era percebido como uma forma de averiguar suas condutas dentro do cár-cere e, de acordo com o comportamento observado, decidir quais eram merecedores de uma atenção tutelada.

Como parte do complexo tutelar, as intervenções feitas pelos especialistas e profissionais dentro da prisão visavam à normalização do convívio social. Essas práticas agregavam juízos de valor aos atendimentos feitos, pois desconsidera-vam a realidade familiar da população prisional, que se dife-renciava da família nuclear instituída, correspondendo, em muitos casos, a famílias extensas.

Pode-se refletir sobre a moralização no atendimento aos sujeitos privados de liberdade, no encontro com técnicas de saber-poder4 que legitimaram a “clientela” do Serviço Social no sistema penitenciário como objeto de investigação e vigi-lância. Nessa situação (contato entre preso e seu familiar), elucida-se a apropriação do Serviço Social perante algumas demandas, como se apenas o Serviço Social tivesse legiti-midade para intervir em determinados grupos e situações, como, por exemplo, nas demandas dos familiares dos presos, que até hoje se configuram como uma “especificidade” da profissão.

4 O saber está essencialmente ligado à questão do poder, na medida em que, a partir da idade clássica, por meio do discurso da racionalidade – isto é, a separação entre o científico e o não-científico, entre o normal e o anormal – vai-se efetuar uma ordenação geral do mundo, ou seja, dos indivíduos, que passa, ao mesmo tempo, por uma forma de governo e corresponde à discipli-narização do mundo por meio da produção de poderes. (FOUCAULT, 2005)

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A partir do advento da LEP, as visitas passam a ser con-cebidas como um meio de aproximação entre sujeitos presos e seus familiares. Sua previsão, enquanto direito, rege-se pelo artigo 41, inciso X, “visita do cônjuge, da companheira, de paren-tes e amigos em dias determinados”, também são estipuladas, no inciso XV, outras formas de manutenção de contato com o mundo externo: “contato com o mundo exterior por meio de corres-pondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes”. No entanto, o pará-grafo único do artigo adverte as situações de cancelamento do direito à visita e à comunicação com o mundo externo: “tais incisos poderão ser suspensos ou restringidos mediante ato moti-vado do diretor do estabelecimento”.

Embora previsto pela LEP, o direito a receber visitas sofre alterações de acordo com cada estabelecimento prisio-nal, sendo, na sua maioria, realizadas duas vezes na semana, em dias estipulados. Os critérios para a realização de visitas correspondem a regimentos instituídos em cada unidade pri-sional, normalmente, obedecendo a critérios como nível de parentesco e a ordenamentos correspondentes às dinâmicas que se instituem no interior dos estabelecimentos, que, não obstante, ainda pautam-se por critérios valorativos.

Cabe salientar que, no Rio Grande do Sul, através da admi-nistração da SUSEPE (Superintendência dos Serviços Peniten-ciários), foi publicada, no Diário Oficial de 30/05/2088, a porta-ria de n° 012 – SUSEPE, pela qual foi aprovado o Regulamento Geral para Ingresso de Visitas e Materiais em Estabelecimentos no Estado, entrando em vigor na data de sua publicação. O referido regulamento estipula desde as categorias de visitan-tes, até os tipos de materiais e alimentos que podem entrar nos estabelecimentos, demonstrando, através de seu conteúdo, que há uma responsabilização deslocada aos familiares.

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Assim como o direito a visitas pode ser cancelado por razão motivada das chefias das unidades prisionais, outros também o são, justificados por razões como “mau” compor-tamento. Ao mesmo tempo em que a LEP institui garantia de direitos à população carcerária, transfere a efetivação desses direitos às condutas dentro da prisão, deixando lacunas quanto à sua aplicabilidade e brechas para que o prolongamento da lei possa ser suprido pelo controle disciplinar.

Exemplifica-se tal relação pela criação de bodes expiatórios,5 quando presos são punidos, através de procedi-mentos administrativos disciplinares, desde o isolamento até a transferência, que na gíria da cadeia define-se por “preso viajado” (VARELLA, 2005). Como castigo normalmente se estabelece que o sujeito fique trintas dias sem visitas em uma cela de seguro, ou em outra casa prisional longe de sua famí-lia, a responsabilidade pelas situações conflitivas recai tanto sobre o preso quanto sobre os familiares. Aos familiares atri-bui-se a culpabilização por abastecerem o ambiente prisional com drogas e outros utensílios proibidos.

Os dias de visitas caracterizam-se por longas filas, sobre-tudo nos presídios masculinos, onde há predominância de mulheres, esposas mães e crianças para visitação ao parente preso. Evidencia-se, assim, a construção social em relação ao papel da mulher, enquanto cuidadora, o que pode ser pensado a partir de um conjunto de atribuições e imagens que se proje-tam às mulheres, principalmente na figura da mãe enquanto sacrifício (RAGO, 1997). Tal reflexão não anula essas mulhe-res de suas relações familiares e desejos de manter vínculos

5 A formação de bodes expiatórios ocorre quando o grupo, ou, no caso da prisão, o grande grupo, deposita em alguém seu insucesso, fracasso, aquilo que não serve mais. Esta pessoa passa a carregar sozinha a culpa do grupo e, posterior-mente, quando o grupo consegue eliminá-lo, cria uma ilusão de que, com sua ausência, irá caminhar novamente e com bastante sucesso (PEREIRA [A] 2002).

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com os parentes presos, mas permite refletir o imaginário em torno de visitas e visitantes.

Praticamente em todos os presídios masculinos do Brasil são aceitas as visitas conjugais ou, como são chamadas, visitas íntimas (WOLF, 2005). Quanto à sua origem, data-se a partir da década de 1980, nos presídios masculinos, como meca-nismo para diminuição dos índices de violência nas prisões e manutenção da ordem no interior dos estabelecimentos.

São nebulosas as origens das visitas íntimas. Contam que co-meçaram no início dos anos 80, insidiosamente, com alguns presos que improvisavam barracas nos pátios dos pavilhões nos dias de visita. Na época, as autoridades fizeram vista grossa, convencidas de aqueles momentos de privacidade acalmavam a violência da semana. (VARELLA, 2005, p. 60)

Um procedimento adotado nos dias de visitas são as revistas íntimas, onde os familiares têm de se submeter à ins-peção realizada a fim de se evitar a entrada de utensílios proi-bidos e drogas no interior dos estabelecimentos, sob argumen-tação de que são eles os responsáveis pelo abastecimento da “economia delinquente” (COELHO, 2006). Até um determi-nado momento, as revistas eram realizadas com a pessoa des-pida, e as mulheres acima de 12 anos deviam agachar-se, após, deitadas eram submetidas à exame vaginal (WOLF, 2005).

Hoje, em alguns estabelecimentos existe detector de metais, o que ameniza a revista minuciosa. No entanto, de acordo com o regulamento geral das visitas, o visitante que for suspeito de estar com algum item proibido deverá ser encaminhado à revista íntima, independente de ter passado pelo detector de metais. Situação que demonstra o poder discricionário das equipes de revista, mesmo que exista um regulamento geral, o regulamento prevê ainda que não será

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permitida a entrada do visitante cuja revista pelo aparelho detector acusar material suspeito, independente de ter sido submetido à revista corporal. Essas situações podem fazer com que muitos presos dispensem a presença de seus familia-res, evitando assim submeter-lhes a uma situação vexatória.

Seus familiares são submetidos a toda sorte de constran-gimentos. Mães, esposas e crianças devem aguardar fora dos presídios, durante horas, de pé, em fila sob sol ou chuva, para que possam participar dos procedimentos de revista, suplício contemporâneo, criado pela tecnoburo-cracia prisional. (ROLIM, 1999, p. 17)

Além da revista íntima, são realizados outros procedi-mentos a fim de inspecionar os familiares, com vistas a garan-tir a “segurança” nos dias de visitas. Situações que podem configurar-se como constrangedoras, principalmente às pes-soas vindas de outras cidades, que muitas vezes ao chegar à unidade prisional são informadas das regras adotadas.

Muitos desses familiares deslocam-se de municípios lon-gínquos, enfrentando imensas dificuldades financeiras. Quando chegam, são informados de que não poderão entrar no estabelecimento prisional porque o sapato que calçam (não raramente o único que possuem) está fora das regras de segurança. (ROLIM, 1999, p. 17)

As vivências enfrentadas pelos familiares são múltiplas, para além das revistas e dos procedimentos burocráticos ine-rentes à prisão, passam também por rituais externos, que ante-cedem até mesmo à espera nas filas. A preparação não começa apenas no momento em que devem deixar seus pertences pes-soais nos bares que existem na frente dos estabelecimentos, onde pagam para poder deixar bolsas, documentos, que não

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podem entrar e, até mesmo, fazem o aluguel da roupa ou do chinelo que seja pertinente à entrada. A preparação ao dia de visitas estende-se ao cotidiano dos familiares, pois muitas vezes precisam adaptar seu modo de vida à rotina institucional.

Durante esta observação feita dentro da unidade prisional em um dia de visitas, muitas pessoas que passavam pela revista retornavam à área externa do presídio, pois sua vestimenta e até mesmo alguns itens que levavam para o preso não estavam de acordo com as normas. Ao sair do presídio, os familiares relataram que teriam de entrar na fila novamente, e por esta situação, muitos colocavam alimentos que não entram em latas de lixo para não sub-meter-se à revista novamente. No entanto, alguns saíam e retornavam, pois deixavam seus pertences nos bares aos arredores. Uma situação que me chamou bastante atenção foi quando um senhor estava entrando para fazer a pri-meira visita ao filho. Pois após ser revistado e informado de que não poderia entrar com o cinto que estava, dirigiu--se até um dos bares para deixá-lo ali, quando retornou para entrar, foi avisado de que seu filho havia sido trans-ferido. (JARDIM, 2009, DIÁRIO DE CAMPO)

Em muitos casos, os preparativos para o dia de visita perpassam o cotidiano dos familiares, como no exemplo a seguir, onde a mãe precisa deslocar-se de outra cidade, e por isso, seus dias “giram em torno” do dia da visita, pois pre-cisa adequar suas atividades a partir de sua responsabilização com o filho preso, e eventuais deslocamentos.

Ela sai daqui cinco horas [referindo-se ao transporte: Van] , cinco e vinte por ai, passa por aqui. Chega lá seis horas. Desde o dia anterior eu já não durmo direito, se eu acordar a uma e meia eu não durmo mais, porque eu tô pensando que eu vou perder a Van. Ai a gente passa cada coisa... Fico pensando na menina que fica aqui, o guri que

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não ta em casa [referindo-se aos outros filhos]. Aí eu dei-xo a menina pra trás, a menina vai pro colégio sozinha. Não vou todas as visitas, vou só uma vez por semana, em um dia que o guri tá trabalhando, mas aí tem a guria, não consigo acompanhar todos. (F2)

No que tange ao transporte de outros municípios, existem vários modos informais que são acionados pelos familiares. Estes se caracterizam pelo preço menor em relação ao transporte legalizado. Na frente dos presídios estão estacionados carros e vans que levam passageiros até o seu destino, muitas vezes sem oferecer as condições necessárias para o transporte seguro.

Ao sair do presídio e ir até a parada de ônibus, fui abordada por dois homens que ofereciam transporte mais barato até o centro da cidade. (JARDIM, 2009, DIÁRIOS DE CAMPO)

Desse modo, formam-se redes e economias informais as quais se constituem pelo contexto que circula em torno do ambiente prisional. Não obstante, estas redes e economias externas afetarem os modos de vida dos familiares, interli-gam-se ao próprio contexto interno da prisão.

A partir da observação, pude perceber o comércio que permeia o contorno prisional, desde os bares até os luga-res na fila de entrada, pois muitas pessoas dormem nas filas e no dia seguinte vendem seu lugar. Alguns familia-res comentarem que dependendo da posição que determi-nadas pessoas ocupam nas filas, estas exercem lideranças em relação às demais. Outro fato destacado pelos familia-res, embora não presenciado por mim, é que o contexto do tráfico de drogas perpassa este em torno, pois muitas pessoas exercem funções de mulas, levando drogas ao ambiente prisional mesmo que não tenham vínculo com o preso visitado. (JARDIM, 2009, DIÁRIOS DE CAMPO)

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A identificação de um contorno prisional demarca a rela-ção de auto-ecoorganização vivenciada pelos familiares. Pois se existe um controle formal por parte do estado, os familia-res também constroem modos de resistência a este poder, no entanto, ainda que expresse uma relação de autonomia aos mecanismos coercitivos do estado, esta autonomia como salienta Morin (2001), é alcançada através da dependência do meio. Neste contexto as condições concretas que demarcam o meio ao qual estão inseridos, são fomentadas e criadas pelo próprio estado através de um controle perverso alcançado na interação entre os grupos prisionais.

Os códigos que balizam o contexto e a realidade prisio-nal, sobretudo, através da organização dos presos em grupos e/ou facções, também alcançam os familiares. De acordo com Barbato Junior (2007) um dos indícios de que os códigos do cárcere funcionam também no contexto extramuros, se dá pelo envolvimento de familiares no pagamento de dívidas adquiridas no decorrer da execução penal. De modo geral, como menciona o autor, as dívidas contraídas pelos presos originam-se do contexto do tráfico interno de drogas, ou por eventuais favores trocados.

Elas são, geralmente, resultado do consumo de dro-gas, mas podem derivar de favores dantes prestados. Impossibilitados de adquirir montante de dinheiro ou mercadorias para saneá-las, alguns presidiários recorrem às mulheres, filhos ou parentes com o fito de garantir sua integridade física. Isso porque o não pagamento é encara-do como uma “recisão de contrato”, cuja multa poderá ser a própria vida. Advertidos das sanções que os aguardam a qualquer momento, não veem outra saída senão pres-sionar aqueles que dispõem de condições para ajudá-los. Quando desprovidos de recursos financeiros suficientes para pagar o valor cobrado, os familiares do apenado en-

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tregam aparelhos domésticos como televisores, videocas-setes, microondas etc. Como tais utensílios não podem ser levados para dentro da prisão, acabam por doá-los aos pa-rentes dos credores, pondo fim à dívida, tão logo seja con-firmado o recebimento. (BARBATO JUNIOR, 2007, p. 65)

Os favores prestados e/ou trocados pelos presos podem ser desencadeados também pelo nível de privações a que estão expostos. Nesse sentido, um fato recorrente torna-se o apoio, principalmente aos presos recém-chegados. Nesse contexto, a interação entre os presos pode assumir lacunas deixadas pelo próprio estado, as quais geram responsabilidades aos fami-liares. Outro ponto destacado por Barbato Junior (2007) são episódios de extorsão das famílias dos presos que mesmo não contraindo dívidas, passam a ser alvo de uma rede de ameaças.

Ao conversar com a irmã de um preso na frente do estabele-cimento, relatou que quando seu irmão chegou não recebeu apoio institucional, sendo apoiado pelos presos. O auxílio recebido foi desde materiais de higiene, roupas e até mes-mo empréstimo de celular para dar a notícia de que estava preso. Como meio de pagar pelo serviço prestado, a família passou a colocar créditos em números de celulares forneci-dos pelos presos. Mesmo considerando que tenha consegui-do pagar o que o irmão realmente devia, começou a receber outras ligações e ameaças para continuar a colocar créditos nos celulares (JARDIM, 2009, DIÁRIOS DE CAMPO).

Por essa conexão entre os códigos intramuros e o mundo externo, é que os familiares também “pagam” sanções imputa-das a partir das interações do chamado fundo da cadeia.6 Quando

6 A expressão fundo da cadeia é problematizada por Guindani (2001) quando menciona as formas de controle, sutis e camufladas que fazem parte de uma rede de micro-poderes prisionais.

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o parente preso não age conforme os valores sociais de seu grupo prisional, pode sofrer ameaças que alcançam seus familiares.

Assim, não é de se estranhar que as intrincadas relações do sistema prisional influenciem a vida dos familiares dos detentos. Essa mediação entre os presídios e o mundo li-vre denota justamente a amplitude dos códigos do cárcere, deixando patente que suas fronteiras mostram-se débeis em face da não ingerência da justiça oficial. (BARBATO JUNIOR, 2007, p. 65)

Frente à inserção das famílias nas dinâmicas prisionais, bem como as condições sociais dos ambientes prisionais, há um processo que é descrito por Misse (2008) como sujeição cri-minal. O assujeitamento criminal ocorre a partir do momento em que um sujeito passa a ser identificado com as condições gerais que constroem a noção do que é crime, e quando o foco deste evento, crime, desloca-se para a identificação do virtual criminoso. Nesse sentido, há a construção de incriminações as quais antecedem as práticas, culminando em condutas que poderão levar efetivamente ao cometimento de um crime.

A sujeição criminal dos familiares dos presos pode ser pensada pelas condições concretas que circundam o ambiente prisional, como tráfico de drogas e obrigações para com o preso, e, não obstante, ao grupo a que pertence, gerando o cometimento de condutas ilícitas na expectativa de apoiar o parente preso. Por outro lado, Misse (2008) menciona que a sujeição criminal esta para além de um estigma, por englobar aspectos subjetivos como a fusão do evento com a identidade de seu autor, embora o evento não tenha se realizado. Por essa perspectiva, existe todo um olhar diferenciado para as famílias, pois ainda que não estejam inseridas em interações prisionais, passam a ser referidas como prováveis responsáveis pelo abas-

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tecimento de drogas e itens proibidos no ambiente prisional, e, no entanto, muitas vezes estão assujeitadas a estas situações.

Outra situação recorrente nas prisões e envolvendo a família ocorre através de laudos e avaliações para progres-sões de regime, que instrumentalizam as decisões judiciais para a concessão de benefícios jurídicos.7 Um dos critérios avaliados na construção dos laudos são as relações familiares, compreendendo as histórias de vida e formas de interação entre presos e suas referências externas. A relação de poder se faz presente através de códigos de valores que atravessam as experiências relatadas, pois o discurso de família desestrutu-rada se faz presente como um mecanismo de punição.

Mesmo que as linhas normativas do social atinjam um padrão de homogeneização, alguns familiares expressam conhe-cimentos dos critérios que serão utilizados nas avaliações e nesse sentido, constroem estratégias para a ação que será empreen-dida, ainda que essas ações sejam na direção de adequar-se às linhas normativas. Entre as conversas sinalizadas durante a fila de visitas, um dos assuntos são as avaliações, e desse modo, os familiares trocam dicas do que irão levar aos apenados para que possam ter uma avaliação favorável. Entre os critérios, está a tentativa de que o preso possa olhar para sua família tentando encaixar-se em um padrão aceitável.

Em conversa informal durante a fila, a companheira de um preso dá dicas para outra pessoa do que deve ser dito ao preso para que este tenha uma avaliação favorá-vel. Enfatiza que seu companheiro passou no exame por

7 A lei de execuções penais prevê três tipos de regime para o cumprimento da pena privativa de liberdade: regime fechado, semiaberto e aberto. A pro-gressão de regime pode ser acessada após o cumprimento de 1/6 ou 1/3 da pena, variando de acordo com o delito e através de pareceres técnicos que sejam favoráveis.

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fazer boas referências à família, manifestando que tem um bom vínculo familiar e que será apoiado quando sair. (JARDIM, 2009, DIÁRIOS DE CAMPO)

Quanto às tendências na produção das avaliações, Rau-ter (2003) problematiza os procedimentos que constituem os exames realizados no campo da Justiça, pois, de acordo com a autora, existe uma coleta de dados da história dos sujeitos pautada pela teoria psicanalítica, cujos enfoques remetem a perspectivas de verdades, antecedentes e histórias pregressas, centrando-se em uma vivência particular, que desconsidera o contexto social em que estão inseridos.

Partindo da análise da autora, a psiquiatria forense potencializa na família um modelo degradado, enquanto pro-dutor de condutas criminogênicas e patogênicas, que podem ser categorizadas como:

1) Famílias onde ocorreu a morte do pai ou o abandono precoce por parte deste. 2) Famílias onde a mãe cria o filho sem o pai, ou onde a mãe tem filhos de homens diferentes. 3) Famílias onde a mãe está ausente, mesmo que seja por ter de trabalhar. 4) Famílias onde a mãe bebe, está presa, é prostituta etc. (RAUTER, 2003, p. 92).

A seguir, trechos de dois laudos distintos:

Consideram os peritos que o examinado tem boa estrutu-ra familiar, residência fixa, adequada vida laborativa, bom comportamento carcerário, que o crime foi único em sua vida e que, portanto, merece obter o livramento condicio-nal. (WOLF, 2005, p. 192)

Traz uma história familiar de pessoas que não consegui-ram exercer limites contentivos, haja vista que outros dois de seus irmãos têm carreiras criminosas e cumprem pena,

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hoje em dia. Como sempre esteve vinculado a esta família, não apresenta crítica sobre suas atitudes delinquências. (WOLF, 2005, p. 192)

Entre as justificativas que sustentam os pareceres, a pre-sença ou não da família e a forma como se estrutura, assim como o apoio familiar durante a execução da pena, tornam-se aspectos relevantes para que o laudo seja favorável. Não são levadas em consideração as situações das famílias, tampouco os trajetos de desencontros produzidos na prisão.

A partir das entrevistas feitas com os participantes deste estudo, pude perceber o quão distante estão as vivências familiares8 do que é considerável “normal” em termos da cap-tura de sentidos que produzem uma história de vida. Mesmo que as entrevistas tenham sido realizadas com parentes con-sanguíneos (mães e irmãs), ou companheiras, estas possuem vivências diversificadas.

Quando estive presa, o apoio que recebi foi de uma amiga, pois os meus familiares mesmo não me apoiaram, ela é como uma irmã para mim [...]. Agora que ele está preso eu recebo apoio apenas do meu pai. (F2)

Sobre a produção dos laudos, Aguinsky (2003, p. 275) aponta que:

Os sentidos produzidos por eticidades discursivas mo-ralizadoras do cotidiano operam através da responsabi-lização dos sujeitos singulares pelo próprio infortúnio e

8 A pesquisa não teve por objetivo identificar a conformação de relações fami-liares dos participantes do estudo, se fazem parte de uma família nuclear ou extensa, por exemplo. Entretanto, chamo atenção para o sentido de família vivenciado por estas pessoas, pois expressam outros vínculos como impor-tantes em suas vivências e significado de família.

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concorrem para a naturalização da violência das respostas públicas aos dilemas cotidianos que, ao transbordarem da esfera privada, colhem a irresponsabilidade da esfera pública ou a afirmação ilusória de direitos ou o controle como a melhor resposta.

Retornam as “velhas” questões valorativas e juízos de valor na atuação profissional, que de forma maniqueísta segregam as pessoas, entre boas e más, atribuem-se responsa-bilidades tanto à família, quanto ao preso, pelas dificuldades enfrentadas fora e dentro da prisão, como os processos sociais de vulnerabilidades e seletividades aos quais estão expostos, desconsiderando-se suas estratégias de sobrevivência.

Sabemos que a mobilidade ou a falta de estabilidade dos laços familiares é uma característica das chamadas popu-lações de baixa renda: as uniões sexuais são efêmeras, os filhos ditos “ilegítimos” proliferam. As mortes, tanto de genitores quanto das crianças, são precoces e frequente-mente em razão da miséria (a expectativa de vida é de fato menor), as condições de trabalho e a extrema exploração levam a que os pais se ausentem de casa por longos perí-odos. Ter que deixar os filhos aos cuidados de outras pes-soas para poder trabalhar, frequentemente pela semana inteira, é seguramente a realidade da maioria das mulhe-res deste segmento social. (...) Ou seja, as condições de mi-séria geradas pela própria exploração capitalista recebem uma leitura estigmatizante, que é utilizada na construção da personalidade criminosa. (RAUTER, 2003, p. 93)

No que tange à participação das famílias dentro dos estabelecimentos prisionais, estas acabam assumindo lacunas deixadas pelo Estado, o que lhes confere um papel de respon-sabilização frente às demandas que emergem no cotidiano prisional, em um contexto de situações precárias encontradas

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nos presídios brasileiros.9 Muitas vezes fica a cargo das famí-lias o próprio tratamento penal negligenciado pelo Estado, quando são os parentes em liberdade que se encarregam de suprir necessidades sociais, jurídicas e até mesmo quanto à saúde dos presos, o que, pela LEP, deveria ser contemplado pelo estabelecimento penitenciário.

Mesmo com sobrecargas aos familiares e sujeitos presos, a manutenção de vínculos e laços sociais é inerente ao convívio humano e, no contexto prisional, reveste-se de tamanha impor-tância por ser um elo com a sociedade e suas referências do mundo externo, de sua vida anterior à prisão e de sua própria história. Dentro do espaço prisional, famílias também podem ser resistência e potência10 para suportar o massacre cotidiano e a produção mortificante que reduzem os desejos de se vislumbra-rem outras vivências que não a violência institucional e social.

Os trajetos de desencontros são facilmente capturados pelo sistema prisional, que potencializa conflitos e, através de seus suplícios cotidianos, dificulta encontros, tanto por trans-formar as relações familiares em moedas de troca, quanto por tornar difícil a “alguns” familiares o acesso ao estabelecimento.

Não ser, ou ser abandonado pela família no decorrer da execução penal representa distinção na intensidade de so-frimentos emocionais; a distinção no grau de ruptura com grupos e perspectivas de futuro no ambiente extramuros; representa, ainda, a própria ampliação (ou não) das priva-ções materiais que serão suportadas na vida intracarcerá-ria. (CHIES, 2006, p. 113)

9 Muitos são os documentos que comprovam as situações de precarização do sistema penitenciário brasileiro. Ver: Relatório Azul, 2006. Garantias e viola-ções dos direitos humanos no RS. Porto Alegre: (CORAG, 2006)

10 Os termos potência e desejo referem-se às capacidades de produzir, inven-tar, transformar. À capacidade instituinte que possuem os coletivos para ge-renciar sua própria vida. (BAREMBLITT, 1998)

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Nessa lógica, pode-se pensar que não ser contemplado pelos critérios de recebimento de visitas em um ambiente hostil torna-se mais um meio de punição e isolamento dos demais. Os que recebem visitas atingem um patamar diferen-ciado entre a população carcerária, pois, à presença do fami-liar, somam-se possibilidades de maior status no interior das prisões, por serem os familiares que proporcionam ao preso os tratamentos diferenciados. “As visitas carregam sacolas de plásticos abarrotadas, potinhos de plásticos com pastéis, maionese, macarronada, calabresa frita e frango assado (...) Trazem tudo que o preso gosta” (VARELLA, 2005, p. 52). Para além dos potinhos, há que se considerar que não raro, em muitas vezes, são os familiares que levam a medicação que é destinada aos presos, o nebulizador de que precisam para um tratamento de saúde, entre outros (mediante autorização institucional, é claro), além de uma série de responsabilidades que assumem, perpassando pela situação jurídica do preso.

Frente à complexidade das situações que envolvem os familiares e seus modos de inserções, tanto no tratamento penal – correspondente aos mecanismos de controle jurídico--formal – quanto nas dinâmicas que auto-ecoorganizam o coti-diano prisional, são desencadeados processos diferenciados que fazem parte das experiências sociais vivenciadas na prisão.

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4. O percurso de pesquisa

Mas penso dizer que sobre meu tempo de pesquisar, face àquele que aprendi e reproduzi,

ele agora parece outro. E outros ainda estão por vir. Devires. Neste sentido, o tempo do(s)

modo(s) de pesquisar versa sobre os tempos constituídos pela implicação de alguém que,

ao problematizar o discurso da diferença, produz também outro discurso.

Clenir Moretto

4.1 Construindo um caminho: a aproximação com o Paradigma da Complexidade e as possibilidades de uma visão Transdisciplinar

Após ter problematizado prisões e famílias em suas conexões com a sociedade disciplinar e de controle, não poderia tomar este espaço, que é de um trajeto que me levou até o objeto de pesquisa, de um modo neutro. Pois, a partir da minha opção em realizar esta pesquisa, através de uma aproximação com o Paradigma da Complexidade, aparente-mente estranho ao Serviço Social, também eu passei a ocupar este lugar de estranhamentos. “(...) Apesar de me achar deles distanciado, neles me reconheço” (MORIN, 2004, p. 19). Mas ainda assim, neste mesmo lugar, não procuro antagonismos, mas dialogicidades.

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Vale lembrar que esse pressuposto teórico que questiona os conceitos de verdade, objetividade e realidade social apresentou-me uma posição ética fundamentada na res-ponsabilidade por minhas construções do mundo social e pelas ações que desenvolvo, as quais me fizeram resistir à possibilidade de fundamentar exclusivamente minha investigação na realidade social objetiva, refletida numa verdade evidente e dominante, à qual simplesmente de-vesse me enquadrar. (GUINDANI, 2002, p. 44)

Distanciei-me por percorrer um caminho de incertezas, percurso que foi trilhado por meio da tentativa de sustentar a minha análise da realidade prisional a partir de significados diversos vivenciados pelos participantes do estudo. E dialogi-camente me reconheço, pois a escolha pela complexidade foi pautada por um compromisso ético perante a vida e uma opção profissional. Se o que me “afasta” do Serviço Social é a produ-ção acadêmica hegemônica da área, dirigida pelo referencial marxista, o que aproxima, promove encontros e me permite reconhecimentos é uma prática profissional que, não obstante, foi exercida durante este processo de pesquisa social. Percebo a Ética, nesse contexto, não como código de condutas, o que a transformaria em moral, mas, sim, como ao que nos convoca Nietzsche (1998) – a uma Ética da reflexão perante a própria moral ante outras morais: renunciando ao julgamento para libe-rar o sujeito à alteridade e a refletir sobre sua própria moral. O próprio autor responde com uma nova concepção de vida que ele assim enuncia: “vida é vontade de potência” (1998, p. 79).

A atuação no presente inventa uma vida desembaraçada de regras fixas, constantes e imutáveis ao se apartar da na-turalização da obediência e da conservação dos costumes da sociedade como se fossem componentes de um bem maior a ser preservado. (PASSETI, 2004, p. 12)

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Construir, inventar, desembaraçar o que estava “enredado” foi um processo, e, aos poucos, apartando-me da obediência, pude eu tomar consciência da minha postura enquanto pesqui-sadora e do lugar que ocupo. Assim, me permiti a escolha por aquilo que em mim despertou paixões alegres (DELEUZE, 1970).

Ao mesmo tempo, esta aproximação com o pensamento complexo não se constituiu para mim como um regime de verdade (FOUCAULT, 1999), desconsiderando outras propos-tas de análises da realidade social. Pois desse modo estaria eu sendo aprisionada a uma teoria e seus “mandamentos”. Como sinaliza o próprio Morin (2001, pg. 22): “O meu propósito não é enumerar os mandamentos do pensamento complexo que tentei libertar”. O autor também salienta que o doutrinarismo e o dogmatismo fecham uma teoria nela mesma, a petrifi-cando. Do mesmo modo não compreendo o olhar complexo como um ponto em que devo chegar, mas através de aproxi-mações, a possibilidade de um olhar em movimento.

O complexo não pode resumir-se na palavra complexida-de, reduzir-se a uma lei de complexidade ou a uma idéia de complexidade. A complexidade não poderia ser qual-quer coisa que se definisse de maneira simples e tomasse o lugar da complexidade. (MORIN, 2001, p. 8)

Se existe um pensamento positivista, etiológico, que separa, segrega, com a finalidade de estabelecer regimes de verdades, o pensamento complexo surge como um convite à diferença, ou seja, ao reconhecimento de que existem diferen-tes formas e modos de se produzir conhecimentos e interven-ções. No entanto, como salienta Morin (2007), a problemática da complexidade ainda é percebida de modo marginal pelo pensamento científico, epistemológico e filosófico, pois a com-plexidade surge como dificuldade, como incerteza e não como clareza e como resposta aos problemas postos pela ciência.

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É a viagem em busca de um modo de pensamento capaz de respeitar a multidimensionalidade, a riqueza, o mistério do real; e de saber que as determinações – cerebral, cultural, social, histórica – que impõem a todo o pensamento, co-de-terminam sempre o objeto de conhecimento. É isto que eu designo por pensamento complexo. (MORIN, 2001, p. 14)

Há no saber científico uma negação da própria contradi-ção, que, em sentido etimológico, provém do latim contradic-tio, “ação de contradizer; objeção; réplica”, de contradicere, “ação de contrários”. Segundo Morin (2007) há uma crise de explicações, pois o que parecia ser resíduo e não científico nas ciências humanas, como a incerteza, a desordem, a comple-xidade, a pluralidade, a contradição e a complicação, expan-diram-se de modo a evocar novas problemáticas de conheci-mentos que não remetem a respostas simples, inserem-se em uma noção de campo complexo.

O paradigma da complexidade pode ser comparado metaforicamente a um espaço onde é possível transitar--se entre lógicas distintas e que convivem entre si, gerando uma multiplicidade de acontecimentos em um processo de pesquisa, o que amplia o olhar do observador em relação ao objeto e, também, porque não, permite questionar este pró-prio lugar de pesquisador/pesquisados.

Através do tema proposto, conhecer a experiência social dos familiares de apenados em relação à sua inserção nos mecanismos de tratamento penal, assumo uma opção teórica e metodológica que tem por objetivo a produção de um saber que esteja conectado às vivências e sobrevivências dos sujei-tos que fazem parte desse processo de pesquisa. Minayo apre-senta que “nada pode ser intelectualmente um problema se não tiver sido, em primeiro lugar, um problema na vida prá-tica” (1992, p. 17). Por essa perspectiva, compreender a vida

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e suas manifestações sob o olhar da complexidade é algo que não remete ao conhecimento de apenas uma disciplina, por isso, busco ajuntar a esse percurso em construção a possibili-dade de um conhecimento transdisciplinar.

Carvalho (2008, p. 48) aponta a necessidade de um conhecimento na área criminal a fim de se “libertar os saberes disciplinares de seus feudos, colocando-se em diálogo o reco-nhecimento de verdades distintas”. A transdisciplinariedade é problematizada por Rodrigues (2001) como a possibilidade de um saber que se coloca a transitar o “espaço da diferença”, na interlocução com os sujeitos pesquisados. Trazer a fala des-ses sujeitos ao universo da produção acadêmica como potên-cia de criação, a partir do contato do pesquisador com o cená-rio de pesquisa, é uma forma de romper com uma postura de suposta neutralidade.

Compreender a importância de um saber criativo, de modo a não discriminar os sujeitos que se encontram na pri-são e as suas famílias, é percebê-los para além do crime e estra-nhar-se ante o usual tratamento infantilizador e ao mesmo tempo brutal que eles recebem por parte do complexo social que se conforma na ação do Estado e da sociedade. O olhar da complexidade convida-nos a uma apreciação do presente e das possibilidades de um sujeito computo. “O sujeito é o ser computante que se situa, para ele, no centro do universo, que ele ocupa de forma exclusiva” (Morin, 2008, p. 323). Assim, pode-se compreender uma noção de vir a ser do sujeito, não capturado “apenas” por vivências passadas, mas um sujeito que se coloca no centro, como pleno de possibilidades e de redimensionamento de sua própria vida, produzindo-se e produzindo vida com o outro nos grupos dos quais faz parte.

A esfera do saber amplia-se na perspectiva da inquietude, da aventura, do risco, da criatividade. Estas característi-

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cas trazem dinamismo, vida, fortalecimento de um espí-rito de busca que vai à experiência, à pesquisa, à prática com a disposição de realizar uma descoberta, empreen-der um aprendizado e, inclusive, elaborar conhecimentos. (RODRIGUES, 2001, p. 153)

A opção pelo paradigma da complexidade como fio con-dutor desta pesquisa faz parte de uma leitura de realidade que não se inscreve em determinismos. É uma escolha por avançar em uma compreensão multidimensional e transdisci-plinar da sociedade atual.

Uma sociedade é produzida pelas interações entre indi-víduos, e essas interações produzem um todo organiza-dor que retroage sobre os indivíduos para co-produzi-los enquanto indivíduos humanos, o que eles não seriam se não dispusessem da instrução, da linguagem e da cultura. Portanto, o processo social é um círculo produtivo ininter-rupto no qual, de algum modo, os produtos são necessários à produção daquilo que os produz. (MORIN, 2007, p. 182)

Como aporte metodológico, Morin (2009, p. 93) aponta os sete princípios que orientam a teoria da complexidade, através de uma relação de complementariedade e interdepen-dência entre si. Estes me possibilitaram compreender a prisão como um sistema social complexo.

1) Princípio sistêmico ou organizacional: liga o conheci-mento das partes ao conhecimento do todo, bem como ampara a idéia sistêmica de que o todo é mais que a soma das partes e, no entanto, é igualmente menos que a soma das partes.

2) Princípio hologrâmico: evidencia os paradoxos das organizações complexas, em que não apenas a parte está

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no todo, como o todo está inscrito na parte. Nesse sen-tido, a sociedade está presente em cada indivíduo atra-vés da cultura, da linguagem, das normas etc. Assim, cada história, que aparentemente se apresenta como pri-vada adquire um sentido social, à medida que a prisão, através de seu proceder carcerário, constrói normas, culturas e sentidos específicos que são revelados através da fala dos sujeitos. Morin (2001) destaca que em uma representação de um holograma físico, o menor ponto contém a quase totalidade do objeto a que representa.

3) Princípio do circuito retroativo: permite o conheci-mento dos processos autorreguladores, rompendo com o princípio da causalidade linear: a causa age sobre o efeito, e o efeito age sobre a causa. Como exemplo desse princípio, o próprio autor destaca que a violência de um protagonista provoca uma reação violenta, que, por sua vez, provoca uma reação mais violenta ainda.

4) Princípio do circuito recursivo: a recursividade ultra-passa a noção de regulação, através das concepções de autoprodução e auto-organização. É um circuito gerador em que os produtos e efeitos são, eles mesmos, produ-tores e causadores daquilo que os produz. A recursivi-dade manifesta-se nas dinâmicas prisionais, sobretudo, quando envolvem famílias e interações carcerárias, existindo negociações que alcançam aspectos formais e informais que lhes conferem uma auto-organização entre os elementos constituintes da prisão como com-plexo social. A sociedade é produzida e construída pelas interações entre indivíduos, e ao mesmo tempo em que é produzida, retroage sobre os indivíduos e produzi-los.

Através de uma relação recursiva é que o ser humano produz sua cultura e, ao mesmo tempo, é produzido por

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ela, desse modo, ele produz histórias e interações que coexistem com suas próprias histórias de vida e ações microssociais. Problematizadas a partir de um sistema complexo, é possível perceber e compreender suas múl-tiplas relações e interações em movimento, rompendo com um ponto de vista puramente tecnocrático.

5) Princípio da autonomia/dependência (auto-organi-zação): Por esse princípio, tem-se a compreensão de que os seres vivos são auto-ecoorganizadores, pois, a partir da necessidade de retirar energia, informação e organização de seu meio ambiente, sua autonomia é inseparável dessa dependência. O princípio da auto--ecoorganização vale especificamente para os huma-nos, que desenvolvem sua autonomia na dependência de sua cultura. Sob esta compreensão, é que percebo a relação de autonomia e dependência presente nas dinâ-micas prisionais, das quais as famílias fazem parte.

Segundo Morin (2001) a vida é um fenômeno de auto--ecoorganização, extraordinariamente complexo, ex-pressando ao mesmo tempo autonomia e dependência. A ideia de auto-ecoorganização, que é válida para os hu-manos, não é apenas uma concepção de organização in-dividual, se expressa também na compreensão de siste-mas e grupos, os quais são constituídos e construídos por humanos em sua autonomia, e através de uma rela-ção de dependência constitui e constrói humanos, pois a autonomia é sempre relativa ao meio. O autor refere--se aos sistemas vivos como sistemas que em sua estru-tura dependem de uma alimentação exterior, não ape-nas do ponto de vista material e energético, mas, sobre-tudo organizacional e informacional. Por esse enfoque têm-se uma relação ECOsistêmica (MORIN, 2001) atra-

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vés de trocas com o exterior, cuja ligação complementa--se por relações de autonomia de dependência.

6) Princípio dialógico: Une princípios e noções que deveriam excluir-se reciprocamente, mas são indissoci-áveis em uma mesma realidade. Através da dialógica, podem-se perceber duas ou mais lógicas presentes em uma mesma ação, que, mesmo antagônicas, são fun-dantes para que esse processo esteja em movimento. Este princípio permite conceber a inseparabilidade de noções contraditórias para um mesmo fenômeno com-plexo. Por meio do princípio dialógico, compreendo as lógicas que aparentemente deveriam excluir-se no sistema prisional e, no entanto, são inseparáveis para a coexistência de processos sociais complexos, como por exemplo, interações prisionais reeferentes a processos de ordem e desordem.

7) Princípio da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento: opera a restauração do sujeito e a reto-mada do problema cognitivo central, pois todo conhe-cimento é uma reconstrução/tradução feita por uma mente/cérebro em uma cultura e época determinadas.

Os princípios apontados estabelecem uma relação de inter-dependência e complementariedade entre si. No entanto, como subsídios para a compreensão do objeto estudado, a análise acessada por mim, enfatizou os princípios Dialógico, Recursivo e Hologrâmico como aportes para o entendimento e problema-tização das dinâmicas prisionais e modos de tratamento penal. O princípio da Auto-ecoorganização foi utilizado como meio de acessar a experiência social dos familiares de apenados, a partir de sua inserção no tratamento penal, como também, compreender as interações entre os grupos prisionais, os quais constituem e expressam relações de autonomia e dependência.

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4.2 Tipo de Pesquisa

O tipo de pesquisa caracterizou-se por ser um estudo de caso, como destaca Roese (1998, p. 195): “A opção por um estudo de caso se dá, portanto, no momento em que nossas questões atingem um tal grau de detalhamento, que apenas a observação da realidade concreta em pleno funcionamento nos permite obter respostas. O estudo de caso é, na realidade, uma experiência prática”. Mesmo que não tenha sido o obje-tivo da pesquisa a busca por uma única reposta, ou uma “ave-riguação” in lócus de hipóteses, ainda assim, considero este conceito como o mais aproximado do objetivo proposto, um estudo de caso, por ser uma experiência prática e um estudo da realidade de um estabelecimento em suas redes de funcio-namento e dinâmicas.

Utilizo uma abordagem do tipo qualitativa e explorató-ria, uma vez que tive a intenção de alcançar as experiências sociais dos sujeitos em relação aos mecanismos de tratamento penal. Marconi e Lákatos (2003) referenciam a pesquisa do tipo intencional como sendo não probabilística, na qual o pesquisador interessa-se pela opinião, ação e intenção de determinados grupos populacionais. Por esse aspecto é que priorizei a qualidade do estudo,1 bem como a inserção dos participantes do processo.

Mais do que buscar índices, modas, medianas, buscam-se significados, mais do que buscar descrições, buscam-se in-terpretações, mais do que buscar coleta de informações, bus-cam-se sujeitos e suas histórias. (MARTINELLI, 1999, p. 21)

1 Isso não significa que a pesquisa quantitativa seja desprezível, ou tenha pou-ca importância, ao contrário, é um meio de se obter resultados que possam assessorar a elaboração de projetos mais amplos. A escolha pela pesquisa qualitativa está adequada à intencionalidade do projeto, que visa conhecer experiências e significados, sendo assim, não caberia se optar por outro tipo.

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A abordagem qualitativa na pesquisa social permite tra-zer ao meio acadêmico o que os participantes pensam sobre o que está sendo estudado, valorizando a fala dos sujeitos e suas vivências, e não apenas o ponto de vista do sujeito pesquisador (MARTINELLI, 1999). A interação constante entre pesquisa-dos e pesquisador tornou-se um mecanismo pertinente para a exposição dos temas que emergiram da realidade pesquisada.

O uso da metodologia qualitativa explica-se através de três pressupostos, assim explicitados por Martinelli (1999, p. 22):

1) Reconhecimento da singularidade do sujeito, desta-cando que, assim como cada pesquisa é única, as histó-rias também o são. A singularidade se expressa através da vivência dos sujeitos, de modo que o seu contexto de vida seja valorizado na apreensão do conhecimento.

2) A importância de se conhecer a experiência social do sujeito, não apenas suas circunstâncias de vida. A expe-riência social decorre do modo como as pessoas cons-troem e vivem as suas vidas. Portanto, sentimentos, valores, crenças, costumes e práticas sociais cotidianas.

3) Reconhecimento de que conhecer o modo de vida do sujeito pressupõe o conhecimento de sua experiência social. A realidade do sujeito é conhecida a partir de significados por eles atribuídos.

4.3 Etapas, técnicas e participantes da pesquisa

A metodologia abrange um conjunto de técnicas e instru-mentos, de acordo com cada etapa da pesquisa. O conjunto de técnicas na pesquisa qualitativa constitui-se como o instru-mental necessário para sua execução (MINAYO, 1992). Des-taco que, antes das etapas de realização da pesquisa propria-mente dita, foram realizadas etapas preparatórias, compreen-

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dendo a re-elaboração e a qualificação do projeto de pesquisa selecionado para o mestrado, a submissão do projeto à ava-liação da Comissão Científica da Faculdade de Serviço Social, à autorização do Departamento de Tratamento Penal (DTP) da SUSEPE, à autorização do Estabelecimento escolhido para realização da pesquisa e, após a aprovação da Comissão Cien-tífica, bem como a concordância do DTP e do Estabelecimento Prisional, à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) na PUCRS. Somente após esses trâmites e o parecer favorável do CEP é que iniciei o processo de pesquisa.

Na primeira etapa realizei pesquisa bibliográfica acerca das tendências de tratamento penal na atualidade, sobre-tudo, dos mecanismos que envolvem as famílias, objetivando um levantamento bibliográfico como fonte de informações e embasamento teórico para as etapas posteriores.

A segunda etapa compreendeu a análise documental do Regulamento para realização de visitas (portaria n° 012/2008 SUSEPE), o qual entrou em vigor como um regulamento único para os presídios do Rio Grande do Sul. Também foi feita a análise dos artigos da LEP que preveem a inserção das famílias. Entendo a análise documental como uma técnica capaz de proporcionar um estudo em profundidade do con-junto de documentos selecionados.

Na terceira etapa da pesquisa realizei observações par-ticipantes com registros em diários de campo, em dias de visitas no estabelecimento, e acompanhamento das revistas, com o propósito de conhecer os procedimentos dirigidos aos familiares. Minayo (1992, p. 135) destaca a observação como essencial ao trabalho de campo e à compreensão da realidade. A autora aponta a observação como uma “forma complemen-tar da captação da realidade empírica”, tendo suas raízes na antropologia.

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O grupo temático compreendeu a quarta etapa da pes-quisa e foi realizado com os profissionais que integram a equipe técnica do estabelecimento prisional, com o objetivo de conhecer as percepções dos profissionais em relação à inserção dos familiares nos mecanismos de tratamento penal. Minayo (1992, p. 129) destaca a especificidade do grupo temático, o qual se configura por diferentes opiniões, rele-vâncias e valores de quem participa do processo grupal, atra-vés da valorização de pensamentos diversos e heterogêneos, ampliando a visão do pesquisador sobre determinado tema. Entre as características operacionais do grupo, pode-se desta-car a entrevista grupal, com um número de seis a doze pes-soas. Desse modo, o grupo temático foi realizado com base em um rapport para o desencadeamento da discussão, com enfoque na valorização do relato oral dos participantes.

A escolha por fazer o grupo temático com os profissio-nais justifica-se como uma forma direta de conhecer o tra-tamento oferecido aos sujeitos presos e aos familiares, pois são os técnicos que, de acordo com as previsões de individu-alização da pena a partir da LEP, intervêm junto às deman-das da população encarcerada, sobretudo, em aspectos que envolvem as famílias. Os nove sujeitos que participaram do grupo foram incluídos pelo critério de livre adesão, tendo os profissionais que fazem parte da equipe técnica do estabele-cimento sido previamente avisados da realização do grupo e de que o número máximo de pessoas seria de até doze. De modo a mantê-los desidentificados, utilizo a codificação E1, E2, E3 etc., em que E indica Equipe Técnica, e o numeral sub-sequente, o número atribuído a cada participante.

A técnica de história oral temática foi utilizada com os familiares de apenados, compreendendo a quinta etapa da pesquisa. O critério de inclusão dos sujeitos que iriam parti-

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cipar da pesquisa seria a priori por indicação da equipe téc-nica, como constava no projeto, mas foi alterado durante o processo de pesquisa. Inicialmente, tinha-se uma idéia linear e comparativa de se obter os seguintes sujeitos:

• dois familiares que estivessem realizando visitas siste-máticas aos seus parentes presos há mais de cinco anos.

• dois familiares que estivessem realizando visitas sis-temáticas aos seus parentes presos que tivessem come-çado a cumprir pena há menos de um ano.

Porém, através das aproximações sucessivas com a rea-lidade pesquisada, e conhecendo aos poucos as dinâmicas do estabelecimento, tornou-se inviável, por exemplo, que fosse feita indicação pela equipe técnica. Entre outros motivos, isso gerou desconforto na primeira pessoa com quem fui conver-sar, em uma sala dentro do estabelecimento, mesmo escla-recendo que era uma conversa inicial na qual eu explicaria algumas informações sobre a pesquisa, para depois, então, realizar a entrevista, percebia o constrangimento do familiar, como se isso tivesse alguma implicação na situação do ape-nado. De fato, este familiar acabou desistindo de participar.

Posteriormente, a convite de alguns funcionários da segu-rança, passei a acompanhar, semanalmente, atendimentos que eram destinados aos familiares, como confecções de documen-tos e autorizações burocráticas que viabilizavam alguns direitos dentro da prisão. Após esses atendimentos, eu era apresentada aos familiares e pude conversar com alguns, que relatavam as situações e histórias por que estavam passando, mas acaba-vam projetando na pesquisa uma forma de auxílio para suas demandas que geralmente eram complexas, tornou-se inviá-vel entrevistá-los. Contudo, todo esse contato foi registrado em diário de campo, pois essas pessoas também manifestavam his-tórias, vivências e sobrevivências de tratamento penal.

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Mesmo tendo terminado as observações previstas no projeto, que eram em dias de visitas, intercalando-se em observações dentro do presídio, nas salas de revistas, e o acompanhamento de visita-piloto, com observações externas nas filas e arredores; retornei ao presídio para conversar com as pessoas nas filas novamente pelo critério de livre adesão. Após, aprofundando-me na leitura da história oral, através de MEIHY (2007) pude tomar conhecimento do critério de redes, ou seja, quando o pesquisador vai a campo e no contato com os sujeitos vai conhecendo quem são as pessoas que querem participar, como entrevistados, do processo de pesquisa, e estas vão indicando outras pessoas.

Assim, com o auxílio de uma aluna de iniciação científica do grupo de pesquisa do qual faço parte (GEPEDH), pude-mos ter contato novamente com os familiares nas filas, mas dessa vez com a intenção de perceber quem estava interes-sado em ser entrevistado. O contato foi pleno de possibilida-des – como em uma colcha de retalhos, pudemos perceber como o tratamento penal se manifesta na vida dessas pessoas. As histórias foram inúmeras, como aponta BAUMAN (2008), “vidas contadas e histórias vividas”.

Muitas pessoas contaram suas histórias, em contextos diversos, que estão explicitados no decorrer da dissertação. É importante destacar que, mesmo em meio a este contato, a grande maioria não quis participar da pesquisa na condi-ção de entrevistados: na hora em que falávamos do gravador, havia certo receio, e sempre ressoava o medo de que seus filhos, irmãos, maridos, netos, sobrinhos pudessem sofrer algum tipo de retaliação com o resultado do estudo. Não insistimos e esperamos que aqueles que realmente tivessem vontade se disponibilizassem, dessa feita, foram muitas as idas até a frente do estabelecimento, até que em uma tarde encontramos uma mãe de um apenado e a mulher de outro

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preso que se disponibilizaram a participar. Durante todo esse processo de pesquisa, tive contato com alguns familiares que estão na tentativa de criar uma associação, na perspectiva de juntos se mobilizarem coletivamente na luta por seus direitos. Desse modo, duas pessoas que participam dessa associação se disponibilizaram a participar da pesquisa, pois realizam visi-tas neste mesmo estabelecimento e estavam dispostas a falar, contando suas histórias de tratamento penal.

Assim, apresento a configuração da pesquisa, em toda a sua complexidade, que não ocorreu de modo linear e me per-mitiu perceber que a realidade, as pessoas, não são meramente um dado de pesquisa, um objeto que está à espera do pesqui-sador. Nessa relação dialógica, fazendo pesquisa de campo, aprendi que eu, enquanto pesquisadora, não coleto dados simplesmente, mas faço parte de uma produção que é cole-tiva. O cuidado ético com esses sujeitos não se resume apenas aos termos que assinaram para participar da pesquisa, pois sei o quanto qualquer informação que possa ser identificada pode realmente representar algum tipo de retaliação, não apenas institucional, mas também dos próprios grupos em que estão inseridos, por revelarem em suas falas dinâmicas que confi-guram um cotidiano perverso e velado. Uma das precauções, além da não identificação de quem são os integrantes desse processo, é também a não identificação do estabelecimento. Os sujeitos que participaram das entrevistas serão desidenti-ficados através do código F (familiares), seguido do numeral atribuído a cada um. Assim, na discussão dos resultados da pesquisa, são apresentados como F1, F2, F3 e F4.

A valorização do relato oral foi o fio condutor de toda abordagem metodológica desta pesquisa, de natureza quali-tativa. “O relato oral é o mais antigo registro de informação e conservação do saber. A principal forma de comunicação do

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homem é a fala. A narrativa do sujeito é uma explicitação que faz da sua própria vida” (ROJAS, 1999, p. 90). Na atualidade, a configuração da história oral como um conjunto de procedi-mentos para realização de pesquisas sociais realiza-se a partir de instrumentos específicos a fim de proporcionar objetivi-dade ao projeto planejado. Assim, a entrevista torna-se um instrumento necessário para a apreensão das narrativas.

Para melhor realização da história oral, são considerados alguns fatores que a explicam (MEIHY, 2007, p. 18), a saber:

1) Necessidade de um projeto que justifique sua ação. A execução do projeto justificou-se pela concepção de uma pesquisa que visava registrar um espaço de fala daqueles que vivem a realidade prisional, onde através do espaço proposto, foram registradas suas experiências sociais, sobretudo, os significados oriundos do cumprimento da pena privativa de liberdade.

2) Vinculação com uma área de estudo articulada a inte-resses sociais. Justificou-se pela produção de conheci-mentos na área criminal e penitenciária que se propõem a uma visão interdisciplinar, rompendo com uma pre-missa de pesquisa que se coloque como neutra. Através das experiências sociais relatadas, pretendo colaborar ao debate das políticas criminais penitenciárias, principal-mente, considerando a inserção das famílias.

3) Presença de meios eletrônicos (gravadores ou filma-doras). Foram utilizados gravadores com o propósito de registrar as falas e estas foram posteriormente transcri-tas. Pois existe a necessidade de se transformar o relato oral em um documento.

4) Reunião direta e pessoal com as pessoas dispostas às entrevistas. A partir da explicitação do projeto aos par-

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ticipantes, de acordo com os critérios de seleção, foram feitas as combinações necessárias para a execução das entrevistas, estabelecendo-se com os sujeitos os locais, dias e horários para sua realização.

5) Definição sobre o uso e destino das entrevistas. Foi explicitado que se trata de uma pesquisa acadêmica e que os resultados serão publicizados.

Existem algumas diferenciações quanto aos gêneros de História oral, os quais são: história oral de vida, história oral temática e tradição oral. A história oral de vida caracteriza-se por ser a história miúda, história do cotidiano, enquanto que a história oral temática faz parte do circuito de uma história especifica, o qual necessita a reconstituição de todos os fatos, culminando, em algumas situações, no estudo de caso para sua melhor apreensão; e a tradição oral, como um meio de se obter todas as informações de uma determinada pesquisa através da oralidade. (MEIHY, 2007)

As histórias orais também podem ser diferenciadas em dois tipos: as histórias de vida (quando o objeto de estu-do exige a reconstrução da trajetória dos entrevistados); e as histórias temáticas (quando o objeto de estudo exige a focalização em temas que fazem parte da trajetória dos entrevistados). (SILVA, 1998, p. 119)

Optei pelo uso da história oral temática, de acordo com os objetivos propostos no projeto, compreendo a percepção e experiência social dos sujeitos em relação ao tema trata-mento penal. Meihy (2007) destaca que, através da captação acadêmica das histórias vividas pelos sujeitos, revela-se o próprio funcionamento das sociedades, pois a história oral temática é sempre de caráter social. Logo, pensar como a pri-são enquanto um complexo social pode ser problematizada

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através da fala destes sujeitos. Assim, com base na história oral temática, evocar uma dimensão de memória coletiva que ao mesmo tempo em que é produzida, e por isso coletiva, se revela em diferentes aspectos na singularidade das vivências cotidianas, de modo a não excluir o contexto social ao qual estão inseridos. Como salienta Bauman (2008, p. 22) “A arti-culação das histórias de vida é a atividade por meio da qual o significado e o objetivo são inseridos na vida”.

O uso da entrevista na abordagem oral temática destaca--se por ser o instrumento que possibilita um processo dialó-gico, demandando a existência de pelo menos duas pessoas em diálogo em torno de um assunto específico (MEIHY, 2007). Cabe lembrar que não se trata de uma conversa, mas de uma relação que supõe programação entre as partes e atenção do entrevistador, sobretudo no uso das gravações, para que todos os detalhes possam ser apreendidos. Nesse sentido, as entrevistas foram realizadas com base em um roteiro de ques-tões temáticas, as quais contemplam a proposta do projeto. A abordagem das entrevistas foi executada de modo não dire-tivo com base em Pagés (1990, p. 188), o qual enfatiza a abor-dagem sendo guiada ao ritmo do discurso do entrevistado, onde o entrevistador deve esforçar-se ao máximo para não interromper o discurso espontâneo.

4.4 Análise e tratamento dos achados da pesquisa

O tratamento das histórias contadas foi realizado com base em uma técnica qualitativa para análise do material empírico, de modo a ultrapassar uma simples leitura. Neste sentido, existem várias metodologias como aporte à compre-ensão da realidade estudada, fundamentando-se por teorias diversas. Optei neste estudo, pela técnica de análise textual discursiva, que como aponta Roque Moraes (2007, p. 07):

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Corresponde a uma metodologia de análise de dados e informações de natureza qualitativa com a finalidade de produzir novas compreensões sobre os fenômenos e dis-cursos. Insere-se entre os extremos da análise de conteúdo tradicional e a análise de discurso, representando um mo-vimento interpretativo de caráter hermenêutico.

A escolha por este técnica corresponde aos pressupostos teóricos e epistemológicos norteadores deste percurso de pes-quisa, bem como os objetivos propostos, culminando na visi-bilidade de experiências sociais e processos sociais em curso, onde os sentidos e significados assumem uma categoria cen-tral para a explicação da realidade. Moraes (2007) situa a aná-lise textual discursiva como um ciclo que produz e expressa sentidos, através de “mergulhos discursivos”, impregnações nos discursos sociais acerca do tema proposto.

Os pressupostos defendidos pelo autor rompem com a premissa de neutralidade, pois exige do pesquisador uma interação com o universo de pesquisa, e um posicionamento ético-político perante o fenômeno estudado. Através deste percurso de análise, outros sentidos são acionados, de forma a potencializar a expansão do campo problemático, onde o encontro com a realidade através da pesquisa torna-se um elemento de criatividade na construção do saber científico.

Assim, o uso da análise textual discursiva, ao mesmo tempo em que atinge novas compreensões em relação aos fenômenos que investiga, o pesquisador sofre metamor-foses em seus entendimentos de ciência, em seus paradig-mas e em suas convicções metodológicas. Transforma-se no sentido de superação de entendimentos racionalizados de produção do conhecimento, para assumir a complexi-dade e auto-organização como modo de propiciar novos conhecimentos e compreensões (MORAES, 2007, p. 176).

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Nesse sentido, é necessária a interconexão entre as dife-rentes dimensões do saber humano, que não só o racional, mas outros modos de se relacionar com o mundo, e com a pes-quisa. . “O processo de emergência de categorias não é intei-ramente comandado pelo pesquisador. Exige conviver com a espera pelo surgir das categorias, sempre com base num envolvimento intenso a partir da desconstrução dos materiais do “corpus” (MORAES, 2007, p. 173). Embora o autor utilize a terminologia categorias, neste trabalho, como já mencionado, trabalhei com temas de análise, pois considero adequado à metodologia que utilizei de história oral temática. A partir da realidade pesquisada e de suas temáticas emergentes, evocar um sentindo de expansão da vida (NIETZCHE, 1998) e do entendimento de realidade, questionando inclusive, as “cer-tezas” que movem o mundo acadêmico.

Um dos pressupostos da análise textual discursiva é a auto-organização, um processo organizativo a partir da des-construção, culminando em outro modo de se organizar a pesquisa, de acordo com o movimento da realidade e a inte-ração do pesquisador. A desconstrução torna-se um caminho para a auto-organização, enquanto uma possibilidade de novas descobertas, e como destaca Moraes (2007, p. 41): “Um processo de aprendizagem de vida”.

Para realização deste trajeto de análise, o autor aponta algumas pistas, que irão conduzir o pesquisador para um pro-cesso auto-organizativo, destacando-se as seguintes etapas (MORAES, 2007, p. 13):

• Desmontagem dos textos: Implica examinar os tex-tos em seus detalhes, fragmentando-os no sentindo de atingir unidades constituintes e enunciados referentes ao fenômeno estudado. Destaca-se como uma incursão sobre os significados dos textos, bem como os sentidos

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diversos atribuídos pelo pesquisador. Nesse sentido, desconstruir com idéias pré-concebidas em detrimento de um mergulho discursivo nos dados coletados e os sentidos que se auto-expressam. Ainda assim, a reali-dade pode ser compreendida sob diversos pontos de vista teóricos, e significantes diferentes, isto exige do pesquisador, a escolha por um referencial teórico para explicação destas categorias emergentes, pois qualquer leitura interpretativa está pautada por unidades de sen-tido para a realidade.

• Unitarização do Corpus: Consiste no processo de construção de novas unidades a partir da desconstru-ção do texto, de modo a perceber como o movimento de incursão sobre o significado da leitura e seus diver-sos sentidos pode construir novas unidades de análise. Assim, faz-se necessário a releitura dos materiais cole-tados, para estabelecer quais serão as unidades centrais da análise, a partir do sentido estabelecido em perti-nência com os propósitos da pesquisa.

• Categorização: Processo de comparação entre as unida-des definidas no momento inicial da análise, agrupando--as de acordo com seus elementos semelhantes, e signi-ficações que se aproximam, para assim, constituir-se em categorias. Este percurso constitui o elemento de organi-zação do metatexto que se pretende escrever, dessa forma, é a partir das categorias que se produzem e se expressam as compreensões de embasamento para análise. O que diferencia o processo de categorização na análise textual discursiva é o modo como as categorias são produzidas, através da indução, onde são constantemente compara-das e contrastadas, a partir das unidades de análises teó-ricas e unidades constituintes da realidade pesquisada.

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• Descrição: Constitui-se em um movimento de pro-dução textual mais próximo do empírico, sem envol-ver um exercício interpretativo mais aprofundado. À medida que nossas escritas estão impregnadas de senti-dos e teorias, percebe-se a dificuldade de uma descrição “pura”, entretanto, a descrição nessa situação, caracte-riza-se pelo esforço em expor os sentidos e significados que se aproximam mais diretamente com os textos ana-lisados. Concretiza-se a partir das categorias construí-das no decorrer da análise, bem como, as interlocuções empíricas das informações presentes nos textos.

• Interpretação: Consiste no aprofundamento teórico do conteúdo expresso, enquanto um exercício de teo-rização da realidade e interlocução teórica com tendên-cias do conhecimento. A interpretação materializa-se a partir da produção textual, onde o autor expressa suas idéias e visões de mundo, que após o ciclo de pesquisa, o impulsionam para novas descobertas.

Considerando que estas etapas estão relacionadas e dia-logam entre si, pude na construção deste trabalho, vivenciar minha auto-ecoorganização relacionada à pesquisa, através de processos como a desmontagem, descrição, interpretação e unitarização. Por uma opção metodológica, não trabalhei com categorias de análise, mas sim, com temas emergentes.

4.5 Cuidados Éticos

Para garantia de que resguardo aos preceitos éticos, no que tange à participação de seres humanos em pesquisas, a execução do projeto obedeceu às diretrizes e normas regu-lamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos para fins científicos, a qual se rege pela resolução de nº. 196, do ano de 1996, aprovada pelo conselho nacional de saúde. Com

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base nesses princípios, foram formulados os TCLs (Termos de Consentimento Livres e Esclarecidos) onde busquei assegurar todas as previsões éticas no decorrer da pesquisa, assim como o termo de concordância institucional. A pesquisa foi subme-tida ao comitê de Ética em Pesquisa da PUCRS, e só após a aprovação, é que tiveram início as atividades de campo.

Entretanto, o compromisso ético não se resumiu apenas aos termos, mas através do respeito a cada integrante que participou desse processo, pois sem os participantes não há pesquisa. Por uma questão ética, foi acordado não divulgar o estabelecimento onde foi feito a pesquisa, pois ressalto que não é o objetivo do trabalho problematizar as circunstâncias de tratamento penal específicas deste estabelecimento, mas sim, pensar no tratamento penal de uma forma genérica, o qual se manifesta também em outros presídios, em virtude das dinâmicas que se produzem no ambiente prisional.

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5. Sobre as vivências e sobrevivências: histórias contadas

a partir da auto-ecoorganização das famílias

E quando os prisioneiros começaram a falar, viu-se que eles tinham uma teoria da prisão, da

penalidade, da justiça esta espécie de discurso, o contradiscurso expresso pelos prisioneiros, ou por

aqueles que são chamados de delinquentes.

Michel Foucault

Nós também somos os criminosos, os mesmos criminosos só que os familiares dos criminosos,

e até por vezes mais, porque nós não criamos direito, não demos educação suficiente.

F4

A compreensão de auto-ecoorganização, como já expli-citado, remete a ideia dos sistemas vivos e das trocas com o meio. Um sistema auto-ecoorganizador caracteriza-se pela auto-organização e auto-produção, a partir das interações e trocas entre os humanos que a realizam em uma relação de autonomia/dependência com o meio (eco). Ao vincular as his-tórias alcançadas através desta pesquisa, como os demais ele-mentos de análise ao princípio de auto-ecoorganização, busco

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acompanhar o movimento das dinâmicas prisionais em que as famílias estão inseridas. Contemplando aspectos relacionados às responsabilizações dos familiares frente à realidade de pri-vações dos parentes presos, e nesse sentido, como estas famí-lias se auto-ecoorganizam de modo a lidar com as implicações do aprisionamento em suas vidas.

A apresentação das histórias é feita, primeiramente, atra-vés da contextualização a partir dos demais elementos da pes-quisa, que não obstante também se caracterizam pelo relato oral, com exceção da análise documental do regulamento geral para ingresso de visitas e materiais em estabelecimentos prisio-nais da SUSEPE. Busquei, deste modo, acompanhar os meca-nismos que se referem à inserção das famílias no tratamento penal em sua dimensão dialógica, através de fontes diversas. Nesse sentido, serão pontuados a priori, e acompanhando a opção metodológica pela história oral temática e grupo temá-tico, temas emergentes, os quais perpassam as dinâmicas pri-sionais. Destaco que cheguei até os temas emergentes de acordo com o processo de auto-organização da pesquisa (MORAES, 2007), através da incursão e leitura da realidade pesquisada.

O enfoque nas histórias contadas pelos familiares será apresentado a partir de grandes temas. No entanto, cabe salientar, que mesmo tendo identificado convergência de temas, estes não são excludentes entre si, pois estabelecem uma relação de recursividade e complementariedade à medida que vão desvelando um sistema social complexo como a prisão.

5.1 Textos e contextos que tecem as histórias

Os textos e contextos abordados fazem parte de uma noção de campo hologrâmica, pelos quais são apresentados os paradoxos das dinâmicas prisionais em suas dimensões com-plexas, interligando aspectos que inserem as famílias. Estes

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perpassam deste a entrada das famílias no estabelecimento, através dos mecanismos disciplinares correspondentes; a dia-logicidade que transita o entre-lugares de reconhecimentos entre as pessoas que contam as histórias apresentadas; e as percepções dos integrantes da equipe técnica em relação ao tratamento penal, sobretudo o modo recursivo de auto-produ-ção de dinâmicas diferentes do prescrito pela norma jurídica.

5.1.1 O que se esconde atrás do que aparece, e o que é revelado através do que não é permitido?

O Regulamento Geral para Ingresso de Visitas e Mate-riais em Estabelecimentos Prisionais da SUSEPE tem por fina-lidade normatizar, dirigir e uniformizar os procedimentos utilizados nos dias de visitações em todos os estabelecimen-tos do Rio Grande do Sul. As normativas prescritas no regu-lamento são executadas através de uma equipe de revista, designada para tal função, devendo ter acesso às instruções e treinamentos específicos para suas funções. É previsto, que na falta de efetivo funcional exclusivo para compor essa equipe, o administrador do estabelecimento pode escalar e orientar outros funcionários para a execução da atividade. Consiste em competência da equipe de revista, realizar procedimentos como: credenciamentos das visitas, revista pessoal, inspeção de todos os materiais que entram no estabelecimento, bem como a organização e manutenção de banco de dados com informações que possam ser consultadas sobre os visitantes.

As visitas são dividas em categorias obedecendo a cri-térios que consideram primeiramente o grau de parentesco que não obstante, correspondem a um modelo de família. De acordo com o regulamento (item dois), os critérios referem--se também a questões de segurança. Categoria I: pai, mãe,

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cônjuge, ou companheiro (a), filhos e irmãos, desde que sejam maiores de 18 anos (todos); categoria II: filhos e irmãos meno-res de 18 anos e menor cuja guarda o preso possua (devida-mente comprovado); categoria III: avós, sogros e cunhados (estes só maiores de 18 anos); categoria IV: outros parentes e amigos, todos maiores de 18 anos; categoria V: outros paren-tes e menores de 18 anos, inclusive enteados cuja guarda o preso não possua, desde que apresente autorização judicial. O regimento estipula as proibições, deveres e obrigações dos visitantes, bem como explicita quais são os métodos para o cumprimento das revistas, e quais as sanções corresponden-tes às indisciplinas realizadas pelos visitantes.

Entretanto, o que chama atenção, logo após, as explica-ções, é o primeiro anexo, o qual se refere aos materiais admi-tidos. O que permite pensar que por trás de simplesmente regular a entrada destes alimentos e utensílios, existe certa res-ponsabilização deslocada às famílias. Pois se tratando de itens básicos, estes, a priori, deveriam ser supridos pelo sistema pri-sional. Os exemplos são os mais diversos, e os itens dividem--se pela sua qualidade, no item 1.1, estão os alimentos, e entre estes, ganham destaque os alimentos básicos como: pão, carne, leite em pó, massa, açúcar, café, bolachas, sopas em pó, água, entre outros. O item 1.2 aponta os materiais de higiene e lim-peza, em que se destacam artigos como: balde, sabão em pó, refil mata inseto, papel higiênico, desinfetante, creme dental, aparelho de barba, cortador de unhas, sabonete, shampo, pre-servativo, etc. Ainda no item 1.4, estão ilustradas as roupas e calçados que podem entrar, e em meio ao que se considera roupa, estão presentes itens como cobertores, lençóis e toalhas. Outros equipamentos e materiais diversos que estão presentes no item 1.5, podem entrar mediante autorização institucional, e desde que considerados para fins laborativos ou educativos, como televisor, rádio pequeno, relógio e ventilador.

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Nesse sentido, há o não dito do regulamento que, ao esta-belecer o que entra no estabelecimento em termos de mate-riais destinados aos presos, revela o que o próprio Estado não está designando aos presos, e, sobretudo, gerando uma sobrecarga aos familiares, os quais se responsabilizam por estas demandas.

5.1.2 Quem são as pessoas que contam as histórias? O entre-lugares de reconhecimentos

As histórias são contadas através de um movimento dia-lógico, que ao mesmo tempo em que mistura o não lugar do outro, convive com reconhecimentos a partir de entre-lugares que se dão pela situação de ser confundido com familiar de preso, circunstância que pode ocorrer com certa frequência no estabelecimento e se configurar como um espaço de frontei-ras entre um olhar diferenciado. Por outro lado, se existe por parte dos integrantes da equipe técnica do estabelecimento uma leitura pragmática do cotidiano profissional, coexiste neste mesmo processo social olhares diferenciados para os familiares, o que demonstra, paradoxalmente, a convivência entre um olhar homogeneizante e um olhar não homogêneo em relação às famílias.

Então observa quem tá entrando, olha quem tá entrando. Olha se não parece um dia no interior, com sacola, com criança, com tudo que tem direito, e aquele ali é o preso, aquele ali que dizem que têm que matar, as pessoas enxer-gam isso? Não, não querem enxergar! É mais fácil matar, é mais fácil prender, é mais fácil achar que tirando ele da sociedade vai ser melhor. (E7)

O anverso dessa leitura convive com uma leitura prag-mática da realidade:

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Mas eu acho que a grande maioria é um sofrimento muito grande, também, e é um estigma muito grande. Só que eles já devem estar acostumados ou fazer de conta que não. (E5)

A seguir, uma breve apresentação dos quatro familiares entrevistados durante a pesquisa, bem como, um pouco de como se sentem passando pela experiência social de serem familiares de presos.

A primeira entrevistada foi F1, que é companheira de um apenado, o qual está em cumprimento de pena, ela refere que faz visita há um mês, pois os dois estavam em prisão provi-sória pelo mesmo processo e ela foi absolvida. A entrevista ocorreu em sua casa, na companhia de uma bolsista de inicia-ção científica.

Eu tenho 25 anos, estudei até a 6ª série, sou do lar, mas o meu sustento é um benefício social, a bolsa família. Eu também estive presa, e agora faço visitas ao meu compa-nheiro que está preso. Vai fazer um mês, fez um mês on-tem que eu estou visitando. Pra mim, eu me sinto assim presa. Por mais que eu esteja aqui na rua eu acabo sendo presa. Porque tu acaba passando por um transtorno. Às vezes eu tô tão empolgada pra visitar que eu vou levar o que eu conseguir. Não é grande coisa, mas já ajuda ele lá. Depois tu entra, tu vê aquela grade, tu vê tudo te revistan-do, tu acaba te sentindo mal. Eu acabo me sentido nervo-sa, entrando numa depressão, me sinto mal, por tudo isso sabe. (F1)

A entrevista com F2 foi a segunda a ser realizada, aconte-ceu em sua casa. Fui também acompanhada de uma bolsista de iniciação científica. F2 nos esperava com uma amiga que nos acompanhou até a metade da conversa, pois teve que sair, tendo F2 relatado que era a única pessoa que lhe apoiava, motivo pelo qual seria considerada muito importante a presença.

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Ana Caroline Montezano Gonsales JardimSobre as vivências e sobrevivências: histórias contadas a partir da auto-ecoorganização das famílias

Eu tenho 52 anos, recebo uma pensão do pai da minha fi-lha por morte do pai dela e sou artesã, quando eu consigo vender eu vendo. Moro com minha filha e meu filho. É um pedaço da minha vida que tá lá dentro, é um pedaço de mim que tá trancado lá dentro, coisa mais triste é tu sair de lá, que a hora que tu entra lá dentro e depois que tu vai sair assim, aqueles portões assim se fechando. Cara que o mundo tá terminando, parece que é a última vez, cada vez que tu chega na presença de uma pessoa que tá presa. Eu agradeço porque parece pra ti que é a última vez que tu vai ver aquela pessoa, é a sensação que te dá assim. Porque tu começa a pensar nessas coisas que dá, porque eles prendem lá dentro as pessoas e dá aqueles revertério lá de preso, tu tem que sair rezando e pedindo pra Deus que não seja a última vez, o que tu ouve deles lá, o queixu-me, aquela tristeza, o desespero, e ainda tu pensar nisso, ainda que, a esperança que eles tem que, principalmente o meu filho, a esperança que ele tem de sair de lá e começar a vida dele. (F2)

As últimas entrevistas foram realizadas com familiares que se reúnem frequentemente no intuito de criar uma asso-ciação, deste modo, a realização das entrevistas com F3 e F4 foi realizada em um mesmo dia, no local onde costumam se reunir.

Sou aposentada, estudei até o primeiro ano do 2° grau moro aqui em Porto Alegre com meu marido. Isso não era o que eu imaginava para o meu filho, e no caso dele, ele está arrependido hoje de estar lá encarcerado e eu aqui fora, com o compromisso de estar lá todos os dias, para poder ver o meu filho. Se eu não for vê ele a minha filha vai, o meu marido vai, mas eu fiquei mais doente nesse meio tempo e a minha filha disse não mãe você já esteve doente, não vai mais ver o mano, deixa que eu e o pai vamos, dai que eu fiquei mais doente, aí acharam melhor deixar eu ir, (risos) mesmo morrendo vai ver o filho dela, vou deixar ela ver o filho dela. (F3)

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Tenho 30 anos, sou estudante, moro em Porto Alegre com meus filhos. O meu familiar? São familiares, tive três ir-mãos presos e um deles morreu dentro do [estabeleci-mento], agora um está preso. Me sinto impotente, porque vê eles naquela situação é um horror, as condições lá são degradantes, não tem, eu penso até mesmo que não tem como a ressocialização deles naquele jeito, eles vão ficar piores, nem aqui fora vão dar oportunidade alguma à eles, nem para mim, para família também, não tem oportuni-dade alguma, se não lutar, não vamos sair dessa cadeia de vulnerabilidades, é muito complicado. (F4)

O relato dos familiares apresenta as situações de sofri-mento que vivenciam, e o modo como cada um precisa se auto-ecoorganizar a partir de suas responsabilidades para com o preso. Também é aparente em suas falas o cuidado2 que dispensam ao familiar que cumpre a pena, pois perante as situações de privações, muitas vezes os familiares abrem mão do seu próprio bem estar, para garantir ao outro, o mínimo conforto. Entre as falas, é notório que a noção de cuidado con-sigo, perpassa pelo cuidado com o outro, pois o bem-estar dos familiares está diretamente ligado ao bem-estar do parente preso e a manutenção do vínculo.

Os olhares que são direcionados aos familiares, como se estes estivessem acostumados à violência institucional, são justificados pela percepção de que estão inseridos em um contexto social de violência, em suas comunidades de origem. São argumentos como estes que desconsideram as vivências dos familiares e o sofrimento a que estão expostos. Por outro

2 As noções de cuidado e de conforto aqui utilizadas não estão relacionadas a um ideal, ou a uma visão idílica do que isso represente. Remetem as es-pecificidades de um contexto de privações, pelo qual os familiares respon-sabilizam-se por garantir não apenas as condições concretas de acesso aos mínimos sociais, como também, o apoio sócio-afetivo.

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lado, coexiste o reconhecimento de que há mecanismos diri-gidos às famílias no contexto prisional.

A fala de um técnico a seguir, sinaliza o estranhamento frente ao tratamento dispensado aos familiares, pois neste caso específico a situação é vivenciada por uma funcionária da casa, que por sua vez é identificada como alguém que não está acostumada a este contexto.

Eu tô com uma situação de uma pessoa que veio trabalhar aqui como funcionária e agora ela tá fazendo visita, eu to vendo um sofrimento muito grande porque ela já passou por um lado, e agora ela tá no outro, e como ela não tava acostumada ela tá tendo um sofrimento muito grande, porque esse olhar, de fora, de tratamento para quem vem fazer a visita, quem passa por uma revista, acaba sendo equivalente ao preso pra quem tá de fora. E nós, semana passada, não sei se vocês estavam, quando a gente tava ali embaixo e tinha uma turma de estudantes que veio co-nhecer, e eu não sei se eles nos olharam, e eles pensaram quem são essas, como se fossem um familiar mesmo, e era uma coisa desconfiada olhando assim (E1).

As ocasiões que fazem com que os funcionários sejam confundidos com os familiares se configuram como catalisa-doras para a percepção de que existe uma visão diferenciada em relação a estes, que pode ser pensado como uma extensão do olhar que é lançado aos presos por parte da segurança.

Eu já passei por situação de entrar com uma sacola, trazer, sei lá o que eu trouxe na sacola, e estava sem o crachá e o bri-gada que não me conhecia olhou e disse: sua carteirinha. (E2)

Por outro lado esta percepção é reduzida, quando tra-zem questões externas do meio social, justificando-se nova-mente por uma leitura pragmática da realidade, como se o

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contexto cultural pudesse justificar as situações às quais as famílias estão submetidas no sistema prisional.

E aí a gente percebe a diferença de quando tu passa pelo outro portão ali, como funcionária, o olhar é outro. Mas eu acho que essas pessoas têm toda a questão da cultura, da vila, e tal, mas assim, eu acho que já estão acostumadas desde pequenas. (E5)

Durante este processo de pesquisa também eu passei pela situação de ser confundida com um familiar, situação que ao mesmo tempo em que me deixou bastante desconfor-tável, me fez ampliar minha visão com relação aos mecanis-mos dirigidos e dispensados aos familiares.

Hoje cheguei ao presídio, por volta de 10 horas, para observar os atendimentos do setor psicossocial. Já havia ido ao presí-dio várias vezes, e sempre tive facilidade em entrar no esta-belecimento, pois apresento a minha identidade junto com a carteirinha da PUC, o que identifica a pesquisa e logo sou “reconhecida”. Por ter ido várias vezes, alguns funcionários já me conhecem. Porém hoje ao chegar ao estabelecimento e ter me identificado, fui informada de que eu deveria deixar as minhas coisas “ali na frente”, pois não poderia entrar com bolsa (que até então eu deixava em um armário com cha-ve), cadernos, material de pesquisa, etc. Na hora fiquei meio atordoada e custei a entender que o ali na frente mostrado pela funcionária referia-se aos botecos ao redor do presídio onde os familiares devem deixar seus utensílios antes de entrar no estabelecimento. Só me dei conta disso, quando os familiares que estavam na frente aguardando também para entrar, me informaram o que era, como funcionava e quanto eu deveria pagar. Não sei definir a sensação que tive, achei tudo um grande absurdo, o próprio Estado estimular o aluguel de bolsas na frente do presídio, situações que os fa-miliares são submetidos constantemente, e neste dia percebi que não apenas nos dias de visita. Eu estava indo junto com

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uma familiar deixar as coisas no tal bar, e de repente, entrou um advogado, aí eu voltei e perguntei por que ele podia en-trar, e eu não, e ela me respondeu, porque ele não é familiar de preso. (JARDIM, 2009. Diário de Campo)

Ainda que eu não tenha deixado as minhas coisas nos arredores do presídio, ter passado por esta situação, me causou um enorme estranhamento, pois pensar na possibilidade do constrangimento de ter que despojar-me do que eu estava car-regando, caracterizou-se para mim como uma forte violência.

Após esta problematização acerca do entre-lugares de reconhecimentos, segue a apresentação dos elementos da pes-quisa os quais buscavam a priori, conhecer as percepções dos profissionais das equipes de classificação penal em relação à inserção das famílias no tratamento penal. No entanto, assim como não há uma equipe específica para classificação no esta-belecimento, em suas falas, os integrantes da equipe técnica, os quais são responsáveis pelas intervenções de atendimen-tos aos presos e familiares, alternam um visão difusa no que tange ao próprio tratamento penal e sua existência dentro do estabelecimento, sobretudo, no que diz respeito às famílias.

5.1.3 O Tratamento Penal Jurídico-Formal e a recursividade das dinâmicas prisionais: que relação é essa?

Tanto o tratamento penal quanto a individualização da pena podem ser pensados igualmente como contextos que tecem as histórias e os temas emergentes; como temas de análise, a partir da problematização teórica feita sobre essa temática. Ao me propor em realizar o grupo temático com os integrantes da equipe técnica do estabelecimento, pensei que seria realizado com a equipe de classificação penal, pois, ao

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elaborar o projeto, tinha uma ideia de um tratamento penal a partir do que está prescrito juridicamente. No entanto, algu-mas diferenças começaram a aparecer, e sob essa perspectiva emergente da realidade pretendo apontar esses tensionamen-tos. As questões referentes à individualização da pena e ao tra-tamento penal, tendo em vista os objetivos da pesquisa e ins-trumentos para sua realização, referiam-se as percepções de como as famílias estão inseridas nesse processo. No entanto, por não haver uma individualização da pena, tão pouco um tratamento penal, sob o ponto de vista do que é prescrito, foram apresentados outros elementos que permitem compre-ender a prisão em seus aspectos de auto-produção.

Apesar das falas dos técnicos sinalizarem um descom-passo entre as noções de tratamento penal juridicamente nor-matizadas, ainda que em uma visão correcionalista, pude per-ceber que realizam suas atividades no limiar de um sistema que gradativamente recua em termos de condições mínimas para o cumprimento da pena. E por esse aspecto, muitas vezes a garantia de atendimentos sistemáticos aos presos, e as condições necessárias para o enfrentamento das situações as quais os presos estão expostos, é deslocada para a motiva-ção pessoal de cada técnico, pois as dinâmicas prisionais não favorecem tais intervenções.

A seguir, o relato de um técnico expressando suas possi-bilidades de intervenção.

Porque o nosso trabalho qual é? É retirar, transformar o pedaço de carne quase que de açougue, como a sociedade enxerga o preso, e tentar encontrar o que resta de sujeito, que esse é o trabalho pelo menos do psicólogo, entende, da psicologia. (E8)

Guindani (2001, p. 35) problematiza o contexto de retirada do Estado em termos de tratamento penal, pois indica que:

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Ao mesmo tempo em que a LEP passou a garantir, nos ter-mos da legislação, o “Tratamento Penal individualizado” e o acesso aos direitos humanos e sociais dos apenados, houve uma retirada do Estado, no que tange às condições materiais e humanas para efetivá-lo.

Outra dimensão relacionada ao trabalho técnico são os objetivos incompatíveis de uma mesma organização, como aponta (CHIES, 2008) a viabilidade das ações que se projetam ao grupo dos técnicos, muitas vezes entra em choque com os mecanismos de segurança do estabelecimento prisional. Situ-ações que gradativamente contribuem para que os técnicos assumam apenas a demanda de produção de laudos e avalia-ções para o poder judiciário.

Segundo a LEP, esperava-se que a equipe técnica (repre-sentada por profissionais das áreas de Serviço Social, Psicologia e Psiquiatria) exercesse a função de classifi-cação, triagem, assistência e amparo ao sujeito preso, ao egresso e seus familiares, bem como a fiscalização do ‘mau’ cumprimento de recursos jurídicos. Foi observado, no entanto, que a partir de meados dos anos 90, as equipes foram induzidas a atender basicamente às demandas do Poder Judiciário, atuando na elaboração de pareceres refe-rentes às mudanças de regime. (GUINDANI, 2001, pg. 36).

Como menciona Chies (2008) a previsão da LEP em ter-mos de individualização da pena, distingue a existência de duas equipes. Uma das equipes previstas é a CTC (Comissão Técnica de Classificação Penal), localizada no estabelecimento prisional, cuja especificidade consiste na elaboração do acom-panhamento e do programa individualizador o qual é o parâ-metro para efetivação do tratamento penal jurídico e formal. A outra equipe, é a EOC (Equipe de Observação Criminológica) localizada nos Centros de Observação Criminológicas, (COC),

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que de modo geral no interior do Estado está vinculado às delegacias penitenciárias e em Porto Alegre, ao DTP (Departa-mento de Tratamento Penal). Com relação às EOC realizariam os exames gerais e criminológicos, bem como os laudos e ava-liações solicitados pelo poder judiciário. Entretanto, ambas as atividades passaram a ser cumuladas pelas equipes Técnicas de cada estabelecimento, com exceção dos exames criminoló-gicos que continuam sob atribuição das EOCs.

A individualização da pena é um dos princípios insti-tuídos na LEP, e que formalmente deve orientar todas as etapas da execução penal, dirigindo o tratamento penal a ser executado. Ainda que a noção de individualização seja ambígua, sobretudo, por permitir que a classificação recaia sobre o sujeito, a noção de individualização também deveria contemplar as intervenções a serem realizadas como meio de enfrentamento, no entanto na realidade prisional existem movimentos diferenciados, os quais auto-produzem dinâmi-cas próprias de funcionamento. Nesse sentido, o que é pro-duzido no sistema penitenciário é a “classificação por ela mesma”, como modo de estigmatização e essencialização do outro. Pois os aspectos da LEP que deveriam estar em funcio-namento, garantindo o acesso aos direitos sociais, estes não se efetivam na realidade prisional.

O juiz manda pra gente, porque eles passam, os presos passam pela equipe do COC [Centro de Observação Criminológica], daí a gente faz, eles fazem entrevistas com eles o juiz nos repassa quando fulano de tal necessita de acompanhamento. (E1)

Perante a LEP, cada estabelecimento deve ter uma equipe técnica de classificação penal, a qual é responsável pela apli-cação dos critérios de individualização da pena para que os

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presos consigam alcançar, de acordo com suas condutas, o tratamento penal. O relato dos técnicos do estabelecimento mostra que as entrevistas para individualização da pena são feita por uma equipe externa, e, em seus entendimentos, a individualização só é alcançada mediante ordem judicial.

Na realidade, então, o processo é feito por uma equipe de fora, do COC e depois vem a indicação para nós. Essa equipe faz essa entrevista e já faz as indicações, de acordo com a estrutura desta casa, vai se conhecendo o que se pode fazer aqui dentro e o que não se pode fazer. Então por isso que, de repente, as indicações elas estão bem di-recionadas com a realidade da casa. Então não adianta ela [equipe COC] querer eleger que é este cara é mecânico. Não existe a resposta para essa necessidade, então essa equipe conhecedora disto já não vai fazer indicações, por-que conhece a realidade. (E3)

O que for pra ele indicado [juiz], foi tirado daquela entre-vista, e a gente então recebe conforme galeria, porque é dividido por galeria, e a gente vai atendendo. (E2)

Relatam, também, a pontualidade e o ritmo dos atendi-mentos feitos dentro da prisão e a demanda de laudos sociais, que acabam adquirindo uma dimensão maior em função dos prazos para sua execução e a prioridade que assumem frente às atividades que seriam de acompanhamento às situações dos presos e de seus familiares.

Na realidade, o acompanhamento mesmo em si é mais com a psicologia. O Serviço Social é mais de encaminhar alguma coisa, com a família, os documentos, esse tipo de coisa as-sim. Até porque a gente tem um ritmo, uma demanda mui-to grande de laudo, de outras coisas que exigem que a gen-te dê prioridade até pela própria direção da casa, a questão de ordem judicial que são as progressões, os laudos que a

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gente tem que fazer. Então tem coisas assim que são bem pontuais de o Serviço Social de se fazer, encaminhar, faz o laudo e deu. Só com penas muito altas, com crimes hedion-dos, alguma coisa assim de muita proporção, ou então de mídia, às vezes, é que se faz um acompanhamento maior, mas eu acho que é mais junto ao psicológico. (E2)

A descrição de trabalhos anteriores e a justificativa do não feito pela dinâmica da casa:

Aqui existe uma coisa, um fato que assim que até existiu e até existe algumas coisas assim, mas é um número mui-to pequeno, existe o Amor Exigente, existe A.A [alcólicos anônimos]. Existe, assim trabalho de grupo coisas assim de uma maior proporção que gente possa envolver os apenados é impossível em função da segurança, do gran-de número, do número pequeno de técnicos, de toda essa demanda que a gente tem, então assim, como a colega fa-lou é uma casa diferenciada que não tem como fazer um trabalho, assim, como existe em algumas outras, em que é um número bem menor, é mais viável, fazer, o espaço também existe, aqui não tem como. É muito complicado. Tu fez um trabalho na sala de revista né? Mas foi com o pessoal dos funcionários. (E1)

Algumas ações de tratamento penal elas acontecem de forma pontual,não existe um trabalho continuado, em que se possa fazer um acompanhamento da mudança que esse tratamento penal poderia resultar. Então, assim tu faz algumas coisas de tratamento penal, mas é pontual e tu não tem o acompanhamento depois para ver, seguindo intervenções pontuais. (E2)

Referente às famílias, repete-se a pontualidade de aten-dimentos a partir de demandas específicas quando os fami-liares procuram os técnicos, na busca por uma melhoria ou atenção maior para a situação de seu familiar que está preso.

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E a família nos procura muito também, além daquele dia que tu deve ta sabendo que o Serviço Social e a Psicologia atendem. Nos procura muito por telefone e aí dá todo um desdobramento que traz no telefone, que o filho tá isso, tá aquilo, tá aquilo outro, se a senhora pode me ajudar, ta doente, tá com “N” problemas, e aquilo dá um desdo-bramento de encaminhamentos, a gente fica, o conselho tutelar nos liga, prefeituras de outros lugares nos ligam. A gente às vezes tem que procurar. Teve um caso aqui em que o pai do preso tava com o filho dele, com a guarda do filho dele, porque tava preso e tinha tanto problema de di-nheiro que ele invés de trazer comida ele acabava levando comida daqui do presídio e isso deu um problema. (E5)

O acontecimento citado, alusivo ao familiar que saiu da prisão com mantimentos, ainda que pese uma condição de vulnerabilidade social, reflete os tratamentos diferenciados em um mesmo espaço prisional. Pois em um lugar de preca-riedades, onde muitos não acessam o mínimo, talvez o preso que acessa os alimentos para repassar aos seus familiares, deve ou submeter-se a certos tipos de comportamentos, fazer parte de uma cozinha geral, ou até mesmo submeter-se ao roubo dos alimentos. Mas o que permite pensar que em ter-mos de tratamento penal, alguns grupos perpassam diferen-tes contextos no mesmo espaço prisional.

Outra situação relatada refere-se à perda de vínculos, no sentido de buscar uma proximidade com o familiar como apoio ao preso, o que mais uma vez evidencia o processo de responsabilização dos familiares frente às demandas do sis-tema prisional. Em um contexto onde os técnicos não conse-guem subsidiar os sujeitos presos, as famílias são acessadas como um recurso às provisões necessárias.

Quando envolve família é aquele apenado que perdeu ou o vínculo está enfraquecido, pra se tentar buscar resgatar

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esse vínculo, essa proximidade para ele ter um acompa-nhamento (E3).

Considerando as avaliações feitas para progressões de regimes, relatam como são interpretadas as relações familiares, desde a história anterior à prisão, até o rompimento de víncu-los durante a execução da pena, e se existe uma projeção na figura da família para um apoio quando sair da prisão.

Isto é um dos pontos muito importantes dentro da avaliação. As relações da infância, da adolescência, como isso evoluiu, essa interação que teve, este acompanhamento que teve, na história pregressa dele e também na atualidade. (E3)

Se ele recebe apoio, visita aqui, sim ou não, porque que não, porque se romperam os vínculos familiares, porque sem-pre é abordado nos nossos laudos, até para ver que aparato ele tem para uma progressão de regime, para uma liberda-de condicional, o que vai ser dele nas relações lá na rua. (E2)

No contexto específico das avaliações, ter família confi-gura-se como uma possibilidade para o sujeito preso de aces-sar a progressão de regime.

Após esta exposição de textos e contextos que tecem as histórias contadas e vividas, passo então, a apresentar os temas emergentes da realidade pesquisada, os quais são descritos por meio do relato dos sujeitos, e analisados sob os princípios já elencados.

5.2 Entre as redes de apoio e o fundo da cadeia

As redes de apoio, no contexto prisional, são geradas tanto na perspectiva de auxílio ao preso, frente às limitações do Estado em atender suas necessidades, quanto redes gera-

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das pelos próprios familiares no sentido de ajuda mútua, para que consigam acompanhar o familiar que cumpre a pena. Assim, demonstram uma relação de auto-ecoorganização.

As próprias amizades que a gente faz não são por galerias é por ser unida ali na fila. As amizades que a gente faz ali é aquela pessoa batalhadora, que a gente vê que faz de tudo pra visita. Que nem eu tava te dizendo aquele dia que tu me ligou eu recebi eu não apaguei pra ti mostrar, eu recebi uma mensagem de uma menina, é uma das primeiras a ir pra fila então ela guarda lugar pras meninas que chegam de noite. Então ela me ligou eram nove horas. Tu tem como vir pro presídio agora pra guardar lugar pra gente que eu tenho que ir pro meu serviço e eu preciso de alguém. Aí eu puxa eu to dormindo sabe. Aí eu disse ai só não tenho passagem mais. Até umas dez horas tu me liga que, até foi os meus vizinhos aqui da frente que me deram dois pila. Depois lá por umas quatro horas ela me mandou mensa-gem: to chegando, pra mim poder vir pra casa. Então tu acaba fazendo aquelas amizades, uma apóia a outra ali. Tanto pro cigarro, pro cafezinho tudo, tudo. Tu ta com fome sabe? É bem constrangedor. Tem umas que tu vê assim que não tem nada. Nem a passagem de ir pra casa. Uma acaba ajudando a outra. E quando elas pedem favor assim: ah tu pode entrar com um dinheiro a mais pra mim? Eu sou uma que acaba sempre entrando. Não me custa assim. (F1)

Através de relações de reciprocidade, em troca da ajuda e do apoio para que o familiar possa acessar ao ambiente prisional e auxiliar seu parente preso, acaba interagindo em redes informais que podem remeter às condutas ilícitas, pas-sando pelo processo de assujeitamento criminal. O exemplo aqui citado refere-se à entrada de uma quantia de dinheiro maior que o permitido, no entanto, outras trocas podem ser acessadas por estes aspectos de autonomia e dependência.

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Podem ser consideradas também, as redes entre os entre os próprios presos, que não obstante, adquirem funciona-mento a partir da manutenção de seus familiares. O relato de E1 manifesta essa dimensão.

Mas em primeiro lugar também a necessidade real por-que o Estado não fornece nem o mínimo, então assim, ma-terial de higiene, roupa, isso tudo precisa, o ser humano precisa, então elas trazem também por isso, depois rebate todas essas situações que as gurias estão falando, sim de comida também porque muita gente não consegue nem comer. (E1)

A fala de F1 revela o funcionamento de determinadas dinâmicas, sobretudo, quando ela diz: “a lei da cadeia é assim”.

E pra cabeça deles que tão presos, sentem abandonados praticamente. Tem visitas que não vai, tem visitas que não levam nada pra eles. Eles acabam comendo a comida do panelão. No presídio eles ganham doação de sabonete, sabão, sabão em pó. Produto sanitário. Mas eles não ga-nham. Então eu sei que vêm doações, mas eles dão quan-do querem. Quando tu merecer eu dou, se não eu não dou nada. E quem não tem o familiar que não leva as coisas pra eles, o que eles acabam se submetendo eles acabam se oferecendo pra lavar roupa do próprio preso, pra ganhar um sabonete, um papel higiênico. O presídio ele também ganha doações de roupas. Tu acha que eles dão? Eles não dão. Ganham mais não dão. É raro darem. Bem raro. Então ali a lei da cadeia é assim: Se eu fui absolvido ou sai numa preventiva, que a preventiva como tu ta preso como tu saiu do presídio tu pode voltar. A lei da cadeia é assim: Tudo que tu ganhou do teu familiar, tu não é obrigado tem a escolha, mas se tu quiser deixar pra quem não tem tu deixa. Porque tu pode voltar e tu ta numa situação de não ter uma visita e eles poderem te apoiar. (F1)

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O fundo da cadeia, como tema emergente, remete às dinâmicas prisionais, cuja especificidade é demarcada para além da auto-produção de um proceder carcerário genérico, mas que configura a atuação mais intensa, inclusive em ter-mos de obrigações para com os familiares, dos grupos de poder informal frente aos códigos do cárcere.

Também pode ser considerado que a atuação destes gru-pos gera uma sobrecarga aos seus familiares, os quais são convocados a atender as obrigações do fundo da cadeia e, por outro lado, precisam se manter com uma imagem de respeito perante os agentes do Estado.

Mas eu vejo pelas meninas que levam. Tem meninas que levam trezentos reais. É uma coisa que não pode levam escondido. Elas botam. E na hora ali que tu vai pra eles verem a sacola, abrir a sacola elas perguntam a quantia que tu tem ai tu diz: Vinte pila, dez reais. Pra eles no com-putador ah entrou com vinte reais. Mas até eu subir não é vinte. Eu entro com trezentos, trezentos e poucos (F1).

Existe também, um temor por parte das famílias, de que seus familiares presos não façam parte de determinados gru-pos. A seguir a fala de uma mãe, contando sobre o receio de que o filho possa fazer parte dos grupos que interagem com o chamado balão, e como ocorrem as interações entre grupos, também em dias de visitas.

É eu nem vou vim mais, tu não fala comigo, tu não da bola para mim, tu só fala lá com eles... Sabe aquela caminhadi-nha na hora que a gente visita, aí é o tal de balão, nem sabia o que era balão. Um homem gritando “olha o balão, olha o balão”, aí [nome do filho] ”ai mãe para de falar bobagem”. O balão é a droga que passa entre os presos. O balão vai ali mostra o que tu quer e tu compra. Lá dentro tudo o que

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não pode entra, lá dentro tem, é isso que eu não entendo a droga que tem lá dentro e o guarda tá aqui, eu to aqui dando a carteira pro guarda eu tô sentindo o cheiro que tá vindo, ele vem fecha o portão e ele sabe muito bem com quem tá droga, com quem não tá a droga o que acontece lá dentro. Eu não vi, mas disseram que jogaram um cara no portão, porque ele roubou a droga do velho. Mas tu pensa bem, tá sabendo que lá é perigoso, como é que ele vai me rouba droga do tal do velho esse, tem lá, ele acho que o velho não dava falta, diz que todos da galeria deram nele, todos da galeria deram nele, e depois o cara foi jogado na grade, isso em um dia de visitas. (F3)

As experiências vivenciadas, tanto em termos de redes de apoio, como em relação ao fundo da cadeia, são descritas a par-tir do contato com as dinâmicas prisionais nos dias de visitas. Para compreensão do funcionamento da realização das visitas, seguem alguns relatos, pelos quais procuro demonstrar os ritos que são instituídos bem como seus significados para os sujeitos.

5.3 Os dias de visitas: os ritos e seus significados

Os dias de visitas repercutem nas mais diversas expe-riências relacionadas à prisão. Realizei observações partici-pantes nestes dias, tanto na parte externa do estabelecimento quanto na interna, o que me possibilitou uma aproximação com a realidade vivenciada pelos familiares.

Inicio essa reflexão com um registro de diário de campo, que revela uma experiência bem diferenciada das demais, referente ao processo de auto-ecoorganização desta família.

Conversei com uma senhora de idade que estava sentada na frente do presídio. Ela relatou que não realiza visita ao seu filho, quem realiza é sua filha (irmã do preso), pois ela não entra para visita, mas aguarda pela filha durante

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todo o dia na frente do estabelecimento. Contou que hoje é dia de levar a sacola (que são os mantimentos e mate-riais de higiene que podem levar para os presos). Por volta de umas 17hs, a filha saiu da visita e relatou que está feliz por seu irmão estar trabalhando, e assim, estar na ala dos trabalhadores. Ela contou que nesta ala são 08 por cela, e é uma ala muito boa, a melhor do presídio. Outro fato destacado é de que esta ala tem janela para a rua, e assim, hoje sua mãe tinha visto o filho, pela primeira vez desde que foi preso. A mãe ficou na frente do presídio e o fi-lho da janela acenava para sua mãe, pois ela tem medo de entrar, e em todas as visitas, fica esperando pela filha do lado de fora. (JARDIM, 2009. Diário de Campo)

O relato abaixo menciona o aprender a lidar com o trata-mento, “antigamente eu ficava nervosa”; “tu tem que te sub-meter”, são descrições como essas que revelam as penalizações dirigidas aos familiares.

Os dias de visita antigamente, um dia antes eu já ficava nervosa, tensa, porque, as funcionárias lá, maltratam tu de mais, e tu tem que te submeter a elas, ficamos doente, e estressadas em função disso, quando estamos lá a gente vê coisa pior, não só pior, pior é as condições lá, cachoeira cain-do de esgoto, bichos, a gente entra lá, já vai vulnerável por causa dessa situação pra entrada, depois chega lá dentro e vê eles naquela situação, nós saímos muito mal, mesmo, em todos os aspectos, pessoal, psicológicos, tudo. Tu não vê aquilo como hum, aquilo lá é paga, eu acho que aquilo é a morte, me parece à morte assim, não vejo, luz nenhuma na-quele lugar, punitivo, quem dera se fosse punitivo, tá doce perto daquilo que a gente vê lá. Aquilo ali, tanto que a gente faz sabe que os homens morrem lá dentro, é horrível. (F4)

Um dos procedimentos do dia de visitas são as revistas, mecanismos que ao mesmo tempo em que expressam uma

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forte violência institucional, também são percebidos por fami-liares como necessários, sobretudo, como meio de diminuir a entrada de utensílios proibidos.

A seguir a fala de um técnico que expressa o antago-nismo que envolve este procedimento.

Porque que no aeroporto internacional as pessoas são ex-tremamente respeitadas e porque que aqui muitas vezes acaba existindo confrontos, porque ou histórias de ter que tirar roupa, ou isso, ou aquilo, não tem a questão do inves-timento aqui a coisa passa por aí também, qual a diferença, são seres humanos. Ah, mas um é, isso, é que tá viajando, tem dinheiro mas e o outro, o outro não tem, então, e aí, isso é motivo para alguém passar por isso, e se tu fores viajar, a gente tem que se colocar um pouco no lugar que a gente tá, imagino, investigando pra funcionar, vamos supor que cada um de nós passando por uma revista, o que é legal, o que não é legal, ai eu não acho legal tirar a roupa, mostrar minha intimidade, isso é abusivo, pois é. E Imagina que você tem um filho ou irmão drogado aqui dentro, tu não quer que entre drogas, não é verdade? E quem é quer fazer isso? A gente? Então é difícil, achar uma resposta tem coisa que é difícil. Não é algo simples assim (E8).

O que repercute no relato de uma mãe e a preocupação com as drogas que entram no presídio, apesar de achar os procedimentos abusivos, e afirmar que existem outras dinâ-micas das quais ela não faz parte.

Eu acho que uma mãe jamais por mais ruim que ela fos-se, ela vai leva uma droga pra um filho sabendo que vai querer ver um filho naquela perdição eu acho que isso daí principalmente pras mães. Tu vê às vezes velhinha lá de 80 anos na fila lá tirando a roupa e se pelando pra passar numa revista que coisa mais triste isso, eu acho um cúmulo isso ai, por que eu acho ou uma mãe que uma vó jamais

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vão levar uma droga pra um filho, pra um neto. Eu acho que eles deviam também entrevistar as pessoas, as famí-lias, pra ver a conveniência de fazer o que fazem. E, no en-tanto, tem tanta coisa errada lá que tem pessoas lá se pros-tituindo lá dentro da prisão se vendendo pra pros caras lá arrumar dinheiro as pessoas da pá virada daqui da rua vão lá pra dentro se prostituir pros caras lá, pros preso lá (F2).

Um elemento presente nas práticas de revistas é o poder discricionário da equipe de segurança, uma vez que podem, a partir do regimento para entrada de visitantes nos estabe-lecimentos da SUSEPE, suspeitar do visitante por parte de material ilícito, independente de ter passado pelo detector de metais, e assim exigir a revista íntima.

Que nem a gente viu ontem a discriminação de uma mu-lher pela quarta vez. Não digo nem uma senhora uma gu-ria bem jovem até. É a quarta visita dela e na revista ela tem que se pelar toda e ela disse que só ia se submeter a isso se tivesse a testemunha de uma visita. Ai uma menina que eu conheço foi a testemunha tudo e ela disse que ia dar queixa porque, só porque ela é negra, foi assim que ela entendeu só porque eu sou negra, discriminação e ai ela pegou e saiu dali e foi pra registra queixa. (F1)

Nos dias de visita a comida que os familiares levam em potes, perante a segurança, deve ser para o familiar comer, pois o Estado alega que o preso já recebe comida (mesmo que permita que as famílias levem a sacola), no entanto, os fami-liares levam a comida para o preso, de modo ainda, que possa haver uma divisão na cela, com o que sobra.

Mas assim a comida que a gente leva, é pra eles ali e é pra nós. Pra tu ter uma noção a gente acaba levando às vezes um pote bem grande. Elas não deixam, a gente tem

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que tirar um pouco. Tem que jogar fora pra elas deixarem entrar. Então a gente já sabe uma quantia certa pra não acabar acontecendo isso. Então assim a gente chega com uma sacola, com a comida e com a sobremesa. Um pote da sobremesa. Então a gente acaba omitindo que é pra gen-te comer, mas não é. A gente deixa ali pra eles comerem. Então ali eles acabam dividindo depois que a visita vai embora dividem com aquele que está na cela. Uma comi-da diferente pra eles aquilo ali é tudo. (F1)

F3 relata todo preparo da comida, que começa já no iní-cio da semana, pois assim como o filho espera sete dias, nos sete dias da semana ela vai preparando as coisas que serão levadas nos dias que pode entrar.

Eu na segunda feira à noite, o que eu tenho que levar eu já separo, se já tá os bruto das compras, eu já fiz um quilo de cada coisa por que ele espera sete dias também. A torta de bolacha que é no final de semana eu faço na sexta ou pudim, o arroz eu faço de manhã às seis horas da manha, a carne eu levo no sábado ou salsichão, a batata eu cozi-nho, aí no sábado eu só descasco, pico coloco num pote, e levo a maionese. Eu passo a manhã toda com ele, e o pai e a irmã dele passam à tarde com ele, uma hora, uma e meia eles estão chegando eu saio. (F3)

Conta também, que o filho sempre chama alguém para convidar com a comida.

No dia de visita, chamam ele, ai ele me recebe, ai ele senta comigo, se ele quiser chamar um ou dois, ele chama, ai fica ali com a gente, se ele não quiser não chama. Mas ele sempre chama um ou dois, para convida para a comida, tia para cá, tia para lá. (F3)

F2 se desloca de outro munícipio e por isso, vivencia situações mais específicas, sobretudo, porque precisa pegar

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um transporte mais cedo, e desde a noite anterior, fica com receio de se atrasar, relata que o transporte circula de modo ilegal, pois não oferece segurança a todos os passageiros mas, segundo ela, tem de se submeter a tal risco. Em sua fala, expressa a preocupação com os filhos que ficam em casa e a tensão de estar “aqui” pensando “lá” e “lá” pensando na vida aqui de fora. “Não tem como tu sobreviver a tua vida assim”.

Eu me acordo, se eu acordar a uma e meia eu não durmo mais, porque eu tô pensando que eu vou perder a Van, essa Van que ela sai assim, leva as pessoas, claro tu paga, paga um pouquinho a mais, mas pelo menos te larga lá na frente. Mas ali dentro, eles botam 19 dentro daquela Van. Imagina se aquilo chega a capotar no caminho, uma travada que de, 19 pessoas dentro de uma Van não tem um cinto de segurança, não tem nada. Eu saio daqui cinco horas, cinco e vinte por ai, passa por aqui. Chega lá seis horas. Daí ficar lá até as onze e meia pra tu entrar dentro de um presídio. Fico pensando na menina que fica aqui, o guri que não tá em casa ele bebe, quando ele não tá em casa ele sai por ai a ferver por ai. Eu não posso ir domingo eu vou só na quarta que ele está trabalhando, ai eu deixo a menina pra trás, a menina vai pro colégio sozinha. Tu não sabe tu tá lá, se não vai acontecer alguma coisa aqui com ela se não vai, do jeito que tem essas brigas de gangue ai coisa mais horrível. A guria vai passando ai arriscando to-mar um tiro levar uma bala perdida. E tu fica incomunicá-vel, não pode entrar com celular. Tu leva o celular até um bar e deixa desligado. Até tu chegar em casa pra ti saber alguma coisa com a cabeça lá dentro e pensando aqui e pensando lá, não tem como. Não tem como tu sobreviver a tua vida assim. Tudo que eu digo, não por ser meu filho poderia ser o filho de qualquer outra pessoa. (F2)

Outra situação vivenciada por F2, que aconteceu em um dia de visita, é bastante emblemática no que tange ao objeto desse estudo, e por esse motivo, será contada integralmente.

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Eu entrei na Assistente Social na semana passada, porque olha só eu cheguei de manhã lá sete e pouco oito horas daí ninguém tinha feito a tal visita de quinze minutos daí digo bom vou levar as coisas pra ele tava lá mais de quin-ze dias tinha se entregado sem roupa sem nada, de cer-to emprestavam pra ele os presos sei lá. E ele pedia pros parentes dos outros, dos amigos dele me ligar desespera-do porque estava sem roupa, sem nada lá. Daí eu fui lá, cheguei lá, olha eu quero fazer a visita de 15 minutos que não foi feita ainda. Ai a mulher olhou não já foi feita sim. Não, não foi feito não. Não foi inclusive a namorada dele teve ai. Não a namorada dele, que ficou uma semana com uma guria que morava perto da casa da minha filha, veio na outra visita antes dele fugir. Depois que ele fugiu não veio ninguém aqui. Ai ela: ah ta, então ta é isso mesmo pode ir. Então mandou eu esperar, a sra espera se passa no balcão ali. Ta, ai chegou na minha vez, faltava quinze minutos pra encerrar pra hora do almoço delas, ela sim-plesmente olhou pra mim e disse não agora tu não pode entrar. Ta por quê? Daí diz ela assim, porque em quinze minutos já vai encerrar e não da tempo de tu ir lá em cima e voltar em quinze minutos. Tu não pode ficar lá em cima mais de quinze. Daí eu disse ta e agora. Daí ela disse a uma e meia tu entra. Daí eu digo vou esperar eu to aqui. E eu sem dinheiro pra comprar um pão pra mim comer. Eu morrendo de fome. Daí eu meu Deus o que é que eu vou ficar fazendo aqui, só tenho o dinheiro certo da pas-sagem pra mim voltar. Daí esperei até a uma hora, quan-do chegou a minha vez de novo a mulher olhou, passou no computador: não fulana o fulana (nome). Daí eu disse assim porque eu não vou poder entrar se eu to desde de manhã aqui se tu me falou que era pra mim esperar até a uma e meia? Não porque já foi feita a visita pra ele. Não foi pelo amor de Deus eu sou a única pessoa que veio aqui ver ele, não veio mais ninguém. Já veio sim, a namorada dele. A coisa que ela tinha olhado antes ela olhou de novo a mesma coisa. A namorada dele, ele não tem namorada dona, eu sou a mãe dele e ele não tem namorada. Daí ela

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disse assim ah mas como é que a (nome) esteve aqui? Foi a outra visita eu já expliquei pra sra. Ah desculpa, ta ela pode passar. Ta passei. Passamos na revista. Esperei todo esse tempo. Daí quando eu chego lá na sala da visita foi mais umas dez mães parece, veio o filho de todas as mães e eu sentada na sala ali esperando, ai a (funcionária) olhou assim pra mim: o teu filho não vem. Tá porque ele não vem, se o filho das outras tudo vieram porque o meu não vem na visita de quinze minutos que eu podia fazer pra ele, trouxe a sacola, as coisas dele aqui. Não ele não vem, eu não sei explicar o porque. Ta mas tu vai ter que me ex-plicar eu vou fazer o que aqui. Daí ta passou o telefone lá ligou, olhou assim pra mim: não o teu filho não vem. Ta mas por quê? Ah ele ta doente. Ele ta no hospital. Quando ela disse assim, pensei que tinham arrebentado ele a pau. Ta mas o que é que ele tem? Ah ele ta doente da cabeça. Mas como assim doente da cabeça moça. Faça o favor de me explicar. Ah eu não tenho muita explicação pra te dar. Ah mas me explica doente da cabeça como? Ah ele ta lelé da cuca. Daí eu digo mas ele não tava lelé da cuca, como é que eu vou chegar nesse hospital, pelo menos me dá o endereço pra mim chegar no hospital, saber o estado dele. Não tu não pode ir lá. Mas como eu não posso ir lá se o meu filho ta lá e ta doente da cabeça eu não posso ver meu filho? Alguma coisa ta acontecendo. Ah isso ai eu não te-nho explicação pra te dar, pergunta na saída. Ta tudo bem. Pelo menos tu me da o endereço da Assistente Social,eu sei que tem uma Assistente Social só não sei onde é que é tu me explica onde é que é que eu quero ir lá falar com eles. O que é que tu quer falar com eles, eles não tem nada pra te explicar. Eu digo não eles tem alguma coisa, alguém vai ter que me explicar alguma coisa eu disse pra ela. Agora eu vou ficar o dia todo aqui sem ter noticia do meu filho com fome aqui e ir embora sem resposta de nada eu vou ficar louca se eu sair daqui sem saber o que aconteceu com ele. Daí eu fui. Daí ela disse ah não adianta nada tu falar com eles. Daí eu adianta sim. Ah eu não sei pergunta lá na frente que elas vão te explicar. Ai chegou lá a mulher: ah o

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que é que tu quer com elas? Ah é problema meu, eu quero conversar com elas, eu quero saber do meu filho. Eu quero simplesmente saber do meu filho. Ah já não te explicaram? Não, ninguém me explicou nada até agora. Um diz uma coisa, outro diz outra e eu não sei de nada. Ai ela falou assim ah é ali do lado sai ali na porta vai ali do lado e te informa ali que eles te explicam. Ali foi outra polêmica pra conseguir subir chegar na sala da assistente social, ai falar com a guria foi outra polêmica. Entrou na sala dos (funcio-nários) dos sei lá, num minutinho eles ficaram bonzinho, calminho. Não teu filho ta com crise de abstinência. Eu não sabia nem o que era isso, o que é que isso? Daí falaram assim é da droga. Ta mas a mulher falou que ele estava do-ente da cabeça. Não, não é doente da cabeça, quem te dis-se isso? Uma (funcionária) a me disse que ele tava lelé da cabeça. Não, não isso é o negocio da droga que da isso ai. Ta mas deixa louco? Não, não ele tem que tomar remédio ele não ta baixado ele só ta lá pra pegar o remédio. Eu ia vir pra casa doente por causa disso, até me matava porque o estado que eu tava. Pensei bateram nele, arrebentaram a cabeça dele a pau e ele ficou doente da cabeça, eu pensan-do comigo. Ai veio com essa crise de abstinência não sabia nem o que era isso. Ah uma coisa grave pensei comigo. Daí ta foi lá que elas me explicaram direitinho, me deram até o telefone daí da sala pra mim ligar se fosse preciso. Porque até ali nem telefone queriam me dar. (F2)

O relato de F2 expressa não apenas uma experiência social em relação a sua inserção no tratamento penal do filho, mas experiências diversas. As quais perpassam, desde os ritos do dia de visitas, como a espera, o deslocamento, as priva-ções a que se submete, bem como a ausência de informações sistematizadas que possam evitar o constrangimento por não saber onde está o filho, e o modo como os familiares podem ser tratados por alguns funcionários, culminando em meca-nismos de violências vivenciados pelos familiares.

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5.4 Relações familiares na prisão: ressignificação de vínculos

As relações de afeto aqui pensadas remetem aos víncu-los entre os familiares e seus parentes presos, e nesse sentido, essas relações emergem em um contexto de deslocamentos, em que estes vínculos para que continuem existindo, são res-siginificados cotidianamente. Durante o grupo temático, a fala de um integrante da equipe técnica me marcou bastante, ao revelar, uma outra dimensão destes vínculos.

Denota também, assim, alguns trabalhos que a gente fez, porque a gente fica na sala de revista ali, das festas e tal, e a gente coloca assim, eu já vi muito bolo de aniversário entrando, muito coisa assim, e é uma coisa que eu pelo menos entendo que do início, desde o nascimento o dar alimento para outro ser é uma questão de afeto, a mãe amamenta o filho, é uma questão de afeto. Então isso, ape-sar dessa realidade aqui, ainda existe de elas fazerem um bolinho de aniversário porque o marido de aniversário, tá na cadeia, mas tá de aniversário, e aí elas fazem, elas fazem o bolinho, dentro do que pode trazer, elas fazem a comida preferida deles, esse tipo de coisa assim, é uma forma de carinho, também (E6).

Com relação ao bolo de aniversário, conversei posterior-mente com a segurança e fui informada de que no dia do ani-versário do preso, mediante autorização prévia, é permitida a entrada. Do mesmo modo, os presos que forem participar de uma cerimônia de casamento, os familiares podem levar um casal de padrinhos, alguns salgadinhos, refrigerante, etc. como uma cerimônia aconteceria, claro, que com restri-ções, e mediante a vigilância institucional. Não acompanhei nenhuma circunstância citada, trago apenas como exemplo de possibilidades de ressignificações.

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Por outro lado, há na intervenção dos técnicos uma captura destas ressignificações, projetando-se na família construída um ideal de retorno à sociedade. Este aspecto também repercute nos modos de inserção das famílias no tratamento penal, pois normalmente passam a ser vistas como um recurso, nesse caso, o vínculo afetivo passa a assumir um caráter utilitário.

Aquele preso que não recebeu nenhum afeto familiar, que não teve nenhuma assistência, nenhum acompanhamento e que de repente ele tá preso e em algum momento ele con-segue construir alguma coisa que de um retorno afetivo pra ele pode ser um motivo pra ele re-avaliar a vida dele e ter outros planos lá fora, aquele preso que sempre foi um filho em que foi abandonado, ou qualquer coisa assim, quando ele se encontra na posição de pai surge esta questão da pa-ternidade da responsabilidade de tentar oferecer pra esse ser tudo aquilo que ele não teve, então isso às vezes é um fator que pode provocar a mudança de comportamento, às vezes a gente nota hoje porque que tá mudando, porque que ele tem essa proposta de mudança, porque que ele tem uma motivação. Então essa família construída esse retorno esse projeto que pode dar tudo aquilo que ele não teve na família de origem pode ser uma motivação para mudança de vida lá fora, então aí vem a questão do afeto, de tudo isso que também pode ser considerado e que é importante. (E6)

As ressignificações também são processos marcados pelo sofrimento, em que os familiares precisam mediar as relações entre o mundo da rua e o da prisão. O relato de F1 se distin-gue, pois precisa lidar com o sofrimento das filhas e ainda não gerar um sofrimento maior para o marido, sua fala é seguida pela carta do marido para as filhas.

E ontem foi uma visita assim que ele chegou a chorar, me pediu pra não abandonar. Tu não vai me abandonar né? Eu fico assim, eu fiz aquela correria pra poder visitar, me

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senti mal que até eu to acabando, querendo desistir de ir visitar. Mas como é que eu vou chegar e dizer assim pra ele eu não vou mais vir. Pra eles uma visita é muito im-portante. Então quando eu chego do presídio as gurias me perguntam como é que ta meu pai, meu pai perguntou por mim, me mandou um beijo, mandou uma carta sabe? Que nem nos dias dos pais eu não tinha dinheiro pra com-prar nada, mas no sábado elas fizeram um cartãozinho do jeitinho delas, pegaram uma folhinha fizeram e eu levei. Eu acabo me sentindo mal porque ele não come direito, não dorme direito, vive dopado de remédio ele toma re-médios controlados. Eu assim tem dias que eu acabo não dormindo direito, eu acabo me sentindo mal mesmo. Pra ti ter uma idéia ele não fumava e ta fumando lá dentro. A [filha] é a que sofre mais, porque as outras pequenininhas elas me perguntam do pai, mas não é tanto que nem ela. Ela chora ela não quer comer, ela não dorme direito. Eu sofro por ela e por ele também. Oh essa aqui que eu não dei pra elas ainda foi no dia [...]. Ele que escreveu. Agora que me lembrei que eu não dei pra ela, porque ela sabe ler, ele pegou e escreveu. Ele sente sabe, ele chora muito. Ele escreveu essa carta, eu tava lendo ontem porque eu pe-guei sábado, e eu me senti tão mal porque ele ta sofrendo muito bah, nunca ficou tão longe delas. E assim a gente procura não levar os problemas da gente da rua pra eles lá dentro. Porque eles não tão aqui eles não vão resolver nada. Eles perguntam se ta faltando trabalho, se ta te fal-tando alguma coisa. E como é que eu vou dizer não eu to precisando, que eu tenho conta pra pagar e tal, que eles não podem resolver. [Carta do pai para as filhas: A festa junina é uma festa que brincamos. Tem pescaria, fogueira, bandeirinha, pipoca, amendoim, cachorro-quente, suco de uva. As meninas usam vestidos, tranças e os meninos calças, botas, coletes, gravata e bigodes] (F1)

Dialogicamente e perpassando pelas dificuldades enfren-tadas tanta dentro da prisão, como fora, F4 (que teve um irmão

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morto dentro do sistema prisional), vivencia o fortalecimento de vínculos.

Hoje ele me ama mais, porque eu sou praticamente a única visita dele, o nosso amor fica mais forte, laços familiares, an-tes não havia tanto agora tem, a gente fortaleceu, a família, que eu digo eu e ele, foi com a morte do outro que fortale-ceu, eu sofri, recém vai fazer dois anos, e é muito difícil (F4).

A importância da família dentro do sistema prisional, em oposição aos grupos que configuram o fundo da cadeia, é manifestada na fala de F3, pois considera que muitas mães se queixam que os filhos mudam quando entram na prisão.

Ele no caso, ele ta lá, ta errado, mas a família no caso, mas a família gosta dele, a minha filha, o meu marido. É muito importante, tua mãe, tua Irma, tua cunhada, tem outros lá que não tem ninguém, mas na hora que ele vai conta com aqueles lá, aqueles lá que vão mina a cabeça dele, eles não tem ninguém. E eu já vi várias mães também se queixan-do dos problemas, que o filho não era tão mal assim, era assim faz o que tinha que fazer e corre. Mas com a família era diferente, e diz que lá dentro eles mudaram. (F3)

Os vínculos entre os presos e seus familiares caracteri-zam-se como uma dimensão importante no cumprimento da pena, e sua ressignificação remetem aos diversos modos como são vivenciados, pois não ocorrem de forma homogênea. Por essa perspectiva tanto podem existir rompimentos, aproxi-mação, fragilidades, a partir de como cada família irá lidar com a situação de afastamento do parente preso. Entretanto, o que é comum às histórias, é que existe uma responsabilização gerada às famílias que terão que lidar com estas situações, muitas vezes como mais um elemento constitutivo da pena.

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6. Considerações Finais

Transcorrido um percurso de dois anos, o fenômeno que elegi como objeto de estudo, mais do que respostas me instiga a novas interrogações, pois não tenho a pretensão de elencar con-clusões generalizantes que encerrem esta temática, ou a encar-cerem em respostas triviais. Porém, saliento que de agora em diante, tenho o compromisso ético de encarecer a complexidade do tema e as possibilidades de seu enfrentamento na produção de conhecimento em Serviço Social. O contexto de inserção das famílias no tratamento penal configura-se pela amplitude de aspectos emergentes em uma realidade de privações.

Tive por objetivo conhecer a experiência social destes familiares em relação à sua inserção no tratamento penal, e nesse sentido, os achados da pesquisa apontam uma série de responsabilizações deslocadas aos familiares, que convergem em penalizações vivenciadas no sistema prisional em seus mecanismos de controle.

Através de uma análise do sistema penitenciário como um sistema social complexo, tendo por base uma concepção dialógica, foi possível compreender os mecanismos de trata-mento penal a partir de suas configurações sociais e históri-cas, e o modo como as penalidades correspondem aos sen-tidos atribuídos à noção de crime em diferentes momentos da história brasileira. A correlação entre critérios atribuídos aos indivíduos e sua condição social, sempre esteve presente nas configurações penais, de modo que ao longo do tempo os meios de intervenções dirigidos aos que cumprem penas, estiveram pautados em aspectos morais e normalizantes.

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As transformações societárias que convergiram em dife-rentes necessidades de controle penal foram reiterando apa-ratos repressivos, os quais passaram a incidir em noções de periculosidade. Deste modo, o indício e a suspeição recaíram sobre categorias sociais, pessoas e grupos específicos, sobre-tudo, em situações de vulnerabilidade social.

Por outro lado, os mecanismos de controle em uma sociedade disciplinar manifestam-se em diferentes âmbitos da vida social, através da instituição de normas e modelos de comportamento que ditam o que é normal. A organização da sociedade através de instituições transfere às famílias papéis de manutenção relacionados ao controle dos indivíduos.

A conexão entre Famílias e Prisões está cercada de mitos e verdades que precisam ser desconstruídos, pois são mani-festados através de uma rede complexa e multidimensional, englobando não só aspectos estruturais, como também a cons-trução de subjetividades que perpassa o imaginário social.

As tendências de tratamento penal hoje são marcadas por aspectos classificatórios e correcionalistas, que atentam à con-versão de modos de vida, àquilo que é aceitável e esperado a partir de um padrão socioadequador. No entanto, a realidade prisional constitui-se por relações instituíntes, e nesse sen-tido, os diversos grupos que fazem parte do sistema prisional não estabelecem reações passivas ao modelo de tratamento à que estão submetidos. A execução penal caracteriza-se pela dialógica entre a projeção da disciplina e a produção da delin-quência. Os grupos que operam no fundo da cadeia, adqui-rem um funcionamento a partir de uma relação de autonomia e dependência. A autonomia refere-se aos valores sociais que divergem do ordenamento jurídico, e, no entanto, estabele-cem uma relação de dependência ao contexto social da vio-lência do sistema penitenciário.

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A inserção das famílias no sistema prisional em seus mecanismos disciplinadores, antagônicos e complementares, revela não apenas a captura das famílias como um recurso frente ao recuo do Estado em garantir as mínimas condições para o cumprimento da pena. Pois de outro lado, ao consti-tuírem-se como o apoio necessário em termos de tratamento penal, os familiares passam a fazer parte das dinâmicas e inte-rações carcerárias.

As histórias e temas emergentes apresentados neste tra-balho fazem parte da vivência dos familiares, bem como, de aspectos relacionados ao processo de auto-ecoorganização frente ao tratamento penal. Ao mesmo tempo em que expres-sam a singularidade destes sujeitos, revelam o funcionamento de um sistema social complexo em sua dimensão de holo-grama, pois nesse sentido as falas apresentadas desvendam o todo, na medida em que cada história que aparentemente é vista como privada adquire um sentido social.

Com efeito, os achados da pesquisa revelam mecanismos dirigidos aos familiares e desse modo, apontam urgências a serem enfrentadas. Entre estas, existe a necessidade de maior visibilidade às experiências sociais vivenciadas pelos familia-res de apenados. Nesse sentido, é imprescindível reconhecer que as famílias passam por penalizações constantes, contra-riando um dos preceitos da constituição brasileira, de que nenhuma pena passará da pessoa do condenado. Ainda que a LEP preconize assistência aos familiares e egressos do sistema prisional, de fato esta assistência torna-se frágil mediante o contexto de privações.

Mesmo que árdua esta tarefa, sobretudo, frente ao dis-curso ou o contradiscurso, como aponta Foucault (2007) daqueles que vivem, ou sobrevivem às masmorras de nossa sociedade moderna, na contramão de nosso discurso jurídico

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e formal, está o nosso desafio de pensar em estratégias dia-lógicas que possam quiçá minimizar o contexto de violência institucional em que os familiares estão inseridos.

Enfrentar esta série de mecanismos complexos, que per-meiam não só o contexto jurídico formal, como também os grupos de poder informal, requer primeiramente reconhecer a complexidade do sistema prisional. Pois muitas vezes as alter-nativas aplicadas remetem ao conservadorismo moral, as quais demarcam uma repetição de tentativas triviais. Por essa perspec-tiva, ações complexas (MORIN, 2001) remetem aos imprevistos, ao acaso, à consciência de que existem desvios e estes requerem transformações. No entanto as transformações precisam de ino-vações, sair da máquina trivial à procura de respostas-percur-sos (PASSETI, 2003) onde seja possível vislumbrar um percurso diferente a cada situação complexa que se apresenta.

Uma proposta urgente refere-se à instalação de mecanis-mos eletrônicos que possam por fim as revistas minuciosas que ainda fazem com que os familiares passem por situações vexatórias e constrangedoras. Somando-se as humilhações vivenciadas, as longas horas de espera nas filas e diversos aspectos que poderiam ser minimizados pela existência de aparelhos eletrônicos que oportunizassem um tratamento mais digno aos visitantes dos presos.

Entre as inovações possíveis, fortalecer o processo de empoderamento das famílias frente ao contexto prisional, através da ampliação de sistemas de redes comunitárias que possam, por exemplo, orientar os familiares quanto aos seus direitos, em situações vivenciadas que muitas vezes reme-tem ao desamparo frente aos mecanismos de controle penal. Como exemplo, associações de familiares de apenados, espa-ços de participação popular e cidadã, pelos quais existam meios que possam intermediar o percurso vivido e o prescrito pela norma jurídica.

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Entre os espaços de participação política e comunitária, como as Conferências de Segurança Pública, garantir espa-ços para que os familiares tenham voz e possam trazer suas reivindicações, encarecendo essa temática no cenário político.

Como também, o investimento em recursos humanos, através de projetos que possam oferecer aos trabalhadores da área prisional, tanto técnicos quanto as demais categorias, uma compreensão diferenciada com relação às famílias, der-rubando mitos e provocando tensionamentos sobre a reali-dade prisional. Desse modo, a parceria com universidades, através de trabalhos que vislumbrem pesquisa e extensão, seria também uma estratégia possível.

Entretanto, nosso pensamento acadêmico não acompa-nha o ritmo da vida que se manifesta, pois no entremeio da realização da pesquisa até o termino do mestrado, acredito que muitas violências estejam alcançando às famílias, e mui-tas outras histórias sendo produzidas e vivenciadas. Se as his-tórias aqui apresentadas serão ressignificadas eu não sei, pois não tenho o controle da vida destas pessoas que se dispuse-ram a participar de um estudo acadêmico.

Contudo, que estas histórias não sejam esquecidas é uma tarefa não só minha – enquanto sujeito dessa pesquisa – ao divulgar e apresentar seus achados, como também de todos que participaram e se afetaram com este trabalho.

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