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4/1/11 9:47 AM O Jogo da Evolução - Scientific American Brasil Page 1 of 8 http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/o_jogo_da_evolucao_imprimir.html TOM DRAPER DESIGN; M. JOHNSON Wellcome Images (célula); NICK PARFIT Getty Images (zebra); DON FARALL Getty Images (peixe); DARLYNE A. MURAWSKI National Geographic/Getty Images (mosca); DARRIN KLIMEK Getty Images (rã); MATHEW WARD Getty Images (tigre); DAVE KING Getty Images (elefante); GEOFF DAN Getty Images (chimpanzé); JOSE LUIS PELAEZ (humano) Reportagem edição 73 - Junho 2008 O Jogo da Evolução Dispositivos do DNA que decidem quando e onde os genes são ativados permitem aos genomas gerar a grande diversidade de formas animais a partir de um conjunto muito semelhante de genes por Sean B. Carroll, Benjamin Prud’homme e Nicolas Gompel À primeira vista esta lista de animais poderia ser a de um zoológico qualquer. Há um elefante, um tatu, um gambá, um golfinho, uma preguiça, um porco-espinho, morcegos grandes e pequenos, musaranhos, alguns peixes, um macaco Rhesus, um orangotango, um chimpanzé e um gorila – para citar algumas das criaturas mais conhecidas. Mas esse zoológico não é nada como os outros já existentes. É um zoológico “virtual” que contém apenas as seqüências de DNA desses animais – as centenas de milhões a bilhões de letras do código do DNA que compõem a receita genética de cada espécie. Os visitantes mais animados desse novo zoológico molecular são os biólogos evolucionistas, já que podem contar com um registro extenso e detalhado da evolução. Há muitas décadas, cientistas tentam entender como a grande diversidade de espécies surgiu. Já sabemos há meio século que as mudanças em características físicas, da cor do corpo ao tamanho do cérebro, vêm de mudanças no DNA. No entanto, até recentemente, determinar precisamente quais mudanças nas vastas seqüências de DNA foram responsáveis por conferir a cada animal sua aparência única estava fora de alcance. Agora, os biólogos estão decifrando os registros de DNA para localizar as instruções que fazem as diversas espécies ser tão diferentes umas das outras e nos tornam diferentes dos chimpanzés. Essa empreitada levou a uma grande mudança em nossa perspectiva. Durante grande parte dos últimos 40 anos, os pesquisadores dedicaram a maior parte de sua atenção aos genes – seqüências de nucleotídeos no DNA que codificam as cadeias de aminoácidos, que formam as proteínas. Mas, para nossa surpresa, as diferenças nas aparências acabaram por ser enganosas: animais muito diferentes possuem conjuntos de genes muito semelhantes. As trilhas da evolução estão agora nos levando a dispositivos dentro do DNA que ativam e desativam a

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TOM DRAPER DESIGN; M. JOHNSONWellcome Images (célula); NICK PARFIT GettyImages (zebra); DON FARALL Getty Images(peixe); DARLYNE A. MURAWSKI NationalGeographic/Getty Images (mosca); DARRINKLIMEK Getty Images (rã); MATHEW WARDGetty Images (tigre); DAVE KING GettyImages (elefante); GEOFF DAN Getty Images(chimpanzé); JOSE LUIS PELAEZ (humano)

Reportagem

edição 73 - Junho 2008

O Jogo da EvoluçãoDispositivos do DNA que decidem quando e onde os genes são ativados permitem

aos genomas gerar a grande diversidade de formas animais a partir de um conjuntomuito semelhante de genes

por Sean B. Carroll, Benjamin Prud’homme e Nicolas Gompel

À primeira vista esta lista de animais poderia ser a de umzoológico qualquer. Há um elefante, um tatu, um gambá, umgolfinho, uma preguiça, um porco-espinho, morcegos grandes epequenos, musaranhos, alguns peixes, um macaco Rhesus, umorangotango, um chimpanzé e um gorila – para citar algumas dascriaturas mais conhecidas. Mas esse zoológico não é nada comoos outros já existentes. É um zoológico “virtual” que contémapenas as seqüências de DNA desses animais – as centenas demilhões a bilhões de letras do código do DNA que compõem areceita genética de cada espécie.

Os visitantes mais animados desse novo zoológico molecular sãoos biólogos evolucionistas, já que podem contar com um registroextenso e detalhado da evolução. Há muitas décadas, cientistastentam entender como a grande diversidade de espécies surgiu.Já sabemos há meio século que as mudanças em característicasfísicas, da cor do corpo ao tamanho do cérebro, vêm demudanças no DNA. No entanto, até recentemente, determinarprecisamente quais mudanças nas vastas seqüências de DNAforam responsáveis por conferir a cada animal sua aparênciaúnica estava fora de alcance.

Agora, os biólogos estão decifrando os registros de DNA paralocalizar as instruções que fazem as diversas espécies ser tãodiferentes umas das outras e nos tornam diferentes doschimpanzés. Essa empreitada levou a uma grande mudança emnossa perspectiva. Durante grande parte dos últimos 40 anos, ospesquisadores dedicaram a maior parte de sua atenção aos genes– seqüências de nucleotídeos no DNA que codificam as cadeias deaminoácidos, que formam as proteínas. Mas, para nossasurpresa, as diferenças nas aparências acabaram por serenganosas: animais muito diferentes possuem conjuntos degenes muito semelhantes. As trilhas da evolução estão agora noslevando a dispositivos dentro do DNA que ativam e desativam a

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expressão gênica, que não codificam nenhuma proteína, mascontrolam quando e como os genes são usados. Alterações nesses dispositivos são cruciais para aevolução da anatomia e fornecem novas visões de como a aparentemente interminável variedade deformas do reino animal evoluiu.

O Paradoxo da CodificaçãoPor um longo tempo, os cientistascertamente esperavam que as variaçõesanatômicas entre os animais fossemrefletidas por diferenças claras no conteúdode seus genomas. Quando comparamosgenomas de mamíferos como ocamundongo, o rato, o cachorro, o homeme o chimpanzé, no entanto, vemos queseus respectivos catálogos de genes sãonotavelmente similares. O númeroaproximado de genes no genoma de cadaanimal (cerca de 20 mil) e as posiçõesrelativas de muitos genes se mantiverambem constantes em 100 milhões de anosde evolução. Isso não quer dizer que nãohá diferenças no número e na localizaçãodos genes. Mas, à primeira vista, nadanesses inventários gênicos diz“camundongo” ou “cão” ou “humano”. Aocompararem os genomas do camundongo edo homem, por exemplo, os biólogos sãocapazes de identificar no roedor genesequivalentes a pelo menos 99% dos nossos.

Quando os biólogos avaliam individualmente os genes, de forma detalhada, a semelhança entreespécies também é a regra. As seqüências de DNA de duas versões quaisquer de um gene, bemcomo as proteínas que codificam, são geralmente semelhantes em um grau que simplesmente refletea quantidade relativa de tempo que se passou desde que as duas espécies divergiram de umancestral comum. A preservação das seqüências codificantes ao longo da evolução é particularmenteintrigante quando consideramos os genes envolvidos na construção e definição das formas do corpo.

Apenas uma pequena fração de todos os genes – menos de 10% – são responsáveis pela construçãoe definição das formas do corpo dos animais durante seu desenvolvimento de um óvulo fertilizado àforma adulta. O resto está participando de tarefas diárias das células nos diversos órgãos e tecidos.Diferenças anatômicas entre animais – no número, tamanho, forma ou cor de partes do corpo –devem de alguma forma envolver genes de construção. Na verdade, o estudo do papel centralexercido na evolução por genes e nos processos associados ao desenvolvimento da anatomia atéganhou seu próprio apelido: evo-devo (abreviação em inglês para “evolução do desenvolvimento”).Para os especialistas nessa área de pesquisa, como nós, a descoberta de que as proteínas queconstroem o corpo são ainda mais parecidas na média que outras foi particularmente intrigante porcausa do paradoxo que parece apresentar: animais tão diferentes quanto um camundongo e umelefante são modelados por um conjunto comum de proteínas de construção muito semelhantes efuncionalmente indistinguíveis. O mesmo se aplica aos humanos e a nossos parentes vivos maispróximos – a maioria de nossas proteínas difere das dos chimpanzés em apenas um ou dois dascentenas de aminoácidos que compõem cada uma delas, e 29% de nossas proteínas têm seqüênciaexatamente idêntica à deles. Como explicamos essa disparidade na evolução quanto aos níveis deproteína e à anatomia? Em algum lugar de todo aquele DNA genômico deve haver diferençassignificativas que evoluíram. O difícil é achá-las.

Controlando a Expressão Gênica Nos humanos, as seqüências codificantesde proteína do DNA ocupam apenas cerca

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de 1,5% de nosso genoma. Boa parte doDNA não-codificante não tem funçãoconhecida, mas algumas das seqüênciasparticipam da tarefa muito importante deregulação da expressão gênica. E essasseqüências regulatórias são cruciais para aevolução.

A expressão de um gene implica atranscrição de uma seqüência de DNA emuma versão de RNA mensageiro (mRNA), ea tradução desse mRNA para umaseqüência protéica. A expressão da maioriados genes é regulada no níveltranscricional – as células não desperdiçamenergia fabricando mRNAs e proteínas deque não precisam. Muitos genes são, dessaforma, expressos especificamente emdeterminado órgão, tecido ou tipo celular.Certas seqüências não-codificantes de DNA podem exercer um papel crítico na decisão de quando eonde isso acontece. Elas são componentes dos dispositivos que ligam ou desligam genes no sítio ehora corretos. Proteínas ligantes de DNA em seqüências específicas, chamadas fatores de transcrição(que são os outros componentes desse dispositivo), reconhecem essas seqüências de DNA,normalmente chamadas de acentuadoras ou promotoras (enhancers). A ligação de fatores detranscrição à seqüência acentuadora no núcleo celular determina se o dispositivo de expressão e ogene estão ligados ou desligados naquela célula.

Todo gene contém pelo menos um acentuador. Ao contrário dos genes em si, cujas regiõescodificantes são prontamente identificadas em virtude da gramática bastante simples do códigogenético, as regiões acentuadoras não podem ser reconhecidas tendo como base apenas suasseqüências de DNA, e devem ser identificadas experimentalmente. Geralmente, os acentuadores sãoformados por centenas de pares de bases de comprimento e podem estar localizados em qualquerum dos lados do gene, ou mesmo em uma seqüência não-codificante dentro dele. Eles podemtambém estar a milhares de nucleotídeos de distância do gene.

De suma importância para a nossa discussão aqui é o fato de quealguns genes podem ter muitos acentuadores separados. Isso éparticularmente verdadeiro para genes que codificam proteínas quedefinem a anatomia. Cada acentuador regula de formaindependente a expressão do gene em diferentes partes do corpo eem várias épocas do ciclo de vida do animal, de forma que aexpressão completa do gene é uma colcha de retalhos de várioslocais de expressão controlados independentemente. Essesacentuadores permitem que o mesmo gene seja utilizado muitasvezes em diferentes contextos e, assim, expandem enormemente aversatilidade funcional de genes individuais.

Um gene envolvido na coloração de partes do corpo de uma mosca-das-frutas ilustra a lógica modular desse sistema de regulaçãogênica. O gene batizado confusamente de Amarelo codifica umaproteína que promove a formação de pigmentação negra (moscasmutantes, sem essa proteína, são amarelas). O gene Amarelo temacentuadores separados que o ativam durante o desenvolvimentode várias partes do corpo, incluindo as asas e o abdômen.

Uma vez que o gene Amarelo exerce um papel durante o desenvolvimento de tantos tecidos,mutações do gene em si seriam desastrosas se alterassem ou desativassem a função da proteína,

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pois afetariam o funcionamento da proteína de pigmentação Amarelo em todo o organismo. Por outrolado, mudanças em apenas um dos acentua-dores do gene afetam apenas a função desseacentuador e a expressão do gene Amarelo que é governada por ele, sem modificar a expressão e ofuncionamento da proteína em outros tecidos.

As implicações evolutivas da regulação modular de genes de definição das formas do corpo sãoprofundas. Teoricamente, mutações nos acentuadores permitiriam que traços corporais individuaisfossem seletivamente modificados, sem alterar genes ou proteínas em si. Nos últimos anos, têmsurgido evidências diretas de que é assim que muitas vezes as várias formas e padrões corporaisapareceram.

Dispositivos em EvoluçãoUma das estratégias mais importantes nabiologia é identificar os modelosexperimentais mais simples do fenômenoque se pretende entender. Com relação àevolução de um determinado padrãocorporal, a cor é o melhor modelo. Padrõesde coloração corporal de mosca-das-frutasse diversificaram rapidamente entreespécies proximamente relacionadas, e aanálise de como esses insetos adquiriramsuas manchas e listras ilustra como e porque a evolução dos dispositivos de ativação genética define a evolução da anatomia.

Em algumas espécies, os machos têm manchas de negro intenso na ponta das asas, enquanto outrasespécies não as têm. Em algumas dessas mesmas espécies, os machos têm o abdômen muito escuro(que é como a mosca-das-frutas mais famosa, a Drosophila melanogaster, recebeu seu nome:melanogaster significa “barriga preta”), enquanto machos de outras espécies não possuem essa faixanegra. Em espécies com asas pintadas, o macho exibe suas pintas para a fêmea quando a cortejacom uma dança. Descobrimos que, em espécies manchadas, a proteína Amarelo é produzida emníveis muito altos nas células que comporão as manchas e em níveis baixos no resto das células daasa. Em espécies sem manchas, a Amarelo é produzida em níveis baixos em toda a asa, gerandoapenas um pontilhado claro de pigmento negro.

Para entendermos como a Amarelo é produzida em uma mancha da asa em algumas espécies e nãoem outras, buscamos nas seqüências de DNA próximas ao gene Amarelo os acentuadores quecontrolam sua expressão em várias partes do corpo. Nas espécies sem manchas, há um acentuadorque estimula a expressão do Amarelo em um padrão baixo e uniforme por toda a asa. Essa atividadeacentuadora na asa gera a coloração cinza claro. Quando a porção correspondente de DNA de umaespécie manchada foi analisada, descobrimos que ela estimula tanto esse padrão de expressão gênicade baixa intensidade quanto o padrão intenso de manchas. O que ocorreu no curso da evolução dasespécies manchadas é que novos sítios de ligação para fatores de transcrição produzidos na asaevoluíram na seqüência acentuadora de DNA do Amarelo. Essas mudanças criaram um padrão deexpressão – manchas na asa – sem alterar onde a proteína Amarelo é fabricada ou como ela funcionaem outros locais do corpo.

Uma história semelhante ocorreu na evolução da faixa preta no abdômen mas com uma diferença.Embora tenhamos uma tendência natural a pensar que a presença de uma característica em umaespécie e sua ausência em outra espécie relacionada é o resultado de um ganho pela primeira,muitas vezes esse não é o caso. O outro lado da moeda na evolução, a perda de características, émuito comum, apesar de menos conhecida. Talvez a perda de características corporais ilustre melhorpor que a evolução dos acentuadores é o caminho mais provável da evolução da anatomia.

Um acentuador do gene Amarelo comanda sua expressão no abdômen. Em machos de espécies coma faixa negra, esse acentuador direciona a expressão do gene Amarelo em altos níveis em células daparte posterior do abdômen. Mas algumas espécies, como a Drosophila kikkawai, perderam essafaixa pigmentada no curso da evolução. Na D. kikkawai, o acentuador não é mais capaz de estimular

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altos níveis de expressão de Amarelo na parte posterior do abdômen porque algumas mutaçõesdegradaram alguns de seus sítios de ligação para fatores de transcrição.

É importante enfatizar que o gene Amarelo permanece ativo no restante do corpo e que sua funçãobioquímica está intacta. Embora um dos caminhos para perder a faixa negra pudesse ter sido pormeio de mutações que desativassem o gene Amarelo e sua proteína, essa via não é permitida pelaseleção natural, já que a perda da função da Amarelo em outros lugares do corpo teriaconseqüências adicionais negativas.

A perda de características pode ou não ser benéfica para a sobrevivência ou maior sucessoreprodutivo, mas algumas perdas são adaptativas porque facilitam alguma mudança no estilo devida. Membros posteriores, por exemplo, foram eliminados várias vezes no caso de vertebrados –como cobras, lagartos, baleias e peixes-boi –, e essas perdas estão associadas à adaptação adiferentes hábitats e meios de locomoção. Os precursores evolutivos dos membros posteriores dosvertebrados são as barbatanas pélvicas dos peixes. Diferenças cruciais na anatomia delas tambémevoluíram em populações de peixes proximamente relacionadas. O peixe-espinho aparece em duasformas em muitos lagos da América do Norte – em águas profundas, sua pelve é completamentecoberta de espinhos; aqueles que vivem no assoalho de águas rasas tiem a pelve dramaticamentereduzida e os espinhos, atrofiados. Em águas profundas, os espinhos ajudam a impedir que o peixeseja engolido por predadores maiores. No entanto, no assoalho do lago, esses espinhos são um pontofraco, pois larvas de libélula que se alimentam dos peixes jovens conseguem agarrá-los.

As diferenças na morfologia da pelve entre esses peixes evoluíram repetidas vezes em apenas 10 milanos desde a última era glacial. Grandes peixes-espinho oceânicos colonizaram muitos lagosseparados, e a variedade com pelve reduzida evoluiu de forma independente diversas vezes. Comoesses peixes são muito próximos e conseguem ter reprodução interespécies em laboratório, osgeneticistas podem mapear os genes envolvidos na redução da pelve. David M. Kingsley, da StanfordUniversity, juntamente com Dolph Schluter, da University of Bristish Columbia e seus colegas,demonstraram que mudanças na expressão de um gene envolvido na construção do esqueleto dapelve estavam associadas à sua redução. Como a maior parte dos outros genes de construçãocorporal, o Pitx1 tem várias funções no desenvolvimento do peixe. Mas sua expressão é perdida deforma seletiva na área do peixe que dará origem ao broto da barbatana pélvica e seus espinhos. Maisuma vez, mudanças evolutivas em um acionador são as responsáveis. Não há mudanças codificantesna proteína Pitx1 entre as diferentes formas de peixe-espinho.

O Amarelo, o Pitx1 e a maioria dos outros genes de construção e definição das formas do corpo sãopleiotrópicos, ou seja, influenciam a formação e o aparecimento de várias características. Mutaçõesna seqüência codificante de um gene pleiotrópico provocam uma série de efeitos em todas ascaracterísticas controladas por ele, e é improvável que uma quantidade drástica de mudanças sejatolerada pela seleção natural. A lição crucial da evolução de pintas, faixas e esqueletos é que asmutações em seqüên-cias regulatórias contornam os efeitos pleiotrópicos em seqüências codificantese permitem uma modificação de partes individuais do corpo. Mutações nas seqüências regulatóriasnão são o único modo de evolução – são apenas a via mais provável quando um gene tem váriospapéis e um deles é modificado seletivamente.

Genes em Comum, Variedade sem Fim A evolução dos acentuadores não está, de forma alguma, limitada aos genes que afetam a formacorporal, nem apenas a moscas-das-frutas e peixes estranhos. Uma série de exemplos de mudançasevolutivas em seqüências regulatórias que alteram a expressão gênica foi demonstrada paracaracterísticas humanas também.

Um dos casos mais impressionantes na evolução humana recente representa uma adaptação, pormeio da perda seletiva da expressão de um gene, a um ambiente onde a malária é endêmica. Alémdos familiares tipos de sangue A, B e O, outros considerados secundários têm sido bastanteestudados. A condição de uma proteína chamada Duffy, presente na superfície de glóbulos vermelhossangüíneos, define um desses tipos. A proteína Duffy constitui parte do receptor que é utilizada porum parasita que provoca a malária, o Plasmodium vivax, para infectar os glóbulos vermelhos. Mas,

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TAMI TOLPA

na África ocidental, a proteína está ausente das células sangüí-neas de quase 100% da população,tornando as pessoas resistentes à infecção. O gene Duffy é também expresso em vários outrostecidos corporais, inclusive por células do baço, rins e cérebro. Na população africana, a expressão doDuffy nesses outros tecidos está preservada. Não surpreendentemente, essas pessoas Duffy-negativas portam uma mutação em um acentuador do gene Duffy que elimina o sítio de ligação paraum fator de transcrição que ativa a expressão desse gene nos precursores das hemácias, mas nãotem efeitos na produção da Duffy em outros locais do corpo.

Gregory A. Wray, da Duke University, e seus colaboradores identificaram outros aspectos da biologiahumana que evoluíram por meio de mutações em acentuadores de diversos genes humanos. Umadas associações mais intrigantes revelada até agora engloba a divergência nas seqüênciasregulatórias humana e dos grandes primatas que controlam o gene Prodinorfina, que codifica umconjunto de pequenas proteínas opióides produzidas no cérebro e que atuam na percepção,comportamento e memória. O gene humano é levemente mais expresso em resposta a estímulos quea versão do chimpanzé, e fortes evidências sugerem que a seqüência regulatória humana evoluiu sobseleção natural – ou seja, foi mantida por ser vantajosa.

Como os exemplos ilustram, mutações no DNA regulatório indubitavelmente exerceram um papel naevolução humana, e a variação regulatória também pode ser uma fonte importante de diferençasfísicas e de saúde entre as pessoas. Já que os cientistas não podem manipular o DNA de humanosvivos como o fazem com moscas e peixes, é mais difícil estudar certos exemplos de mudança emDNA regulatório responsáveis por nossa divergência de outras espécies, embora alguns novosmétodos de análise genômica estejam produzindo resultados iniciais animadores.

Ainda estamos no início da pesquisa acerca da evolução das seqüências de DNA reguladoras degenes. Centenas de milhares de dispositivos de expressão genética no zoológico virtual de genomasainda estão para ser descobertos ou investigados. No entanto, biólogos já estão aprendendo novosprincípios: mudanças evolutivas na anatomia, particularmente as que envolvem genes pleiotrópicos,ocorrem mais provavelmente via mudanças em acentuadores gênicos que nos genes em si.

Esse fenômeno também revela como muitos grupos diversos de animais podem compartilhar amaioria, se não todos, os genes envolvidos na construção e definição das formas do corpo. Aocontrário das expectativas iniciais dos cientistas, a questão é, principalmente, como e quando essesgenes são usados para moldar as diferentes formas do reino animal. Se realmente quisermosentender o que faz as formas humanas diferentes daquelas de outros primatas e o que torna umelefante distinto de um camundongo, grande parte da informação não está em nossos respectivosgenes e proteínas, mas em um domínio completamente diferente de nossos genomas que permaneceinexplorado.

CONCEITOS-CHAVE

- Uma vez que os genes codificam as instruções para a constituição do corpo dos animais, osbiólogos esperavam encontrar diferenças genéticas significativas entre eles, refletindo sua grandediversidade de formas. Mas, na verdade, descobriram que animais muito diferentes possuem genesmuito semelhantes.

- Mutações em dispositivos que controlam a expressão de genes que definem as formas do corpo, enão nos genes em si, têm sido uma fonte significativa de diferenças evolutivas entre animais.

- Se os humanos quiserem entender o que distingue os animais, incluindo nós mesmos, uns dosoutros, será preciso olhar além dos genes.– Os editores

DETECTANDO O DISPOSITIVO

Para entenderem quando e onde um acentuador regula a expressãode um gene, os cientistas montam um fragmento de DNA contendoa seqüência do acentuador e um gene indicador que produzirá umsinal visível quando estiver ativo. Depois que essa montagem de

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DNA é injetada em um embrião de uma única célula, passa aintegrar o genoma do animal e estar presente em todas as célulasdo corpo em desenvolvimento. A ativação do gene indicador revelao papel do acentuador em processos de construção corporal duranteo desenvolvimento.

Em Busca de Dispositivos

Um dos principais limitadores do ritmo de descoberta de acentuadores humanos tem sido adificuldade de identificar onde eles residem nas vastas regiões não-codificantes do genoma humano.Os biólogos têm agora usado o poder de preservação da seleção natural para farejar seqüências deDNA não-codificante que ficaram surpreendentemente bem conservadas ao longo das grandesescalas do tempo evolutivo, na esperança de detectar acentuadores.

Nesse artigo, enfatizamos mudanças em acentuadores que explicam diferenças entre organismos.Mas é fácil perceber que alguns executam funções que não se modificaram. Enquanto o ritmoconstante das mutações corrói a semelhança geral entre as seqüências de DNA de diferentesespécies à medida que divergem, a seleção natural mantém as seqüências de acentuadores queconserva sua função, algumas vezes em um grau extraordinário.

O senso comum diz que os advogados e os tubarões têm muitas semelhanças. Mas quem adivinhariaque as semelhanças vão até o nível do DNA? Isso é basicamente o que pesquisadores do Instituto deBiologia Celular e Molecular de Cingapura e do Craig Venter Institute em Rockville, Maryland,demonstraram. A equipe mostrou que apesar dos mais de 500 milhões de anos que separam ostubarões dos humanos, compartilhamos quase 5 mil elementos em regiões não-codificantes próximasa genes que aparentam ser acentuadores. Notavelmente, a maioria desses elementos altamentepreservados está localizada na vizinhança de genes de construção corporal, refletindo a arquiteturacorporal geral compartilhada pelos vertebrados.

Todo vertebrado tem características anatômicas – órgãos, tecidos, tipos celulares, e assim por diante– que foram preservadas durante sua diversificação. Em distâncias evolutivas mais curtas, o númerode elementos compartilhados e o grau de semelhança aumentam.

A comparação de genomas está, portanto, rapidamente expandindo o catálogo de acentuadoresconhecidos de humanos, mamíferos e vertebrados, e pode levar à identificação de seqüênciasenvolvidas na divergência de formas corporais. – S. B. C., B. P. e N. G.

PARA CONHECER MAIS

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Evolution at two levels: on genes and form.Sean B. Carroll, em PLoS Biology, vol. 3, no 7, págs.1159-1166, julho de 2005.

Endless forms most beautiful: the new science of evo devo and the making of the animalkingdom. Sean B. Carroll. W. W. Norton, 2005.

The making of the fittest: DNA and the ultimate forensic record of evolution.Sean B. Carroll.W. W. Norton, 2006.

The evolutionary significance of cis-regulatory mutations. Gregory A. Wray, em NatureReviews Genetics, vol. 8, págs. 206-216, março de 2007.

Emerging principles of regulatory evolution.Benjamin Prud’homme, Nicolas Gompel e Sean B.Carroll, em Proceedings of the National Academy of Sciences USA, vol. 104, Suplemento 1, págs.8605-8612, 15 de maio de 2007.

Para links para recursos didáticos, acesse www.seanbcarroll.com

Sean B. Carroll, Benjamin Prud’homme e Nicolas Gompel trabalharam juntos por muitos anospara decifrar como a evolução de seqüências regulatórias de DNA define a morfologia animal.Carroll é pesquisador do Howard Hughes Medical Institute, professor de biologia molecular daUniversity of Wisconsin – Madison e autor de dois livros populares sobre evolução. Prud’homme eGompel, ambos ex-alunos de pós-doutorado do laboratório de Carroll, agora estudam a evoluçãode formas e comportamento animal em seu próprio laboratório na França, no Instituto de Biologiado Desenvolvimento de Marselha Luminy.

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